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Crônica e Conto

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Disciplina: Língua Portuguesa

Profa. Letícia Alcantara


Leia os textos abaixo, com atençao, buscando compreender, alem de seu cortaria. “E a trepadeira!”, afirmou o Adamastor, com aquele pequeno gozo
conteudo, sua forma. sadomasoquista de quem acredita que o proprio sofrimento e fruto unica e
exclusivamente do prazer alheio e que, uma vez exterminada a alegria do outro,
Brilhante, Adamastor seu incomodo cessara, na triste matematica dos egoístas, onde so existe a soma
Antonio Prata
zero.
Este ano o verao demorou a chegar e parece querer compensar o atraso
Pois bem, meu amigo chamou nao um nem dois, mas tres engenheiros.
trabalhando dobrado. Subo a Angelica de carro e vejo um amigo a pe, pela
Todos disseram, na frente do Adamastor, que a trepadeira e inocente. Que a
calçada. Ele sua, bufa e resmunga qualquer coisa, provavelmente contra o sol, a
umidade vem do chao, do lado da casa do querelante, mas Adamastor nao aceita
gravidade, nossa condiçao bípede, Deus e todos os santos. Dou uma buzinada,
e, 15 dias atras, ao abrir a porta, Ivo encontrou, alem da trepadeira, uma
abro o vidro, pergunto aonde vai, diz que ao forum de Pinheiros. Vou para perto,
intimaçao judicial. Adamastor esta levando a trepadeira aos tribunais. Nao lhe
ofereço uma carona. Ele salta pra dentro do carro e logo fico sabendo que sua
importam a engenharia, a botanica, a logica. O negocio e pessoal. Com seu nome
infelicidade tem menos a ver com verao do que com o vizinho, um sujeito de
de gigante e sua alma de gnomo, ele vai ate o fim, ate arrancar a trepadeira, ate
maus bofes chamado Adamastor.
deixar o mundo um pouquinho pior e poder gozar, em sua toca umida e abafada,
Meu amigo e educado e pacífico. Nao cito seu nome, pois e reu num
o triunfo de sua mediocridade. Brilhante, Adamastor.
processo aberto pelo tal Adamastor no Tribunal de Pequenas Causas; nao quero
prejudica-lo. Vamos chama-lo de Ivo, nome que me parece adequado a um PRATA, Antonio. Brilhante, Adamastor. Folha de S.Paulo, Sao Paulo, 8 fev. 2012. Caderno Cotidiano. Disponível em:
folha.uol.com.br/fsp/cotidiano/24685-brilhante-adamastor.shtml. Acesso em: 23 ago. 2023.
sujeito educado e pacífico. Assim como Adamastor cabe perfeitamente a um
homem ignorante e agressivo — e vejam a coincidencia, pois Adamastor e
mesmo o nome do vizinho, que faço questao de citar para que se cubra de
infamia. Adamastor. Adamastor. Adamastor.
Ivo mora numa casa terrea. A casa fica de lado pra rua, de frente pra um
jardinzinho comprido e prum muro de quatro metros de altura. Do outro lado
do muro vive o Adamastor, mas Ivo nunca se lembra disso ao abrir a porta, todas
as manhas, pois entre o Adamastor e meu amigo, alem do muro, ha uma enorme
trepadeira, uma tela verde de 4×10 metros, que o proprio Ivo plantou faz uma
decada, e ali esta a embelezar sua vista e purificar o ar da cidade.
Se todos tivessem trepadeiras como a do Ivo, talvez nao fizesse tanto calor.
Talvez o verao nao demorasse a chegar nem estivesse trabalhando dobrado.
Talvez ainda houvesse garoa. Talvez o mundo estivesse salvo. Mas o mundo nao
esta salvo, ha menos trepadeiras do que sujeitos feito o Adamastor que, vejam
so, encasquetou que a planta deixa sua casa umida e que o Ivo precisa arranca-
la.
Eu disse que o Ivo era educado e pacífico. Nao minto. Quando o
Adamastor apareceu, trazendo o cunhado para intimidar, meu amigo ouviu
calmamente sua queixa. Disse que ia chamar um engenheiro capaz de dizer se
a trepadeira era a culpada pela umidade e, caso se confirmasse a suspeita, ele a
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Profa. Letícia Alcantara
O Discípulo percorrem as ruas como tamanduas mecanicos, ou pequenos elefantes
Oscar Wilde
crapofilos, sugando os dejetos. Eles nao dao conta. Talvez sentindo-se
desafiados, os cachorros aumentaram sua produçao. Ja houve a sugestao de que
Quando Narciso morreu o lago de seu prazer mudou de uma taça de aguas
se alargasse a boca do aspirador e, em vez do coco, se sugassem os cachorros.
doces para uma taça de lagrimas salgadas, e as oreades vieram chorando pela
mata com a esperança de cantar e dar conforto ao lago. Os parisienses nao acham graça. Amam seus cachorros com uma devoçao cada
E quando elas viram que o lago havia mudado de uma taça de aguas doces vez mais difícil de tolerar. Eu, por exemplo, ja perdi qualquer simpatia que tinha
para uma taça de lagrimas salgadas, elas soltaram as verdes tranças de seus por esses incontinentes.
cabelos e clamaram: "Nos entendemos voce chorar assim por Narciso, tao belo Quando vejo um cachorro na rua tento adivinhar, pelo tamanho ou a sua
ele era." cara, que peças no caminho eram da sua autoria. Elas rivalizam, na variedade
"E Narciso era belo?", disse o lago. de dimensoes e configuraçoes, com os doces expostos nas vitrines das
"Quem pode sabe-lo melhor que voce?", responderam as oreades. "Por "patisseries". Imagino que cada cachorro tenha, por assim dizer, a sua
nos ele mal passava, mas voce ele procurava, e deitava em suas margens e assinatura, o seu estilo de sujar as calçadas, e noto em muitas das suas obras
olhava para voce, e no espelho de suas aguas ele refletia sua propria beleza." aquela arrogancia no acabamento de quem desdenha a crítica e nao teme a
E o lago respondeu, "Mas eu amava Narciso porque, quando ele deitava retribuiçao. Preciso me controlar para nao gritar "Salaud!" na cara deles. E sair
em minhas margens e olhava para mim, no espelho de seus olhos eu via minha correndo antes que o dono me pegue, claro.
propria beleza refletida”. Disponível em: joonline.jex.com.br. Acesso em 23 ago. 2023.

WILDE, O. O discí pulo. In: WILDE, O. Poemas em prosa e Salomé. Rio de Janeiro: Ediouro, 2001. p. 33 E tinha a cabeça cheia deles
Marina Colasanti
Cachorros!
Luis Fernando Verissimo
Todos os dias, ao primeiro sol da manha, mae e filha sentavam-se na
Paris e tao bonita que voce anda na rua olhando para todos os lados soleira da porta. E deitada a cabeça da filha no colo da mae, começava esta a
menos para onde pisa. Os cachorros de Paris vao a toda parte com seus donos, catar-lhe piolhos.
comem nos mesmos restaurantes, participam ativamente da sua vida social, Os dedos ageis conheciam sua tarefa. Como se vissem, patrulhavam a
frequentam vernissages e palestras, mas o convívio civilizado nao afetou seus cabeleira separando mechas, esquadrinhando entre os fios, expondo o claro
habitos de higiene, que continuam iguais aos de cachorros de todo o mundo. azulado do couro. E na alternancia ritmada de suas pontas macias, procuravam
Ha, provavelmente, mais cachorros por habitantes em Paris do que em os minusculos inimigos, levemente arranhando com as unhas, em carícia de
qualquer grande cidade do mundo. O resultado desta combinaçao de fatores e cafune.
que seu deslumbramento com Paris e constantemente interrompido pela Com o rosto metido no escuro pano da saia da mae, vertidos os cabelos
sensaçao deslizante de ter pisado numa das características menos atraentes, e sobre a testa, a filha deixava-se ficar enlanguescida, enquanto a massagem
mais comuns, das suas calçadas. Voce esta admirando a fachada de uma igreja tamborilada daqueles dedos parecia penetrar-lhe a cabeça, e o calor crescente
antiga e - iush - passa, em segundos, do barroco ao rococo. Os parisienses ja da manha lhe entrefechava os olhos.
calcularam, com rigor cartesiano, a quantidade de "merde, alors!" depositada Foi talvez devido a modorra que a invadia, entrega prazerosa de quem se
nas ruas pelos cachorros dos seus concidadaos. Chega a toneladas anuais. submete a outros dedos, que nada percebeu naquela manha – a nao ser, talvez,
Instituíram patrulhas catacoco, motociclos verdes munidos de aspiradores que uma leve pontada – quando a mae, devassando gulosa o secreto reduto da nuca,
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segurou seu achado entre polegar e indicador e, puxando-o ao longo do fio O conto e uma narrativa geralmente curta, em que as açoes das
negro e lustroso em gesto de vitoria, extraiu-lhe o primeiro pensamento. personagens se desenvolvem a partir de um unico motivo. Motivo e o nome que
Disponível em: marina-colasanti.blogspot.com.br/2011/11/e-tinha-cabeca-cheia-deles.html. Acesso em: 23 ago.
2023.
se da ao evento que desencadeia as açoes da personagem protagonista. No caso
de O discípulo, essas características sao bastante evidentes: a narrativa e curta
GLOSSARIO e todas as açoes sao desencadeadas pelo fato da morte de Narciso.
Querelante: aquele que e queixoso; reivindicador.
Oreades: ninfas. Sendo um genero marcado pelo modo de organizaçao da narrativa, o
Vernissage: evento cultural e comemorativo para a abertura (primeiro dia) de uma conto tem narrador (quem conta a historia), personagens, e as açoes que se
exposiçao artística.
passam em determinados momentos (tempo) e em determinados lugares
Merde, alors: excremento.
Crapofilos: especie de fungos que se desenvolvem no excremento. (espaço).
Incontinente: que nao se controla.
Patisseries: padarias
Quanto ao narrador, nos contos O discípulo e E tinha a cabeça cheia deles,
Enlanguescida: tornar-se languido; perder as forças. as historias sao contadas por alguem que nao participa delas (quer dizer, o
Modorra: desejo de dormir. narrador nao e personagem do conto). Ha diferentes possibilidades de se trazer
Devassar: invadir; espreitar. um narrador para a historia: ha aqueles que participam da historia, sao
narradores-personagens, e podem ser tanto protagonistas como coadjuvantes
(estes costumam narrar a historia como se fossem testemunhas, nao sabendo
Observando os textos lidos, você consegue identificar a qual gênero necessariamente tudo o que acontece ou acontecera); ha ainda narradores que,
textual cada um pertence? Por quê? embora nao sejam personagem da historia, so sabem o que se passa na mente
___________________________________________________________________ de determinadas personagens, mas nao de todas, enquanto outros sabem de
tudo – presente, passado e futuro. E ha ate historias em que o narrador se
___________________________________________________________________ “disfarça”, “esconde-se” e se confunde com personagens: ao lermos historias
___________________________________________________________________ assim, temos a impressao de que nao ha ninguem que a conta…

___________________________________________________________________ Outra característica do conto e o numero de personagens: ha poucas


personagens em geral, e todas se envolvem nas mesmas açoes, desencadeadas
___________________________________________________________________
pelo unico motivo da historia. Isso e bem evidente na historia de Oscar Wilde
___________________________________________________________________ — todas as personagens se envolvem nas açoes da morte de Narciso. Ja no conto
de Colasanti, temos a mae e a filha.
___________________________________________________________________
___________________________________________________________________ O objetivo da personagem protagonista representa o objeto de desejo
dessa personagem. Em muitos contos, as açoes empreendidas pela personagem
___________________________________________________________________ principal podem se complicar, sobretudo quando a fazem se afastar de seu
___________________________________________________________________ objeto de desejo.

___________________________________________________________________ Quando o conflito chega a um ponto maximo, o conto atinge seu clímax: a
partir daí, nao ha qualquer outra açao que complique ainda mais a situaçao.

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Resolvido o conflito, bem perto do final do conto, uma nova situaçao se a finalidade da cronica e chamar a atençao dos leitores para o fato, convidando-
estabelece e poe fim a historia: e o momento do desfecho ou desenlace. os a refletir sobre ele e a tirar suas proprias conclusoes. Nisto, ela se aproxima
tambem dos generos da esfera literaria, em que sempre se busca um
Ha varias modalidades de contos: contos de terror e misterio, contos de
engajamento ativo da parte do leitor, seja na interpretaçao, seja na construçao
fadas, contos maravilhosos, contos de aventura, contos policiais etc. Em cada
dos sentidos (“construçao colaborativa” de sentidos entre autor e leitor).
uma delas, podemos verificar essas características expostas aqui e algumas
outras, particulares a organizaçao de cada historia.
Ja os textos do genero crônica, como Brilhante, Adamastor e Cachorros! Leia esta definição de crônica:
distinguem-se claramente dos contos, embora tenham alguns pontos em
comum com esse genero. A principal diferença e que a crônica esta diretamente Se levar a palavra ao pé da letra e destrinchar o radical grego chrono, tempo,
vinculada ao jornalismo, ou seja, a atividade discursiva da comunicaçao de fatos você vai chegar à aborrecida definição que o dicionário dá pra crônica: “Compilação
de natureza predominantemente nao ficcional. Isso voce pode notar pelo de fatos históricos apresentados segundo a ordem de sucessão no tempo”. Isso
motivo de Brilhante, Adamastor e Cachorros!: esses textos parecem ter como pode até ter acontecido, e querem alguns que a carta de Pero Vaz de Caminha foi
base um acontecimento real. nossa primeira matéria no gênero. No início da história que nos interessa, a crônica
que surge na relação com a imprensa, os primeiros autores recebiam como missão
Outra diferença entre a crônica e o conto e que este ultimo e um genero escrever um relato dos fatos da semana. Eram os chamados “folhetins”. Aos poucos
em que predomina nitidamente uma organizaçao narrativa do discurso a tarefa foi entregue a penas geniais como a de Machado de Assis, na virada para o
(situaçao inicial, complicaçao, desenvolvimento da complicaçao, clímax e
século XX, e o gênero, sem pigarrear, sem subir à tribuna, ganhou cara própria.
desfecho); por sua vez, a cronica e mais livre (nao tem organizaçao textual
Passou a refletir com estilo, refinamento literário aparentemente despretensioso,
muito definida: ate certo ponto, pode assumir uma forma proxima do conto, um
o que ia pelos costumes sociais. Narrava o comportamento das tribos urbanas, o
genero literario de ficçao, ou de generos jornalísticos, como a notícia, ou ainda
crescimento das cidades, o duelo dos amantes e tudo mais que se mexesse no
de generos relatoriais, como a carta etc.). Uma de suas características mais
caminhar da espécie sobre esse vale de lágrimas. Eis a crônica moderna [...] Ela é a
marcantes e a fusao de narrativa com a expressao de opinioes e ideias. Por isso
primeiríssima paixão pelas letras, através dos jornais, de um povo com pouco
apresenta uma mistura de fatos, opiniao e impressoes pessoais do enunciador,
e pode estar ligada tanto a expressao de fatos baseados em eventos reais como acesso aos livros.
a expressao ficcional. FERREIRA DOS SANTOS, Joaquim (Org.). As cem melhores crônicas brasileiras. Rio de Janeiro:
Objetiva, 2007. p. 16 e 20.
A linguagem de uma crônica tambem tem características híbridas, que
fazem dela um genero que circula tanto na esfera jornalística como na esfera
literaria: ela combina elementos característicos dos generos da esfera literaria
Agora que você conhece um pouco mais sobre crônica e conto, volte à questão da
(por exemplo, o uso expressivo das palavras, a linguagem figurada, o trabalho
com as figuras de linguagem) com elementos da linguagem jornalística (uma página 3 e verifique se você identificou corretamente.
busca pela objetividade e pela concisao). Tambem nao e possível confundirmos
a crônica com a notícia: a finalidade da notícia e noticiar um fato, ao passo que

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