Crônica e Conto
Crônica e Conto
Crônica e Conto
WILDE, O. O discí pulo. In: WILDE, O. Poemas em prosa e Salomé. Rio de Janeiro: Ediouro, 2001. p. 33 E tinha a cabeça cheia deles
Marina Colasanti
Cachorros!
Luis Fernando Verissimo
Todos os dias, ao primeiro sol da manha, mae e filha sentavam-se na
Paris e tao bonita que voce anda na rua olhando para todos os lados soleira da porta. E deitada a cabeça da filha no colo da mae, começava esta a
menos para onde pisa. Os cachorros de Paris vao a toda parte com seus donos, catar-lhe piolhos.
comem nos mesmos restaurantes, participam ativamente da sua vida social, Os dedos ageis conheciam sua tarefa. Como se vissem, patrulhavam a
frequentam vernissages e palestras, mas o convívio civilizado nao afetou seus cabeleira separando mechas, esquadrinhando entre os fios, expondo o claro
habitos de higiene, que continuam iguais aos de cachorros de todo o mundo. azulado do couro. E na alternancia ritmada de suas pontas macias, procuravam
Ha, provavelmente, mais cachorros por habitantes em Paris do que em os minusculos inimigos, levemente arranhando com as unhas, em carícia de
qualquer grande cidade do mundo. O resultado desta combinaçao de fatores e cafune.
que seu deslumbramento com Paris e constantemente interrompido pela Com o rosto metido no escuro pano da saia da mae, vertidos os cabelos
sensaçao deslizante de ter pisado numa das características menos atraentes, e sobre a testa, a filha deixava-se ficar enlanguescida, enquanto a massagem
mais comuns, das suas calçadas. Voce esta admirando a fachada de uma igreja tamborilada daqueles dedos parecia penetrar-lhe a cabeça, e o calor crescente
antiga e - iush - passa, em segundos, do barroco ao rococo. Os parisienses ja da manha lhe entrefechava os olhos.
calcularam, com rigor cartesiano, a quantidade de "merde, alors!" depositada Foi talvez devido a modorra que a invadia, entrega prazerosa de quem se
nas ruas pelos cachorros dos seus concidadaos. Chega a toneladas anuais. submete a outros dedos, que nada percebeu naquela manha – a nao ser, talvez,
Instituíram patrulhas catacoco, motociclos verdes munidos de aspiradores que uma leve pontada – quando a mae, devassando gulosa o secreto reduto da nuca,
2
Disciplina: Língua Portuguesa
Profa. Letícia Alcantara
segurou seu achado entre polegar e indicador e, puxando-o ao longo do fio O conto e uma narrativa geralmente curta, em que as açoes das
negro e lustroso em gesto de vitoria, extraiu-lhe o primeiro pensamento. personagens se desenvolvem a partir de um unico motivo. Motivo e o nome que
Disponível em: marina-colasanti.blogspot.com.br/2011/11/e-tinha-cabeca-cheia-deles.html. Acesso em: 23 ago.
2023.
se da ao evento que desencadeia as açoes da personagem protagonista. No caso
de O discípulo, essas características sao bastante evidentes: a narrativa e curta
GLOSSARIO e todas as açoes sao desencadeadas pelo fato da morte de Narciso.
Querelante: aquele que e queixoso; reivindicador.
Oreades: ninfas. Sendo um genero marcado pelo modo de organizaçao da narrativa, o
Vernissage: evento cultural e comemorativo para a abertura (primeiro dia) de uma conto tem narrador (quem conta a historia), personagens, e as açoes que se
exposiçao artística.
passam em determinados momentos (tempo) e em determinados lugares
Merde, alors: excremento.
Crapofilos: especie de fungos que se desenvolvem no excremento. (espaço).
Incontinente: que nao se controla.
Patisseries: padarias
Quanto ao narrador, nos contos O discípulo e E tinha a cabeça cheia deles,
Enlanguescida: tornar-se languido; perder as forças. as historias sao contadas por alguem que nao participa delas (quer dizer, o
Modorra: desejo de dormir. narrador nao e personagem do conto). Ha diferentes possibilidades de se trazer
Devassar: invadir; espreitar. um narrador para a historia: ha aqueles que participam da historia, sao
narradores-personagens, e podem ser tanto protagonistas como coadjuvantes
(estes costumam narrar a historia como se fossem testemunhas, nao sabendo
Observando os textos lidos, você consegue identificar a qual gênero necessariamente tudo o que acontece ou acontecera); ha ainda narradores que,
textual cada um pertence? Por quê? embora nao sejam personagem da historia, so sabem o que se passa na mente
___________________________________________________________________ de determinadas personagens, mas nao de todas, enquanto outros sabem de
tudo – presente, passado e futuro. E ha ate historias em que o narrador se
___________________________________________________________________ “disfarça”, “esconde-se” e se confunde com personagens: ao lermos historias
___________________________________________________________________ assim, temos a impressao de que nao ha ninguem que a conta…
___________________________________________________________________ Quando o conflito chega a um ponto maximo, o conto atinge seu clímax: a
partir daí, nao ha qualquer outra açao que complique ainda mais a situaçao.
3
Disciplina: Língua Portuguesa
Profa. Letícia Alcantara
Resolvido o conflito, bem perto do final do conto, uma nova situaçao se a finalidade da cronica e chamar a atençao dos leitores para o fato, convidando-
estabelece e poe fim a historia: e o momento do desfecho ou desenlace. os a refletir sobre ele e a tirar suas proprias conclusoes. Nisto, ela se aproxima
tambem dos generos da esfera literaria, em que sempre se busca um
Ha varias modalidades de contos: contos de terror e misterio, contos de
engajamento ativo da parte do leitor, seja na interpretaçao, seja na construçao
fadas, contos maravilhosos, contos de aventura, contos policiais etc. Em cada
dos sentidos (“construçao colaborativa” de sentidos entre autor e leitor).
uma delas, podemos verificar essas características expostas aqui e algumas
outras, particulares a organizaçao de cada historia.
Ja os textos do genero crônica, como Brilhante, Adamastor e Cachorros! Leia esta definição de crônica:
distinguem-se claramente dos contos, embora tenham alguns pontos em
comum com esse genero. A principal diferença e que a crônica esta diretamente Se levar a palavra ao pé da letra e destrinchar o radical grego chrono, tempo,
vinculada ao jornalismo, ou seja, a atividade discursiva da comunicaçao de fatos você vai chegar à aborrecida definição que o dicionário dá pra crônica: “Compilação
de natureza predominantemente nao ficcional. Isso voce pode notar pelo de fatos históricos apresentados segundo a ordem de sucessão no tempo”. Isso
motivo de Brilhante, Adamastor e Cachorros!: esses textos parecem ter como pode até ter acontecido, e querem alguns que a carta de Pero Vaz de Caminha foi
base um acontecimento real. nossa primeira matéria no gênero. No início da história que nos interessa, a crônica
que surge na relação com a imprensa, os primeiros autores recebiam como missão
Outra diferença entre a crônica e o conto e que este ultimo e um genero escrever um relato dos fatos da semana. Eram os chamados “folhetins”. Aos poucos
em que predomina nitidamente uma organizaçao narrativa do discurso a tarefa foi entregue a penas geniais como a de Machado de Assis, na virada para o
(situaçao inicial, complicaçao, desenvolvimento da complicaçao, clímax e
século XX, e o gênero, sem pigarrear, sem subir à tribuna, ganhou cara própria.
desfecho); por sua vez, a cronica e mais livre (nao tem organizaçao textual
Passou a refletir com estilo, refinamento literário aparentemente despretensioso,
muito definida: ate certo ponto, pode assumir uma forma proxima do conto, um
o que ia pelos costumes sociais. Narrava o comportamento das tribos urbanas, o
genero literario de ficçao, ou de generos jornalísticos, como a notícia, ou ainda
crescimento das cidades, o duelo dos amantes e tudo mais que se mexesse no
de generos relatoriais, como a carta etc.). Uma de suas características mais
caminhar da espécie sobre esse vale de lágrimas. Eis a crônica moderna [...] Ela é a
marcantes e a fusao de narrativa com a expressao de opinioes e ideias. Por isso
primeiríssima paixão pelas letras, através dos jornais, de um povo com pouco
apresenta uma mistura de fatos, opiniao e impressoes pessoais do enunciador,
e pode estar ligada tanto a expressao de fatos baseados em eventos reais como acesso aos livros.
a expressao ficcional. FERREIRA DOS SANTOS, Joaquim (Org.). As cem melhores crônicas brasileiras. Rio de Janeiro:
Objetiva, 2007. p. 16 e 20.
A linguagem de uma crônica tambem tem características híbridas, que
fazem dela um genero que circula tanto na esfera jornalística como na esfera
literaria: ela combina elementos característicos dos generos da esfera literaria
Agora que você conhece um pouco mais sobre crônica e conto, volte à questão da
(por exemplo, o uso expressivo das palavras, a linguagem figurada, o trabalho
com as figuras de linguagem) com elementos da linguagem jornalística (uma página 3 e verifique se você identificou corretamente.
busca pela objetividade e pela concisao). Tambem nao e possível confundirmos
a crônica com a notícia: a finalidade da notícia e noticiar um fato, ao passo que