IVo Garrido
IVo Garrido
IVo Garrido
O caso de Moçambique
Outubro 2020
In partnership with
Este estudo foi conduzido no âmbito da componente sobre Moçambique do programa
Desenvolvimento Económico e Instituições (EDI), financiado com o apoio do UK Aid do
Governo do Reino Unido em colaboração com o programa Crescimento Inclusivo em
Moçambique (IGM), financiado pelos Governos da Finlândia, Noruega e Dinamarca. A Directoria
do Programa EDI inclui as seguintes instituições que trabalham em parceria: Oxford Policy
Management, University of Namur, Paris School of Economics e Aide à la décision économique.
Resumo: Este texto tem por objectivo central mostrar o impacto que as instituições têm no
desempenho do sector da Saúde em Moçambique. No texto demonstra-se que, de entre os
Determinantes Sociais da Saúde, as instituições têm um papel central no desempenho do sector da
Saúde — e, por seu intermédio, no desenvolvimento económico e social — dos moçambicanos,
em especial dos mais pobres e mais vulneráveis, como as crianças, as mulheres, as pessoas com
deficiência e os idosos. Argumenta-se também que as deficiências e ineficiências do funcionamento
do sector da Saúde em Moçambique resultam em larga medida do facto de as instituições com
influência no sector da Saúde serem controladas por uma minoria de privilegiados que não dá a
prioridade devida às necessidades básicas em saúde da maioria da população. Finalmente,
argumenta-se que as medidas de carácter institucional mais importantes para a melhoria do estado
de saúde dos moçambicanos são a revisão da Constituição da República, o reforço do Sistema
Nacional de Saúde (em particular do Serviço Nacional de Saúde) e a redução da pobreza e das
iniquidades económica e social.
Palavras-chave: Estado, Medicina Tradicional, Moçambique, Pobreza, Saúde
Classificação JEL: I15, N37, O15
Nota: Esta é a versão original em Português. The translated working paper in English is available
here.
Nelson Mandela
1 Perspectiva geral
1.1 Introdução
Moçambique é um país com cerca de 800.000 km2 de superfície, situado na região oriental e austral
de África, e que se tornou independente em 1975, após cerca de cinco séculos de colonialismo
português.
A partir de 1976 (menos de um ano após a proclamação da Independência), e até 1992, o País foi
assolado por uma guerra que provocou a destruição em grande escala da frágil infra-estrutura
económica e social do País e vitimou mais de 5 milhões de moçambicanos, dos quais cerca de 1
milhão perderam a vida e 4 milhões foram forçadamente deslocados dos seus lugares de residência
(Pim & Kristensen 2007).
Assim, em 1992, ano em que terminou a guerra, Moçambique era o país mais pobre do mundo,
com um PIB per capita de apenas 354 USD (2011 PPP) (Gradin & Tarp 2019).
O crescimento económico verificado em Moçambique a partir de 1995 levou a uma redução dos
níveis de pobreza, tendo o PIB per capita triplicado em apenas 25 anos (Gradin & Tarp 2019).
Apesar desse crescimento económico, Moçambique continua sendo um dos países mais pobres e
menos desenvolvidos do mundo.
De acordo com dados de 2017, Moçambique tem um PIB per capita de 1.136 USD e um Índice de
Desenvolvimento Humano de 0,437, ocupando a 180.ª posição entre 189 países (UNDP 2018).
O padrão de crescimento económico que vem levando à redução da pobreza ocorreu, e ocorre,
simultaneamente com um aumento das desigualdades económicas e sociais.
Essas crescentes desigualdades económicas e sociais têm lugar num país com prévias desigualdades
entre áreas urbanas e rurais e entre regiões (Norte, Centro e Sul).
4
1.2 Conceito de Saúde e de Determinantes Sociais da Saúde
De acordo com a Organização Mundial da Saúde (OMS), Saúde é um estado de completo bem-estar físico,
mental e social e não apenas a ausência de doença ou enfermidade (OMS 2006).
Tal significa que uma pessoa pode não estar doente no entendimento comum das pessoas (isto é,
não ter febre, nem diarreia, nem tosse, nem dores de cabeça e ir trabalhar todos os dias) e mesmo
assim não gozar de boa saúde.
Dito de outra forma, a maior parte do fardo das doenças, assim como as desigualdades de saúde
— que existem em todos os países —, derivam das condições em que as pessoas nascem, vivem,
trabalham e envelhecem.
Para a Organização Mundial da Saúde, Determinantes Sociais da Saúde são as condições sociais em que as
pessoas vivem e trabalham (OMS, s.d.).
Alguns exemplos de Determinantes Sociais da Saúde são — para além da qualidade e acessibilidade
dos serviços e dos cuidados de saúde — a quantidade e a qualidade de alimentos que a pessoa
ingere regularmente, a qualidade da água e do saneamento a que tem acesso, as condições de
habitação e de transporte, o nível educacional, o ambiente de trabalho, o consumo ou não de
tabaco, álcool e outras drogas e o estado de saúde mental de cada indivíduo e comunidade.
Um dos mais importantes Determinantes Sociais da Saúde são as instituições dum país ou duma
comunidade. Instituições são as regras de jogo (formais ou informais) que se espera que sejam
seguidas pelos actores políticos, económicos e sociais do país ou da comunidade.
Cada sociedade funciona com um conjunto de regras políticas, económicas e sociais criadas pelo
Estado e pelos cidadãos colectivamente.
No presente texto, iremos abordar especificamente o papel das instituições no estado de saúde dos
moçambicanos.
1.3 Breve historial dos serviços de saúde em Moçambique antes e depois de 1975
5
Período anterior à Independência 1
Apesar da chegada dos portugueses a Moçambique ter ocorrido nos finais do século XV, a
organização pelo poder colonial de serviços de saúde em todos os então Distritos (actuais
Províncias) data apenas do século XIX, com a edificação das primeiras infra-estruturas sanitárias
e da criação de normas para o seu funcionamento.
Por volta de 1898, o sistema de saúde colonial estava organizado em 11 distritos sanitários,
possuindo cada distrito um hospital civil e um hospital militar.
O sistema de saúde criado pelo Governo colonial português em Moçambique, e que prevaleceu
até 1975, estava concentrado nas cidades e vilas onde vivia a maioria dos colonos. Era um sistema
fragmentado, baseado em hospitais e priorizando a medicina curativa (em detrimento da promoção
da saúde e da prevenção da doença). Finalmente, era estruturado de forma racista.
Nas áreas rurais, onde até 1975 residiam 85% dos moçambicanos, a maioria da população vivia a
mais de 20 km da unidade sanitária mais próxima.
Esta situação levava a que — em caso de doença — a larga maioria dos moçambicanos recorresse
quase que exclusivamente aos praticantes de medicina tradicional.
Esta acção será orientada pela política da FRELIMO de colocar a saúde ao serviço
do Povo.
Será criado um Serviço Nacional de Saúde único para servir todos os sectores da
população, independentemente do grupo étnico, do nível económico e social ou
da religião.
1
Gulube (1996).
6
No Serviço Nacional de Saúde a acção preventiva e a acção curativa devem estar
totalmente integradas ao nível da base, tendo contudo sempre em conta que a
prevenção deve ter prioridade sobre a cura. A educação sanitária e o saneamento
do meio terão um papel preponderante na acção do Ministério.
Foram dados passos significativos no sentido da eliminação do carácter fragmentado e racista dos
serviços de saúde.
Edificaram-se centenas de novas unidades sanitárias, a grande maioria nas áreas rurais.
Começou a ser implementada uma política de saúde que, no essencial, seria consagrada três anos
mais tarde pela OMS, com a designação de Cuidados de Saúde Primários.
De referir que desde os primeiros dias da Independência surgiu o debate em torno da saúde como
direito versus a capacidade financeira do Estado para garantir esse direito. Foi no contexto desse
debate que, em 1977 — aquando da aprovação da Lei da Medicina Gratuita 2 —, o Governo
restringiu a gratuitidade dos cuidados de saúde às acções de prevenção da doença, passando as
actividades curativas a ser pagas, embora a preços muito baixos.
Nesse processo — e não obstante o imenso entusiasmo quer da população, quer dos trabalhadores
de saúde — a maior dificuldade residia na extrema carência de a) recursos humanos de todos os
tipos e a todos os níveis e b) recursos financeiros.
Além do Serviço Nacional de Saúde, foram criados o Serviço de Saúde Militar e o Serviço de Saúde
Paramilitar, na dependência do Ministério de Defesa Nacional (o primeiro) e do Ministério do
Interior (o segundo).
Nos estabelecimentos prisionais existiam, e existem, unidades de saúde geridas actualmente pelo
Ministério da Justiça.
Mais de metade da rede sanitária das áreas rurais entrou em colapso, com consequências dramáticas
para a saúde de milhões de moçambicanos, em especial crianças, mulheres e velhos.
2
Lei n.º 2/77, de 27 de Setembro de 1977.
7
A instabilidade político-militar e a subsequente crise económica foram agravadas quando, a partir
de 1987, as chamadas instituições de Breton Woods (Banco Mundial e Fundo Monetário
Internacional) impuseram ao Governo de Moçambique políticas económicas que levaram a uma
redução drástica das despesas públicas, incluindo a provisão de cuidados de saúde gratuitos para a
maioria dos cidadãos.
Com a assinatura dos Acordos de Paz de Roma, em 4 de Outubro de 1992, terminou a guerra.
Foi também criado o Conselho Nacional de Combate ao HIV/SIDA (CNCS), o qual é presidido
pelo Primeiro-Ministro.
Deve, no entanto, salientar-se que, devido à pobreza generalizada, o sector de medicina privada
cobre menos de 5% da população.
3
Lei que autoriza a prestação de cuidados de saúde por pessoas singulares ou colectivas de direito privado com carácter
lucrativo ou não.
8
4. as organizações socioprofissionais como a Ordem dos Médicos, a Ordem dos Enfermeiros
e a Associação Médica de Moçambique, que se consideram parte do Sistema Nacional de
Saúde.
O Serviço Nacional de Saúde depende directamente do Ministério da Saúde e é de longe o maior
provedor dos cuidados de saúde aos cerca de 29 milhões de moçambicanos. Compreende quatro
Hospitais Centrais (cada um com mais de 600 camas), sete Hospitais Provinciais (entre 250 e 350
camas), dois Hospitais Psiquiátricos, pouco menos de cinco dezenas de Hospitais distritais e 1.585
Centros e Postos de Saúde espalhados por todos os distritos e localidades do País. Emprega mais
de 90% dos trabalhadores de saúde de Moçambique.
O subsistema privado está dividido em a) privado com fins lucrativos e b) privado com fins não
lucrativos. O sector privado com fins lucrativos está concentrado nas cidades (sobretudo na capital,
Maputo) e compreende dois hospitais (ambos na cidade de Maputo), algumas dezenas de clínicas,
consultórios médicos, farmácias, laboratórios e serviços de imagiologia.
O sector privado com fins lucrativos dedica-se quase exclusivamente a actividades curativas.
O subsistema privado com fins não lucrativos integra organizações religiosas e organizações não
governamentais (ONG) na sua maioria estrangeiras e financiadas directamente pelos chamados
parceiros de cooperação (doadores). Integra ainda postos de saúde nalgumas grandes empresas
públicas e privadas e em estabelecimentos educacionais, como a Universidade Eduardo Mondlane.
Assim se explica que, em Moçambique, ainda existam pessoas que nascem, crescem e morrem
socorrendo-se unicamente da medicina tradicional para os seus cuidados de saúde. Este facto, dum
lado, deve-se à ainda fraca cobertura geográfica do Serviço Nacional de Saúde e, doutro lado, à
ligação intrínseca existente entre a medicina tradicional e os aspectos identitários dos seus
utilizadores.
Durante o período colonial, a medicina tradicional era considerada como um não saber ou como
um saber superficial, supersticioso e de índole folclórica.
9
Logo após a proclamação da Independência, o Governo de Moçambique reconheceu a
importância da medicina tradicional. Com efeito, no n.º 7 do artigo 38 do primeiro Decreto-Lei
do Governo (Decreto-Lei n.º 1/75, de 29 de Julho de 1975), lê-se: “Impulsionar a investigação
médica e farmacológica, e em particular os estudos sobre a medicina tradicional”.
Desde então, a medicina tradicional tem vindo a ganhar espaço e valorização na política de
Governo. Em 1977, foi criado, no Ministério da Saúde, o Gabinete de Estudos de Medicina
Tradicional.
Em 2010, foi extinto o Gabinete de Estudos de Medicina Tradicional e, em seu lugar, criado, no
Ministério de Saúde, o Instituto de Medicina Tradicional 4.
Apesar dos avanços citados, a realidade é que é ainda pouco o que se conhece da medicina
tradicional moçambicana.
Tabela 1: O que se sabe sobre a prática da Medicina Tradicional
Parteiras
tradicionais.
Curandeiros que
praticam a
adivinhação.
4
Diploma Ministerial n.º 52/2010, do Ministério da Saúde, de 23 de Março de 2010.
10
1.6 Caracterização do estado de saúde dos moçambicanos em 2019
O estado de saúde da maioria dos moçambicanos é precário. O fardo de doenças é muito elevado.
Predominam as doenças infecciosas endémicas como a malária, a tuberculose, a SIDA, as infecções
respiratórias, as doenças diarreicas (incluindo a cólera) e as parasitoses intestinais e vesicais, estando
as três últimas intimamente ligadas à problemática do acesso à água potável e ao saneamento do
meio.
Moçambique figura entre os cinco países do mundo com maior prevalência de tuberculose (551
casos/100.000 habitantes contra uma média mundial de 140 casos/100.000 habitantes) e entre os
10 países do mundo com maior prevalência da SIDA. Dados referentes a 2015 indicam que a
prevalência da SIDA na população de 15 a 49 anos era de 13,2%, sendo 15,4% nas mulheres versus
10,1% nos homens, e 16,8% nas zonas urbanas versus 11,0% nas zonas rurais (Ministério da Saúde,
INE et al. 2013; Ministério da Saúde, INE et al. 2018).
A cólera é endémica, com surtos praticamente todos os anos, variando apenas a região do País
onde eclode.
Um estudo efectuado entre 2005 e 2007 e englobando mais de 80.000 crianças em idade escolar
revelou a ocorrência generalizada de infecção da bexiga por Schistosoma haematobium (prevalência
nacional de 47%) e de helmintíases intestinais (prevalência nacional de 53,5%) (Augusto et al.
2009).
Dados do Relatório Anual de 2019 da UNICEF, intitulado A Situação Mundial da Infância 2019:
Crianças, Alimentação e Nutrição (UNICEF 2019) indicam que Moçambique tem uma das mais altas
taxas de malnutrição infantil do mundo (43% das crianças menores de cinco anos sofrem de
desnutrição crónica e 8% de desnutrição aguda). A desnutrição crónica aumenta a taxa de morbi-
mortalidade em crianças menores de cinco anos e diminui a capacidade cognitiva. O mesmo
relatório revela que, pela primeira vez em muitos anos, Moçambique notificou casos de pelagra,
uma doença ligada à deficiência de niacina (vitamina B3).
Outros indicadores que reflectem uma deficiente situação nutricional entre os moçambicanos são
os seguintes (Ministério da Saúde, INE et al. 2013; Ministério da Saúde, INE et al. 2018):
• 14% dos bebés cujo peso à nascença foi registado nasceram com menos de 2,5 kg (baixo
peso);
• 64% de crianças de idade inferior a cinco anos e 54% de mulheres grávidas sofrem de
anemia;
• em 2011, somente 45% das famílias inquiridas consumiam sal iodado;
11
• em 2015, a taxa de aleitamento materno exclusivo era de apenas 55%.
Moçambique figura entre os países do mundo com as mais altas taxas de natalidade (cinco filhos
por mulher fértil) e de mortalidade bruta (11,8/1000 habitantes) e com um baixo nível de esperança
de vida (53,7 anos). A mortalidade materna (452/100.000 nados vivos) e a mortalidade infantil
(68/1.000 nados vivos) são também muito elevadas (INE 2019).
Como anteriormente referido, instituições são as regras de jogo (formais ou informais) que se
espera que sejam seguidas pelos actores políticos, económicos e sociais.
Apesar do que está escrito na Constituição, Moçambique ainda está longe de ser um Estado de
Direito.
12
• Apesar de legislado na Constituição da República 5 (artigos 89 e 116) e na Carta dos Direitos
e Deveres do Doente 6 e propalado, o direito dos cidadãos à saúde não está clarificado, nem
é suficientemente protegido.
No Serviço Nacional de Saúde — e em clara violação do n.º 4 do artigo 116 da Constituição
— os cidadãos são discriminados pelo Estado numa base socioeconómica.
Em todos os Hospitais Centrais e Provinciais (menos um) existem Clínicas Especiais,
Consultas Especiais e quartos particulares vedados a quem não consegue pagar os valores
estipulados. De salientar que a existência e funcionamento destas Clínicas Especiais,
Consultas Especiais e quartos particulares não tem base legal. Todas as tentativas de
encerramento das ditas Clínicas Especiais, Consultas Especiais e restantes Serviços
Especiais têm sido frustradas devido à resistência ligada aos interesses conjugados da classe
médica (de um lado) e das elites política e económica (de outro).
Mesmo nos serviços considerados gratuitos por lei, os cidadãos são frequentemente
submetidos a cobranças ilícitas.
• O envolvimento dos cidadãos e das comunidades na gestão e na monitoria das actividades
do Sector de Saúde é muito débil. Apesar de existirem documentos normativos sobre a
ligação entre o Sector de Saúde e as comunidades, a norma é não haver prestação de contas
aos cidadãos sobre as actividades da Saúde. Os cidadãos pouco ou nada sabem sobre o
orçamento anual do sector de saúde, desde o processo da sua elaboração, às prioridades
na alocação de recursos e à forma como esses recursos são gastos.
Esta é uma das razões que explica que no orçamento do Ministério da Saúde a alocação
privilegie:
a) os órgãos centrais e provinciais em detrimento dos órgãos distritais, onde decorre
a atenção primária de saúde;
b) os gastos sobretudo em acções de tipo curativo em detrimento das acções de
promoção da saúde e de prevenção da doença; e
c) os gastos supérfluos da burocracia (viagens ao exterior com as correspondentes
ajudas de custo, reuniões dispendiosas em hotéis e estâncias turísticas, aquisição de
viaturas para dirigentes) em detrimento da aquisição de medicamentos, material e
equipamento médico e ambulâncias que iriam melhorar a qualidade dos cuidados
de saúde.
• Em especial nas áreas rurais — e devido a temerem represálias — os cidadãos têm receio
de denunciar quaisquer desmandos dos trabalhadores de saúde, como, por exemplo, o
absentismo, o incumprimento do horário de atendimento, os maus tratos e as cobranças
ilícitas.
Mais de 40 anos após a proclamação da Independência, o Serviço Nacional de Saúde ainda não
cobre todo o território nem responde às necessidades básicas de todos os cidadãos, quer nas
cidades e vilas, quer nas áreas rurais. Conforme anteriormente referido, as causas são três:
5
Constituição da República de Moçambique, 2018.
6
Aprovada pela Resolução n.º 73/2007 do Conselho de Ministros, de 18 de Dezembro de 2007.
13
a) o legado colonial;
b) a destruição de centenas de unidades sanitárias durante a guerra que dilacerou o País entre
1976 e 1992; e
c) a dificuldade em avançar mais rapidamente quer na reposição das infra-estruturas
destruídas, quer na edificação de novas infra-estruturas devido à falta de recursos humanos
e a constrangimentos de ordem financeira.
• têm repercussão negativa na vida das populações das vilas e áreas rurais (as quais vêem a
sua segurança física ameaçada e as suas actividades económicas paralisadas);
• afectam negativamente as actividades do sector de Saúde e conduzem à estagnação ou ao
retrocesso de muitos dos indicadores de saúde. Dois exemplos concretos desse impacto
negativo são a cessação temporária de actividades de promoção de saúde e de prevenção
da doença;
• em última instância, põem em causa a legitimidade do Estado, quer porque o Estado não
consegue proteger os cidadãos, quer porque não garante a provisão em quantidade e com
qualidade de serviços básicos de saúde, água potável, saneamento básico, educação, etc.
Desde 1975, o Governo de Moçambique tem, no geral, delineado boas políticas para o Sector de
Saúde. O grande problema reside na fraca capacidade do Estado para garantir a implementação de
tais políticas. As manifestações dessa deficiente implementação são múltiplas, sendo de destacar
as seguintes:
A falta de recursos humanos de todos os tipos — desde médicos até serventes, passando por
enfermeiros, farmacêuticos, laboratoristas, imagiologistas, especialistas em gestão, especialistas em
manutenção, administradores hospitalares, etc., — é, a par do subfinanciamento crónico, a maior
fraqueza do Serviço Nacional de Saúde.
Nenhuma unidade sanitária (desde o mais modesto centro de saúde ao maior Hospital Central)
possui recursos humanos em quantidade suficiente.
A maioria dos escassos recursos humanos existentes, e, em especial, os que trabalham nas unidades
sanitárias, estão desmotivados e com baixa moral, pois auferem salários baixos, carecem de
condições de trabalho básicas (equipamento, medicamentos, alimentação, fardamento, etc.) e têm
de atender um grande (e sempre crescente) número de doentes.
Desde 1975 que o sector da saúde enfrenta o problema de falta de dinheiro para cobrir quer as
despesas de funcionamento (salários, combustíveis para transportes, aquisição de medicamentos e
14
de outros consumíveis, etc.) quer as despesas de investimento (construção de novas unidades
sanitárias, aquisição de equipamentos, etc.). Em 2001, a OMS publicou o documento Macroeconomics
And Health: Investing in Health for Economic Development, no qual se demonstrava que o mínimo
necessário em qualquer país para que o sector de saúde garanta a provisão de serviços básicos se
situava entre 30 e 40 dólares americanos por habitante por ano. Isto significa que, em 2019,
Moçambique deveria ter despendido cerca de mil milhões de dólares americanos por forma a
assegurar que o sector de saúde funcionasse com um mínimo de qualidade. A realidade é que,
desde 1975, o montante alocado ao Serviço Nacional de Saúde (que tem a responsabilidade pelos
cuidados de saúde de, pelo menos, 90% dos moçambicanos) nunca atingiu sequer a cifra de 25
dólares americanos por habitante por ano. Assim, é claro que Moçambique encara um problema
de subfinanciamento crónico do sector de saúde. Este subfinanciamento crónico põe em causa o
direito dos moçambicanos à saúde, previsto na Constituição, e levou, e leva, a que o Governo —
sob pressão do Banco Mundial — optasse, e continue a optar, por soluções para suprir esse défice
financeiro, como as taxas de utilizadores (user fees) e outras formas de co-pagamento imediato que
penalizam a larga maioria dos moçambicanos. O que se acaba de escrever está claramente exposto
no documento da OMS (2010) intitulado Health Systems Financing: the Path to Universal Coverage, no
qual se enfatiza que a cobertura universal da saúde só se tornará realidade quando, e onde, os
cidadãos tiverem acesso a serviços de saúde de qualidade (promoção, prevenção, tratamento,
reabilitação e cuidados paliativos) sem receio de serem irremediavelmente arrastados para a
pobreza.
Ainda mais trágico é o facto de a gestão dos escassos recursos financeiros ser deficiente. É muito
frequente que os recursos financeiros alocados a um determinado período não sejam utilizados na
sua totalidade, quer por incompetência quer por negligência dos gestores. O exemplo mais patente
é o do Fundo Global para o Combate à SIDA, à Malária e à Tuberculose.
Uma das fraquezas do Sistema de Saúde moçambicano e, em especial, do seu subsistema mais
importante (o Serviço Nacional de Saúde) é a insuficiente cobertura geográfica, sobretudo nas
áreas rurais, onde vivem cerca de 2/3 dos moçambicanos.
Apesar de, desde 1975, o Governo ter edificado mais de 1.000 Centros de Saúde, sobretudo nas
áreas rurais, estes ainda são insuficientes para a procura. Assim se explica que ainda hoje haja
moçambicanos que têm de percorrer a pé 10 ou mais quilómetros para chegarem à unidade
sanitária mais próxima.
Em mais de 70% dos 154 distritos, não existe um hospital com aparelho de Rx e/ou um laboratório
e/ou uma sala de operações.
Paralelamente, em mais de 40% dos distritos não existe uma farmácia, seja pública ou privada.
15
Outros aspectos negligenciados da Política de Cuidados de Saúde Primários são o envolvimento
comunitário e a cooperação intersectorial.
É sabido que, quanto maior for o envolvimento dos cidadãos e das comunidades na planificação
e monitoria das actividades do Sector de Saúde, bem como na gestão corrente das actividades das
unidades sanitárias, maior será a satisfação dessas comunidades e mais cuidadosos e responsáveis
serão os trabalhadores de saúde. Em Moçambique, os exemplos de envolvimento comunitário são
escassos e consistem essencialmente em esporádicas reuniões de auscultação dos utentes de uma
minoria de unidades sanitárias.
Por outro lado — e como anteriormente referido —, o estado de saúde de uma comunidade
depende de factores como quantidade e qualidade de alimentos disponíveis, aprovisionamento de
água potável, saneamento do meio ambiente, qualidade da habitação, acesso a ensino e educação
de qualidade, transportes fiáveis e a preços acessíveis, factores esses que estão sob a
responsabilidade de outros sectores que não o da Saúde. Daí que a melhoria do estado de saúde
de uma comunidade dependa, em larga medida, da cooperação entre diferentes sectores do
Governo a todos os níveis e entre o Governo Central e os órgãos locais de governação. A isso se
chama cooperação intersectorial. Em Moçambique — e a despeito de reuniões regulares do
Conselho de Ministros —, os Ministérios funcionam isoladamente uns dos outros, como silos.
Idêntica situação se verifica aos níveis provincial, distrital e municipal. É essa praticamente
inexistente coordenação intersectorial que explica o estado embrionário em que se encontram,
entre outros, a Saúde Escolar, a Saúde dos Trabalhadores e a área de Higiene da Água e dos
Alimentos.
Iniquidades em Saúde
Iniquidades em saúde são desigualdades de saúde entre grupos populacionais, que, além de
sistemáticas e relevantes, são também injustas e evitáveis.
Eis alguns exemplos dessas iniquidades (Observatório da Equidade [Ministério da Saúde 2010]):
16
cumpridos na íntegra. A qualidade da gestão de recursos humanos, de recursos financeiros, de
medicamentos e artigos médicos, de transportes, etc., é fraca, o que gera muitas ineficiências. O
mesmo acontece com a manutenção de infra-estruturas e de equipamentos.
Os hospitais e as restantes unidades sanitárias têm métodos de gestão e administração muito pouco
eficientes. As práticas de administração hospitalar são, no essencial, as mesmas que vigoravam na
altura da Independência. Embora tenham sido introduzidos computadores nos hospitais, eles
destinam-se sobretudo ao uso dos dirigentes e de alguns funcionários. Não existe um único
hospital completamente informatizado e com os diferentes sectores ligados em rede. A gestão dos
processos clínicos dos pacientes, das consultas externas, da farmácia, dos laboratórios, da cozinha,
da lavandaria, dos transportes, etc., é feita com base em papéis. O mesmo sucede com a
manutenção de qualquer equipamento hospitalar. Esta gestão e esta administração arcaicas não só
contribuem para a fraca qualidade de cuidados de saúde, como também para práticas corruptas
protagonizadas por trabalhadores de saúde.
O Estado moçambicano tem uma fraca capacidade de regulação da actividade dos restantes
provedores dos serviços de saúde. Eis alguns exemplos:
Corrupção
Corrupção é o uso indevido do poder confiado a alguém para a obtenção de benefício privado
(Transparency International, s.d. [b]).
Moçambique está entre os países considerados mais corruptos do mundo. De acordo com o
Corruption Perceptions Index 7 (que avalia a percepção dos cidadãos sobre a corrupção no sector
público), publicado pela Transparency International, em 2019 Moçambique ocupava o 146.º lugar
entre 180 países, com um índice de 26 (sendo 100 = very clean e 0 = highly corrupt). De referir que,
em 2013, Moçambique tinha um índice de 30, o que significa que a percepção sobre a corrupção
está a aumentar (Transparency International s.d. [a]).
7
(Transparency International 2020).
17
Hoje, em Moçambique, a corrupção deixou de ser um desvio comportamental, para passar a ser
algo ‘normal’.
O sector da Saúde está entre os considerados mais corruptos, a par, entre outros, do das Obras
Públicas, do da Educação, do da Polícia e dos organismos da Justiça.
• cobranças ilícitas tanto nas unidades sanitárias como nos órgãos de direcção do Ministério
da Saúde;
• pagamento de salários a funcionários ‘fantasma’;
• roubo de medicamentos e artigos médicos a todos os níveis (desde os grandes armazéns
às farmácias dos hospitais e das enfermarias);
• fraude nos concursos para a construção ou reabilitação de infra-estruturas (como hospitais,
centros de saúde, armazéns, etc.) e para a aquisição de equipamento, medicamentos e
artigos médicos;
• suborno para se conseguir admissão nos centros de formação do Ministério da Saúde;
• abandono do local de trabalho no sector público, para a prática de actividades privadas
noutro local;
• criação deliberada de dificuldades no atendimento dito normal (gratuito ou quase gratuito)
para obrigar os pacientes a recorrerem ao atendimento dito especial (muito mais caro).
A corrupção no sector de Saúde tem um impacto particularmente negativo nos pacientes e famílias
pobres e contribui de maneira substancial para aumentar a insatisfação da população com os
serviços de saúde.
A menos que a corrupção no sector de Saúde seja combatida de forma efectiva, eficaz e continuada,
o objectivo de cuidados de saúde humanizados e iguais para todos os moçambicanos jamais será
atingido.
A concluir, é de salientar que o fracasso na luta contra a corrupção deriva em larga medida do facto
de, em Moçambique, o poder judicial ser totalmente dependente e submisso ao poder executivo.
Tal deriva do plasmado na Constituição, segundo a qual os membros do Tribunal Supremo, do
Conselho Constitucional, do Tribunal Administrativo e da Procuradoria-Geral da República serem
todos de nomeação do Presidente da República, podendo por ele ser exonerados a qualquer
momento e sem prévia consulta a qualquer órgão do Estado.
Hoje, mais do que nunca, é claro que Moçambique necessita da ajuda da comunidade internacional
para melhorar a provisão de cuidados de saúde de qualidade aos cidadãos, em especial os mais
pobres.
Mas é igualmente claro que essa ajuda deve ser feita de forma correcta, por forma a evitar que
tenha um efeito oposto ao pretendido.
Infelizmente, os factos mostram que, nos últimos 30 anos, o Governo de Moçambique não define
a política pública de saúde de forma independente. Isto aplica-se quer à definição de prioridades,
quer sobretudo à elaboração do orçamento do sector de saúde. A política de saúde é definida mais
18
pela comunidade internacional (os chamados parceiros de cooperação ou doadores) do que pelo
Governo de Moçambique.
Assim acontece porque a dita comunidade internacional a) dá a maior contribuição financeira para
o orçamento da saúde e b) encomenda e financia as ‘consultorias’ onde é feito o diagnóstico do
sector de saúde e onde são apresentadas propostas de políticas de saúde. É com base nas ditas
‘consultorias’ encomendadas e pagas pela comunidade internacional que o Governo de
Moçambique é pressionado para priorizar estratégias, programas e actividades seleccionados e
‘propostos’ pelos doadores, nem sempre coincidentes com as estratégias, programas e actividades
realmente prioritários para a melhoria do estado de saúde dos moçambicanos.
Infelizmente, essa escassez é agravada pela saída de trabalhadores de saúde (especialmente os mais
qualificados e/ou mais experientes) do Serviço Nacional de Saúde para irem trabalhar nas
embaixadas, nas ONG, nas agências dos parceiros de cooperação baseadas em Maputo e no sector
privado com fins lucrativos.
A razão principal, mas não a única, é que essas organizações pagam salários muito mais altos do
que o Governo. A isso se chama fuga de cérebros interna, por contraposição à fuga de cérebros
para fora de Moçambique. Em Moçambique, a fuga de cérebros interna é, pelo menos, três vezes
mais elevada do que a fuga de cérebros para o estrangeiro.
É por isso que, nos últimos 15 anos, o Governo de Moçambique não tem sido capaz de contratar
e empregar nem mesmo todos os médicos, enfermeiros e outros trabalhadores de saúde formados
em Moçambique.
Em segundo lugar, a quase totalidade dos parceiros de cooperação decidiu canalizar a maior fatia
dos seus recursos financeiros, não para o Serviço Nacional de Saúde (que presta cuidados de saúde
a mais de 90% da população), mas para ONG e outros parceiros dedicados aos chamados
programas verticais de luta contra doenças.
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Além de tudo o que foi exposto — e porque não tomam em devida consideração as causas últimas
das doenças — os chamados programas verticais de combate a doenças têm um impacto limitado
na melhoria das condições de saúde dos cidadãos e comunidades mais pobres, apesar das centenas
de milhões de dólares americanos investidos anualmente pela comunidade internacional na saúde
em Moçambique.
Em terceiro lugar, importa referir outro aspecto nefasto da política do Banco Mundial. A partir da
década de 80 do século XX, o Banco Mundial passou a exigir que todos os países em vias de
desenvolvimento introduzissem as taxas de utilizadores (user fees), como opção de financiamento
dos serviços de saúde.
Embora a OMS já tenha tomado uma posição clara contra as taxas de utilizadores e o Banco
Mundial já tenha feito um mea culpa (vide o discurso do então Presidente do Banco Mundial, Jim
Yong Kim, na Assembleia Mundial da Saúde de 2013), a realidade é que as taxas de utilizadores
persistem em Moçambique.
A finalizar. é de frisar que a maioria das reformas e estratégias para o sector da Saúde propostas
pelos chamados parceiros de cooperação são irrealistas dada a fraca capacidade económica do País
e porque os parceiros de cooperação não estão dispostos a financiar as políticas que eles próprios
advogam como as mais correctas para Moçambique.
Os exemplos são vários, o mais saliente dos quais é a tão aclamada cobertura universal da saúde,
que é uma constante nos discursos do Banco Mundial, da OMS, da UNICEF e outros nas Nações
Unidas e noutros fora internacionais, mas para cuja implementação em Moçambique nunca houve
financiamento dirigido.
Assim se cria uma situação em que um país pobre como Moçambique fica eternamente
‘pendurado’ com sérios problemas em termos de credibilidade do sector de saúde decorrente da
fraca qualidade dos cuidados de saúde prestados.
A pergunta que naturalmente surge é: por que razão as coisas acontecem assim como estão
descritas?
O ponto de partida é que é o processo político que determina o tipo de instituições existentes e
são as instituições (sobretudo políticas) que determinam como esse processo funciona. São as
instituições políticas de uma nação que determinam a capacidade dos seus cidadãos de controlarem
os políticos e influenciarem o seu comportamento. Por sua vez, isso determina se os políticos são
representantes e defensores dos direitos dos cidadãos que os elegeram, ou se têm a possibilidade
de abusar do poder que lhes foi confiado para alcançarem os seus próprios objectivos, mesmo que
em detrimento da maioria dos cidadãos.
A sociedade moçambicana é uma sociedade profundamente desigual, dividida entre uma minoria
privilegiada que detém as rédeas do poder político e económico e ‘os outros’, ou seja, uma larga
maioria de pobres, destituídos e marginalizados, os quais têm fraca capacidade de controle das
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acções dos dirigentes políticos e uma influência muito reduzida na determinação dos destinos do
País.
A causa última que explica a debilidade dos factores institucionais com impacto no sector da Saúde
e, muito em especial, a fraca capacidade do Estado moçambicano em priorizar o sector público da
Saúde (que como já vimos é responsável pelos cuidados de saúde prestados a mais de 90% dos
moçambicanos) reside na falta de vontade política dos dirigentes políticos em colocar em primeiro
plano a satisfação das necessidades em cuidados de saúde das camadas mais pobres.
Estes dirigentes são parte de, ou têm fortes ligações aos, grupos da minoria privilegiada da
sociedade, os quais secundarizam o sector público da Saúde, em larga medida porque satisfazem
as suas necessidades em cuidados de saúde recorrendo a organizações (como hospitais, clínicas,
centros de reabilitação, etc.) no estrangeiro ou, quando tal se revela impraticável, no sector privado
nacional.
Outro aspecto não menos importante reside no facto de que, em Moçambique, existe uma
compreensão limitada e deficiente sobre a problemática da Saúde, desde os dirigentes políticos aos
cidadãos, passando pela chamada sociedade civil. A todos os níveis da sociedade moçambicana há
confusão entre o conceito restrito de Medicina Curativa (de um lado) e o conceito mais lato de
Saúde e de Saúde Pública. Daí resulta que os cuidados de saúde sejam predominantemente
curativos e girem à volta de intervenções nos centros de saúde e hospitais, com a consequente
subordinação da promoção da saúde, da prevenção da doença, da participação comunitária e da
cooperação intersectorial. A isto se chama medicalização dos cuidados de saúde. Nas reuniões da
população com os políticos, os pedidos dos cidadãos giram apenas à volta da construção de mais
hospitais e maternidades ou quando muito de pedidos de ambulâncias. Desse desconhecimento
resulta que não haja, da parte dos dirigentes políticos, interesse nem mérito político na promoção
da Saúde Pública.
Para citar um exemplo, nunca uma força da oposição moçambicana alguma vez apresentou um
documento devidamente elaborado sobre a deficiente implementação da Política de Cuidados de
Saúde Primários, nem sobre o subfinanciamento crónico do sector da Saúde, nem sobre as
iniquidades na saúde, nem sobre a discriminação a que os moçambicanos pobres são submetidos,
mesmo no sector público da Saúde, nem sobre o problema da lepra (cuja eliminação em
Moçambique foi comprovada pela OMS em 2009, para depois ressurgir devido à incúria do
Governo), nem finalmente sobre uma política coerente de relacionamento do Governo com a
comunidade estrangeira doadora do sector da saúde.
É interessante notar que tais ‘contradições’ desaparecem sempre que, por exemplo, no Parlamento
se discutem os aumentos de salários e a atribuição de mais mordomias aos deputados dos diversos
partidos. Em tais ocasiões (como mais uma vez sucedeu neste ano de 2020), a unanimidade é a
regra que nunca foi quebrada.
Finalmente, em Moçambique, o poder executivo controla e domina quer o poder legislativo quer
o poder judicial. Nestas condições, não existe aquilo que normalmente se designa por checks and
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balances, o que eventualmente faria com que as elites no poder tivessem mais em conta outros
interesses que não apenas os seus.
Todas estas constatações explicam, em última análise, o fraco impacto positivo dos factores
institucionais no desempenho do sector da saúde, em particular na qualidade dos cuidados de
saúde prestados à maioria dos cidadãos pobres, destituídos e marginalizados.
A curto e médio prazos, os maiores desafios do sector de Saúde podem ser equacionados sob dois
pontos de vista:
Nas próximas duas décadas, pelo menos, o peso das doenças (burden of disease) continuará a ser
muito elevado em Moçambique. Embora com tendência para a redução em incidência e
prevalência, continuarão a predominar as doenças infecto-contagiosas anteriormente referidas
(doenças diarreicas, doenças do foro respiratório, helmintíases intestinais, schistosomíase,
tuberculose, malária, HIV-SIDA) e a malnutrição infantil, todas elas ligadas à pobreza que afecta
a maioria dos moçambicanos. Paralelamente, com o crescimento da chamada classe média e a
adopção de novos e perniciosos estilos de vida por um número cada vez maior de moçambicanos
(como o sedentarismo, o tabagismo, o consumo exagerado e desregrado de alimentos ricos em
gorduras, de álcool, de refrigerantes e de sumos açucarados, etc.) continuará a aumentar a
incidência das doenças não transmissíveis.
Caso haja vontade política e melhor organização, será possível eliminar, e posteriormente erradicar,
a lepra e reduzir substancialmente a prevalência de outras doenças actualmente negligenciadas,
como, por exemplo, o tracoma, a filaríase linfática, a sarna e a raiva.
Como anteriormente referido, o Estado moçambicano é caracterizado pela fraqueza das suas
instituições, sobretudo políticas, o que:
• por um lado, as torna vulneráveis aos interesses privados internos da minoria privilegiada
e às pressões das organizações estrangeiras, quer internacionais (Banco Mundial, Fundo
Monetário Internacional, etc.) quer governamentais, organizações essas que, como vimos,
tomam a designação comum de parceiros de cooperação;
• e, por outro, limitam a sua capacidade de responder de forma adequada às necessidades e
ensejos materiais e espirituais da maioria dos moçambicanos.
22
No que concerne ao sector de Saúde, o objectivo último é a provisão de cuidados de saúde de
qualidade gratuitos a todos os moçambicanos sem qualquer discriminação de ordem económica,
social, racial, étnica, sexual, religiosa ou geográfica.
Mesmo num país pobre como Moçambique é possível avançar progressivamente para a
gratuitidade de cuidados de saúde de qualidade a todos os níveis, e não somente dos cuidados
básicos. É claro que se trata de um processo a longo prazo, mas tudo depende da vontade política,
da definição clara do que é prioritário e possível alcançar no sector de saúde em cada etapa
e da implementação de uma política económica e social que, de forma sustentada, reduza os níveis
de pobreza, assim como as desigualdades económicas e sociais.
A questão crucial é: como atingir esse objectivo tão nobre quanto ambicioso?
23
• Eliminar as taxas dos utilizadores (user fees) e todas as outras formas de pagamentos directos
pelos cuidados de saúde prestados pelo sector público.
• Harmonizar os vários mecanismos de financiamento da saúde num quadro de abrangência
universal.
• Pautar-se pela austeridade e combater energicamente as despesas supérfluas.
• Melhorar significativamente a gestão orçamental a todos os níveis.
Aqui importa clarificar que um Seguro Nacional de Saúde instituído e gerido quer pelo Estado,
quer por entidades privadas não constitui uma opção viável para Moçambique. E a razão é simples:
com mais de metade da população moçambicana vivendo com menos de 2 USD por habitante
por dia, quem iria pagar o dito seguro?
Por outro lado, não vemos qualquer impedimento na existência de seguros de saúde privados para
os cidadãos que queiram usufruir de cuidados de saúde prestados por organizações de saúde
privadas.
24
níveis tenham a responsabilidade de garantir um crescente envolvimento dos cidadãos e
das comunidades nas actividades do sector da Saúde.
5 – Dar um grande ímpeto às actividades do Instituto de Medicina Tradicional.
6 – Engajar a comunidade internacional nos esforços visando a melhoria da qualidade dos cuidados
de saúde em Moçambique.
Tal engajamento implica, antes de mais, reduzir de forma progressiva a interferência dos parceiros
de cooperação na formulação de políticas de saúde e na implementação de decisões tomadas de
forma soberana pelos moçambicanos.
Por outro lado, se a comunidade internacional quer, de facto, ajudar a melhorar a qualidade dos
cuidados de saúde em Moçambique — por forma a que seja alcançada a tão propalada cobertura
universal de saúde que consagra os valores de universalidade, equidade e solidariedade —, ela deve
engajar-se nas seguintes acções:
• Alocar uma proporção maior da ajuda sob a forma de apoio directo ao orçamento do
Serviço Nacional de Saúde. A ajuda de Governo para Governo através do suporte directo
ao orçamento do Estado ou ao orçamento do Ministério da Saúde é a melhor forma de
apoiar o Governo de Moçambique para atingir o objectivo de cobertura universal de saúde.
• Cessar a promoção de abordagens inapropriadas em nome da cobertura universal de saúde,
em especial os programas verticais.
• Apoiar o Governo de Moçambique para tornar, desde o início, a equidade e a
universalidade prioridades explícitas. É fundamental que, em todas as etapas, os cidadãos
pobres (ou seja, a maioria dos moçambicanos) sejam beneficiados pelo menos da mesma
maneira que os cidadãos mais desafogados.
• Ajudar o governo de Moçambique a medir e a avaliar o progresso e os resultados das
acções visando a cobertura universal de saúde, em especial a equidade.
• Tomar medidas para combater a evasão fiscal que impede que Moçambique tenha acesso
aos recursos financeiros tão necessários para assegurar cuidados de saúde de qualidade para
todos os moçambicanos.
• Honrar o seu compromisso de alocar pelo menos 0,7 % do seu Produto Interno Bruto a
assistência oficial ao desenvolvimento e melhorar a eficácia da ajuda ao sector de saúde.
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4 Consideração final
Moçambique continua sendo um dos países mais pobres e menos desenvolvidos do Mundo. Eis
algumas das facetas da pobreza com influência directa no estado de saúde dos moçambicanos
(INE 2019):
• Mais de 2/3 dos moçambicanos não têm duas refeições diárias equilibradas do ponto de
vista proteico-calórico;
• Mais de metade dos moçambicanos não têm acesso a água potável (apenas 5% têm água
canalizada dentro de casa e quase 60% utiliza água de poço, rio ou lago);
• Mais de 2/3 dos moçambicanos não têm acesso a saneamento básico adequado (24% não
têm latrina e defeca a céu aberto e só 10% têm retrete ligada a fossa séptica);
• Mais de 2/3 dos moçambicanos não vivem numa habitação decente (mais de 47% vive em
palhotas cobertas de capim);
• Menos de 25% dos moçambicanos têm acesso a energia eléctrica nas suas casas;
• Em 2017, a taxa de analfabetismo (percentagem de pessoas com 15 anos e mais de idade
que não sabem ler nem escrever) era de 39,0% e o número de anos de escolaridade
frequentada pela população era de 3,5 anos. Estes números escondem importantes
iniquidades de género (a taxa de analfabetismo é de 27,2% para homens e de 49,4% para
mulheres e o número de anos de escolaridade é de 2,5 para mulheres e de 4,6 para homens)
e geográficas (a taxa de analfabetismo em Cabo Delgado é quase o dobro da da cidade de
Maputo);
• A taxa de desemprego é elevada (24,9%). (Sachs et al. 2019: 317)
A pobreza bloqueia o acesso aos benefícios decorrentes do crescimento económico. As diferenças
entre grupos sociais, baseadas no local de residência, no nível educacional e em outros diferenciais
sociais, tornam as vantagens decorrentes das oportunidades económicas mais acessíveis a certos
grupos.
É por isso que a luta contra a pobreza e as desigualdades económicas e sociais tem de ser priorizada
por forma a que o crescimento económico de Moçambique se traduza no alcance das melhorias
preconizadas nos Objectivos de Desenvolvimento Sustentável.
5 Conclusão
Todo o acima exposto permite concluir que as instituições — entendidas como as regras de jogo
(formais ou informais) criadas conjuntamente pelo Estado e pelos cidadãos e que se espera que
sejam seguidas pelos actores políticos, económicos e sociais — têm um papel importante no
desempenho de sector da Saúde e, por seu intermédio, no desenvolvimento económico e social de
Moçambique.
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Essas (in)capacidade e (não) autonomia do Estado face a interesses privados resulta, em larga
medida, do facto de o Estado estar sob o controle de uma minoria de privilegiados que não dá a
prioridade devida às necessidades básicas em saúde da larga maioria da população.
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