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Epistemologia e Modernidade

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epistemologia e

modernidade
AUTOR: JOSÉ RICARDO CUNHA

1ª EDIÇÃO

ROTEIRO DE CURSO
2010.1
Sumário
Epistemologia e modernidade

I. APRESENTAÇÃO DO CURSO..........................................................................................................................................................03

II. PROGRAMA DO CURSO ..............................................................................................................................................................05

III. BIBLIOGRAFIA SUGERIDA .........................................................................................................................................................07

IV. PLANO DAS AULAS ...................................................................................................................................................................10

AULA 1. INTRODUÇÃO AO CURSO E SEUS OBJETIVOS. PENSAMENTO E VERDADE.................................................................................10

AULA 2. NOSSA IDÉIA DE VERDADE: ALETHEIA, VERITAS, EMUNAH ...................................................................................................14

AULA 3. REALIDADE E VERDADE: HERÁCLITO E PARMÊNIDES ............................................................................................................17

AULA 4. LINGUAGEM E VERDADE: OS SOFISTAS ................................................................................................................................26

AULA 5. CONCEITO E VERDADE: SÓCRATES .......................................................................................................................................29

AULA 6. INATISMO: DESCARTES......................................................................................................................................................31

AULA 7. EMPIRISMO: HUME E LOCKE ..............................................................................................................................................35

AULA 8. FORMALISMO JURÍDICO E REALISMO JURÍDICO ...................................................................................................................39

AULA 9. CRITICISMO: KANT ............................................................................................................................................................42

AULA 10. O POSITIVISMO: COMTE ...................................................................................................................................................48

AULA 11. MODERNIDADE E IDEOLOGIA CIENTIFICISTA .....................................................................................................................53

AULAS 12 E 13. OS POSITIVISMOS JURÍDICOS E A CIÊNCIA DO DIREITO ..............................................................................................57


EpIsTEmOlOGIa E mODERnIDaDE

i. apresentaÇÃo do CUrso

Saudações acadêmicas! Este é o Curso de Ciência e Modernidade – uma introdu-


ção ao problema da verdade. Trata-se de um curso de ilosoia que caminha entre a
ilosoia geral e a ilosoia do direito e sua missão é problematizar o tema da verda-
de. Dessa forma, serve como pressuposto lógico e didático para o curso de ilosoia
do semestre seguinte, que irá problematizar o tema da justiça. Assim, o aluno será
inserido nos dois pilares ilosóicos – verdade e justiça – especialmente escolhidos e
pensados para a grade curricular da Escola de Direito do Rio de Janeiro da Funda-
ção Getulio Vargas.
Toda a tradição jurídica foi forjada tendo como pressuposto conceitual, de
forma mais ou menos clara, a idéia de verdade: verdade dos fatos, verdade das
leis, verdade da constituição, verdade do processo, verdade do discurso, verdade
do intérprete, etc. Ainda que o conceito em si de verdade nunca tenha sido te-
matizado de forma absoluta ou mesmo encontrado um consenso entre ilósofos
ou juristas, a idéia da verdade sempre esteve – e ainda está – amparando e legiti-
mando o direito e as decisões jurídicas. Seja pela recorrência aos fatos, às normas
ou à argumentação, a comunidade jurídica busca um amparo de veracidade que
responda aos anseios da consciência epistemológica de toda a sociedade. Isso
deve deixar claro que o problema da verdade não é especíico do direito, nem
mesmo da ilosoia, mas, antes, trata-se de um problema humano e, por isso
mesmo, social.
Essa imbricação entre sociedade e verdade nunca foi tão profunda e tão explí-
cita como na modernidade. O laicismo moderno foi convertido em cientiicismo
moderno e a ciência, tendo na técnica o seu braço operacional, passou a ocupar
o centro do pensamento social e o lugar privilegiado da verdade. Todas as formas
de conhecimento e instituições modernas foram, então, visceralmente marcadas
por essa “ideologia cientiicista”. Foi assim com a economia, a política, a medicina
e, dentre outras, o direito que, rapidamente, converteu-se em ciência do direito.
Como se não bastasse, os próprios ramos do direito iniciaram uma corrida alucina-
da pelo seu próprio estatuto de cientiicidade e, por isso, lemos e ouvimos falar em
coisas como “ciência do direito processual”, “ciência do direito penal” ou “direito
civil como ciência própria dentro do direito”.
Todas essas relexões terão lugar neste curso de Ciência e Modernidade. Não se
pode imaginar, hoje, a igura de um proissional crítico e hábil do direito, que seja
capaz de pensar por problemas e raciocinar dialeticamente, sem que esteja inserido
nesse debate ilosóico e preparado para a problematização da verdade. Portanto, o
presente curso não tem caráter secundário ou diletante. Embora esteja cercado pelos
prazeres da ilosoia, sua tarefa é árdua e exige concentração e aprofundamento. Tra-
ta-se de uma oportunidade ímpar de experiência do pensamento para a qual estão
todos desde já convidados.

FGV DIREITO 3
EpIsTEmOlOGIa E mODERnIDaDE

1. ObjetivO Geral da disciplina

Introduzir noções essenciais para a problematização do conceito de verdade a


partir da compreensão dos fundamentos da epistemologia, tendo em vista o estudo
dos limites e possibilidades de uma ciência do direito no contexto da crise e da crí-
tica do paradigma da modernidade.

2. ObjetivOs específicOs da disciplina

2.1. Apresentar a verdade como objeto de um intenso debate histórico – ilosó-


ico e jurídico – sobre o qual não há um consenso deinitivo;
2.2. Estudar os principais fundamentos, antigos e modernos, que contribuíram
para a constituição das idéias mais fortes de verdade na cultura ocidental;
2.3. Investigar as bases positivistas do cientiicismo moderno e a sua inlexão
sobre a chamada “ciência do direito”.

3. fOrmas de avaliaçãO

O aluno será avaliado mediante sua participação qualiicada em sala de aula,


realização das leituras obrigatórias, trabalhos e provas que forem aplicados.

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EpIsTEmOlOGIa E mODERnIDaDE

ii. programa do CUrso

ementa

Objetivos da ilosoia e ilosoia do direito. O pensamento e as tarefas do pen-


samento. As idéias de verdade e seus desaios intelectuais e sociais. Fundamentos
ilosóicos da antiguidade para a verdade. Fundamentos ilosóicos da modernidade
para a verdade. Modernidade, verdade e ciência. O positivismo e os positivismos
jurídicos na ciência do direito.

intrOdUçãO: a verdade cOmO tema e prOblema

1. Introdução ao curso e seus objetivos. Pensamento e verdade.


2. Nossa idéia de verdade: aletheia, veritas, emunah.

Unidade 1: fUndamentOs da antiGUidade

3. Realidade e verdade: Heráclito e Parmênides.


4. Linguagem e verdade: os Soistas.
5. Conceito e verdade: Sócrates.

Unidade 2: fUndamentOs da mOdernidade

6. Inatismo: Descartes.
7. Empirismo: Hume e Locke.
8. Formalismo Jurídico e Realismo Jurídico.
9. Criticismo: Kant.

Unidade 3: ciÊncia e direitO na mOdernidade

10. O positivismo: Comte.


11. Modernidade e ideologia cientiicista.
12. Positivismos jurídicos e a ciência do direito.
13. Os positivismos jurídicos e a ciência do direito II.

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EpIsTEmOlOGIa E mODERnIDaDE

ObservaçãO impOrtante

O Curso não se propõe a uma abordagem enciclopédica do tema proposto, o


que seria impossível nos limites da carga horária da disciplina, além de didatica-
mente questionável. O io condutor de todas as relexões é o tema da verdade e os
autores serão abordados não com o im de se conhecer suas respectivas obras, mas
como forma de aproche para acepções relevantes ao tema.

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EpIsTEmOlOGIa E mODERnIDaDE

iii. BiBliograFia sUgerida

ADORNO, heodor; HORKHEIMER, Max. Dialética do esclarecimento: frag-


mentos ilosóicos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1985.
ALEXY, Robert. Derecho e razón práctica. México: Fontamara, 2002.
ARAÚJO, Inês Lacerda. Introdução à filosofia da ciência. Curitiba: EdUFPR,
1993.
ARENDT, Hannah. A condição humana. Rio de Janeiro: Forense Universitária,
1995.
ARNAUD, André-Jean (Org.). Dicionário enciclopédico de teoria e sociologia do
direito. Rio de Janeiro: Renovar, 1999.
ATIENZA, Manuel. As razões do direito: teorias da argumentação jurídica. São
Paulo: Landy, 2000.
BACON, Francis. Novum Organum ou verdadeiras indicações acerca da interpreta-
ção da natureza. São Paulo: Abril Cultural, 1984.
BARKER, Sir Ernest. Teoria política grega: Platão e seus predecessores. Brasília:
EdUnb, 1978.
BATIFFOL, Henri. A filosofia do direito. Lisboa: Editorial Notícias, [s.d.].
BAUMAN, Zygmunt. Modernidade e ambivalência. Rio de Janeiro: Jorge Zahar,
1999.
BOBBIO, Norberto. O positivismo jurídico: lições de ilosoia do direito. São
Paulo: Ícone, 1995.
BORNHEIM, Gerd. (Org.). Os filósofos pré-socráticos. São Paulo: Cultrix.
BOUDON, Raymond. O justo e o verdadeiro: estudos sobre a objectividade dos
valores e do conhecimento. Lisboa: Instituto Piaget, 1998.
CANARIS, Claus-Wilhelm. Pensamento sistemático e conceito de sistema na ciência
do direito. Lisboa: Calouste Gulbenkian, 1989.
CAPRA, Fritjof. O ponto de mutação: a ciência, a sociedade e a cultura emergente.
São Paulo: Cultrix, 1999.
CARNAP, Rudolf. Empirismo, semântica e ideologia. São Paulo: Abril Cultural,
1980.
______. Testabilidade e significado. São Paulo: Abril Cultural, 1980.
CHAUÍ, Marilena. Convite à filosofia. São Paulo: Ática, 1994.
______. Introdução à história da filosofia: dos pré-socráticos a Aristóteles. São
Paulo: Brasiliense, 1994.
COING, Helmut. Elementos fundamentais da filosofia do direito. Porto Alegre:
Sergio Antonio Fabris, 2002.
COLLI, Giorgio. O nascimento da filosofia. Campinas: Unicamp. 1992.
COMTE, Augusto. Curso de filosofia positiva. São Paulo: Abril Cultural, 1983.
______. Discurso preliminar sobre o conjunto do positivismo. São Paulo: Abril Cul-
tural, 1983.
______. Discurso sobre o espírito positivo. São Paulo: Abril Cultural, 1983.
CUNHA, José Ricardo. Direito e estética: fundamentos para um direito humanís-
tico. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris, 1998.

FGV DIREITO 7
EpIsTEmOlOGIa E mODERnIDaDE

DESCARTES, René. Discurso do método. São Paulo: Abril Cultural, 1979.


______. Meditações. São Paulo: Abril Cultural, 1979.
DINIZ, Maria Helena. Compêndio de introdução à ciência do direito. São Paulo:
Saraiva, 1993.
FERRAZ JR., Tércio Sampaio. A ciência do direito. São Paulo: Atlas, 1980.
FEYERABEND, Paul. Contra o método. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1989.
GARCIA-ROZA, Luiz Alfredo. Palavra e verdade: na ilosoia antiga e na psica-
nálise. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1990.
HABERMAS, Jürgen. Verdade e justificação: ensaios ilosóicos. São Paulo: Loyo-
la, 2004.
HAWKING, Stephen William. Uma breve história do tempo: do big bang aos
buracos negros. Rio de Janeiro: Rocco, 2000.
HESPANHA, António Manuel. Panorama histórico da cultura jurídica européia.
Portugal [s.l.]: Europa-América, 1998.
HESSE, Reinhard (Org.). Por uma filosofia crítica da ciência. Goiânia: Editora da
UFG, 1987.
HESSEN, Johannes. Teoria do conhecimento. Coimbra: Arménio Amado, 1973.
HOLLAND, John. A ordem oculta: como a adaptação gera a complexidade. Lis-
boa: Gradiva, 1997.
HUME, David. Investigação sobre o entendimento humano. São Paulo: Abril Cul-
tural, 1980.
JAPIASSU, Hilton. Nem tudo é relativo: a questão da verdade. São Paulo: Letras
e Letras, 2001.
JAPIASSU, Hilton. Questões epistemológicas. Rio de Janeiro: Imago, 1981.
JHERING, Rudolf von. É o direito uma ciência? São Paulo: Rideel, 2005.
KANT, Immanuel. Crítica da razão pura. São Paulo: Abril Cultural, 1980.
KAUFMANN, Arthur (Org.). Introdução à filosofia do direito e à teoria do direito
contemporânea. Lisboa: Calouste Gulbenkian, 2002.
KIRKHAM, Richard L. Teorias da verdade. São Leopoldo: Unisinos, 2003.
KOYRÉ, Alexandre. Estudos de história do pensamento filosófico. Rio de Janeiro:
Forense Universitária, 1991.
KUHN, homas. A estrutura das revoluções científicas. São Paulo: Perspectiva,
1997.
LARENZ, Karl. Metodologia da ciência do direito. Lisboa: Calouste Gulbenkian,
1983.
LOCKE, John. Ensaio acerca do entendimento humano. São Paulo: Abril Cultural,
1978.
LÖWY, Mchael. As aventuras de Karl Marx contra o Barão de Münchhausen:
marxismo e positivismo na sociologia do conhecimento. São Paulo: Cortez,
1994.
MARQUES NETO, Agostinho Ramalho. Introdução ao estudo do direito: concei-
to, objeto e método. Rio de Janeiro: Forense, 1990.
MIAILLE, Michel. Introdução crítica ao direito. Lisboa: Estampa, 1989.
MORIN, Edgar. Ciência com consciência. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1996.

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EpIsTEmOlOGIa E mODERnIDaDE

______. O método III: o conhecimento do conhecimento. Portugal [s.l.]: Euro-


pa-América, 1996.
NAGEL, Ernest. La estructura de la ciencia. Buenos Aires: Paidos, 1974.
OST, François. Elementos para uma teoria crítica del Derecho. Colômbia: Univer-
sidad Nacional de Colômbia, 2001.
PERELMAN, Chaïm. Lógica jurídica. São Paulo: Martins Fontes, 1998.
PLASTINO, Carlos Alberto. O primado da afetividade: a crítica freudiana ao
paradigma moderno. Rio de Janeiro: Relume Dumará, 2001.
POPPER, Karl. Lógica das ciências sociais. Rio de Janeiro/Brasília: Tempo Brasi-
leiro/ EdUnb, 1978.
PRIGOGINE, Ilya et al. Idéias contemporâneas: entrevistas do Le Monde. São
Paulo: Ática, 1989.
REALE, Miguel. Filosofia do direito. São Paulo: Saraiva, 1996.
RORTY, Richard. Conseqüências do pragmatismo. Lisboa: Instituto Piaget, 1999.
RORTY, Richard; GHIRALDELLI JR., Paulo. Ensaios pragmatistas sobre verdade
de subjetividade. Rio de Janeiro: DP&A, 2006.
TEIXEIRA, António Braz. Sentido e valor do direito: introdução à ilosoia jurídi-
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TOURAINE, Alain. Crítica da modernidade. Petrópolis: Vozes, 1994.
VERDENAL, René. A ilosoia positiva de Augusto Comte. In: CHÂTELET,
François (Org.). História da Filosofia. Lisboa: Dom Quixote, 1995.
VIDAL, Vera; CASTRO, Susana de. (Orgs.). A questão da verdade: da metafísica
moderna ao pragmatismo. Rio de Janeiro: 7 Letras, 2006.
WARAT, Luiz Alberto. Introdução geral ao direito I: interpretação da lei – temas
para uma reformulação. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris, 1994.

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EpIsTEmOlOGIa E mODERnIDaDE

iV. plano das aUlas

aUla 1. introdUÇÃo ao CUrso e seUs oBJetiVos. pensamento e Ver-


dade

NOTA AO ALUNO

tema da aUla

Apresentação do curso. Introdução ao problema da verdade como tarefa do pen-


samento.

ObjetivOs da aUla

Apresentar o curso aos alunos e organizar a forma de avaliação; inserir o assunto da


verdade mediante uma relexão acerca do pensamento como experiência humana.

prepare-se para a aUla

Diz
Diz Aristóteles: “Foi, com efeito, pelo espanto que os homens,
assim
assimhoje como no começo, foram levados a filosofar, sendo pri-
meiramente
prim abalados pelas dificuldades mais óbvias, e progredin-
do em seguida pouco a pouco até resolverem problemas maiores...”
progredindo
(Aristóteles, Metafísica, I, 2).
maiores...

x • O que signiica o espanto ou estranhamento como condição para a ilosoia?


x
• O espanto ou estranhamento apenas pode acontecer diante das coisas que
não são familiares?
• Qual a relação (ou quais as relações possíveis) entre estranhamento e verdade?
x
Nada nos é mais familiar do que o tempo. Veja o que diz Santo Agostinho sobre
o tempo:

“O “O que é o tempo? Tentemos fornecer uma explicação fácil e


breve.
breve.O que há de mais familiar e conhecido do que o tempo?
Mas o que é o tempo? Quando quero explicá-lo, não encontro
tempo?
explicação. Se eu disser que o tempo é a passagem do passado para
oencontro
presente e do presente para o futuro, terei que perguntar: Como
pode
do o tempo passar? Como sei que ele passa? O que é um tempo
que perguntar: Como pode
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EpIsTEmOlOGIa E mODERnIDaDE

passado? Onde ele está? O que é um tempo futuro? Onde ele está? Se o passado é o que eu,
do presente recordo e o futuro é o que eu, do presente espero, então não seria mais correto
dizer que o tempo é apenas o presente? Mas quanto dura um presente?? Quando acabo
de colocar o “r” no verbo colocar, este “r” é ainda presente ou já é passado? A palavra que
estou pensando em escrever a seguir, é presente ou futuro? O que é o tempo afinal?” (Santo
Agostinho, Conissões)

Como o tempo é familiar e pode ser estranhado, também as verdades são fami-
liares e podem e devem ser estranhadas. Mas para que isso aconteça, é necessário
abrir-se a uma experiência radical de pensamento. Para tanto, nada melhor do que
a provocação feita por Heidegger:

“O
DESAFI
“O que mais desaia o pensamento nessa época de desaio do pensamen-
PENS
to, é que ainda não começamos a pensar.”

Deve-se indagar ao alun


x
Diante da airmação de Heidegger:

x • Por que ainda não começamos a pensar?


• O que é pensar?

Temos hoje, dois grandes obstáculos ao pensamento que devem ser superados:
x
a.
O individualismo: este nos conduz a achar que nossa subjetividade e opor-
x
tunidades pessoais somente podem ser forjadas sem o outro ou contra o
outro.
b. A massificação: esta nos conduz à perda de nossa singularidade nos deinindo
x apenas como parte de coletivos mais ou menos amorfos e repetitivos.

Para se superar tais obstáculos, deve-se ter em conta que o pensamento é uma
experiência existencial e histórica, por isso ao mesmo tempo pessoal e social. Tam-
bém deve-se ter claro que pensar não é um ato, mas uma atitude que nos deine
diante da vida; nos deine como sujeitos criadores e capazes de transcender a mera
repetição e a mesmiicação. Representa, nesse sentido, 1) uma ruptura com as car-
tilhas e manuais; e 2) uma exigência de justiicação permanente de todas as normas
e padrões de conduta.
Certamente, a experiência de pensamento vai muito além da ordem do banal e
exige esforço e superação. Leia a parábola abaixo, de Nietzsche, relita e prepare-se
para o debate:

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EpIsTEmOlOGIa E mODERnIDaDE

DasDastrês
trêsmetamorfoses
metamorfoses
Três metamorfoses, nomeio-vos, do espírito: como o espírito se
torna camelo e o camelo, leão e o leão, por im, criança.
Três
Muitos fardos pesados há para o espírito, o espírito forte, o espírito
de suportação,
torna cameloaoe qual inere o leão
o camelo, respeito;
e o cargas pesadas,
leão, por fim, as mais pesa-
criança.
das, pede a sua força.
Muitos
“O que há de pesado?”, pergunta o espírito de suportação; e ajoe-
de
lha como um camelo e quer icar bem carregado.
pesadas, pede a sua“O forque há de mais pesado, ó heróis”, pergunta o espírito de supor-
tação, “para que eu o tome sobre mim e minha força se alegre?
Não será isto: humilhar-se, para magoar o próprio orgulho? Fazer brilhar a pró-
pria loucura, para escarnecer da própria sabedoria?
Ou será isto: apartar-se da nossa causa, quando ela celebra o seu triunfo? Subir
para altos montes, a im de tentar o tentador?
Ou será isto: alimentar-se das bolotas e da erva do conhecimento e, por amor à
verdade, padecer fome na alma?
Ou será isto: estar enfermo e mandar embora os consoladores e ligar-se de ami-
zade aos surdos, que não ouvem nunca o que queremos?
Ou será isto: entrar na água suja, se for a água da verdade, e não enxotar de si nem
as frias rãs nem os ardorosos sapos?
Ou será isto: amar os que nos desprezam e estender a mão ao fantasma, quando
ele nos quer assustar?”
Todos estes pesadíssimos fardos toma sobre si o espírito de suportação; e, tal
como o camelo, que marcha carregado para o deserto, marcha ele para o seu próprio
deserto.
Mas, no mais ermo dos desertos, dá-se a segunda metamorfose: ali o espírito tor-
na-se leão, quer conquistar, como presa, a sua liberdade e ser senhor em seu próprio
deserto.
Procura ali, o seu derradeiro senhor: quer tornar-se-lhe inimigo, bem como do
seu derradeiro deus, quer lutar para vencer o dragão.
Qual é o grande dragão, ao qual o espírito não quer mais chamar senhor nem
deus? “Tu deves” chama-se o grande dragão. Mas o espírito do leão diz: “Eu quero”.
“Tu deves” barra-lhe o caminho, lançando faíscas de ouro; animal de escamas, em
cada escama resplende, em letras de ouro, “Tu deves !”
Valores milenários resplendem nessas escamas; e assim fala o mais poderoso de
todos os dragões: “Todo o valor das coisas resplende em mim.
Todo o valor já foi criado e todo o valor criado sou eu. Na verdade, não deve mais
haver nenhum ‘Eu quero’!” Assim fala o dragão.
Meus irmãos, para que é preciso o leão, no espírito? Do que já não dá conta sui-
ciente o animal de carga, suportador e respeitador?
Criar novos valores – isso também o leão ainda não pode fazer; mas criar para si
a liberdade de novas criações – isso a pujança do leão pode fazer.
Conseguir essa liberdade e opor um sagrado “não” também ao dever: para isso,
meus irmãos, precisa-se do leão.

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EpIsTEmOlOGIa E mODERnIDaDE

Conquistar o direito de criar novos valores – essa é a mais terrível conquista para
o espírito de suportação e de respeito. Constitui para ele, na verdade, um ato de
rapina e tarefa de animal rapinante.
Como o que há de mais sagrado amava ele, outrora, o “Tu deves”; e, agora, é
forçado a encontrar quimera e arbítrio até no que tinha de mais sagrado, a im de
arrebatar a sua própria liberdade ao objeto desse amor: para um tal ato de rapina,
precisa-se do leão.
Mas dizei, meus irmãos, que poderá ainda fazer uma criança, que nem sequer
pôde o leão? Por que o rapace leão precisa ainda tornar-se criança?
Inocência, é a criança, e esquecimento; um novo começo, um jogo, uma roda que
gira por si mesma, um movimento inicial, um sagrado dizer “sim”.
Sim, meus irmãos, para o jogo da criação é preciso dizer um sagrado “sim”: o
espírito, agora, quer a sua vontade, aquele que está perdido para o mundo conquista
o seu mundo.
Nomeei-vos três metamorfoses do espírito: como o espírito torna-se camelo e o
camelo, leão e o leão, por im criança.
Assim falou Zaratustra.
(Nietzsche, Assim Falou Zaratustra)

bibliOGrafia

complementar

CUNHA, José Ricardo. Direito e estética: fundamentos para um direito huma-


nístico. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris, 1998. (Capítulo 2 – O Homem
como Universo Ininito de Possibilidades, pp. 55-74)
GARCIA-ROZA, Luiz Alfredo. Palavra e Verdade: na ilosoia antiga e na psica-
nálise. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1990. (Introdução, pp. 7-23)

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EpIsTEmOlOGIa E mODERnIDaDE

aUla 2. nossa idÉia de Verdade: aletHeia, Veritas, emUnaH

NOTA AO ALUNO

tema da aUla

A idéia de verdade, suas contradições e possibilidades na ilosoia e no direito.

ObjetivOs da aUla

Desenvolver uma relexão sobre o conceito, sentido e limites da verdade; apre-


sentar as principais tradições que conluíram para nossa idéia geral de verdade; co-
tejar a idéia de verdade com a experiência jurídica.

prepare-se para a aUla

A busca pela verdade é tão antiga quanto a existência do homem no mundo.


Trata-se mesmo de um traço antropológico, pois em todas as relações que o ho-
mem trava (consigo mesmo, com o outro, com a natureza e com Deus) ele busca
encontrar nela uma verdade. Essa busca pela verdade gera no homem certo conforto
e estabilidade por estar diante de algo que acredita como idedigno, naturalmente
digno de coniança. De efeito, a busca pela verdade acaba por atribuir à verdade
um valor em si mesmo, de forma que o verdadeiro é considerado bom e a verdade
um bem. Entretanto, nem tudo pode ser qualiicado como verdadeiro: a verdade
deve, antes de qualquer coisa, ser buscada. Para isso, historicamente se diferenciou
verdade de senso comum. No senso comum, permanecemos com nossas opiniões e
crenças sem ter nenhum motivo para duvidar delas. Aqui, em geral, se reproduz as
airmações que são recebidas prontas, correndo-se o sério risco de perpetuar mitos
e preconceitos. Quando o senso comum se cristaliza sobremaneira, estamos diante
do que pode ser chamado de pensamento mítico, por oposição a um pensamento
crítico. Veja e relita sobre a tabela abaixo:

pensamento mÍtiCo pensamento CrÍtiCo


Preso e modelado Livre e criativo
Descomprometido e irresponsável Comprometido e responsável
Esvaziado de senso ético Marcado pelo senso ético
Simples Complexo
Subserviente Autônomo.

Evidentemente que a busca da verdade somente pode se realizar de forma crítica,


isto é, no campo do pensamento crítico. Também relacionada com a verdade, mas
diferente do senso comum ou do pensamento mítico, é a incerteza. Assim como
no senso comum ou no pensamento mítico, na ordem da incerteza também se está

FGV DIREITO 14
• ver-perceber: liga-se ao que é;
• falar-descrever: liga-se ao EpIsTEmOlOGIa
que foi; E mODERnIDaDE
• crer-confiar: liga-se ao que será.

fora da verdade. Todavia, diferentemente do que ocorre no senso comum ou pen-


samento mítico, na incerteza tem-se plena consciência da distância da verdade e da
própria ignorância. Na ocorrência da incerteza, icamos em dúvida sobre em que
• Como
acreditar ou em como agir diante de certas pessoas, fatos ou situações. Essa dúvida
gerada pela incerteza, quando conectada ao pensamento mítico, gera medo e pa-
• Como
ralisia; porém, quando conectada ao pensamento crítico, nos impulsiona na busca
pela verdade. Nessa segunda hipótese, é condição imprescindível na dinâmica do
• Como
conhecimento.

Contudo, a pergunta primacial que se coloca é sobre a na-


Contudo,
tureza da verdade. O que é a verdade? Pense sobre quais se-
da os sentidos possíveis para a verdade.
riam
fundamental,
culturais d

x A verdade nos conforta e alivia. Também Assim,


d
nos oferece uma sensação maior de estabilida-
PARADOXO
de. Contudo, ela não é absoluta ou suiciente
do
para nos afastar de todas as dúvidas e insegu-
atribuído
ranças. Seja porque novas situações e descober-
tas exigem novas verdades, seja porque a pró-
x unidade ontológica da verdade pode sofrer
pria
issuras. Assim, estaremos diante de aporias.
Uma das mais conhecidas aporias é o chamado
PARADOXO DO CRETENSE, ou Paradoxo
do mentiroso. Na sua forma original é atribuído ao cretense Epimênides, que teria
airmado que todos os cretenses são mentirosos. Como Epimênides é ele mesmo um
cretense, então se ele diz a verdade, é um mentiroso; logo está mentido. Assim, se o
que ele diz é verdadeiro, então o que lê diz é falso. Contudo, se o que ele diz é falso,
então o que lê diz é verdadeiro.
Como reagir ao Paradoxo do Cretense??

e o direito?

E
c
Como o problema da verdade se relaciona com o Direito? A todo
etempo somos confrontados com expressões do tipo: verdade dos fa-

tos, verdade das leis, verdade do processo ou verdade do intérprete. É


le
p

possível falar-se em verdade ou seriam verdades? Como lidar com os


lidar com os problemas de insegura

problemas de insegurança jurídica?


Aqui, deve-se apresentar ao

FGV DIREITO 15
EpIsTEmOlOGIa E mODERnIDaDE

bibliOGrafia

Obrigatória

CHAUI, Marilena. Convite à filosofia. São Paulo: Ática, 1994. (Unidade 3, Ca-
pítulo 2 Buscando a Verdade; e Capítulo 3 As Concepções de Verdade; pp.
94-107)

complementar

KIRKHAN, Richard. Teorias da verdade. São Leopoldo: Unisinos, 2003. (Capí-


tulo 1 Projetos de Teoria da Verdade; e Capítulo 9 O Paradoxo do Mentiro-
so)

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EpIsTEmOlOGIa E mODERnIDaDE

aUla 3. realidade e Verdade: HerÁClito e parmÊnides

NOTA AO ALUNO

tema da aUla

Ontologia do real: o problema do ser e do devir.

ObjetivOs da aUla

Introduzir o debate acerca do ser e do devir como problema ontológico para a


compreensão da verdade acerca do real.

desenvOlvimentO

No contexto do pensamento pré-socrático, dois grandes ilósofos (ou pensado-


res) se destacaram pela visceralidade de seus pensamentos. Heráclito de Éfeso e Par-
mênides de Eléa plantaram para toda a posteridade ilosóica a questão do ser e do
devir. Duas compreensões distintas e opostas da ontologia do real que, ao mesmo
tempo, informam e desaiam as concepções de verdade.

Heráclito de Éfeso

“Não se pode entrar duas vezes no mesmo rio. Dispersa-se e reúne-se;


“Não
avança e se retira.” (Fragmento 91)
se; avança

A mudança, a transformação e, por conseqüência, o conlito, são


A
partes imanentes da ilosoia heraclitiana. Tamanha a importância
partes
desse ilósofo Pré-Socrático que alguns autores atribuem a ele uma
desse
escola própria, independente da Escola Jônica: a Escola Mobilista,
escola própria, ind
com tal denominação justamente por conter no cerne de seu raciocínio ilosóico
a idéia de movimento. O movimento, que surge a partir da força dos contrários é,
em si mesmo, a força dialética por excelência: “movendo-se, descansa (o fogo etéreo
do corpo humano)” (Fragmento 84 a). O pensamento logológico de Heráclito,
ao encontrar-se com o dinamismo do movimento, reveste-se de imprevisibilidade,
na medida em que nada é, mas vem-a-ser, a partir do encontro com seu contrário:
“Tudo se faz por contraste; da luta dos contrários nasce a mais bela harmonia”
(Fragmento 08). Logo, nada é absoluto, pois o movimento constante faz com que
as coisas sejam e não sejam numa dinâmica sem im.

FGV DIREITO 17
EpIsTEmOlOGIa E mODERnIDaDE

e o direito?

E Acreditar no devir heraclitiano signiica admitir que tudo está em


c
constante mutação, inclusive o Direito. Se levarmos em conta a es-
e
trutura tridimensional do direito, devemos considerar que basta a
le

mudança de um de seus elementos (norma, fato ou valor) para que


p
lidar com os problemas de insegura
os demais também se transformem. Veja-se o caso Brown x Board
Education (ao inal da aula).
Aqui, deve-se apresentar ao

parmênides de eléa
"
DESCOBERTA “Pois bem, eu te direi, e tu recebe a palavra que ouviste, os únicos cami-
nhos de inquérito que são a pensar: o primeiro, que é e portanto que não
é não ser, de Persuasão é caminho (pois à verdade acompanha); o outro,
que não é e portanto que é preciso não ser, este então, eu te digo, é atalho
de todo incrível; pois nem conhecerias o que não é (pois não é exeqüível),
nem o dirias...” (Fragmento 2).

Parmênides, de uma geração após Heráclito e seu principal opositor, pode-se


considerar como o principal representante da Filosoia do Ser. Desta forma, irá dis-
tinguir dois caminhos básicos de relexão ilosóica: a do ser e a do não ser, sendo
a segunda verdadeiramente impossível, dada sua não-existencialidade, e a primeira
aquela que realmente leva a certeza, a verdade – alétheia.
Fundamental na leitura do fragmento nos parece o caráter totalmente excludente
instaurado por Parmênides no paradoxo ser / não ser. São duas proposições mutua-
mente exclusivas. Não havendo intermediários possíveis e sendo o ser o único caminho
investigatório capaz de levar a verdade, este é o absoluto, essência de todo o universo,
a própria physis. E se a physis encontra-se na práxis humana pelo lógos, manifestada na
prática racional-argumentativa, então a conclusão não poderia ser outra, senão a da i-
liação entre ser e pensar. Assim, para Parmênides, o único caminho ilosóico é o do ser,
aquele que possibilita o pensar; concomitantemente, o pensar passa a ser atividade in-
trínseca do ser na sua manifestação lógica: “... pois o mesmo é a pensar e portanto ser”,
diz o ilósofo no seu fragmento de número três. O sentido absoluto do ser é nomeado
no exercício da palavra que demarca o caráter de todos os entes: aquele que é, porque é
preciso ser, não pode ser outra coisa, e o que não é, está excluído da verdade.

e o direito?
E
c Acreditar no ser parmenídico signiica admitir que tudo guarda
e
uma essência imutável, ainda que uma camada supericial e acidental
le
ppossa vir a se modiicar, mas não a natureza das coisas. Logo, o Di-
lidar com os problemas de insegura
reito seria marcado por uma essência imutável.
Aqui, deve-se apresentar ao

FGV DIREITO 18
EpIsTEmOlOGIa E mODERnIDaDE

bibliOGrafia

Obrigatória

BORNHEIM, Gerd. Os filósofos pré-socráticos. São Paulo: Cultrix, 1999. (Intro-


dução; Seção Heráclito de Éfeso; Seção Parmênides de Eléia)

complementar

KIRK, G.S. SHOFIELD, M. Os filósofos pré-socráticos. Lisboa: Calouste Gul-


benkian, 1994. (Capítulo 2 Os Pensadores Jônios; e Capítulo 3 A Filosoia
no Ocidente)

aneXO

brOWn cOntra a secretaria de edUcaçãO [brOWn v. bOard Of edUcatiOn]: a


decisãO da sUprema cOrte QUe transfOrmOU Um país
david pitts

Em maio de 1954 – em uma decisão histórica, no caso Brown Contra a Secre-


taria de Educação [Brown v. Board of Education] – a Suprema Corte dos Estados
Unidos emitiu uma determinação segundo a qual as escolas públicas segregadas
eram inconstitucionais. O nome no caso, Brown, é o nome de Oliver Brown, um
negro, que iniciou um processo quando sua ilha de sete anos, Linda, teve sua matrí-
cula negada em uma escola primária só para brancos na pequena cidade de Topeka,
Kansas, no meio-oeste dos Estados Unidos, onde eles viviam. Nosso colaborado,
David Pitts, rastreou as origens de uma das mais importantes decisões na história
do direito constitucional dos Estados Unidos, que resultou em transformações não
apenas em Topeka, mas na nação inteira.
Na primavera de 1954, Oliver Brown era o pai mais famoso dos Estados Uni-
dos. Mas ele não era o único autor da ação no caso Brown contra a Secretaria de
Educação, que originalmente foi iniciado em 1951. Doze outros autores em Topeka
se uniram a Brown para representar seus ilhos – 20 ao todo – que, em conformi-
dade com a lei, deveriam freqüentar escolas primárias segregadas. A ação inicial foi
apoiada pela seção de Topeka da Associação Nacional para o Progresso das Pessoas
de Cor [National Association for the Advancement of Colored People] (NAACP),
a organização de direitos civis mais antiga do país.
O caso Brown, no entanto, não foi a primeira vez que a educação segregada, san-
cionada pela lei, sofreu um desaio nos Estados Unidos. Em 1849, uma ação havia
sido iniciada em Boston, Massachusetts. Somente em Kansas, entre 1881 e 1949,
11 ações foram iniciadas contra os sistemas de escolas segregadas. Quando a ação
de Topeka chegou à Suprema Corte, a segregação racial era a norma, não a exceção,
em boa parte do país, e era permitida ou legalmente exigida em 24 estados. O caso

FGV DIREITO 19
EpIsTEmOlOGIa E mODERnIDaDE

Brown se destaca porque foi o primeiro caso bem sucedido desse tipo, por causa da
abrangência da determinação da Suprema Corte, e por causa do efeito radical que
teve sobre a sociedade americana em meados do século XX.

HERÓI ANÔNIMO
Herói Anônimo “O herói anônimo no processo de Topeka é McKin-
ley
"O Burnett,” que, na época, era o presidente da seção
local da NAACP, diz C.E. (Sonny) Scroggins, chefe do
Burnett,"
Comitê de Kansas para a Comemoração do Caso Bro-
NAACP,
wn Contra a Secretaria de Educação [Kansas Commit-
Kansas
tee to Commemorate Brown v. Board of Education].
“Foi Burnett que reuniu Oliver Brown e os outros pais e
Secretaria
foi em frente com o desaio legal, com a ajuda dos advo-
Commemorate
gados locais”, acrescenta Scroggins, um ponto de vista
Foto:
Foto: Cortesia de Marita Davis.
Cortesia de que
conirmado por outras fontes em Topeka. Na verdade,
À esquerda, Walter White, vice-
president executivo da naacp; à Burnett – com a ajuda da secretária da NAACP Lu-
direita, mcKinley burnett, presi-r cinda Todd e os advogados Charles Scott, John Scott,
dente da seção da naacp de to- Elisha Scott e Charles Bledsoe – desenvolveram uma
pekano início da década de 50. estratégia para ganhar a causa.

Burnett morreu em 1970. Seu ilho, Marcus, que tinha 13 anos na época do
processo inicial e que ainda mora em Topeka, diz que desaiar a segregação “foi
uma luta à qual meu pai se dedicou por toda a sua vida”. Ele era um trabalhador
comum que acreditava que a segregação poderia ser abolida por meio dos tribunais.
O tempo inteiro ele estava convencido de que venceríamos. “A irmã de Marcus
Burnett, Marita Davis, que atualmente mora em Kansas City, Kansas”, concorda.
“Meu pai estava sempre lutando pelos seus direitos”, ela diz. “Eu me lembro de
que, até mesmo quando eu era bem pequena, ele estava sempre escrevendo cartas
e organizando reuniões. A luta contra a segregação nas escolas se tornou uma coisa
muito importante para ele”.

AUTORES
De acordo com algumas fontes em Topeka, Oliver Brown tinha uma posição de
liderança entre os autores, principalmente porque ele era o único homem do grupo.
Mas Charles Scott Jr., ilho do principal advogado local, diz que Oliver Brown “se
tornou o líder entre os autores porque o seu nome era o primeiro, por ordem alfa-
bética. O caso foi levado em frente por meu pai e por outros advogados locais, em
colaboração com o Sr. Brunett e a NAACP”.
Linda Brown hompson, que atualmente tem 55 anos e ainda mora em To-
peka, reluta em falar sobre a sua experiência e sobre o papel do seu pai ao desaiar
o sistema, em parte porque ela acha que a mídia concentrou suas atenções em
demasia na sua pessoa, ignorando os outros 12 autores da ação em Topeka. Sua
irmã, Cheryl Brown Henderson, diretora-executiva da Fundação Brown para a
Igualdade, Excelência e Pesquisa na Educação [Brown Foundation for Educational

FGV DIREITO 20
EpIsTEmOlOGIa E mODERnIDaDE

Equity, Excellence and Research], concorda com a avaliação de Charles Scott Jr.
“Temos muito orgulho do que nosso pai fez”, Henderson diz. “Mas é importante
que o caso Brown não seja simpliicado demais – não devemos esquecer os advo-
gados, os outros autores em Topeka e os autores nos outros estados, que acabaram
sendo incluídos no caso Brown”.
Zelma Henderson e Vivian Scales, duas pessoas que fazem parte do grupo de
autores de Topeka, e que ainda moram na cidade, eram jovens mães no início da
década de 50. As duas mulheres estavam ansiosas para entrar no caso. E as duas são
muito gratas a McKinley Burnett e aos advogados locais, dizendo que foi a liderança
dessas pessoas que tornou possível a luta pela integração.
"Eu
“Eu tinha que levar meus dois ilhos de carro até o
outro
outro lado da cidade, passando por duas escolas só para
para
brancos, até uma escola só para negros”, diz Henderson.
“Meus ilhos sempre tiveram orgulho do papel que tive-
Henderson.
mos
papelna história”, ela continua. “Donald Andrew ainda
está aqui em Topeka. Ele tem 55 anos. Mas minha ilha,
A
Vicki Ann, morreu de câncer em 1984.”
Mas
Scales também diz que tinha que levar sua ilha, Ruth Ann à escola, “passando
por uma escola só para brancos que icava bem em frente à nossa casa. Minha ilha,
que ainda mora aqui e está com 57 anos, se sente muito bem devido ao que acon-
teceu. Eu acho que izemos uma coisa muito importante”.

A PRIMEIRA DECISÃO
O dia de Burnett e dos autores no tribunal em Topeka foi o dia 28 de fevereiro
de 1951. Eles compareceram ao Tribunal Federal de Primeira Instância da Circuns-
crição de Kansas [U.S. District Court for the District of Kansas]. Raymond Carter,
que atualmente é juiz federal em Nova York, era, na época, advogado do Fundo de
Defesa Legal da NAACP [NAACP Legal Defense Fund]. Com a ajuda dos outros
advogados locais, ele apresentou o caso e solicitou a emissão de um mandado judi-
cial que proibisse a segregação nas escolas primárias públicas de Topeka.
Os juízes se mostraram favoráveis à causa dos autores, dizendo, na sua decisão:
“A segregação de crianças brancas e negras nas escolas públicas é prejudicial para as
crianças negras”. Mas no inal a decisão dos juízes foi contra os autores porque a
Suprema Corte havia decretado, em uma decisão de 1896 – no caso Plessy contra
Ferguson – que sistemas escolares “separados porém iguais” para negros e brancos
eram, na verdade, constitucionais, e essa decisão não havia sido anulada. Portanto,
o tribunal de Kansas se sentiu forçado a tomar uma decisão a favor da Secretaria de
Educação de Kansas e contra os autores, por causa do episódio de Plessy.
“De certa forma, meu pai, os outros advogados locais e o Sr. Burnett não icaram
decepcionados”, diz Charles Scott Jr. “Eles sabiam que a única forma de derrubar a
segregação no país inteiro e não apenas em Topeka, era perder a causa e em seguida
entrar com um recurso na Suprema Corte”.

FGV DIREITO 21
EpIsTEmOlOGIa E mODERnIDaDE

A DECISÃO DA SUPREMA CORTE


No dia 1 de outubro de 1951, ao ser preparado para ir ao tribunal que tem a
posição hierarquicamente mais elevada no país, o caso Brown foi combinado a ou-
tros processos que desaiavam a segregação nas escolas, na Carolina do Sul, Virgínia,
Delaware e no Distrito de Colúmbia. O nome do conjunto de casos passou a ser,
oicialmente, Oliver L. Brown e Outros Contra a Secretaria de Educação de Topeka
e Outros [Oliver L. Brown et al. v. he Board of Education of Topeka, et al]. hur-
good Marshall, que mais tarde foi o primeiro negro a fazer parte da Suprema Corte,
era o diretor jurídico da NAACP no nível nacional. Ele apresentou – com sucesso
– o caso, representando os autores.
A decisão unânime declarando que as escolas segregadas eram inconstitucionais
foi lida no dia 17 de maio de 1954, pelo juiz-presidente da Suprema Corte Earl
Warren. “Concluímos”, ele disse, “que no campo da educação pública não há lugar
para a doutrina de ‘separados porém iguais’. Estabelecimentos de ensino separados
são inerentemente desiguais. Portanto, declaramos que os autores e outros que se
encontram em situação similar, para os quais essas ações foram iniciadas, estão sen-
do, devido à segregação da qual reclamaram, privados da proteção igual das leis,
garantida pela Décima-Quarta Emenda”.

UMA GRANDE VITÓRIA LEGAL


O resultado do caso Brown Contra a Secretaria de Educação foi considerado
uma grande vitória legal, um caso histórico que serve para mostrar que, nos Estados
Unidos, os tribunais existem não apenas para condenar crimes, mas para airmar
direitos. “Trata-se de uma das mais importantes decisões da Suprema Corte”, diz
Robert Barker, professor de direito e especialista em direito constitucional na Fa-
culdade de Direito da Universidade de Duquesne [Duquesne University School of
Law] em Pittsburgh, Pensilvânia.
“É importante observar”, ele acrescenta, “que a Suprema Corte contou com a
cláusula de proteção eqüitativa da Décima-Quarta Emenda da Constituição dos
Estados Unidos, ao apresentar a sua decisão. A Corte aplicou a cláusula de proteção
eqüitativa com a inalidade a que ela se destina – proporcionar proteção para os
negros, em particular”. No entanto, segundo Barker, há um signiicado mais amplo.
“A decisão de 1954 resultou em muitos outros casos nos quais a cláusula de prote-
ção eqüitativa foi citada, beneiciando mulheres e outros grupos que achavam que
seus direitos eqüitativos lhes estavam sendo negados”.
Ao ser indagado como a Corte pode tomar uma decisão – a favor da segregação
no caso Plessy contra Ferguson e contra ela no caso Brown – Barker responde que a
Corte dispunha de mais de 50 anos de provas de que a segregação racial, da maneira
que era praticada, era, na verdade, um método de se oprimir um grupo racial e não
algo “separado porém igual”.
Mark Tushnet ecoa o pronunciamento de Barker no seu livro deinitivo, Brown
v. Board of Education: he Battle for Integration. [tradução livre: Brown Contra a
Secretaria de Educação: A Batalha pela Integração]. “Até hoje”, ele escreve “o caso
Brown se destaca como a mais profunda airmação da Corte sobre a questão central

FGV DIREITO 22
EpIsTEmOlOGIa E mODERnIDaDE

da história dos Estados Unidos – como os americanos de todas as raças se tratam


entre si. Nesse aspecto, trata-se de uma vitória do constitucionalismo americano”.
Pau Wilson, o procurador-adjunto do estado de Kansas que tratou do caso, no
tribunal, a favor da segregação, concorda. “A decisão da Suprema Corte”, ele diz,
“ampliou a deinição de justiça básica nas relações entre as comunidades”. Wilson,
que detalha a história do processo em A Time To Lose: Representing Kansas in Bro-
wn v. Board of Education [tradução livre: Hora de Perder: Representando Kansas
no caso Brown Contra a Secretaria de Educação], escreve que a decisão também
“deu uma nova dimensão ao conceito constitucional de proteção eqüitativa e do
devido processo legal”.

DEPOIS DA DECISÃO
A Secretaria de Educação de Topeka não esperou a ordem da Corte para unir as suas
escolas primárias negras e brancas. Antes do caso Brown, a lei de Kansas havia previsto
a segregação das escolas primárias das comunidades com população superior a 15.000
pessoas. As escolas de nível médio (equivalentes às sétima e oitava séries do primeiro
grau, e às três séries do segundo grau, no Brasil) nunca havia sido segregadas.
Mas em grande parte da nação, a tarefa seria mais difícil. Este é um dos motivos
pelos quais a Suprema Corte, em um ato posterior, menos conhecido, emitiu, em
1955, uma decisão judicial, determinando “um início imediato e razoável das pro-
vidências para a total conformidade” e a implementação da integração das escolas
“com a devida rapidez”.
Mesmo assim, houve muita resistência e a disposição das autoridades do poder
executivo de usar a força para implementar a decisão da Corte se fez necessária em
alguns lugares. O caso mais famoso ocorreu em 1957, quando o presidente Dwight
Eisenhower enviou tropas federais a Little Rock, Arkansas, depois que o governador
do estado desobedeceu uma ordem de um tribunal federal para integrar as escolas
locais – a primeira vez em que tropas federais entravam em um estado do sul para
proteger os negros desde os primeiros anos após a Guerra Civil.
Em outras partes do sul do país, a situação variava de lugar para lugar. Na maio-
ria dos lugares, a abolição da segregação ocorreu sem problemas, embora nem sem-
pre com rapidez. No ano letivo 1956-1957, “o im da segregação, afetando 300.000
crianças negras, estava em andamento em 723 distritos escolares”, de acordo com
David Godield, que conta em detalhes a história do im da segregação em Black,
White and Southern [tradução livre: Negros, Brancos e Sulistas].
Por outro lado, diz Goldield, os legisladores promulgaram 45 leis “com o ob-
jetivo de contornar a determinação da Suprema Corte” e até 1960, “menos de um
por cento dos estudantes do sul do país estavam freqüentando escolas integradas”.
O andamento do processo foi muito mais rápido em Topeka e no meio-oeste, de
modo geral; o sul inalmente recuperou o atraso no inal da década de 60 e início
da década de 70. Embora a luta contra a segregação sancionada pelas leis tenha sido
vencida há muito tempo, os tribunais federais, atualmente, ainda estão lidando
com questões referentes à segregação nos distritos escolares, que são o resultado das
tendências na escolha de áreas residenciais.

FGV DIREITO 23
EpIsTEmOlOGIa E mODERnIDaDE

OS TRIBUNAIS CAUSAM MUDANÇAS EM POSIÇÕES TRADICIONAIS


A luta contra a segregação mostra como é difícil mudar posições e costumes em
qualquer sociedade, especialmente as posições que apresentam raízes profundas na
tradição e na história, diz John Paul Jones, professor de direito e especialista em
questões constitucionais na Universidade de Richmond [University of Richmond],
em Virgínia. “Um fato importante é que as mudanças, quando elas ocorreram,
foram, em grande parte, o resultado de atos do judiciário para fazer valer direitos
inalienáveis assegurados pela Constituição dos Estados Unidos, e não o resultado
de medidas sancionadas por legislaturas e executivos eleitos pelo povo”. Sem um
judiciário independente, e sem as garantias da Constituição no que se refere aos
direitos das minorias, ele acrescenta, a luta pelo im da segregação teria sido muito
mais difícil.
Gary Orield e Susan Eaton, concordam. Os tribunais, incluindo a Suprema
Corte, tiveram um papel essencial, em comparação com os outros ramos do gover-
no; é o que eles escrevem em Dismantling Segregation [tradução livre: Acabando
com a Segregação]. Eles acrescentam: “Com a exceção do período de 1964 a 1968,
os tribunais – e não o poder legislativo ou o executivo – têm sido os elementos do-
minantes na elaboração de políticas no que se refere ao im da segregação”.
Embora a Suprema Corte somente tenha derrubado a segregação nas escolas
públicas, o impacto da iniciativa foi muito mais amplo. Essa ação ajudou a delagrar
uma ofensiva sem trégua contra a segregação em todas as esferas da vida americana,
incluindo o serviço público e o mercado de trabalho. Apenas um ano e meio após a
determinação da Suprema Corte, em dezembro de 1955, o Dr. Martin Luther King
Jr. liderou um bem sucedido boicote aos ônibus em Montgomery, Alabama, em
sinal de protesto contra a segregação no sistema de transporte público local.
Nos anos seguintes, mandados contra a segregação foram impetrados, como par-
te de um cenário de ações populares iniciadas por um grande número de organiza-
ções não-governamentais; essas ações, em conjunto, formaram o movimento pelos
direitos civis. Com a promulgação da Lei dos Direitos Civis [Civil Rights Act] em
1964, e da Lei do Direito ao Voto [Voting Rights Act] em 1965, a segregação foi
praticamente eliminada.

“FIZEMOS A COISA CERTA”


Os historiadores dos direitos civis, particularmente, ressaltam a importância do
resultado do caso Brown para o progresso nas relações raciais em geral. “A decisão
proporcionou um critério de avaliação de justiça – independente da cor das pessoas
– pelo qual os americanos poderiam balizar seu progresso rumo à realização do ideal
de oportunidades iguais”, escreve Robert Wiesbrot em Freedom Bound: A History
of America’s Civil Rights Movement [tradução livre: Rumo à Liberdade: Uma His-
tória do Movimento pelos Direitos Civis nos Estados Unidos].
O fato ainda é motivo de muito orgulho para os autores sobreviventes, quase
meio século mais tarde. “Lembro-me como se fosse ontem”, diz Zelma Henderson.
“A primeira notícia que vi sobre isso foi no jornal, o Topeka State Journal. Lembro-
me bem da manchete, em letras garrafais: ‘Proibida a Segregação nas Escolas’. Senti

FGV DIREITO 24
EpIsTEmOlOGIa E mODERnIDaDE

uma alegria enorme. Pensei, naquele momento, e penso, agora, que izemos a coisa
certa”. Vivian Scales acrescenta, “Isso aconteceu há muito tempo, mas é uma coisa
que você nunca esquece, que ica com você para sempre”.

Marcus Burnett não se lembra, especiicamente,


Marcus
da reação do seu pai no dia em que a Suprema Corte
derrubou a segregação. “Mas ele sempre acreditava que
reação
haveria justiça, portanto eu tenho certeza de que ele i-
derrubou
cou muito feliz”, Burnett diz. “Meu pai acreditava que
haveria
os tribunais eram o lugar certo para se desaiar a segre-
ficou
gação. Ele nunca deixou de acreditar que os tribunais,
no inal, fariam valer a Constituição e a Declaração dos
tribunais
Direitos, e eliminariam a segregação”.
Marcus
marcus burnett,Burnett, à segregação.
à esquerda, ilho
do líder da naacp em topeka,
No dia 26 de outubro de 1992, o presidente George
r Bush sancionou a Lei Pública 12-525 [Public Law 12-
mcKinley burnett, e o ativista po-
lítico sonny scroggins, na entra- 525] determinando a criação do Sítio Histórico Nacio-
da da escola primária monroe. nal do Caso Brown Contra a Secretaria de Educação
[Brown v. Board of Education National Historic Site],
em memória da decisão da Suprema Corte, de 1954.
O sítio ica em Topeka, na Escola Primária de Monroe
[Monroe Elementary School], a mesma escola freqüen-
tada por Linda Brown, quase meio século atrás, antes
do im da segregação.

O memorial – um trabalho da Fundação Brown [Brown Foundation] e do Comi-


tê de Kansas para a Comemoração do Caso Brown Contra a Secretaria de Educação
[Kansas Committee to Commemorate Brown v. Board of Education], entre outras
entidades e indivíduos – terá materiais áudio-visuais e uma biblioteca para pesquisas,
e deverá ser aberto ao público em 2002. “Esperamos que as pessoas visitem o local
para compreender melhor a abrangência e a complexidade da decisão sobre o caso
Brown”, diz Qeiri Colbert, porta-voz do Serviço Nacional de Parques [National
Park Service], órgão que icará encarregado da manutenção do memorial.
“Oliver Brown, Zelma Henderson, Vivian Scales e os outros pais poderiam, fa-
cilmente, se conformar com a decepção, mas eles transformaram sua raiva em ação”,
diz Sonny Scroggins, do Comitê de Kansas para a Comemoração do Caso Brown
Contra a Secretaria de Educação. “Naquela época, os pais demonstraram muita
coragem”, ele acrescenta. O resultado inal foi, não apenas o im da segregação, mas
uma mudança fundamental no pensamento dos americanos em relação à raça e à
igualdade, em conformidade com a lei.
“Eu estou muito velha, mas se tivesse que fazer isso de novo, eu o faria”, diz Vi-
vian Scales. “Quando você pensa no assunto, a mensagem da decisão do caso Brown
e do memorial, na verdade, é que todos os seres humanos e raças nascem iguais”,
acrescenta Zelma Henderson. “Fomos à Suprema Corte dos Estados Unidos para
airmar esse fato, e vencemos”.

FGV DIREITO 25
EpIsTEmOlOGIa E mODERnIDaDE

aUla 4. lingUagem e Verdade: os soFistas

NOTA AO ALUNO

tema da aUla

A verdade como linguagem na sofística.

ObjetivOs da aUla

Introduzir o debate acerca da relação entre verdade e linguagem a partir do pen-


samento sofístico.

prepare-se para a aUla

Poucas doutrinas na história do ocidente foram tão atacadas e vitimadas pelo


preconceito como a sofística. A maior parte do que nos foi passado acerca dos sois-
tas foi, justamente, pelos seus inimigos. Na pena de Platão e Aristóteles, os soistas
eram apenas demagogos e enganadores. Contudo, a sofística é um movimento bem
mais profundo e interessante – donde sofisticado – do que em geral se apresenta. Os
soistas foram pensadores que rumaram das colônias para Atenas e, por isso, conhe-
ciam todo o debate entre Heráclito e Parmênides – ser e devir. Além de conhecerem
o debate ilosóico, dedicavam-se ao estudo e ensino da retórica. Esse incremento
da racionalidade argumentativa foi imprescindível ao desenvolvimento e impulso
inicial da ilosoia.
A questão central dos soistas (ao menos na sua primeira ge-
ração)
A era a airmação de que todas as coisas na polis (política,
direito,
era religião etc...) resultavam de uma convenção ou cultura
humana. Assim, nada na polis resultava de uma força natural
religião
superior e intangível. Como tudo era produto da convenção –
Assim,
nomos –, tudo poderia ser modiicado pelo próprio homem. As-
sim, na primeira geração de soistas, a lei e o direito nada tem de
intangível.
natural
poderiaou divino, mas são construídos políticamente através do
exercício da retórica na ágora. Daí a importância do discurso convincente – peithó.
Assim, o logos é a ferramenta para a construção do legal e do ilegal, do certo e do
errado, e tudo dependerá da habilidade lingüística de quem fala. Para comprovar
esta idéia, Górgias de Eleontino, um dos principais soistas, numa obra intitulada
Elogio de Helena (que foi condenada por toda a tradição grega por ter provocado
a Guerra de Tróia), airma que Helena não pode ser acusada nem condenada, pois
pode ter agido por amor ou por desígnio dos deuses, pela violência do rapto ou pela
sedução da palavra. Górgias chega mesmo ao ponto de marcar um dia para fazer

FGV DIREITO 26
EpIsTEmOlOGIa E mODERnIDaDE

sua acusação em praça pública e, no dia seguinte, para ele mesmo fazer sua defesa,
demonstrando com isso a superioridade da palavra em relação a qualquer conceito
convencionado.
FoiPrepare-se para o debate, meditando sobre a seguinte frase do
soista Protágoras de Abdera:
de
TODAS
“O HOMEM É A MEDIDA DE TODAS AS COISAS”
o
Até que ponto o homem pode instituir suas próprias verdades?
indivíduo
Agora, observe atentamente o quadro de Salvador Dali:
de
é, uma verdade pode

e o direito?

E
Acreditar na linguagem como campo próprio da verdade signiica
c
eadmitir que as verdades jurídicas não decorrem de planos metafísicos

ou transcendentes, mas, antes, dos agentes lingüísticos que a instituem


le
p
porcomum
lidar ato dede insegura
os problemas fala. Isso implica a conseqüência de que também é pos-
sível resigniicar a todo momento as categorias das verdade jurídicas.
Aqui, deve-se apresentar ao

bibliOGrafia

Obrigatória

CHAUÍ, Marilena. Introdução à história da filosofia: dos pré-socráticos a Aristó-


DESCOBERTA

teles. São Paulo: Brasiliense, 1994. (Capítulo III. Os Soistas e Sócrates: o


Humano como tema e problema: seção 3 Os Soistas ou a arte de ensinar)

FGV DIREITO 27
EpIsTEmOlOGIa E mODERnIDaDE

complementar

BARKER, Ernest. Teoria política grega. Brasília: EdUnB, 1978. (Capítulo IV. A
Teoria Política dos Soistas)

FGV DIREITO 28
EpIsTEmOlOGIa E mODERnIDaDE

aUla 5. ConCeito e Verdade: sÓCrates

NOTA AO ALUNO

tema da aUla

A verdade como conceito abstrato.

ObjetivOs da aUla

Introduzir o debate acerca da verdade como conceito puramente racional a partir


do pensamento socrático.

prepare-se para a aUla

O mais conhecido divisor de águas da ilosoia ocidental é, sem dúvida, Sócrates.


Não há comprovação histórica de sua existência, mas a ilosoia se vale do arcabouço
“Sócrates” para demarcar uma etapa inicial e decisiva do pensamento ocidental. A
partir de Sócrates deu-se a clivagem racionalista que nos marca a todos até hoje.
A A chamada “reconstrução socrática” recolocou o tema da ver-
dade como aletheia no centro de todas as discussões. Trata-se da
com
opção que faz Sócrates pela Razão como fundamento primeiro
de tudo que é verdadeiro, certo e justo. A partir desse ilósofo,
que
aque
razão deixa de ser uma prática de comunicabilidade entre os
indivíduos
de
para se tornar inteligibilidade do real. Esta guinada
representará um dos mais profundos cortes no pensamento de
tornar
toda a tradição, marcando todos os aspectos da vida humana.
Para Sócrates, o homem é dotado de razão e sentido, sendo este último o que nos
mais profundos cortes n
dá acesso ao mundo empírico, que, porém, é supericial por modiicar-se constan-
temente. Já a razão nos possibilita conhecer o mundo inteligível, aquele onde a
verdade e a justiça se apresentam de forma deinitiva. Verdade e justiça tornam-se
sinônimos dentro de uma racionalidade universal, necessariamente válida para to-
dos os homens, que reduz os princípios à unidades conceituais.
A verdade não reside na linguagem ou na opinião – dóxa – de cada indivíduo.
Da mesma forma, o real fundamento das relações não está nas convenções e normas
– nómos – especíicas que produzem justiças singulares. O realmente verdadeiro e
realmente justo é o que se eleva acima das múltiplas individualidades e somente é
alcançado pelo sujeito virtuoso que abandona todos os seus preconceitos. O ponto
central do pensamento socrático é que a prática da justiça como virtude apenas será
alcançada pelo conhecimento da justiça. Assim, a questão epistemológica será a

FGV DIREITO 29
EpIsTEmOlOGIa E mODERnIDaDE

chave de leitura para a compreensão do posicionamento que Sócrates assume ante


a physis e a pólis. É desta maneira que podemos entender seu lema “conhece-te a si
mesmo”: a busca da verdade universal inscrita em conceitos racionais. Para Sócrates,
a justiça é este conceito racional que deve ser compreendido por todos os homens.
Para tanto, propõe um método que é constituído de dois momentos: o primeiro é a
ironia, onde através de perguntas leva seu interlocutor a reconhecer seus preconcei-
tos e sua ignorância sobre o tema em debate; o segundo é a maiêutica, onde, tam-
bém através de perguntas, leva seu interlocutor a descobrir uma verdade conceitual
dentro de si mesmo com a utilização da razão.

e o direito?

E Acreditar no conceito como verdade implica admitir que o direito


c
ée formado por conceitos unívocos que podem ser depreendidos pela
razão. Assim, mais importante que as experiências jurídicas concretas
le
p
sãocomosos problemas
lidar centros de referência conceitual do direito. Tais centros, no
de insegura

sistema romano-germânico, são comumente compreendidos como a


Aqui, deve-se apresentar aonorma escrita. Daí que é comum o recurso ao texto da lei (ainda que
mediado pela doutrina) para se explicar e entender as categorias jurídicas, mesmo
que, muitas vezes, desligado do mundo da vida. Ganha-se em segurança, mas perde-
se em adaptatividade que é essencial à realização da justiça.

bibliOGrafia
DESCOBERTA

Obrigatória

CHAUÍ, Marilena. Introdução à história da filosofia: dos pré-socráticos a Aristó-


teles. São Paulo: Brasiliense, 1994. (Capítulo III. Os Soistas e Sócrates: o
Humano como tema e problema: seção 4 Sócrates: o elogio da ilosoia)

complementar

BARKER, Ernest. Teoria política grega. Brasília: EdUnB, 1978. (Capítulo V. Só-
crates e os Socráticos Menores)

FGV DIREITO 30
EpIsTEmOlOGIa E mODERnIDaDE

aUla 6. inatismo: desCartes

NOTA AO ALUNO

tema da aUla

A verdade como resultado da razão inata.

ObjetivOs da aUla

Introduzir o debate acerca da verdade como resultado de uma razão inata a partir
do subjetivismo cartesiano.

prepare-se para a aUla

Na revolução epistemológica operada na modernidade, buscou-se novas bases


que pudessem ser consideradas seguras e precisas para a fundamentação de uma
verdade universal. Não há dúvida de que o principal nome da constituição da mo-
derna ilosoia da ciência é Immanuel Kant que, com o seu projeto criticista, lançou
as bases mais sólidas em termos epistemológicos. No entanto, o pensamento kan-
tiano se insere num processo histórico que foi acontecendo por sucessivas rupturas
na tessitura ontológica da ilosoia e da sociedade, basicamente a partir do século
XVI, quando a modernidade afasta-se das especulações metafísicas para empreender
uma nova organização geral do saber. A nova perspectiva em construção considera
como fundamentos adequados para o conhecimento apenas a abstração racional e a
concretude experimental. Assim, o binômio razão e experiência passa a capitanear
as investidas do homem sobre as forças naturais, sociais, políticas e individuais. O
rumo deste caminho levou a modernidade a uma opção pelo “problema do conheci-
mento” – epistemologia – como questão fundamental a ser tratada, o que converteu
a teoria do conhecimento em motor da relexão ilosóica do período. Nesse contexto,
duas correntes destacaram-se como forma de compreender e responder à questão
proposta: o racionalismo e o empirismo. Enquanto os racionalistas acreditam ser
a verdade resultado de uma idéia primeira e fundante, os empiristas crêem que a
verdade resulta de um fato primeiro e fundante. Eis um esquema comparativo para
melhor visualizar as diferenças entre as correntes ilosóicas:

raCionalismo empirismo
Fundamentado numa razão inata Fundamentado na percepção dos sentidos
Opera dedutivamente Opera indutivamente
Alcança o mundo externo por meio de uma
Alcança o mundo externo por meio de uma
experiência possibilitada pela percepção
inferência (representação) lógica
sensível e por uma operação mental

FGV DIREITO 31
EpIsTEmOlOGIa E mODERnIDaDE

Nessa tradição, herdada por Kant, vários ilósofos importantes – racionalistas


e empiristas – desenvolveram suas teorias epistemológicas. Dois serão destacados:
Descartes e Hume.


“Mas não temerei dizer que penso ter tido muita felicidade
me
de me haver encontrado, desde a juventude, em certos cami-
nhos
que que me conduziram a considerações e máximas, de que
formei um método, pelo qual me parece que eu tenha meio de
form
aumentar gradualmente meu conhecimento, e de alçá-lo, pouco
aau
pouco, ao mais alto ponto a que a mediocridade de meu espí-
rito e a curta duração de minha vida lhe permitam atingir.”1
pouco
meu espírito e a curta du
Este parágrafo, registrado no início do Discurso do Método, sintetiza a perspectiva
cartesiana no pensamento moderno. Descartes cria um tipo de construtivismo ali-
cerçado sobre duas tarefas básicas: destruir toda forma de conhecimento que haja,
ao menos, uma boa razão para não se acreditar; reconstruir um novo e seguro tipo
de conhecimento que não se encontre motivo fundamentado para não acreditar
nele. Pode-se dizer que Descartes, como o inaugurador da moderna escola raciona-
lista ou idealista, teve os mesmo ideais de pessoas em perspectiva oposta, como Ba-
con, por exemplo. Também inluenciado pelas técnicas e pela matemática, procura
lançar as bases de uma nova fundamentação para a própria verdade, através de um
tipo de conhecimento seguro e verdadeiro (ciência) que pudesse desvendar as forças
e as leis próprias da natureza para que o homem a controlasse deinitivamente. É
isso que torna a perspectiva cartesiana construtivista, pois não está interessado em,
apenas, destruir o tradicional conhecimento sobre o mundo, mas sim em recolocá-
lo sobre bases supostamente mais seguras:

“Não que imitasse, para tanto, os céticos, que duvidam apenas por duvidar e
afetam por sempre irresolutos: pois ao contrário, todo o meu intuito tendia tão
somente a me certiicar e remover a terra movediça e a areia, para encontrar a rocha
ou a argila.”2

Querendo alcançar tal intento, Descartes propõe um método para conduzir o


espírito ao conhecimento verdadeiro, sem ter que submetê-lo às autoridades exte-
riores. Trata-se da dúvida metódica como forma de reconstruir em bases seguras e
verdadeiras o próprio mundo à nossa volta, ou, como airma o próprio Descartes,
a proposição de um método para bem conduzir a razão e procurar a verdade nas
ciências. Como dito, o método que leva à verdade implica a dúvida como condi-
ção epistemológica: “...mas, por desejar então ocupar-me somente com a pesqui- 1
DEsCaRTEs, René. Discurso do
sa da verdade, pensei que era necessário agir exatamente ao contrário, e rejeitar método. são paulo: abril Cultu-
ral, 1979. p. 29.
como absolutamente falso tudo aquilo que pudesse imaginar a menor dúvida, a
2
DEsCaRTEs, René. Ob. Cit.,
im de ver se, após isso, não restaria algo em meu crédito, que fosse inteiramente p. 44.
indubitável.”3 Praticando este método, segundo Descartes, qualquer pessoa pode- 3
DEsCaRTEs, René. Ob. Cit.,
ria conhecer de maneira nítida e clara as idéias que são inatas no espírito e, por p. 46.

FGV DIREITO 32
EpIsTEmOlOGIa E mODERnIDaDE

isso mesmo, superiores àquelas idéias que derivam dos sentidos (adventícias) ou
àquelas que são fabricadas pela imaginação (fictícias). As idéias inatas são racionais
e existem porque nascemos com elas, o que signiica dizer que a razão, como facul-
dade inata, é o único lugar possível para as “idéias claras e distintas”, para o verda-
deiro conhecimento. Essa é a grande descoberta do “penso, logo existo” – cogito,
ergo sum – que veriica que a certeza do conhecimento não vem do objeto exterior,
mas reside no próprio cogito como evidência apodíctica, irrefutável:

“Mas, logo em seguida, adverti que, enquanto eu queria assim pensar que tudo
era falso, cumpria necessariamente que eu, que pensava, fosse alguma coisa. E, no-
tando que esta verdade: eu penso, logo existo, era tão irme e tão certa que todas as
mais extravagantes suposições dos céticos não seriam capazes de abalar, julguei que
podia aceitá-la, sem escrúpulo, como o primeiro princípio da ilosoia que procura-
va.”4

Por isso, somente a razão conduzida logicamente, tendo o cogito como paradig-
ma metodológico, poderá decifrar todos os códigos do mundo, e o conhecimento
apenas dela pode advir. Conforme se infere da leitura do Discurso do Método, Des-
cartes, na busca do conhecimento verdadeiro, toma a realidade à sua volta e se pro-
põe a dúvida como método, ou seja, duvidar de tudo aquilo que se tenha ao menos
uma razão para duvidar. Através da dúvida metódica ele comprova a falsidade de
todo tipo de conhecimento sensível e chega à verdade absoluta do cogito, onde a
razão distingue as idéias inatas e faz delas representações seguras e verdadeiras que
deduzem o mundo, conhecido com exatidão geométrica, “cientiicamente”.
Para o racionalismo cartesiano, a razão é a natureza perfeita existente num ser
imperfeito por força da ação de um Ser perfeito: Deus. Embora Deus seja a causa
operativa última, mais importante é a razão perfeita, “deusa razão”,que universaliza
o conhecimento e torna acessível a verdade tão necessária ao homem e que jamais
seria conhecida se estivesse fora dele. Portanto, é o nosso espírito que possui a razão
e a verdade e não o mundo externo e é justamente por isso que pode ser conhecida
com segurança. O modelo epistemológico das ciências é o matemático, fundado
em critérios internos e abstrações, onde o raciocínio lógico é o mestre que conduz o
pensamento e evita as contradições e vacilações. Descartes adota, para o alcance da
verdade via ciência, quatro preceitos da lógica:

“O primeiro era o de jamais acolher alguma coisa como verdadeira que eu não
conhecesse evidentemente como tal; isto é, de evitar cuidadosamente a precipitação
e a prevenção, e de nada incluir em meus juízos que não se apresentasse tão clara e
tão distintamente a meu espírito, que eu não tivesse nenhuma ocasião de pô-lo em
dúvida. O segundo, o de dividir cada uma das diiculdades que eu examinasse em
tantas parcelas quantas possíveis e quantas necessárias fossem para melhor resol-
vê-las. O terceiro, o de conduzir por ordem meus pensamentos, começando pelos
objetos mais simples e mais fáceis de conhecer, para subir, pouco a pouco, como por
degraus, até o conhecimento dos mais compostos, e supondo mesmo uma ordem 4
Idem.

FGV DIREITO 33
EpIsTEmOlOGIa E mODERnIDaDE

entre os que não se procedem naturalmente uns aos outros. E o último, o de fazer
em toda parte enumerações tão completas e revisões tão gerais que eu tivesse certeza
de nada omitir.”5

Como visto, tal método pode ser associado ao procedimento matemático para
solução de uma equação. Mas é na base desta razão calculadora que Descartes pensa
ter descoberto o novo portal de acesso ao conhecimento verdadeiro. Inaugura-se o
moderno princípio epistemológico da razão suficiente, que domina e controla o
mundo transformando os fenômenos naturais e/ou sociais em fórmulas e abstra-
ções. Diferentemente do indutivismo dos empiristas, Descartes abre o caminho do
dedutivismo racionalista moderno.

e o direito?

E
c
Acreditar na verdade como representação racional do mundo a
epartir de uma razão inata implica admitir que também é o direito

uma representação, fruto, portanto, de uma idéia fundante. Essa


le
p
concepção
lidar ideal
com os problemas do direito pode manifestar-se tanto na maneira do
de insegura

jusnaturalismo como do formalismo jurídico. Apesar de serem


Aqui, deve-se apresentar ao
matrizes distintas, ambas são unidas pela idéia de que a razão univer-
sal pode inteligir um direito unívoco, seja da natureza ou da estrutura lógico-formal
do próprio direito.

bibliOGrafia
DESCOBERTA

Obrigatória

REALE, Miguel. Filosofia do direito. São Paulo: Saraiva, 1996. (Parte I – Capítulo
VIII. Do Conhecimento Quanto a Origem).

complementar

CUNHA, José Ricardo. Modernidade e ciência: algumas posições epistemológi-


cas. In: Direito, Estado e sociedade, Revista do Departamento de Direito da
Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro, n. 16, jan/jul 2000.

5
DEsCaRTEs, René. Ob. cit., pp.
37-38.

FGV DIREITO 34
EpIsTEmOlOGIa E mODERnIDaDE

aUla 7. empirismo: HUme e loCKe

NOTA AO ALUNO

tema da aUla

A verdade como resultado da experiência empírica.

ObjetivOs da aUla

Introduzir o debate acerca da verdade como resultado da experiência empírica a


partir do empirismo inglês.

prepare-se para a aUla

“ “A maneira pela qual adquirimos qualquer conhecimento constitui


suiciente prova de que não é inato. Consiste numa opinião estabelecida
suficient
entre alguns homens que o entendimento comporta certos princípios
estabelecid
inatos, certas noções primárias, koinaì énoiai, caracteres, os quais esta-
riam estampados na mente do homem, cuja alma os recebera em seu
certos
ser primordial e os transportara consigo ao mundo. Seria suiciente para
caracteres,
convencer os leitores sem preconceito da falsidade desta hipótese se pu-
alm
desse apenas mostrar (o que espero fazer nas outras partes deste tratado)
mundo. Seria
como suficiente
os homens, simplesmente pelo uso de suas faculdades naturais, podem adqui-
rir todo o conhecimento que possuem sem a ajuda de quaisquer impressões inatas e
podem alcançar a certeza sem quaisquer destas noções ou princípios originais.”6

Dessa maneira, John Locke inicia seu Tratado sobre o Entendimento Humano e
também sua luta contra o inatismo dos racionalistas, que airmavam existir uma
idéia inata nos sujeitos que seria o verdadeiro fundamento para a verdade e o co-
nhecimento, acessível apenas pela razão. É contra isso que Locke se insurge, lutan-
do contra um dogmatismo já manifesto na tradição do pensamento ocidental. Ao
contrário dos racionalistas, Locke, como empirista que era, airmava que os nossos
conhecimentos começam com a experiência dos sentidos. É bastante conhecida sua 6
lOCKE, John. Ensaio Acerca do
Entendimento Humano. são
airmação de que ao nascermos somos como tábulas rasas7, ou seja, como folhas paulo: abril Cultural, 1978, p.
145.
de papel em branco, prontas para serem preenchidas pelas experiências futuras.
7
pequena placa de madeira,
Locke concorda com Descartes na airmação de que o conhecimento é constituído marim ou metal, escavada para
por idéias, mas diverge de que estas idéias sejam inatas no espírito humano. Para conter uma camada de cera, na
qual os romanos escreviam com
Locke, há uma categoria de pessoas que não alcançam o verdadeiro conhecimento um estilo. Cf. TÁBUla. In HO-
lanDa FERREIRa, aurélio Bu-
em função da ausência de um conjunto de vivências suicientemente signiicativas arque (Ed.) Novo Dicionário da
para dar-lhes as idéias necessárias ao conhecimento, tais como crianças e “idiotas”. Língua Portuguesa. [s.l.] nova
Fronteira, 1989.

FGV DIREITO 35
EpIsTEmOlOGIa E mODERnIDaDE

Assim, mesmo as evidências lógicas mais apodícticas, como os princípios da identi-


dade e não-contradição, são desconhecidas por certas pessoas. Tudo por uma única
razão: mesmos essas idéias e princípios não são inatos, devendo ser adquiridos pelos
indivíduos ao longo de suas vivências e experiências.
Seguindo essa linha de raciocínio, Locke passa a demonstrar que nenhum prin-
cípio da vida prática pode ser considerado inato8, ou seja, não há princípio que
possa ser considerado universal, já que todos eles dependem de uma experiência
prévia dos sentidos que os transforme em idéia real e conhecimento verdadeiro.
Mesmo princípios morais basilares, como a justiça, não podem ser considerados
inatos e universais, pois dependem de uma aquiescência por parte dos indivíduos,
bem como de comprovação, coisas que seriam descabidas caso fossem verdadeira-
mente inatos. Tanto é assim, que os homens quando agem virtuosamente o fazem
porque costumam tirar benefícios próprios de tal conduta e não porque a tenham
inscrita dentro de si; até porque, nem sempre adotam os mesmo princípios práti-
cos ou as mesmas virtudes. Nessa esteira,Locke ainda invoca a diversidade cultural
como prova cabal de que não há idéia ou princípio inato nos sujeitos, já que nações
inteiras chegam mesmo a divergir acerca de certos princípios consagrados em outras
nações. Portanto, sujeitos e povos podem convergir ou divergir em suas regras prá-
ticas – morais – conforme as experiências e vivências que possuam. Se Locke con-
corda que o conhecimento está nas idéias, mas nega que estas sejam inatas, naturais
ou universais, como entendê-las? Essa é a questão enfrentada na Segunda parte do
Ensaio, que inicia com a seguinte airmação:

“Idéia é o objeto do pensamento. Todo homem tem consciência de que pensa, e


que quando está pensando sua mente se ocupa de idéias. Por conseguinte é indubi-
tável que as mentes humanas tem várias idéias, expressas entre outras, pelos termos
brancura, dureza doçura, pensamento, movimento, homem, elefante, exército, em-
briaguez. Disso decorre a primeira questão a ser investigada: como elas são apreen-
didas? Consiste numa doutrina aceita que o ser primordial dos homens tem idéias
inatas e caracteres estampados sobre sua mente. Já examinei, em linhas gerais, essa
opinião, e suponho que o que icou dito no livro anterior será facilmente admitido
quando tiver mostrado como o entendimento obtém todas as suas idéias, e por quais
meios e graus elas podem penetrar na mente; com esse im solicitarei a cada um re-
correr a sua própria observação e experiência.”9

Desenvolvendo o pensamento empírico, temos ainda David Hume.



“Todos admitirão sem hesitar que existe uma considerável dife-
diferença
rença entre as percepções da mente quando o homem sente a dor de
sente 8
lOCKE, John. Ob. Cit., pp. 150-
um calor excessivo ou o prazer de um ar moderadamente tépido e 152.
moderada
quando relembra mais tarde essa sensação ou a antecipa pela imagi- 9
lOCKE, John. Ob. Cit., p. 159.
s
nação. Essas faculdades podem remedar ou copiar as percepções dos 10
HUmE, David. Investigação
sentidos, mas jamais atingirão a força e a vivacidade do sentimento
pode Sobre o Entendimento Humano.
são paulo: abril Cultural, 1980.
original.”
jam 10
p. 140.
original.”22

FGV DIREITO 36
EpIsTEmOlOGIa E mODERnIDaDE

Neste parágrafo, Hume lança as bases da ilosoia que irá associá-lo ao pensa-
mento empirista, inaugurado por Bacon e continuado por Locke, dentre outros.
Contudo, pode-se dizer que o empirismo de Hume é o mais inovador e radical,
colocando-o em posição de destaque dentre os próprios empiristas. Segundo sua
ilosoia, não há conhecimento da realidade que não se inicie com as impressões dos
sentidos. Na verdade, estes são estimulados por dados internos ou externos ao sujei-
to, dando início a um processo psicológico que vai, etapa a etapa, produzindo um
tipo de “verdade” sobre os dados da realidade. Por isso, no parágrafo em epígrafe,
airma que somente a vivacidade do sentimento original é capaz de responder ou
explicar uma dada situação. Nesse sentido, pode-se dizer que Hume compreende a
verdade sobre o entendimento humano (o que Descartes chamaria de cogito) como
a própria vivência imediata do pensar estimulado indutivamente por impressões, ou
seja, não existe consciência mas, apenas, vivências. Numa síntese geral do processo
de conhecimento exposto por Hume na sua Investigação sobre o Entendimento Hu-
mano11, temos que os conhecimentos começam com as sensações (experiência dos
sentidos) estimuladas pelos objetos exteriores. É a reunião das várias e diferentes
sensações que permite perceber um objeto exterior, ou seja, as sensações reunidas
formam a percepção. Na medida em que as percepções vão se repetindo, elas se
combinam, se associam, quer seja porque são semelhantes (semelhança), porque
se repetem no mesmo espaço ou próxima umas das outras (contiguidade espacial)
ou porque se repetem sucessivamente no tempo (sucessão temporal). O fato é que,
com esta repetição, ocorre o hábito da associação das percepções, fazendo com que,
assim, surjam as idéias. Em outras palavras, as idéias correspondem à associação das
percepções trazidas pela experiência sensível, que são levadas à memória, onde a
razão forma os pensamentos. É a experiência que inscreve as idéias em nosso espí-
rito e a razão as arranja (combinando ou separando), formando, desta maneira, os
pensamentos. Assim, Hume airma que a razão nada mais é que o hábito de associar
idéias, seja por semelhança, seja por diferença.
Negando fundamentos abstratos e metafísicos, Hume encerra a Investigação cri-
ticando a idéia do apriorismo como meio de acesso ao conhecimento verdadeiro
dos acontecimentos do mundo real, dos fatos; bem como criticando a resposta da
velha teologia de que um Ente Supremo precisa ter sido a causa de tudo que foi
criado e do que será criado, já que a relação de causalidade depende de uma expe-
riência pessoal não universalizável sobre bases seguras. Assim, a causa corresponde
à imaginação do sujeito afetada por uma determinada experiência dos sentidos.12
Com efeito, para Hume, não pode haver conhecimento pleno e cientiicamente
válido fora do campo meramente conceptual, como é o caso da matemática, já
que em relação aos fatos, não há demonstração possível, na medida em que “tudo
que é pode não ser”13, acusando mesmo de enganação e ilusão qualquer tentativa
de levar o raciocínio das ciências abstratas de quantidade e número para os fatos
concretos. 11
HUmE, David. Ob. Cit., pp.
141-157.
12
HUmE, David. Ob. Cit., p. 204.
13
HUmE, David. Ob. Cit., p. 203.

FGV DIREITO 37
EpIsTEmOlOGIa E mODERnIDaDE

e o direito?

E
c Acreditar na verdade como produto de uma experiência empírica
e
implica admitir que também é o direito produto de uma experiência
le
pempírica, fruto, portanto, de um fato fundante. Essa concepção em-

pírica do direito é corrente na common law e da origem ao chamado


lidar com os problemas de insegura

realismo jurídico.
Aqui, deve-se apresentar ao

bibliOGrafia

Obrigatória

REALE, Miguel. Filosofia do direito. São Paulo: Saraiva, 1996. (Parte I – Capítulo
DESCOBERTA

VIII. Do Conhecimento Quanto a Origem).

complementar

CUNHA, José Ricardo. Modernidade e Ciência: algumas posições epistemológi-


cas. In: Direito, Estado e sociedade – Revista do Departamento de Direito da
Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro, n. 16, jan/jul 2000.

FGV DIREITO 38
EpIsTEmOlOGIa E mODERnIDaDE

aUla 8. Formalismo JUrÍdiCo e realismo JUrÍdiCo

NOTA AO ALUNO

tema da aUla

Formalismo e Realismo Jurídico.

ObjetivOs da aUla

Apresentar como Inatismo e Empirismo inluenciaram as principais matrizes


epistemológicas do direito.

prepare-se para a aUla

É necessário recordar que razão e experiência foram elevadas às categorias centrais


do conhecimento na modernidade. Portanto, todas as áreas do saber passaram a se-
guir uma ou outra matriz. Vejamos, novamente, o esquema apresentado na aula 6:

raCionalismo empirismo
Fundamentado numa razão inata Fundamentado na percepção dos sentidos
Opera dedutivamente Opera indutivamente
Alcança o mundo externo por meio de uma
Alcança o mundo externo por meio de uma
experiência possibilitada pela percepção
inferência (representação) lógica
sensível e por uma operação mental

No direito, o racionalismo inluenciou tanto o jusnaturalismo do século XVIII,


mas, sobretudo, o formalismo positivista do século XX. Já o empirismo está na base
dos realismos jurídicos.

fOrmalismO jUrídicO

Lu
Luiz Alberto Warat apresenta alguns postulados que podem
ser úteis na compreensão do formalismo jurídico. Prepare-se
po

para o debate reletindo sobre tais postulados:

1) A única
1. A única fonte do direito é a Lei;
2. As normas positivas constituem um universo signiicativo auto-suiciente do
qual se pode inferir , por atos de derivação racional, soluções para todos os
tipos de conlitos jurídicos;

FGV DIREITO 39
EpIsTEmOlOGIa E mODERnIDaDE

3. Os códigos não deixam nenhum arbítrio ao intérprete. Esse não faz o direito
porque já o encontra realizado;
4. As determinações metajurídicas não têm valor jurídico, devendo-se encon-
trar todas as soluções dentro do próprio sistema jurídico;
5. A linguagem jurídica é formal e, portanto, precisa: possui um unívoco senti-
do dispositivo;
6. O juiz é neutro;
7. A Ciência Jurídica deve estudar, sem formular juízos valorativos, o direito
positivo vigente.

realismO jUrídicO

Novamente Luiz Alberto Warat apresenta alguns postulados que podem ser úteis
na compreensão do realismo jurídico. Continue sua preparação reletindo sobre os
novos postulados:

1. A ordem jurídica não oferece segurança. As leis não solucionam todos os


casos concretos;
2. As normas jurídicas e os conceitos dogmáticos constituem um conjunto de
airmações metafísicas;
3. A linguagem jurídica não é hermética nem auto-suiciente. O sentido das
normas dependerá do uso que os juízes dêem as mesmas; Não há signiicados
abstratos claramente deiníveis;
4. A Ciência do direito constrói-se elaborando teses sobre os comportamentos
judiciários. Os conceitos teóricos devem ter base empírica, razão porque só
possuem valor se reletem as condutas judiciais e as conseqüências sociais das
relações jurídicas.

e o direito?
E
c
e
Quais seriam os principais problemas possíveis resultantes dessas
matrizes epistemológicas?
le
p
lidar com os problemas de insegura

Aqui, deve-se apresentar ao

bibliOGrafia

Obrigatória

TEIXEIRA, Antonio Braz. Sentido e valor do direito: introdução à ilosoia jurídi-


DESCOBERTA
ca. Lisboa: Casa da Moeda, 2000. (Parte I. Ontologia do Direito. Capítulo
I. Perspectivas contemporâneas da ontologia jurídica – Seções 17, 18, 19 e
20).

FGV DIREITO 40
EpIsTEmOlOGIa E mODERnIDaDE

complementar

WARAT, Luiz Alberto. Introdução geral ao direito I: interpretação da lei, temas


para uma reformulação. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris, 1994. (Capítu-
lo 4: Formalismo, Realismo e Interpretação da Lei).

FGV DIREITO 41
EpIsTEmOlOGIa E mODERnIDaDE

aUla 9. CritiCismo: Kant

NOTA AO ALUNO

tema da aUla

A síntese crítica de inatismo e empirismo.

ObjetivOs da aUla

Apresentar a síntese crítica entre inatismo e empirismo como formulada no pen-


samento kantiano.

prepare-se para a aUla

Para desenvolver plenamente seus estudos, sem dar margens


Para
a nenhum tipo de inconsistência, Kant se propôs um saber críti-
nenhum
co. Daí sua ilosoia também ser conhecida como criticismo, que
sua
consiste no exame de valor que se pode fazer sobre uma teoria,
uma conduta
exame ou uma experiência, a im de buscar suas condições
deoupossibilidade, de validade e os seus limites. Podemos airmar
que o criticismo surge do movimento realizado por Kant dian-
tepossibilidad
daquilo que considera como dois erros, a saber: a) o erro do
dogmatismo racionalista,
criticismo surge do que conia cegamente na razão, caindo, por isso mesmo,
numa metafísica ilusória; b) o erro do empirismo, que reduz tudo à mera experiên-
cia subjetiva, caindo, por isso mesmo, num ceticismo quanto ao conhecimento e a
verdade. Dessa forma, o criticismo kantiano irá buscar as verdadeiras bases para um
uso correto da razão, investigando o que ela pode e o que ela não pode, em outras
palavras, suas possibilidades e limites. É por isso que comumente se fala sobre o “tri-
bunal da razão” na ilosoia kantiana, onde a razão ocupa, curiosamente, um duplo
papel: de juiz e de réu, ou seja, ela está sendo julgada por ela mesma. É a razão que
se submete às suas próprias leis. Assim, a razão crítica é aquela da qual nada escapa a
um minucioso exame; até mesmo seu agente e operador é visto e analisado por ela,
para que nada ique à mercê de respostas dogmáticas e sem fundamento racional.
O conhecimento como ciência é, exatamente, esse que é submetido ao império da
razão para se apresentar de forma verdadeira e sistemática, segundo as características
de um sujeito autônomo, posto que também submetido à razão. A razão crítica é,
antes de tudo, a razão que se critica a si mesma, impedindo seus delírios megaloma-
níacos e reconhecendo, humildemente, suas possibilidades:

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EpIsTEmOlOGIa E mODERnIDaDE

“Em todos os seus empreendimentos a razão tem que se submeter à crítica, e não
pode limitar a liberdade da mesma por uma proibição sem que isto a prejudique
e lhe acarrete uma suspeita desvantajosa. No que tange à sua utilidade, nada é tão
importante nem tão sagrado que lhe seja permitido esquivar-se a esta inspeção atenta
e examinadora que desconhece qualquer respeito pela pessoa. Sobre esta liberdade
repousa até a existência da razão; o veredicto desta última, longe de possuir uma
autoridade ditatorial, consiste sempre em nada mais do que no consenso de cidadãos
livres dos quais cada um tem que poder externar, sem constrangimento algum, suas
objeções e até seu veto.”14

A forma como Kant responde os problemas colocados à teoria do conhecimento


pelas correntes racionalista e empirista icou conhecida como uma espécie de re-
volução copernicana. Copérnico já havia demonstrado que o universo é ininito e,
por isso mesmo, a Terra não poderia ser o centro do cosmo e que o Sol não é um
planeta, mas uma estrela, sendo a Terra que gira ao seu redor, e não o contrário,
como acreditavam os antigos e medievais. Para Kant, racionalistas e empiristas es-
tavam buscando um centro falso e inexistente, quando airmavam ser a realidade
racional em si mesma e, assim, inteligível. Dessa maneira, “colocaram a realidade
exterior ou os objetos do conhecimento no centro e izeram a razão, ou o sujeito
do conhecimento, girar em torno deles”15. É aí que surge a revolução proposta por
Kant, quando este airma que é o sujeito de conhecimento – razão crítica – que deve
ser o centro do conhecimento e não o contrário:

“Até agora se supôs que todo o nosso conhecimento tinha que se regular pelos
objetos; porém todas as tentativas de mediante conceitos estabelecer algo a priori so-
bre os mesmos, através do que ampliaria o nosso conhecimento, fracassaram sob esta
pressuposição. Por isso tente-se ver uma vez se não progredimos melhor nas tarefas
da Metafísica admitindo que os objetos têm que se regular pelo nosso conhecimento,
o que concorda melhor com a requerida possibilidade de um conhecimento a priori
dos objetos que se deve estabelecer sobre os mesmos antes de nos serem dados.”16

Assim sendo, todo o processo de produção do conhecimento, a partir de Kant,


passa a ser visto como o resultado da relação entre sujeito cognoscente e objeto cog-
noscível, onde existe uma sobreposição do primeiro em relação ao segundo, quer
dizer, da razão em relação à realidade, uma vez que é aquela que legisla sobre esta
ao instituí-la como objeto para sua cognição, para seu conhecimento. Em outras
palavras, cabe ao sujeito o papel de instituir seus objetos cognitivos para airmar-se 14
KanT, Immanuel. Crítica da
como hegemonia da razão sobre o real. Como podemos ver, a teoria do conheci- Razão Pura. são paulo: abril
Cultural, 1980, p. 363.
mento de Kant não é exatamente um discurso cientíico, mas um discurso sobre 15
CHaUÍ, marilena. Convite à
a ciência, sobre como é possível produzir conhecimentos ditos cientíicos e, por Filosoia. são paulo: atica, 1994,
isso, com pretensão de universalidade e precisão. No prefácio da Crítica da Razão p. 77.
KanT, Immanuel. Ob. Cit.,
Pura, diz ser esta “um tratado do método e não um sistema da ciência mesma; não
16

p. 12.
obstante traça como que todo o seu contorno, tendo em vista tanto os seus limites 17
KanT, Immanuel. Ob. Cit.,
como também toda a sua estrutura interna.”17 Temos, assim, que o conhecimento p. 14.

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EpIsTEmOlOGIa E mODERnIDaDE

cientíico se opera na forma de uma relação entre sujeito e objeto, conforme as


características e determinações próprias do sujeito racional, que é o fundamento
último do próprio conhecimento. No entanto, já sabemos que este sujeito cognos-
cente é tomado criticamente, ou seja, reconhecido nos seus limites como limites da
própria razão. Este reconhecimento dos limites da razão implica numa crítica kan-
tiana ao dogmatismo do racionalismo antigo, medieval e moderno, que pretendia
desvendar metaisicamente os atributos ontológicos da natureza primeira do ente,
o númeo, ou seja, a coisa em si. Esta, não pode ser conhecida, mas apenas a maneira
como se apresenta ao homem. Em outras palavras, não se conhece racionalmente o
númeno, mas pode-se conhecer o fenômeno, que signiica a maneira pela qual um
ente faz-se conhecer, não o ente em si, pois este é incognoscível, mas sim a forma
de sua apresentação.18 O númeno é a coisa em si; este não pode ser conhecido cien-
tiicamente. O fenômeno é a coisa na maneira como se apresenta ao sujeito; este
pode ser conhecido cientiicamente. Portanto, somente há conhecimento cientíico
quando o objeto de conhecimento é tomado na sua dimensão fenomênica, ou seja,
o objeto cognoscível é sempre um fenômeno.
Quando se debruça sobre o problema do conhecimento, Kant não se preocupa
em descobrir se é possível a construção de um saber de base universal, tido como
cientíico, vez que as ciências da natureza já estavam constituídas como um fato, ou
seja, já existia o conhecimento universal, cientíico. Sua questão era, então, saber
como eram possíveis tais ciências. Rapidamente, a resposta dada por Kant foi a se-
guinte: o que torna possível o conhecimento cientíico são os juízos sintéticos a priori.
O que remete a outra questão: como é possível um juízo sintético a priori? Pois bem,
sabendo que o centro do conhecimento é o sujeito cognoscente, a resposta somente
poderia resultar da análise da faculdade de conhecer do sujeito, o que é feito na Cri-
tica da Razão Pura. Partindo dos aportes oferecidos tanto por empirismo como por
racionalismo, Kant observa e distingue duas formas de conhecimento: 1) o empírico
ou a posteriori, sendo o que resulta de nossas experiências sensíveis; e 2) o puro ou a
priori, sendo o que independe de nossas experiências sensíveis. Temos, destarte, que
o conhecimento empírico, embora seja concreto e enriquecido pelo dado real dos
sentidos ou de nossa experiência pessoal, não pode ser tomado de maneira universal
ou necessária, o que já se torna possível no caso do conhecimento puro, tal qual
ocorre nas proposições da matemática.19 Por outro lado, Kant distingue dois tipos
de juízo: 1) o analítico, sendo aquele cujo predicado já está contido no sujeito; e
2) o sintético, sendo aquele que o conceito admitido no predicado representa uma
informação nova em relação ao sujeito. Vejamos que os juízos analíticos são sempre
universais e necessários, válido em qualquer tempo ou lugar, exatamente como deve
ser o conhecimento cientíico. Entretanto, estes não fazem o conhecimento em
nada avançar, já que aquilo que informam do sujeito já estava contido na própria
idéia do sujeito, sendo sabido por todos.20 Tomemos, como exemplo, o juízo a porta 18
KanT, Immanuel. Ob. Cit.,
abre e fecha. Ora, embora esta seja uma proposição universal, todos sabem que porta p. 39.

abre e fecha, pois, caso contrário, não seria porta. Agora, vejamos o juízo a porta KanT, Immanuel. Ob. Cit., pp.
19

24-26.
está aberta. Esta proposição realmente acrescenta um dado novo sobre o sujeito que 20
KanT, Immanuel. Ob. Cit.,
não era conhecido anteriormente, fazendo o conhecimento avançar. Contudo, este p. 27.

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conhecimento somente pode ser considerado válido para aquele sujeito especiica-
mente, não podendo se dizer por que esta porta está aberta, que todas as portas do
mundo estão abertas. Dessa forma, o juízo porta abre e fecha é analítico, tal qual o
juízo o triângulo têm três lados ou todos os corpos são extensos; já o juízo a porta está
aberta é sintético, tal qual todos os corpos se movimentam.
Acontece que, isoladamente, estes conceitos ainda não respondem ao problema
do conhecimento cientíico, pois os juízos sintéticos são empíricos e fazem avançar
o conhecimento, mas não são universais e necessários, não servido, portanto, para
explicar o funcionamento das ciências. Já o conhecimento a priori é universal e ne-
cessário, mas apenas traduz juízos analíticos, onde não se revela nenhuma novidade
sobre o sujeito, de forma que não faz avançar o conhecimento e, também, não serve
para explicar o funcionamento das ciências. A resposta está numa categoria empíri-
ca, onde o predicado não esteja contido no sujeito mas que, ao mesmo tempo, seja
universal e necessária: trata-se do juízo sintético a priori.21 Somente os juízos sintéti-
cos fazem a ciência avançar, na medida em que acrescentam uma informação sobre
o sujeito; contudo, é necessário, para que haja ciência, que a informação não se
restrinja a uma única observação especíica de um fenômeno, mas possa ser tomada
como atributo universal e necessário de dado objeto cognoscível.
Os juízos sintéticos a priori representam o conhecimento cientíico porque são
universais e crescentes, ao mesmo tempo:

“Ora, se os juízos analíticos trazem em si a universalidade e são, por isso, sempre


a priori, e se os juízos sintéticos da experiência oferecem somente a possibilidade
do crescimento do conhecimento – dado que naqueles o conhecimento é universal,
mas não avança, e nestes o conhecimento é crescente, mas não universal – é preciso
que existam juízos sintéticos a priori que tenham as duas características, já que sem
eles não seria possível a física pura, nem a matemática, as quais, entretanto, são um
fato. O juízo ‘todo acontecimento tem uma causa’ é um juízo sintético a priori. É a
priori porque vale universalmente, de modo necessário, não provindo pois da expe-
riência; é sintético porque no conceito acontecimento não está contido o conceito
de causa.”22

Ainda o conceito de juízo sintético a priori revela a hipótese central da ilosoia


kantiana da ciência: o conhecimento começa com a experiência, mas não surge todo
ele da experiência, já que é universal e necessário. Kant faz uma espécie de síntese
entre postulados do racionalismo e do empirismo, propondo o conhecimento na
forma do resultado de um processo complexo que parte dos dados empíricos forne-
cidos pela intuição sensível processando-os na forma transcendental das categorias do
entendimento, através de um esquematismo transcendental, que promove a síntese do
próprio conhecimento. KanT, Immanuel. Ob. Cit.,
21

p. 28.
Assim descreve Kant: 22
salGaDO, Joaquim Carlos.
A Idéia de Justiça em Kant: seu
fundamento na liberdade e na
“Denominamos sensibilidade a receptividade de nossa mente receber representa- igualdade. Belo Horizonte: Edi-
tora UFmG, 1995, p. 87.
ções na medida em que é afetada de algum modo; em contrapartida, denominamos

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EpIsTEmOlOGIa E mODERnIDaDE

entendimento ou espontaneidade do conhecimento a faculdade do próprio entendi-


mento produzir representações. A nossa natureza é constituída de um tal modo que
a intuição não pode ser senão sensível, isto é, contém somente o modo como somos
afetados por objetos. Frente a isto, o entendimento é a faculdade de pensar o objeto
da intuição sensível. Nenhuma destas propriedades deve ser preferida à outra. Sem
sensibilidade nenhum objeto nos seria dado, e sem entendimento nenhum seria
pensado. Pensamentos sem conteúdos são vazios, intuições sem conceitos são cegas.
Portanto, tanto é necessário tornar os conceitos sensíveis (isto é, acrescentar-lhes o
objeto na intuição) quanto tornar as suas intuições compreensíveis (isto é, pô-las sob
conceitos). Estas duas faculdades ou capacidades também não podem trocar as suas
funções. O entendimento nada pode intuir e os sentidos nada pensar. O conheci-
mento só pode surgir da sua reunião.”23

Como diz Kant, o conhecimento resulta da reunião das faculdades da sensibili-


dade – intuição sensível – e do entendimento. Pela primeira, entramos em contato
com o mundo e, pela segunda, pensamos este mesmo mundo. O conhecimento não
é, pois, um momento estático dos sentidos ou da razão, mas, antes, um processo com-
plexo que opera através de sínteses que conduzem a diversidade dos dados empíricos
à unidade das categorias do entendimento, na forma do sujeito de conhecimento,
sujeito transcendental.
Dessa forma, o juízo sintético a priori, que caracteriza o conhecimento concreto
e universal das ciências, resulta, como dito anteriormente, desse complexo processo
de sínteses que acolhe a multiplicidade de percepções dos sentidos e as eleva à forma
de conceitos inteligíveis e universais. No entanto, todas as sínteses tem como centro
o sujeito cognoscente que institui, à sua escolha, os objetos de sua investigação, a
im de pensá-los racionalmente. De efeito, o ato de pensar, para Kant, é sempre uma
postura racional que impõe à realidade bruta as regras ou leis que a torna inteligível.
Por isso se dizer que na ilosoia kantiana é a razão que legisla, ou seja, que fornece
as condições últimas de possibilidade do conhecimento ou da verdade, sendo, por
isso, a mais alta faculdade do conhecimento.24 Assim, o sujeito racional é a própria
unidade do conhecimento na forma do eu penso, ou, como diz Kant, é a unidade
racional transcendental.25
Não resta dúvida que a epistemologia kantiana radicaliza a aventura moderna
do empreendimento cientíico ao lançar as bases mais sistemáticas e sólidas de uma
nova fundamentação da verdade, tomada como verdade epistemológica. Embora
o tribunal da razão tenha limitado a arrogância da razão onipotente da metafísica
dogmática, ele elevou ao mais alto pedestal a glória da razão teorética ou cientíi-
ca, como último reduto da verdade mesma. Essa perspectiva racionalista kantiana
serviu de base para a sustentação de uma sociedade que busca a legitimação de suas
instituições e do comportamento de seus agentes em postulados racionalistas. Mo- 23
KanT, Immanuel. Ob. Cit.,
dernizar passou a signiicar racionalizar e racionalizar passou a signiicar estar mais p. 74.

perto da verdade e da liberdade intelectual. Contudo, ocorre que o racionalismo 24


salGaDO, Joaquim Carlos. Ob.
Cit., p. 129.
kantiano foi convertido em racionalidade instrumental, ou seja, meio eicaz para a 25
KanT, Immanuel. Ob. Cit.,
consecução de um im qualquer. Muito rapidamente, os meios se autonomizaram p. 85.

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EpIsTEmOlOGIa E mODERnIDaDE

em relação aos ins, degenerando na forma de certas condutas consideradas mera-


mente técnicas, isoladas de fundamentos éticos. Mesmo a moral foi transformada
em moralismo, como instrumento de dominação de certos grupos sociais. Esse pro-
cesso de embrutecimento da racionalidade cientíica e de autonomização da ciência
em relação ao mundo da vida, que retirou de boa parte dos cientistas a sensibilidade
social e os fundamentos éticos da busca da verdade, atingiu seu ápice com a hege-
monia absoluta do positivismo, a partir do século XIX, que acabou por determinar
o modo de produção do conhecimento em todas as áreas do saber.

e o direito?
E
c Acreditar na verdade como produto de uma síntese entre enten-
e
dimento e sensibilidade admitir que também o direito é produto
le
pde tal síntese, sendo, pois, constituído concomitantemente por fatos

concretos e proposições abstratas que interagem reciprocamente.


lidar com os problemas de insegura

Para a aula, pesquise a chamada dialética de integração-po-


Aqui, deve-se apresentar ao
laridade na Teoria Tridimensional do Direito de Miguel Reale e comente sua
relação com o criticismo kantiano.

bibliOGrafia
DESCOBERTA
Obrigatória

REALE, Miguel. Filosofia do direito. São Paulo: Saraiva, 1996. (Parte I. Capítulo
VIII. Do Conhecimento Quanto a Origem).

complementar

CUNHA, José Ricardo. Modernidade e Ciência: algumas posições epistemoló-


gicas. Direito, Estado e Sociedade – Revista do Departamento de Direito da
Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro, n. 16, jan/jul 2000.

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EpIsTEmOlOGIa E mODERnIDaDE

aUla 10. o positiVismo: Comte

NOTA AO ALUNO

tema da aUla

O positivismo ilosóico.

ObjetivOs da aUla

Apresentar o positivismo ilosóico conforme desenvolvido por Augusto


Comte.

prepare-se para a aUla


denominador
A força ilosóica de maior inluência na modernidade foi, sem
prático,
dúvida, o positivismo. O seu maior formulador, Augusto Comte,
manutenção
airmou a ilosoia como uma espécie de denominador comum
positivismo
de todo tipo de conhecimento, teórico ou prático, dando a ela
capaz
também um papel político para a manutenção da ordem. Isso
ac
quer dizer que, por um lado, o positivismo se apresenta como
todos
uma teoria do conhecimento capaz de apreender e desvendar a
evolução
ordem natural dos acontecimentos histórico, descobrindo leis ge-
o positivismo se aprese
rais válidas para todos os indivíduos e todas as sociedades, supondo uma evolução
intrínseca na base dessa ordem natural; por outro lado, o positivismo se apresenta
como uma coordenação das ações políticas necessárias para a manutenção dessa or-
dem que traz o desenvolvimento e para uma eventual correção de possíveis desvios.
Nesse sentido, o positivismo pode ser considerado como uma espécie de ilosoia
das ilosoias, pois fornece a regra geral de entendimento e interpretação de todos
os acontecimentos históricos, ao mesmo tempo em que delimita os campos de in-
tervenção da ação humana e fornece as regras de como fazê-la. Para tanto, se opõe a
qualquer tipo de saber que não esteja amparado em condições reais, demonstráveis e
históricas de fundamentação, negando qualquer ontologia absoluta e transcendente
que não surja da história e não se airme nela. No lugar dessa ontologia de caráter
metafísico, o positivismo, embalado pelo otimismo moderno, apresenta a ciência
como verdadeira redentora e realizadora da promessa do conhecimento e do pro-
gresso. Comte acredita ter encontrado a filosofia natural a que Bacon tanto se referia
sem, contudo, ter descoberto suas verdadeiras regras de funcionamento. Observar e
descobrir o funcionamento da natureza é o ponto de partida para uma ação racional
sobre a própria natureza que assegure ao homem um lugar privilegiado no mundo,
isto é, um lugar de domínio que propicie uma natural evolução. Portanto, a ilosoia

FGV DIREITO 48
EpIsTEmOlOGIa E mODERnIDaDE

positivista de Comte concede à ciência lugar de fundamental destaque, na medida


em que a ela cabe fornecer o conhecimento do mundo e o plano de ação adequado
ao seu manejo. Eis a síntese da perspectiva cientiicista da ilosoia positivista: ver
para prever e prever para controlar. Airma Comte:

“Sem dúvida, ao tomar o conjunto completo de toda sorte de trabalhos da es-


pécie humana, deve-se conceber o estudo da natureza, destinando-se a fornecer a
verdadeira base racional da ação do homem sobre ela. O conhecimento das leis dos
fenômenos, cujo resultado constante é fazer com que sejam previstos por nós, evi-
dentemente pode nos conduzir, de modo exclusivo, na vida ativa, a modiicar um
fenômeno por outro, tudo isso em nosso proveito... Todas as vezes que chegamos a
exercer uma grande ação, é somente porque o conhecimento das leis naturais nos
permite introduzir, entre as circunstâncias determinadas sob a inluência das quais se
realizam os diversos fenômenos, alguns elementos modiicadores que, em que pese
sua própria fraqueza, bastam, em certos casos, para fazer reverter, em nosso proveito,
os resultados deinitivos do conjunto das causas exteriores.”26

Apesar dessa apresentação dos postulados e das pretensões do positivismo, ainda


é necessário um esforço de deinição. Usemos o seguinte conceito: positivismo é a
doutrina que afirma o real em detrimento do transcendente absoluto. É uma doutrina
porque é um conhecimento organizado a partir de um corpo teórico próprio e
deinido. A substância dessa doutrina ilosóica é o paradoxo entre o real e o trans-
cendente, onde o primeiro deve ser entendido como uma exterioridade observável e
o segundo como a própria metafísica. Assim, o positivismo rejeita a cientiicidade,
ou seja, o caráter de verdade, de qualquer explicação baseada em argumentos me-
tafísicos, rejeitando, por conseguinte, todas as idéias totalizantes e que não estejam
fundamentadas no observável. Portanto, apenas no plano do real fenomênico é
possível praticar a ciência e descobrir a verdade. Deve-se ter em conta que não basta
a pura observação, o fenômeno observado deverá ser racionalizado para que possa
ser apresentado na forma de enunciados, prognósticos e prescrições.
Considerando a realidade como uma exterioridade observável, Comte entende
que os fenômenos podem ser vistos, previstos e subsumidos por uma lei geral de
funcionamento, de modo a ser controlado ou, pelo menos, passível de controle pela
razão humana. Por isso mesmo, estrutura sua ilosoia positivista em três momen-
tos fundamentais: uma ilosoia da história (momento ilosóico), uma teoria ou
classiicação das ciências (momento epistemológico) e uma reforma das instituições
políticas e morais (momento sociológico). Todos estes momentos devem ser sub-
metidos à Lei Fundamental do Progresso do Espírito Humano, consubstanciada na
evolução dos três estados que marcaram a existência dos homens: estado teológico,
estado metafísico e estado positivo, sendo este último a grande expressão da natu-
reza e cultura humanas:

“No estado teológico, o espírito humano, dirigindo essencialmente suas inves- 26


COmTE, augusto. Curso de Fi-
losoia Positiva. são paulo: abril
tigações para a natureza íntima dos seres, as causas primeiras e inais de todos os Cultural, 1983, p. 23.

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efeitos que o tocam, numa palavra, para os conhecimentos absolutos, apresenta os


fenômenos como produzidos pela ação direta e contínua de agentes sobrenaturais
mais ou menos numerosos, cuja intervenção arbitrária explica todas as anomalias
aparentes do universo.
No estado metafísico, que no fundo nada mais é do que simples modiicação ge-
ral do primeiro, os agentes sobrenaturais são substituídos por forças abstratas, verda-
deiras entidades (abstrações personiicadas) inerentes aos diversos seres do mundo, e
concebidas como capazes de engendrar por elas próprias todos os fenômenos obser-
vados, cuja explicação consiste, então, em determinara para cada um uma santidade
correspondente.
Enim, no estado positivo, o espírito humano reconhecendo a impossibilidade
de obter noções absolutas, renuncia a procurar a origem e o destino do universo, a
conhecer as causas íntimas dos fenômenos, para preocupar-se unicamente em desco-
brir, graças ao uso bem combinado do raciocínio e da observação, suas leis efetivas,
a saber, suas relações invariáveis de sucessão e similitude. A explicação dos fatos,
reduzida então a seus termos reais, se resume de agora em diante na ligação estabe-
lecida entre os diversos fenômenos particulares e alguns fatos gerais, cujo número o
progresso da ciência tende cada vez mais a diminuir.”27

Em linhas gerais, pode-se airmar que, no estado positivo, a crença (in)fundada


em agentes sobrenaturais e forças abstratas, próprias dos estados teológico e me-
tafísico, desaparece para dar lugar a uma nova crença: o poder da observação e da
razão que, combinadas, formam a base da ciência. Note-se a inluência de Hume
e de Kant, conforme admite o próprio Comte, na descrença em torno de um ab-
soluto ontológico ou mesmo na apropriação crítica da ciência, estabelecendo seus
limites e possibilidades, ou, ainda como quer Kant, na compreensão da ciência
como o resultado da articulação entre sentido e razão, com primazia normativa
desta última, pois é ela que determina o signiicado dos dados empíricos absorvidos
pelos sentidos. No estado positivo, é o conhecimento cientíico que determina a
verdade e os seus meios de produção. Por isso, Comte airma dois postulados epis-
temológicos básicos: 1) a negação de uma unidade absoluta intrínseca à realidade;
2) a airmação de uma relatividade histórica do conhecimento que está sempre em
progresso e se liga a dadas situações sociais.28 Com base nesses postulados, airma
três regras metodológicas essenciais para a ciência: 1) A busca do conhecimento
implica a delimitação de um objeto especíico de conhecimento; 2) O objeto – fe-
nômeno – deve ser estudado sistematicamente nas suas relações constantes de con-
comitância e sucessão, até que se encontre sua lei geral de funcionamento; e 3) A
descoberta cientíica da lei de funcionamento de um fenômeno, permite a previsão
racional de seu comportamento, como forma de controle, segundo o dogma da 27
COmTE, augusto. Ob. Cit., p. 4.
invariabilidade das leis naturais.29 Assim, o positivismo produz uma ilosoia da 28
COmTE, augusto. Discurso So-
bre o Espírito Positivo. são paulo:
ciência que possui como fundamento a observação que, no entanto, pressupõe: 1) abril Cultural, 1983, p. 63.
a possibilidade da objetividade do conhecimento; 2) uma organicidade própria dos 29
COmTE, augusto. Discurso
fenômenos que são sustentados por funções naturalmente determinadas; e 3) uma Preliminar Sobre o Conjunto do
Positivismo. são paulo: abril
harmonia intrínseca da realidade que decorre da organicidade dos fenômenos. Em Cultural, 1983, pp. 108-110.

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outras palavras, se tudo estiver em ordem, haverá o progresso, donde a crença que o
progresso decorre da ordem. Para garantir a ordem que produz progresso, a ciência
– com sua pluralidade de objetos e unidade metodológica – descobre as leis gerais
imutáveis da estática (ordem) e da dinâmica (progresso).30 Segundo o positivismo, é
exatamente isso que ocorre nas sociedades. Por isso a deinição da sociologia como
uma física social que investiga o fenômeno social como um dado objetivo e natural,
chegando às suas leis gerais imutáveis. No lugar da democracia, considerada por
Comte como sendo anarquista, e da aristocracia, considerada por ele reacionária,
propõe uma sociocracia fundada no conhecimento cientíico da sociedade e, por
isso, capaz de conduzir o espírito humano numa trajetória moral evoluída e verda-
deiramente livre. Para tanto, basta compreender que, consoante concepção positi-
vista, toda sociedade é formada por uma estática social e por uma dinâmica social,
sendo a primeira uma condição constante da sociedade que lhe garante a harmonia:
ordem; e sendo a segunda o resultado de suas leis gerais de evolução que lhe garante
o desenvolvimento: progresso. Nesse sentido, para uma boa existência da sociedade
e sua respectiva evolução, bastaria a implantação de um Estado sociocrata interven-
cionista que garantisse o funcionamento dos órgão sociais, assegurando a vitalidade
do organismo e evitando as disfunções socialmente patológicas que pudessem ou
impedir o progresso. Essa acepção positivista, que torna a política dependente da
ciência, também produz a idéia de que a política pode ser vista como uma técnica de
arranjo social, ocultando a questão fundamental das correlações de força e de busca
pelo poder, como se ciência e política fossem neutras, isentas de inluências ideoló-
gicas na busca e na realização de uma “verdade pura”. Michael Lövy explica como as
ciências sociais foram tomadas por este modelo epistemológico, sendo conduzidas
basicamente pelos seguintes princípios: 1) A sociedade é regida por leis naturais,
isto é, leis invariáveis, independentes da vontade e da ação humanas; na vida social,
reina uma harmonia natural; 2) A sociedade pode, portanto, ser epistemologica-
mente assimilada pela natureza e ser estudada pelos mesmos métodos e processos
empregados pelas ciências da natureza; 3) As ciências da sociedade, assim como as
da natureza, devem limitar-se à observação e à explicação causal dos fenômenos,
de forma objetiva, neutra, livre de julgamentos de valor ou ideologias, descartando
previamente todas as prenoções ou preconceitos.31 Todos esses aspectos foram, de
tal forma, enraizados na consciência epistemológica moderna que se expandiram
por todas as formas de conhecimento, inclusive pelo direito.

e o direito?
E
c De muitas formas o positivismo inluenciou o direito. Todo o 30
COmTE, augusto. Ob. Cit., p.
e
século XIX ,e a maior parte do século XX, foram hegemonizados por
le
113.
pconceitos positivistas de direito. Isso é o que será aprofundado nas 31
lÖWY, mchael. As Aventuras
aulas seguintes.
lidar com os problemas de insegura de Karl Marx Contra o Barão
de Münchhausen: marxismo e
positivismo na sociologia do co-
Aqui, deve-se apresentar ao nhecimento. são paulo: Cortez,
1994, p. 17.

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bibliOGrafia

Obrigatória

VERDENAL, René. A Filosoia Positivista de Augusto Comte. In: CHÂTELET,


François. História da filosofia. Lisboa: Dom Quixote, 1995.

complementar

COING, Helmut. Elementos fundamentais da filosofia do direito. Porto Alegre:


Sergio Antonio Fabris Editor, 2002. (Capítulo I. Principais Doutrinas da Fi-
losoia do Direito – Seção VIII A modernidade: positivismo e formalismo).

FGV DIREITO 52
EpIsTEmOlOGIa E mODERnIDaDE

aUla 11. modernidade e ideologia CientiFiCista

NOTA AO ALUNO

tema da aUla

Delimitações para a modernidade.

ObjetivOs da aUla

Introduzir o problema da modernidade no contexto do marco epistemológico a


partir da inluência do positivismo.

prepare-se para a aUla

Embora não seja pouco comum o recurso ao conceito de modernidade para


explicar ou mesmo adjetivar certas situações ou fenômenos, ainda não existem con-
sensos sólidos quanto ao signiicado da palavra. De um ponto de vista mais acadê-
mico, há muita diversidade quanto à deinição do que seja moderno ou moderni-
dade, sem embargo de certos elementos de análise que são comuns ao tema.32 De
um ponto de vista do senso comum, o moderno costuma se ligar ao conceito de
“modernização” (modernizar ou modernizado) que, por sua vez, se articula com a
idéia de eiciência, traduzindo uma intuição de que o moderno ou modernizado é
melhor do que aquilo que lhe antecedia. É assim, por exemplo, quando se fala em
modernizar o Estado ou modernizar uma empresa. Passa-se a idéia de que o Estado 32
Cf. TORaInE, alain. Crítica da
Modernidade. petrópolis: Vozes,
terá uma administração mais eiciente e a empresa uma produção mais eiciente. 1994; BaUman, Zygmunt. Mo-
Por si só, isso já oferece uma noção da força da modernidade que, como qualquer dernidade e Ambivalência. Rio
de Janeiro: Jorge Zahar Editor,
outra história, é sempre contada pelos vencedores. Trata-se, evidentemente, de um 1999; GIDDEns, anthony. As
conceito profundamente ideologizado. Consequências da Modernida-
de. são paulo: Unesp, 1991;
Buscando marcos para delimitar o período moderno, a historiograia costuma BERman, marshall. Tudo que
é Sólido Desmancha no Ar. são
apontar alguns acontecimentos históricos considerados como verdadeiras balizas. paulo: Cia das letras, 1986;
HaBERmas, Jürgen. O Discur-
Os fatos mais citados são a Reforma Protestante, a Revolução Industrial e a Revolu- so Filosóico da Modernidade.
ção Francesa. Uma reforma e duas revoluções, conforme os nomes já consagrados, lisboa: Dom Quixote, 1990;
CasTORIaDIs, Cornelius. As En-
evidenciam que a modernidade surge de uma profunda vocação para a ruptura e cruzilhadas do Labirinto I. Rio de
Janeiro: paz e Terra, 1987; san-
a mudança. A Reforma Protestante rompe com o tradicional monopólio da Igreja TOs, Boaventura de souza. Pela
Católica na formulação da doutrina cristã e institui uma nova relação entre os ho- Mão de Alice: o social e o político
na pós-modernidade. são paulo:
mens e Deus, manifestando a implicação teológica da modernidade. A Revolução Cortez, 1997; ROUanET, sergio
paulo. Mal-estar na Moderni-
Industrial rompe com a base produtiva do feudalismo e institui uma nova relação dade. são paulo: Cia das letras,
entre produção e comércio, manifestando a implicação econômica da moderni- 1993. para uma instigante visão
psicanalítica da modernidade
dade. A Revolução Francesa rompe com a estrutura estamental do Ancien Régime cf. plasTInO, Carlos alberto. O
e institui uma nova relação entre Estado e sociedade civil, manifestando a impli- Primado da Afetividade: a crítica
freudiana ao paradigma mo-
cação política da modernidade. Portanto, falar de modernidade é falar também derno. Rio de Janeiro: Relume
Dumará, 2001.

FGV DIREITO 53
EpIsTEmOlOGIa E mODERnIDaDE

e a um só tempo de teologia, economia e política, como conceitos que lhe são


fundamentais.
NoNo entanto, Hannah Arendt33, ao analisar a era moderna,
aponta
outros
outros dois fatos que considera determinantes: a des-
coberta da América e a invenção do telescópio. O primeiro
Américaem teoria, aquele otimismo cultural próprio da mo-
encarna,
dernidade,
teoria, agora desnudado sob a forma de um violento eu-
rocentrismo
desnudadoque buscou subjugar o Novo Mundo imaginando
poder reconstruir o paraíso terreno sem cometer os mesmos
subjugar
erros já praticados no Velho Mundo. Entre o sonho de Co-
lombo e a realidade daterreno
colonização/invasão, muitas vidas se perderam no quetalvez
tenha sido o maior genocídio da humanidade. O outro fato apontado por Hannah
Arendt, a invenção do telescópio, é sim o ícone maior e principal fundamento da
modernidade. Evidentemente, não se trata da invenção do telescópio isoladamente,
mas do seu desenvolvimento por Galileu Galilei e de todas as grandes transforma-
ções que se sucederam a partir daí. Dessa maneira, o telescópio é tomado como a
grande metáfora do pensamento que realmente revolucionou a tessitura ontológica
da sociedade ocidental a partir do século XVII: a ciência.
Portanto, se a idéia de modernida-
Portanto,
de está ligada às novas compreensões
modernidade
em
novas
torno de conceitos teológicos, po-
líticos
d e econômicos, é na categoria de
ciência/tecnologia
políticos que ela encontra seu
mais
c alto padrão de deinição, repre-
sentação
que ou expressão. Evidentemente,
toda
padrãoessa euforia epistemológica só foi
possível graças às sucessivas rupturas que foram se produzindo, sobretudo a partir
representação ou expressão. Evidentemente, toda essa
do século XVI, onde o humanismo renascentista produziu uma nova crença na
importância e na centralidade do ser humano. Se o próprio mundo não é mais
visto como um cosmo fechado, mas como um universo ininito, então o centro
pode estar em qualquer lugar, inclusive em cada indivíduo. Em todas as áreas do
conhecimento – economia, política, artes, medicina, geograia – o homem passa a
ser reconhecido como um protagonista que vai, paulatinamente, saindo da condi-
ção de “estar sujeito a” para situar-se na condição de “ser sujeito de”. Na verdade,
trata-se do próprio conceito de sujeito que é reinventado para designar aquele que
pratica a ação. Pratica a ação porque controla a ação, controla os fenômenos sociais
e, inclusive, os naturais. Tudo isso é possível porque o homem se destaca não apenas
como ser animal mas, sobretudo, como ser racional. É na racionalidade que reside
o poder do sujeito que, uma vez “esclarecido”, pode se libertar de todas as amarras
obscurantistas. Trata-se do próprio credo Iluminista, tão bem exposto por Kant:

“A ilustração é a saída do homem de sua menoridade, da qual ele é o próprio


responsável. A menoridade é a incapacidade de fazer uso do entendimento sem a 33
aREnDT, Hannah. A Condição
Humana. Rio de Janeiro: Foren-
condução de um outro. O homem é o próprio culpado dessa menoridade quando se Universitária, 1995, p. 260.

FGV DIREITO 54
EpIsTEmOlOGIa E mODERnIDaDE

sua causa reside não na falta de entendimento, mas na falta de resolução e coragem
para usá-lo sem a condução de um outro. Sapere aude! ‘Tenha coragem de usar seu
próprio entendimento’ – esse é o lema da ilustração.”34

Com o poder da razão, o sujeito passa a ser entendido como aquele que pode
conhecer e controlar a realidade mesma. A razão possibilita o cálculo e o discerni-
mento, tornando o sujeito livre e capaz, tanto no campo da ciência (cálculo) como
no campo da moral (discernimento). É a grande aspiração da autonomia que parece
realizar-se. O sujeito autônomo é capaz de responder por si mesmo e conduzir sua
vontade conforme seus interesses. Surge a igura do “sujeito de direito”, capaz para
exercer direitos e deveres inerentes à sua natureza e posição social. Impulsionada
por esse otimismo cultural, a modernidade começa a alicerçar as fundações de uma
nova ordem. Se num primeiro momento foi caracterizado pelo seu poder revolu-
cionário, neste segundo momento o pensamento moderno pode ser caracterizado
por um profundo conservantismo. Conservar é garantir a ordem, a nova ordem,
tomada como expressão maior das conquistas modernas. Na perspectiva da ordem
moderna, a sociedade é vista como um conjunto de conhecimentos que, uma vez
dominados pelo homem, garantem um caminho previsível e necessário aos acon-
tecimentos. Trata-se de uma espécie de sociedade epistemológica que “naturaliza” a
ordem social, controlando as ações humanas e fazendo com que os fenômenos so-
ciais-históricos sejam analisados como fenômenos naturais. Alain Touraine enfatiza
a dimensão ordenadora da ideologia modernista:

“Porque as sociedades onde se desenvolveram o espírito e as práticas da moder-


nidade procuravam mais pôr em ordem que pôr em movimento: organização do
comércio e das regras de câmbio, criação de uma administração pública e do Estado
de direito, difusão do livro, crítica das tradições, das proibições e dos privilégios. É a
razão, mais que o capital e o trabalho, que desempenha então o papel principal. Esses
séculos são dominados pelos legistas, ilósofos, escritores, todos homens do livro, e as
ciências observam, classiicam, ordenam para descobrir a ordem das coisas.”35

relações
A metafísica da ordem não é apenas a base das
explica políticas ou econômicas mais conhe-
ideologias
cidas,
a mas é o próprio fundamento da sociedade
moderna, estando presente desde as atividades
78
- TOURAINE, Alain. Crítica da Mode cientíicas ou técnicas até os modos de produção
79
- TOURAINE, Alain. Ob. Cit., p. 38. da cultura, difundindo-se por toda a vida social,
80
- As expressões “capitalismo” e “combuscando a idéia mais ampla de uma socieda-
econômica do que política, reservando as
de racional, comandando também a forma de
mais acentuadamente política do que econôm 34
KanT, Emanuel. O que é a
administrar os bens e as relações humanas. No- ilustração in WEFFORT, Francisco
(Org.). Os Clássicos da Política.
vamente, Alain Touraine explica como a razão Vol. 2, são paulo: Ática, 1993,
tornou-se a viga mestra de toda a atividade moderna, fazendo da racionalização o pp. 83-84.

único princípio de organização da vida pessoal e coletiva: “Às vezes, ela (a moder- TOURaInE, alain. Crítica da
35

Modernidade. petrópolis: Vozes,


nidade) imaginou a sociedade como uma ordem, uma arquitetura baseada sobre 1994, p. 36.

FGV DIREITO 55
EpIsTEmOlOGIa E mODERnIDaDE

o cálculo; às vezes ela fez da razão um instrumento ao serviço dos interesses e do


prazer dos indivíduos; e às vezes, inalmente, ela a utilizou como uma arma crítica
contra todos os poderes, para libertar uma ‘natureza humana’ que havia esmagado
a autoridade religiosa.”36 Entretanto, ocorre que, muito rapidamente, a lógica da
ordem transformou-se em ordem da lógica, e um certo logicismo passou a predo-
minar na visão de mundo moderna que, se por um lado desencantou a sociedade
do sagrado divino e da mão salvadora de Deus, por outro lado reencantou o mundo
com um tipo de “sagrado profano” produzido pelas mãos salvadoras do homem.
Essa espécie de divinização do homem é, na verdade, um tributo à deusa razão
que foi adotada como fundamento da ordem da lógica. Hegel, certamente, ainda
é um dos que melhor nos oferece uma boa compreensão do racionalismo típico da
modernidade,quando nos debruçamos, no prefácio do livro Princípios da Filosofia
do Direito, sobre sua famosa airmação: “o que é racional é real e o que é real é racio-
nal.”37 Nessa esteira de pensamento, toda ordem existente na sociedade só pode ser
racional, já que somente a razão é capaz de consubstanciar-se na história, como o
“eterno que é presente.”38 Eis que a razão se apresenta como consumadora de uma
ordem historicamente irresistível.

e o direito?
E
c Prepare-se para o debate estudando as formas possíveis de asso-
e
ciação
le entre direito e ordem. Leve em consideração a importância da
epistemologia positivista no âmbito da modernidade.
p
lidar com os problemas de insegura

Aqui, deve-se apresentar ao

bibliOGrafia

Obrigatória

TOURAINE, Alain. Crítica da Modernidade. Petrópolis: Vozes, 1994. (Primeira


DESCOBERTA
Parte – A Modernidade Triunfante: Capítulo 1 – As Luzes da Razão.)

complementar

ARENDT, Hannah. A Condição Humana. Rio de Janeiro: Forense Universitária,


1995. 36
TOURaInE, alain. Ob. Cit., p.
18.
PLASTINO, Carlos. O Primado da Afetividade. Rio de Janeiro: Relume Dumará,
37
HEGEl, Georg W. F. Princípios
2001. (Capítulo 1. A Psicanálise e a Questão do Paradigma). da Filosoia do Direito. lisboa:
Guimarães Editores, 1990, p.
13.
38
HEGEl, Georg W. F. Ob. Cit.,
p. 14. para uma boa análise cf.
VaZ, Henrique de lima. Escritos
de Filosoia II: ética e cultura.
são paulo: loyola, 1993, pp.
183-184.

FGV DIREITO 56
EpIsTEmOlOGIa E mODERnIDaDE

aUlas 12 e 13. os positiVismos JUrÍdiCos e a CiÊnCia do direito

NOTA AO ALUNO

tema da aUla

A inluência do positivismo na ciência moderna do direito.

ObjetivOs das aUlas

Apresentar as diferentes formas pelas quais o positivismo se apresenta no direito


e na idéia de “ciência do direito”.

prepare-se para as aUlas

A ciência do direito, conforme as premissas positivistas, se enquadra exatamen-


te nesse esquema, já que o próprio positivismo jurídico pode assim ser deinido.
Da mesma forma que o termo positivismo enseja confusões semânticas, a expressão
positivismo jurídico também é sujeita a ambigüidades. A primeira delas resulta da
sua contextualização no sistema jurídico. Para entender melhor: como é sabido, o
direito ocidental estrutura-se na forma de duas grandes famílias, ou sistemas jurí-
dicos: 1) o Sistema Romano-Germânico ou Civil Law; e o 2) Sistema da Common
Law. O primeiro se desenvolveu na Europa continental e hoje está presente na
maior parte do mundo, inclusive em alguns países orientais, como o Japão. Está
baseado essencialmente nas normas legisladas, tendo tomado impulso maior através
da técnica da codiicação. O segundo desenvolveu-se na Inglaterra e está presente
em boa parte dos países de língua inglesa. Está baseado nas decisões judiciais ou no
reconhecimento das cortes de justiça dado aos costumes e princípios praticados na
sociedade.39 Como foi dito, uma das ambigüidades do positivismo, no campo do
direito, resulta de um vício intelectual de muitos juristas do sistema romano-ger-
mânico, que tendem a confundir positivismo jurídico com legalismo. Donde muitos
ao ouvirem a palavra positivismo, logo pensam em “aplicação exata da lei”. Não que
esteja errada tal concepção, contudo, por ser reducionista, ela não explica correta-
mente o conceito e os avatares do positivismo jurídico.
Com efeito, diante das ambigüidades do positivismo jurídico, e para uma me-
lhor compreensão da idéia de ciência do direito – que se liga ao conceito de po- 39
Cf. DaVID, René. Os Grandes
sitivismo – o melhor é refazer os passos percorridos na deinição do positivismo. Sistemas do Direito Contem-
porâneo. são paulo: martins
Assim, se positivismo é a doutrina que airma o real em detrimento do transcendente Fontes, 1996; lEaDER, sheldon.
absoluto,positivismo jurídico é a doutrina do direito que airma a realidade jurídi- Common Law. In aRnaUD, an-
dré-Jean. (Org.) Dicionário En-
ca em detrimento do transcendente absoluto. Caracteriza-se, aqui, uma dicotomia ciclopédico de Teoria e de Socio-
logia da Direito. Rio de Janeiro:
inicial que é o cerne da abordagem positivista: a diferença entre um direito real e Renovar, 1999, p. 104.

FGV DIREITO 57
EpIsTEmOlOGIa E mODERnIDaDE

um direito ideal: “O direito, objeto da ciência jurídica, é aquele que efetivamente


se manifesta na realidade histórico-social; o juspositivista estuda tal direito real sem
se perguntar se além deste existe também um direito ideal (como aquele natural),
sem examinar se o primeiro corresponde ou não ao segundo e, sobretudo, sem fazer
depender a validade do direito real da sua correspondência com o direito ideal.”40
Nestes termos, a realidade jurídica corresponde ao “direito real”, enquanto o trans-
cendente absoluto corresponde ao “direito ideal”. Antes de qualquer coisa, o positi-
vismo jurídico é empirista e antimetafísico.41
Na deinição proposta para positivismo jurídico – doutrina do direito que afirma
a realidade jurídica em detrimento do transcendente absoluto – destacam-se, pois, os
termos dicotômicos: realidade jurídica como direito real versus transcendente abso-
luto como direito ideal. Este direito ideal é assim considerado num sentido moral,
portanto, como um direito perfeito e, por isso, superior ao direito real. Na tradição
jurídica, este direito eticamente superior é reconhecido como o direito natural, sen-
do considerado pelos positivistas como questão ilosóica, não podendo ser objeto
do trabalho dos juristas “cientíicos”. Temos, assim, uma clara e sólida perspectiva
do positivismo jurídico: trata-se, antes de mais nada, de uma doutrina antitética ao
direito natural ou jusnaturalismo.
Determinado que a realidade jurídica corresponde a uma exterioridade obser-
vável que deve ser objetivamente constatada, resta saber qual é, exatamente, esta
realidade ou exterioridade, pois a sua explicação precisa também deine o objeto
de estudo da ciência do direito. Esse objeto deve ser isolado dos demais aspectos
da realidade social e estudado profundamente para que possam ser conhecidas suas
características intrínsecas, independentemente de inluências externas. O que está
em questão é a própria concepção do jurídico que deve conformar o campo do
cientista do direito, tornando-o autônomo em relação ao ilósofo, ao economista,
ao sociólogo etc. Evidentemente, o jurídico deve ligar-se às normas do direito, seu
funcionamento e sua aplicação, de tal maneira que revele uma lógica inerente ao
direito que possa ser convertida pelo cientista em enunciados e prognósticos que
conformem uma técnica jurídica aplicável pela prática do direito.
Essa busca pelo jurídico como objeto da ciência do direito rendeu muita po-
lêmica entre os próprios positivistas, que nem sempre concordaram quanto à sua
delimitação exata. A única resposta capaz de paciicar os ânimos e manter coerência 40
BOBBIO, norberto. O Positivis-
doutrinária, foi a seguinte: o objeto de estudo da ciência do direito é o fenômeno ju- mo Jurídico: lições de ilosoia do
direito. são paulo: Ícone, 1995,
rídico. Apesar de vaga, a resposta se mantém irme na idéia de que a realidade jurídi- p. 136.
ca deve ser uma exterioridade observável, ou seja, um fenômeno; no caso, fenômeno 41
Cf. TROpER, michel. Positivis-
mo. In aRnaUD, andré-Jean.
jurídico. António Manuel Hespanha fala em “várias escolas positivistas”, alegando (Org.). Dicionário Enciclopédico
que cada uma delas entendeu de uma forma determinada o fenômeno jurídico de Teoria e de Sociologia da Di-
reito. Rio de Janeiro: Renovar,
como objeto positivo de estudo.42 De qualquer maneira, todos os positivismos ju- 1999, p. 607.
rídicos43 convergem para o entendimento de que o fenômeno jurídico corresponde 42
HEspanHa, antónio manuel.
Panorama Histórico da Cultura
ao direito vigente e aplicável, determinado no tempo e no espaço. Jurídica Européia. portugal [s.l.]:
O positivismo jurídico, como doutrina cientiicista acerca do direito – ou a ciên- publicações Europa-américa,
1998, p. 174.
cia do direito como manifestação metodológica do positivismo jurídico – reúne as 43
Cf. BaTIFFOl, Henri. Ob. Cit.,
seguintes premissas básicas: a) recusa a toda forma de subjetivismo ou moralidade; pp. 7-50.

FGV DIREITO 58
EpIsTEmOlOGIa E mODERnIDaDE

b) cultivo de métodos objetivos e veriicáveis; c) exclusão de considerações valora-


tivas de caráter político ou ético; d) produção de um corpo próprio de enunciados
técnicos para aplicação especíica em situações pertinentes.44 Destarte, todos os teó-
ricos do positivismo jurídico se ajustam a estas premissas, ao mesmo tempo em que
aceitam que o fenômeno jurídico corresponde ao direito vigente, ao direito positi-
vo. Todavia, o conceito de direito, resultante da observação do fenômeno jurídico,não
é consenso. Em outras palavras, todos os positivismos jurídicos concordam que o
fenômeno jurídico corresponde ao direito positivo. Mas o que conforma o direito
positivo? Historicamente, foram várias as correntes positivistas que se formaram
a partir de concepções especíicas acerca da idéia de direito e fenômeno jurídico,
algumas com maior outras com menor projeção. Porém, quatro correntes podem
ser apontadas como as mais importantes: legalismo, historicismo, sociologismo e nor-
mativismo.
Embora bem distintas entre si – basta imaginar como, mesmo em casos seme-
lhantes, seria a diferença entre a sentença prolatada por um juiz sociologista e aquela
outra por um juiz legalista, por exemplo – todas essas correntes são positivistas, pois
se enquadram naquela deinição geral onde se destacam dois critérios: 1) airmação
da realidade jurídica como fenômeno jurídico; 2) negação do direito natural como
transcendência metafísica. Além disso, todas esta correntes se sustentam sobre os
dois princípios básicos e fundantes do positivismo jurídico: força e forma, isto é, o
direito (positivista) visto na sua maneira pura de manifestação, o fenômeno jurí-
dico, corresponde a uma ameaça ou imposição real de uma força que se apresenta
sob determinada forma. Em outras palavras, o direito é um constrangimento que se
impõe a indivíduos e grupos, sendo aceito na medida em que se expressa dentro de
formas, rituais ou procedimentos socialmente estabelecidos, quer espontaneamente
pela coletividade, quer artiicialmente pelo Estado.
A primeira das correntes positivistas citadas, o historicismo jurídico, consubstan-
ciado, basicamente, na Escola Histórica do Direito, sob a liderança de Savigny, é
sem
A dúvida a mais polêmica quanto ao seu caráter positivista.
Há aqueles que chegam a negar que seja uma forma de posi-
jurídico
tivismo, como Norberto Bobbio, ao airmar que “escola histó-
e positivismo jurídico não são a mesma coisa”45; todavia, no
Direito,
rica
mesmo
quanto passo, Bobbio reconhece uma espécie de vinculação
entre
que
ambos: “...contudo, a primeira [escola histórica] preparou
o segundo [positivismo jurídico] através N
afirmar
de sua crítica radical do direito natural.”46 França
C
mesNo início do século XIX, mais preci- histórico
samente na França em 1804, entrou em vigor o novo Código c

Civil, conhecido como Código de Napoleão. Este fato históri- b


44
HEspanHa, antónio manuel.
co foi o marco para o surgimento da nova corrente positivista: jurídico”.
deOb. Cit., p. 175.
o legalismo jurídico. A sua forma básica é a lei manifestada sob p 45 BOBBIO, norberto. O Positivis-
o rótulo de “código jurídico”. Como airmado, o paradigma d mo Jurídico: lições de ilosoia do
direito. são paulo: Ícone, 1995,
desta forma de positivismo foi o Código de Napoleão, que d
p. 45.
e
pretendeu regular de maneira absoluta a totalidade das situ- c
46
Idem.

maneira mecânica, conforme a

FGV DIREITO 59
EpIsTEmOlOGIa E mODERnIDaDE

ações juridicamente relevantes na sua área de abrangência. A principal forma de


consubstanciação do legalismo foi a Escola da Exegese, na França do século XIX.
Transportada para o mundo jurídico, a investigação socio-
praticadas
lógica identiica o direito na forma do fato ou costume para que
os
brota diretamente do seio social. Para o sociologismo jurí-
47
a uma
dico, o direito corresponde às práticas sociais que se formam
espontaneamente, cabendo à lei reletir tais práticas.
O sociologismo jurídico enfrentou fortes críticas, especial-
mente daqueles que identiicavam o direito especialmente
como um fenô-
meno normativo, portanto, não passível de ser procurado no
fenômeno
mundo dos fatos, na medida em que estes dizem respeito às
coisas como elas são e não, necessariamente, como mundo
devemdosser.
Esse foi o caso de Kelsen, fundador e representante maior de uma das formas mais
inluentes do positivismo jurídico: o normativismo. Para esta corrente, a forma bási-
ca do direito é a norma, que não se reduz à lei, como disposta nos códigos. A norma
jurídica é ato de vontade da autoridade estatal competente e vai desde a Constitui-
ção até as sentenças judiciais que coniguram norma jurídica aplicável ao caso con-
creto. As normas são válidas desde que promulgadas pela autoridade competente
em concordância com outras normas hierarquicamente superiores do ordenamento
jurídico.
necessaria
Essas quatro formas de positivismo reivindicam para si,
cada uma a seu modo, o estatuto de ciência, acreditando te-
fundador
rem elaborado uma teoria cientíica do direito capaz de forne-
influentes
cer enunciados, previsões e prognósticos acerca do conjunto
corrente,
das situações juridicamente relevantes. Apesar de todas serem
à
positivistas, no sentido aqui descrito, e se enquadrarem na
mesma
vontade obsessão cientiicista, existem signiicativas diferenças
entre elas.
ConstituiçãoTalvez a principal destas diferenças resida no fato
do legalismo e do normativismo buscarem o fundamento de
jurídica
validade do direito na idéia de vigência, ou seja, é válida a
que promulgadas
norma jurídica desdepela
que tenha entrado em vigor conforme determinado no pró-
prio ordenamento jurídico. Isso porque o historicismo e o sociologismo buscam
o fundamento de validade do mesmo direito na idéia de efetividade ou eicácia
social, ou seja, é válida a norma jurídica quando conforme as tradições e costumes
da sociedade. No primeiro caso – legalismo e normativismo – podemos falar numa 47
Uma interessante manifes-
tação do sociologismo jurídico
epistemologia mais idealista ou formalista e no segundo caso – historicismo e so- aparece na obra de Eugen Ehr-
ciologismo – numa epistemologia mais realista ou materialista. Enquanto para os lich, importante sociólogo do
direito alemão, ao airmar no
primeiros os legisladores ocupam papel de destaque na cena jurídica, para os segun- prefácio de seu livro que “tam-
bém em nossa época, como em
dos são os juizes que desempenham esse papel, pois traduzem nos casos concretos o todos os tempos, o fundamental
direito que emerge da sociedade. Esse aspecto coincide com a vinculação dessas for- no desenvolvimento do direito
não está no ato de legislar nem
mas de positivismo com os sistemas jurídicos romano-germânico e da common law: na jurisprudência ou na aplica-
ção do direito, mas na própria
enquanto o legalismo e o normativismo são típicos do primeiro sistema, o histori- sociedade.” EHRlICH, Eugen.
cismo e o sociologismo são mais afeitos ao segundo. Já em termos de lexibilidade, Fundamentos da Sociologia do
Direito. Brasília: EdUnb, 1986,
temos uma mudança nos pares, pois enquanto o historicismo e o legalismo tendem p. 7.

FGV DIREITO 60
EpIsTEmOlOGIa E mODERnIDaDE

a maior dureza e conservadorismo, o sociologismo e o normativismo já admitem


maior mobilidade no conteúdo das normas jurídicas. O conservadorismo do histo-
ricismo se explica pelo fato das tradições serem sempre muito arraigadas na cultura
dos povos, só mudando após irme e convicta resistência de muitos anos. Já no caso
do legalismo, resulta da igura dos “códigos”, que são sempre promulgados como
obras acabadas e completas para terem longa estabilidade. Na situação inversa, de
maior grau de lexibilidade, o sociologismo é sem dúvida o mais dinâmico já que as
práticas sociais estão em constante mutação. A dinamicidade do normativismo se
explica pela liberdade da vontade do legislador que pode a todo momento modiicar
as normas jurídicas, além de serem reconhecidos os diversos níveis hierárquicos do
Estado competentes para legislar.
Com efeito, a questão da “ciência do direito” foi enfrentada durante os séculos
XIX e XX sob a inluência maior do positivismo e, por isso mesmo, essas formas de
positivismos jurídicos apresentadas foram as respostas mais veementes já produzidas
no âmbito da epistemologia jurídica e da ilosoia do direito. Todas negam o direito
natural e airmam a realidade jurídica como um fenômeno observável,mas diver-
gem quanto à explicação em torno do que seja, exatamente, o fenômeno jurídico,
isto é, a forma observável do direito.

bibliOGrafia

Obrigatória

BATIFFOL, Henri. A Filosofia do Direito. Lisboa: Editorial Notícias, [s.d.]. (Ca-


pítulo I. Os Positivismos.)
HESPANHA, António Manuel. Panorama Histórico da Cultura Jurídica Euro-
péia. Portugal: Publicações Europa-América, 1998. (Capítulo 8. O Direito
na Época Contemporânea – Seção 8.2.3. Positivismo e Cientismo; e Seção
8.3. As Escolas Clássicas do século XIX).

complementar

MIAILLE, Michel. Introdução Crítica ao Direito. Lisboa: Editorial Estampa,


1989. (Primeira Parte – Epistemologia e Direito).

FGV DIREITO 61
EpIsTEmOlOGIa E mODERnIDaDE

JosÉ riCardo CUnHa


Doutor em Filosoia do Direito pela Universidade Federal de santa Catarina.
mestre em Teoria do Estado e Direito Constitucional pela pUC-Rio e Bacharel
em Direito pela UFRJ. professor adjunto e Coordenador da Graduação da
Escola de Direito do Rio de Janeiro da Fundação Getúlio Vargas. professor
adjunto da Faculdade de Direito UERJ, onde leciona na graduação, mestrado
e doutorado. leciona e pesquisa nas áreas de Filosoi a do Direito e
Direitos Humanos. membro da associação Brasileira de Ensino do
Direito; do Conselho nacional de pesquisa e pós-Graduação em Direito;
e da associação nacional de pós-Graduação e pesquisa em Direitos
Humanos. autor de livros e artigos em revistas especializadas nas
temáticas de Filosoi a e Teoria do Direito, Direitos Humanos e Direitos
da Criança e do adolescente.

FGV DIREITO 62
EpIsTEmOlOGIa E mODERnIDaDE

FICHA TÉCNICA

Fundação Getulio Vargas

Carlos Ivan Simonsen Leal


PRESIDENTE

FGV DIREITO RIO


Joaquim Falcão
DIRETOR
Fernando Penteado
VICE-DIRETOR Da GRaDUaÇÃO
Sérgio Guerra
VICE-DIRETOR DE pÓs-GRaDUaÇÃO
Luiz Roberto Ayoub
pROFEssOR COORDEnaDOR DO pROGRama DE CapaCITaÇÃO Em pODER JUDICIÁRIO
Ronaldo Lemos
COORDEnaDOR CEnTRO DE TECnOlOGIa E sOCIEDaDE
Evandro Menezes de Carvalho
COORDEnaDOR Da GRaDUaÇÃO
Rogério Barcelos Alves
COORDEnaDOR DE mETODOlOGIa E maTERIal DIDÁTICO
Lígia Fabris e Thiago Bottino do Amaral
COORDEnaDOREs DO nÚClEO DE pRÁTICa JURÍDICa
Wania Torres
COORDEnaDORa DE sECRETaRIa DE GRaDUaÇÃO
Diogo Pinheiro
COORDEnaDOR DE FInanÇas
Milena Brant
COORDEnaDORa DE maRKETInG EsTRaTÉGICO E planEJamEnTO

FGV DIREITO RIO 63

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