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A Sociologia E O Mundo Moderno : Tempo Social

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Tempo Social; Rev. Social. USP, S.

Paulo, VOLUME 1(1) A R T I G O

A SOCIOLOGIA E O
MUNDO MODERNO*
IANNI, Octavio. A Sociologia e o mundo moderno. Tempo Social; Rev. Sociol. USP, S. Paulo, 1(1): 7-27, 1.sem. 1989.
* Aula inaugural, proferida no dia 19 de março de 1988, para os alunos do Curso de Ciências Sociais, promovida pelo Departamento
de Sociologia da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, da Universidade de São Paulo. Escrita depois da fala.
** Professor colaborador do Programa de Pós-Graduação do Departamento de Sociologia FFLCH-USP.
1
Macaulay, Ensaio sobre Bacon, citado por STEINER, George. Dans le château de Barbe-Bleue: Notes pour une redéfinition de la
culture. Trad. Lucienne Lotringer. Paris, Gallimard 1973, p. 18.
2
NIETZSCHE, F. A Gaia Ciência. Trad. Márcio Pugliesi, Edson Bini e Norberto de Paula Lima. São Paulo, Hemus Livraria Editora
Ltda, 1976, p. 134 (citação do aforisma nº 125).
3
HEGEL, G.W.F. Princípios da filosofia do direito. Trad. Orlando Vitorino. Lisboa Guimarães Editores, 1959, p. 13 (citação do
prefácio).
4
BAUDELAIRE, C. A Modernidade de Baudelaire. Org. Teixeira Coelho, trad. Suely Cassal. Rio de Janeiro, Editora Paz e Terra 1988.
p. 173-4.
5
MARX, K. & ENGELS, F. Manifesto do Partido Comunista. Trad. Alvaro Pina, notas Vasco Magalhães-Vilhena. São Paulo, Editora
Novos Rumos, 1986, p. 84-5.
6
MARX, K. Discurso pronunciado na festa de aniversário do “People’s Paper”. In: MARX, K. & ENGELS, F. Textos. São Paulo,
Edições Sociais, 1977, vol. III, p. 298-9.
7
ADORNO, T.W. Minima Moralia. Trad. Norberto Silvetti Paz. Caracas, Monte Avila Editores, 1975, p. 153-4. Consultar também
HABERMAS, Jürgen. Problemas de legitimación en el capitalismo tardío. Trad. José Luis Etcheverry. Buenos Aires, Amorrortu
Editores, 1975, p. 142-155, item intitulado “El final del individuo?”.
8
HEGEL, G.W.F. Lecciones sobre la filosofia de la historia universal. Trad. José Gaos. 4.ed., Madrid, Revista de Occidente, 1974, p.
499.
RESUMO: Este ensaio procura esclarecer o “compromisso” da sociologia com o mundo moderno formado com o
desenvolvimento do capitalismo. Primeiro, examina as principais teorias clássicas. Mostra como elas nascem com os desafios com
os quais se defronta a sociedade a partir de meados do século XIX. E lembra que essas teorias continuam a propiciar paradigmas
para as correntes sociológicas que se propõem no século XX. Segundo, registra os temas fundamentais da sociologia, também
criados no âmbito dessa sociedade; temas que continuam básicos nas correntes que se ensaiam no século XX. Terceiro, analisa as
relações entre a sociologia e a modernidade, sugerindo que essa disciplina expressa dilemas e perspectivas do pensamento em fase
da modernidade. E quarto, por fim, sugere que a sociologia pode ser lida como uma forma literária, na qual se destacam as criações
épicas. Por seus temas e explicações, a sociologia muitas vezes parece uma épica do mundo moderno.

UNITERMOS: Sociologia: teorias clássicas, temas fundamentais, modernidade, épica do mundo moderno.

Octavio lanni**
A Sociologia nasce e desenvolve-se com o Mundo Moderno. Reflete as suas principais épocas e transformações. Em
certos casos, parece apenas a sua crônica, mas em outros desvenda alguns dos seus dilemas fundamentais. Volta-se
principalmente sobre o presente, hprocurando reminiscências do passado, anunciando ilusões do futuro. Os impasses e as
perspectivas desse Mundo tanto percorrem a Sociologia como ela percorre o mundo. Se nos debruçamos sobre os temas
clássicos da Sociologia, bem como sobre as suas contribuições teóricas, logo nos deparamos com as mais diversas expressões
desse Mundo. Sob diversos aspectos, ela nasce e desenvolve-se com ele. Mais do que isso, o Mundo Moderno depende da
Sociologia para ser explicado, para compreender-se. Talvez se possa dizer que sem ela esse Mundo seria mais confuso,
incógnito.
A Sociologia não nasce no-nada. Surge em um dado momento da história do Mundo Moderno. Mais precisamente,
em meados do século XIX, quando ele está em franco desenvolvimento, realizando-se. Essa é uma época em que já se
revelam mais abertamente as forças sociais, as configurações de vida, as originalidades e os impasses da sociedade civil,
urbano-industrial, burguesa ou capitalista. Os personagens mais característicos estão ganhando seus perfis e movimentos:
grupos, classes, movimentos sociais e partidos políticos; burgueses, operários, camponeses, intelectuais, artistas e políticos;
mercado, mercadoria, capital, tecnologia, força de trabalho, lucro, acumulação de capital e mais-valia; sociedade, estado e
nação; divisão internacional do trabalho e colonialismo; revolução e contra-revolução.
Um dos seus principais símbolos, o capital, parece estabelecer os limites e as sombras que demarcam as relações e as
distâncias entre o presente e o passado, a superstição e a ilustração, o trabalho e a preguiça, a nação e a província, a
tradição e a modernidade. Em suas conotações sociais, políticas e culturais, além das econômicas, o capital parece exercer
uma espécie de missão civilizatória, em cada país e continente, no mundo.
É claro que se podem reconhecer antecedentes ou prenúncios da Sociologia em idéias, filosofias e correntes de
pensamento de outras épocas. São comuns as referências a Montesquieu, Vico e Rousseau, entre outros. Mas cabe lembrar
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que esses e outros precursores foram “inventados” pelos fundadores da Sociologia. Os quadros intelectuais e a problemática
social desta, quando estabelecidos, tornam possível descobrir, localizar, criar ou recriar precursores. E isto é tanto mais
fácil quando se constata que os antecessores realmente estavam buscando compreender as manifestações iniciais, menos
desenvolvidas mas já assinaladas, do Mundo Moderno.
É possível dizer que a Sociologia é uma espécie de fruto muito peculiar desse Mundo. No que ela tem de original e
criativa, bem como de insólita e estranha, em todas as suas principais características, como forma de pensamento, é um
singular produto e ingrediente desse mundo.
se lembra o passado e ressoa o futuro. Um tempo que contém os muitos andamentos dos indivíduos, grupos e
classes, movimentos sociais e partidos políticos, diversidades e desigualdades, contradições e rupturas, revoluções e contra-
revoluções. Assim se revela a historicidade da sociedade modema, do Mundo Modemo. Apenas um momento da história,
e não o apogeu e coroamento de todas as outras idades. Em seu interior germinam as forças e as relações que abalam o
presente, resgatam fragmentos do passado, podem construir o futuro. A história da sociedade burguesa é uma história de
lutas sociais. Mas o segredo mais recôndito dessas lutas está em que elas produzirão a sociedade futura, livre das
desigualdades escondidas nas diversidades entre indivíduos, grupos, classes, regiões. Nesse então, o homem estará livre
da propriedade privada capitalista, entendida como fato jurídico-político, como realidade social e como princípio
organizatório universal da vida material e espiritual. Nesse então, os sentidos físicos e espirituais do homem estarão livres
para expressar-se, revelar-se. Assim começa a apagar-se o componente de barbárie que acompanha a Modernidade. Livres
da tirania desse princípio, que os organiza, ordena e subordina, os sentidos físicos e espirituais poderão descobrir e inventar
formas, cores, sons, movimentos, imagens, figuras, idéias e outras dimensões escondidas na máquina do Mundo. Assim,
desse modo, plantado no vasto mural do Mundo Moderno, Marx pode ser visto como um profeta iluminado.
Princípios Explicativos
O pensamento filosófico do século XVIII e começo do XIX compreende um conjunto de contribuições da maior
importância para as ciências sociais em geral e a Sociologia em particular. O liberalismo, iluminismo, jacobinismo,
conservantismo, romantismo e evolucionismo são algumas das principais manifestações do pensamento europeu desse
tempo. São expressões da revolução cultural simbolizada nas obras de filósofos, cientistas e artistas como Rousseau, Kant
e Hegel, Goethe, Beethoven e Schiller, Adam Smith, Ricardo, Herder e Condorcet, entre outros.
A despeito da multiplicidade dessas correntes de pensamento, bem como das suas divergências, é inegável que no
conjunto elas instituem algumas das condições epistemológicas do desenvolvimento das ciências sociais em geral e da
Sociologia em particular.
Por um lado, tratava-se de transferir ou traduzir para o campo da sociedade, cultura e história os procedimentos
que já se haviam elaborado e continuavam a elaborar-se nas ciências físicas e naturais. Por isso é que em trabalhos de
Sociologia, passados e presentes, ressoam perspectivas organicistas, evolucionistas, funcionalistas e outras, oriundas daquelas
ciências. Os paradigmas das ciências físicas e naturais influenciaram e continuam a influenciar a reflexão de sociólogos.
Nesse sentido é que as sugestões epistemológicas que se buscaram em Bacon, Galileu, Descartes e Kant, entre outros,
ressoam nos procedimentos de pesquisa e explicação de uma parte da Sociologia passada e presente.
Por outro lado, tratava-se de criar novos procedimentos de reflexão, de modo a fazer face às originalidades dos
fatos, acontecimentos e dilemas que caracterizam a vida social no Mundo Moderno. A emergência da sociedade civil,
urbano-industrial, burguesa ou capitalista, passava a desafiar o pensamento em uma forma nova, pouco comum. Nesse
sentido é que as sugestões epistemológicas apresentadas por Vico, os enciclopedistas, Herder, Rousseau, Hegel e outros
representam contribuições fundamentais para a criação de novos procedimentos de reflexão. O pensamento se torna
capaz de dar conta da originalidade dos fatos, acontecimentos e dilemas mais característicos das sociedades que se formam
com o Mundo Moderno.
Nos dois casos, no entanto, encontram-se influências da maior importância para a formação e o desenvolvimento da
Sociologia. No conjunto, as sugestões epistemológicas de uns e outros permitem que a Sociologia se preocupe tanto com a
realidade social como com o processo de conhecimento. Estes são alguns momentos lógicos bastante freqüentes na reflexão
sociológica: dado e significado, quantidade e qualidade, parte e todo, aparência e essência, singular e universal, causa e
sentido, negatividade e con

tradição, sincrônico e diacrônico. Devido ao seu contínuo diálogo com a Filosofia, a Sociologia guarda a peculiaridade
de pensar-se continuamente, de par-em-par com a reflexão sobre a realidade social.
É claro que a Sociologia se divide em tendências, escolas, teorias, interpretações. Compreende produções que se
poderiam classificar em termos tais como os seguintes: evolucionismo, organicismo, positivismo, formalismo, funcionalismo,
estruturalismo, estrutural-funcionalismo, fenomenologia, historicismo e outros. Há grandes teorias e teorias de alcance
médio. Umas privilegiam o pequeno grupo social, o cotidiano, as situações micro. Outras a sociedade como um todo, em
seus movimentos gerais e particulares, em suas diversidades, disparidades e contradições. Compreendem relações, processos
e estruturas de dominação política e apropriação econômica.
Umas mantêm compromissos mais abertos com as sugestões epistemológicas das ciências físicas e naturais. Privilegiam
a indução quantitativa, a construção de variáveis, índices, indicadores, modelos, sistemas. Outras fundamentam-se nas
sugestões epistemológicas das ciências históricas, ou do espírito. Privilegiam o enfoque qualitativo, a descoberta de relações,
processos e estruturas responsáveis pelos movimentos da sociedade. E há aquelas que privilegiam a intuição, a circunstância,
o cotidiano, o efêmero, o singular, como revelam algumas produções inspiradas na fenomenologia existencialista.
Mas é possível que as várias tendências, escolas, teorias e interpretações se reduzam, em essência, a três polarizações
fundamentais. Umas e outras têm como base, em última instância, um dos três princípios explicativos: causação funcional,
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conexão de sentido e contradição. Esses são os princípios explicativos principais, nos quais se sintetizam os fundamentos
das mais diversas tendências, teorias, escolas ou interpretações. O princípio da causação funcional está presente em Spencer,
Comte, Durkheim, Parsons, Merton, Touraine e outros. O da conexão de sentido inspira Dilthey, Rickert, Weber, Toennies,
Nisbet e outros. E o da contradição fundamenta as contribuições de Marx, Engels, Lenin, Trotsky, Rosa Luxemburgo,
Lukacs, Gramsci, Goldmann e outros.
É claro que as produções sociológicas desses e outros autores não se inspiram nesses princípios de uma forma
exclusiva, fechada. Há variações e combinações nos seus modos de pensar, compreender, explicar. Inclusive se pode
imaginar que mesmo autores clássicos como Marx, Weber e Durkheim, reconhecidos como fundadores, não se preocuparam
maiormente com esse problema. Aliás, em suas obras substantivas encontram-se reflexões que “fogem” às suas anotações
metodológicas.
É claro que há intentos de inovar que poderiam e podem ser registrados. E há inovações reais. São notáveis algumas
contribuições teóricas de sociólogos trabalhando depois dos clássicos, na mesma senda ou em outros caminhos. Inclusive
há propostas que não vingaram, mas que nem por isso deixaram de ajudar na retomada e no aperfeiçoamento da reflexão
científica na Sociologia. Entre uns e outros encontram-se nomes

como os seguintes: Gurvitch, Sorokin, Parsons, Lazarsfeld, Merton, Touraine, Bourdieu e muitos outros. Uma análise
cuidadosa, no entanto, pode indicar que todos tendem a ser, em alguma medida, caudatários daqueles princípios explicativos
clássicos.
Estes são os princípios explicativos para os quais tendem as contribuições da maioria dos sociólogos nos séculos XIX
e XX: causação funcional, conexão de sentido e contradição. Através deles a Sociologia tem dado conta dos movimentos e
impasses, das épocas e transformações característicos das sociedades formadas com o Mundo Moderno. Pode-se dizer
que esses princípios compreendem diferentes estilos de pensamento, distintas visões da sociedade, do mundo. Cada um a
seu modo, segundo as suas possibilidades descritivas e interpretativas, segundo a sua sensibilidade quanto a uns e outros
momentos lógicos da reflexão, apanha os movimentos e as modulações da sociedade moderna. São formas de explicação
e fabulação sobre essa sociedade. Entendendo-se que a fabulação também pode ser um modo de apanhar o espírito do
tempo.
Desafios da Revolução Social
As transformações e crises provocadas pela emergência e o desenvolvimento da sociedade civil, urbano-industrial,
burguesa ou capitalista, constituem outra matriz da Sociologia. O modo de vida e trabalho na comunidade feudal vem
abaixo com a formação da sociedade civil, a organização do estado nacional. Há uma vasta, complexa e contraditória
revolução social na Europa, transbordando para outros continentes. O mercantilismo, ou a acumulação originária, iniciava
um amplo processo de europeização do mundo. Simultaneamente, a Europa sentia que se transformava, em sua fisionomia
social, econômica, política e cultural. Estava em marcha a revolução burguesa, atravessando países e continentes, sempre
acompanhada de surtos de contra-revolução. No meio da revolução e contra-revolução, combinando e opondo diferentes
setores sociais, grupos e classes, províncias e regiões, interesses emergentes e estabelecidos, emergiam burgueses,
trabalhadores assalariados diversos, camponeses, setores médios urbanos, intelectuais, burocracia pública e privada. À
medida que se desenvolve e consolida a ordem social burguesa, impondo-se ao antigo regime, multiplicam-se as lutas
sociais urbanas e rurais. Depois da revolução burguesa ocorrida na Inglaterra no século XVII e da Revolução Francesa
iniciada em 1789, o século XIX assiste às revoltas populares no campo e nos centros urbano-industriais. O Cartismo na
Inglaterra, desde 1835, e a Revolução de 1848-49, na França e em outros países europeus, assinalam a emergência do
operariado como figura histórica. Em outros termos, e sob diferentes condições, algu
mas linhas dessa história manifestam-se na Alemanha, Itália, países que compõem o Império Austro-Húngaro,
Rússia, Espanha e outros. O século XIX nasce também sob o signo dos movimentos de protesto, greve, revolta e revolução.
Aí estão alguns traços da sociedade burguesa, com tintas de modernidade.
É evidente que o tema da revolução social está no horizonte de alguns dos principais fundadores e continuadores da
Sociologia. Estão preocupados em compreender, explicar ou exorcizar as revoluções que ocorrem na Europa e em países
de outros continentes. E verdade que algumas revoluções preocuparam mais diretamente os fundadores. Dentre essas
destacam-se as francesas e européias de 1789, 1848-49 e 1871. Mas logo eles e outros passaram a interessar-se pelas revoluções
que haviam ocorrido e iam ocorrendo nas Américas e na Ásia. Alguns livros fundamentais denotam essa preocupação:
Tocqueville, O Antigo Regime e a Revolução; Marx, As Lutas de Classes na França; Engels, Revolução e Contra-Revolução na
Alemanha; Lenin, Estado e Revolução; Hannah Arendt, Sobre a Revolução; Barrington Moore Jr., As Origens Sociais da Ditadura
e Democracia; Karl Polanyi, A Grande Transformação; Joseph A. Schumpeter, Capitalismo, Socialismo e Democracia; Theda
Skoopol, Estados e Revoluções Sociais.
Naturalmente estão em causa várias formas da revolução social. Em um primeiro momento, o que sobressai é o
empenho em explicar a revolução burguesa, que pode ser democrática, autoritária, prussiana, passiva. Em outro, a ênfase
recai na revolução popular, operária, camponesa, operário-camponesa ou socialista. Mas também há interesse em analisar
o contraponto revolução e contra-revolução. Em vários casos, de permeio a essas preocupações, coloca-se o desafio da
revolução permanente. Isto é, as condições das continuidades e descontinuidades entre a revolução burguesa e socialista,
em escala nacional e internacional.
A rigor, a análise da revolução social é um modo de conhecer a sociedade, as forças sociais que governam os
movimentos da sociedade nacional tomada como um todo. Essa manifestação “extrema” da vida social parece revelar
mais abertamente as relações, os processos e as estruturas, compreendendo dominação política e apropriação econômica,
que organizam e movimentam a sociedade moderna. Como um todo, em seus grupos e classes, movimentos sociais e
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partidos políticos, as relações entre a sociedade civil e o estado revelam-se mais nítidas nas rupturas revolucionárias. A
revolução social pode ser vista como uma situação extrema, um experimento crucial, um evento heurístico, quando se
revelam mais desenvolvidas as diversidades e disparidades, os desencontros e antagonismos, que governam os movimentos
fundamentais da sociedade.
Estava em curso o desenvolvimento da sociedade nacional, urbano-industrial, burguesa, de classes. Com a dissolução,
lenta ou rápida, da comunidade feudal, emergia a sociedade civil. Essa ampla transformação concretiza-se em processos
sociais de âmbito estrutural, tais como: “ — industrialização, urbanização, divisão do trabalho social, secula

rização da cultura e do comportamento, individuação, pauperismo, lumpenização e outros. Esse é o palco do


trabalhador livre, formado com a sociedade moderna.
Esse é o vasto cenário histórico que se constitui na matéria prima da Sociologia. Ela surge como uma forma de
autoconsciência científica da realidade social. Essa é a realidade que alimenta boa parte dos escritos de Saint-Simon,
Bonald, Maistre, Tocqueville, Comte, Burke, Spencer, Feuerbach, Marx e outros. É claro que esses pensadores alimentam-
se dos ensinamentos filosóficos de Hobbes, Locke, Montesquieu, Vico, Herder, Rousseau, Kant e Hegel, além dos
enciclopedistas e outros. Mas é inegável que todos estão tratando de compreender, explicar e responder às transformações
e crises manifestas em processos sociais estruturais, em movimentos de protesto, greve, revolta e revolução.
A Sociologia posterior dá continuidade a esse empenho de compreender, explicar, responder às transformações e
crises sociais. Os escritos de Durkheim, Mauss, Halbwachs, Weber, Simmel, Toennies, Goldmann, Znaniecki, Mannheim,
Gurvitch, Sorokin, Myrdal, Park, C.W. Mills, Merton, Parsons, Lazarsfeld, Bourdieu, Nisbet, Gouldner, Barrington Moore
Jr., Schutz, Adorno e outros dão continuidade a esse empenho. É claro que são diversas e desiguais as contribuições de uns
e outros, tanto do ponto de vista teórico como no que se refere as suas implicações políticas. No plano teórico, além das
sugestões relativas ao hiper-empirismo e à fenomenologia, como nos casos de Gurvitch e Schutz, outros revelam-se ecléticos
e alguns ortodoxos. No plano político também revelam todo um leque de posicionamentos, dentre os quais destacam-se
liberais, conservadores e radicais. Mas talvez se possa dizer que todos buscam compreender, explicar, controlar, dinamizar
ou exorcizar as condições das transformações e crises.
Em outros termos, em outros países e continentes, a Sociologia continua a desenvolver-se desafiada pelos dilemas
da sociedade moderna mais ou menos desenvolvida. Na América Latina, África e Ásia tanto ressoam as idéias e teorias
como os temas e explicações. Há contribuições que parecem anacrônicas, exóticas ou ecléticas, pelo que ressoam das
sociologias européias e norte-americanas. Mas também há criações originais, inovações. Colocam-se novos temas e outras
explicações. Surpreendem e desafiam, pela originalidade, força e invenção.
A rigor, esses continentes e países são, em certa medida, criações do Mundo Moderno, desdobramentos das forças
sociais que movimentam a sociedade moderna. Desenvolvem-se e transformam-se com os desenvolvimentos e as
transformações que ocorrem na Europa e nos Estados Unidos. O colonialismo, imperialismo, nacionalismo, cosmopolitismo
e internacionalismo podem ser vistos como produtos e condições de um amplo processo de europeização do mundo. Em
distintas formas e ocasiões, os países e continentes atrelam-se desigual e contraditoriamente ao que parece ser a força
civilizatória do capital.

Revolucionam-se os modos de vida e as culturas nativos nas mais longínquas regiões. Os bárbaros são obrigados a
civilizar-se, assumindo a barbárie do capital. Os povos fetichistas, panteistas, sem história, que vivam mergulhados no
estado de natureza, são obrigados a assimilar o monoteismo bíblico, a diligência do trabalho que produz mercadoria e
lucro, a disciplina exigida pela criação da mais-valia, a religião do capital. Está em marcha a revolução burguesa em escala
mundial. Ao mesmo tempo, por dentro e por fora dessa revolução, desenvolvem-se revoluções nativistas, nacionalistas,
sociais, populares, socialistas. Uma espécie de revolta desesperada contra a missão civilizatória do capital.
Esse é o amplo cenário no qual o pensamento sociológico originário da Europa e dos Estados Unidos tanto se
difunde como entra em relação e confronto com outras idéias, teorias, temas, explicações. As obras de Frantz Fanon, José
Carlos Mariátegui e Florestan Fernandes, para citar apenas esses exemplos, expressam e simbolizam uma parte importante
dessa história. Mostram em que e como se modernizam os países e continentes que estão além da Europa e Estados
Unidos. Ressoam contribuições européias recriadas em face de outros temas, dilemas. Mostram como se dá a revolução
burguesa em outras partes do mundo. E como nascem as condições do socialismo, no contraponto com a barbárie. No
começo e na travessia, a revolução social parece sempre presente no horizonte da Sociologia.
Metamorfoses da Multidão
Vista em perspectiva ampla, observa-se que a Sociologia formula e desenvolve alguns temas da maior importância
para a compreensão do Mundo Moderno. Eles dizem respeito às transformações e crises, às épocas e dilemas desse Mundo.
São recorrentes em diversas abordagens teóricas, distintos países, diferentes períodos da história. Podem ser considerados
temas clássicos, inclusive porque polarizam contribuições e controvérsias fundamentais da Sociologia.
Estes certamente são alguns dos temas clássicos que essa história nos revela: sociedade civil e estado nacional,
multidão, massa e povo, classe social e revolução, ordem e progresso, normal e patológico, racional e irracional, anomia e
alienação, sagrado e profano, ideologia e utopia, comunidade e sociedade, passado e presente, tradição e modernidade. É
claro que esses e outros temas são tratados diferentemente por umas e outras abordagens teóricas. Não há dúvida de que
são trabalhados em distintas perspectivas, conforme o princípio explicativo adotado. Mas é inegável que todos dizem
respeito ao empenho da Sociologia em compreender e explicar o Mundo Moderno. A des

peito das suas condições muito particulares de organização, funcionamento e transformação, é inegável que também
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as sociedades latino-americanas, asiáticas e africanas além das européias e da norte-americana — ressoam uns e outros
daqueles temas, dilemas.
Algumas observações breves sobre um ou outro desses temas podem ajudar a clarear o que está sendo sugerido.
Sugerir como o pensamento sociológico e a sociedade moderna são contemporâneos, nos seus contrapontos e desencontros.
Comunidade e Sociedade é talvez o tema mais recorrente no pensamento sociológico. Está em praticamente todas as
obras fundamentais. Desafia as diversas abordagens teóricas. Os filósofos do século XVIII estavam interessados nele. Mais
que isso, os autores das utopias a que assinalam os tempos da Renascença e os primórdios da sociedade civil, burguesa, já
revelaram o fascínio da comunidade; ou esboçaram a cerimônia do adeus; ao mesmo tempo que se maravilharam e
espantaram diante da sociedade. Mesmo os que se debruçam apenas sobre a sociedade, em países e tempos do século XX,
mesmo esses podem estar fascinados ou espantados com essa maravilhosa e diabólica fábrica
Estes são alguns livros nos quais o contraponto comunidade e sociedade está presente, a despeito da ênfase em um
ou outro polo, em aspectos gerais ou muito particulares: O Contrato Social de Rousseau, O Segundo Tratado sobre o Governo
de Locke, O Antigo Regime e a Revolução de Tocqueville, A Ideologia Alemã de Marx e Engels, A Divisão do Trabalho Social de
Durkheim, Economia e Sociedade de Weber, Comunidade e Sociedade de Toennies, Comunidade de MacIver, A Busca da Comunidade
de Nisbet. A comunidade diz respeito à preeminência de grupos primários, relações sociais face-a-face, prestação pessoal,
contacto entre personalidades plenas, predomínio de produção de valor de uso e assim por diante. E a sociedade diz
respeito à preeminência de grupos secundários, dissociação entre o público e o privado, relações sociais entre personalidades-
status, organização contratual na maioria dos círculos de relações sociais, predomínio da produção de valor de troca e
assim por diante.
É possível encontrar freqüentes ressonâncias dessa problemática no pensamento sociológico, bem como em reflexões
de filósofos e produções de artistas. Uma parte importante do debate sobre passado e presente, reforma e revolução,
anomia e alienação, ideologia e utopia, passa por ela. As idéias de liberdade e solidão, de medo da liberdade e multidão
solitária passam por aí. A despeito das mais diversas revelações sobre a sociedade moderna, de massas, aldeia global,
modernidade, subsiste e recria-se continuamente a ilusão da comunidade presente, pretérita ou futura.
Ordem e Progresso é o lema que sintetiza a Sociologia de Augusto Comte. Mas influencia uma ampla produção
sociológica no século XIX e entrando pelo XX, além da Europa e Estados Unidos. No Brasil e México, entre outros países
latino-americanos, a

Sociologia positivista fez muito adeptos. Tornou-se uma corrente de pensamento, influenciou a organização do
estado nacional. Assinala uma época importante da história das idéias.
Acontece que as expressões ordem e progresso sintetizam uma perspectiva de interpretação da sociedade urbano-
industrial, de classes, em sua formação e transformação. A idéia de progresso identifica-se com a da sociedade urbano-
industrial, burguesa, capitalista. Sociedade essa vista como uma forma superior, aperfeiçoada, da história social. Aí, o
estado deve ser forte, dirigente, para que as diversidades e desigualdades entre grupos, classes, regiões, nacionalidades
etc. não afetem a harmonia e o funcionamento do todo. O progresso econômico, industrial, capitalista, depende da ordem,
harmonia, entre uns e outros. A ordem social é urna exigência dos interesses representados ou simbolizados no governo,
regime, estado. Segundo essa orientação, nada melhor do que o estado forte para por a sociedade em ordem, conforme a
religião da paz social.
É possível dizer que a idéia de ordem e progresso nunca foi abandonada pela Sociologia, da mesma forma que pelas
sociedades formadas com o Mundo Moderno. Tanto assim que ela está presente tanto em Comte, Spencer e Durkheim
como em Parsons, Bourdieu e Touraine. No passado e no presente a reflexão sociológica busca compreender, explicar e
influenciar as transformações e crises sociais. Apresenta-se como urna forma de conhecer e ordenar a vida social, de modo
a aperfeiçoar o status quo.
Não é fácil dizer, e demonstrar, qual é o núcleo da Sociologia, o seu tema principal, sua essência. Se aceitamos que
o pensamento sociológico se forma e transforma com o Mundo Moderno, cabe-nos reconhecer que temas como comunidade
e sociedade, ordem e progresso, ideologia e utopia, tradição e modernização, anomia e alienação, revolução e contra-
revolução expressam dimensões sociais e teóricas básicas da Sociologia. Talvez seja possível afirmar que esses e alguns
outros temas expressam o núcleo dessa forma de pensamento.
Mas é possível sugerir que um aspecto essencial da Sociologia aparece no seu empenho em compreender, explicar e
controlar a multidão. A multidão surge na sociedade civil, urbano-industrial, burguesa, capitalista. Aparece nas manifestações
de camponeses, operários, populares, desempregados, miseráveis, famélicos. Desde os começos da sociedade nacional,
quando se rompem as relações, os processos e as estruturas que organizam o feudo, o grêmio, o convento, a aldeia, o
vilarejo, desde esse então ela irrompe na sociedade, com a sociedade. Nos campos e cidades, nas casas de negócios e
fábricas, nas ruas e praças, ela se torna uma realidade viva, forte, surpreendente, assustadora, deslumbrante.
Desde o século XVI multiplicam-se os protestos, as revoltas e as revoluções populares. As guerras camponesas na
Alemanha são uma amostra e um símbolo dessa

história. Os camponeses estão em luta contra as obrigações feudais (dízimos e prestações para os senhores e a
igreja), querem melhorar as suas condições de vida, aumentar a sua participação no produto do próprio trabalho, ampliar
o seu horizonte social e cultural, conquistar alguma liberdade. Mas essa luta assusta os senhores, príncipes e bispos do
passado, bem como os burgueses do presente. São muitos os laços que se rompem; e incertos os horizontes que se abrem.
Os grupos dominantes, pretéritos e presentes, juntam-se para evitar transformações mais drásticas, rápidas. No empenho
de evitar o rompimento das estruturas sociais prevalecentes, Lutero adota posições semelhantes às do Vaticano. Reforma
Tempo Social; Rev. Social. USP, S. Paulo, VOLUME 1(1) A R T I G O

sim, mas nem tanto.


Em vários países, em diferentes épocas, desde o século XVI ao XX, a multidão se manifesta, protesta ou revolta, ao
mesmo tempo que atemoriza ou entusiasma Na Revolução Francesa iniciada em 1789, nas revoluções européias de 1848
49, na Comuna de Paris, em 1871, em várias épocas e situações, a multidão se transforma em um tema freqüente, reiterado,
obsessivo do pensamento sociológico. São muitos os estudos que registram, descrevem ou interpretam os acontecimentos:
protestos, greves, revoltas e revoluções; banditismo social e messianismo; movimentos sociais e partidos políticos;
jacobinismo, blanquismo, anarquismo, socialismo e comunismo. Todos estão atravessados pela presença da multidão,
plebe, turba, malta, patuléia, ralé, massas trabalhadoras, classes populares, coletividades em busca de cidadania, povo em
luta pela conquista de direitos políticos e sociais. Alguns escritos antigos e recentes entram nessa corrente: Manifesto do
Partido Comunista de Marx e Engels, As Guerras Camponesas na Alemanha de Engels, A Guerra Civil na França de Marx, O
Povo de Michelet, Psicologia das Massas de Le Bon, A Multidão Criminosa de Sighele, Psicologia das Massas de Freud, A
Rebelião das Massas de Ortega y Gasset, Massa e Poder de Canetti, O Grande Medo de 1789 de Georges Lefebvre, Classes
Trabalhadoras e Classes Perigosas de Louis Chevelier, A Multidão Solitária de Riesman, A Política da Sociedade de Massas de
Kornhauser, Rebeldes Primitivos de Hobsbawn, A Multidão na História de George Rudé, Guerras Camponesas do Século XX de
Wolf, O Poderio das Multidões de Jacques Beauchard.
O que está em causa, fundamentalmente, é a questão social que irrompe no horizonte da sociedade moderna, seus
governantes, os que detêm os meios materiais e espirituais de controle das instituições sociais. As mais diversas manifestações
populares, na cidade e no campo, revelam aspectos sociais, econômicos, políticos, religiosos, culturais e outros da questão
nacional.
Uma parte significativa da reflexão sociológica, desde os seus primeiros tempos, relaciona-se a essa problemática,
influenciando as reflexões sobre sociedade civil e estado nacional, ordem e progresso, racional e irracional, anomia e
alienação, ideologia e

utopia, revolução e contra-revolução, comunidade e sociedade. Trata-se de compreender, explicar, orientar, controlar
ou expressar a força e o significado da multidão. Nesse sentido é que se pode dizer que a Sociologia realiza uma complexa
metamorfose da multidão. Cada corrente de pensamento sociológico parece oferecer uma solução própria para o surgimento,
as transformações e as tendências da multidão. Procuram dar uma solução teórica e prática para um fenômeno que
impressiona, desafia, assusta ou entusiasma.
Uma primeira corrente da Sociologia lida com a idéia de massa. Para muitos, o conceito de massa é suficiente, claro,
explicativo. A massa é naturalmente composta de trabaIhadores assalariados, empregados e desempregados, na cidade e
no campo. É uma coletividade forte, impressionante, mas que depende de instituições, regras, objetivos e meios para
organizar-se, manifestar-se. Caso contrário transborda dos limites do razoável, da conveniência, da ordem. Por isso, depende
da elite. Esta é que pode Ihe oferecer referências, norte, sentido. O contraponto necessário da massa é a elite que dirige,
comanda, organiza, governa, manda. Pareto é um autor clássico desse ponto de vista. Mas outros houve; e há.
A segunda corrente da Sociologia lida com a idéia de povo. O povo é visto como uma coletividade de cidadãos. Supõe
a possibilidade de que a multidão pode ser organizada em movimentos sociais e partidos políticos que a expressam,
organizam, educam. A multidão adquire os traços jurídico-políticos convenientes, adequados, quando se organiza como
povo, no sentido de coletividade de cidadãos. Cidadãos que se caracterizam pela faculdade de votar e ser votados. No
limite, todo e qualquer cidadão pode exercer cargos no legislativo, executivo ou judiciário, desde que preencha os requisitos
jurídico-políticos estabelecidos na constituição liberal democrática Tocqueville é um autor que pode situar-se nesse ponto
de vista. Outro é Stuart Mill. Mas cabe lembrar que ambos eram moderados, no que se refere à participação do povo no
processo político. Cada um a seu modo, julgavam que o exercício do poder político da maioria poderia provocar a tirania.
Isto é, o exercício do poder pelo povo carrega consigo a tirania da maioria. Tocqueville e Stuart Mill podem ter sido os
primeiros, mas outros houve; e há.
E uma terceira corrente da Sociologia lida com a idéia de classe social. A classe é vista como uma categoria que
expressa as diversidades e desigualdades que se acham na base das manifestações da multidão, massa, povo. Em última
instância, o que funda o movimento social, protesto, greve, revolta, revolução, é o modo pelo qual se produz e reparte a
riqueza social. A expropriação do trabalhador, produtor de mercadoria, valor, lucro, mais-valia, está na base do pauperismo,
desemprego, carência. Tanto as revoltas camponesas na Alemanha do século XVI como a revolução popular na França,
Alema

nha e outros países da Europa em 1848-49 são manifestações de trabalhadores “livres” em busca de melhores condições
de vida, de outra forma de organização social da vida e trabalho. Assim, em lugar de ser anômalos, excepcionais, perigosos,
os movimentos sociais, protestos, greves, revoltas e revoluções exprimem as desigualdades contra as quais lutam os
trabalhadores do campo e da cidade, desde os começos da sociedade moderna. Marx é o autor clássico dessa análise.
Mostra como a classe social se acha na base, no centro, dos movimentos, lutas e impasses que aparecem como se fossem da
multidão, massa, povo. Além de Marx e Engels, outros houve; e há.
Em várias épocas, assim como em diferentes perspectivas, está em curso o empenho do pensamento sociológico em
explicar, controlar, dinamizar ou exorcizar a presença da multidão, massa, povo ou classe social nos movimentos da
sociedade moderna. Talvez seja possível dizer que essa problemática está influenciando também as reflexões sobre sociedade
civil e estado nacional, comunidade e sociedade, ordem e progresso, racional e irracional, anomia e alienação, ideologia e
utopia, revolução e contra-revolução, entre outros temas clássicos da Sociologia; entre outros dilemas clássicos das sociedades
formadas com o Mundo Moderno.
Tempo Social; Rev. Social. USP, S. Paulo, VOLUME 1(1) A R T I G O

Modernidade
A idéia de Sociologia é contemporânea da idéia de Modernidade. Ambas nascem na cidade. Formam-se principalmente
em Paris, capital do século XIX, em meados desse século. Aí decantavam-se as mais novas e típicas realizações materiais e
espirituais da sociedade moderna
Desde que a Sociologia se debruçou sobre as relações, os processos e as estruturas que constituem a sociabilidade
humana na sociedade moderna, logo se colocaram aspectos fundamentais da emergência da pessoa, indivíduo, cidadão,
como um ser social singular, autônomo, surpreendente, que se sintetiza na liberdade; ou na solidão. Ele aparece como a
mais recente e original realização social do Mundo Moderno, lado a lado com a mercadoria. É a célula da sociedade, um
átomo. Pode pensar-se singular, independente, solitário, anônimo, livre, niilista.
A crescente intelectualização dos indivíduos e a continua racionalização das organizações pareciam “despojar de
magia o mundo”, desencantá-lo. O homem e a sociedade pareciam conquistar o controle de seus atos, do seu presente,
emancipados do passado. O mundo iluminava-se de outras cores. As ciências conferiam a muitos a ilusão do
progresso, da resolução dos problemas materiais e espirituais. Em 1837 Macaulay dizia que a ciência “abrandou o
sofrimento, venceu as doenças, aumentou a fertilidade do solo”, deu “novas armas ao guerreiro”, “iluminou a noite com
o esplendor do dia, ampliou o alcance do olho humano”, “acelerou o movimento, reduziu as distâncias”, “facilitou as
comunicações”, “a condução dos negócios” e assim por diante. A ciência é incansável. “A sua lei é o progresso” 1.
Está em curso o desencantamento do mundo, de que fala Weber, retomando as sugestões de Schiller. Desde o século
XVIII, e em forma acentuada e generalizada no XIX, os progressos da ciência pareciam reduzir os espaços da tradição,
superstição, religião. Iniciava-se um amplo processo de afirmação do presente, rompimento com o passado. A razão
parecia vencer e apagar a fé. Os homens ficam órfãos de Deus. São obrigados a assumir o próprio destino.
Um dos segredos da Modernidade está em que o homem se defronta com um destino trágico. Tanto pensa, reflete,
compreende explica, que pode prescindir de Deus. Basta-se a si próprio, por sua inteligência e ciência, razão e invenção.
Dá-se ao requinte de assassinar Deus. “Não seremos forçados a tornarmo-nos deuses para parecermos, pelo menos, dignos
de deuses? Jamais houve ação tão grandiosa e aqueles que poderão nascer depois de nós, pertencerão por esta ação a uma
história mais alta que o foi até aqui qualquer história” 2.

Na sociedade moderna, o homem abandonou a tradição e a religião, Deus e o Diabo. Intelectualiza-se de tal maneira
que desencanta o mundo de visões e fantasmas. Afugente, confina ou domina a incerteza, o desconhecido, o incógnito.
Considera-se senhor do próprio destino. Substitui a tradição e a religião pela razão. A razão pode captar, compreender,
explicar e ordenar o mundo. Mais que isso, confere forma e sentido ao mundo, retirando-o do limbo; limpo. “O que é
racional é real e o que é real é racional” diz Hegel, inaugurando uma face do Mundo Moderno, da Modernidade 3.
É a razão que descobre, nomeia, explica e exorciza visões e fantasmas. Descobre que eles não estão no além, mas
aqui, agora, à luz do dia, transparentes, razoáveis. São fetiches, criados pelo próprio homem, aos quais ele se submete,
imaginando-os autônomos, dissociados do homem, independentes, naturalizados. O fetichismo é uma fabulação do dia-a-
dia da vida de todos e cada um. Ele se cria e recria na trama das relações.
sociais, descolado, naturalizado, reificado. Parece uma inesperada fabulação das atividades humanas, que fascina e
assusta O halo místico abandona os deuses e os sonhos, as visões e os fantasmas. Põe-se coroando os produtos mais
prosáicos do dia-a-dia presente, conferindo-lhes solenidade. Tanto governo, bandeira, hino, heróis, santos, vitórias, tradições,
monumentos e ruínas, como mercadoria, dinheiro, juro, renda, salário e lucro, tudo se deixa impregnar daquela inesperada
fantasia, criando a ilusão do halo que fascina e assusta.
As coisas criadas pelos homens projetam-se diante deles como seres sociais, dotados de vida própria, relacionando-
se entre si e com os homens, autônomas, naturalizadas, reificadas, ideologizadas. O criador submete-se à criatura, em
deleite e espanto. Agora as visões e os fantasmas não se encontram mais lá fora, forçando para entrar, vigiadas por Deus,
estimuladas pelo Diabo. Os fetiches são criados e recriados cotidianamente, à luz do dia, à sombra da razão.
É aí que se instaura o sentido trágico também presente na Modernidade. Agora o homem tudo sabe, sobre este e o
outro mundo. Tem tanta razão que desvenda os fetiches que ele próprio recria e recria, no cotidiano do dia-a-dia. Mas se
reconhece aquém e além dessa razão. Descobre que o seu entendimento não o emancipa de si, do que é como fabulação.
Com o fetichismo das suas relações sociais, entroniza visões e fantasmas, nos quais se conhece e desconhece, que alegram
e o assustam.
Um aspecto essencial desse clima é registrado por Baudelaire, quando descobre que o indivíduo da cidade está solto
e perdido no meio da multidão, “do grande deserto de homens”. É aí que se revela o que há de breve, fugaz, aleatório, no
modo de vida presente. “A Modernidade é o transitório, efêmero, contingente” 4.
Estão em curso a secularização da cultura e do comportamento, e industrialização e urbanização, a divisão do
trabalho social e a mercantilização. A marcha da revolução burguesa, lenta e rápida, parcial e drástica, quebra, subordina
ou destrói tradições, regionalismos e provincionismos materiais e espirituais. O trabalho produtivo se impõe à preguiça, o
proprietário à terra, o capital ao trabalho, a fábrica ao grêmio, o mercado à economia doméstica, a mais-valia à mercadoria.
“A burguesia despiu todas as atividades até aqui veneráveis e estimadas com piedosa reverência da sua aparência sagrada.
Transformou o médico, o jurista, o padre, o poeta, o homem de ciência em trabalhadores assalariados pagos por ela ...
Todas as relações fixas e enferrujadas, com o seu
cortejo de vetustas representações e concepções, são dissolvidas, todas as recém-formadas envelhecem antes de
poderem ossificar-se . Tudo o que era dos estados (ou ordens sociais) e estável se volatiliza, tudo o que era sagrado é
profanado, e os homens são por fim obrigados a encarar com os olhos bem abertos a sua posição na vida e as suas relações
recíprocas” 5.
Tempo Social; Rev. Social. USP, S. Paulo, VOLUME 1(1) A R T I G O

A Sociologia e a Modernidade surgem na mesma época, na mesma idade. Talvez se possa dizer que a revolução
popular de 1848 despertou o Mundo para algo novo, que não havia sido ainda plenamente percebido. A multidão aparecia
no primeiro plano, no horizonte da história. E aparecia como multidão, massa, povo e classe. A revolução de 48 em Paris
repercutiu em toda a França, na Europa e em muitas partes do mundo. Via-se que a multidão tornava-se classe revolucionária
em conjunturas críticas. A metamorfose pode ser brusca, inesperada, assustadora, fascinante. Em Paris de 48 viviam,
trabalhavam, produziam e lutavam Tocqueville, Proudhon, Comte, Marx, Blanqui e Baudelaire. Na capital do século XIX,
quando se revelam os primeiros sinais de que a sociedade burguesa também é histórica, transitória, nesse momento nascem
a Sociologia e a Modernidade.
Já é evidente que a ciência não se traduz necessariamente em progresso, que o desenvolvimento material não se
traduz em desenvolvimento social e espiritual. Pode inclusive ocorrer que os usos da ciência agravam a questão social,
desumanizem as relações entre os homens, transformados em objetos das suas criaturas. “Vemos que as máquinas, dotadas
da propriedade maravilhosa de reduzir e tornar mais frutífero o trabalho humano, provocam a fome e o esgotamento do
trabalhador. As fontes de riqueza recém-descobertas se convertem, por artes de um estranho malefício, em fontes de
privações. Os triunfos da arte parecem adquiridos ao preço de qualidades morais; mas, ao mesmo tempo, o homem se
transforma em escravo de outros homens ou da sua própria infâmia. Até a pura luz da ciência parece só poder brilhar
sobre o fundo tenebroso da ignorância” 6.
Acontece que o indivíduo autônomo, anônimo, independente, livre, senhor do próprio destino, foi uma ilusão. Nem
no século XIX nem no XX o cidadão chegou a conformar-se com uma realidade social, política, espiritual.
dania, liberdade, muito mais como quimera Por sob a aparência da autonomia da liberdade, escondia-se a solidão
niilista. Como relembra Adorno, a idéia de que “o indivíduo tenha sido liquidado por completo, eis aí um pensamento
demasiado otimista” 7. No século XX, redescobrem-se os antigos e os novos limites da cidadania. Mas subsiste a ilusão da
liberdade.
É daí que nasce o herói solitário e triste de Chaplin. Numa das mais avançadas expressões da Modernidade que é o
cinema, surge o lumpen olhando espantado para os outros, as coisas, o mundo. Carlitos é um herói trágico. Solitário e
triste, vaga perdido no meio da cidade, um deserto povoado pela multidão. Farrapo coberto de farrapos. Fragmento de
um todo no qual não se encontra; desencontra-se. Caminha perdido e só, no meio da estrada sem-fim. Parece ele e outro,
outros e muitos, todos os que formam e conformam a multidão gerada pela sociedade moderna Um momento excepcional
da épica da Modernidade.
Essa é uma das mais extremas e cruéis sátiras sobre o Mundo Moderno. Carlitos revela a poética da vida e do
mundo, a partir da visão paródica do lumpen que olha a vida e o mundo a partir dos farrapos, da extrema carência, de
baixo-para-cima, de ponta-cabeça.
São diversas as faces da Modernidade que se revelam nas obras de cientistas, Filósofos e artistas. Cada um a seu
modo, muitos estão percebendo o que há de novo e singular no Mundo Moderno. O presente parece romper-se do passado,
o homem se pensa senhor do seu destino, o futuro talvez esteja ao alcance da mão. Esse é o mundo produzido por uma
ampla e intensa transformação material e espiritual, quando as ilusões do progresso naufragam nas lutas sociais, ao mesmo
tempo que a utopia do futuro germina das mesmas lutas sociais. A sociedade e o indivíduo são atravessados por realidades
desconhecidas, assustadoras, fascinantes. Realidades que se expressam em novas idéias, categorias, teorias, ilusões, visões
do mundo. Muitos defrontam-se com o singular contraponto por meio do qual se desenha o labirinto da Modernidade:
anomia e alienação, racional e irracional, ideologia e utopia, liberdade e solidão.
Nesse ambiente, a Sociologia encontra elementos essenciais da sua formação, do seu estilo de pensamento. A despeito
das diversidades de perspectivas, das peculiarida
des dos princípios explicativos, é inegável que a Sociologia nasce e desenvolve-se com as realizações e os dilemas da
Modernidade. Tanto assim que ela não abandona essa problemática primordial. Ao contrário, torna e retorna freqüentemente
a ela. No presente, como no passado, a Sociologia está empenhada em desvendar o modo pelo qual o homem, Deus e o
Diabo estão metidos no meio do redemoinho.
Épica do Mundo Moderno
A Sociologia revela e constitui dimensões essenciais do Mundo Moderno. As expressões sociedade civil e estado
nacional, comunidade e sociedade, ordem e progresso, racional e irracional, anomia e alienação, ideologia e utopia, revolução
e contra-revolução, entre outras, explicam e constituem muito desse Mundo. Essa problemática denota o empenho do
pensamento sociológico em compreender, interpretar, taquigrafar, ordenar, controlar, dinamizar ou exorcizar esse Mundo.
Algumas das suas dimensões essenciais mostram-se mais claras, acentuadas ou surpreendentes nas explicações e fabulações
que constituem grande parte do pensamento sociológico. Nesse sentido é que se pode imaginar que sem a Sociologia o
Mundo Moderno seria mais obscuro, incógnito. Ficaria um pouco mais no limbo.
O vulto do desafio, da empresa e da realização lança a Sociologia também no plano artístico. É claro que o compromisso
com a reconstrução da realidade, compreendendo relações, processos e estruturas sociais, organiza-se basicamente em
moldes descritivos e interpretativos. O significado científico do escrito predomina no modo pelo qual se reconstrói e
explica a realidade social. O escrito impõe-se à escritura. Mas a escritura pode adquirir também conotações artísticas.
Além dos compromissos científicos e das implicações filosóficas, ela pode revelar entonações dramáticas e épicas.
É possível constatar que algumas das principais obras da Sociologia possuem também conotação artística, seja
dramática seja épica, ou mesmo mesclando ambas. O modo pelo qual recriam, compreendem, explicam e fabulam a
realidade sociais, em seus movimentos e impasses, encontros e desencontros, sugerem algo nesse sentido. Sim, uma parte
da Sociologia apanha o Mundo Moderno como espetáculo. E o homem desse Mundo como personagem singular e coletivo,
figura e figuração.
Tempo Social; Rev. Social. USP, S. Paulo, VOLUME 1(1) A R T I G O

Há livros nos quais a narrativa está atravessada por algo que parece uma força maior , que arrasta as pessoas e as
coisas , uma espécie de pathos assustador e fascinante. Não é mais o destino da épica grega que atravessa a vida do
indivíduo e sociedade,

comandando os homens um-a-um e todos, em suas relações entre si, com a natureza e os deuses. No Mundo Moderno,
o que comanda a vida da coletividade e do indivíduo, no campo e na cidade, pode ser o poder, a ordem, o progresso, o
racional, o irracional, a anomia, a alienação, a ideologia, a utopia, a revolução, a contra-revolução. Todos e cada um são
levados por algo que parece ser a força das coisas.
É claro que não se podem esquecer relações, processos e estruturas presentes no âmbito da economia, política,
religião, ciência, cultura, etc. Não há dúvidas de que a tecnologia, o capital, a força de trabalho, a divisão do trabalho social
e outros componentes da vida social são poderosas forças que se impõem sobre uns e outros. Também é óbvio que a luta
pelo poder, político, econômico ou outro, galvaniza uns e outros, muitos, todos. As relações entre dominantes e dominados,
governantes e governados, dirigentes e subalternos, estão atravessadas por forças que carregam os indivíduos, grupos e
classes sociais além dos seus desígnios, ideais, ilusões. Às vezes atingem as pessoas, grupos, classes, movimentos sociais,
partidos políticos, amplos setores sociais ou mesmo a sociedade como um todo, como se fosse um tufão, um terremoto.
Talvez isto estivesse no espírito de Hegel quando se preocupou em lembrar o seguinte: “Napoleão disse uma vez, diante
de Goethe, que nas tragédias do nosso tempo a política substituiu o destino das tragédias antigas” 8. Na comunidade
grega, os deuses comandam o destino dos homens, incutindo-lhe o mistério do pathos. Na sociedade burguesa, a luta pelo
poder comanda o destino dos homens, incutindo-lhe o mistério do pathos. É o que está em causa, quando a Sociologia
procura apanhar as transformações e crises, épocas e impasses do Mundo Moderno, da Modernidade. Uma força que
atravessa a coletividade, indivíduo, grupo, classe, movimento, partido, protesto, revolta, revolução, cidade. É o que confere
aos escritos sobre a sociedade moderna uma inflexão artística.
Nessa perspectiva é que se situam algumas das obras fundamentais da Sociologia, dentre as quais lembramos agora
as seguintes: O Antigo Regime e a Revolução de Tocqueville, Manifesto do Partido Comunista de Marx e Engels, A Divisão do
Trabalho Social de Durkheim, A Ética Protestante e o Espírito do Capitalismo de Weber, Comunidade e Sociedade de Toennis,
Ideologia e Utopia de Mannheim, A Personalidade Autoritária de Adorno e outros, O Homem Unidimensional de Marcuse,
Guerras Camponesas do Século XX de Eric Wolf, As Origens Sociais da Ditadura e Democracia de Barrington Moore Jr., 7 Ensaios
de Interpretação da Realidade Peruana de José Carlos

Mariátegui, A Revolução Burguesa no Brasil de Florestan Fernandes, Os Condenados da Terra de Frantz Fasnon. A
história contada nesses escritos não terminou. Continua viva, presente, decisiva. A inteligência da sociedade não garante
a sua emancipação. O mesmo homem que explica, não se emancipa. Debate-se como indivíduo e coletividade, pessoa e
personagem, figura e figuração. Pode principalmente refazer a esperança, a utopia. Canta e desencanta a inflexão dramática
ou épica impregnando os movimentos da sociedade.
Alguns sociólogos traduzem de forma particularmente nítida a dimensão épica do Mundo Moderno. Mostram
como a razão luta para compreender, explicar, taquigrafar, glorificar ou exorcizar a realidade social. Procuram os limites
e as sombras que distinguem e confundem comunidade e sociedade, ordem e progresso, racional e irracional, anomia e
alienação, ideologia e utopia, revolução e contra-revolução. Procuram o lugar da razão no jogo das relações, processos e
estruturas que se expressam em transformações e impasse, épocas e crises. Parecem demiurgos, lidando com as imensas
forças sociais, econômicas, políticas, religiosas e outras; tratando de explicar o Mundo, compreendê-lo, conhecer os seus
movimentos e as suas possibilidades; procurando conferir-lhe outro destino; querendo reinventar a vida.
Weber e Marx são dois sociólogos em cujas obras encontramos alguns elementos essenciais da épica. Não querem
apenas conhecer a sociedade moderna, burguesa, capitalista. Querem explicar como ela se forma e transforma, de onde
vem e para aonde vai. Procuram explicar o que pode ser a humanidade criada com o capitalismo. E como se transforma,
preserva, transtorna. São dois estilos de pensamento, duas interpretações da sociedade moderna, duas visões do mundo.
Max Weber é uma das figuras notáveis dessa épica. Grande parte da sua Sociologia revela um debate desesperado
sobre o racional e o irracional. Mostra como o indivíduo, grupo, classe, instituição, sociedade, estado, formam se e conformam
se, todo o tempo, à beira da razão, sem-razão. A tradição e o carisma, o despotismo e a demagogia parecem rondar
continuamente as pessoas, as coisas e as idéias, o real e o imaginário. A graça da vocação se revela no castigo da profissão,
ganho, lucro, acumulação. A recompensa pelo ascetismo se mostra na obediência do indivíduo e sociedade aos desígnios
das coisas, de forças que escapam ao controle tanto do indivíduo como da sociedade. Todos parecem vagar extraviados,
perdidos, solitários, no labirinto do Mundo Moderno. Mundo esse no qual Weber pode ser visto como um Prometeu
acorrentado.
Karl Marx é uma das figuras mais fortes dessa épica A sua obra é toda ela um vasto mural do Mundo Moderno.
Todas as principais linhas, figuras e cores, todos os principais movimentos e sons desse Mundo estão assinalados nos seus
escritos, vibrando na sua escritura. A narrativa de Marx ressoa sempre esse tempo presente, no qual se lembra o passado
e ressoa o futuro. Um tempo que contém os muitos andamentos dos indivíduos, grupos e classes, movimentos sociais e
partidos políticos, diversidades e desigualdades, contradições e rupturas, revoluções e contra-revoluções. Assim se revela
a historicidade da sociedade modema, do Mundo Modemo. Apenas um momento da história, e não o apogeu e coroamento
de todas as outras idades. Em seu interior germinam as forças e as relações que abalam o presente, resgatam fragmentos
do passado, podem construir o futuro. A história da sociedade burguesa é uma história de lutas sociais. Mas o segredo
mais recôndito dessas lutas está em que elas produzirão a sociedade futura, livre das desigualdades escondidas nas
diversidades entre indivíduos, grupos, classes, regiões. Nesse então, o homem estará livre da propriedade privada capitalista,
Tempo Social; Rev. Social. USP, S. Paulo, VOLUME 1(1) A R T I G O

entendida como fato jurídico-político, como realidade social e como princípio organizatório universal da vida material e
espiritual. Nesse então, os sentidos físicos e espirituais do homem estarão livres para expressar-se, revelar-se. Assim
começa a apagar-se o componente de barbárie que acompanha a Modernidade. Livres da tirania desse princípio, que os
organiza, ordena e subordina, os sentidos físicos e espirituais poderão descobrir e inventar formas, cores, sons, movimentos,
imagens, figuras, idéias e outras dimensões escondidas na máquina do Mundo. Assim, desse modo, plantado no vasto
mural do Mundo Moderno, Marx pode ser visto como um profeta iluminado.
Tempo Social - Rev. Sociologia da USP.
S. Paulo, 1(1), 1. sem. 1989.

Identidade Cultural, Identidade Nacional no Brasil


MARIA ISAURA PEREIRA DE QUEIROZ

Conferência de Abertura pronunciada no “Simpósio sobre


Identidade Nacional”, organizado pela Associação de
Professores de História, dias 26, 27 e 28 de novembro de
1987, Universidade Nova de Lisboa, Portugal.
Professora Adjunta do Programa de Pós-Graduação do
Departamento de Sociologia - FFLCH-USP, Presidente do
Centro de Estudos Rurais e Urbanos (CERU).

RESUMO: O problema da identidade cultural no Brasil vem sendo colocado desde os


primeiros trabalhos em Ciências Sociais no país, datados do século XIX. No correr do
tempo, foi sendo abordado de ângulos diferentes, em ligação íntima com as condições
sócio-econômicas nos diversos momentos em que se definia a identidade. Uma observação
mais acurada mostra que há urna sinonímia entre os conceitos de identidade cultural e
identidade nacional, ao contrário do que ocorre na Europa.
PALAVRAS-CHAVE: Identidade cultural, identidade nacional: Brasil e Europa.

Um dos primeiros problemas que os cientistas sociais brasileiros buscaram resolver em fins
do século XIX foi o da existência e características da brasilidade, que segundo eles se
comporia de duas vertentes: um patrimônio cultural formado de elementos harmoniosos
entre si, que se conservaria semelhante através do espaço e do tempo; e a partilha do
patrimônio cultural pela grande maioria dos habitantes do país, em todas as camadas
sociais. Tais elementos consistiriam em bens materiais (maneiras de viver) e espirituais
(maneiras de pensar). A totalidade deste patrimônio cultural poderia apresentar diferenças
através do tempo e do espaço; mas seriam diferenças superficiais; um núcleo central
profundo persistiria igual a si mesmo pelas idades afora, em todos os níveis sociais etnias.
Ora, ao encararem seu próprio patrimônio cultural, os pesquisadores de Ciências Sociais
desse período estavam conscientes da grande heterogeneidade de traços culturais ligados à
variedade dos grupos étnicos que coexistiam no espaço nacional que se distribuíam
diversamente conforme as camadas sociais. Os traços culturais não configuravam de modo
algum um conjunto harmonioso que uniria os habitantes, comungando nas mesmas visões
do mundo e da sociedade, nas mesmas formas de orientar seus comportamentos.
Complexos culturais aborígenes, outros de origem européia, outros ainda de origem
africana coexistiam. E estes cientistas sociais acusavam a persistência de costumes
bárbaros, aborígenes e africanos, de serem obstáculos impedindo o Brasil de chegar ao
esplendor da civilização européia. Consideravam-nos assim como uma barreira retardando
o encaminhamento do país para a formação de uma verdadeira identidade nacional, que
naturalmente embaraçava também um desenvolvimento econômico mais eficiente.
Estas maneiras de pensar se encontram nos estudos dos intelectuais dessa época, e mais
particularmente num deles, o médico baiano Raymundo Nina Rodrigues (Maranhão, 1862

18
Tempo Social - Rev. Sociologia da USP.
S. Paulo, 1(1), 1. sem. 1989.

— França, 1906)1, cujos trabalhos se voltaram principalmente para as culturas afro-


brasileiras. Segundo ele, os atrasos e os desequilíbrios da sociedade brasileira, fenômenos
sociais, provinham das misturas raciais, — bases biológicas, — e culturais encontradas no
país. Raymundo Nina Rodrigues definiu pela primeira vez a existência de um sincretismo
religioso no país ao estudar os candomblés baianos — nome genérico dado aos variados
cultos afro-brasileiros que então existiam. Segundo ele, o fator biológico era o principal
responsável pelas anomalias nacionais: reações políticas descomedidas e irrefletidas no
momento da transição do Império para a República (1889); conflitos de religiões; doenças
variadas e graves problemas de higiene. Todo o desajustamento sócio-econômico se
explicaria pela heterogeneidade biológica e cultural do país, levando os habitantes até
mesmo à loucura individual e coletiva.
Raymundo Nina Rodrigues foi o grande iniciador dos estudos de etnografia e de psicologia
social no país. Aliás, foi ele também, na Europa e mais especialmente na França, um dos
fundadores da Psicologia das Multidões, ao lado dos Sighele, dos Rossi, dos Tarde, dos Le
Bon. Mas enquanto os europeus efetuavam estudos teóricos, partia ele de estudos de campo
sobre material diretamente observado e colhido na Bahia; e muitas vezes se contrapôs a
seus colegas europeus, mostrando que conceitos e definições destes não se adequavam a
casos brasileiros. Até hoje seus trabalhos são um precioso repositório de dados,
principalmente relativos às religiões afro-brasileiras, entre outros fenômenos sociais que
observou.
Próximos desta maneira de pensar, dois outros estudiosos dessa época, Sylvio Romero
(1851-1914)2 e Euclydes da Cunha (1866-1909)3 apresentaram, com pequenas variantes, as
mesmas questões: como podiam elementos culturais de origem tão diversa coexistir sem
reciprocamente se destruírem? Poderiam um dia chegar a constituir um conjunto
harmonioso, e qual o processo para se alcançar tal resultado? O que tudo isto representava
relativamente ao progresso, tão necessário, do país?
O racismo estava, pois, presente nos trabalhos destes pesquisadores do século XIX, de
envolta, em doses variadas, com o pessimismo pelo futuro econômico e cultural do país,
assim como a negação da existência de características especificamente brasileiras, e até
mesmo da possibilidade de sua formação um dia. Estes medos ora apareciam em
determinadas apreciações, ora permaneciam latentes, mas eram facilmente discerníveis
num adjetivo, na construção de uma frase, e sublinhavam a maioria dos raciocínios e das
inferências. De qualquer modo, uma pergunta estava sempre presente, explícita ou
implícita: chegaria um dia todos os brasileiros, apesar da variedade de seus grupos étnicos e
de suas posses a configurar um patrimônio cultural harmonioso e refinado, que seria
partilhado por todos, em todas as regiões, em todas as camadas sociais? Pois para estes
cientistas, sem harmonia não haveria civilização.
O racismo se encontra presente nos estudos dos três autores. Não era de admirar, pois na
Europa as teorias a respeito estavam então claramente formuladas e atuantes. O Conde de
1
NINA RODRIGUES, Raymundo. Os africanos no Brasil. 2ª ed. S.Paulo, Cia. Editora Nacional. 1935.
Idem, As coletividades anormaes. Rio de Janeiro, Civilização Brasileira Ed., 1939.
2
ROMERO, Sylvio. A filosofia no Brasil (1876); idem, Estudos sobre a poesia popular no Brasil (1888),
Petrópolis, Vozes, 1977; idem, Etnografia brasileira (1888).
3
CUNHA, Euclydes. Os Sertões (1902). S. Paulo.

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Gobineau (1816-1882)4, por exemplo, autor do “Ensaio sobre a desigualdade das raças
humanas” (cujas teorias influenciariam mais tarde os expoentes do racismo germânico),
proclamava nessa época superioridade dos louros dolicocéfalos, habitantes da Inglaterra, do
norte da França e da Bélgica, que eram as regiões industrializadas então, sobre todos os
representantes de outras etnias. Não era de admirar, pois, que doutrinas desse tipo viessem
refluir no Brasil.
A revelação de Nina Rodrigues da continuidade, por mais de três séculos, das religiões
africanas sob a máscara de uma adesão superficial ao catolicismo, a constatação de que
uma interpenetração se operava entre esta religião, considerada a verdadeira, e os cultos
bárbaros, alimentou profunda inquietação: eram cultos que mantinham estranhas maneiras
de pensar e de agir, que pareciam abalar a moral existente, e cujo poder sobrenatural era
difícil negar ou medir.
Em todos eles, divindades representavam as forças cósmicas e sociais, e correspondências
haviam sido definidas entre as divindades e os santos católicos. As seitas eram
perfeitamente organizadas, cada terreiro com seu pai ou mãe de santo (sacerdotes), com
suas hierarquias complexas de agentes do culto, através das quais os indivíduos se alçavam
a níveis cada vez mais elevados de contatos com o reino do sagrado. Os candomblés eram
religiões da Palavra, em que a transmissão do saber religioso era feita oralmente, tanto
durante a longa iniciação (que levava até 7 anos, quando se desejava chegar a pontos mais
altos da hierarquia), quanto durante a vida e atividades dos fiéis5.
Não existia nestes cultos uma noção de pecado. As divindades não eram nem boas nem
ruins, elas se comportavam com os fiéis em função do tratamento que destes recebiam. A
reciprocidade de dons existia entre divindades e fiéis e, se cuidadosamente observada,
podiam estes últimos viver tranqüilos e esperar sem sustos a passagem para o além. O
contato direto com as divindades, que durante as belas e freqüentes cerimônias desciam até
seus cavalos e lhes orientavam os passos dançantes, constituía também uma garantia de que
os adeptos se encontravam no caminho certo para conseguir os dons a que almejavam.
Os cultos afro-brasileiros se distinguiam por formarem cada qual uma totalidade religiosa
independente e, em geral, rival de outras. As unidades de culto representadas pelos
terreiros não se agrupavam em conjuntos sob um poder central; ao contrário, cada unidade
defendia rigorosamente sua independência. Permaneciam assim fundamente ligados às
tribos de origem e suas dissenções. Talvez estivesse aí uma das razões pelas quais os
escravos, sendo muito mais numerosos que os senhores brancos, não desenvolveram
rebeliões e lutas freqüentes, durante os três séculos que durou a escravidão: não possuíam
uma base comum de organização (apesar da semelhança de crenças e divindades) que lhes
fornecesse base segura para que a resistência se expandisse. As religiões, comumente
chamadas candomblés, significaram, portanto, uma defesa cultural para os africanos e seus
descendentes, muito embora esporadicamente delas participassem brancos; por seu
intermédio, salvaguardavam as maneiras de ser e pensar que constituíam seu patrimônio
4
GOBINEAU, Conde de (Joseph Arthur de). Essai sur l’inegalité des races humaines. 5ª ed., Paris, Librairie
de Paris, s/d (1854).
5
BASTIDE, Roger. Le candomblé de Bahia (Rite Nagô). Paris, Mouton & Cia., 1958: idem, Les religions
africaines au Brésil, Paris, Presses Universitaires de France, 1961; idem, Images du nordest mystique en noir
et blanc. Nice, Pandora Ed., 1978.

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específico, impedindo que a cultura ocidental, fortemente hegemônica durante os períodos


colonial e imperial, destruísse e totalmente anulasse tudo quanto os caracterizava enquanto
coletividades específicas, distintas da coletividade branca e possuindo seus grupos
peculiares.
A função de defesa cultural dos candomblés foi perfeitamente percebida por Raymundo
Nina Rodrigues em seus trabalhos; seus textos visavam dar um grito de alerta aos
conterrâneos sobre a ameaça subjacente à aparente submissão negra. Suas constatações
vinham reforçar o sentimento de perigo que avassalava as elites, muito conscientes da
diferença numérica entre os africanos e seus descendentes, de um lado, e a população de
origem européia, de outro. Este medo foi mais um obstáculo no caminho da abolição da
escravatura, tornando seu sucesso difícil de alcançar durante longo tempo, da primeira lei,
votada em 1831, até a Lei Áurea, de 1888. Uma vez outorgada a cidadania aos escravos, —
embora apenas parcialmente, — as preocupações dos brancos aumentavam: agora que os
negros se consideravam iguais aos brancos, estes negros detentores de uma cultura bárbara
representada pelos candomblés, a própria cultura ocidental parecia muito mais seriamente
ameaçada. As perseguições contra os costumes africanos e os candomblés aumentaram.
Estas maneiras de ver se refletiram nas especulações sobre a falta de uma identidade
cultural nacional que viesse costurar entre si pedaços tão díspares e que ao mesmo tempo
lhes apagasse as arestas. E, dado que na maneira de pensar dos intelectuais de então a
identidade nacional não podia existir sem certa homogeneidade de traços culturais, e
encontravam na sua cultura grandes disparidades, o pessimismo era dominante em seus
trabalhos. Somente podiam conceber uma identidade cultural da maneira que julgavam ser
a ocidental — branca, educada, refinada.
Suas idéias se espalharam pelas chamadas camadas cultas do país e tiveram sucesso;
preconceitos e negativas vão colorir os trabalhos de outros intelectuais durante o início do
século XX. Porém, em sua segunda década, concepção oposta foi abrindo seu caminho
entre jovens pensadores do Sudeste do país, concretizando uma revolução nas idéias que se
afirmou com vigor durante a chamada Semana de Arte Moderna de São Paulo, em 1922.
Dois nomes devem ser lembrados então, de autores que forjaram uma outra maneira de
conceber o problema da identidade nacional. Não se trata agora propriamente de cientistas
sociais strictu sensu (embora o escritor Mário de Andrade, pelas suas pesquisas de folclore,
mereça esta qualificação), e sim realmente de pensadores que promoviam uma reviravolta
nas maneiras de ver da intelectualidade nacional.
Uma identidade cultural, urna identidade nacional, eram por eles perfeitamente admitidas; o
que é mais, tal noção era proclamada e defendida, se contrapondo às idéias dos
predecessores. Mário de Andrade (1893-1945) define a brasilidade principalmente em
Macunaíma, seu herói que reúne ao mesmo tempo as qualidades africanas, aborígenes,
européias, todas semelhantes em valor. Demonstra que a originalidade e a riqueza da
cultura brasileira provém justamente da multiplicidade de suas raízes. A mistura profunda
de elementos heterogêneos, em lugar de nociva e perigosa, por ele é vista como um fator
importante para que o patrimônio cultural atinja elevado grau de excelência6. O escritor e

6
ANDRADE, Mário de. Macunaíma (1928); idem, Aspectos da literatura brasileira. São Paulo, Livraria
Martins Ed., s/d.

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ensaísta Oswald de Andrade (1890-1954), por sua vez, forjando a teoria da antropofagia,
explica como se opera a fusão dos elementos culturais díspares: o Brasil, culturalmente,
devora as civilizações que a ele vêm ter, compondo uma nova totalidade diferente das
anteriores7. Forçados a se misturar, os elementos heterogêneos garantem originalidade e
beleza à nova cultura resultante — proveniente, portanto da própria incongruidade dos
traços, forçados a se ajustarem uns aos outros no interior de um mesmo conjunto. E nestes
arranjos numa outra configuração, com outro sentido, se encontrava a especificidade da
civilização brasileira no concerto das nações.
Os corpos de noções dos dois escritores se apresentam então como complementares. A
contradição com as teorias dos pesquisadores da época precedente é flagrante. Aos olhos
dos jovens intelectuais, a homogeneidade cultural, que seus maiores haviam considerado de
importância fundamental na definição de uma identidade, surgia agora ou como uma ilusão
ou como um falso problema. A própria civilização ocidental, a própria civilização européia
constituíam aglomerados tão heterogêneos quanto a brasileira. Diferenças étnicas e raciais,
sincretismos culturais, misturas de civilizações, eram a constante no universo social e nada
tinham a ver com atrasos em relação a progresso, ou falta de desenvolvimento, ou
propensão à barbárie. Sua ocorrência resultaria, isso sim, de fatores históricos e
econômicos.
O novo conjunto de noções foi rapidamente vitorioso sobre as velhas maneiras de pensar,
apesar de no início seus autores terem se visto a braços com críticas desfavoráveis e
hostilidade. Na década de 30, porém, já se encontrava perfeitamente consolidada e
considerada como a interpretação válida do que seria a brasilidade. Com o correr do tempo,
mais e mais foi se configurando como núcleo central de uma definição do que seria a
identidade nacional, que perdura até os dias atuais.
Nessa mesma década de 20 e na mesma região de Sudeste, novo culto afro-brasileiro fez
sua aparição no cenário das religiões nacionais — a umbanda. De acordo com seus
sacerdotes, três ordens de divindades compunham o céu da crença recém-aparecida:
africanas, aborígenes, européias. O conjunto do saber religioso reunia elementos dessas três
origens, sendo que a contribuição européia provinha do catolicismo, porém muito mais
acentuadamente do espiritismo8. A reencarnação, tal como figura no kardecismo, passou a
constituir um dos traços mais importantes da nova fé, distinguindo-a tanto do catolicismo
quanto dos velhos cultos afro-brasileiros; o adepto que obedecesse todas as injunções do
sacerdote e do culto, se reencarnaria numa situação social e econômica muito superior do
que a que havia ocupado durante sua vida atual, e assim sucessivamente até a bem-
aventurança final.

7
ANDRADE, José Oswald de Sousa - este romancista, ensaísta, teatrólogo, jornalista, lançou em 1924 o
Movimento Nativista Pau Brasil por meio de um Manifesto em que explicava suas idéias; mais tarde, em
1927, organiza a Revista de Antropofagia, em que, no Manifesto Antropofágico, mostra como este novo
movimento é continuação lógica do anterior. Em 1945, defende na Universidade de São Paulo a tese de livre-
docência: A Crise da Filosofia Messiânica, em que explica novamente sua visão do mundo antropofágico.
8
ORTIZ, Renato. Du syncrétisme à la synthèse: Umbanda, une réligion brésilienne. Arcihives des Sciences
Sociales des Religions, Paris, Année 20, n.4, 1975; idem, A morte branca do feiticeiro negro. Petrópolis,
Vozes, 1978.

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Desta noção básica derivavam outras, entre as quais a de pecado. Ofensas contra princípios
morais ou injunções divinas seriam punidas numa outra reencarnação, se escapassem do
castigo na vida atual; o faltoso desceria na escala social e teria existência precária. Nos
velhos cultos afro-brasileiros, as faltas cometidas eram atribuídas à ignorância, às
imperfeições individuais, a erros, a enganos. O indivíduo não era o único responsável por
sua conduta e suas obrigações, não lhe cabia escolher entre o certo e o errado. Para ele tudo
correria bem, se ele mesmo, ou alguém por ele, interpretasse corretamente o desejo dos
deuses, aos quais tinha de obedecer sem falha. Na umbanda, ao contrário, a distinção entre
certo e errado, a responsabilidade individual na escolha entre estes contrários, tornava-se
fundamental, e ligado de modo eficiente com a doutrina da reencarnação, embora a técnica
ritual das oferendas também se conservasse para captar as boas graças divinas.
Existe também na umbanda (como no kardecismo), uma tentativa constante de provar
cientificamente a existência do sagrado e das divindades, assim como da reencarnação;
grande quantidade de textos religiosos passaram, pois, a ser publicados para tal. Paralela à
hierarquia dos pais e mães de terreiro (sacerdotes e sacerdotisas), outra hierarquia surgiu, a
dos sábios, possuidores de um conhecimento religioso transmitido em livros e folhetos.
Assim o conhecimento religioso pode ser difundido oralmente durante a iniciação (que se
tornou muito mais curta do que a dos velhos cultos), porém igualmente por meio de textos
religiosos. Esta nova característica da umbanda transforma-a numa nova Religião do Livro,
muito diferente dos antigos cultos afro-brasileiros, que eram Religiões da Palavra.
Além destas diferenças, nota-se ainda a tendência para formar federações ou associações de
terreiros sob o controle de uma comissão ou de um diretório central. A primeira tentativa
teve lugar já no início da década de 30. A umbanda se apresenta assim inteiramente
diferente dos antigos candomblés e outros cultos afro-brasileiros que, ao contrário da
umbanda, defendem zelosamente ainda hoje sua independência e não buscam se associar9.
Os primeiros fiéis da umbanda eram habitantes negros e mulatos de camadas sociais
inferiores das duas grandes cidades do pais, São Paulo e Rio de Janeiro. Porém o novo
culto não tardou em penetrar em outros grupos étnicos que não os de origem africana, e em
se alçar a outras camadas mais elevadas da sociedade global brasileira; imigrantes recentes,
europeus ou do Oriente Médio, passaram a ser encontrados entre os adeptos10. Também
neste aspecto diferenciou-se a umbanda do candomblé; neste último, houve a penetração de
indivíduos de outras etnias e camadas, porém neles sempre foi mantido o grande
predomínio de indivíduos de estratos mais baixos da sociedade e de origem africana.
Assim, na segunda década do século XX, a heterogeneidade do patrimônio cultural
brasileiro é encontrada erigida em característica do maior valor para significar a
brasilidade, em dois estratos sociais muito distantes um do outro, tanto em posição sócio-
econômica quanto em instrução: o grupo de jovens intelectuais burgueses, de formação
universitária, que a definem no âmbito de uma teoria explicativa, e os grupos de
descendentes de africanos dos estratos mais baixos, nas duas grandes aglomerações urbanas
do país, que fazem dela o núcleo central de uma nova religião. Os primeiros proclamavam

9
BASTIDE, Roger. Les religions africaines au Brésil. Paris, Presses Universitaires de France, 1961
10
FRY, Peter. Manchester, sec. XIX; S. Paulo, sec. XX: dois movimentos religiosos. Religião e Sociedade,
São Paulo, n.3, out. 1978.

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conscientemente, em seus textos e trabalhos, a importância da heterogeneidade cultural


nacional. Os segundos a admitiam implicitamente, através dos princípios de sua fé
religiosa. Tal convergência não seria certamente gratuita, e as circunstancias sócio-
históricas em que ambas as novas teorias da identidade cultural nacional — a filosófica e a
religiosa, — surgem, devem ser examinadas para uma compreensão melhor de sua
consistência. E note-se ainda: a primeira contradizia inteiramente as teorias precedentes dos
intelectuais brasileiros de fins do século XIX; a segunda se afastava de maneira
extremamente clara do velho candomblé11.
A região brasileira de Sudeste, em que surgiram estas duas ideologias, sofrera enorme
transformação a partir de fins do século XIX, decorrente da onda de imigrantes
predominantemente europeus que nela vieram ter, buscando vida melhor; grande número
deles fixou-se nas cidades do Rio de Janeiro e de São Paulo. O crescimento ultra acelerado
de São Paulo é demonstrado pelos dados demográficos: entre 1890 e 1900, a população
paulistana cresceu 168%; de 1900 a 1920, a intensidade diminuiu, foi só de 141%. O
decréscimo da intensidade permanece a partir de então: 83% de 1920 a 1940; baixando
sempre até se mostrar inferior a 50% entre 1960 e 198012. Além disso, entre 1908 e 1920,
340.000 imigrantes voluntários, isto é, não subvencionados pelo Estado, chegaram a
Santos, o porto que serve São Paulo, dos quais 80% se dirigiram para esta última cidade,
onde ao que consta dos relatórios da imigração, encontraram emprego. Nesse mesmo
período, outros 180.000, subvencionados pelo Estado ou então pelos grandes fazendeiros de
café, chegaram ao mesmo porto; uma parte deles, descontente com as condições de vida das
grandes fazendas, também veio engrossar as populações urbanas da região, mormente São
Paulo, cujo mercado de trabalho era mais promissor13. A cidade de 239.820 habitantes em
1900, chegava a 1920 com 587.072, a grande maioria dos quais se compunha de italianos,
portugueses, espanhóis14.
Do início do século XX em diante, Rio de Janeiro e São Paulo foram assim perdendo as
características de cidades grandes e adquirindo as de metrópoles. Seu crescimento
demográfico intenso era concomitante com um rápido desenvolvimento de empregos
terciários, indispensáveis à organização de grandes centros urbanos, cujos habitantes
constantemente estão exigindo vida mais confortável e mais sofisticada. O mercado de
trabalho se ampliou, oferecendo oportunidades antes inexistentes à população de camadas
médias e inferiores15.
O Sudeste brasileiro foi literalmente invadido por grande quantidade de imigrantes
europeus, que traziam consigo sua própria cultura, a qual passou a ameaçar de submersão a
civilização existente, — civilização construída durante três séculos de contatos constantes e
muito próximos entre portugueses, índios e africanos.

11
PEREIRA DE QUEIROZ, Maria Isaura. Religious evolution and creation: the Afro-Brazilian cults.
Diogenes, Paris (Unesco), n. 115, 1981.
12
BLAY, Eva Alterrnan. Eu não tenho onde morar (Vilas operárias na cidade de S. Paulo). São Paulo, Ed.
Nobel, 1985
13
MORSE, Richard. Formação histórica de S. Paulo. São Paulo, Difusão Européia do Livro, 1970.
14
IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística) - Série Estatística - Rio de Janeiro, IBGE, vol. 1,
1986, p. 3, 4, 6.
15
MARTIN, Jean Marie. Processus d'industrialisation et développement energétique du Brésil. Paris, Institut
des Hautes Études de l'Amerique Latine, 1966.

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O fato de que escravos negros e servidores indígenas foram sempre empregados por
famílias brancas; o fato de que crianças brancas foram acalentadas e amamentadas por
mães-pretas, o fato de que senhores brancos tinham amantes negras e mulatas, que
concebiam filhos de características raciais inteiramente misturadas; o fato de que negros
livres e indígenas vivendo sua existência tribal nas matas sempre existiram no país; o fato
de que nos estratos inferiores das aglomerações urbanas e das fazendas gente de origem
étnica variada se misturava, — introduzira mesmo nas famílias de mais elevada posição
social crenças, maneiras de pensar e de agir, costumes, objetos materiais, que nada tinham a
ver com a cultura européia. Uma nova civilização foi assim surgindo pouco a pouco,
nascida de contatos étnicos e culturais diversos, uma civilização brasileira que, em fins do
século XVIII, já havia adquirido mais ou menos certa estabilidade.
A onda de imigração estrangeira, que se avolumara nos últimos anos do século XIX,
persistiu durante as primeiras décadas do século XX; e pelos anos 10 e 20, alguns dos
recém-chegados e seus descendentes já haviam se alçado a estratos mais elevados da
hierarquia sócio-econômica e até política, atingindo mesmo posições importantes na
administração pública. Assim, não apenas a europeização cultural ameaçava a antiga
civilização originada no período colonial, que estava sendo literalmente afogada pela
avalanche de traços culturais estrangeiros, mas também os próprios imigrantes estavam
ameaçando as posições sociais dos brasileiros, e ocupando postos de mando que deveriam
ser atribuídos a estes.
Tais circunstâncias foram concomitantes com o aparecimento da umbanda e com a nova
teoria interpretativa da brasilidade, constituindo sem dúvida fatores que pelo menos
favoreceram o seu aparecimento. Acentuando o valor e a riqueza do patrimônio cultural
nacional, originário de três fontes étnicas distintas, elite e camadas inferiores de brasileiros
estavam se defendendo contra os imigrantes e os complexos de civilização de que estes
últimos eram portadores. Noutras palavras, a chegada maciça de europeus, ameaçando o
poder dos autóctones, chamou-os à consciência da especificidade de sua civilização,
acentuou neles o apego em relação à sua própria herança e valores. Economicamente, os
imigrantes eram indispensáveis para auxiliar o desenvolvimento nacional, que necessitava
de braços; não podiam ser combatidos frontalmente, e a hostilidade foi transposta para o
reino das idéias, produzindo por um lado uma nova definição do ser brasileiro, dando
nascimento por outro lado a uma nova religião afro-brasileira.
Enquanto na esfera intelectual, a defesa da cultura e o domínio das posições na hierarquia
nacional abalavam as idéias então dominantes sobre o país e sua civilização, nos estratos
inferiores havia a transformação do antigo candomblé numa outra religião, também
defensiva da civilização nacional e mais condizente com as exigências da vida em grandes
aglomerações urbanas, que exige a utilização de leitura e escrita. O período histórico em
que surgiram novas teorias e religiões ligava-as assim a condições especificas, que não
seriam meramente concomitantes; as condições de função parecem ter sido fundamentais
no sentido de condicionar determinadas peculiaridades que ambas apresentaram, em que se
destaca a ênfase na valorização incondicional das três fontes de que se originou a
civilização brasileira.
Desta forma, o sincretismo cultural passou a ser muito importante aos olhos de camadas
sociais dissemelhantes da sociedade brasileira. Na verdade, se os intelectuais brasileiros

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persistissem em desprezar os traços culturais aborígenes e africanos, anulariam os únicos


elementos que tornavam sua civilização única entre as demais do globo. Se continuassem a
se apresentar como europeus, e, — pior ainda, — como europeus de qualidade inferior
porque possuidores de uma cultura mestiça, recheada de traços bárbaros, — continuariam
negando a existência da identidade nacional. A única forma de encarecer a posição
subordinada dos imigrantes europeus e de sua civilização, na sociedade brasileira, era
dando ênfase e atribuindo o maior valor à heterogeneidade da civilização nacional.
As reações de estratos sociais tão distintos convergiam, mas foram diferentes em vários
aspectos, porque provenientes de gente de situação diversa, tanto sócio-econômica quanto
educacional, e conseqüentemente apresentando maneiras de pensar muito diferentes. A
primeira divergência e a mais gritante está na forma tomada por cada uma das reações: uma
nova teoria dizendo respeito à identidade nacional, uma nova religião afro-brasileira. No
entanto, ambas as reações pertencem ao domínio das idéias e eram sustentadas por um
conjunto semelhante de concepções, isto é, estavam construídas em torno do valor positivo
atribuído à associação de traços culturais de origem heterogênea.
As duas doutrinas também se mostram díspares em seus objetivos. Definida por
intelectuais, isto é, por gente que pertencia a estratos sociais elevados, a nova concepção da
identidade brasileira constituía um instrumento voltado contra a ambição dos imigrantes
recém-chegados, que deviam aderir a ela se pretendiam ascender na escala social.
Construída pelas camadas inferiores, a umbanda constituía uma forma de se distinguir e era
também um instrumento de adaptação à vida urbana moderna, em que um dos mecanismos
importantes para se conseguir bom emprego era o domínio da leitura e da escrita. Além
disso, encerrando a promessa de melhoria de vida futura, numa outra encarnação,
fomentava as esperanças otimistas em grupos que sofriam as incertezas da existência em
aglomerações urbanas em condições de rápida modernização e cuja possibilidade de
sobrevivência estava ameaçada pelos imigrantes, mais bem armados para uma existência
moderna.
Apesar destas diferenças, ambas as teorias tendiam para a mesma finalidade última:
promover a continuidade e a persistência de gente em duas condições de vida muito
diversas. Os intelectuais, com suas teorias, defendiam as camadas elevadas contra a
ascensão invasora dos imigrantes. Os umbandistas voltavam a nova religião para a defesa
de sua cultura e, nas condições precárias de vida das camadas inferiores, disseminavam
esperanças de melhoria futura, numa outra reencarnação. Ambas as teorias constituíam
armas ideológicas para lutar contra condições sociais consideradas perniciosas e
destruidoras, eram instrumentos de repulsa contra o perigo representado por complexos de
civilizações provenientes do exterior e por demais ameaçadores. Esta análise está indicando
que, no Brasil, indivíduos de estratos díspares partilham, nas profundezas da mente, das
mesmas idéias e dos mesmos valores fundamentais, embora os expressem de maneira
diferente. Noutras palavras, verifica-se que indivíduos de proveniência muito diversa,
educados de maneira diferente, comungavam num patrimônio cultural que os ligava uns aos
outros. A constatação de que estes valores básicos se haviam tornado o fulcro de duas
doutrinas muito diversas, originárias de grupos sociais em posições opostas, somente dá
mais ênfase à noção de existência de certo sentimento de identidade cultural nacional

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naquele momento. Também torna explícita a existência de um núcleo cultural brasileiro,


comum, que pode emergir sob formas diversas.
Na verdade, documentos históricos demonstram que a mistura de três culturas etnicamente
diferenciadas existia já com bastante estabilidade desde o início do século XVIII, pelo
menos. Todavia, a miscelânea cultural não era reconhecida como válida, principalmente
pelas camadas superiores da sociedade, e notadamente pelos poucos intelectuais da época.
Em fins do século XIX, os intelectuais reconheciam a heterogeneidade cultural e o
sincretismo na sociedade em que viviam; mas negavam-lhe qualquer valor e, também que
houvessem constituído já uma identidade brasileira ou uma identidade nacional, seus
preconceitos raciais e contra os costumes bárbaros dos africanos e dos indígenas impedia-
os de reconhecer qualquer valor a qualquer tipo de mestiçagem16. A invasão do Sudeste
pela onda avassaladora da imigração européia e a necessidade de se distinguir dos recém-
chegados despertou conjuntos de brasileiros para o valor da civilização mestiça, que afinal
de contas dava frutos úteis e até mesmo belos. Admitiam então os jovens intelectuais, e
somente então, que brancos, negros, mulatos, mestiços, nas variadas camadas sociais, eram
portadores, no Brasil, de um mesmo núcleo cultural, de instrumentos, de comportamentos,
de valores, e que civilizações híbridas não eram perniciosas, nem em sua essência, nem em
suas conseqüências. Reconheceram então os jovens intelectuais que, juntamente com
negros, mulatos, índios, mestiços, compunham uma totalidade nacional.
Quando os estudiosos brasileiros, na segunda metade do século XIX, iniciaram debates
sobre a existência ou não de sua identidade, questão similar já estava sendo discutida por
mais de um século por intelectuais europeus. Haviam estes tentado identificar que
qualidades eram específicas de grupos étnicos e culturais — catalães bretões, napolitanos,
etc. — tanto no que dizia respeito a qualidades físicas, quanto a peculiaridades
psicológicas. Nascera destas preocupações uma nova ciência na segunda metade do século
XIX, ou mais precisamente em 1859 — a “Völkerpsychologie”, na Alemanha: a “Folk
Psychology”, na Inglaterra; a “Psychologie des Peuples”, na França. Sua orientação sendo
psicológica, a finalidade era descobrir que virtudes, que defeitos, constantes através do
tempo, davam a cada grupo étnico sua personalidade e o tornavam reconhecível no meio de
outros17.
Já muito antes do aparecimento desta disciplina, humanistas de diversa origem —
franceses, alemães, ingleses, italianos — se referiam em seus trabalhos à “identidade de um
grupo”, à “identidade de um povo”, buscando traços físicos, hábitos, qualidades morais e
intelectuais que caracterizassem cada região ou cada país, inclusive o seu próprio. Traços
corriqueiros foram muitas vezes considerados por eles como sinais indiscutíveis de
identificação. Conforme as caracterizações fossem baseadas em relações de simpatia e de

16
PEREIRA DE QUEIROZ, Maria Isaura. Brésil, XIXe siècle: les précurseurs des Sciences Sociales. In:
Culture, science et développemlent (Mélanges en l’honneur de Charles Morazé). Toulouse (France), Ed.
Privat, 1979; idem, Cientistas sociais e o auto-conhecimento da cultura brasileira através do tempo. Cadernos,
São Paulo, Centro de Estudos Rurais e Urbanos, n. 13, 1a série, set. 1980; idem, Balanço da tradição do
pensamento sobre cultura e sociedade a partir do sec. XIX no Brasil. Cadernos, São Paulo, Centro de Estudos
Rurais e Urbanos, n. 17, 1a série, set. 1982.
17
ORTIZ, Renato. Cultura popular: românticos e folcloristas. São Paulo, Texto n.3, Programa de Estudos
Pós-Graduados em Ciências Sociais, Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, 1985; idem, Cultura
brasileira e identidade nacional. São Paulo, Ed. Brasiliense 1985.

27
Tempo Social - Rev. Sociologia da USP.
S. Paulo, 1(1), 1. sem. 1989.

aliança, ou em invejas e rivalidades, a caracterização resultante era positiva ou negativa, a


mesma coletividade sendo encarada em perspectiva diferente pelos estudiosos, de acordo
com suas condições específicas; muitas vezes o mesmo país ou região foi definida em
termos contraditórios por diversos autores no mesmo momento e no mesmo período
histórico. Observações que continham uma dose substancial de racismo e de preconceitos
foram nessa época consideradas como produto de investigação científica, apesar de seu
visível impressionismo18.
Do fim da Renascença em diante, operou-se na Europa a agregação de várias populações e
principados sob uma dominação política. A organização de nações compostas de vários
grupos vivendo em determinado território, indicava que sua reunião tinha obedecido a
reflexões mais ou menos conscientes da parte dos grupos muito diferentes que assim se
associavam. Heterogeneidades étnicas e culturais quedavam mais ou menos neutralizadas
por esta adesão consciente de indivíduos e de grupos a uma totalidade política, que formava
assim um Estado soberano. A dominação política bem aceita por grupos muito diversos em
suas maneiras de ser deu nascimento a uma outra questão, a da identidade nacional. As
guerras que sempre perturbaram as regiões da Europa foram fatores importantes no
aparecimento do nacionalismo, isto é, da exaltação de uma nação sobre as demais, e a
consideração de que sua cultura e interesses eram opostos aos de outras nações.
Nos países europeus, o que unia as variadas coletividades era a comunhão num sentimento
desenvolvido sob as ameaças de inimigos existentes em torno, que levava vários grupos
culturalmente diversos a comporem uma coletividade mais vasta que os defenderia sem
apagar suas peculiaridades. Nesta perspectiva, os cientistas sociais buscavam definir uma
identidade nacional que seria sinônima de nacionalismo, isto é, dedicação e lealdade a uma
nação que reunia gente de origem e qualidade muito diversa.
A busca de uma característica comum que definisse as coletividades, — busca que formava
o campo da Psicologia dos Povos, não podia ser confundida com o nacionalismo ou com a
identidade nacional. Identidade cultural se apresenta forçosamente como coisa muito
diversa; diz que todos os membros de uma coletividade partilham do mesmo patrimônio
cultural, que neles dá origem a um conjunto de valores e de crenças que os tornam sui
generis, e que muitas vezes está perfeitamente inconsciente. Buscar a identidade nacional
na perspectiva da Psicologia dos Povos ou no campo da identidade cultural levava
forçosamente a decepções e becos sem saída, pois cada nação européia era composta de
grupos culturalmente heterogêneos, de coletividades disparatadas em suas características;
no entanto, estavam todos unidos por uma dedicação comum e consciente à totalidade que
compunham. Nos estudos brasileiros, a identidade nacional foi estudada em quadro
totalmente diverso; a preocupação dos pesquisadores se voltou para a definição de seu
patrimônio cultural, ou, noutras palavras, para a descoberta de qual a configuração
resultante da associação de equipamentos, instrumentos, acessórios (tanto materiais quanto
intelectuais), de origem muito variada, que se haviam tornado dominantes no contexto
natural, social e sagrado em que viviam; estudavam os sinais tangíveis de sua civilização.
Não estavam atraídos pelas peculiaridades psicológicas, e seus trabalhos não podem ser
rubricados como pertencentes à Psicologia dos Povos; o que analisavam, se integrava na

18
BAROJA, Julio Caro. El mito del caracter nacional; meditaciones a contrapelo. Madrid, Seminarios y
Ediciones S.A., 1970.

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S. Paulo, 1(1), 1. sem. 1989.

Antropologia, na Sociologia, na Etnologia. Nem mesmo Raymundo Nina Rodrigues, que


foi um dos fundadores da Psicologia dos Povos e que interpretava os fatos estudados num
quadro que relevava da psiquiatria, poderia ter assim classificado seus trabalhos. A busca
da identidade cultural foi mais tarde retomada, na década de 20 deste século, pelos jovens
intelectuais que desencadearam a revolução da Semana de Arte Moderna, no Brasil. Como
seus predecessores, não estavam interessados em definir especificamente o caráter
brasileiro, isto é, suas virtudes e qualidades. O próprio “Macunaíma”, de Mário de
Andrade, está muito mais voltado para as exterioridades do comportamento de seu herói, do
que para a definição de seus sentimentos profundos. A menção “o herói sem nenhum
caráter” não se liga aos sentimentos do retratado, e sim e muito mais à heterogeneidade de
seus comportamentos (e o comportamento é sempre algo de exterior ao indivíduo, ou
melhor, é sempre uma ligação do indivíduo com o exterior e não uma investigação de seu
íntimo), que provinham de diversas fontes. Definição que não estava marcada por nenhum
julgamento de valor pessimista ou negativo; era expressa como uma constatação do que
existia. O julgamento negativo estava, isso sim, associado ao gigante italiano, que combatia
Macunaíma no romance...
Os jovens pesquisadores dos anos 20 estavam também voltados, como seus antecessores,
para a configuração que resultaria da associação de complexos culturais muito diversos em
sua origem e forma, e para os processos que determinariam tal configuração. Processos que
o imaginativo Oswald de Andrade denominou antropofagia. O fato de que o composto
cultural resultante de tais misturas era desarmônico, não foi considerado por estes últimos
como qualidade negativa e nem como problema preocupante; neste ponto se distanciavam
sobremaneira dos cientistas sociais brasileiros anteriores. Consideravam que a reunião de
elementos díspares devia mesmo resultar numa configuração desarmônica; todavia,
achavam também que esta mesma desarmonia seria sempre fonte de enriquecimentos e de
inovações, porque estimulava ou a renovação, ou a expansão do que já existia19. Assim, os
jovens intelectuais da Semana de Arte Moderna, em 1922, ao proclamarem uma nova teoria
explicativa a respeito de sua civilização, estavam antecipando posições a que chegariam
cientistas sociais do Ocidente 40 ou 60 anos mais tarde.
Desconheciam eles a nascente umbanda. Mas o fato de que ao mesmo tempo surgirem
teoria e religião girando em torno do mesmo núcleo cultural indica que o que se poderia
chamar de civilização brasileira estava suficientemente cristalizada para ser empregada
como arma ideológica, de defesa em todos os níveis da sociedade brasileira. A existência da
heterogeneidade cultural em todas as camadas sociais era assim reafirmada; exprimia-se
conscientemente através das teorias de cientistas sociais e de intelectuais, porém também se
expressava inconscientemente nas doutrinas religiosas da umbanda. Um novo culto afro-
brasileiro, uma nova teoria a respeito da civilização brasileira, nasciam ao mesmo tempo e
na mesma região do país, mas em dois níveis sócio-econômicos muito diversos; apontavam
na mesma direção cultural, — a de aceitar a heterogeneidade cultural como algo muito
valioso que dava personalidade ao seu país no concerto das nações. Nesse sentido, a
identidade nacional se origina e se expressa pela identidade cultural.
Releva notar que efetivamente nos dois períodos históricos brasileiros, a identidade cultural
se confundiu sempre com a identidade nacional e até mesmo com o nacionalismo;
19
JARDIM DE MORAES, Eduardo. A brasilidade modernista. Rio de Janeiro, Ed. Graal, 1979.

29
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constituiram realmente sinônimos... A sinonímia indica a enorme diferença na definição de


tais conceitos, por parte de cientistas sociais brasileiros e europeus. De fato, para os
europeus, a identidade nacional une entre si coletividades culturais que podem ter
patrimônios culturais muito diversos; a união é essencialmente política e se faz através de
sentimentos comuns de adesão e de devotamento a uma sociedade global. Para os
brasileiros, as duas concepções, de identidade cultural e de identidade nacional, se
confundem, em sua nação, todas as coletividades étnicas, todos os estratos sociais estão
interligados por um patrimônio cultural semelhante e este fato compõe o nacional, — algo
que se exprime de forma concreta, independentemente de uma conscientização. Os
elementos culturais são basicamente os mesmos; a variação que existe é do grau em que
cada complexo pesa num ou noutro estrato, numa ou noutra etnia.
Os cientistas sociais brasileiros mais antigos não podiam negar a mistura de traços culturais
existentes em seu país, encontrada em todos os estrados sociais e em todos os grupos
étnicos, embora recusassem reconhecê-la como uma civilização ou como um foco de
identidade cultural, negaram, pois, a existência desta. Quando mais tarde uma outra
geração de intelectuais pode e quis encarar a evidência de que sua civilização era composta
de traços de variada origem, alguns harmoniosos e outros incongruentes, reconheceram e
proclamaram também que a reunião de elementos desarmoniosos era importante para criar
riqueza e dinamismo num patrimônio cultural.
Atualmente, quando estudiosos brasileiros falam de identidade cultural ou de identidade
nacional, referem-se, pois, a noções diferentes das utilizadas por seus colegas europeus.
Nos dois casos, o que há de comum é somente o fato de que ambas noções são em geral
utilizadas como instrumentos para diferenciar uma cultura ou uma coletividade do conjunto
das demais. Estas noções podem se tornar também armas para lutar contra qualquer perigo
que ameace com o desaparecimento ou a coletividade, ou a nação. O Brasil, cuja
independência não teve de ser alcançada à força, não voltou sua arma ideológica contra
outras sociedades; ela foi forjada principalmente para propósitos internos. Na Europa, ao
contrário, onde as guerras constituíram uma realidade constante, compuseram elas um
campo apropriado para que nascessem dois conceitos diversos: um voltado para combater
os inimigos exteriores, o outro se dirigindo à diferenciação interna de coletividades na
totalidade nacional.
Parece que todas estas noções, que giram em torno do problema de identificação de grupos
e sociedades, seja conscientemente formuladas (como as teorias dos cientistas sociais), seja
inconscientemente construídas (como os cultos afro-brasileiros em geral e a umbanda em
particular), são sempre armas de defesa contra perigos que ameaçam coletividades e suas
maneiras de ser. O caso brasileiro parece indicá-lo com clareza, porém novas pesquisas são
necessárias para dar maior solidez a esta interpretação.
Muito tem sido dito no Brasil sobre o fato de cientistas sociais utilizarem conceitos
definidos no estrangeiro, geralmente no âmbito da civilização ocidental, para exprimir
particularidades de sua realidade; tais termos, não sendo perfeitamente adequados para
representar esta realidade, teriam a tendência de se tornarem “idéias fora do lugar”. A
utilização de noções como as de identidade nacional e identidade cultural, de maneira
diversa do que ocorre na Europa mostra ao contrário que os conceitos estão constantemente
sendo redefinidos para se adaptarem às peculiaridades do país.

30
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S. Paulo, 1(1), 1. sem. 1989.

É verdade que as noções e definições utilizadas decorrem na maioria das vezes de trabalhos
europeus, ou de cientistas do Ocidente; no entanto, há sempre que efetuar uma apreciação
crítica, para verificar se o emprego delas está sendo de acordo com o que ocorre no
exterior, ou se houve alguma adequação a outro tipo de realidade. A apreciação do contexto
histórico específico em que foi forjado o conceito, e o significado particular que devido a
isso adquiriu, comparando-o em seguida com o que ocorre em outra sociedade e o
significado peculiar que adquiriu na nova realidade; ou mostrando então que o conceito não
pode ser utilizado e outro deve ser criado. Em suma, deve-se recorrer a cuidados quando se
utilizam conceitos que não se originaram na realidade estudada, a fim de verificar sua
adequação e também desvendar se não está sendo reinterpretado inconscientemente, sob o
impacto da situação em estudo. E para se captar as características da reinterpretação
sofrida, torna-se necessário: reconhecer as circunstâncias históricas em que foi forjado o
conceito; comparar a nova maneira de o definir e a matriz de que ele se originou; estudar a
nova situação histórica em que ele está sendo empregado e captar o significado que, devido
a ela, adquiriu. Dessa maneira será possível compreender as transformações sutis a que são
submetidos os conceitos, deixando de os utilizar com imprecisões e erros devidos a
similaridades que podem ser apenas superficiais.
Conceitos e definições são forjados por cientistas sociais nascidos e educados em
sociedades e civilizações específicas; muitas vezes as discussões férvidas a que dão lugar
decorrem de entendimentos diferentes do mesmo termo justamente porque as culturas em
que nasceram os pesquisadores não são as mesmas. O que, consciente ou
inconscientemente, admitem e o que recusam, ao construí-los, está profundamente
influenciado pela própria sociedade e suas maneiras de pensar. Este ensaio não foge à
regra...

ABSTRACT: The problem of cultural identify in Brazil was established in the XIX
century with the first social science studies in the country. Since that time, it has been
approached from different angles intimately linked to the socio-economic conditions of the
various moments in which that identity has been defined. A more thorough observation
demonstrates that, contrary to Europe, there is a synonymity between cultural identity and
national identity.
KEYWORDS: Cultural Identity, National Identity: Brazil and Europe.

31
Tempo Social; Rev. Social. USP, S. Paulo, VOLUME 1(1) A R T I G O

A CONSTITUIÇÃO COMO PROJETO


POLÍTICO*
Florestan Fernandes**

FERNANDES, Florestan. A Constituição como projeto político. Tempo Social; Rev. Sociol. USP, S. Paulo, 1(1): 47-56, 1.sem 1989.

RESUMO: Este discurso parlamentar elabora uma análise histórico-sociológica das condições econômicas,
políticas e sociais da dimensão política das constituições brasileiras, que são vistas como projetos das classes dominantes
com o objetivo de organizar a sociedade civil e o Estado. Primeiramente mostra-se como, já com a nossa primeira constituição,
se estabelece uma tradição marcada pelo modernismo importado, pelo formalismo jurídico avançado e pela exclusão da
maioria da população trabalhadora aos direitos à participação efetiva na organização da sociedade. Em seguida, examinam-
se os dilemas da atual Assembléia Nacional Constituinte, dividida entre dois grupos opostos: o conservador, que pretende
realizar apenas uma revisão constitucional, e o radical, que almeja romper com a ordem ilegal imposta pela ditadura
militar ainda persistente na Nova República.

UNITERMOS: Constituições Brasileiras, Assembléia Nacional Constituinte.


FERNANDES, Florestan. The Constitution as a political project. Tempo Social; Rev. Sociol. USP, São Paulo, 1(1): 47-56, 1.sem. 1989.

ABSTRACT: This parliamentary discourse develops an historical-sociological analysis of the social, economic,
and political conditions of Brazilian Constitutions’ political dimensions. These Constitutions are seen as projects of the
dominant classes, whose object was the reorganization of civil society and the State. First, we will show that our first
Constitution established a tradition marked by imported modernism, advanced juridical formalism and the exclusion of
the majority of the working class from effective participation in the organization of society. Next, we will examine the
dilemmas of the current National Constituent Assembly, which is divided between two opposing groups. One group is
conservative and intends to bring about a more constitutional revision. The other is radical and aspires to do away with
the illegal order, still persisting in the New Republic, which was established by the military dictatorship.

UNITERMS: Brazilian Constitutions, National Constituent Assembly.


* Primeira intervenção no grande expediente dos temas constitucionais no Parlamento, a 12/02/87.
**Professor Emérito da Universidade de São Paulo, Deputado Constituinte (PT/SP).

As constituições que caracterizam a evolução dos povos modernos sempre contêm um projeto político. Este projeto,
por sua vez, traduz ideológica e socialmente como as
classes dominantes pretendem organizar a sociedade civil e o Estado. Toda sociedade estratificada possui certas
possibilidades de organizar a sociedade civil e o Estado. Tais possibilidades não são um efeito do acaso, mas de determinações
do modo de produção econômica. dos interesses e da situação de classe dos estratos sociais que se apropriam do poder
real, dominam as outras classes e estratificam a sociedade civil como condição histórica para reproduzir a ordem social
existente. A revolução inglesa e a revolução francesa são exemplos experimentais dessa constatação. O mesmo se pode
dizer da revolução norte-americana e da revolução japonesa ou da revolução prussiana, a partir de Bismarck, embora
essas revoluções apresentem configurações muito distintas, quando comparadas àquelas duas revoluções “clássicas”.
A Alemanha era um país periférico, dependente e subdesenvolvido; os Estados Unidos tinham um passado colonial e
corriam o risco de realizar uma independência engolfada na dominação econômica externa, através do mercado, e, portanto,
de ver sua soberania política corroída e o forte impulso de seu “destino manifesto” anulado; o Japão resistiu decididamente
ao drama do colonialismo, contornando-o e resguardando-se como uma nação independente, por meio de uma revolução
econômica sob controle social e político interno. O Brasil caminhou em outra direção, como sucedeu em toda a América
Tempo Social; Rev. Social. USP, S. Paulo, VOLUME 1(1) A R T I G O

Latina. Aceitou a dominação indireta como uma vantagem histórica, privilegiando a preservação das estruturas coloniais
de produção e estratificação social. A Magna Carta não se vinculou ao liberalismo anti-colonialista, mas ao absolutismo da
coroa e a um modelo de sociedade civil que restringia a monarquia constitucional à vontade política dos senhores de
escravos. Essa é a raiz de nossa tradição constitucional. Impregnada de modernismo importado e de formalismo jurídico
avançado, porém um biombo para excluir os homens pobres livres da sociedade civil e para dar continuidade à existência
e à sobrevivência da escravidão, com as novas perspectivas que se abriam a uma economia satelizada e exportadora.
Aí está a raiz remota, mas que ressurge como uma hidra de sete cabeças no agravamento sempre renovado da “tragédia
brasileira”. Não existe uma consciência constitucionalista, porque não existe uma sociedade civil que associe o modo de
produção capitalista à necessidade histórica das várias revoluções burguesas (como a revolução nacional, a transformação
estrutural capitalista no campo, e revolução urbana e a revolução democrática). A nossa modernização política se reduziu
à importação de uma tecnologia estatal de dominação de classe. A modernização se impunha: de fora, para encadear a
produção econômica interna ao mercado mundial; de dentro, para que as classes dominantes pudessem dispor de
instrumentos eficazes de defesa da ordem e pudessem associar-se aos estratos mais poderosos da burguesia internacional
contando com freios para limitar o constante desgaste que eles exerciam sobre a soberania do Estado. A

democracia converteu-se em um jogo entre os mais iguais, um sistema de poder deformado; e o constitucionalismo era
em si mesmo uma farsa política, que sequer encobria ideologicamente as cruas realidades que faziam do Estado um feitor
de escravos e um castrador da Nação, como se o vinco colonial permanecesse perpetuamente vivo nessa esfera.
A constituição da República velha manteve-se nesse limite. A crise do modo de produção escravista era muito recente
para associar a revolução da sociedade civil e do Estado na elaboração da Carta Magna. Mera cópia de progressos de
outros países, ela não correspondia às transformações internas, realizadas ou em processo. Por sua vez, a constituição de
1934 vem rente a contradições que dividiam as classes dominantes, suas elites e as relações delas com a Nação. Por isso, ela
registra um salto histórico, que não se concretizou porque as classes dominantes e suas elites preferiram defender-se fora
e acima do circuito das revoluções burguesas, recorrendo a uma ditadura que recompôs a estabilidade política dentro da
ordem. Prevalece, então, uma política de fundar a paz social em concessões entendidas como antecipadas e suficientemente
elásticas para anular as pressões sociais dos de baixo, especialmente das classes trabalhadoras, da pequena burguesia e de
uma classe média inquieta com os abalos que sofria sob as novas tendências de desenvolvimento capitalista e de alterações
do regime de classes sociais. O Estado Novo monta à perfeição a arquitetura de um modelo eficiente de “paz burguesa” e,
ao mesmo tempo, articula os interesses divergentes dos vários setores da burguesia. A oligarquia, que os historiadores
enterram prematuramente com a República velha, é reciclada. A plutocracia emergente, lastreada no capital estrangeiro,
no industrialismo, nos dinamismos em crescimento moderado do mercado interno, nos desdobramentos financeiros de
todas essas vergônteas do capital, ganha um espaço político unificado e um ponto de partida para enfrentar as conseqüências
de uma revolução política que ela se recusou a levar avante, das constrições e cicatrizes do regime ditatorial e da transição
para uma nova era, dita “democrática”.
Chegamos, assim, ao que muitos entendem como os “efeitos do término da guerra” e da “derrota do fascismo”. Um
palavreado oco. O Brasil se alterara durante a guerra e a principal transformação aparece nos ritmos da industrialização,
do desenvolvimento das cidades, do crescimento do mercado interno, da nova associação entre a cidade e o campo sob a
primazia da primeira, das migrações internas e, especialmente, das modificações estruturais do regime de classes. A
pressão de baixo para cima tornara-se demasiado forte para o esquema de paz burguesa, montado pelo Estado Novo. O
referido esquema de paz social nunca deixou de operar contra os oprimidos, as reivindicações do movimento operário e
sindical, a eclosão democrática visada pelo polo proletário da luta de classes, até hoje. Graças à ditadura, a representação
sofrera um golpe

sério, principalmente nas cidades mais urbanizadas e industrializadas; e o sistema de poder burguês perdera o
monolitismo anterior, o que levou ao Parlamento uma nova safra de políticos, burgueses ou vinculados ao proletariado.
Pela primeira vez em nossa história, as classes dominantes são forçadas a travar a luta de classes dentro do Parlamento.
Todavia, usam a tática de ceder terreno no plano formal e ideológico, mantendo firmes as rédeas da dominação de classes
(no que se viam ajudadas pela herança institucional, legal e política do Estado Novo, mantida intacta nos pontos essenciais).
Tempo Social; Rev. Social. USP, S. Paulo, VOLUME 1(1) A R T I G O

A maioria conservadora favorecia esse procedimento, que colocava as aparências em distâncias inatingíveis da realidade.
A constituição de 1946 exibe uma modernização espantosa, como se as classes dominantes houvessem absorvido as
transformações que o desenvolvimento capitalista propagaram ao regime de classes e ao padrão capitalista nascente da
luta de classes. No entanto, as modificações se patentearam ao nível de profundidade real, com a implementação da
ilegalidade do Partido Comunista, a revitalização das técnicas estadonovistas de manipulação dos sindicatos e das frustrações
operárias, o recurso ao populismo como “ópio político do Povo”.
A constituição inaugura uma fase inédita de ritualização das atividades do Parlamento, dos partidos e das eleições.
Uma democracia de fachada mantém-se à tona, sem fazer face às exigências da situação histórica. As classes dominantes e
suas elites se viam postas na parede. A internacionalização da economia se iniciara e tomara rumos que indicavam como
se daria e quais seriam as conseqüências da incorporação do Brasil às economias capitalistas centrais e da internalização
crescente do modelo monopolista de desenvolvimento capitalista. O fim da década de 1950 e o início da década de 1960
denunciavam que através dos meios tradicionais (do mandonismo, do paternalismo e do clientelismo) só se poderia
compor uma maioria parlamentar conservadora, sem deter as eclosões sociais que atingiam gravidade extrema. Dentro de
aparências democráticas e do ritualismo eleitoral seria impraticável manter a estabilidade política e o controle burguês da
sociedade civil e do Estado. As crises explodem no âmbito do Governo, porque as classes dominantes não conseguiam
enfrentá-las e resolvê-las no seio da sociedade civil nem transferi-las e solucioná-las na esfera do Parlamento. A Nação
exigia mudanças estruturais. As classes dominantes e suas elites responderam com a conspiração civil-militar, o golpe de
Estado e a contra-revolução. Nesse sentido, a constituição de 1946 não gerou a democracia, pariu a ditadura militar.
O período da ditadura militar coincide com a maturação do modelo monopolista de desenvolvimento capitalista no
Brasil. A internacionalização do modo de produção, do mercado interno, de um novo padrão de associação que possui um
forte componente de dominação externa direta (o imperialismo deixa de operar seletivamente, através do

mercado mundial, implantando-se dentro do País, como o antigo sistema colonial), a industrialização maciça, o
aparecimento de sindicalismo cujas raízes brotavam das fábricas (por causa da repressão empresarial e estatal) e a aceleração
da luta de classes forjam uma nova moldura histórica Apesar de divergências setoriais, todas as classes burguesas (inclusive
o setor hegemônico externo) põem em primeiro plano a estabilidade política e a repressão policial-militar da luta de
classes. Não há clima para o populismo — nem mesmo um populismo militar ultranacionalista de direita. Nessas condições,
ocorrem duas oscilações dentro da sociedade civil, no que refere à existência do Parlamento, dos partidos, das eleições e
dos marcos constitucionais.
A primeira oscilação vem de cima, controlada direta e ferreamente pela composição de poder civil-militar. Como o
fermento das lutas sociais corria no subterrâneo da sociedade, essa oscilação valoriza o embuste constitucional. Surge,
assim, a primeira manifestação de “revisão constitucional”, que culmina na constituição de 1967 e nos seus complementos,
que tomam o nome de “constituição de 1969” e de atos institucionais e de casuísmos, os quais formam uma ordem ilegal
indiscutível. Essa ordem ilegal sustentava-se na força das armas e da violência concentrada no tope do Governo ou difusa
no aparelho policial-militar de todo o País. Falou-se que ela fora legitimada pelo “milagre econômico”. Todavia, nenhum
milagre poderia legitimar uma ordem ilegal. Nascida da violência, ela teria de ser destruída pela contraviolência. As
classes dominantes e suas elites perceberam aonde se metiam e tentaram amainar a contraviolência, através de concessões
que provocaram uma “democratização de cima para baixo”, batizada de “consentida”. Contudo, souberam preservar a
ordem ilegal e interromper, por vários artifícios, as “eclosões sociais”. As classes trabalhadoras e os sindicatos foram os
principais peões dessas concessões, porque provocaram medo entre os de cima. Mas não se deve subestimar o papel que
tiveram diversas entidades e organizações que combatiam abertamente a ditadura e recorriam à desobediência civil como
instrumento de desmoralização da ditadura e de sua desagregação. Além disso, a ditadura pagou um preço alto à hipocrisia.
Para contar com uma fachada democrática, admitira a oposição consentida. O MDB (e o PMDB em seguida) se desprenderam
da liberdade relativa vigiada e pôs em prática, in crescendo, a oposição real.
A segunda oscilação possui um referencial mais complexo. Na medida em que a República institucional (ou a ditadura),
perdia eficácia repressiva e capacidade de aparentar uma legitimidade que não possuía, ela se tornou cara e obsoleta.
Compelia os sócios hegemônicos, as nações capitalistas centrais e as “multinacionais”, e as classes dominantes nacionais e
suas elites a se exporem em cheio ao ódio que fermentava nos porões da sociedade. O Brasil assumia o caráter de um barril
Tempo Social; Rev. Social. USP, S. Paulo, VOLUME 1(1) A R T I G O

de pólvora, prestes a explodir e a destroçar todos os culpados, diretos e indiretos, pelos desmandos e crises

gerados pela ditadura. Vários setores sociais procuravam, pois, uma alternativa: ou uma retirada estratégica dos militares,
que os desmoralizaria e os faria passar à história como bodes expiatórios (quando, de fato, eles foram a mão do gato...); ou
um movimento que os afastaria do poder por via pacífica, mediante eleições diretas. O PT encetou o segundo ponto de
partida, rapidamente endossado pelas entidades e organizações que se batiam pela desobediência civil e pelo PMDB,
engrossado pelos liberais que navegavam nos barcos e nas águas da ditadura. Em conseqüência dessa evolução, a oscilação
ganhou força e logo demonstrou que seria imbatível. Nesse contexto, o movimento das diretas-já, que poderia propiciar
uma saída límpida e radical, submergiu numa composição conservadora, que decidiu a partir de cima atravessar o Rubicão
através do Colégio Eleitoral. Aliaram-se os chefes militares “civilizados”, o PMDB através de suas cúpulas dirigentes e os
“democratas” recém-saídos do ventre do regime em decomposição. Isso significa que a oscilação foi detida por uma nova
conspiração, que se crismou como um ato de conciliação política. Ela também endossou a fórmula político-militar de uma
transição democrática lenta, gradual e segura! A ordem ilegal atravessou a crise letal, que se esboçara, e protegeu o
nascimento da “nova República”. Convertido em partido da ordem, o PMDB deu guarida à Aliança Democrática, pela
qual os chefes militares e os notáveis da ditadura iriam cobrar, em conúbio com a maioria conservadora da cúpula do
PMDB e do Parlamento, a continuidade da ordem ilegal forjada pela República institucional.
É aqui que se acha o cerne dos dilemas constitucionais do Brasil de hoje. Cortada no ápice do seu fluxo, a oscilação
histórica apontada comporta duas visões opostas do que deve ser a constituição em processo de elaboração. Os que defendem
o “compromisso sagrado de Tancredo Neves”, malgrado sua vocação democrática, afundam no pântano conservador.
Para eles, não existe uma ordem ilegal, mas um “entulho autoritário”. Ele poderia ser removido como uma leve dor de
cabeça, com uma vassourada. De fato, trata-se de uma colossal mistificação, pela qual a ordem ilegal não é expelida da
cena histórica e condiciona, ao contrário, o processo de reconstrução da sociedade civil e do Estado. Os juristas que
defendem essa posição abominam a idéia de uma Assembléia Nacional Constituinte exclusiva e soberana e se fixam na
consolidação da nova República como e enquanto rebento da ditadura militar, descrita eufemisticamente como “velha”
República! O Congresso Constituinte reduz-se a um “poder derivado” e, se extravasar desse limite, estaria condenado à
instância judiciária, que poderia anular suas decisões — e, o que não se diz, ao quarto poder da República, o poder militar,
a instância suprema, que poderia eliminá-lo do mapa... O que se reitera é um afã ultraconservador e ultrareacionário (que
conta com o apoio da maioria parlamentar e com a tolerância das direções dos principais partidos da ordem — o PMDB e
PFL à frente), de conceber a elaboração da constituição como uma revisão constitucional. Nessa revisão constitucional, a
ordem ilegal vigente seria reinstaurada “legitimamente”, como um so

nho “liberal” dos antigos e novos donos do poder. Para isso foi concebido o Congresso Constituinte!...
A outra visão do que deve ser a constituição é sustentada pelos que, já no passado, queriam remover a constituição de
1946 da condição da letra morta, e pelos que tentaram levar o movimento das diretas-já até o fim e até ao fundo. São vários
grupos e tendências de opinião, que compartilham da idéia de que o desenvolvimento capitalista e do regime de classes
sociais desembocou em um beco sem saída que só pode ser ultrapassado se os oprimidos e os trabalhadores adquirirem
peso e voz na sociedade civil e a faculdade de exercerem controle ativo sobre o funcionamento do Estado. Portando, a
sociedade civil e o Estado são vistos em seu conjunto, como uma totalidade em movimento histórico e a constituição é
concebida como um conjunto de normas que aponta para o vir a ser, uma sociedade civil civilizada e um Estado capitalista
democrático. Sem qualquer utopia burguesa salvadora, aceitando-se fria e objetivamente as cruezas e as iniqüidades extremas
do desenvolvimento capitalista desigual, pretende-se que a força e a desigualdade não conferem privilégios inabaláveis
para uma minoria e miséria crescente para a maioria. A emancipação dos oprimidos e das classes trabalhadoras precisa
começar dentro da sociedade civil e do Estado existentes, através de uma luta global que tome por objeto encetar uma
revolução política dentro da ordem. O que se coloca em questão não é o ponto de chegada; é o ponto de partida. Nas
condições brasileiras, esse ponto de partida envolve uma ruptura com a ordem existente no plano mais sensível e popular
do sistema do poder, o Parlamento considerado como poder constituinte. Como poder emanado do Povo, neste momento,
a Assembléia Nacional Constituinte derroga a ordem ilegal vigente e a ilegitimidade da nova República, e afirma a própria
faculdade de instituir normas constitucionais civilizadas para o funcionamento da sociedade civil e normas constitucionais
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democráticas para a organização do Estado. O presente e o futuro pertencem à Nação, não à minoria no poder. A ruptura
com o atual Estado de coisas representa a conquista de novas vias de evolução histórica e, sob pressão popular, a elaboração
de uma constituição que defina os requisitos mínimos da extinção simultânea do subcapitalismo e do capitalismo perverso
ou selvagem.
Esse é o dilema que a ANC enfrenta. Se a conciliação conservadora tivesse algum sentido e se a “herança de Tancredo
Neves” alguma validade, a Aliança Democrática deveria ser fiel ao compromisso que ela assumiu ao instalar o PMDB e o
PFL na dupla condição de partidos da ordem e do Governo. Não obstante, o que foi formulado como uma carta de
princípios era um discurso de ocasião e os dois partidos estão divididos entre si — e o PMDB está dividido internamente
— com referência aos papéis políticos dos constituintes e ao significado da ANC. Isso acontece porque ambos os partidos
não formam um bloco histórico solidamente burguês. As classes burguesas não delegaram

aos dois partidos a condição de representá-las, no exercício do poder político estatal. Cada partido, por conseguinte,
reúne um conglomerado de interesses burgueses variáveis e, ao mesmo tempo, não possui autonomia para conduzir as
reivindicações das classes burguesas e de suas elites. Nenhum deles pode romper com a situação de partidos da ordem e
do Governo, porque os vínculos com as classes burguesas não alimentam semelhante demonstração de radicalismo político.
De outro lado, nenhum dos dois partidos possui uma esfera de hegemonia própria e exclusiva. O que prevalece é a
hegemonia das classes dominantes e de suas elites. Elas paralizam os dois partidos, como paralizaram a ditadura militar e
estão paralizando a nova República. Como conseqüência, ambos estão presos a um imobilismo político que os dissociam
da causa suprema, que seria a soberania da ANC, e, o que é pior, que os impede de possuir um projeto político constitucional.
Qual é o projeto político constitucional do PMDB? Qual é o projeto constitucional do PFL? O que a Aliança Democrática se
propõe fazer dentro da ANC e quais são as bandeiras que ela desfralda? Os dois partidos prendem-se à ordem existente e
ao Governo através de uma força estática e ficam surdos e mudos diante das esperanças que suas promessas eleitorais
despertaram nas massas populares.
Como explicar essa realidade? A explicação é, a um tempo, fácil e grave. Ao estudar as lutas sociais na França, Karl
Marx identificou, há muito tempo, o que imobiliza as classes burguesas, impele-as a bater-se cruamente pela dominação
de classe pura e simples e, nos limites extremos, as debilita a ponto de obrigá-las a buscar na ditadura (no “bonapartismo”)
o Abre-te Sésamo de becos sem saída. As classes burguesas estão no Brasil — como sempre estiveram — divididas quanto
às soluções essenciais que dizem respeito aos dilemas postos pelo funcionamento da sociedade civil e pela organização do
Estado. Só que hoje essas divisões são claramente explosivas, porque o setor mais forte e decisivo da burguesia é o capital
supranacional e uma internacionalização do modo de produção capitalista que a burguesia brasileira desejou e, hoje, não
sabe como limitar ou deslindar. A tão orgulhosa “oitava economia do mundo” regride ao crescer, porque os laços de
dependência ocultam uma modalidade imprevisível de neocolonialismo. Não só nenhum setor da burguesia interna pode
bater-se pela condução ou pela liderança dos demais estratos burgueses. A burguesia como um todo vacila diante do
imperialismo da era atual e de sua multidiversidade destrutiva. Quando a hegemonia direta das classes dominantes
atravessa a hegemonia dos partidos políticos da ordem, instalados no Governo, ela desorienta a dominação de classe e
desorganiza o Governo. A sociedade civil eleva o seu potencial de barbárie e o Governo se anula como vetor político da
vontade coletiva das elites das classes dominantes. O que redunda em uma curiosa contradição: a hegemonia de classe e a
hegemonia de partido esfarelam-se antes de se converterem em força política real.

Isso desenha uma curiosa situação histórica. A constituição é menos importante que a dominação direta de classe e o
uso do Estado como uma arma de ataque e de defesa nas relações com os oprimidos e com as classes trabalhadoras. Não
pode haver constituição e projeto de constituição, porque não há promessa — prevalece o impulso e o apego à repressão.
Sem resolver o problema principal, suas relações com o imperialismo e sua debilidade orgânica diante dele, com as
multinacionais crescendo por dentro da sociedade brasileira, transformada em fronteira do centro imperial, as classes
dominantes nada tem a oferecer — ou dominação ou caos. O que fazer diante da miséria? O que fazer com o desemprego
crescente? O que fazer com o papel das forças armadas? O que fazer com a propriedade, a iniciativa privada e o Estado?
A sociedade civil, por sua mesma organização capitalista, erige-se em uma fonte de ameaças. O Estado, por sua mesma
organização capitalista, erige-se em um fortim — mas como confiar nele, se ele sofre um gigantismo incontrolável, necessário
Tempo Social; Rev. Social. USP, S. Paulo, VOLUME 1(1) A R T I G O

à acumulação capitalista? O conservantismo é o único ponto seguro. Mas ele dança sobre si mesmo se até as instituições-
chaves, como a família, a igreja e a escola revoltam-se contra a ordem existente por causa do conservantismo, de suas
mazelas e de sua incapacidade de associar a mudança estrutural à consolidação e à defesa inteligente da ordem.
Os segmentos mais abertos da burguesia apelam para a alternativa da democracia participativa. Porém, a democracia
participativa — se deixar de ser uma mistificação, apregoa a esperança e repele a repressão. Ela permitiria inundar a ANC
com as massas populares e as forças sociais anti-elites. Ela almeja a civilização rápida da sociedade civil e a democratização
efetiva do Estado, com o desmantelamento dos aparatos de violência institucionalizada, a partir do Estado ou da empresa
econômica. Para uma maioria parlamentar, que se identifica como conservadora e de centro-conservador, ela soa como o
equivalente político do socialismo. Ora, a democracia participativa constitui, de fato, uma tentativa de evitar a social
democracia revolucionária (coisa do passado) e de aliar o capitalismo com a segurança (da reprodução do capital) e a
liberdade (de manter o capitalismo em um mundo de esperanças mínimas, calcadas na reforma distributiva). Avaliada em
seu todo, ela é muito pouco em confronto com a tradição revolucionária do socialismo. Mas é um fantasma, para a totalidade
de uma burguesia presa a privilégios pré-capitalistas e a uma acumulação capitalista originária permanente, que não cessa
nunca, alimentada pela deformação do Estado. Ou é um conceito vazio desligado de intenções propriamente democráticas
e de participação das massas no controle do poder , na sociedade civil, nas instituições-chaves e no Estado, a instituição-
chave mais complexa do mundo moderno, até o aparecimento das grandes corporações.
Será que a iniciativa popular poderia abrir essa porta de uma democracia participativa? É duvidoso. A iniciativa
popular amplia o processo de produção das leis. Contudo, não existe na sociedade civil nada suficientemente organizado
para converter a

iniciativa popular em uma alternativa para a indecisão e o imobilismo da burguesia, plantada ou cimentada no solo
histórico de interesses egoísticos e particularistas demasiado estreitos. A cada crise profunda repete-se o ciclo de compressão
conservadora frenética e neurótica, na “defesa da ordem contra a anarquia”. E a anarquia não vem de baixo, procede de
cima. Dezenas de exemplos, da independência à nova República, atestam essa observação. Os que combatem a anarquia
na verdade geram a anarquia e a multiplicam por cem ou por mil, porque não querem ceder diante do imperativo de
formas de organização não-excludentes e mais eqüitativas. Para concluir, admito que uma atitude funcional diante de
avanços seletivos permite, pelo menos, evitar uma regressão global. Mas tais avanços seletivos são instrumentais para
bloquear a mudança estrutural e para retirar da mudança o seu conteúdo político revolucionário. Se a burguesia e se os
estratos mais politizados e orgânicos da burguesia não possuem alternativa, a constituição não encontra os campeões de
um projeto constitucional dentro da ordem. E os que combatem a ordem existente não podem levar a sério substituir seus
ideais revolucionários pela salvação da ordem! ... Não é o seu papel histórico. O que lhes compete é lutar pela revolução
social e pela conquista do poder. Na ANC eles compõem uma esquerda real, que não se confunde com a esquerda dos
partidos da ordem e do Governo. À margem desses partidos, eles podem formar, em uma situação de atraso político, ao
lado daquela esquerda parlamentar. Contudo, só poderão pensar em projeto de constituição quando a questão do poder
se formular em termos de como organizar uma sociedade e um Estado socialistas.
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OS ANARQUISTAS: DUAS GERAÇÕES


DISTANCIADAS

Azis simão

SIMÃO, Azis. Os Anarquistas: duas gerações distanciadas.Tempo Social; Rev. Sociol. USP, S. Paulo, 1(1): 57-69, 1.sem. 1989.

RESUMO: O ensaio compara dois momentos do anarquismo no Brasil, intervalados por três décadas. Embora o pensamento
libertário se tenha preservado em essência, ocorreram alterações quanto à quantidade e origem social dos adeptos, à situação do
movimento na sociedade industrial moderna, às relações institucionais e técnicas de ação social. Em termos gerais, o terreno de
semeadura do anarquismo passou da classe operária e do sindicato às classes médias e à universidade. Só agora se inicia a formação de
algumas minúsculas ligas operárias nos moldes do anarco-sindicalismo. Disto resultam problemas que ferem princípios e práticas
elaborados pelo anarquismo originário. Doutra parte, foi rompida a mútua marginalização que no passado se faziam o Estado e o
operariado, o que favorecia o anti-estatismo libertário. O ingresso do proletariado no espaço do Estado, através do sindicato oficial e do
partido político, deixou sem ressonância naquela classe a conclamação anti-estatal libertária. Bloqueado pelo sindicato único e recusando
a organização partidária, o anarquismo tende a ficar no plano dos movimentos sociais.

UNITERMOS: Anarquismo - Brasil; classes sociais, Estado, Sindicato, movimentos sociais.


SIMÃO, Azis. The Anarchists: two distante generations. Tempo Social; Rev. Sociol. USP, S. Paulo, 1(1): 57-69, 1.sem. 1989.

ABSTRACT: This essay compares two periods, separated by three decades, of anarchism in Brazil. Even thoug its
libertarian thought has essentially been preserved, the movement underwent significant transformations, both in the number and social
origin of its followers and in its situation in modern industrial society, along with its institutional relations and techniques of social
action. In general terms, the terrain for sowing anarchist thought passed from the working class and unions to the middle class and
universities. Minuscule anarco-syndicalist leagues have only recently been formed. As a result, new problems have arisen, since it all
injuries the original anarchists’ practices and principles. At the same time, the State’s and workers’ mutual marginalization - which
favored libertarian “anti-statism” - has been done away with. The working class’ entrance into the State’s space by way of official
unions and political parties left that class’ anti-state libertarian prepositions without resonance. Blocked by the official union and
rejecting party structures, anarchism tends to remain in the area of social movements.

UNITERMS: Anarchism - Brazil: social classes, State, trade union, social movements.
* Professor Emérito da Universidade de São Paulo.
1
Concepções tomadas de Rousseau, de quem também Marx é devedor. Os anarquistas ainda proveitaram outras de suas idéias,
como as pedagógicas e naturistas. Sobre a obra deste filósofo, veja FORTES, José Roberto Salinas. Rousseau: da teoria a
prática. São Paulo, Ed. Ática, 1976.
2
Este é o drama, não só dos anarquistas, mas também dos socialistas democráticos: como conciliar na prática a liberdade
substantiva e a organização funcional, se esta pode instrumentalizar aquela.
3
Foi-me contado por João da Costa Pimenta, gráfico, ex-anarquista, fundador e membro da primeira Comissão do Partido
Comunista do Brasil, depois participante da dissidência trotskista e, no pós-guerra, membro destacado do Partido Socialista
Brasileiro.
4
Agradeço a Jaime Cubero, secretário do Centro de Cultura Social de São Paulo, a rica informação referente ao atual movimento
anarquista no Brasil, nem toda aproveitada neste artigo.
5
Isto É -17/4/85 .
6
Pecado de Simonia, de Neno Vasco, representado pelo grupo Forja: e O 1º de Maio, de Pietro Gori, lida pelo Grupo Teatral
da Escola de Comunicação e Artes (ECA) da Universidade de São Paulo.
7
O INIMIGO DO REI, nº 22, mar./abr. 1988, e Confederação Operária do Brasil - Carta de Princípios.

A memória de Eder Simão Sader

Os anarquistas, cujo número diminuia desde a fase inter-guerras mundiais, começaram a dar débeis sinais de
reanimação na Europa, em fins da década de 1960. No
Brasil, só dez a quinze anos depois. Eram até então muito escassos, reunindo-se intermitentemente em duas pequenas
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associações. Em São Paulo, seu grêmio era o Centro de Cultura Social, fundado em 1933, fechado durante o Estado Novo,
reaberto em 1945, sendo novamente trancado em 1969. Conseguiu manter-se até esse ano, sob o regime ditatorial,
programando atividades não manifestamente ideológicas, principalmente na esfera teatral, em que contava com jovens
amadores. Estes, fora do mundo universitário, não se envolveram nas agitações e confrontos estudantis do período. O
fechamento do Centro e suspensão de seu jornal Dealbar, foram motivados pelo recrudescimento repressivo da ditadura.
No Rio de Janeiro havia o Centro de Estudos José Oiticica, fundado em 1957, em homenagem ao veterano
professor anarquista, onde havia universitários participantes da resistência ao regime militar. Na repressão das grandes
manifestações de rua, em 1968, a polícia também invadiu e depredou o Centro José Oiticica, detendo alguns de seus
estudantes. Já não há notícia de anarquistas na subseqüente fase da ação clandestina e do movimento armado, onde foi
altamente expressiva a presença de universitários.
Na França, Maio de 68 também foi conturbadíssimo, tornando-se histórico devido à concorrência da grande
agitação estudantil e da greve geral, que repercutiram pelo mundo ocidental . O Quartier Latin transformou-se num cenário
de debates, passeatas e barricadas. Intervalando bandeiras vermelhas, surpreenderam-nos as bandeiras pretas dos
anarquistas, simbolizando o luto pelos mártires da causa operária. No pátio da Sorbonne, percorrendo os estandes de
impressos de cada grupo ideológico, encontramos o dos anarquistas. Na sala que ocupavam a surpresa foi deles, quando
nos demos a conhecer. A conversa girou, não sobre a utopia, mas sobre o movimento de libertação das idéias, como via de
eliminação do poder. Saímos com o exemplar de um pequeno jornal e alguns impressos, que trouxemos a Edgard Leuenroth.
Quando em nosso relato observamos a insistência daqueles jovens franceses no tema da libertação das mentes, ele disse
num tom de quem lembra: “Sim, sempre achamos que a libertação das mentes é a libertação dos homens”. Então, rememorou
o sentido das atividades dos grupos de propaganda libertária e de suas escolas chamadas modernas ou racionalistas.
Naquele momento, não vi na concordância mais do que o êxito da transmissão de um patrimônio ideológico. Só me
ocorreu a idéia de que talvez se pudesse comparar a compreensão e as funções dessa ideologia, em dois quadros sociais
tão diversificados por tamanho distanciamento histórico. Isso seria exequível na Europa democrática, onde se poderia
contar com os dois termos requeridos pela comparação — as duas gerações. No Brasil não passou de uma idéia vaga e
fugaz. Voltou agora, como um imperativo, quando Eder Sader me disse haver amigos que desejariam saber alguma coisa
a respeito, em vista de um aumento, embora tímido, de jovens que se declaram anarquistas.

É sabido que os libertários não elaboraram uma doutrina e se recusavam dar às idéias caráter dogmático, o
que contribuiria de nova forma para o emperramento das mentes. Era por isso que, na militância, não usavam o termo
doutrinação, mas propaganda, para indicar a divulgação de idéias através de sua apresentação e debate. A própria concepção
do anarquismo não foi uniforme, variando segundo os autores, seja na imaginação utópica, seja na adequação de meios e
fins desejáveis. No entanto, há um fundo comum de idéias, não apresentadas como um sistema, mas passíveis de
esquematização. Decorrem elas de uma visão do Homem e da sociedade tal como existem e como devem mudar seu modo
de existir. Inspira essa visão um sentimento ético como é próprio das ideologias relativas a tais transformações. A partir
dos conceitos do bem e do mal, do justo e do injusto, fazem sua condenação da sociedade presente e a proposta da
sociedade futura. Numa e noutra, o centro de preocupação é o indivíduo, tomado como unidade em si, ou como integrante
de situação grupal. Aqui, no cruzamento do ideal com o real, surge o dilema referente à liberdade individual: preservá-la
fora das coerções associativas ou aceitar a associação, sob o risco de cercear o que se quer ampliar, caso a gerência se faça
por delegação de autoridade. A saída foi encontrada no exercício da auto-gestão e da democracia direta 1, capaz de substituir
o exercício do poder na economia, na organização social e na esfera política. Em outros termos: a eliminação da propriedade,
das classes sociais e do Estado e suas instituições de apoio, como o Exército e a Igreja.
O ensaio da auto-gestão foi feito por anarquistas nos sindicatos operários, círculos de propaganda ideológica
e correspondentes formações federativas e confederativas. O indivíduo livre na associação livre foi o princípio diretor das
relações gremiais, que conferia legitimidade às opiniões na concordância e na discordância, sem maiorias impositivas,
nem minorias silenciadas, principalmente para o exterior da organização. Assim se previnia o conflito entre o direito de
plena manifestação do pensamento e qualquer disciplina grupal, sobrepondo a organização ao cidadão. Onde e quando
isso ocorre, como no Estado e no partido político, seu acessório, ficam solapados os fundamentos da democracia direta ou
auto-governo.
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Contudo, tais idéias e cautelas não tornavam pacífica a questão do poder. Para os anarco-sindicalistas ele não
se instalava em seus grêmios, porque as funções eram estabelecidas segundo o princípio da administração das coisas e não
governo dos Homens.
Já para os anarquistas contrários à organização, esta requer, por sua natureza, a delegação, origem do poder, qualquer que
seja sua alçada inicial de atribuição 2.
Aquela polêmica não influiu na expansão do ensaio da auto-gestão sindical, favorecido pela simplicidade
organizatória e pela mútua marginalização a que se impunham o movimento anarquista e a dupla Empresa-Estado. Mas
aquele dividia essa dupla estrategicamente. Negava-se a atuar no espaço hétero-governamental, como oposição político-
partidária. Escolhia o lugar das relações empregatícias para objeto da ação direta do operariado. Pretendia-se com ela um
tríplice fim: organizar os trabalhadores autonomamente no interior da empresa, com livre escola de seus representantes no
respectivo sindicato; promover greves por reivindicações imediatas e, por seus sucessivos treinamentos, chegar à greve
geral revolucionária. Posto de parte esse objetivo final, a tática da ação direta teve êxito ao mobilizar operários contra o
patronato, no próprio âmbito da empresa e sem intermediação governamental. Desta forma de agir resultou, no processo
histórico dos conflitos industriais, a prática da negociação entre empregados e empregadores para estabelecimento de
convênios coletivos de trabalho.
Mas a visão anarquista do Homem e da sociedade não se detinha na formação de associações autogovernadas,
atuantes apenas no plano econômico e no confronto das classes sociais. Na prospectiva utópica, elas constituiriam os focos
da constelação social anárquica. Isto em vista, impunha-se mudar, as condições da vida material e da vida mental, ou seja,
livrá-las da necessidade e do dogma. Assim sendo, não só a primeira, mas ambas devem ser iniciadas no próprio bojo da
sociedade capitalista. Daí a grande importância dada pelos anarquistas à ação educativa, através de sua imprensa, escola,
teatro, palestras, e organização coletiva do lazer. Desejavam, por esse modo, romper hábitos mentais e elaborar paradigmas
de uma nova cultura humanística. Isto foi ainda mais valorizado quando, apesar de decênios de greves na Europa e nas
Américas, mais distante pareciam as possibilidades da greve geral revolucionária. Isto para a parcela dos anarquistas que
não a viram na Revolução Russa, porque mantinha e renovava a instituição do Estado. A parte deles que pensava
contrariamente participou na formação dos partidos comunistas.
O auto-governo associativo e a ação direta contra o patronato estão na própria origem do movimento
operário, cujo primeiro passo constituiu o livre contrato entre iguais e a atuação consertada para alterar e, mesmo,
eliminar o contrato socialmente impositivo do trabalho assalariado. Era o tempo em que o proletariado não tinha espaço
na
sociedade política ou começava a abrí-lo como um novo capítulo de sua história. Como é sabido, a este respeito instalou-
se a desavença primordial entre anarquistas e marxistas. Os primeiros restringiam aquele espaço à sociedade civil,
propugnando pela extensão irrestrita dos direitos da vida democrática à classe assalariada, ou seja, a universalidade da
cidadania efetiva. Os segundos consideravam irnprescindível avançar para quadros do Estado, com vistas à sua apropriação
e instrumentalização em favor da classe operária, pelo que seu partido deveria subordinar o sindicato.
Sem diminuir a importância assumida por essa divergência, o fato é que a autogestão sindical e a ação direta
persistiram onde e enquanto se manteve a situação de marginalidade proletária ou, pelo menos, a estreiteza do seu lugar
na sociedade civil e no Estado. No mundo industrial, sua duração variou de país para país, tendo havido casos que se
prolongaram até a década de 1930.
No Brasil, durante a Primeira República, o comportamento das classes sociais subalternas diferiu internamente,
segundo certas categorias sociais, quanto a organização político-partidária. Seus componentes oriundos da população
local mais antiga, qualificados eleitores, eram atrelados nessa qualidade quase totalmente ao Partido Republicano, que se
confundia de fato com o próprio sistema político nacional. Doutra parte, ficavam fora desse sistema, os estrangeiros e a
maioria de seus descendentes, particularmente quando assalariados. Circunscritos às vicissitudes da condição operária,
não tendiam para o partido e muito menos para a consideração do longínquo governo, mas para o sindicato que se
identificava com o seu quotidiano. Este assumia funções diversas, segundo o propósito de harmonizar ou opôr os interesses
do capital e do trabalho, tanto nas empresas privadas, quanto nas estatais. Os dois casos apareceram em muitos núcleos
urbanos, esparços ao Norte e adensados ao Sudeste e Sul do país. Os sindicatos que se punham na vanguarda do movimento
operário foram, no primeiro trintênio, do século, criados e orientados geralmente pelos anarquistas e, portanto, opostos à
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gestão empresarial e ao engajamento partidário do proletariado.


Os comportamentos mencionados bitolavam à direita e à esquerda o minguado espaço restante para os
socialistas, que iniciaram a formação de seus grêmios no final do século passado. Na região paulista-carioca, onde mais
surgiram, tiveram geralmente vida efêmera, não passando às vezes do manifesto de fundação. Em todo o caso, conseguiram
fazer-se presentes durante o período considerado e muito depois dele. Mas, naquele tempo não conseguiram qualquer
lugar no âmbito do Estado, mesmo em São Paulo onde participaram de alguns pleitos eleitorais para a Câmara Estadual.
Faltou-lhes, não só o voto proletário, mas também o das classes médias a que pertenciam, na sua maior parte. Em
conseqüência, seus malogros eleitorais reforçavam a marginalidade político-partidária da classe assalariada. Foi similar a
situação do Partido Comunista nessa mesma fase.

Os sinais de mudança dessa situação apareceram depois da greve geral de junho de 1917, nos municípios
industriais do Estado de São Paulo. Então, aconteceu a primeira fissura na situação da mútua marginalidade. Por iniciativa
da Imprensa local, sentaram-se à mesa de negociação o Comitê de Defesa Proletária, delegados das associações patronais
e o representante do governo estadual, que avalizou o acordo feito e, mesmo assim, descumprido pelo empresariado,
como de costume. Mas a continuidade das greves convenceu o governo da necessidade de ordenar as relações empregatícias
através de um Código do Trabalho. Esse propósito normativo foi o primeiro indício da transformação da dupla sindicato-
empresa numa trinca, com a inclusão do Estado.
Logo depois outro fato golpeou o anarco-sindicalismo. A revolução russa, inicialmente aclamada por todos
os anarquistas, tornou-se pouco depois motivo de suas divergências e divisão. Uma parcela deles negava-lhe o caráter
comunista por manter e reforçar a instituição do Estado com a adição do poder econômico. Outra parte aceitava-a como
necessidade transitória e participou da criação do Partido Comunista. No entanto, convém lembrar que estes últimos não
perderam de vez idéias e condutas de seu tempo de anarquismo. Um fato ilustra bem, ao mesmo tempo, a mencionada
mudança de atitude do Estado e a conservação do comportamento libertário. Em 1926, o governo federal solicitou dos
sindicalistas, no Rio de Janeiro, que elaborassem um projeto do Código do Trabalho. Havia entre eles comunistas, que
deveriam estar interessados em ganhar espaço político. Todavia, juntamente com os demais, recusaram o encargo para
não colaborar com o Estado burguês 3. Este, de seu lado, prosseguiu no atendimento de algumas reivindicações trabalhistas,
que iniciara com o fito de diminuir os alvos da ação direta operária e aliviar seu impacto sobre as empresas.
A tarefa foi aprimorada no decênio seguinte pela política trabalhista do governo Vargas, sobejamente estudada.
Contudo, convém destacar a via pela qual os assalariados ganharam um lugar na organização do Estado. Foi mais através
daquela política centrada diretamente no sindicato, de que pela influência dos partidos de esquerda. Sua representação
insignificante na Constituinte de 1933, foi nula no Congresso Nacional e nas Assembléias Estaduais. Além disso, seu
campo de ação foi arrasado com o esfacelamento da Aliança Nacional Libertadora e a subseqüente instalação do Estado
Novo. Doutro lado, o remanescente esquerdista do Tenentismo conseguiu promover o conúbio constitucional do liberalismo
com o corporativismo, criando a figura do deputado clas

sista para representar empregadores e empregados. Sua escolha se fazia em cada categoria a partir dos respectivos sindicatos,
sobrepostos por um sistema de colégios eleitorais. Com isto se furtavam, ao mesmo tempo, a base do anarco-sindicalismo
e funções dos partidos de esquerda. O remate veio com a montagem do sistema sindical integrado na estrutura do Estado.
Os libertários simplesmente o ignoraram, não registrando seus grêmios no Ministério do Trabalho, o que deixava os
associados sem representação legal para cuidar de seus interesses e direitos. Esta situação pôde ser relativamente mantida
até a decretação do Estado de Guerra em 1935. Em São Paulo, por exemplo, a velha Federação Operária tinha mais de uma
dezena de sindicatos filiados em 1934, quando sua sede foi fechada pela polícia.
A recusa de relacionar-se com o Estado decidiu o final das lideranças anarquistas. No entanto, para evitar a
marginalização no movimento operário viram-se forçados a ceder em seus princípios, permanecendo no sindicato oficial.
Justificavam-se como oposição necessárias para conseguir a volta à autonomia e ao pluralismo associativos. Com este fim,
no primeiro decênio do após-guerra, seus remanescentes em alguns sindicatos formaram mais de uma vez com socialistas
e católicos. Com os primeiros sempre praticaram militância sindical lado a lado. Mas, essa foi a primeira vez que se
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suspendeu, em dada causa comum, o tradicional conflito entre anarquismo e Igreja.


Malogrado o intento oposicionista, os libertários ficaram quase só em seu Centro de Cultura Social, guardando
um patrimônio histórico como semente sob a neve, por assim dizer.
Quando a semente rebrotou, as classes sociais subalternas e o Estado já tinham saído, havia muito tempo, da
situação de mútua marginalidade. Em largas linhas — exceptuado o interregno ditatorial — o Governo lhes abriu espaço,
que ocuparam através dos partidos e sindicatos, num primeiro passo, tomando depois também as vias da Igreja Católica
e dos movimentos sociais. Por isso, não se pode mais considerar a mencionada marginalidade no complexo condicionante
do ressurgimento anarquista. Nem tão-pouco explicá-la pela existência de uma população economicamente periférica,
pois esta não é a sua provedora. Até agora tem-se abastecido, predominantemente em círculos de nível universitário. O
novo cenário e o novo elenco anarquista mostraram-se pela primeira vez no Maio parisiense, incorporados a uma das
maiores manifestações de recusa da sociedade industrial contemporânea. A outra, igualmente notável, foi o movimento
hippie gerado em similar conjuntura social, mas diverso no modo de ser e de fazer.
A mesma sociedade tecnológica, que vinha promovendo o crescimento das classes médias, também motivava,
em parcelas de sua juventude ilustrada, o repúdio pela racionalização da vida social, pelo princípio da eficiência e ética
do êxito, pela rotina, impessoalização e imposições do consumismo. A recusa hippie consistiu em protelar o ingresso no
mundo do trabalho sistemático, criar o modelo das vestes carentes e formar nichos comunitários num entorno capitalista.
No movimento de Maio de 68, ao contrá

rio, os grupos de uma nova esquerda radical, fraccionados das esquerdas marxistas históricas, propuseram-se a fomentar a
revolução imediata. Tratava-se de uma revolução pensada, não só contra o capitalismo, mas contra todo modelo de sociedade
industrial, especialmente a de tecnologia avançada, devido às mais largas amarras de seus efeitos indesejáveis. Embora
tivessem ocorrido simultaneamente, o movimento universitário e a greve geral na França não visaram os mesmos fins. Ao
contrário dos estudantes, os trabalhadores não pretenderam subverter a sociedade industrial, mas melhorar suas condições
na organização do trabalho e na capacidade de consumo.
A conseqüência do malogro, em ambos os casos, foi a reabsorção social de seus partícipes, efetuada de modo
difuso ou organizado por partidos ou movimentos sociais. Mas também é ineludível outra conseqüência vasta e persistente.
A partir dos anos da grande recusa, vêm-se acelerando mudanças culturais, num amplo e vário espectro de gamas, que
inclue o patrimônio ideológico das esquerdas clássicas.
Os anarquistas, que precediam os grupos da chamada nova esquerda radical, não se dispersaram. Ao contrário,
mantiveram-se em seu próprio movimento, que hoje pontilha por 16 países, conforme a lista das representações no XVIII
Congresso da Associação Internacional dos Trabalhadores-Anarquistas, — realizado em Bordeaux no início de abril último.
No Brasil, durante todo esse tempo considerado, as esquerdas, embora também já fraccionadas, estavam
empenhadas em outra recusa de caráter e âmbito mais restritos: a longa recusa do Estado ditatorial em favor do Estado
de Direito. Mas, no mesmo final do processo de substituição de um pelo outro, recompunham-se as fracções da classe
dominante na disputa pelo poder hegemônico. O Jogo prolongado na cúpula estatal, aprofundado com a crise política,
ao sabor da recessão e manipulação econômicas, terminou motivando um desencanto generalizado, que vai deslizando
para o desânimo e a indiferença. Entre os desencantados com o governo, apareceram novos desiludidos com a instituição
do Estado, ao mesmo tempo que se reiniciava a edição de obras referentes ao anarquismo e ressurgia o interesse pela
pesquisa de seu passado no Brasil. Neste último quatriênio tomou impulso a formação de pequenas agremiações libertárias,
cujos componentes são quase todos de escolaridade superior, concluída ou em curso, particularmente na área das
humanidades mas também das ciências naturais e aplicadas 4. A adesão de operários, ao contrário do que foi na primeira
fase, é insignificante e muito recente. Algumas notícias mais significativas, embora concentradas em São Paulo, dão uma
idéia desse movimento ressurgente.
A primeira manifestação do retorno do anarquismo foi a formação de um grupo na Bahia, em 1979, editor do
periódico O Inimigo do Rei, do qual circularam 19 números e, depois de uma longa interrupção, reapareceu no início desse
ano. Nesse intervalo. outros grupos surgiram ou ressurgiram, como o Centro de Cultura Social de São Paulo, em 1985,
sendo logo objeto de reportagem em uma revista de circulação nacional 5. Tem se destacado por atividades ininterruptas,
seja em sua sede, seja em outros locais com a colaboração de várias entidades. Assim, no mesmo ano de sua reabertura,
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organizou na Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, juntamente com o Diretório Central Acadêmico, um curso
livre de anarquismo, ministrado em 10 aulas com uma freqüência média de 50 pessoas. Em 1986, comemorou o centenário
do 1º de Maio com vários atos públicos e uma exposição em sua sede, durante 1 mês, de jornais anarquistas do início do
século. No mesmo ano, promoveu nas dependências do Centro Cultural da Municipalidade um debate sobre teatro operário
em São Paulo, com a apresentação de duas peças anarquistas também do começo do século 6. Sobre o mesmo assunto, em
1987, a TV Cultura de São Paulo exibiu um programa organizado pelo referido Centro.
Na esfera universitária, durante 1987, mais três eventos marcaram a presença anarquista com a participação
de diretores do Centro de Cultura Social. Na Escola de Sociologia e Política de São Paulo foi ministrado um Curso Livre de
Anarquismo para 80 alunos matriculados. No Departamento de Geografia da Universidade de São Paulo, proferiram-se
quatro palestras a respeito de Kropotkin e Reclus como cientistas e anarquistas. No Instituto de Filosofia da Universidade
do Rio de Janeiro, mais de 100 pessoas ouviram uma exposição sobre as idéias anarquistas.
No campo editorial, os grêmios se restringem à publicação intermitente de panfletos, boletins e pequenos
jornais. O grande empreendimento é a editora Tempos Novos, sediada em Brasília, com 6 títulos publicados e outros em
programação. Ainda em Brasília, encontra-se em montagem uma modesta livraria anarquista. Por sua vez a Editora Tempos
Novos pretende instalar um stand na próxima Bienal Internacional do Livro de São Paulo. Além disso outras seis editoras
nacionais, de portes variáveis, têm publicado ultimamente obras sobre anarquismo e anarquistas, numa proporção jamais
vista no Brasil. Antes a maioria delas era importada.
Por todo esse tempo, formaram-se no mínimo 20 grupos libertários, sendo que alguns tiveram vida efêmera
devido a dispersão dos universitários diplomados que os compunham. O número de componentes de cada um varia de 4
a 15, mas as reuniões culturais de alguns centros têm geralmente freqüência bem maior. Os grêmios se distribuem do
Nordeste ao Sul do país, por 9 estados e o Distrito Federal. Em alguns locais há mais de um grupo, como em São Paulo,
com 4; na Bahia, Brasília, Rio de Janeiro, Paraná e R. Grande do Sul com 2 cada um. Denominam-se, sociedade, centro ou
círculo, trazendo o adjetivo anarquista ou libertário. Além das pessoas que assim se agrupam há outras avulsas de várias
localidades, em comunicação com as associações. Por sua vez, estas se relacionam através de seus impressos e encontros
ou jornadas, que se realizam em algumas capitais de Estado e no Distrito Federal. De tais reuniões já surgiu o projeto de
um Congresso Brasileiro de Associações Anarquistas.
A já mencionada composição dos quadros associativos coloca a questão de saber porque o movimento libertário
aparece hoje como um fenômeno social ocorrente quase todo na categoria universitária. Convém desde logo descartar o
fato de que decorre diretamente das condições desfavoráveis do mercado de trabalho, defrontadas por um pessoal de
escolaridade superior em constante crescimento. Se assim fosse, aquele movimento ideológico não estaria sendo ignorado,
pelo menos até agora, pela população que mais suporta as reduções salariais e o desemprego. De passagem, é bom lembrar
que os mesmos canais, bitoladores da entrada das classes subalternas no espaço do Estado, oferecem-lhes, ao mesmo
tempo uma perspectiva onde essa instituição se configura como necessária. A intelectualidade anarquista, ainda que
sujeita às condições objetivas do mercado de trabalho, rompe por vias ideológicas com aquele bitolamento e se propõe
levar esse comportamento à classe operária.
Com tal propósito realizaram-se dois congressos nacionais: um em 1986, na sede do Centro de Cultura Social
de São Paulo como parte das comemorações do centenário do 1º de Maio; outro no ano seguinte na Faculdade de Belas
Artes da Universidade Federal da Bahia. Deles resultaram a formação de um secretariado para articular os grupos pró-
Confederação Operária do Brasil, vinculada à Associação Internacional do Trabalho; a Carta de Princípios, as bases do
acordo associativo e a retomada da publicação do jornal Voz Operária, da Confederação criada no 1º Congresso Operário
Brasileiro, em 1906.
No entanto, a reconstituição do anarco-sindicalismo reencontra as mesmas condições que o sitiaram a partir
da consolidação da unicidade sindical, que estabelece o monopólio da representação das categorias profissionais. Tendo a
Constituinte mantido aquele privilégio, as ligas operárias só poderão constituir-se como associações civis, marginais ao
sistema corporativo oficial. Uma experiência desse tipo, sem êxito sindi

cal, já foi feita pelos Círculos Operários Católicos, desde a década de 1930. Daí os militantes da Ação Católica Operária e
da Juventude Operária Católica passarem a ingressar nos sindicatos, a partir do início da década de 1960, como o grupo
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especificado e, mesmo atuante nas oposições internas. Outra experiência, também inspirada pela Igreja, que procurou
contornar o sistema corporativo, foi a Frente Nacional do Trabalho criada em 1960. Escolheu como âmbito de atuação o
local de trabalho procurando promover o exercício da auto-gestão trabalhista e da ação direta nas relações empregatícias.
Embora tivesse alcançado algum êxito notório de início, o movimento teve que enfrentar depois os prejuízos de sua esfera
particularista, diante do universo legal do sindicato. O registro desse movimento é aqui importante porque, agindo fora
da burocracia corporativista, foi levada a reelaborar noções e técnicas do anarco-sindicalismo clássico. Doutra parte, as
projetadas ligas operárias poderão reproduzir a experiência católica, terminando como grupos diferenciados nos quadros
sindicais, no que já têm precedente histórico. Todavia, num nível superior da organização, a Confederação Operária do
Brasil poderá formar-se autonomamente, no mesmo sindicalismo paralelo ao oficial, como fazem a Central Única dos
Trabalhadores, a Confederação Geral dos Trabalhadores e a União Sindical Independente. A forma de estabelecer as
filiações associativas e sua possível quantidade não tem ainda indicadores.
Embora inicia seu projeto de ação sindical, os anarquistas permanecem no campo dos movimentos sociais,
onde comparecem como constelação de grupos que se proclamam da mesma ideologia. Têm como herança comum a visão
ética libertária clássica enfocada na libertária individual contraposta a instituição do Poder. Essa liberdade já está implícita
no variado modo de entendimento da mencionada ideologia, de seus valores, princípios e práticas, ontem como hoje.
Variações podem ser observadas, tanto ao comportamento dos grupos, quanto na distancia histórica. Dessa perspectiva,
dois casos são altamente significativos devido às Instituições envolvidas. Os primeiros anarco-socialistas viam nas ligas
operárias — depois denominadas sindicatos — uma dupla função: confrontar o patronato e, ao mesmo tempo, gestar as
formas auto-geridas dos futuros conselhos de produtores na aspirada sociedade anárquica. Esta função não cabe no sindicato
atual, não só por seu caráter ideológico, mas também pela organização burocrática e as formas de relações empregatícias.
Assim, se as projetadas ligas operárias tiverem que atuar também no sindicato oficial, bifurcarão o âmbito associativo das
duas funções ou deixarão de lado a que se refere à utopia.
Outro caso é o histórico antagonismo entre os anarquistas e as Igrejas, particularmente a Católica por sua
dominância. Esta acusava aqueles de promotores da desarmonia social, os quais, de seu lado, a combatiam como sustentáculo
de capital e do Estado. O anticlericalismo não era exclusivo dos anarquistas, mas assumido também por livres

pensadores. Também, não era extensivo ao movimento sindical, que não estabelecia distinções para evitar divisões na
classe operária em sua luta primordial. A propaganda anticlerical se fazia lateralmente ao sindicato e aos contingentes em
greve, quase todos, se não todos católicos.
Hoje, os anarquistas manifestam-se diversamente sobre as Igrejas, considerando ou não as mudanças por que
têm passado. Assim, O Inimigo do Rei conclama que se viva sem violência, sem governo, sem partido, sem igrejas, sem
preconceitos, e sem polícia. Já a Confederação Operária do Brasil, que não se declara neutra, mas anarquista, omite o nome
da Igreja na lista de seus alvos constantes em sua Carta de Princípios. Diz que o movimento “atuará na luta contra o Estado
e seus instrumentos de dominação (Polícia, Justiça, Parlamentos, Forças Armadas, Escolas, Sindicatos Oficiais, Capitalistas,
Partidos Políticos) visando a sua completa destruição — para que seja possível a construção de uma sociedade nova,
verdadeiramente socialista e livre” 7. Anarquistas, que nos são próximos, expressam sua consideração pela Igreja Católica
transformada, que se declara Igreja dos pobres e por eles luta.
Mostram-se eles também satisfeitos por verem idéias, termos e práticas libertárias adotados hoje por
sindicalistas, católicos e movimentos sociais de variadas finalidades populares, aos quais dão seu apoio. Destacam
principalmente a ação direta, a autogestão, as comissões de fábrica, as práticas comunitárias e, mesmo, o designativo
libertário. Por sua vez, há católicos que freqüentam o Centro de Cultura Social de São Paulo, o qual mantém intercâmbio de
impressos com o Centro Pastoral Vergueiro, de documentação e pesquisa, com a Frente Nacional do Trabalho e o Movimento
dos Agricultores Sem Terra. Certamente, essa abertura de lado a lado exprime preocupação com os problemas das classes
subalternas mas não propostas de soluções análogas.
Para os anarquistas permanecem intocáveis sua visão ética e sua concepção utópica. O que se repensa é a
via de realizá-la, através de uma sociedade que já não oferece ao pensamento simplicidade de rota. Isto se evidenciou
desde que as greves parciais não desenbocaram na greve geral revolucionária, passando a ênfase para a difusão de uma
nova cultura racionalista, que influa no processo civilizatório. Resumindo idéias de alguns anarquistas a este respeito.
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Embora seja evidente a transformação da sociedade capitalista, não se pode amoldá-la revolucionariamente segundo
um projeto, nem saber qual a forma em que se dará seu desfeixo. Se este se der pela tomada do Estado — qualquer que
seja a substituição de seus fins — não se fará mais do que a renovação do Do
mínio. É preciso, portanto, preparar-se para descartá-lo no mesmo ato constituinte do novo contrato social. Dele fará parte
o estímulo do progresso tecnológico vinculado ao alívio do trabalho, posto que será um fator de libertação do homem,
quando administrado comunitariamente. Remete-se para os horizontes vislumbrados da utopia a questão de saber como
exercitar a democracia direta requerida pela autogestão, nos quadros de uma sociedade tecnológica, em que os autômatos
substituem crescente quantidade de pessoas, o saber funda o Domínio e a complexidade organizatória requer a delegação
de mandatos.
A resposta é a retomada da distinção entre administrar as coisas e governar os homens. A futura Comuna,
em seu desenvolvimento, encontrará as formas de submeter a administração ao alto governo social. Esta convicção vem
de outra que se levanta na cúpula do pensamento anarquista e que se pode assim expressar: o advento da sociedade
libertária se identificará com o advento de uma civilização madura.
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AS CIÊNCIAS SOCIAIS E A PESQUISA


SOBRE EDUCAÇÃO
Aparecida Joly Gouveia*

GOUVEIA, Aparecida Joly. As Ciências Sociais e a Pesquisa sobre Educação. Tempo Social; Rev Sociol. USP, S. Paulo, 1(1): 71-79,
1.sem. 1989.

RESUMO: Focaliza-se neste artigo a participação das Ciências Sociais na pesquisa brasileira sobre a educação a partir da
década de cinqüenta, quando esse campo de estudos encontrou condições favoráveis no clima criado pelo desenvolvimentismo. Desde
então, afetadas em certa medida por mudanças no panorama político nacional mas influenciadas também por movimentos de idéias
surgidos em outros países, a temática e a orientação teórico-metodológica das pesquisas sofreram alterações ao longo do tempo, acentuando-
se em certos períodos a preponderância de determinados temas ou a hegemonia de um ou outro paradigma. Dentre as ciências sociais,
a sociologia é a que mais se tem aplicado ao estudo da educação . Embora de várias maneiras a escolarização - principal objeto das
pesquisas realizadas - possa ser afetada pela atuação do Estado, raras são as que têm sido realizadas por cientistas políticos.

UNITERMOS: Pesquisa sobre Educação - Brasil, sociologia da educação: temas e métodos.

GOUVEIA, Aparecida Joly. Social Sciences paradigms in educational research. Tempo Social; Rev. Sociol. USP, S. Paulo, 1(1): 71-
79, 1.sem. 1989.

ABSTRACT: An attempt is made to trace the presence of social sciences paradigms in Brazilian educational research.
Starting from studies made in the fifties when this field flowered, under the influence of development theories, certain changes in
themes and theoretical orientantions leading to the predominance of different paradigms can be detected. As suggested, the observed
changes are explained both by certain events in the national political scenery and ideas spread from international organizations or
French and American academic centres. As to the presence of the distinct academic fields, sociology comes first alI along the time,
some use has been made of anthropological research methods. Although schooling - a main research subject - is affected to a large
extend by government policies very few political scientists engage in studies about education.

UNITERMS: Educational research - Brazil, Sociology of Education; themes and methods.


* Professora Titular do Departamento de Sociologia- FFLCH-USP.
1
Nessa época foram realizadas pesquisas como as de Pereira (1967), Foracchi (1965), Borges Pereira (1969), entre outros.
2
As características de tal preocupação e da metodologia empregada encontram-se no trabalho de Gouveia (1968), um dos
primeiros do gênero.
3
V., a propósito, o estudo de Schneider (1977), autora com formação antropológica.
4
A “Nova Sociologia da Educação” não tem tido a ressonância que, em diferentes momentos, tiveram idéias vindas da França ou
dos Estados Unidos.
5
V. a propósito desse interesse os trabalhos de Brandão (1984, 1985).

Até fins da década de quarenta a educação constituiu uma preocupação menor entre os cientistas sociais. Isto não
obstante o fato de o interesse por educação ter estado presente na origem mesma da Sociologia como disciplina acadêmica.
Nomeado em 1887 para ministrar aulas de Pedagogia e Ciência Social na Faculdade de Letras de
Bordeaux, foi Durkheim quem iniciou o primeiro curso de Sociologia numa universidade francesa (Rodrigues, 1978).
Contudo, o interesse expresso nos títulos de três de suas obras — Education et Sociologie (1955), L’évolution pédagogique en
France, (1969) e L’éducation morale (1925) não teve continuidade nos trabalhos dos seus seguidores.
Fora do país onde com Durkheim se originaram, os estudos sociológicos sobre educação tardaram em adquirir a
respeitabilidade grangeada por outros campos da sociologia Nos Estados Unidos, onde na década de trinta a Sociologia já
se firmara no mundo acadêmico com a divulgação das pesquisas da escola de Chicago, uma única obra sobre educação —
The Sociology of Teaching, de Waller (1968), cuja primeira edição é datada de 1932 — destacava-se como trabalho analítico
de orientação sociológica. Na visão atual de especialistas da área (Dreeben e Gerty, 1971), os trabalhos que então se
produziam, em sua maior parte de caráter exortativo e reformista, não apresentavam fundamentação teórica ou mesmo
empírica.
Na maioria dos países a Psicologia se adiantou às ciências sociais como disciplina norteadora de pesquisas empíricas
sobre educação. Na Grã-Bretanha, os desenvolvimentos no campo dessa disciplina repercutiram na esfera das práticas
educacionais a ponto de se adotar, em caráter generalizado, a aplicação de testes de inteligência para a triagem dos alunos
aos onze anos de idade. O privilégio de prosseguir a escolaridade no ramo mais prestigioso — o acadêmico, caminho para
a universidade — foi assim legitimado com a utilização de critério supostamente objetivo. Feita em nome de princípios
meritocráticos, a aplicação de tal medida passaria, entretanto, a ser objeto de especulações que desencadearam o debate
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sobre a seletividade social do sistema escolar, para o qual muito contribuíram as pesquisas sociológicas feitas sobretudo a
partir do fim da segunda guerra mundial.
No Brasil, o enfoque de Durkheim tornou-se conhecido no virar da década de trinta com a divulgação dos trabalhos de
Fernando de Azevedo (1935, 1940). Entretanto, como objeto propriamente de pesquisa empírica, a educação passou a
receber a atenção dos cientistas sociais nos anos cinqüenta, quando o interesse pela modernização do país, estimulado
inclusive pela política desenvolvimentista do governo Kubitscheck, envolveu a academia. Em consonância com um
movimento de idéias que tomou corpo em instituições internacionais (UNESCO, OEA, CEPAL, OCDE) no período do
pós-guerra, atribuía-se à escolarização, na época, papel importante na transformação do país no sentido de uma sociedade
mais próspera e mais democrática (Fernandes, 1966, Cardoso e Ianni, 1959). Objeto de discussões entre intelectuais do
ISEB (Instituto Superior de Estudos Brasileiros), no Rio de Janeiro, ou de investigação empírica entre antropólogos e
sociólogos, principalmente na Universidade de São Paulo 1, a educação passou
a ombrear-se com os temas que eram então privilegiados — urbanização, industrialização, mudança, desenvolvimento.
Empregando os recursos teórico-metodológicos das disciplinas respectivas, sociólogos e antropólogos, financiados em
grande parte pelo Instituto Nacional de Estudos Pedagógicos, realizaram várias pesquisas sobre escolas, alunos e professores.
Nesse período de marcado interesse por educação, que se prolongou até os primeiros anos da década de sessenta, os
estudos eram bastante diversificados quanto à temática e abordagem.
A partir dessa época, difundiram-se a utilização das técnicas estatísticas de análise e a preocupação com as desigualdades
educacionais, características das pesquisas americanas. Passaram então a predominar as pesquisas de tipo sócio-demográfico
nas quais se relacionava a origem familiar dos alunos com a repetência, a evasão ou o acesso diferencial aos vários níveis
ou tipos de ensino 2. Também as origens, concepções e outras características dos professores foram de forma semelhante
investigadas.
À maneira do que ocorreu em outros países, tais pesquisas serviram para evidenciar o caráter seletivo, anti-democrático,
do sistema escolar. Entretanto, se este mérito se lhes deve reconhecer, por outo lado pode-se dizer que apenas tangenciaram
os processos através dos quais os dispositivos burocráticos e o funcionamento cotidiano da escola acabam produzindo a
seletividade social observada Por focalizarem a evasão, a repetência e, em geral, as desigualdades educacionais
principalmente, senão exclusivamente, em função da origem dos alunos, pouco revelaram a respeito dos processos ou
situações escolares através dos quais essa variável atua.
É possível que tal distanciamento em relação ao que se passa no interior da instituição em parte se explique pelo fato de
os antropólogos, atraídos por outros campos, terem em geral se desinteressado por estudos sobre escolarização.
Principalmente pelo tipo de prática de pesquisa em que se formam estariam eles sem dúvida habilitados para o tipo de
abordagem apropriado à investigação do cotidiano escolar 3. Relativamente rara ainda hoje no Brasil é a participação da
Antropologia na pesquisa educacional. Em outros países esta situação já se vem alterando, como indicam os vários estudos
etnográficos sobre escolas que vem sendo ultimamente publicados (Henriot, 1987).
O distanciamento dos antropólogos não teria a mesma importância fosse outro o perfil da produção sociológica brasileira
na qual, durante alguns anos, preponderaram os estudos com propósitos globalizantes. Mais recentemente, com a tradução
e divulga

gação de trabalhos como os de Goffman (1975), Berger (1972), Berger e Luckman (1974) e a atração exercida por autores
que, como Foucault, transpõem fronteiras acadêmicas, é que, entre sociólogos, percebe-se maior interesse por estudos
voltados para a dinâmica das relações sociais em situações demarcadas pelos limites de contactos primários.
Por outro lado, em relação ainda à década de cinqüenta, é importante lembrar que, ao mesmo tempo em que se
desenvolviam as pesquisas, fortalecia-se um movimento de opinião em favor de reformas no sistema educacional.
Extravazando os muros da academia, a educação passou a ter maior visibilidade social quando tomou vulto a campanha
em defesa da escola pública.
As frustrações decorrentes da Lei nº 4024 sobre a reforma do sistema escolar, finalmente promulgada em 1961, e os
fatos que sucederam ao golpe militar de 1964 — as “cassações” e o patrulhamento ideológico —, fizeram com que se
tornassem mais salientes as variáveis políticas envolvidas na questão educacional. Notadamente após as mudanças
estruturais e curriculares decretadas pelo governo discricionário, referentes ao ensino superior a partir de 1968 e aos níveis
inferiores em 1971, multiplicaram-se os estudos sobre política educacional baseados no exame da legislação e atos
administrativos emanados do poder central.
Tais estudos, que tiveram grande difusão nos cursos de pós-graduação em educação instalados na década de setenta,
não só focalizam os objetivos explícitos das medidas governamentais como, também, procuram expor-lhes as intenções
subjacentes. A análise, que se propõe crítica, inspira-se, em alguns casos, no marxismo, mas os estudos sobre política
educacional produzidos nessa época nem sempre são de autoria de cientistas sociais. Vale notar sobretudo que, embora o
seu objeto seja a ação do Estado, entre os seus autores não se contam, salvo raríssimas exceções, especialistas em ciência
política.
Importantes como têm sido na medida em que provocam discussões que transcendem o âmbito de questões
propriamente pedagógicas, esses trabalhos em geral não se propõem, entretanto, analisar as vicissitudes da implementação
das políticas educacionais, limitação esta que pode ser séria, principalmente num país extenso e diversificado como o
Brasil. Foge à sua consideração como objeto de exame sistemático a refração ou filtragem das decisões e medidas que,
tomadas em instâncias superiores, até chegarem ao cotidiano das escolas, percorrem tortuoso ao longo de canais
burocráticos sensíveis ao jogo de interesses regionais ou locais.
A despeito do clima político opressivo criado pelo golpe militar e que na época ainda se fazia sentir, ou talvez por isso
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mesmo (Gouveia, 1985), a década de setenta foi marcada por intensas discussões suscitadas por teorias sobre o caráter
conservador da escola, de autoria de sociólogos franceses (Althusser, 1970; Bourdieu, 1974; Bourdieu e

Passeron, 1975; Establet, 1975); que aqui se acoplaram às denúncias de economistas radicais dos Estados Unidos, relativas
ao atrelamento do sistema escolar daquele país aos requisitos do capitalismo (Bowles, 1976; Carnoy, 1972; Gintis, 1971).
A essa época as pesquisas sobre educação já eram relativamente raras, como hoje ainda são, nos departamentos de
Ciências Sociais das universidades. Assim, foi principalmente nos nascentes programas de pós-graduação em educação
que vicejou o debate em torno das idéias questionadoras da escola, rapidamente difundidas através de traduções de obras
daqueles autores ou da utilização de suas teorias em ensaios e trabalhos de pesquisa realizadas principalmente por
professores e estudantes de Educação.
Em anos mais recentes, o prestígio de tais teorias tem decrescido. Entre os educadores, dúvidas têm surgido a respeito
da influência negativa que possam ter sobre iniciativas tendentes à promoção de mudanças. Por outro lado, teorias sistêmicas
que são, vêem-se hoje relativizadas em face de debates teóricos que se travam no campo mesmo da Sociologia, onde se
destaca a questão do papel dos indivíduos como atores do processo histórico, concepção esta que se opõe à noção do
indivíduo como agente passivo, inteiramente sujeito às exigências de um sistema que lhe sobrepõe. Como sugere Isambert-
Jamati (1984), no que se refere à análise da educação, esse “retorno do ator” (na expressão de Touraine, 1984) significa
recuperar na analise a atuação dos estudantes, de suas famílias e principalmente dos professores (como atores individuais
ou coletivos).
Ao mesmo tempo, concorrem ao debate no campo da Sociologia posições metodológicas afinadas com a fenomenologia,
representadas no interacionismo simbólico, na etnometodologia, no construtivismo (Wolff, 1980). Distintas sob certos
aspectos, estas três correntes têm em comum, a partir de pressupostos que as qualificam como abordagens de tipo
“humanista-culturalista” (em oposição a “positivista-naturalista”), o fato de se deterem na análise de situações passíveis
de observação direta e implicarem no emprego de técnicas de pesquisa qualitativas. Incluir-se-iam naturalmente entre
as situações desta natureza as que envolvem alunos e professores no cotidiano da escola.
Na medida em que tais orientações se tomem conhecidas dos pesquisadores brasileiros, o que parece já estar ocorrendo
(Ludke, 1987) é provável que venham a ser investigados aspectos que não têm sido alcançados ou não têm sido
satisfatoriamente esclarecidos, seja pelos estudos sócio-demográficos predominantes na década de sessenta, seja por
abordagem de tipo macrossociológico dos anos posteriores.
Contudo, em se atentando tão de perto, como seria necessário, para o que se passa no interior de um pequeno mundo,
haveria o risco de se negligenciarem os condicionamentos que aí se exercem a partir do mundo mais amplo ao redor.
Na verdade, a articulação entre a dinâmica interna da escola e os constrangimentos de ordem econômica, social e
política que pesam sobre essa instituição não se têm mostrado tarefa fácil, como indicam as críticas feitas aos estudos
realizados na Inglaterra em função dos objetivos visados pela “Nova Sociologia da Educação”. Lançado com a publicação
do livro Knowledge and Control, de Young (1971), o movimento assim auto-denominado, decididamente crítico dos estudos
sócio-demográficos realizados na década de sessenta, propunha centrar a análise nos processos internos ao sistema escolar.
Como mediadores da atuação dos fatores extra-escolares, tais processos deveriam receber atenção especial na investigação
dos resultados escolares 4. Contudo, as pesquisas que foram realizadas com esta preocupação não conseguiram articular
as perspectivas macro e microssociológicas que o projeto pressupunha. A dificuldade estaria no caráter ahistórico da
abordagem fenomenológica, privilegiada por essa corrente. Agora, numa segunda fase, sensíveis às críticas, os seguidores
do movimento estariam procurando encaminhar as investigações de maneira a apreender a influência de fatores histórico-
estruturais obscurecida nos primeiros estudos (Trottier, 1987).
Se, de um lado, verifica-se no Brasil a carência de estudos sociológicos sobre a dinâmica interna das instituições escolares,
de outro, registram-se na bibliografia brasileira vários trabalhos que analisam a educação de ângulo mais amplo, situando
a expansão do sistema escolar, os movimentos educacionais ou as transformações ocorridas em determinados níveis de
ensino no contexto político em que ocorrem (Beisigel, 1974; Paiva, 1973; Cunha, 1980, 1983; Cardoso, 1982).
Conclusão
Ao concluir esta tentativa de síntese das principais orientações das pesquisas sobre educação realizadas a partir de
pontos de vista das ciências sociais, destaca-se o seguinte:
1 - No Brasil, como em outros países, a Sociologia é, dentre as ciências sociais, a que mais se tem
aplicado ao estudo da educação.
2 - Dentre as diferentes formas de educação, a escolar é a que tem predominado como objeto de pesquisas
realizadas por sociólogos. É provável que esse
privilegiamento se deva à importância atribuída à escolaridade nas sociedades contemporâneas, onde a
grande maioria das crianças e adolescentes freqüentam a escola e, por outro lado, a escolarização tende a
prolongar-se, começando cedo, na pré-escola, e extendendo-se por doze ou mais anos.
3 - Em relação à Antropologia, o que sobressai é a atenção que esta disciplina tem tradicionalmente
dedicado aos processos informais de socialização, seja em grupos tribais, seja em sociedades complexas,
principalmente quando se focaliza a família, como no Brasil freqüentemente ocorre em estudos de
comunidade. Mais recentemente, registra-se também algum interesse por formas alternativas, extra-escolares,
de educação dirigidas a adultos de setores menores favorecidos da população 5.
4 - Embora não sejam raros os estudos sobre política educacional, certos aspectos, tais como, os mecanismos
do processo decisório no âmbito das diferentes instâncias político-administrativas (federal, estadual e
municipal), as formas como atuam os interesses que sobre elas se exercem ou o fluxo das decisões ao longo
das burocracias educacionais, não têm merecido suficiente atenção. Sem, entretanto, pressupor uma
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delimitação rígida de áreas de conhecimento, acredita-se que a análise de aspectos como esses encontraria
recursos teóricos adequados na Ciência Política.
Finalmente, cabem alguns esclarecimentos sobre este trabalho. As referências a correntes surgidas em outros países,
indicativas de influências presentes na obra dos pesquisadores brasileiros, não abrangem o inteiro espectro das idéias que
se refletem nos estudos sobre educação realizados por cientistas sociais. No que se refere às menções a autores nacionais,
a seleção foi feita tendo-se em vista os trabalhos que, a nosso ver, melhor representam as tendências ou momentos apontados.

REFERÊNCIAS BlBLIOGRÁFICAS
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Tempo Social; Rev. Social. USP, S. Paulo, VOLUME 1(1) A R T I G O

PLANOS DA COGNIÇÃO E PROCESSOS


CULTURAIS
Ruy Galvão de Andrada Coelho*

COELHO, Ruy Galvão de Andrada. Cognitive levels and the cultural process. Tempo Social; Rev. Sociol. USP, SãoPaulo, l(l): 81-104, 1.sem. 1989.

ABSTRACT: This paper aims at presenting a general view of cognitive anthropology. It is focussed on the
levels of cognition and sociocultural dynamics underlying them. A division of levels is proposed as follows. 1) Level of
perceptual representation, analysing images and percepts. 2) Level of language, discussing the role of language in the
construction of knowledge; structural aspects are considered, as well as rethorical tropes such as metaphor, synecdoche
and metonimy. 3) Level of symbols, emphasising the notions of dominant symbols and key symbols. 4) Level of practices,
comprising discussion of schema, script, rite, task and life plan, among others. 5) Level of mental categories, an approach
to the problems of color classification, ethnobotany, ethnozoology, as well as classifications of diseases and emotions. 6)
Level of superior forms of knowledge: institutional codes, myths, world views, logical structures of thought. Unities of
analysis are used as operational variables; no existential value is attached to them. Articulation and hierarchy of levels
are open to discussion.

UNITERMS: Cognitive anthropology: image, percept, language, symbol, practices, mental categories, myth,
logical structures.

* Professor colaborador do Programa de Pós-Graduação em Sociologia da FFLCH-USP. Docente da Universidade de Coimbra, Portugal.

COELHO, Ruy Galvão de Andrada. Planos da cognição e processos culturais. Tempo Social; Rev. Sociol. USP, S.
Paulo, 1(1): 81-104, 1.sem. 1989.

RESUMO: Este artigo visa apresentar uma visão global da antropologia cognitiva. A exposição põe em foco
os planos da cognição e os dinamismos socioculturais que lhes são subjacentes. Propõe-se a divisão que se segue. 1) Plano
da representação perceptual, em que se analisam a imagem e o percepto. 2) Plano da linguagem, em que se discute o papel
da linguagem na construção do conhecimento, tanto no aspecto estrutural quanto no que diz respeito aos tropos da retórica,
como a metáfora, a sinédoque e a metonímia. 3) Plano dos símbolos, dando ênfase às noções de símbolo dominante e key
symbol. 4) Plano das práticas, compreendendo a discussão entre outros, de schema, script, ritos, tarefa e planos de vida. 5)
Plano das categorias mentais, em que se aborda os critérios de classificação das cores, classificações etnobotânicas e
etnozoológicas, assim como das doenças e das emoções. 6) Plano das formas superiores do conhecimento: códigos
institucionais, mito, cosmovisão, estruturas lógicas do pensamento. As unidades de análise são tidas por variáveis
operacionais; não lhes é atribuído valor existencial. O entrosamento e hierarquia dos planos são objeto de debate.

A antropologia cognitiva objetiva lançar luzes sobre os dinamismos coletivos do conhecimento humano.
Distingue-se da epistemologia por não montar seu discurso so
bre as posições a priori, como ciência empírica, investiga as formas concretas de contato do espírito humano com a realidade
que se manifestam nas diferentes culturas. Desde que a cultura foi caracterizada como sistema simbólico, a análise deste
cobre necessariamente todos os aspectos da elaboração mental coletiva, inclusive o conhecimento. Toda a obra de Lévy-
Bruhl tem por foco as modalidades de conhecimento nas sociedades primitivas. Frazer concebeu a magia como forma
primitiva do saber. Durkheim e Mauss deram as bases científicas para a investigação das classificações primitivas, que se
prolonga até a atualidade. Há razões, portanto, para sustentar que a antropologia cognitiva não é um domínio especial da
ciência antropológica, mas constitui seu todo. Contrariamente, para alguns a antropologia cognitiva nasceu em meados da
década de 50, com os trabalhos de Frake, Conklin e outros, surgindo como revolução radical na ciência do homem.
No meu entender, tal revolução não se deu, ou, pelo menos, não constituiu transformação radical de
paradigmas, consoante os moldes que T.S. Kuhn propôs para análise das revoluções científicas. O que de fato aconteceu
foi uma mudança paulatina de ênfase, métodos e definição de objeto. O sistema sócio-cultural, para Durkheim e Radcliffe-
Brown, como para o Lévi-Strauss da primeira fase, é uma ordenação de regras de conduta, quer inconsciente, quer
explicitadas em códigos éticos e jurídicos. Na concepção do movimento cultura e personalidade, a cultura é a sistematização
de caraterísticas psicológicas, que se tornam comuns pela unidade de processos de socialização vigentes em determinada
sociedade. A antropologia do simbólico, que também se denomina antropologia semântica ou cognitiva, pôs em relevo os
dinamismos da cognição, tidos por cerne da cultura.
Nas últimas décadas, os problemas do conhecimento se tornaram a preocupação primordial de investigadores
nos campos da psicologia experimental, psicologia social, neuropsicologia, inteligência artificial, sociologia da ciência, e
outros mais. A antropologia, preparada pelo pensamento dos pioneiros acima mencionados, abriu-se às influências de
outras ciências da cognição e foi levada a refletir sobre suas próprias raízes. Daí resultou um grande fomento das
Tempo Social; Rev. Social. USP, S. Paulo, VOLUME 1(1) A R T I G O

Maria Isaura Pereira de Queiroz**

Um dos primeiros problemas que os cientistas sociais brasileiros buscaram resolver em fins do século XIX foi
o da existência e características da brasilidade, que segundo eles se comporia de duas vertentes: um patrimônio cultural
formado de elementos
harmoniosos entre si, que se conservaria semelhante através do espaço e do tempo; e a partilha do patrimônio cultural pela
grande maioria dos habitantes do país, em todas as camadas sociais. Tais elementos consistiriam em bens materiais (maneiras
de viver) e espirituais (maneiras de pensar). A totalidade deste patrimônio cultural poderia apresentar diferenças através
do tempo e do espaço; mas seriam diferenças superficiais; um núcleo central profundo persistiria igual a si mesmo pelas
idades afora, em todos os níveis sociais e etnias.
Ora, ao encararem seu próprio patrimônio cultural, os pesquisadores de Ciências Sociais desse período estavam
conscientes da grande heterogeneidade de traços culturais ligados à variedade dos grupos étnicos que coexistiam no
espaço nacional que se distribuíam diversamente conforme as camadas sociais. Os traços culturais não configuravam de
modo algum um conjunto harmonioso que uniria os habitantes, comungando nas mesmas visões do mundo e da sociedade,
nas mesmas formas de orientar seus comportamentos. Complexos culturais aborígenes, outros de origem européia, outros
ainda de origem africana coexistiam. E estes cientistas sociais acusavam a persistência de costumes bárbaros, aborígenes e
africanos, de serem obstáculos impedindo o Brasil de chegar ao esplendor da civilização européia. Consideravam-nos
assim como uma barreira retardando o encaminhamento do país para a formação de uma verdadeira identidade nacional,
que naturalmente embaraçava também um desenvolvimento econômico mais eficiente.
Estas maneiras de pensar se encontram nos estudos dos intelectuais dessa época, e mais particularmente
num deles, o médico baiano Raymundo Nina Rodrigues (Maranhão, 1862 — França, 1906)1, cujos trabalhos se voltaram
principalmente para as culturas afro-brasileiras. Segundo ele, os atrasos e os desequilíbrios da sociedade brasileira,
fenômenos sociais, provinham das misturas raciais, — bases biológicas, — e culturais encontradas no país. Raymundo
Nina Rodrigues definiu pela primeira vez a existência de um sincretismo religioso no país ao estudar os candomblés
baianos — nome genérico dado aos variados cultos afro-brasileiros que então existiam. Segundo ele, o fator biológico
era o principal responsável pelas anomalias nacionais: reações políticas descomedidas e irrefletidas no momento da
transição do Império para a República (1889); conflitos de religiões; doenças variadas e graves problemas de higiene.
Todo o desajustamento sócio-econômico se explicaria pela heterogeneidade biológica e cultural do país, levando os
habitantes até mesmo à loucura individual e coletiva.
Raymundo Nina Rodrigues foi o grande iniciador dos estudos de etnografia e de psicologia social no país.
Aliás, foi ele também, na Europa e mais especialmente na França, um dos fundadores da Psicologia das Multidões, ao lado
dos Sighele, dos Rossi, dos Tarde, dos Le Bon. Mas enquanto os europeus efetuavam estudos teóricos, partia ele de
estudos de campo sobre material diretamente observado e colhido na Bahia; e
muitas vezes se contrapôs a seus colegas europeus, mostrando que conceitos e definições destes não se adequavam a casos
brasileiros. Até hoje seus trabalhos são um precioso repositório de dados, principalmente relativos às religiões afro-brasileiras,
entre outros fenômenos sociais que observou.
Próximos desta maneira de pensar, dois outros estudiosos dessa época, Sylvio Romero (1851-1914) 2 e Euclydes
da Cunha (1866-1909) 3 apresentaram, com pequenas variantes, as mesmas questões: como podiam elementos culturais de
origem tão diversa coexistir sem reciprocamente se destruirem? Poderiam um dia chegar a constituir um conjunto
harmonioso, e qual o processo para se alcançar tal resultado? O que tudo isto representava relativamente ao progresso, tão
necessário, do país?
O racismo estava, pois, presente nos trabalhos destes pesquisadores do século XIX, de envolta, em doses
variadas, com o pessimismo pelo futuro econômico e cultural do país, assim como a negação da existência de características
especificamente brasileiras, e até mesmo da possibilidade de sua formação um dia. Estes medos ora apareciam em
determinadas apreciações, ora permaneciam latentes, mas eram facilmente discerníveis num adjetivo, na construção de
uma frase, e sublinhavam a maioria dos raciocínios e das inferências. De qualquer modo, uma pergunta estava sempre
presente, explícita ou implícita: chegariam um dia todos os brasileiros, apesar da variedade de seus grupos étnicos e de
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suas posses a configurar um patrimônio cultural harmonioso e refinado, que seria partilhado por todos, em todas as
regiões, em todas as camadas sociais? Pois para estes cientistas, sem harmonia não haveria civilização.
O racismo se encontra presente nos estudos dos três autores. Não era de admirar, pois na Europa as teorias a
respeito estavam então claramente formuladas e atuantes. O Conde de Gobineau (1816-1882) 4, por exemplo, autor do
“Ensaio sobre a desigualdade das raças humanas” (cujas teorias influenciariam mais tarde os expoentes do racismo
germânico), proclamava nessa época superioridade dos louros dolicocéfalos, habitantes da Inglaterra, do norte da França
e da Bélgica, que eram as regiões industrializadas então, sobre todos os representantes de outras etnias. Não era de
admirar, pois, que doutrinas desse tipo viessem refluir no Brasil.
A revelação de Nina Rodrigues da continuidade, por mais de três séculos, das religiões africanas sob a
máscara de uma adesão superficial ao catolicismo, a constatação
de que uma interpenetração se operava entre esta religião, considerada a verdadeira, e os cultos bárbaros, alimentou profunda
inquietação: eram cultos que mantinham estranhas maneiras de pensar e de agir, que pareciam abalar a moral existente, e
cujo poder sobrenatural era difícil negar ou medir.
Em todos eles, divindades representavam as forças cósmicas e sociais, e correspondências haviam sido definidas
entre as divindades e os santos católicos. As seitas eram perfeitamente organizadas, cada terreiro com seu pai ou mãe de
santo (sacerdotes), com suas hierarquias complexas de agentes do culto, através das quais os indivíduos se alçavam a
níveis cada vez mais elevados de contatos com o reino do sagrado. Os candomblés eram religiões da Palavra, em que a
transmissão do saber religioso era feita oralmente, tanto durante a longa iniciação (que levava até 7 anos, quando se
desejava chegar a pontos mais altos da hierarquia), quanto durante a vida e atividades dos fiéis 5.
Não existia nestes cultos uma noção de pecado. As divindades não eram nem boas nem ruins, elas se
comportavam com os fiéis em função do tratamento que destes recebiam. A reciprocidade de dons existia entre divindades
e fiéis e, se cuidadosamente observada, podiam estes últimos viver tranqüilos e esperar sem sustos a passagem para o
além. O contato direto com as divindades, que durante as belas e freqüentes cerimônias desciam até seus cavalos e Ihes
orientavam os passos dançantes, constituía também uma garantia de que os adeptos se encontravam no caminho certo
para conseguir os dons a que almejavam.
Os cultos afro-brasileiros se ditinguiam por formarem cada qual uma totalidade religiosa independente e, em
geral, rival de outras. As unidades de culto representadas pelos terreiros não se agrupavam em conjuntos sob um poder
central; ao contrário, cada unidade defendia rigorosamente sua independência. Permaneciam assim fundamente ligados
às tribos de origem e suas dissenções. Talvez estivesse aí uma das razões pelas quais os escravos, sendo muito mais
numerosos que os senhores brancos, não desenvolveram rebeliões e lutas freqüentes, durante os três séculos que durou a
escravidão: não possuíam uma base comum de organização (apesar da semelhança de crenças e divindades) que Ihes
fornecesse base segura para que a resistência se expandisse. As religiões, comumente chamadas candomblés, significaram,
portanto, uma defesa cultural para os
africanos e seus descendentes, muito embora esporadicamente delas participassem brancos; por seu intermédio,
salvaguardavam as maneiras de ser e pensar que constituíam seu patrimônio específico, impedindo que a cultura ocidental,
fortemente hegemônica durante os períodos colonial e imperial, destruísse e totalmente anulasse tudo quanto os caracterizava
enquanto coletividades específicas, distintas da coletividade branca e possuindo seus grupos peculiares.
A função de defesa cultural dos candomblés foi perfeitamente percebida por Raymundo Nina Rodrigues em
seus trabalhos; seus textos visavam dar um grito de alerta aos conterrâneos sobre a ameaça subjacente à aparente submissão
negra. Suas constatações vinham reforçar o sentimento de perigo que avassalava as elites, muito conscientes da diferença
numérica entre os africanos e seus descendentes, de um lado, e a população de origem européia, de outro. Este medo foi
mais um obstáculo no caminho da abolição da escravatura, tornando seu sucesso difícil de alcançar durante longo tempo,
da primeira lei, votada em 1831, até a Lei Áurea, de 1888. Uma vez outorgada a cidadania aos escravos, — embora apenas
parcialmente, — as preocupações dos brancos aumentavam: agora que os negros se consideravam iguais aos brancos,
estes negros detentores de uma cultura bárbara representada pelos candomblés, a própria cultura ocidental parecia muito
mais seriamente ameaçada. As perseguições contra os costumes africanos e os candomblés aumentaram.
Estas maneiras de ver se refletiram nas especulações sobre a falta de uma identidade cultural nacional que
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viesse costurar entre si pedaços tão díspares e que ao mesmo tempo Ihes apagasse as arestas. E, dado que na maneira de
pensar dos intelectuais de então a identidade nacional não podia existir sem certa homogeneidade de traços culturais, e
encontravam na sua cultura grandes disparidades, o pessimismo era dominante em seus trabalhos. Somente podiam
conceber uma identidade cultural da maneira que julgavam ser a ocidental — branca, educada, refinada.
Suas idéias se espalharam pelas chamadas camadas cultas do país e tiveram sucesso; preconceitos e negativas
vão colorir os trabalhos de outros intelectuais durante o início do século XX. Porém, em sua segunda década, concepção
oposta foi abrindo seu caminho entre jovens pensadores do Sudeste do país, concretizando uma revolução nas idéias que
se afirmou com vigor durante a chamada Semana de Arte Moderna de São Paulo, em 1922. Dois nomes devem ser lembrados
então, de autores que forjaram uma outra maneira de conceber o problema da identidade nacional. Não se trata agora
propriamente de cientistas sociais strictu sensu (embora o escritor Mário de Andrade, pelas suas pesquisas de folclore,
mereça esta qualificação), e sim realmente de pensadores que promoviam uma reviravolta nas maneiras de ver da
intelectualidade nacional.
Uma identidade cultural, urna identidade nacional, eram por eles perfeitamente admitidas; o que é mais,
tal noção era proclamada e defendida, se contrapondo às

idéias dos predecessores. Mário de Andrade (1893-1945) define a brasilidade principalmente em Macunaíma, seu herói que
reúne ao mesmo tempo as qualidades africanas, aborígenes, européias, todas semelhantes em valor. Demonstra que a
originalidade e a riqueza da cultura brasileira provém justamente da multiplicidade de suas raízes. A mistura profunda de
elementos heterogêneos, em lugar de nociva e perigosa, por ele é vista como um fator importante para que o patrimônio
cultural atinja elevado grau de excelência ó. 0 escritor e ensaísta Oswald de Andrade (1890-1954), por sua vez, forjando a
teoria da antropofagia, explica como se opera a fusão dos elementos culturais díspares: o Brasil, culturalmente, devora as
civilizações que a ele vêm ter, compondo uma nova totalidade diferente das anteriores 7. Forçados a se misturar, os
elementos heterogêneos garantem originalidade e beleza à nova cultura resultante — proveniente portanto da própria
incongruidade dos traços, forçados a se ajustarem uns aos outros no interior de um mesmo conjunto. E nestes arranjos
numa outra configuração, com outro sentido, se encontrava a especificidade da civilização brasileira no concerto das
nações.
Os corpos de noções dos dois escritores se apresentam então como complementares. A contradição com as
teorias dos pesquisadores da época precedente é flagrante. Aos olhos dos jovens intelectuais, a homogeneidade cultural,
que seus maiores haviam considerado de importância fundamental na definição de uma identidade, surgia agora ou como
uma ilusão ou como um falso problema. A própria civilização ocidental, a própria civilização européia constituíam
aglomerados tão heterogêneos quanto a brasileira. Diferenças étnicas e raciais, sincretismos culturais, misturas de civilizações,
eram a constante no universo social e nada tinham a ver com atrasos em relação a progresso, ou falta de desenvolvimento,
ou propensão à barbárie. Sua ocorrência resultaria, isso sim, de fatores históricos e econômicos.
O novo conjunto de noções foi rapidamente vitorioso sobre as velhas maneiras de pensar, apesar de no
início seus autores terem se visto a braços com críticas desfavoráveis e hostilidade. Na década de 30, porém, já se
encontrava perfeitamente consolidada e considerada como a interpretação válida do que seria a brasilidade. Com o correr
do
tempo, mais e mais foi se configurando como núcleo central de uma definição do que seria a identidade nacional, que
perdura até os dias atuais.
Nessa mesma década de 20 e na mesma região de Sudeste, novo culto afro-brasileiro fez sua aparição no
cenário das religiões nacionais — a umbanda. De acordo com seus sacerdotes, três ordens de divindades compunham o
céu da crença recém-aparecida: africanas, aborígenes, européias. O conjunto do saber religioso reunia elementos dessas
três origens, sendo que a contribuição européia provinha do catolicismo, porém muito mais acentuadamente do espiritismo
. A reencarnação, tal como figura no kardecismo, passou a constituir um dos traços mais importantes da nova fé,
8

distinguindo-a tanto do catolicismo quanto dos velhos cultos afro-brasileiros; o adepto que obedecesse todas as injunções
do sacerdote e do culto, se reencarnaria numa situação social e econômica muito superior do que a que havia ocupado
durante sua vida atual, e assim sucessivamente até a bem-aventurança final.
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Desta noção básica derivavam outras, entre as quais a de pecado. Ofensas contra princípios morais ou injunções
divinas seriam punidas numa outra reencarnação, se escapassem do castigo na vida atual; o faltoso desceria na escala
social e teria existência precária. Nos velhos cultos afro-brasileiros, as faltas cometidas eram atribuídas à ignorância, às
imperfeições individuais, a erros, a enganos. O indivíduo não era o único responsável por sua conduta e suas obrigações,
não lhe cabia escolher entre o certo e o errado. Para ele tudo correria bem, se ele mesmo, ou alguém por ele, interpretasse
corretamente o desejo dos deuses, aos quais tinha de obedecer sem falha. Na umbanda, ao contrário, a distinção entre
certo e errado, a responsabilidade individual na escolha entre estes contrários, tornava-se fundamental, e ligado de modo
eficiente com a doutrina da reencarnação, embora a técnica ritual das oferendas também se conservasse para captar as
boas graças divinas.
Existe também na umbanda (como no kardecismo), uma tentativa constante de provar cientificamente a
existência do sagrado e das divindades, assim como da reencarnação; grande quantidade de textos religiosos passaram,
pois, a ser publicados para tal. Paralela à hierarquia dos pais e mães de terreiro (sacerdotes e sacerdotizas), outra
hierarquia surgiu, a dos sábios, possuidores de um conhecimento religioso transmitido em livros e folhetos. Assim o
conhecimento religioso pode ser difundido oralmente durante a iniciação (que se tornou muito mais curta do que a dos
velhos cultos),
porém igualmente por meio de textos religiosos. Esta nova característica da umbanda transforma-a numa nova Religião
do Livro, muito diferente dos antigos cultos afro-brasileiros, que eram Religiões da Palavra.
Além destas diferenças, nota-se ainda a tendência para formar federações ou associações de terreiros sob o
controle de uma comissão ou de um diretório central. A primeira tentativa teve lugar já no início da década de 30. A
umbanda se apresenta assim inteiramente diferente dos antigos candomblés e outros cultos afro-brasileiros que, ao contrário
da umbanda, defendem zelosamente ainda hoje sua independência e não buscam se associar 9.
Os primeiros fiéis da umbanda eram habitantes negros e mulatos de camadas sociais inferiores das duas
grandes cidades do pais, São Paulo e Rio de Janeiro. Porém o novo culto não tardou em penetrar em outros grupos
étnicos que não os de origem africana, e em se alçar a outras camadas mais elevadas da sociedade global brasileira;
imigrantes recentes, europeus ou do Oriente Médio, passaram a ser encontrados entre os adeptos 10. Também neste
aspecto diferenciou-se a umbanda do candomblé; neste último, houve a penetração de indivíduos de outras etnias e
camadas, porém neles sempre foi mantido o grande predomínio de indivíduos de estratos mais baixos da sociedade e de
origem africana.
Assim, na segunda década do século XX, a heterogeneidade do patrimônio cultural brasileiro é encontrada
erigida em característica do maior valor para significar a brasilidade,em dois estratos sociais muito distantes um do outro,
tanto em posição sócio-econômica quanto em instrução: o grupo de jovens intelectuais burgueses, de formação universitária,
que a definem no âmbito de uma teoria explicativa, e os grupos de descendentes de africanos dos estratos mais baixos, nas
duas grandes aglomerações urbanas do pais, que fazem dela o núcleo central de uma nova religião. Os primeiros
proclamavam conscientemente, em seus textos e trabalhos, a irnportância da heterogeneidade cultural nacional. Os segundos
a admitiam implicitamente, através dos princípios de sua fé religiosa. Tal convergência não seria certamente gratuita, e as
circunstancias sócio-históricas em que ambas as novas teorias da identidade cultural nacional — a filosófica e a religiosa, —
surgem, devem ser examinadas para uma compreensão melhor de sua consistência. E note-se ainda: a primeira contradizia
inteiramente as teorias precedentes dos intelectuais brasileiros de fins do século XIX; a segunda se afastava de maneira
extremamente clara do velho candomblé. 11

A região brasileira de Sudeste, em que surgiram estas duas ideologias, sofrera enorme transformação a partir
de fins do século XIX, decorrente da onda de imigrantes predominantemente europeus que nela vieram ter, buscando vida
melhor; grande número deles fixou-se nas cidades do Rio de Janeiro e de São Paulo. O crescimento ultra acelerado de São
Paulo é demonstrado pelos dados demográficos: entre 1890 e 1900, a população paulistana cresceu 168%; de 1900 a 1920,
a intensidade diminuiu, foi só de 141%. O decréscimo da intensidade permanece a partir de então: 83% de 1920 a 1940;
baixando sempre até se mostrar inferior a 50% entre 1960 e 1980 12. Além disso, entre 1908 e 1920, 340.000 imigrantes
voluntários, isto é, não subvencionados pelo Estado, chegaram a Santos, o porto que serve São Paulo, dos quais 80% se
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dirigiram para esta última cidade, onde ao que consta dos relatórios da imigração, encontraram emprego. Nesse mesmo
período, outros 180.000, subvencionados pelo Estado ou então pelos grandes fazendeiros de café, chegaram ao mesmo
porto; uma parte deles, descontente com as condições de vida das grandes fazendas, também veio engrossar as populações
urbanas da região, mormente São Paulo, cujo mercado de trabalho era mais promissor 13. A cidade de 239.820 habitantes
em 1900, chegava a 1920 com 587.072, a grande maioria dos quais se compunha de italianos, portugueses, espanhóis 14.
Do início do século XX em diante, Rio de Janeiro e São Paulo foram assim perdendo as características de
cidades grandes e adquirindo as de metrópoles. Seu crescimento demográfico intenso era concomitante com um rápido
desenvolvimento de empregos terciários, indispensáveis à organização de grandes centros urbanos, cujos habitantes
constantemente estão exigindo vida mais confortável e mais sofisticada. O mercado de trabalho se ampliou, oferecendo
oportunidades antes inexistentes à população de camadas médias e inferiores 15.
O Sudeste brasileiro foi literalmente invadido por grande quantidade de imigrantes europeus, que traziam
consigo sua própria cultura, a qual passou a ameaçar de submersão a civiliza,cão existente, — civilização construída
durante três séculos de contatos constantes e muito próximos entre portugueses, índios e africanos.
O fato de que escravos negros e servidores indígenas foram sempre empregados por famílias brancas; o fato
de que crianças brancas foram acalentadas e amamentadas por mães-pretas, o fato de que senhores brancos tinham amantes
negras e mulatas, que concebiam filhos de características raciais inteiramente misturadas; o fato de que negros livres e
indígenas vivendo sua existência tribal nas matas sempre existiram no país; o fato de que nos estratos inferiores das
aglomerações urbanas e das fazendas gente de origem étnica variada se misturava, — introduzira mesmo nas famílias de
mais elevada posição social crenças, maneiras de pensar e de agir, costumes, objetos materiais, que nada tinham a ver com
a cultura européia. Uma nova civilização foi assim surgindo pouco a pouco, nascida de contatos étnicos e culturais diversos,
uma civilização brasileira que, em fins do século XVIII, já havia adquirido mais ou menos certa estabilidade.
A onda de imigração estrangeira, que se avolumara nos últimos anos do século XIX, persistiu durante as
primeiras décadas do século XX; e pelos anos 10 e 20, alguns dos recém-chegados e seus descendentes já haviam se alçado
a estratos mais elevados da hierarquia sócio-econômica e até política, atingindo mesmo posições importantes na
administração pública. Assim, não apenas a europeização cultural ameaçava a antiga civilização originada no período
colonial, que estava sendo literalmente afogada pela avalanche de traços culturais estrangeiros, mas também os próprios
imigrantes estavam ameaçando as posições sociais dos brasileiros, e ocupando postos de mando que deveriam ser atribuídos
a estes.
Tais circunstancias foram concomitantes com o aparecimento da umbanda e com a nova teoria interpretativa
da brasilidade, constituindo sem dúvida fatores que pelo menos favoreceram o seu aparecimento. Acentuando o valor e a
riqueza do patrimônio cultural nacional, originário de três fontes étnicas distintas, elite e camadas inferiores de brasileiros
estavam se defendendo contra os imigrantes e os complexos de civilização de que estes últimos eram portadores. Noutras
palavras, a chegada maciça de europeus, ameaçando o poder dos autóctones, chamou-os à consciência da especificidade
de sua civilização, acentuou neles o apego em relação à sua própria herança e valores. Economicamente, os imigrantes
eram indispensáveis para auxiliar o desenvolvimento nacional, que necessitava de braços; não podiam ser combatidos
frontalmente, e a hostilidade foi transposta para o reino das idéias, produzindo por um lado uma nova definição do ser
brasileiro, dando nascimento por outro lado a uma nova religião afro-brasileira.
Enquanto na esfera intelectual, a defesa da cultura e o domínio das posições na hierarquia nacional abalavam
as idéias então dominantes sobre o país e sua civilização, nos estratos inferiores havia a transformação do antigo candomblé
numa outra religião,

também defensiva da civilização nacional e mais condizente com as exigências da vida em grandes aglomerações urbanas,
que exige a utilização de leitura e escrita. O período histórico em que surgiram novas teorias e religiões ligava-as assim a
condições especificas, que não seriam meramente concomitantes; as condições de função parecem ter sido fundamentais
no sentido de condicionar determinadas peculiaridades que ambas apresentaram, em que se destaca a ênfase na valorização
incondicional das três fontes de que se originou a civilização brasileira.
Desta forma, o sincretismo cultural passou a ser muito importante aos olhos de camadas sociais dissemelhantes
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da sociedade brasileira. Na verdade, se os intelectuais brasileiros persistissem em desprezar os traços culturais aborígenes
e africanos, anulariam os únicos elementos que tornavam sua civilização única entre as demais do globo. Se continuassem
a se apresentar como europeus, e, — pior ainda, — como europeus de qualidade inferior porque possuidores de uma
cultura mestiça, recheada de traços bárbaros, — continuariam negando a existência da identidade nacional. A única forma
de encarecer a posição subordinada dos imigrantes europeus e de sua civilização, na sociedade brasileira, era dando
ênfase e atribuindo o maior valor à heterogeneidade da civilização nacional.
As reações de estratos sociais tão distintos convergiam, mas foram diferentes em vários aspectos, porque
provenientes de gente de situação diversa, tanto sócio-econômica quanto educacional, e conseqüentemente apresentando
maneiras de pensar muito diferentes. A primeira divergência e a mais gritante está na forma tomada por cada uma das
reações: uma nova teoria dizendo respeito à identidade nacional, uma nova religião afro-brasileira. No entanto, ambas as
reações pertencem ao domínio das idéias e eram sustentadas por um conjunto semelhante de concepções, isto é, estavam
construídas em torno do valor positivo atribuído à associação de traços culturais de origem heterogênea.
As duas doutrinas também se mostram díspares em seus objetivos. Definida por intelectuais, isto é, por gente
que pertencia a estratos sociais elevados, a nova concepção da identidade brasileira constituía um instrumento voltado
contra a ambição dos imigrantes recém-chegados, que deviam aderir a ela se pretendiam ascender na escala social. Construída
pelas camadas inferiores, a umbanda constituía uma forma de se distinguir e era também um instrumento de adaptação à
vida urbana moderna, em que um dos mecanismos importantes para se conseguir bom emprego era o domínio da leitura
e da escrita. Além disso, encerrando a promessa de melhoria de vida futura, numa outra encarnação, fomentava as esperanças
otimistas em grupos que sofriam as incertezas da existência em aglomerações urbanas em condições de rápida modernização
e cuja possibilidade de sobrevivência estava ameaçada pelos imigrantes, mais bem armados para uma existência moderna.

Apesar destas diferenças, ambas as teorias tendiam para a mesma finalidade última: promover a continuidade
e a persistência de gente em duas condições de vida muito diversas. Os intelectuais, com suas teorias, defendiam as
camadas elevadas contra a ascensão invasora dos imigrantes. Os umbandistas voltavam a nova religião para a defesa de
sua cultura e, nas condições precárias de vida das camadas inferiores, disseminavam esperanças de melhoria futura, numa
outra reencarnação. Ambas as teorias constituíam armas ideológicas para lutar contra condições sociais consideradas
perniciosas e destruidoras, eram instrumentos de repulsa contra o perigo representado por complexos de civilizações
provenientes do exterior e por demais ameaçadores. Esta análise está indicando que, no Brasil, indivíduos de estratos
díspares partilham, nas profundezas da mente, das mesmas idéias e dos mesmos valores fundamentais, embora os expressem
de maneira diferente. Noutras palavras, verifica-se que indivíduos de proveniência muito diversa, educados de maneira
diferente, comungavam num patrimônio cultural que os ligava uns aos outros. A constatação de que estes valores básicos
se haviam tornado o fulcro de duas doutrinas muito diversas, originárias de grupos sociais em posições opostas, somente
dá mais ênfase à noção de existência de certo sentimento de identidade cultural nacional naquele momento. Também torna
explícita a existência de um núcleo cultural brasileiro, comum, que pode emergir sob formas diversas.
Na verdade, documentos históricos demonstram que a mistura de três culturas etnicamente diferenciadas
existia já com bastante estabilidade desde o início do século XVIII, pelo menos. Todavia, a miscelânea cultural não era
reconhecida como válida, principalmente pelas camadas superiores da sociedade, e notadamente pelos poucos intelectuais
da época. Em fins do século XIX, os intelectuais reconheciam a heterogeneidade cultural e o sincretismo na sociedade em
que viviam; mas negavam-lhe qualquer valor e, também que houvessem constituído já uma identidade brasileira ou uma
identidade nacional, seus preconceitos raciais e contra os costumes bárbaros dos africanos e dos indígenas impedia-os de
reconhecer qualquer valor a qualquer tipo de mestiçagem 16. A invasão do Sudeste pela onda avassaladora da imigração
européia e a neces-
sidade de se distinguir dos recém-chegados despertou conjuntos de brasileiros para o valor da civilização mestiça, que
afinal de contas dava frutos úteis e até mesmo belos. Admitiam então os jovens intelectuais, e somente então, que brancos,
negros, mulatos, mestiços, nas variadas camadas sociais, eram portadores, no Brasil, de um mesmo núcleo cultural, de
instrumentos, de comportamentos, de valores, e que civilizações híbridas não eram perniciosas, nem em sua essência, nem
em suas conseqüências. Reconheceram então os jovens intelectuais que, juntamente com negros, mulatos, índios, mestiços,
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compunham uma totalidade nacional.


Quando os estudiosos brasileiros, na segunda metade do século XIX, iniciaram debates sobre a existência ou
não de sua identidade, questão similar já estava sendo discutida por mais de um século por intelectuais europeus. Haviam
estes tentado identificar que qualidades eram específicas de grupos étnicos e culturais — catalães bretões, napolitanos, etc.
— tanto no que dizia respeito a qualidades físicas, quanto a peculiaridades psicológicas. Nascera destas preocupações
uma nova ciência na segunda metade do século XIX, ou mais precisamente em 1859 — a “Völkerpsychologie”, na Alemanha:
a “Folk Psychology”, na Inglaterra; a “Psychologie des Peuples”, na França. Sua orientação sendo psicológica, a finalidade
era descobrir que virtudes, que defeitos, constantes através do tempo, davam a cada grupo étnico sua personalidade e o
tornavam reconhecível no meio de outros 17.
Já muito antes do aparecimento desta disciplina , humanistas de diversa origem — franceses, alemães, ingleses,
italianos — se referiam em seus trabalhos à “identidade de um grupo”, à “identidade de um povo”, buscando traços
físicos, hábitos, qualidades morais e intelectuais que caracterizassem cada região ou cada país, inclusive o seu próprio.
Traços corriqueiros foram muitas vezes considerados por eles como sinais indiscutíveis de identificação. Conforme as
caracterizações fossem baseadas em relações de simpatia e de aliança, ou em invejas e rivalidades, a caracterização resultante
era positiva ou negativa, a mesma coletividade sendo encarada em perspectiva diferente pelos estudiosos, de acordo com
suas condições específicas; muitas vezes o mesmo país ou região foi definida em termos contraditórios por diversos
autores no mesmo momento e no mesmo período histórico. Observações que continham uma dose substancial de ra-

cismo e de preconceitos foram nessa época consideradas como produto de investigação científica, apesar de seu visível
impressionismo 18.
Do fim da Renascença em diante, operou-se na Europa a agregação de várias populações e principados sob
uma dominação política. A organização de nações compostas de vários grupos vivendo em determinado território, indicava
que sua reunião tinha obedecido a reflexões mais ou menos conscientes da parte dos grupos muito diferentes que assim se
associavam. Heterogeneidades étnicas e culturais quedavam mais ou menos neutralizadas por esta adesão consciente de
indivíduos e de grupos a uma totalidade política, que formava assim um Estado soberano. A dominação política bem
aceita por grupos muito diversos em suas maneiras de ser deu nascimento a uma outra questão, a da identidade nacional. As
guerras que sempre perturbaram as regiões da Europa foram fatores importantes no aparecimento do nacionalismo, isto é,
da exaltação de uma nação sobre as demais, e a consideração de que sua cultura e interesses eram opostos aos de outras
nações.
Nos países europeus, o que unia as variadas coletividades era a comunhão num sentimento desenvolvido sob
as ameaças de inimigos existentes em torno, que levava vários grupos culturalmente diversos a comporem uma coletividade
mais vasta que os defenderia sem apagar suas peculiaridades. Nesta perspectiva, os cientistas sociais buscavam definir
uma identidade nacional que seria sinônima de nacionalismo, isto é, dedicação e lealdade a uma nação que reunia gente de
origem e qualidade muito diversa.
A busca de uma característica comum que definisse as coletividades, — busca que formava o campo da
Psicologia dos Povos, não podia ser confundida com o nacionalismo ou com a identidade nacional. Identidade cultural se
apresenta forçosamente como coisa muito diversa; diz que todos os membros de uma coletividade partilham do mesmo
patrimônio cultural, que neles dá origem a um conjunto de valores e de crenças que os tornam sui generis, e que muitas
vezes está perfeitamente inconsciente. Buscar a identidade nacional na perspectiva da Psicologia dos Povos ou no campo da
identidade cultural levava forçosamente a decepções e becos sem saída, pois cada nação européia era composta de grupos
culturalmente heterogêneos, de coletividades disparatadas em suas características; no entanto, estavam todos unidos por
uma dedicação comum e consciente à totalidade que compunham. Nos estudos brasileiros, a identidade nacional foi
estudada em quadro totalmente diverso; a preocupação dos pesquisadores se voltou para a definição de seu patrimônio
cultural, ou, noutras palavras, para a descoberta

de qual a configuração resultante da associação de equipamentos, instrumentos, acessórios (tanto materiais quanto
intelectuais), de origem muito variada, que se haviam tornado dominantes no contexto natural, social e sagrado em que
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viviam; estudavam os sinais tangíveis de sua civilização. Não estavam atraídos pelas peculiaridades psicológicas, e seus
trabalhos não podem ser rubricados como pertencentes à Psicologia dos Povos; o que analisavam, se integrava na
Antropologia, na Sociologia, na Etnologia. Nem mesmo Raymundo Nina Rodrigues, que foi um dos fundadores da Psicologia
dos Povos e que interpretava os fatos estudados num quadro que relevava da psiquiatria, poderia ter assim classificado
seus trabalhos. A busca da identidade cultural foi mais tarde retomada, na década de 20 deste século, pelos jovens intelectuais
que desencadearam a revolução da Semana de Arte Moderna, no Brasil. Como seus precessores, não estavam interessados
em definir especificamente o caráter brasileiro, isto é, suas virtudes e qualidades. O próprio “Macunaíma”, de Mário de
Andrade, está muito mais voltado para as exterioridades do comportamento de seu herói, do que para a definição de seus
sentimentos profundos. A menção “o herói sem nenhum caráter” não se liga aos sentimentos do retratado, e sim e muito
mais à heterogeneidade de seus comportamentos (e o comportamento é sempre algo de exterior ao indivíduo, ou melhor,
é sempre uma ligação do indivíduo com o exterior e não uma investigação de seu íntimo), que provinham de diversas
fontes. Definição que não estava marcada por nenhum julgamento de valor pessimista ou negativo; era expressa como
uma constação do que existia. O julgamento negativo estava, isso sim, associado ao gigante italiano, que combatia Macunaíma
no romance...
Os jovens pesquisadores dos anos 20 estavam também voltados, como seus antecessores, para a configuração
que resultaria da associação de complexos culturais muito diversos em sua origem e forma, e para os processos que
determinariam tal configuração. Processos que o imaginativo Oswald de Andrade denominou antropofagia. O fato de que
o composto cultural resultante de tais misturas era desarmônico, não foi considerado por estes últimos como qualidade
negativa e nem como problema preocupante; neste ponto se distanciavam sobremaneira dos cientistas sociais brasileiros
anteriores. Consideravam que a reunião de elementos díspares devia mesmo resultar numa configuração desarmônica;
todavia, achavam também que esta mesma desarmonia seria sempre fonte de enriquecimentos e de inovações, porque
estimulava ou a renovação, ou a expansão do que já existia 19. Assim, os jovens intelectuais da Semana de Arte Moderna,

em 1922, ao proclamarem uma nova teoria explicativa a respeito de sua civilização, estavam antecipando posições a que
chegariam cientistas sociais do Ocidente 40 ou 60 anos mais tarde.
Desconheciam eles a nascente umbanda. Mas o fato de que ao mesmo tempo surgirem teoria e religião girando
em torno do mesmo núcleo cultural indica que o que se poderia chamar de civilização brasileira estava suficientemente
cristalizada para ser empregada como arma ideológica, de defesa em todos os níveis da sociedade brasileira. A existência
da heterogeneidade cultural em todas as camadas sociais era assim reafirmada; exprimia-se conscientemente através das
teorias de cientistas sociais e de intelectuais, porém também se expressava inconscientemente nas doutrinas religiosas da
umbanda. Um novo culto afro-brasileiro, uma nova teoria a respeito da civilização brasileira, nasciam ao mesmo tempo e
na mesma região do país, mas em dois níveis sócio-econômicos muito diversos; apontavam na mesma direção cultural, —
a de aceitar a heterogeneidade cultural como algo muito valioso que dava personalidade ao seu país no concerto das nações.
Nesse sentido, a identidade nacional se origina e se expressa pela identidade cultural.
Releva notar que efetivamente nos dois períodos históricos brasileiros, a identidade cultural se confundiu sempre
com a identidade nacional e até mesmo com o nacionalismo; constituiram realmente sinônimos... A sinonímia indica a
enorme diferença na definição de tais conceitos, por parte de cientistas sociais brasileiros e europeus. De fato, para os
europeus, a identidade nacional une entre si coletividades culturais que podem ter patrimônios culturais muito diversos; a
união é essencialmente política e se faz através de sentimentos comuns de adesão e de devotamento a uma sociedade
global. Para os brasileiros, as duas concepções, de identidade cultural e de identidade nacional, se confundem, em sua
nação, todas as coletividades étnicas, todos os estratos sociais estão interligados por um patrimônio cultural semelhante e
este fato compõe o nacional, — algo que se exprime de forma concreta, independentemente de uma conscientização. Os
elementos culturais são basicamente os mesmos; a variação que existe é do grau em que cada complexo pesa num ou
noutro estrato, numa ou noutra etnia.
Os cientistas sociais brasileiros mais antigos não podiam negar a mistura de traços culturais existentes em seu
país, encontrada em todos os estrados sociais e em todos os grupos étnicos, embora recusassem reconhecê-la como uma
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civilização ou como um foco de identidade cultural, negaram, pois, a existência desta. Quando mais tarde uma outra geração
de intelectuais pode e quis encarar a evidência de que sua civilização era composta de traços de variada origem, alguns
harmoniosos e outros incongruentes, reconheceram e proclamaram também que a reunião de elementos desarmoniosos
era importante para criar riqueza e dinamismo num patrimônio cultural.

Atualmente, quando estudiosos brasileiros falam de identidade cultural ou de identidade nacional, referem-se,
pois, a noções diferentes das utilizadas por seus colegas europeus. Nos dois casos, o que há de comum é somente o fato de
que ambas noções são em geral utilizadas como instrumentos para diferenciar uma cultura ou uma coletividade do conjunto
das demais. Estas noções podem se tornar também armas para lutar contra qualquer perigo que ameace com o
desaparecimento ou a coletividade, ou a nação. O Brasil, cuja independência não teve de ser alcançada à força, não voltou
sua arma ideológica contra outras sociedades; ela foi forjada principalmente para propósitos internos. Na Europa, ao
contrário, onde as guerras constituíram uma realidade constante, compuseram elas um campo apropriado para que
nascessem dois conceitos diversos: um voltado para combater os inimigos exteriores, o outro se dirigindo à diferenciação
interna de coletividades na totalidade nacional.
Parece que todas estas noções, que giram em torno do problema de identificação de grupos e sociedades, seja
conscientemente formuladas (como as teorias dos cientistas sociais), seja inconscientemente construídas (como os cultos
afro-brasileiros em geral e a umbanda em particular), são sempre armas de defesa contra perigos que ameaçam coletividades
e suas maneiras de ser. O caso brasileiro parece indicá-lo com clareza, porém novas pesquisas são necessárias para dar
maior solidez a esta interpretação.
Muito tem sido dito no Brasil sobre o fato de cientistas sociais utilizarem conceitos definidos no estrangeiro,
geralmente no âmbito da civilização ocidental, para exprimir particularidades de sua realidade; tais termos, não sendo
perfeitamente adequados para representar esta realidade, teriam a tendência de se tornarem “idéias fora do lugar”. A
utilização de noções como as de identidade nacional e identidade cultural, de maneira diversa do que ocorre na Europa
mostra ao contrário que os conceitos estão constantemente sendo redefinidos para se adaptarem às peculiaridades do país.
É verdade que as noções e definições utilizadas decorrem na maioria das vezes de trabalhos europeus, ou de
cientistas do Ocidente; no entanto, há sempre que efetuar uma apreciação crítica, para verificar se o emprego delas está
sendo de acordo com o que ocorre no exterior, ou se houve alguma adequação a outro tipo de realidade. A apreciação do
contexto histórico específico em que foi forjado o conceito, e o significado particular que devido a isso adquiriu, comparando-
o em seguida com o que ocorre em outra sociedade e o significado peculiar que adquiriu na nova realidade; ou mostrando
então que o conceito não pode ser utilizado e outro deve ser criado. Em suma, deve-se recorrer a cuidados quando se
utilizam conceitos que não se originaram na realidade estudada, a fim de verificar sua adequação e também desvendar se
não está sendo reinterpretado inconscientemente, sob o impacto da situação em estudo. E para se captar as características
da reinterpretação sofrida, torna-se necessário: reconhecer as circunstâncias históricas em que foi forjado o conceito; comparar
a nova maneira de o definir e

a matriz de que ele se originou; estudar a nova situação histórica em que ele está sendo empregado e captar o significado
que, devido a ela, adquiriu. Dessa maneira será possível compreender as transformações sutis a que são submetidos os
conceitos, deixando de os utilizar com imprecisões e erros devidos a similaridades que podem ser apenas superficiais.
Conceitos e definições são forjados por cientistas sociais nascidos e educados em sociedades e civilizações
específicas; muitas vezes as discussões férvidas a que dão lugar decorrem de entendimentos diferentes do mesmo termo
justamente porque as culturas em que nasceram os pesquisadores não são as mesmas. O que, consciente ou
inconscientemente, admitem e o que recusam, ao construí-los, está profundamente influenciado pela própria sociedade e
suas maneiras de pensar. Este ensaio não foge à regra...
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INQUISIÇÃO, INQUISIÇÕES:
Aspectos da participação dos judeus na vida
sócio-política brasileira nos anos 30*
Eva Alterman Blay**

* Apresentado no Congresso “América Latina e Europa em Diálogo”da Westfalische Wilhems-Universität; 28/09 a 30/10 de 1987; Münster, República
Federal da Alemanha.

** Professora Titular do Departamento de Sociologia - FFLCH-USP.


1
Região da Romênia.

BLAY, Eva Alterman. Inquisition, inquisitions: aspects of the jews’ participation in the brazilian social political life in the 30’s. Tempo Social; Rev.
Sociol. USP, São Paulo, 1(1): l05- 130, 1 .sem. 1989.
ABSTRACT: During the Vargas dictatorship, Brazil underwent a strong xenophobic, anticommunist process. The sectors
in power sought to guarantee that process without making room for the middle and working classes’ new revindications,
which had been amplfied and differentiated by industrialization and urbanization. Anti-Semitic values present in Brazilian
imagery were accentuated by World War II and the assimilation of Getúlio, Filinto Muller, Góis Monteiro and the Integralists’
to the Nazis. The Inquisition and the Catholic Church’s contributions to the formation of Brazilian mentality created
conditions which allowed Jews living in Brazil to be deported to concentration camps. This investigation was based on life
histories.
UNITERMS: Anti-Semitism - Brasil: deportations, life histories.

Judeus no Brasil: a herança colonial


A imigração judaica para o Brasil vem desde os primeiros anos da Descoberta. Estudos recentes que recuperam a fase
dos navegadores assim como o período colonial
desvendaram um obscuro aspecto da formação da população brasileira mostrando a presença de judeus e de cristãos
novos durante os três primeiros séculos de colonização. No início do século XIX a região amazônica recebeu um fluxo
imigratório de judeus sefaraditas, provenientes da África dc Norte. Na segunda metade do século XIX, a região de S. Paulo
e Rio de Janeiro, recebeu judeus franceses descontentes com a guerra franco-prussiana. Mas a presença de judeus no Brasil
só é ressaltada a partir dos anos 30, sobretudo após a 2ª Guerra Mundial, quando, por razões políticas e econômicas
aliadas à perseguição anti-semita, buscaram o Novo Mundo.
A descoberta no Brasil das marcas deixadas pelos antigos judeus é reveladora de longos períodos de perseguição e
discriminação que ficaram registradas nos processos ou autos de habilitação de “genere”, isto é, inquéritos que eram
instaurados sempre que um indivíduo desejasse entrar para uma ordem religiosa católica, instituição assistencial, ocupar
um cargo público, freqüentar universidade, colégio religioso, ser irmão das casas de Misericórdia ou poder dispor de
algum espaço honorífico. Estes inquéritos tinham como objetivo determinar ou provar que os citados indivíduos não eram
e não tinham ascendentes judeus, cristãos novos, mulatos, negros ou mouros (Carneiro, 1983, p. 13).
Portanto, ser portador de qualquer uma destas características representava estar excluído do poder ou da participação
em mecanismos de ascensão social. Significava ser alvo de perseguição, espoliação de bens econômicos e, freqüentemente,
morte.
A primeira visitação do Santo Ofício na Bahia ocorre entre 1541 e 1593 e o Visitador Furtado de Mendonça alerta em um
Edito de Fé que a população deveria ter preocupação contra “a maldade dos criptojudeus” (idem, p. 200). Em 1614 devena
existir um número razoável de judeus em São Paulo, pois o ouvidor da vila, Francisco Sotil de Siqueira, ordenou que eles
pagassem a importância de 200 mil réis. O procedimento de “fintar” os hebreus com um tributo específico era tradição
usual na Espanha e depois em Portugal, trazida para suas colônias. Em 1624 os judeus são impedidos de irem às conquistas
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ou venderem suas fazendas (idem, p. 201).


Estudos sobre a sociedade brasileira sempre destacam a questão da presença de clérigos nas famílias, a destinação de
um filho ou filha à carreira eclesiástica. Nunca, porém, se apontou como o fez Carneiro, que um sacerdote representava a
“comprovação da limpeza de sangue”, e com isto, mais do que isenção do pagamento da finta, a aquisição do direito a
tornar-se um servidor do governo, ganhar um subsídio e, sobretudo, ser alçado ao segmento da elite cultural próxima aos
governantes (idem, p. 217). Ter o “sangue limpo” era condição fundamental para que a família pudesse ascender socialmente
e sobretudo estar livre da perseguição.
Durante os séculos XVII e XVIII os processos de limpeza de sangue pressupunham que os cristãos novos, isto é, os
conversos ou os descendentes até a quinta gera,cão de judeus, assim como os negros, os mouros, os mulatos e os indígenas
pertenciam às “raças infectas”, tinham sangue “sujo”.

Depois de 1773, segundo Carneiro, inicia-se uma segunda fase que vai até as primeiras décadas do século XIX onde se
notam alterações na forma de considerar os cristãos novos, embora continuem existindo plenamente os inquéritos de
pureza de sangue. Os cristãos novos se fazem passar por cristãos velhos, o que caracteriza um “clima de insegurança” que
perdura até o começo do século XIX (idem, p. 226).
Mudanças maiores ocorrem das últimas décadas do século XIX até os anos 30. Nesta fase ainda podem ser encontrados
nos arquivos da Curia Metropolitana processos de “habilitação de genere”, porém, não mais preocupados com a “limpeza
de sangue” e sem referências às chamadas “raças infectas”. Possivelmente a noção de superioridade racial até então
preconizada, sofreu o abalo de novas correntes liberais, do positivismo e do evolucionismo que penetraram no pensamento
brasileiro e de um concomitante abalo no prestigio da Igreja Católica.
O novo mundo das idéias vai se instalando no país, sobretudo na burguesia e entre intelectuais; articula-se com processos
de ascensão social e expansão capitalista.
Entretanto, a insegurança dos judeus e dos cristãos novos e a ideologia anti-semita difundida nas várias classes sociais
durante tantos séculos não desaparecem instantaneamente, ao contrário, perduram, até nossos dias. O folclore está marcado
por figuras que assemelha,m o judeu ao diabo, atribuindo-lhe chifres e rabo. O judeu é apresentado como ligado a práticas
sabáticas demoníacas, romances o descrevem como vingativo, lúbrico, avaro,. O dicionário de Aurélio, entre os vários
sentidos atribuídos ao vocábulo, aponta os seguintes: Judeu: (sentido popular) Indivíduo mau, avarento, usuário. Judaizar:
Emprestar com usura. Judas: 1. Amigo falso: traidor, 2. Boneco ou estafermo que é costume queimar no sábado de aleluia,
3. (Bras.) Indivíduo mal trajado. Judiar: V. t. 1. Escarnecer, mofar, zombar, 2. Fazer judiaria, fazer sofrer, atormentar,
maltratar.
Enfim, herdeiros da cultura e da Inquisição trazida dos países ibéricos (a qual atingiu outros países europeus), os
valores brasileiros retiveram uma imagem do judeu qv~e ainda hoje mantém os traços discriminatórios. O próprio sentido
do termo “Inquisição” é usado como sinônimo de perseguição violenta, tortura, morte, especialmente de judeus. A origem
vinculada a uma prática da Igreja Católica se diluiu no tempo, mas o sentido persecutório anti-semita perdurou. É com
este conjunto de significados que o termo é retomado no título deste trabalho, simbolizando a revivência de mecanismos
de perseguição na etapa contemporânea da história brasileira.
Os anos 20 e 30 e a Nova ‘’Inquisição’’
Nos anos 20 e 30, crescentes levas de imigrantes europeus buscaram o Brasil e a América Latina em geral. Entre eles, os
judeus que aportaram ao Brasil vieram empur
rados pela necessidade econômica, em busca de trabalho, fugindo da perseguição anti-semita. procurando espaços de
liberdade política e religiosa.
Os anos 20 e sobretudo 30 são, na transformação sócio-econômica e política brasileira, um período de profunda mudança
estrutural. A expansão do capitalismo industrial e das camadas médias urbanas em busca de ascensão na hierarquia social
forçam rupturas na ordem vigente. A alta burguesia econômica e as forças militares resistem às pressões, dispostas a
garantir seus privilégios. O operariado, os setores inferiores das forças armadas, a pequena classe média amplamente
diferenciada, todos estes segmentos buscam formas de organização que abram novos espaços na estrutura de poder.
Várias correntes ideológicas se expandem e dentre elas a marxista, neste momento aglutinada no Partido Comunista. Boa
parte dos militantes comunistas é constituída de imigrantes, alguns dos quais são judeus.
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Nesta etapa de transformação sócio-econômica, as novas relações de trabalho conduzem a um movimento operário
pela sindicalização e organização partidária. Os conflitos se sucedem. Os eventuais avanços dos direitos dos trabalhadores
encontram fortes resistências por partes dos setores dominantes. Os imigrantes europeus tinham trazido uma experiência
sindical antiga e uma vivência partidária que já atingira patamares mais organizados, enquanto no Brasil restava tudo por
conquistar. Os estrangeiros são vistos com muita desconfiança sobretudo quando lideram movimentos sociais. A política
se estrutura com poderes proporcionalmente mais fortes conforme os movimentos sociais vão se organizando. A pena dos
brasileiros “infratores” da ordem econômica instituída era a prisão ou a demissão do trabalho sobretudo quando público;
aos estrangeiros, após a prisão e a tortura, a penalidade podia ser deportação.
O Brasil dos anos 30 tem a marca do autoritarismo capitalista. Diniz (1987) considera que os pensadores destes anos se
dividiram em duas vertentes, os nacionalistas e os integralistas. Os primeiros pensam o avanço do capitalismo através da
“modernização institucional” cabendo ao Estado um papel intervencionista a fim de planejar setores econômicos e políticas
sociais. Já os integralistas apregoavam a manutenção do regime pré-trinta e a “preservação da vocação agrária do país”
opondo-se à mudança. A desigualdade social não era, para nenhuma das vertentes, uma questão prioritária.
Estas duas visões se contrapõem às demandas dos trabalhadores, sobretudo dos trabalhadores imigrantes, que já vinham
com alguma prática do movimento sindical e com experiência na política partidária.
Os conflitos se acentuam, e com a ascensão de Getúlio Vargas ao poder, as posições se radicalizam.
Instaura-se um clima profundamente anti-comunista e xenófobo. Quaisquer manifestações que visassem articular outras
forças que não as detentoras do poder como os movimentos sindicais, estudantis, de moradores e quaisquer outros, eram
reprimidas.
Os jornais da época noticiam durante toda a década a prisão de “extremistas”, de “estrangeiros extremistas”, gera-se
uma polêmica no parlamento entre os que queriam

evitar deportações e pregavam a punição no Brasil destes estrangeiros envolvidos em movimentos extremistas e os que
desejavam sua extradição (A NOITE, Rio de Janeiro, 1 de junho de 1936, p. 2).
Vargas, Integralismo e Anti-Semitismo
A década de 20 foi marcada por crises, sendo o movimento tenentista uma das mais profundas. As oligarquias regionais
se cindiram por uma disputa entre gerações onde os jovens procuram o próprio espaço e se associam aos tenentes rebeldes;
a classe média urbana requer um lugar na sociedade. Vargas exprime de algum modo estas reivindicações (Fausto, 1978,
p. 422-423).
A estes fatores estritamente internos, a crise econômica de 29 vem se somar, levando a que, em 30, o movimento
revolucionário marcasse uma ruptura entre os setores dominantes, perdendo a burguesia cafeeira sua posição hegemônica.
Cai Washington Luiz, sobe Vargas e com ele um conjunto “heterogêneo” (idem, p. 425). De fato a classe dirigente paulista
composta principalmente pelos cafeicultores sai enfraquecida. Por outro lado, são vitoriosos setores regionais da oligarquia
aos quais se somam “quadros civis mais jovens” provenientes destas mesmas oligarquias e que se associam a setores do
tenentisrmo, mais segmentos da classe média. Politicamente defendiam a centralização do poder e algumas reformas
sociais de cunho liberal. O operariado teve no movimento político uma atuação considerada “limitada”. Prestes rompera
em maio de 30 com os tenentes e o Partido Comunista lançou seu próprio candidato.
O golpe de Getúlio em 30 e a ordem que se instaura constituem “um profundo corte no processo histórico brasileiro”
(idem, p. 426).
Nos anos seguintes fortalece-se o movimento operário. A ele se aliam intelectuais e políticos na tentativa de instaurar
um novo quadro de forças. A constituição de 34 reflete bem um certo clima democrático e de luta por uma nova cidadania
e concomitantemente fortalece-se a oposição a tais conquistas através de uma sistemática reação de Vargas e do grupo que
com ele compartilhava o poder.
Entre 30 e 37 a trajetória de Vargas passa por várias alianças destinadas a reforçá-lo. Ascendendo com o golpe de 30,
que depôs o presidente eleito, Getúlio inicia uma estratégia de manutenção do poder criando mecanismos institucionais e
de exaltação da própria imagem. Supostamente ele estaria sendo ameaçado pelas forças paulistas — revolução
constitucionalista de 32 — e pelo poder comunista, cuja expressão máxima foi a “Intentona” de 35. Neste sentido alia-se
sobretudo a militares e civis integralistas. Gois Monteiro, Ministro da Guerra em 34, já se destacara na luta contra o
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tenentismo, mas

ascende após a Revolução de 30. Preconizava um papel para o exército: não deveria haver política no exército, mas sim
uma política do exército. Afirmava que as forças armadas deveriam ser o centro de reorganização nacional. Aliando-se a
Dutra, pregava a instauração do “Brasil potência”, em que as forças armadas se somariam ao capitalismo e à empresa
privada. No livro “A Revolução de Trinta e a finalidade política do Exército” pregava um regime forte:
“Não se podendo estabelecer uma forma de Estado Totalitário, é necessário reunir forças para tender para um tipo
nacional socialista, condizente com as características geográficas, históricas, psicológicas do Brasil e seu povo. Somente
assim podemos ter a certeza de resistirmos à intoxicação provocada pelo vírus das estepes e do semitismo internacionalistas”
(Tronca, 1976, p. 101, grifo nosso).
Em nome da brasilidade supostamente ameaçada engrossa-se uma forte corrente anti-semita liderada pelos integralistas
através de publicações (livros, artigos, pronunciamentos na imprensa, jornais próprios, etc.), nas quais afiuma a existência
de um complô capitalista judaico internacional ou uma suposta aliança judaico-comunista de dominação do Brasil.
Ressurgem os seres dotados de “chifres e rabos” para dominar o país.
Em 1934 o país passava por profunda transformação. Com a aprovação da Constituição Nacional e da constituição dos
estados, o país caminha para um novo patamar nas relações com o operariado e a classe média. Contra estes dois segmentos
forma-se uma aliança entre setores do tenentismo e as oligarquias dispostas a reduzir as conquistas definidas na Carta de
34. A movimentação da sociedade em torno de reivindicações sociais é entendida pelas camadas dominantes como
instabilidade social e conduz a um processo de elaboração de uma Lei de Segurança Nacional (LSN).
Na verdade a rebelião já se instaurara no exército onde havia freqüentes levantes. Em 1931 houve 20 levantes, mas ao
governo não interessava denunciar tais rupturas: ao contrário procurava mostrar que as tropas estavam aliadas ao governo
e que havia “conflitos civis” (Carone, 1982, p. 331). O operariado sebretudo era o foco visado por suas reivindicações
salariais ou por melhores condições de trabalho. Contra toda esta movimentação, em 4 de abril de 1935 é promulgada a
LSN em cujos capítulos se classificam crimes contra a “ordem política”, a “ordem social”, a “imprensa”, os “funcionários
civis e militares” e “expulsão de estrangeiros’’ (idem, p. 333).
A LSN é aprovada, mas “não se dirige contra a Ação Integralista Brasileira e sim contra o movimento operário que já se
mostra organizado através do Partido Comunista Brasileiro, dos movimentos trotskista, anarquista e outas tendências”
(idem, p. 334). No decorrer das discussões sobre esta lei no Parlamento fica evidenciado que ela é suficientemente irnprecisa
rara enquadrar quaisquer manifestações, especialmente aquelas que diziam respeito a reivindicações econômicas ou políticas
da classe trabalhadora.
Em abril de 35, há uma tentativa de golpe contra Getúlio em reação à LSN e porque não são reajustados os salários do
exército . Abundam os pronunciamentos anti

comunistas na Câmara, amedronta-se a burguesia e a pequena burguesia (idem, p. 337). Ascende a figura do Chefe de
Polícia, Filinto Muller que, além de fechar a Aliança Nacional Libertadora (ANL), prende e tortura.
Os membros da ANL não podendo voltar à legalidade planejam um golpe liderado pelos comunistas que dominam a
organização. Embora tenha falhado (em Natal, Recife e Rio de Janeiro) a repressão se torna violentíssima.
É decretado Estado de Sítio, as prisões podem ser feitas de modo indiscriminado, servindo a interesses das oligarquias
“o que leva a prender indiscriminadamente comunistas, socialistas, liberais e outros. Os sindicatos são varejados, os
operános são presos e somem, o número de mortos aumenta, tudo é feito brutalmente, sob orientação de Filinto Muller, e
com o consentimento de Getúlio Vargas, do Exército, das bancadas de S. Paulo, etc.” (idem, p. 343).
O Estado de Sítío passa de 30 para 90 dias, e se equipara ao Estado de Guerra. Em nome da luta contra o comunismo os
poderes de Vargas vão aumentando cada vez mais. Ao lado disto aumentam as prisões arbitrárias, expulsam-se elementos
do exército ou do serviço público, tortura-se e deporta-se.
Filinto Muller, apoiado por Vargas, se torna o executor das mais arbitrárias penalidades.
Entre 1935 e 1936 a repressão e a deportação atingiram inúmeros imigrantes, sendo fatal para muitos deles, especialmente
os judeus que foram mandados para o fascismo ou nazismo europeus.
Na prática se instaurou uma política de perseguição e prisão de todos os declaradamente comunistas ou daqueles que,
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supunha-se, estavam ligados à “ideologia vermelha”. A imprensa relata inúmeros casos como a tentativa fracassada de
cancelar a naturalização de cidadão português, para que o mesmo pudesse ser expulso do território nacional por
desempenhar “atividades comunistas” entre operários da Light (A NOITE, Rio de Janeiro, 2 de junho de 1936, p. 2). Ou o
dos portugueses Antonio Fernandes Marques, José Rodrigues Grofilho, Manoel Garrido, o inglês João Henrique Thorton,
o espanhol Ignácio Martinez Balaque e o “rumeno Wolf”, além do italiano Arnaldo Mazanello Pettinati, todos expulsos do
território nacional por decreto da Justiça, “por se terem constituído elementos nocivos aos interesses do país e perigosos à
ordem pública” (A NOITE, Rio de Janeiro, 3 de junho de 1936, p. 6).
O departamento de Ordem Política e Social persegue os acusados e suspeitos de ideologia comunista de forma aberta.
No dia 17 de junho de 36, noticia-se os pedidos de expulsão de três mulheres: Machla Berger, Olga Benario Prestes e
Olga Guioldi, os quais foram encaminhados ao Ministro da Justiça Vicente Rao, para posterior sanção do presidente
Getúlio Vargas. (Machla Berger ou Auguste Elise Ewert fora presa em 27 de novembro de 1935). Ela e Olga eram
reconhecidamente judias.
É difícil reconhecer a origem judaica de alguns detidos, por exemplo Maira Beyruth Varneith, de 20 anos, “lituana”,
presa em Santos junto com 6 companheiros. Os estrangeiros corriam o risco de expulsão do país (A NOITE, Rio de Janeiro,
29 de junho de 1936, p. 2).
A perseguição aos grupos comunistas ou supostos comunistas extende-se pelo Brasil, avultam demissões em vários
setores como a marinha, correios e demais serviços públicos.
Totalitarismo e Mecanismos de Formação da Opinião Pública
A implantação de uma polícia forte, a instalação do Estado de Sítio e de Guerra, a vigência da Lei de Segurança
Nacional, a censura aos meios de comunicação, a perda de direitos civis, as prisões arbitrárias, a tortura, a deportação e a
morte, contaram com sistemáticos meios que por um lado incrementaram o medo contra supostos inimigos e por outro
difundiam a imagem de um líder salvador da pátria. À distancia é possível recompor a estratégia usada para impor a
figura de Getúlio Vargas e mistificar os inimigos.
Em 193l foi criado o DOP — Departamento Oficial de Propaganda, que produzia um programa de rádio, diário,
retransmitido para o Brasil todo. Fornecia também notícias de caráter oficial obrigatórias na programação das rádios. Em
34 o DOP se transforma no Departamento Nacional de Propaganda e Difusão Cultural (DNP) que além do rádio produz
também noticiários para cinema, artigos para imprensa, folhetos, livros escolares, textos com fotos sobre datas cívicas. A
fotografia de Getúlio aparece em todos os eventos e é fartamente distribuída pelo DNP (90 mil fotos entre 37 e 39).
Entre 1932 e 37 foram criadas 42 novas estações de rádio, ou seja, este mecanismo que era concessão do Estado, ampliou-
se, no período getulista, em 73% (Nasser, 1981). O sistema de retransmissão não se apoiava apenas em rádios particulares.
Ele se fazia também através de alto-falantes colocados em praça pública e diariamente se retransmitiam as notícias oficiais
em horário estratégico: 19-20 horas, quando todos já tinham voltado do trabalho e muitos se dirigiam às praças das
cidades para passear.
Não é objeto deste trabalho a análise mais detalhada destes mecanismos mas cabe destacar, no que diz respeito ao tema
aqui tratado, que todo este aparato funcionou na preparação do definitivo golpe de 37 que teve no Plano Cohen um
documento considerado o “arremate do clima anti-comunista” (Carone, 1982). Este documento “revelava” um plano para
destruir a sociedade capitalista e seus valores básicos como a família, a moral, o Exército e a lgreja (idem, p. 369). Sua
autoria é atribuída ao Capitão Olímpio Mourão Filho, integralista e nele se demonstrava como seria o “golpe marxista”.
Rememorava-se o levante de 35 e se descrevia como seria o novo levante. Este plano foi retransmitido pelo país em
capítulos diários no horário oficial.
O Plano Cohen circulou no interior do exército durante o mês de setembro de 1937. Em fins daquele mês, ele foi
“apreendido” como prova de subversão pelo Estado

Maior que então convocou os generais. No Ministério da Guerra decidiu-se que, em nome da “repressão ao comunismo”
(idem, p. 370), seria necessário um novo ato de força.
O documento é apresentado ao Congresso e com ele se justifica a reinstauração do “Estado de Guerra”. Em 2 de
outubro de 1937 o país retorna ao estado de exceção.
Mas por que um Plano Cohen?
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Anatol Rosenfeld compara o Plano Cohen aos Protocolos dos Sábios de Sião —documento apócrifo, de vasta circulação
desde o começo deste século — que retrata um suposto complô judaico internacional de dominação do mundo. Para
Rosenfeld o plano terrorista de Cohen, o nome judaico do suposto autor, é de autoria dos integralistas, conhecidos editores
dos Protocolos no Brasil e “aparelhados para fazer o plágio atribuindo-o depois a um judeu tão misterioso como os Sábios
de Sião” (Rosenfeld, 1982, p. 22). Igualmente Brandi diz sobre o Plano Cohen: “o documento cujos acenos anti-semitas
eram indisfarçáveis foi apresentado a Vargas e Dutra pelo General Gois Monteiro como pretexto ideal para aceleração do
golpe” (Brandi, 1983 p. 118).
A emergência do totalitarismo se fez através de várias formas de perseguição e elaborando inimigos que de alguma
maneira tinham a ver com velhas desconfianças. Foram vários, dentre eles, os comunistas, os judeus, os estrangeiros em
geral. No caso particular dos judeus, a tarefa encontrava antecedentes seculares implantados, através da religião, pelos
braços da Inquisição.
Nos anos entre 35 e 37 a perseguição, tortura, deportação e morte marcam vítimas de várias nacionalidades e entre eles
muitos judeus. No caso destes, se o destino fosse a deportação, esta se fazia para países fascistas e nazistas, condição que
significava pena de morte.
A seguir faremos um relato de casos que encontramos em nossa pesquisa “Os Judeus na Memória da Cidade de S.
Paulo” e que revelaram um aspecto da perseguição sofrida pelos judeus naqueles anos.
A Pesquisa
“Os Judeus na Memória da Cidade de S. Paulo” é pesquisa iniciada nos fins de 1980 e baseada em dados coletados
através de histórias de vida, depoimentos orais, fontes escritas (imprensa especializada, documentos de instituições,
documentos pessoais, discursos, biografias, etc.) e fotografias.
Foram coletadas 65 histórias de vida sistematicamente e rnais 35 relatos parciais sobre episódios ou sobre a própria
vida de pessoas.
Através de critérios sociológicos procurou-se incluir na pesquisa o amplo espectro da população considerada judaica.
Sexo, condição sócio-econômica, origem nacional, definição religiosa, posição política foram fatores adotados para a escolha
dos entrevistados. Deste modo obtivemos histórias de vida de homens e mulheres, entre 60 e 94 anos, que se consideravam
judeus ou não, religiosos ou não (em todos os matizes), que tinham as mais variadas posições político-ideológicas, de
todas as classes sócio-econômicas, com as mais variadas formas de participação seja na comunidade judaica seja na sociedade
brasileira e de diferentes níveis educacionais.
Neste artigo vamos focalizar, dentre o conjunto de dados das várias histórias, os aspectos que permitem recompor
como foi vivida especialmente a experiência da deportação do próprio depoente ou de algum de seus parentes.
De um conjunto de 65 histórias de vida surgiram, em nossa pesquisa, 3 histórias de deportação: Jenny Gleizer, seu pai,
Motel Gleizer, e o de Velvel Gutnik. Há ainda informações sobre Olga Benario Prestes, Machla Berger, Harry Berger e mais
sete homens deportados junto com Velvel Gutnik, mencionados por sua mulher, e cujos nomes ainda não encontramos dada
a impossibilidade de pesquisa mais sistemática. Há ainda referência a um deportado, Waldemar, feita por Jenny Gleizer.
Os jornais da época, ao noticiarem prisões, por vezes acrescentam o apodo judeu ou indicam algo como “Wolf, o rumeno”,
sem colocar o sobrenome, ou ainda não indicam a nacionalidade, embora para os demais nomes arrolados, haja nome e
sobrenome além da nacionalidade. Nestes casos dever-se-ia aprofundar a investigação para ver se se trata de judeus.
Jenny Gleizer e Motel Gleizer — Dois Judeus Deportados na Década de 30
Um dos casos momentosos que ocupou a opinião pública de 1935 foi a deportação de Jenny Gleizer. Pouco depois caiu
no esquecimento. No início de nossa pesquisa, algumas das pessoas consultadas fizeram referência a certa “mulher
deportada”, ora recordavam o primeiro nome ou apenas o sobrenome. Uma constante indagação sobre esta (até então)
personagem fez com que em dado momento entrevistássemos sua antiga amiga, que relatou viver no Brasil a irmã mais
jovem desta deportada. Procurada, ela nos informou o endereço de Jenny Gleizer em outro país. Mais tarde procurada por
mim por telefone, Jenny tomou-me por amiga de sua irmã e tratou-me com muita delicadeza até o momento em que lhe
pedi um encontro para conversarmos. Ela então solicitou-me que lhe telefonasse no dia seguinte. Nesta segunda vez
atendeu-me reticente, desconfiada. Fez-me perguntas sobre como eu descobrira seu endereço, seu nome atual, e a muito
custo marcou um encontro comigo.
O local por ela escolhido não foi, como eu imaginara, um café, um restaurante, ou sua própria casa: mas o saguão do
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Banco do Brasil! Que marca profunda e quanto simbolismo senti nesta escolha, que enfim era um pedaço do Brasil lá fora.
Depois de nos encontrarmos e nos reconhecermos, fomos para uma lanchonete popular das redondezas, que lhe era
habitual.
A história de Jenny. em suas próprias palavras:
“Vim de Hotim, perto de Britchom 1. Lá também nasceu minha mãe e minha avó. Viemos para o Brasil, eu tinha poucos
anos e queria muito estudar. Na Romênia não podia porque éramos judeus. Tinha um professor lá, um tal de Kula, que era
muito anti-semita. Meu pai era um escritor, minha mãe, parece, estudou medicina, mas não sei se se formou. Eu era muito
crianca quando ela morreu e minha irmã era menor ainda.
Eu queria estudar, mas no Brasil fui trabalhar numa fábnca e depois num escritório. Pouco sei de S. Paulo naquele
tempo. Tinha só uma amiga, conhecia também o marido dela, eram de uma cidadezinha da Europa. Vivíamos um pouco
isolados.
Meu pai trabalhou num jornal por pouco tempo, era um jornal em ídiche. Só que havia mais jornalistas que leitores
naquele tempo!
Então foi trabalhar como “peddlar”. Como é que se diz em português?... era, era, ambulante, vendedor. Mas considerava
esta uma profissão inferior para ele. Trabalhou um ano, nunca tinha trabalhado nisso antes, acho que nunca tinha trabalhado
até chegar aos quarenta anos. Minha mãe era professora mas morreu cedo. Ela era de uma família rica mas viemos para cá
porque todos vinham.
Assisti progrom, quando pequena, na Europa.
Era só meu pai, eu e minha irmã pequena. Ela era muito pequena. Eu trabalhava mas queria muito estudar. Entao
conheci um rapaz, um estudante de medicina, parece que o nome dele era Armando, não sei nem o sobrenome. E ele me
dise: venha hoje a tarde na Faculdade de Medicina que eu vou te ajudar para você poder estudar. Eu fui. Fiquei esperando
e ele não aparecia. Fiquei esperando e vi que tinha uma reunião no salão. Entrei para ver se ele estava lá. De repente
fecharam a porta e prenderam todos. Eu fui presa. Inteiramente ao acaso. Não tinha nada para ser presa. Só queria estudar.
Quis explicar mas não adiantava. Aí me jogaram num porão, cheio de água no chão e lá tinha cinco prostitutas. Fiquei dias
presa neste lugar. Não adiantava dizer que não tinha culpa. Aí me levaram para outra prisão
com assassinos. Fiquei presa todo o tempo. Muito tempo. Lembro que uma vez veio um jornalista me procurar e disse
que a imprensa fazia muito ruído a meu favor. Mas houve também muita exploração. Talvez se não tivessem falado
tanto... Mas eu fui vítima. Uma vítima por acaso.”
Jenny parou de falar. Por um longo tempo ficou quieta, imóvel, parou de comer seu sanduíche que antes mastigava,
sem interesse. Desceu para dentro dela mesma. Seus óculos começaram a ficar embaçados como por suor. Mas ela não
suava. E, de repente, recomeçou.
“Depois me expulsaram do Brasil. Me botaram num navio e me expulsaram. Fui deportada para a Alemanha. Na época
da prisão teve um deputado, um tal... que quando disseram para ele que eu deveria ser solta por ser menor de idade, ele
respondeu que não importava, pois eu tinha três amantes!
Imagine, quando eu nem tinha namorado !”
Depois de um momento, eu disse ter pensado que ela casara com um jornalista, que me tinham contado isso.
“Eu não casei, não sei nada sobre nenhum jornalista. Só aquele que me visitou na prisão uma única vez. Mas se ele
casou ele deve ter anulado o casamento. Há pessoas boas que quiseram me ajudar. Fui embora. Me mandaram embora. Eu
era uma menina. Fiquei sem meu pai e minha irmã! Isto eu devo ao Getúlio!
A mim aconteceu tudo isto numa época em que começava no Brasil um grande movimento fascista. Havia aqueles
homens com camisa preta, gravata, não me lembro bem a cor. Andavam em marcha e eram anti-semitas. Acho que fui uma
das primeiras vítimas deste fascismo.
Quanto à minha irmã eu a vi poucas vezes na minha vida. Só umas 5 ou 6 vezes. Nada mais. Ela pouco se interessava.
Não nos vemos. Sempre manda gente do Brasil que querem coisas, fazem encomendas. Me dão muito trabalho. Não sei
porque ela te deu meu endereço. Não gosto que dêem meu endereço. Meu telefone não está no catálogo. O passado
acabou. Não quero falar ou que escrevam sobre mim.
Você sabe, aqui se alguém fala dos outros ou escreve sobre os outros, pode até dar um processo. Não quero que você
fale sobre mim no seu livro. Não sei porque aquela outra pessoa se disse minha amiga, ela não é minha amiga, por que ela
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falou de mim? O passado acabou e eu tenho que viver.”


Neste momento eu me coloquei mais claramente, dizendo que achava fundamental que as pessoas de agora e do futuro
soubessem que houve mulheres como ela, como sua amiga, uma militante política. Que não achava justo que a históna
ignorasse que afinal existiu um grupo de judeus no Brasil que tinha feito muitas coisas, importantes ou não, que tinha
lutado, construído, enfim que existiu. Pois a história quase nada registra. Não irnportava dizer se era bom ou mau, mas
contar o que existiu e como foi a vida dos imigrantes judeus.
Contei-lhe que mesmo que ela não quisesse, o caso dela já fazia parte de um livro de Edgar Carone (Carone, 1979, p.
460).
Ficou revoltada, espantada. Tornou a pensar. Mas desta vez, num tom diferente profundo, baixo, infinitamente triste .
“Depois eu soube o pior. Me expulsaram e três meses depois prenderam o meu pai. Ele também foi deportado e foi para
um campo de concentração. Lá... ele morreu. O pior é que eu tenho que viver com isso. Por minha causa, por me procurarem
eles o prenderam, ele morreu no campo de concentração. EIe poderia estar vivo até hoje, teria uns 90 anos.
As pessoas falam sempre sobre as recordações daqueles que viveram no campo de concentração, mas nunca falam dos
que ficaram de fora, sobreviveram.”
Ficamos as duas em silêncio.
Ela retomou a fala, refletindo como para si mesma.
“Meus amigos analistas me ajudaram muito. Analisamos muito isto. Eu sou psicóloga mas sei que tenho que viver com
isto, com a culpa pela morte de meu pai”
Novo silêncio.
Retomei o fio da conversa falando de sua irmã que nos pusera em contato: “Sabe Dona Jenny, sua irmã fala da senhora
com muito carinho”. Ela me encarou num esforço enorme para não gritar e disse:
“Eu seí, ela é a minha vida, ela é a minha vida. Tenho vontade de chorar Devo isto também ao Getúlio. Ter-me separado dela.
Eu sempre escrevo para ela. Pelo menos duas vezes por semana. As pessoas sempre têm alguma solidão. Eu escrevo.
Sei que nem sempre ela lê minhas cartas. Mas isto não é problema meu. Eu escrevo (e sorrindo) e se ela não lê o problema
não é meu
Como eu sobrevivi? Foi por causa do capitão do navio.

Quando chegou na França, não sei se no Havre ou Marselha, o capitão chegou para mim e me deu uma carta. Tinha o
endereço de um casal. Ele me disse, desça aqui e procura este endereço. São velhos franceses que vão te ajudar. Eu fui para
esta casa. Lá trabalhei como faxineira, 14 horas por dia por quase nada, mas eles eram muito bons velhos e não eram ricos.
Depois fui para Paris. Queria estudar. Aí começou o nazismo na França e consegui partir.
Aqui estou, é uma boa terra. Faço algumas restrições mas, como diz minha filha, aqui é a terra dela. Eu não tenho para
onde ir, aqui eu vivo. Gosto de pintura, de arte. Pinto um pouco, faço um pouco de escultura. Aprendi com minha filha
mas este é meu prazer pessoal porque eu trabalho muito. Sou psicóloga num hospital. Não fiz muito, talvez pudesse ter
feito mais, mas creio que ajudei um pouco os outros. O povo tem um ditado. Eles dizem: Se não sou eu por mim, quem
será? Mas acrescento: o que eu significo se não faço algo para os outros ?
Vou te dizer uma coisa, eu não tinha nada a ver com a política. Você acredite se quiser. Meu pai foi deportado. Velvel
Gutnik, que está em Paris também foi deportado. Ele está velhinho. Lá casou de novo, tiveram um filho. Quando ele foi
deportado para um campo de concentração o filho ficou com a vizinha católica francesa que o criou. Depois eles voltaram.
Este filho se tornou um engenheiro muito irnportante. Depois teve um desastre de carro e morreu.
Teve urn outro que foi deportado com eles, se chamava Valdemar. Este entrou para lutar na Brigada Internacional e
logo morreu.
Eu escrevi um livro. Não vou te dizer o nome. Trata-se de um tema de família e não quero que você o cite. Tem um
pouco do que estou te contando. Mas vamos embora pois eu tenho que trabalhar.”
Saímos para a rua chuvosa e cheia de gente. Jenny continuou a falar, agora sobre os brasileiros que vem a esta cidade.
Quando chegamos à esquina ao nos despedirmos, ela me encarou e disse: “Se você quiser acreditar em mim acredite. Eu
fui a primeira vítima do fascismo!”
Muitos esforços foram feitos para salvar Jenny mantendo-a no território brasileiro, seja por sua família ou por jovens,
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jornalistas e vários tipos de políticos. A imprensa publica cartas de apelo de jovens no dia 10 de outubro de 35, véspera de
seu embarque forçado. Mas no dia seguinte, 11 de outubro, ela foi enviada clandestinamente de S. Paulo para o Rio de
Janeiro. No dia 12 soube-se que ela fora colocada a bordo do AURIGNY.
Como que tentando as últimas cartadas para retê-la no território brasileiro, a imprensa vai noticiando diariamente sua
passagem pelos portos brasileiros, quando ainda haveria tempo de deter sua deportação. Estas foram as manchetes de A
NOITE acompanhando sua última trajetória pela costa brasileira:

14 de outubro — JENNY GLEIZER PASSOU PELO RIO.


14 de outubro — O CASAMENTO DE JENNY GLEIZER EM ALTO MAR, POR PROCURAÇÃO, COM O JORNALISTA
ARTHUR PICCININI .
18 de outubro — A EXPULSÃO DE JENNY GLEIZER, DE PASSAGEM PELA BAHIA.
23 de outubro, a notícia denadeira — NINGUÉM PÔDE FALAR COM JENNY GLEIZER QUANDO O AURIGNY
PASSOU PELO RECIFE.
Despedimo-nos. Era 23 de agosto de 1982, portanto quarenta e sete anos depois que tudo acontecera. O pai de Jenny foi
preso três meses depois, julgado e condenado. Sua pena, a deportação. Morreu num campo de concentração nazista. Foi
companheiro de viagem de Velvel Gutnik.
Velvel e Rifka Gutnik
Velvel Gutnik foi deportado juntamente com Motel Gleizer. Sua histórla foi relatada por sua esposa, Rifka Gutnik, hoje
vivendo em S. Paulo, no Lar dos Velhos, mantido pela Sociedade Israelita. Rifka nasceu em Britchon, em 29 de dezembro
de 1905, freqüentou até o segundo ano do ginásio, é uma mulher culta, lê, além do português, o russo, o ídiche e o alemão.
Faz audições de música clássica e folclórica com seus discos para os demais moradores do Lar. Lê jornais diariamente e
acompanha não só a vida política brasileira como a intemacional.
“Eu completei cinqüenta e um anos de Brasil, no dia 8 de novembro. Cheguei em 1929 no Rio de Janeiro, onde meu
namorado já tinha contatos. Eu fiquei muito bem ambientada porque justamente meu esposo já ia fazer três anos que
estava aqui e era um rapaz que tinha muitas ligações, era muito querido. lnclusive quando eu cheguei — eu desembarquei
numa sexta-feira — no sábado já teve uma recepção de não sei quantas pessoas.
Até escrevi para meus pais que as pessoas que assistiram minha recepção, acho que tinha mais gente que na nossa
cidade inteira! De maneira que eu fiquei logo muito bem ambientada.
A minha vida em Britchon era dura, bem dura. A minha, como a de muitos outos, Britchon era uma cidadezinha, não
muito pequena. Até que tinha uma intelectualidade bem interessante, tinha também uma biblioteca bem interessante que
vez ou outra a polícia batia lá... Ah, sim, quantas vezes! Quantas vezes vieram cnanças
com livros embaixo da blusinha correndo para eu esconder os livros, porque não queriam perder para a polícia, porque
já estavam com aviso que a polícia ia bater. Nós tínhamos um lugar de guardar lenha, porque lá se aquecia e se cozinhava
com lenha, então nós atirávamos um monte de lenha por cima, para ninguém desconfiar. Em Britchon havia também
ginásio — única vantagem que nós tínhamos — tinha uma ordem do govenno, que quem não podia freqüentar, podia tirar
o currículo, estudar por fora e se rnatricular para prestar exame.
Isso era uma grande vantagem para um grupo como o nosso, que éramos pobres e não podíamos pagar o ginásio. Mas
também a Dra. Pinkus era tão canalha! Judiava da gente nos exames, porque se ela tinha alunos que pagavam o ano inteiro
e não sabiam nada, ela deixava passar fácil. Ela era pior que os próprios romenos! Ela que me perdoe, já deve estar longe...
Mas era vendida por dinheiro.
Aos onze anos eu já dava aulas para crianças, preparava para escola, ajudava os atrasados para poder ganhar e comprar
um caderno para mim e para os meus irmãos. Para comprar livros não dava, livro eu emprestava dos colegas. Eu dormia
na casa de uma, de outra, ou ela dormia comigo para eu ajudar ela no que não sabia; assim eu podia aproveitar o livro. As
que queriam me dar um presente de aniversário me compravam um livro didático. Mas para poder comprar um caderno,
um lápis, para ter um, com 11 anos, eu já tinha que dar umas aulinhas por fora.
Nós éramos quatro irmãos, eu era a mais velha, precisava cuidar de todos; a mamãe doente, papai negociava com
cereais. Ele negociava com uma firma da Áustria, que importava muitos artigos: aniz, “mun” (semente de papoula),
semente de abóbora que serve para vermífugo, e, principalmente, muito feijão, feijão branco. Meu pai organizou uns locais
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onde ficavam uns moços o dia inteiro escolhendo feijão como se escolhe feijão para a panela. E dava para viver; ele tinha
lá sua comissãozinha, despachava um transporte de mercadoria, vinha o dinheiro para pagar, vinham outras encomendas
e ele tinha lá sua comissão que dava para viver. Despacharam um transporte bem grande de mercadoria, anrebentou a
guerra e até hoje não se sabe onde foi parar. Tudo o que papai tinha se foi, e ele ainda ficou com dívida na praça, porque
os negociantes, não conheciam firma da Áustria, conheciam papai. Então acabou, não tinha mais que negociar, não tinha
em que trabalhar e nós éramos quatro; eu não tinha feito nem nove anos e tinha mais três atrás de mim... E uma avó e avô
doentes; mamãe doente. Assim era a situação. Papai tinha uma voz muito mais linda que dava para “Hazen” (cantor
litúrgico). E ele cantava assim na sinagoga por esporte. Ganhava às vezes um presente, um vinho de “pessach” (páscoa).
Mas quando a situação ficou difícil os outros começaram a compreender, eles resolveram: “vamos chamar e vamos oferecer
um ordenadozinho porque ele ficou sem nada”. E foi assim que ele foi ficando “Hazen”, e ficou assim o resto da vida.
Só eu vim para cá. Os dois irmãos pereceram. Mamãe caiu no meio do caminho para o campo de concentração, não
deixaram nem parar para enterrar, mamãe não tem sepultura! E papai faleceu bem na véspera. Sabe o que quer dizer? Bem
na véspera dos nazistas entrarem na Bessarábia... A irmã mais nova foi para o campo de concentração com três filhos
pequenos. O marido já tinha sido mobilizado para a guerra. Ele sobreviveu e ela também, com um filho. E de um irmão
ficou uma menina de sete anos que esta minha irmã acabou de criar. Ela faleceu há pouco tempo, quando eu já estava aqui,
com uns 43 anos. Tenho aqui inclusive a fotografia da sepultura.
De Britchon, eu fui para Czernovitz, porque Britchon era uma cidade pequena e não tinha indústna. Eu dava aulas e
aquilo não dava porque... Bom, tem uma parte que eu esqueci também de mencionar, que numa certa época — não sei se
já ouviu falar em Cuza, ele era mais ou menos o Hitler romeno. Quando Cuza assumiu o poder de primeiro ministro,
cassaram todos os professores ídiches das escolas. Então fïquei sem trabalho, somente com aulas particulares, que não
davam para nada, porque quem já não podia pagar escola também não podia pagar professor particular.
Muitos me deviam três meses ou quatro; quando pagava um já era muito. Isso foi no meio do ano. Aí passei o verão
inteinnho praticamente sem trabalho e me sustentava fazendo crochê para fora. Depois eu vi que aquilo não dava e fui
para Czernovitz que era uma cidade industrial e fui trabalhar em fábrica. Me defendendo! Era uma fábrica de meias, de
tecidos.
Aprendi a lidar com as máquinas num instante.
Trabalhava uma semana de dia outra de noite. E se a moça da noite por qualquer motivo não vinha, tinha que ficar de
noite e o outro dia inteiro. Então ficava-se um dia, à noite, e outro dia inteiro na máquina, sem hora de almoço, comia-se
correndo por causa da máquina, escolhia-se alguém para descer e fazer compra para a turma, um pedaço de pão com
“zover iguerques” (pepinos azedos) ou com manteiga, quando muito. E chegava, botava a comida num cantinho da
máquina, eu atendia a espuladeira, mais ou menos o tamanho desta parede, 30 espulas; corre para lá e para cá, aqui
arrebentava, ali precisava trocar e tal. Quando chegava outra vez neste canto mordia-se um outro pedaço de pão. E às
vezes, quando eu saÍa depois de trabalhar um dia, uma noite e um dia, eu ia diretamente assistir um concerto, ou uma
conferência, qualquer coisa, não ia nem para casa.
Lá tinha uma vida cultural, tinha o Moenerof que era dos socialistas, um prédio enorme, tinha muita atividade! Isso era
mais ou menos em 26 ou 27 por aí.
O trabalho noturno pagavam 30% a mais. Trabalhava-se por peça, e não por hora; o fabricante era ídiche, de Sarock.
Quando chegou “Pessach” (páscoa), calhou de ser “Pessach” ídiche e o “Pessach” cristão junto, aí fecharam a fábrica,
deram

folga, mas não era pago. Folga, porque os patrões voltaram para passar o “Pessach” na cidade deles.
Bem, então eu também resolvi voltar. Fiquei oito ou dez dias sem trabalhar, só gastando e comendo pão com “zover
iguerques” ! É preferível, com este dinheiro, voltar para casa e passar os feriados com meus pais, pelo menos era o “iom
teivem” (feriados religiosos). E quando voltei, quando voltamos, que tínhamos que abrir a fábrica de tarde, chego lá, tinha
um aviso deste tamanho, que tiraram o aumento de 30% da noite. Tinha-se que trabalhar de dia e de noite pelo mesmo
preço, e ainda por cima éramos todas moças, porque na espuladeira geralmente trabalhavam as moças... As moças todas
nem tinham reparado. Aí eu chamei uma, outra, e disse: “escute, você já viu isso?” “Ah, meu Deus, nós vamos trabalhar
assim”? Pelo menos quem trabalha de noite tem que comer também! E depois trabalho noturno cansa mais! Vamos trabalhar
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pelo mesmo preço? Enfim, arrumamos a rodinha e resolvemos parar. Agora, a espuladeira parando, pára a fábrica. As
outras nem preeisam entrar em greve, bastava a gente entrar em greve porque era a base de toda a fábrica, né? Aí nós
voltamos e dissemos: “ninguém trabalha”. Um dia, dois, três, não, uns dois dias. Aí eles mandaram nos chamar e devolveram
o aumento, mas queriam saber quem é que organizou a greve. E tinha uma desgraçada de Bricheva, uma lá que também
chamava Rive como eu, e ela confessou que tinha sido eu. Então me chamaram e me deram quinze dias porque a lei exigia
isso, quinze dias para ter tempo de procurar serviço. Todos voltaram a trabalhar e eu... Saí e procurei serviço. Mas quando
eles davam um documento, ninguém sabia qual era o sinal, mas se alguém tinha sido suspenso por qualquer motivo, de
algum lugar, ninguém mais aceitava. Bastava apresentar o documento... Porque sempre onde se ia apresentar para trabalhar,
eles perguntavam: “você trabalhou onde?”, “tem carta de recomendação?” Ninguém sabia descobrir qual era o sinal que
eles tinham, mas depois ninguém aceitava. Então o que fazer? lr em outra fábrica e dizer “estou chegando agora, estou
começando, sou aprendiz”. Entrei como aprendiz em outra fábrica, mas preferi o mesmo trabalho. Lá se ganhava mais, se
trabalhava por hora, também era uma semana de dia e uma de noite, mas se ganhava melhor. Depois disso fiquei doente,
voltei para Britchon e nesse ínterim, vai-e-vem, o meu namorado já estava aqui no Brasil fazia três anos e com muito custo
conseguiu me mandar buscar.
Lá eu tinha um pouco de atuação política, porque ninguém vive sem ter alguma atuação, a não ser quem vive só para
comer e dormir, não é? Eu dava aulas para um grupinho de crianças que não podiam estudar; geralmente já desde crianças
iam aprender costura — tem uma filha de um desses daqui [refere-se a outro residente do Lar dos Velhos], que inclusive
outro dia me trouxe flores pelo aniversário — eu dava aulas para eles, introduzia eles um pouquinho na literatura para che

garem a conhecer um escritor. Quando chegamos ao Brasil, era época de muita imigração e havia muilos imigrantes.
Todo mundo saia da Romênia, da Polônia, pois havia muita crise, muito anti-semitismo. Principalmente a juventude
tratou de se evadir por causa da perseguição, da pobreza, da miséria.
A situação aqui, naturalmente, era muito apertada. Tinha muitos operários ainda. Hoje dificilmente existe um ídiche
operário — mas naquele tempo, principalmente no Rio de Janeiro, havia muitos alfaiates, passadores, operários em fábricas
de bolsas e bonés. Inclusive até condutores de bonde... condutores não sei, mas cobradores de bondes tinha muitos. E a
situação era dura mesmo. Muitos deixaram famílias em casa porque precisavam se sustentar; outros precisavam juntar
dinheiro para mandar buscar as famílias. Então naturalmente tinha que se criar um ambiente para facilitar um pouco a
vida para essa gente, não é?
No Rio, naquela época, tinha muitas organizações: tinha um clube que chamava-se “Harbeter Center”, tinha a Biblioteca
Scholem Aleichem — inclusive o nosso grande poeta Elias Steimberg dava aulas na Escola “Scholem Aleichem” — uma
riquíssima biblioteca muito interessante, que dava um pouco de lazer, de cultura, possibilidade de entrosamento. Essa
biblioteca sempre fazia bons empreendimentos culturais, inclusive tínhamos um grupo dramático que fazia espetáculos,
dávamos bailes, apresentações teatrais, tudo para angariar dinheiro, justamente para poder dar alguma melhora para toda
essa gente. Formávamos um jornal e nós mesmos organizávamos e sustentávamos materialmente... e com temas que
espelhavam a situação da colônia naquela época.
Resolveram também fazer o “Harbeterkich” — um restaurante popular que não visava lucros, pelo contrário, fazíamos
empreendimentos para cobrir despesas para esse pessoal comer pelo menos uma vez por dia uma comida decente, porque
a maioria vivia com pão e banana. Era um restaurante para trabalhadores: pessoas que trabalhavam em fábricas de bolsas,
em costura, pessoas que geralmente acabavam de chegar, deixando famílias que precisavam trazer... E aí a gente fazia
empreendimentos, com a ajuda de sócios: bailes, noites culturais, teatros, rifas, todo o possível para poder cobrir as despesas
e facilitar um pouco para este povo.
Em 35, quando estourou aquele levante na Praia Vermelha, tinha um traidor ídiche, um tal Tzirmerman, que trabalhava
na polícia e se infiltrou no meio da juventude progressista e foi lá sondar. Naturalmente o elemento operário, geralmente
que veio da Europa, vem com idéias progressistas. Uns eram sindicalistas, outros participavam de grupos mais adiantados.
No dia que estourou aquela bomba lá na Praia Vermelha, o Tzirmerman — não sei se ele quis mostrar que também
prestava serviço para o país, ou porque ele fez —mas pegou, chamou e trouxe a polícia ali naquele restaurante dizendo
que havia um ninho de comunistas. Todos que estavam lá na hora foram presos. O meu es
poso, inclusive, estava lá fora, porque tinha uma irmã solteira que queríamos mandar buscar para o Brasil. Tínhamos
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mandado “chamadas”, compramos passagem, inclusive à prestação e mandamos para ela. Quando ela já estava em Bucareste,
chegou para o visto no Consulado do Brasil, negara o visto porque tinha saído uma nova lei que obrigava a apresentar três
contos de réis como garantia de que ela teria com que se sustentar. Três contos de réis, aquele era dinheiro que a gente não
possuía. Ela teve que voltar de Bucareste e escrever uma carta para mandarmos três contos de réis para ela poder conseguir
o visto. Nós não possuíamos o dinheiro. Então, tinha um que dava dinheiro a juros, justamente um conhecido da gente,
que na época tinha sido nosso vizinho, mas depois não sabíamos onde foi morar, aí meu esposo disse: “olha, eu vou pedir
três contos emprestados para o Samuel, mandar o cheque para ela e quando ela vier eu devolvo os três contos para ele e
pago o juro do tempo de uso.
Mas onde está o Samuel?
Aí falaram que ele costumava jantar no restaurante e então foi lá procurar, mas não estava, não tinha chegado. Ficou
esperando.
No outro dia quando saiu na hora do almoço, ele falou assim: “eu vou me demorar, porque do serviço eu vou diretarnente
procurar o tal do Samuel”. Nisso o sujeito trouxe a polfcia lá, disse que aquilo era um ninho de comunistas e levaram todo
mundo...
Acabou a vida... Eu estava com uma criança de um ano e dois meses no colo. Naquele dia levaram 30 ou 40 pessoas,
todo mundo que estava lá jantando, gente que só ia lá, coitados, para comer uma vez por dia um prato de comida quente,
foram todos para a cadeia.
Custei a descobrir o paradeiro do meu marido, porque onde eu ia procurar ninguém queria dar... Até que fiz um
tamanho escandalo que apresentaram ele na polícia. Depois foi transferido junto com uma porção de gente, não sei quantas
pessoas que estavam numa sala lá, dormindo um por cima do outro. E levou meses assirn, até que começaram a exportar.
Exportaram uma turma, parece que de sete de uma vez e depois tinha mais uma turma para ser exportada. E a polícia, cá
entre nós, engoliu o dinheiro das passagens, chamou eles de noite e disse: “olha, nós vamos soltar vocês, mas com a
condição que vocês sumam daqui.” Mas sem documentação, sem nada. Alguns preferiram sair, outras não queriam e
disseram: “olhe, ou você solta a gente com documentação legal, ou então, que garantia eu tenho se saio daqui até o portão
e depois atiram atrás de mim dizendo que eu fugi?” Aí levaram aqueles que não queriam aceitar até a fronteira de Goiânia
e soltaram no meio do mato. Os que aceitaram, soltaram pela porta dos fundos e eles se salvaram de certo... Desses, eu
acho que não vivem mais ninguém. Tinha dois ou três aqui no Brasil, em São Paulo, mas os três já não vivem mais. Os
outros se

perderam pelos caminhos, um ou dois chegaram a voltar. E um voltou, estava com febre amarela e faleceu logo e o
outro ainda viveu um pouco aqui. Um era de Niterói e tinha família, que mandaram buscar e quando chegaram ele já
estava preso. Agora, se tinha algum dentre todos esses que de fato teria sido alguma coisa, eu não sei, mas a maioria era
gente que vinha jantar. Este Tzirmerman, eu acho que queria aparecer, mostrar também que prestava serviço para a
polícia e como não sabia de outra coisa, falou do restaurante. E foi assim que se destruíram vidas.
Todos que estavam no restaurante eram judeus, só havia judeus. Nós trabalhamos fazendo todo tipo de
empreendimentos, cada um ia ajudar, ia um dia ou dois por semana para economizar em funcionários e tudo para possibilitar
uma refeição mais em conta para aqueles que não podiam. Isso era uma prática que geralmente na Europa existia em toda
parte. Em Czernovitz que era uma cidade grande onde eu trabalhei um tempo, lá os social-democratas, os “poaleissionistas”
tinham um restaurante assim. Em toda parte se pralicava isso.
Então é isso. A polícia fechou o clube e também a escola ídiche que tínhamos. Eu inclusive lecionava o ídiche, pois eram
todos imigrantes, nem os pais sabiam falar português com os filhos. Na escola tinha um professor de português e um que
ensinava em ídiche. O meu marido era tesoureiro da escola e para mim nunca chegava dinheiro para pagar minhas aulas.
Sempre na hora de pagar o aluguel, comprar material para a escola e pagar os outros professores, ele gastava do bolso
dele, porque nunca chegava o dinheiro e eu nunca recebi.
A polícia fechou o clube e a escola. Como a escola funcionava dentro do clube, forçosamente ficou fechada. Acabaram
com tudo. A única coisa que se salvou foi a biblioteca que também tinha sido fechada durante um certo tempo e depois
conseguiram reabrir. Funciona até hoje. Naquele tempo era todo o serviço cultural que existia... E só chegou a se salvar
depois de um certo tempo.
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E escola se chamava “Escola Peretz”. Geralmente se costumava chamá-la de “Harbeter Schule”, ou “Escola Operária”.
Porque o centro já se chamava “Harbeter Center” e como a escola funcionava lá dentro, chamava-se “Harbeter Schule”.
Era para crianças recém-chegadas da Europa, porque era época de muita imigração, tinha muita criança, pais pobres que
não podiam pagar. Nós inclusive oferecíamos material escolar, tínhamos que pagar professor de português. Fui contratada
a título de professora paga, mas nunca vi um tostão, nunca o dinheiro chegou para mim.
Depois de correr dias e dias para descobrir onde estava o meu marido, depois de semanas, transferiram todos daquela
prisão para a Casa de Detenção. Então eles me deixaram visitar, mas só cheguei a encontrar com ele na prisão uma vez,
porque fiz tamanho escândalo, eu disse: “como é que prendem gente e ninguém é responsável?” Ninguém sabia, ninguém
dava conta... Aí, de tanto escandalo me
apresentaram ele na prisão. Algumas semanas depois, na Casa de Detenção, saiu uma ordem que se podia trazer
comida. Visitas não permitiam, mas podia mandar comida. Aí todo mundo que tinha alguém lá, se é que os que estavam
lá tinham alguém fora, foi levar coisas, mandar comida para dentro. Chegamos lá e disseram que não, que hoje não podia,
hoje só podia mandar roupa. Aí voltava-se com a comida: “na segunda-feira vai poder trazer roupa”. Nisso, mandou a
roupa suja dele enrolada num jornal, e no meio do jornal na beirada estava escrito: “arranja o doutor e traz a Clarinha”.
Ele estava com saudades da filha, não é?
Para conseguir a visita precisava de um advogado.
Eu estava sem nenhum vintém, porque no dia em que ele foi preso, a menina estava com diárreia e procurei vender
jornal velho para comprar alguma coisa levezinha para a menina. Enfim, vendi a mesa, cama tudo o que podia para
arranjar 300 cruzeiros para pagar um advogado e conseguir uma visita. Chegando lá, o advogado entrou e me mandou
esperar na porta. Um dia ensolarado e o portão fechado. A gente na porta e o guarda por dentro das grades. Sei dizer que
ele marcou comigo para estar lá por volta das oito ou nove horas. Esperei até uma hora da tarde até que consegui chamá-
lo numa sala separada para visita. Enquanto isso, a rnenina lá tinha pegado insolação e no dia seguinte “embarcou”.
Morreu.
Acho que oito meses depois mandaram uma turma de uns sete, e ele foi. Mandaram eles num navio de brasileiros mas
daqui avisaram para a Europa, para a França, para os outros países, que iam presos políticos, que naturalmente não tinha
nada que ver.
Então quando chegaram na França, em Havre, o pessoal lá arranjou um jeito de tirar eies. Então, os operários do cais
fizeram greve e assaltaram o navio exigindo os presos do Brasil. Aí o pessoal do navio pegou eles, fechou num portão e
fecharam as janelas para não serem vistos por ninguém. Quando chegou a hora do almoço, os operários do cais se retiraram.
Nesse ínterim, eles, do navio, aproveitaram, entraram e transferiram todos eles para a polícia da França. Quando o pessoal
voltou do almoço, começaram a exigir os presos. O capitão disse que não tinha mais nada com eles porque eles já tinham
sido transferidos para a polícia. Aí fizeram a greve, tudo quanto é pessoal do cais e tudo quanto é de... Não havia mais
condução, nem ônibus, nem bonde, nem táxi no Havre. Todos fizeram greve: todo mundo assaltou a polícia exigindo os
presos; então soltaram eles com a condição que se retirassem antes que o navio saísse do cais. Aí os operários arranjaram
uma comissão para acompanhar eles até Paris. E eles ficararn em Paris. Desses, depois, dois irmãos foram lutar na Espanha
e pereceram lá. O meu marido ficou em Paris. Ele se chama Valdemar Gutnik, Velvel em ídiche. Depois que o nazismo
chegou,
foi para um campo de concentração, fugiu, foi capturado de novo, enfim, ainda ficou por lá, ainda está lá. Quando ele
se acomodou em Paris, era natural que eu fosse atrás. Fui então pedir um passaporte no consulado romeno e me negaram
o passaporte porque o meu marido não tinha ido direto para a Romênia. Ele não foi porque não tinha feito o serviço militar
e era justamente por isso que se fugia de lá. Porque o serviço militar, ainda mais judeu, naquele tempo, era a liquidação da
pessoa, praticamente. Toda a juventude quanto podia se retirava... Então, como eie não foi para a Romênia me negaram o
passaporte.
Nessa época eu tinha um amigo advogado — inclusive a rua onde funcionava o consulado usava o nome do avô deste
advogado — era dos graúdos. Não me lembro mais seu nome.
Um dia ele encontra comigo e diz: “Como é? Venha comigo, eu quero falar com este teu consulado...” Tinha um tal de
Popescu que era fascista, um nazista desgraçado, o secretário, nunca ninguém chegou perto do cônsul. Ele é que atendia
tudo. Aí eu fui lá com o advogado e ele disse: “escute aqui, o senhor deu o passaporte para o marido dela. Ela está casada
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com o marido dela. Se o senhor reconheceu a cidadania do marido, forçosamente tem que reconhecer a dela também, o
senhor se nega a reconhecer as nossas leis de casamento, porque eles se casaram no Brasil”. Ele respondeu: “Sei que você
vem me falar bonito. Prestes também é casado, é brasileiro e não expulsaram a mulher dele? E você vem me falar em leis?
O que mais se podia responder?
A história do navio foi em junho de 36. Eles foram presos em 35, em novembro, e deportados em 36. Uma turma daqui
de São Paulo foi antes dele, não sei em que navio e ficaram na Espanha. Foi antes da Guerra Civil da Espanha, no tempo da
Frente Popular. Dentre esses que foram deportados, um tinha um irmão e uma irmã que estavam aqui e eram inclusive
parentes do meu marido. Não sei quantos foram, uns três ou quatro que soltaram na Espanha no tempo da Frente Popular.
Eram uns sete ídiches.
Depois que a polícia fechou a escola e o centro, eu fui procurar um serviço qualquer, me defendi de qualquer jeito, mas
era difícil e com “clientela”, essas coisas, eu não me dava bem, não é do meu caráter. Inclusive para meu marido também
não ia muito, mas como ele não tinha profissão nenhuma, teve que se sujeitar a isso.
No Rio trabalhei pouco tempo, depois que perdi a filha. Daí ele foi deportado e fiquei muito ruim. Meu médico achou
que eu precisava me retirar do Rio porque não havia ambiente, não dava mais; aí eu vim para São Paulo. Foi quando eu
vim para cá em busca de serviço e também para abandonar aquele ambiente onde passei tanta tristeza...
Cheguei aqui em 7 de maio de 1940 e aqui também encontrei um ambiente muito

agradável... Cheguei aqui e fui direto para casa de uns amigos que tinham ido morar no Rio, onde trabalhamos e nos
dávamos muito bem.
São Paulo era uma cidade pacata, com fábricas e oficinazinhas, muitas oficinas pequenas que necessitavam operários...
Naturalmente que não existiam esses prédios... A Avenida Paulista era o lugar mais chique da cidade, o Jardim da Luz era
bonito, à disposição do... era aberto, todo mundo levava crianças para passear, brincar .. Também tinha muitos...”
Conclusão
No conjunto da imigração e integração dos judeus à sociedade brasileia, foram muito variadas as formas em que ambas
as partes se ajustaram. No âmbito de nossa pesquisa mais ampla analisamos como a cada década, as várias correntes iam
mais ou menos facilmente se enraizando no Brasil e se rearticulando na base de afinidades religiosas, políticas ou constituindo
uma nova comunidade no contexto da vida brasileira. Entretanto, em quase todas as histórias de vida pairam sombras,
indicações de temores, ou explícitos casos relatados de discriminação e, por vezes, de forte anti-semitismo. O ápice desta
manifestação concretiza-se nos casos de deportação sob o pretexto — verdadeiro ou não — de atividades comunistas. O
encaminhamento era arbitrário, podendo ser a deportação ou a prisão no Brasil. Esta era sempre a preferida, pois a
deportação significava a morte. No caso do judeu-comunista Harry Berger por exemplo, ele fica na prisão até 1945, data de
anistia geral. Quando libertado está irremediavelmente louco em conseqüência das torturas. Sua mulher fora deportada
em 36 e morreu em 39 no campo de concentração de Ravensbruck (Joffily, 1987).
Certamente foram muitas as perseguições, assim como as deportações de judeus ou de pessoas de outras origens,
inclusive brasileiros natos. O problema é que, no caso dos judeus, a ação dos getulistas associada aos integralistas conduzia
à deportação para países dominados pelo nazismo, sentença que significava a morte.
Estes episódios não surgem na sociedade brasileira de modo excepcional. Ao contrário encontram raízes culturais
muito profundas, habilmente recuperadas pelos anti-semitas da época. A literatura fascista dos anos 30 retrata o judeu
como um agente internacional articulado a um complô destinado a destruir o Brasil. Autores como Gustavo Barros, Plínio
Salgado e tantos outros, em nome do nacionalismo criaram um poderoso inimigo potencial na figura dos judeus para os
quais preconizam a prisão, deportação e morte. Assim como na antiga fórmula da inquisição o mesmo elemento judaico
volta a ser visado.
A suposta aliança comunista e judaica internacional é recriada em nome do nacionalismo que protegeria a ordem sócio-
econôrnica hierárquica vigente. Organização sindical, direitos civis, liberdade religiosa, pluralidade partidária eram ameaças
que, para a camada dominante deveriam ser destruídas. Neste conjunto de contradições, a imigração judaica é vista com
reserva por vários setores. O imaginário retinha a figura do judeu associado ao diabo, e lhe atribuía práticas sabáticas
demoníacas. A ideologia inquisitorial perpetua-se pelos séculos através dos contos populares, do folclore, do saber popular
que evidentemente não se limita às camadas mais pobres da população mas a perpassa como um todo.
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Deste modo vivemos os anos imediatamente anteriores à II Guerra e ela própria convivendo com uma herança de
séculos de implantação deste molde de preconceitos. A discriminação é retomada sob outras vestes nesta fase do capitalismo
“aristocrático”, do Brasil dos anos 30.
No período colonial, a Inquisição foi um instrumento usado pela Igreja Católica e pelo Estado na perseguição aos
judeus, negros, mulatos, ciganos e mouros. Os judeus em particular foram submetidos à deportação da colônia para a
metrópole e tiveram seus bens confiscados. A pena final, com freqüência, era a morte.
Na etapa contemporânea, especialmente nos anos 30, no Brasil, o Estado restaura o antigo instrumento inquisitorial da
prisão, tortura e deportação no caso dos comunistas e dos judeus acusados de serem filiados a esta ideologia. Os judeus
sintetizam uma forma aguda de perseguição, pois tendo perdido sua cidadania (quando a tinham) em seus locais de
ontem, são enviados na condição de “judeus” para países dominados pelo nazi-fascismo. Esta “inquisição” revivida pela
república de Getúlio Vargas significava uma sentença de morte.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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NASSER, Roberto. Getúlio Vargas —1930)-1954. s/l, Ed. Col. Bandeirantes, s/d.
PINHEIROS, Paulo Sérgio. Classes médias urbanas: formação, natureza, intervenção na vida política. In: FAUSTO,
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9-34.
TRONCA, Ítalo. Agentes da industrialização na República: a prática política dos militares (1930-1942). São Paulo, 1976. Tese
(Doutorado). FFLCH, USP, Depto. de História.
Jornais
A NOITE, Rio de Janeiro, out./jun. 1935-36.
Outras Fontes
Os depoimentos aqui apresentados fazem parte da pesquisa OS JUDEUS NA MEMÓRIA DA CIDADE DE S. PAULO,
coordenada pela autora e em realização junto ao Departamento de Sociologia, FFLCH — USP. Esta pesquisa contou, em
suas várias fases, com o apoio financeiro da FAPESP, CNPq, FINEP.
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IMPASSES POLÍTICOS DOS MOVIMENTOS


SOCIAIS NA AMAZÔNIA*
José de Souza Martins**

MARTINS, José de Souza; The political impasses of social movements in the Amazon Region. Tempo Social; Rev. Sociol. USP, S. Paulo, 1(1): 131-148,
1.sem. 1989.
ABSTRACT: A breach between peasant struggles and the political organizations seeking to mediate and direct those
struggles has surfaced in recenty years. Resulting from a divergence in time and rhythm and of conceptions, that breach
has existed from the inception of those struggles. Rural workers had spontaneously begun to struggle, while the political
parties, ideologically divided and politcally repressed, arrived later. Those parties also came on the scene with ideologies
that did not view rural workers as political actors, with an historically recognized role. By substituting the economic
struggle for agrarian reform to the previous struggle for land, that involved broader political dimensions, they failed to
perceive that the meaning of that struggle had been totally redefined due to the alliance between land and capital which
was promoted by the military governments.
UNITERMS: Amazon Region: peasant struggles, rural workers, agrarian reform, social movements.

* Texto escrito onginalmente para o livro de David Goodman e Anthony Hall (eds.), The Future of Amazonia: Destruction or Sustainable Development?,
The MacMillan Press Ltd., London (no prelo).
** Professor do Departamento de Sociologia- FFLCH-USP.
1
A revolta camponesa, em Goiás, e a “liberação” do território de Trombas é tema de um conjunto de textos que, embora pequeno, representa uma
contribuição significativa para o estudo do deslocamento dos movimentos camponeses para o Brasil Central e Amazônia antes do golpe militar de 1964. Cf.
GARClA, José Godoy. O caminho de trombas. Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 1966; CARVALHO, Murilo. A guerra camponesa de Trombas de Formoso.
Movimento, 164, São Paulo, 21 ago. 1978; AMADO, Janaína. Movimentos sociais no campo: a revolta de Formoso, Goiás, 1948-1964, Projeto de Intercâmbio
de Pesquisa Social em Agricultura (PIPSA), Rio de Janeiro, abril de 1980, mímeo; CARNEIRO, Maria Esperança Fernandes. A revolta camponesa de Formoso e
Trompas, Goiânia, Universidade Federal de Goiás, 1981; ABREU, Sebastião de Barros. Trombas. A guerrilha de Zé Porfírio. Brasília, Editora Goethe, 1985.
2
Um panorama sistemático da fragmentaçáo dos diferentes troncos partidários originais (comunistas, esquerda católica e trotskistas) encontra-se no
útil livro de Antonio Ozai da Silva, História das Tendências no Brasil, 2ª edição, Dag Gráfica e Editorial, São Paulo, s/d. Aí está indicado, também, como
diferentes grupos partidários incluem os trabalhadores rurais em seus projetos, particularmente quando se trata de pensar a luta armada, isto é, apenas o
rompimento da ordem política. Um panorama genénco da referência à luta armada no campo, e à sua concepção foquista por parte de vários agrupamentos
políticos de esquerda, encontra-se no livro autoindulgente de GORENDER, Jacob. Combate nas trevas: a esquerda brasileira: das ilusões perdidas à luta armada, 3.
ed. Editofa Ática, São Paulo, 1987, esp. p. 95-97, 109-110, 115, 129, 134. Veja-se, particularmente, as menções às seguintes organizações: ALN - Ação Libertadora
Nacional, Partido Comunista do Brasil, Ala Vermelha, PCR - Partido Comunista Revolucionário (estes dois últimos foram dissidências do Partido Comunista
do Brasil), PRT - Partido Revolucionário dos Trabalhadores (dissidência da AP - Ação Popular, de origem católica), COLINA - Comando de Libertação
Nacional, VPR - Vanguarda Popular Revolucionária, VAR -Palmares Vanguarda Armada Revolucionária. Embora varie a forma que deveria assumir a luta
armada, as diferentes organizações de esquerda nem tinham clareza a respeito do que acontecia no campo nem tinham um lugar para as populações do
campo em seus respectivos projetos políticos. O campo era apenas uma referência estratégica na demolição da ordem política, mas não tinha um papel na
construção de uma nova ordem política. O texto de Gorender indica que essas organizações eram majoritariamente compostas de estudantes de classe
média urbana. Em cima dos acontecimentos que levaram à fragmentação da esquerda, Marialice Mencarini Foracchi (falecida em 1972) fez importantes
estudos sobre a práxis estudantil, que já indicavam as motivações poqueno-burguesas dos jovens universitários de então e o caráter de classe média de seu
impulso revolucionário. Cf. FORACCHI, Marialice Mencarini. O estudante e a transformação da sociedade brasileira. São Paulo, Cia. Editora Nacional, 1965; A
juventude na sociedade moderna. São Paulo, Livraria Pioneira Editora, 1972; A participação social dos excluídos. São Paulo, Editora Hucitec, 1982.
3
Cf. VALVERDE, Orlando & DIAS, Catharina Vergolino. A Rodovia Belém-Brasília. Rio de Janeiro, Instituto Brasileiro de Geografia, 1967, p. 270-284.
4
Cf. D’ARC, Hélene Riviére. Le Nord du Mato Grosso: colonisation et nouveau “bandeirismo”.Annales de Géographie, LXXXVIe. Année, Paris, Librairie
Armand Colin, s/d, p.286-289; ASSELIN, Victor. Grilagem: corrupção e violência em terras do Carajás. Petrópolis, Vozes/CPT, 1982, p. 15-21; BRANFORD, Sue
& GLOCK, Oriel. The last frontier. London, Zed Books Ltd., 1985, p. 37-42 e 83-86.
5
A revolta camponesa do Paraná, em 1957, e a criação dos governos populares na região está melhor estudada que a revolta de Trombas. Cf. FOWERAKER,
Joseph Wallace. The frontier in the south-west of Paraná from 1940. Oxford, B. Phil. thesis, 1971; idem, Political conflict on the frontier: a case study ot the land problem
in the west of Paraná. University of Oxford, April 1974: FOWERAKER, Joe. A luta pela terra. Trad. Maria Júlia Goldwasser. Rio de Janeiro, Zahar, 1982;
COLNAGHI, Maria Cristina. Colonos e poder: a luta pela terra no sudoeste do Paraná. Curitiba, Depto. de História da Universidade Federal do Paraná, 1984;
GOMES, Iria Zanoni. 1957- revolta dos posseiros. Curitiba, Edições Criar,1986.
6
Uma análise pioneira desse tema, em relação aos canaviais de Pernambuco, foi desenvolvida por SIGAUD, Lygia. Os clandestinos e o direito. São Paulo,
Livraria Duas Cidades, 1979.
7
É diversa esta concepcão da de “capitalismo autoritário” empregada por VELHO, Otávio Guilherme. Capitalismo autoritário e campesinato, São Paulo,
Difel, 1976, esp. p. 42 e ss. e por FOWERAKER, Joe. op. cit., esp. p. 244-245. Ambos os autores põem a ênfase de sua interpretação na abundância das “terras
livres” como fator das formas coercitivas de trabalho nessas regiões. Minha interpretagão não a exclui. Porém, penso que o autoritarismo político, no Brasil se
apóia numa mediação mais ampla, que mescla lucro e renda fundiária. Nesse sentido, não é um problema regional, mas um problema nacional. Por isso, a
reprodução ampliada do capital não se dá num quadro de liberalismo econômico (e, conseqüentemente, político). A reprodução ampliada do capital não
depende apenas de formas coercitivas de extração da mais-valia, mas também de formas coercitivas de extração do lucro. Ou seja, não envolve apenas a
produção do valor, mas, também, sua circulação e distribuição. Nesse sentido, não envolve apenas a violência privada, mas também a violência pública do Estado,
a repressão policial, a conivência com a repressão privada, os subsídios, o contingenciamento da economia, etc. Minha concepção é diversa, também, porque
não se baseia na concepção estruturalista de formação econômica e social nem na idéia correlata de uma articulação de modos de produção. Baseia-se, antes, na
concepção histórica de formação econômica e social.
8
Cf. BRANFORD, Sue & GLOCK, Oriel. op. cit., p. 8.
9
No interessante e conhecido estudo de Vergopoulos sobre o “capitalismo disforme”, faltou considerar que a expansão capitalista na agricultura,
através da produção camponesa e de mecanismos sistemáticos de pilhagem, suprime a renda fundiária no preço do produto, mas não a suprime de fato. O que
o capital faz é colocá-la sob seu domínio, desenvolvendo meios, como o da colonizacão, que lhe permitem concentrar e desconcentrar a propriedade,
ciclicamente, viabilizando a realização da renda pelo capitalista e sua reconversão em capital. O caso brasileiro, nesse sentido, é exemplar, embora não seja
único. Cf. VERGOPOULOS, Kostas. Capitalisme difforme (le cas de l’agriculture dans le capitalisme). In: AMIIN, Samir & VERGOPOULOS, Kostas. La
question paysanne et le capitalisme. Paris, Éditions Anthropos, 1974, esp. p. 222 e ss.
10
Cf. BRUNO, Regina. UDR: Crise de representação e novas formas de poder das oligarquias rurais, Projeto de Intercâmbio de Pesquisa Social em Agricultura
(PIPSA), Faculdade de Ciências Agronômicas — UNESP, Botucatu, 1987, p. l l-12.
11
As mutações do “coronelismo”, seu papel histórico antidemocrático e sua capacidade de adaptação a diferentes circunstâncias políticas estão bem
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analisadas por DANTAS, Iberê. Coronelismo e dominação. Aracaju, Gráfica Diplomata Ltda., 1987, esp. p. 13-43.
12
Esse fenômeno já havia sido observado em relação às Ligas Camponesas, nos anos sessenta. Cf. GALJART, Benno. Class and “Following” in Rural
Brazil. América Latina, 3, ano 7, jul./set. 1964.

Com facilidade, é possível tomar, erroneamente, o grande número de conflitos fundiários na região amazônica (e estou
me referindo à chamada Amazônia Legal) por um sinal de vitalidade das lutas camponesas. Com a mesma facilidade,
pode-se cometer
o engano de considerar tais confrontos, genérica e indiscriminadamente, como movimentos sociais. O engano oposto
também pode ocorrer. O caráter predominantemente local dessas lutas pode sugerir que sua fragilidade é indicativa da
ausência de verdadeiros rnovimentos sociais ou, na hipótese mais generosa, é indicativa de sua presumível natureza pré-
política.
Justamente, o enquadramento dos conflitos por diferentes grupos sociais e políticos tem sido um fator de “pré-politizacão”
de tais conflitos. É possível demonstrar que diferentes grupos, políticos e “não-políticos” (ou para-políticos), como os
partidos e a Igreja, no seu encontro e em suas disputas, na diversidade e até no antagonismo de suas orientações, têm
contribuído para manter as lutas populares no campo em um nível relativamente estacionário de impotência política. Isso
torna o conjunto da situação muito complexo, pois, ao mesmo tempo, as lutas dos trabalhadores rurais, no contexto atual,
não têm condições de evoluir e amadurecer sem a mediação dos partidos políticos ou, mesmo, grupos para-políticos.
Acima das bases locais e fragmentárias, dos múltiplos conflitos, freqüentemente pairam e agem grupos de mediação
das lutas populares no campo. Mas, é sempre nítida a separação e a diferença entre os sujeitos dos conflitos, geralmente
vítimas, e os grupos de mediação, através dos quais a luta camponesa ganha dimensão extra-local, polítíca e histórica.
Na gênese dessa fratura, está a origem espontânea e não política da maioria dos conflitos. Fato que se explica, ao menos
em parte, pela conjuntura política em que tem início a etapa contemporânea e amazônica da história das lutas camponesas
no Brasil. Essa conjuntura ganha sentido com o golpe militar de 1964. 0 Estado militar desencadeou ampla e intensa
repressão contra a ação das esquerdas no meio rural, o que incluiu os grupos que já atuavam em Goiás, no limiar do que
seria, pouco depois, legalmente conceituado como Amazônia Legal. Refiro-me especificamente à “república” camponesa
de Trombas e Formoso, no município de Uruaçu 1. Embora invadido militarmente
apenas no início dos anos setenta , as lideranças que atuavam no território evadiram-se logo após o golpe. Ficaram, no
entanto, sinais do trabalho político, de quinze anos, do Partido Comunista do Brasil, entre posseiros de Goiás, e também
de outros partidos e grupos derivados da fragmentação das esquerdas no início dos anos sessenta. Velhos militantes,
embora poucos, permaneceram dispersos pelo norte do Estado e regiões vizinhas. Em diferentes formas de organização
da resistência contra a violência dos latifundiários, nos anos setenta, era possível encontrar, em Goiás, no Mato Grosso, no
Pará, no Maranhão, a mesma estratégia defensiva dos posseiros de Trombas. Além disso, o suposto imobilismo cultural do
camponês foi desmentido, também, na assimilação rápida de algumas técnicas de contra-insurgência utilizadas pelo Exército
na região, no início dos anos setenta, durante a violenta repressão à guerrilha do Araguaia. Alguns grupos de trabalhadores
rurais, diretamente atingidos, incorporaram tais técnicas ao seu arsenal de procedimentos autodefensivos contra pistoleiros
e policiais a serviço de grileiros e latifundiários. Apesar desses sinais, não ficaram na região, até onde se sabe, grupos
organizados atuando por longo período e com continuidade. Portanto, as lutas camponesas na Amazônia, no período da
ditadura, não nascem no bojo da organização política nem nascem marcadas por um projeto histórico capaz de estabelecer
o nexo unificador de confrontos dispersos e locais.
Ao contrário. Durante grande parte da ditadura militar, tais lutas surgem espontânea e defensivamente, como resistência
à ação violenta de policiais e pistoleiros a serviço de grileiros de terra e grandes proprietários: os despejos violentos,
assassinatos, violações de domicílio, incêndios e destruição de casas, lavouras e colheitas, etc. Na imensa maioria dos
casos, o trabalhador rural foi colocado diante da falta de alternativas reais. Ou aceitava a expulsão ou reagia para não
morrer.
Na origem dessa fratura, está, também, a progressiva e lenta chegada, às áreas de conflito, de alguns remanescentes dos
partidos clandestinos e facções partidárias, chamadas “tendências”, restos de grupos dizimados pela violência da repressão
militar. Grupos e partidos que tentaram puxar o processo revolucionário e que não encontraram seguidores na massa da
classe operária e dos trabalhadores rurais, arregimentando basicamente militantes de classe média, sobretudo estudantes.
Ficaram, por isso, isolados politicamente, muito divididos devido à crise ideológica das esquerdas, ao foquismo e ao
voluntarismo político característicos dessa época. Após a derrota, alguns desses diferentes grupos interessaram-se pelo
fato de que no campo, e em particular na Amazônia, multiplicavam-se os focos de conflito e a luta pela terra, tendo
geralmente como único canal mediador e politizador a Igreja. Derrotados como agentes ativos do processo político, como
minorias partidárias com inexpressivo número de adeptos na massa dos trabalhadores, sentiram-se desafiados pelo crescente
número de trabalhadores rurais que foram à luta sem esperar pelo advento messiânico de um partido dirigente.
Essa fratura é clara. De um lado, a luta no campo não nasce politizada. De outro lado, os partidos e “tendências”
chegam ao campo, quase sempre, muito depois das lutas iniciadas, com outras motivações, procedentes de um projeto
revolucionárito derrotado. Chegam, passivamente, tentando instrumentalizar e “aparelhar” as organizações existentes,
como a Igreja e o sindicato, disputando nelas a hegemonia política sobre os trabalhadores. Porém, em nome dos mesmos
projetos já vencidos pela repressão e pela falta de apoio popular, em nome da mesma fragmentação partidária e ideológica
2
. Até mesmo para “segurar” e disciplinar ou dirigir a luta no campo, com base em teorias quase sempre produzidas a
partir de outras realidades sociais e históricas, como a do papel condutor da classe operária na revolução ou a do papel
condutor do campesinato na revolução.
Com isso, a articulação dos movimentos locais e enfrentamentos entre camponeses e latifundiários fica dependendo de
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grupos que estão de fato envolvidos numa imensa


disputa, entre si, pela lealdade dos trabalhadores rurais, orientados por “teorias” e ideologias que não convergem e que
freqüentemente não têm no camponês um sujeito político com missão histórica reconhecida, como agente de transformação
social.
No meio, encontramos a Igreja que, embora não sendo um agente partidário, acaba se defrontando com a missão
política de constituir o canal de mediação das lutas camponesas e de expressão do seu projeto, que fica assim implícito,
pressuposto, apenas delineado, formulação inacabada das potencialidades envolvidas nas lutas camponesas. O que a
torna alvo predileto do “aparelhismo” de diferentes grupos políticos, que a encaram como partido e, muitas vezes, como
partido concorrente e adversário. Por isso, agem no sentido do deliberado enfraquecimento dessa suplência, extra-partidária,
da expressão e unificação da diversidade das lutas populares no campo e, muito claramente, na Amazônia. Hoje, no Brasil,
há grupos políticos trabalhando ativamente para desorganizar essas mediações não-partidárias e, conseqüenternente,
para esvaziar os movimentos sociais. Embora esse seja um fenômeno muito claro nas cidades, é também nítido no campo.
Como na Amazônia ocorrem uns 40% dos conflitos fundiários do país, é justamente nessa região que tais impasses são
mais intensos.
O cerne dessas dificuldades, de ação e, também, de compreensão das lutas agrárias na Amazônia, está na temporalidade
histórica dessas lutas e dos movimentos sociais de que fazem parte. No geral, os conflitos são tratados como acontecimentos
que correspondem ao período cronológico da ditadura militar, por ela causados e que deveriam terminar junto com ela.
Alguns intérpretes são tentados a ver no caráter ditatorial e repressivo do regime militar, na sua substância antipopular e
direitista, a causa da concentração fundiária, da grilagem, da expulsão dos camponeses da terra e da violência que sobre
eles tem se abatido. Na mesma linha de interpretação, alguns grupos julgaram que o fim da ditadura militar por si só
levaria à reforma agrária. Um regime civil, qualquer que fosse, necessariamente criaria as condições para resolver o problema
fundiário e a violência dele decorrente. Esse corte cronológico, entretanto, é insuficiente para dar conta da verdadeira
amplitude temporal dos processos que estavam ocorrendo e continuam a ocorrer na Amazônia.
Esses processos são mais lentos do que se imagina. E mais amplos. Na verdade, as análises que estão sendo feitas neste
momento, como esta, incidem sobre processos inacabados e sobre situações cuja consistência histórica não é definitiva.
Nesse sentido, é demasiado imaginar que análises feitas neste momento são mais completas que outras feitas há poucos
anos. Como é, igualmente, demasiado imaginar que as transformações aparentemente rápidas que ocorrem na Amazônia,
como a devastação florestal e a maciça expulsão de posseiros, além do cercamento e do cerceamento territorial das populações
indígenas, encerrariam uma rapidez histórica que tornaria superadas interpretações feitas há uma década, ou menos.
Nada é menos verdadeiro. De fato, quanto mais o pesquisador se familiariza com a realidade amazônica, mais se convence
de que o que está
claramente superado é o entendimento de que a rapidez das mudanças é maior do que tem sido na realidade.
A tese clássica de que a expulsão do campones é o primeiro passo da sua proletarizaçáo e da extinção do campesinato,
como desenrolar inexorável da expansão capialista, está sendo desmentida diariamente na história da Amazônia. Ao
mesmo tempo em que o posseiro está sendo expulso, as novas fazendas abertas na região tem demonstrado uma notável
capacidade de regenerar em benefício próprio formas arcaicas de exploração do trahalho, como a peonagem. Do mesmo
modo, os posseiros, mesmo expulsos, tem, com grande tenacidade, reconstituído sua agricultura familiar e sua economia
mercantil simples. O que não quer dizer que não haja até saldos líquidos reais nas expulsões, caso das populações faveladas
de cidades como Goiânia, Cuiabá, Belém, São Luís, Rio Branco. Portanto, o ritmo do processo é outro. E são outras e mais
complexas suas contradições internas.
Mudanças políticas no campo
Historicamente, é necessário considerar que os deslocamentos em direção à Amazônia e os conflitos entre grileiros e
posseiros, que tem marcado tão sangrentamente o seu cenário neste último quarto de século, representam apenas uma
aceleração de processos que já vinham ocorrendo no país. Já nos anos cinqüenta, estimulado pela construção da rodovia
Belém-Brasília, um significativo deslocamento de migrantes nordestinos do Piauí e do Maranhão vinha ocorrendo em
direção a Goiás e Mato Grosso. O cenário goiano estava profundamente marcado por conflitos sangrentos entre grileiros e
posseiros. Já mencionei a “república” camponesa de Trombas, constituída e povoada por posseiros de origem maranhense.
Eles subiram pelas margens do rio Tocantins, no final dos anos quarenta, quando apenas se esboçava um projeto de
construção de uma rodovia Transbrasiliana, para ocupar o território do rio Trombas 3. São dos anos quarenta os
deslocamentos iniciais dos seguidores da “Bandeira Verde”, um movimento milenarista que levou muitos nordestinos a se
transportarem para o oeste, cruzando o Tocantins e, depois, o Araguaia, para escapar da catástrofe de um juízo final que
torraria
com fogo definitivo o território à margem direita do Araguaia. Trata-se de um movimento social ainda vivo no Mato
Grosso, em Goiás, no Pará.
No mesmo sentido, é essencial lembrar que grileiros famosos do Paraná, envolvidos nas violentas expulsões de posseiros
e colonos do sudoeste e de algumas regiões do norte do Estado, no período negro da grilagem que marcou tão fundo os
dois governos de Moisés Lupion, já estavam se deslocando em direção ao norte do Mato Grosso no início dos anos sessenta
e até antes 4. E ali punham em prática as mesmas técnicas de açambarcamento e grilagem de terras com que tinham feito
fortuna no sul do país. Alguns deles estão por trás de importantes projetos de colonização atuais e da formação de grandes
fazendas após 1964.
Antes mesmo da ditadura militar se constituir numa possibilidade real, antes do golpe, a carta da Amazônia já estava
marcada pelo ferro em brasa de grileiros experimentados, que haviam iniciado a venda de amplas porções do território
amazônico a grandes e médios proprietários. Ainda hoje, os grandes jornais de São Paulo anunciam com freqüência a
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venda de títulos de terra na região amazônica, adquiridos nesse período, seja por meio de grileiros, seja diretamente dos
governos estaduais, como o do Mato Grosso, que tentavam, por esse meio, transformar terrenos que, em termos do
mercado, nada valiam, em alguma fonte de renda para o erário público. Títulos de terras que os proprietários nunca viram
nem sabem onde ficam. No mesmo Mato Grosso, aliás, a mesma terra foi vendida por diferentes grileiros, além do próprio
governo estadual, a diferentes compradores.
Trata-se do mesmo movimento dos tempos recentes: enquanto migrantes nordestinos pobres, praticantes da agricultura
itinerante de roça, se deslocavam em direção ao oeste em busca das chamadas terras livres, médios e grandes compradores
de terra, residentes no Sul e no Sudeste, compravam títulos de propriedade, muitas vezes sem qualquer valor legal. Com
ditadura ou sem ditadura militar, o período que se abre com os anos sessenta teria registrado um grande número de
conflitos fundiários na região amazônica. É evidente, porém, que o desenrolar desses conflitos e suas conseqüências seriam,
provavelmente, outros, muito diferentes do que estamos presenciando. Nos anos cinqüenta, tivemos as revoltas camponesas
do Paraná, em decorrência da grilagem de
terras 5. Nesses mesmos anos, a revolta de Trombas, em Goiás. Nos dois casos, a participação do Partido Comunista do
Brasil politizou as lutas, levando até o limite da criação dos governos populares locais e à criação de enclaves territoriais
liberados e autogovernados. O deslocamento dos migrantes e o deslocamento da grilagem para a região amazônica já
estavam deslocando, também, as lutas camponesas e o movimento social que elas encerravam: suas táticas, seus meios,
seu projeto histórico implícito.
O golpe militar não desencadeia, portanto, a situação de conflito. Ao contrário. O golpe e a política fundiária do Estado
militar golpeiam, também, a luta camponesa, a revolta no campo. E trabalham para despolitizá-la. A mensagem com que
o general Castelo Branco encaminhou ao Congresso Nacional a proposta de reforma constitucional, que permitiria a
aprovação do Estatuto da Terra, já estabelecia com clareza o objetivo da reforma agrária da ditadura: separar a cabeça do
corpo — afastar os trabalhadores rurais dos grupos políticos de esquerda, como o PCB e as Ligas Camponesas, que,
profunda e contemporaneamente envolvidos nos conflitos, davam-lhes direção política e dimensionamento histórico. O que
muda com a ditadura é o direcionamento militar e geopolítico do conflito, como forma de circunscrever a luta dos
trabalhadores rurais para, ao mesmo tempo, intensificar, com incentivos fiscais, a transformação do grande capital em
proprietário de terra.
O envolvimento dos militares na questão agrária está diretamente relacionado com a ruptura dos vínculos de dependência
e com a crise da dominação pessoal, que estabeleciam a sujeição dos trabalhadores rurais aos seus patrões. Fenômeno,
aliás, que ainda persiste, fragmentado, em muitas regiões. Essa tutela clientelística, base do sistema político brasileiro,
tanto existia nos canaviais do Nordeste, quanto nos cafezais de São Paulo e nos seringais da Amazônia. As transformações
econômicas ocorridas nas grandes fazendas das várias regiões do país, a partir dos anos cinqüenta, começaram a demolir
a dominação pessoal: colonos expulsos dos cafezais, moradores expulsos dos canaviais, a separação entre o local de trabalho
e o local da moradia, começaram a libertar os trabalhadores rurais e a abrir suas consciências para outras concepções sobre
as re
lações entre as pessoas, entre poderosos e fracos, entre ricos e pobres. Em outros setores da economia rural, essa
desagregação também foi se fazendo presente. Embora nem sempre destruindo o clientelismo, ao menos modificando-o.
Na Amazônia, essa mudança começará a chegar pouco depois, a partir do final dos anos sessenta, com a abertura de
estradas que desviaram do leito dos rios o curso das mercadorias e dos produtos do trabalho. Desviando-os, portanto, do
controle das verdadeiras feitorias amazônicas que são os “barracões”, base da servidão do seringueiro e do castanheiro.
Essas mudanças, no geral, não estão baseadas em transformações nas relações de produção decorrentes de câmbios
profundos no processo de trabalho. Este se manteve praticamente o mesmo, quando muito sofrendo pequenos ajustes em
função das novas formas de incorporação da mão-de-obra. Nos canaviais do Nordeste, como nos cafezais de São Paulo, o
processo de trabalho se manteve praticamente sem modificações técnicas 6. A única diferença é que a expulsão dos moradores
e colonos reduziu as relações de trabalho a relações salariais, mediante a compra do tempo de trabalho estritamente
necessário pelo fazendeiro, em dinheiro, ao “clandestino” ou ao “bóia-fria”. Na prática, a mudança significativa que houve
não foi na produção, na criação do valor e da mais-valia: foi na liberação de terras antes empregadas pelos trabalhadores
na produção direta de uma parte de seus meios de vida. Com isso, a mudança permitiu ao fazendeiro empregar a terra,
antes usada para a sobrevivência dos trabalhadores, na produção de mercadorias. Essa mudança não decorreu de uma
transformação no processo de trabalho, mas de uma elevação do preço da terra e da renda fundiária. A mudança não se
deu na produção da mais-valia e sim na sua distnbuição, sob a forma de renda.
É exatamente essa a natureza das mudanças essenciais que chegam à Amazônia nos anos sessenta e setenta. O centro da
questão agrária, naquela região, não está no capital e no trabalho, na produgão do valor e da mais-valia; o centro está na
distnbuição da mais-valia sob a forma de renda fundiária. Esse é o elemento essencial para uma compreensão adequada
das transformações e dos conflitos que vem ocorrendo ali, da real natureza dos seus movimentos sociais e dos impasses
que os impedem de se tornarem uma força transformadora real das relações sociais e políticas.
A intervenção dos militares no processo político brasileiro, e o modo como a concretizaram na região amazônica, foi
clara tentativa de impedir que o espaço vazio criado pela deterioração dos vínculos de dependência pessoal fosse preenchido
por um novo sujeito histórico, o trabalhador rural. E basicamente porque, excluído tradicionalmente
da ação política pela sujeição pessoal, que fazia dele um cliente do fazendeiro, um membro do sistema de propriedade,
mas não um cidadão, na nova situação sua cidadania só podia ser viabilizada por grupos e partidos políticos também
excluídos, “fora” do sistema político, como era o caso dos partidos clandestinos e dos grupos de esquerda. Esse novo
sujeito histórico, mesmo com todas as suas diversidades, desequilibrava o pacto político de sustentação da República, que
“costurara” de modo mais ou menos precário a tradição militar centralizadora e desenvolvimentista e a tradição oligárquica,
Tempo Social; Rev. Social. USP, S. Paulo, VOLUME 1(1) A R T I G O

federativa, municipalista e mercantil-agrarista. A Revolução de 1930, ao derrotar as oligarquias rurais e substituí-las por
novos grupos dominantes nos Estados, geralmente de origem militar, reconhecera e firmara as bases de um pacto político
entre civis e militares, que continua sendo a base do poder. A revolta camponesa dos anos cinqüenta comprometia esse
pacto. E seu deslocamento para a Amazônia, nos anos sessenta, comprometia definitivamente, mais do que o modelo de
desenvolvimento econômico e mais do que o capitalismo, o modelo político autoritário fundado na propriedade da terra
e na renda fundiária — fonte especulativa e improdutiva de riqueza, em que a natureza rentista da classe dominante
impõe ao país um modelo capitalista de natureza tributária.
Capitalismo rentista e autoritarismo
Quero distinguir esta concepção de modelo político autoritário de outras que têm conotação diversa 7. A base desse
capitalismo rentista não se circunscreve à Amazônia
nem se explica pelo fato de que na Amazônia a abundância de terras livres. supostamente, obriga a formas coercitivas
de exploração da força de trabalho conseqüentemente base do clientelismo e do autoritarismo. A inviabilidade de um
modelo político liberal, no caso brasileiro, repousa antes na renda territorial, no seu caráter tributário e antiliberal, que
gera e impõe um Estado cartorial e clientelístico. A base desse capitalisino rentista é o país inteiro e ele está firmemente
presente nas várias regiões. Nesse sentido, a Amazônia tornou-se uma espécie de colônia do grande capital, fonte de
ganhos especulativos decorrentes da elevação da renda fundiária produzida pela abertura de estradas e ampliação da
infraestrutura econômica, pelo governo. Também são ganhos que não decorrem diretameilte da própria produção do
setor, mas dos incentivos fiscais, mediante os quais o governo transfere renda de outros setores para aqueles de base
agrária.
Não se trata aqui, comoé fácil perceber, de pré-capitalismo ou, simplesmente, de um capitalismo de fase atrasada que
dependa do que, forçando, se possa chamar de acumulação primitiva. Pois não se trata só de expropriação territorial, mas,
também, de tributação através da renda fundiária. O mesmo, grande capital moderno pode abrir mão da condição de
proprietário fundiário no sul, mas empenha-se em se tornar proprietário de terra na Amazônia. Trata-se, portanto de um
modelo de capitalismo diverso do modelo clássico europeu ou americano: aqui a reprodução ampliada do capital passa
pela extração e realização da renda fundiária. Basta ver que os balanços das empresas agropecuárias da Amazônia Legal
apontam, quase sempre, prejuízos contábeis ou lucros ínfimos 8. Esses prejuízos são compensados pelos incentivos fiscais,
isto é, pelos subsídios, e pela elevação especulativa da renda fundiária em que essas empresas se apoiam. O que é possibilitado
por serem segmentos secundários de aglomerados econômicos mais amplos, cuja lucratividade principal está em outras
atividades. Ou seja, a racionalidade das empresas agropecuárias da Amazônia não está na produção. É o que reveste a ação
dos empresários rurais e proprietários de terra de uma aparente ambigüidade. Ao lado de uma oposição radical aos
posseiros e suas lutas, são defensores das políticas de colonização e, sobretudo, colonização por empresas particulares, nas
quais freqüentemente estão envolvidos.
Por isso, a clientela a que se dirigem tais projetos de colonização não é a constituída pelo migrante nordestino pobre,
que vem se deslocando lentamente em direção à Amazônia nos últimos 50 anos, e sim a do pequeno produtor gaúcho,
catarinense ou paranaense, que tem se dirigido para a Amazônia Ocidental nos últimos 20 anos. Este po
de vender sua parcela de terra, no sul, às cooperativas e aos grandes proprietários, e o fez sobretudo no período, não
muito distante, em que a soja foi a fonte de ganhos acentuados e rápidos. A própria soja, aliás, e sua oscilação de preços,
decorrente da ação especulativa dos grupos econômicos americanos interessados na sua comercialização, lançou muitos
pequenos produtores sulistas na estrada de Mato Grosso e Rondônia, onde foram recomeçar a vida no final dos anos
setenta.
Basicamente, o pequeno produtor do sul dingiu-se para a Amazônia não só porque estivesse tentando ampliar suas
disponibilidades territoriais para assegurar aos filhos a permanência na agricultura familiar. O fez também porque o
próprio desenvolvimento tecnológico impôs uma alteração na escala da agricultura familiar. A manutenção dessa pequena
economia agrícola de família, com suas necessidades domésticas ampliadas, passou a depender de um nível de produção
maior, decorrente da deterioração das relações de troca entre agricultura e indústria, esta última abocanhando parcelas
crescentes do valor criado pelos pequenos produtores.
Por sua vez, a amplíação da escala da produção foi possibilitada pela tecnologia moderna, que viabilizou a manutenção
da natureza familiar da produção agrícola: máquinas, fertilizantes, inseticidas, sementes selecionadas, etc. Na prática, a
combinação do crescimento dos preços dos insumos industriais com a tendência ao decréscimo do preço real dos produtos
agrícolas manifestaram-se numa concreta supressão temporária ou definitiva da renda fundiária para o pequeno produtor,
proprietário de sua terra, pois o equivalente do aluguel da terra não aparece no preço do seu produto. Ao comprar a terra,
paga a renda fundiária. Ao vender o produto, não a recebe 9. Só pode recuperá-la vendendo a terra, mas não permanecendo
como produtor agrícola. Em casos extremos, como no do Projeto Canarana, no Mato Grosso, a deterioração do solo e a
eliminação de sua fertilidade precária levaram ao abandono ou simplesmente à perda dos lotes adquiridos por muitos
colonos. Nesses casos, temos uma manifestação física da supressão da renda fundiária para o pequeno produtor, ao
mesmo tempo em que ela constitui uma das bases da acumulação de capital dos grandes proprietários capitalistas.
Mesmo assim, isso não significa uma tendência inexorável à concentração da propriedade fundiária e à latifundização
do campo. Embora a propriedade da terra permaneça altamente concentrada na região amazônica e no conjunto do país
(menos concentrada no sul e no sudeste), o lugar da renda fundiária na acumulação depende de um jogo pendular de
desconcentração fundiária e de colonização privada. E o meio de transformar renda em capital, de realizar a renda territorial
no mercado imobiliário. A formação da classe média rural, princípio nuclear do Estatuto da Terra, dos militares, e das
políticas de apoio do Banco Mundial à pequena empresa rural, constitui um dos ingredientes para que a associação entre
o capital e a renda fundiária se efetive.
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O outro ingrediente foi o da política de incentivos fiscais para que os grandes capitalistas do Sudeste se interessassem
pela abertura de empresas na Amazônia, particularmente empresas agro-pecuárias. A política de incentivos fiscais, de
1966, defin:iu o verdadeiro e amplo sentido político da orientação agrária dos militares. E convém lembrar que a Nova
República, regime civil que sucedeu a ditadura, se, na prática, restringiu a aplicação do Estatuto da Terra e,
consequentemente, a possibilidade de uma reforma agrária nas áreas e nos casos de tensão social, ao mesmo tempo preservou
a política de incentivos fiscais, de transferências gratuitas de recursos públicos para as empresas abertas na Amazônia
Legal. De fato, a política de incentivos destinou-se claramente a proteger a renda fundiária e os proprietários de terra,
assegurando sua permanência na estrutura de poder. Embora seja quase sempre interpretada como uma simples política
de “implantação” do grande capital no campo, tem sido uma política para forçar o grande capital a se tornar proprietário
de terra, preservando e modernizando a propriedade, ao mesmo tempo, sem fazer reformas sociais.
Ao invés de efetivar o modelo clássico, no qual o capital remove ou atenua a renda fundiária para se expandir na
agropecuária, o Estado militar subsidiou o capital para recompensá-lo pelos prejuízos e irracionalidades decorrentes da
sua imobilização improdutiva na aquisição de terras. Ao invés da irracionalidade econômica, representada pela renda
fundiária, ser removida pela nacionalização da propriedade ou pela reforma agrária, que atingiria mortalmente as oligarquias
proprietárias de terra (um pouco como fizeram os militares no Peru), foi removida pelo subsídio financeiro, pelos incentivos
fiscais, que transferiram para toda a sociedade o ônus da manutenção econômica e política da classe dos grandes proprietários
de terra . Com isso , os grandes senhores territoriais da Amazônia e os grileiros do sul que para lá se deslocaram não
sofreram um confisco territorial. Mas, ao mesmo tempo, a entrada do grande capital abriu rombos nas estruturas de
dominação, nos nichos do poder local e nas bases sociais do clientelismo político. A própria violência desencadeada contra
posseiros e trabalhadores rurais rompeu as lealdades tradicionais, a reciprocidade do favor, da proteção e da tutela, as
obrigações morais do latifúndio tradicional — extrativista ou pecuário — em relação a seus agregados e dependentes.
Para concretizar o consórcio da terra com o capital e manter, portanto, as bases conservadoras do Estado brasileiro, foi
necessário instituir a tutela militar sobre as regiões mais tensas da Amazônia, particularmente a do Araguaia, mas não só
ela. Essa foi a forma de conter as forças sociais que ganhavam substância nas lutas camponesas e que poderiam criar na
Amazônia uma realidade social apoiada na pequena agricultura e, sobretudo, apoiada numa ampla nacionalizacão da
propriedade. Não se trata de uma fantasia. Não são poucos os diferentes grupos camponeses em luta pela terra que tem
com insistência reivindicado o reconhecirnento legal da propriedade comum como base da pequena agricultura familiar
ou, mesmo, do extrativismo familiar. A resistência dos seringueiros do Acre, nestes últimos anos, à derrubada dos seringais,
vendidos a empresários paulistas, é um movimento exemplar dessa exigência. Não só tem se oposto à derrubada dos
seringais, organizando a luta dos “empates”, formas de resistência aos fazendeiros originários do sul, pecuaristas, empatando,
isto é, impedindo a derrubada da floresta. Mas, também exigindo o reconhecimento do direito coletivo à posse do seringal
e rejeitando a sua divisão em parcelas agrícolas familiares, conforme o modelo oficial do governo, quando os seringais são
desapropriados para fins de reforma agrária.
A posse da terra em comum está também na lógica da agricultura de roça e passou a inscrever-se nas lutas de resistência
de diferentes grupos de posseiros no Mato Grosso, no Pará, em Goiás, no Maranhão. Por tradição, existe um direito
coletivo ao uso da terra que entra em conflito com a concepção jurídica de propriedade privada, ou “terra de dono” como
dizem os trabalhadores. É que a agricultura de roça tem uma demora temporária sobre a terra, de dois ou três anos,
deslocando-se em seguida para terras virgens, até que a terra antiga recupere a fertilidade. Há uma lógica perfeita e um
direito perfeito de uns em relação a outros nessa forma de uso tradicional do solo. A experiência de Canabrava, no Mato
Grosso, onde os lavradores chegaram a escrever urna “lei de terras”, uma espécie de contrato coletivo da população
carnponesa local a respeito do uso comum da terra, repete-se no povoado de Anilzinho, no Pará, e expande-se por meio
das famosas “leis de terras” ou “lei Anilzinho” — uma “lei” popular para uso popular.
O discurso sobre a reforma agrária e o impasse
O fim da ditadura militar não pôs fim ao cerco e esvaziamento das lutas camponesas na Amazônia nem ampliou as
possibilidades políticas dos trabalhadores rurais da região construirem ou efetivarem um modelo alternativo de agricultura.
Em princípio, o enfraquecimento político e a repressão privada e pública contra os trabalhadores rurais,
ao longo do regime militar, deixou feridas que levarão muito tempo para fechar. Enfraqueceu-os politicamente,
enfraquecimento agravado pela já mencionada fratura, que divorcia a luta camponesa e os grupos políticos. Ao mesmo
tempo, enfraqueceu-os em conseqüência da política deliberada de forçar o consórcio entre a propriedade da terra e o
grande capital, gerando as bases sociais e políticas de uma nova elite na região. A agressiva e direitista União Democrática
Ruralista, que atua em todo o país, é um produto não acidental dessas transformações. Significativamente, tem alguns de
seus núcleos mais importantes na Amazônia Legal ou, fora da Amazônia, em estados em que é grande o número de
empresários que são fazendeiros naquela região 10. Além disso, a forte presença política das oligarquias regionais no novo
Parlamento brasileiro e na Assembléia Nacional Constituinte revela um fenômeno recorrente na história das oligarquias
brasleiras, de base territorial: a sua enorme capacidade de regeneração, fenômeno que já ocorrera em 1930 11 .
Esse quadro não conduziu a um real envolvimento dos grupos de mediação política nas lutas camponesas, para que se
tornassem expressão política da práxis camponesa. São, antes, expressão política da práxis da classe média. Polarizam seu
compromisso ideológico e seu projeto nas possibilidades políticas do Estado e do governo resultante do pacto político de
1984. Sem o saber, retornam à velha tradição do liberalismo exaltado, a fração das correntes liberais brasileiras que, no
século XIX, imaginavam emancipar o povo sem se comprometerem com um projeto popular de emancipação política.
Nesse sentido, tais grupos tendem a reinstituir uma tutela ideológica e política de esquerda sobre os grupos camponeses
envolvidos em conflitos 12, uma espécie de “coronelismo progressista”, corporativo, que entorpece as possibilidades de
emancipação política dos pobres do campo, que essas lutas encerram.
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Em decorrência, estabeleceram entre si um discurso, supostamente unificador das aspirações e das lutas populares no
campo, em torno do tema da reforma agrária. E a partir dele, desencadearam uma luta pela reforma agrária, historicamente
descontextualizada e, basicamente divorciada da práxis camponesa, da luta pela tera, da expe
riência sangrenta da expropriação, da violência e da violação dos direitos, da ausência de cidadania. Com facilidade,
desenvolveram diferentes modalidades de adesão ao pacto que deu nascimento ao regime da Nova República. E com a
mesma facilidade tiveram a sua luta desfigurada e esvaziada pelo Estado que, cooptando-os, privou-os de toda legitimidade,
porque acentuou a fratura que os separava das lutas populares no campo.
Ao colocarem, no lugar da luta pela terra, a luta pela reforma agrária, fizeram confusões fatais. Em primeiro lugar, tiveram
que assumir o discurso da burguesia-rentista e das oligarquias, em defesa da associação necessária entre propriedade e
produção. Ao assumi-lo, não puderam deixar de legitimar a defesa do regime de propriedade existente e do seu caráter
latifundista e concentracionista, contentando-se com a possibilidade da reforma agrária circunscrita às terras que escapassem
a essa armadilha conceitual. Na prática, foram eles próprios os agentes da anulação da legitimidade da proposta de
reforma agrária, cujo discurso foi expropriado pelos próprios latifundiários. Vítimas do economicismo empobrecedor, tão
presente nas “teorias” de diferentes grupos de esquerda, não conseguiram compreender que o problema não era nem o da
produtividade nem o da produção e sim o problema político representado pelo regime de propriedade vigente, que
reinstaura continuamente as bases econômicas e de classe do conservadorismo político e do autoritarismo. Não tendo
condições de se opor a esse discurso dominante no interior do governo, não tiveram condições de mediar a luta pela terra
e expressar a sua amplitude histórica e política.
Mesmo a Igreja, que conseguira na suplência política de sua pastoral social no campo, particularrnente significativa na
Amazônia, constituir um canal de expressão e mediação politizador das lutas e movimentos camponeses, caiu na armadilha
de se considerar porta-voz dos trabalhadores rurais, negando a opção mais rica e profunda de ser voz dos que não têm
voz. Por meio de alguns de seus membros, opôs a sua voz à voz dos trabalhadores, a sua luta pela reforma agrária à luta dos
trabalhadores pela terra. Aceitou a cooptação proposta pelo novo regime político. Supostamente em seu nome, houve quem
aceitasse opinar sobre a indicação de pelo menos um dos sucessivos ministros da reforma agrária e, em algumas regiões,
altos funcionários do Ministério e do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária foram informalmente indicados
e apoiados. Portanto, o único grupo de apoio com raízes locais e envolvimento profundo na realidade social, e nos confrontos
dos trabalhadores rurais, vacilou no seu papel e no seu compromisso, contribuindo ainda mais para lançar os movimentos
e lutas sociais do campo num terreno de impasses e limitaçóes.
Ao mesmo tempo, um erro fatal de interpretação inviabilizou a ação política desses diferentes grupos: uma proposta de
reforma agrária feita fora do contexto de uma revolução camponesa e no âmbito de um Estado de compromisso, em que
uma estreita, e provavelmente, duradoura associação entre capital e terra acabava de ser concretiza
da, não encontra na classe dominante quem possa assumi-la. Neste momento, o capitalismo dependente, exportador e
devedor, que não depende exclusivamente do mercado interno para desenvolver-se, e que encontrou canais de transformação
da renda fundiária em capital, ao mesmo tempo em que suprime, na prática, a contradição representada pela renda no
desenvolvimento do capital — esse capitalismo não representa um aliado da luta pela reforma, porque não tem necessidade
dela, ao menos a curto prazo.
Enquanto isso, temas contidos nas lutas sociais no campo, mas nem sempre transparentes, embora fundamentais,
ficaram de lado, excluídos da agenda política de partidos, tendências partidárias e grupos para-políticos. Deixou-se de
lado o fato de que a própria expansão capitalista na Amazônia criou continuamente um vazio político enorme, substituindo
velhos chefes políticos por grandes empresários absenteístas, alheios às lealdades e compromissos políticos da tutela e do
paternalismo encerrados na própria concepção tradicional de propriedade territorial. Houve o esquecimento de que a luta
pela terra encerra não só o problema do acesso à terra, propriamente dita, como instrumento de produção do pequeno
agricultor, mas também a emancipação do trabalhador rural em relação às velhas fórmulas da dominação pessoal.
Ficou de lado o espaço vazio do poder local, como ficou de lado o projeto político implícito, e muitas vezes até explícito,
das lutas camponesas, envolvendo a participação política, a democracia direta muito presente na organização dos núcleos
de resistência camponesa. Foram poucas as regiões e os grupos que compreenderam logo que a luta pela terra despertava
e constituía a sociedade civil no campo e que poderia organizar e dominar a fração local do Estado, a criação, organização
e direção do município, implantando a administração social dos recursos públicos.
Poucos têm compreendido que o discurso que unificaria as lutas no campo não era apenas e, talvez, nem principalmente
o discurso da reforma agrária e sim o discurso da relação entre as necessidades sociais e o poder, inclusive o poder local. Com
todas as dificuldades que possam ser apontadas, convém lembrar a experiência do Araguaia mato-grossense, em que as
lutas camponesas criaram a possibilidade histórica da emancipação política dos municípios, da eleição dos prefeitos e das
câmaras municipais (aliás, experiência similar ocorreu em Trombas, com a transformação do território liberado em município,
e no Sudoeste do Paraná, com a tomada da administração pública pelos camponeses, em 1957, através dos dirigentes
políticos do movimento). Na luta pela terra, está envolvida mais do que a propriedade — está envolvida a possibilidade
de reorganizar e revolucionar as bases locais do poder, mediante a instauração de formas de democracia participativa,
com freqüência já presentes, desenvolvidas e aprendidas na luta pela terra. É nesse plano que as lutas camponesas na
Amazônia têm a dimensão de movimento social. Esvaziado, porém, porque seus temas mais profundamente políticos
foram tirados da agenda política por grupos de mediação. E porque, de outro lado, o encaminhamento político da questão
agrária e da questão camponesa, durante a ditadu
ra, se fez de modo a divorciar quem faz e quem pensa, semeando a ilusão de que quem faz não pensa e, por isso, somente
tutelado pode agir politicamente. Razão pela qual todas as tentativas de dar curso político à questão agrária desembocam
na invocação e privilegiamento do Estado e no enfraquecimento dos movimentos sociais.
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O RAPTO DAS DONZELAS


José César Gnaccarini*

GNACCARINI, José César. 0 Rapto das Donzelas. Tempo Social, Rev. Sociol. USP, S. Paulo, 1(1): 149-168,
1.sem. 1989.
RESUMO: O objetivo deste artigo é analisar as condições de ocorrência de uma forma específica de casamento
rural em uma região do Estado de São Paulo, com o rapto consensual da noiva. A regularidade dos raptos associa-se a
condições de vida de determinadas categorias de trabalhadores agrícolas. Estas condições geram a impossibilidade de a
família trabalhadora poder articular os interesses institucionalmente definidos da totalidade de seus membros. Quando se
tornam sobrantes as forças de trabalho de alguns dos membros, o lugar deles nas relações familiares fica problemático. Isto
atinge preferencialmente as mulheres jovens. Neste artigo são estudadas em particular as representações destas mulheres
sobre o casamento e a família e os modos como elas reagem a estas condições alienadas de existência
UNITERMOS: Trabalhadores agrícolas, família trabalhadora, casamento rural, rapto.

GNACCARINI, José César. The ravishing of damsels. Tempo Social; Rev. Sociol. USP, São Paulo, 1(1): 149-168, 1.sem. 1989.
ABSTRACT: The aim of this article is to analyse the conditions causing a specific form of rural marriage in the
state of São Paulo, in wich the bride is the traditionally “kidnapped” with the conssent of both families. This form of
marriage is associated with the living conditions of rural workers. These conditions cause the impossibility of the working
family to artiulate the institutionally defined interests of all its members. When a family member, most frequently young
women, becomes either unemployedor underemployed, her position in the family then becomes problematic. The article
also focuses on those women’s world views and their reactions to those alienating living conditions.
UNITERMS: Rural workers, working family, rural marriage, kidnapping.

* Professor do Departamento de Sociologia- FFLCH-USP.

Varium et mutabile semper Femina


Há muitas maneiras de civilmente celebrar um casamento. A astúcia da Lei tem esse poder de arreglar o que
muitas vezes a nossa lógica humana e vulgar entende inarranjável. E até eclesialmente toleram-se aí as variantes. Mas é
justamente este o passo, em que as diferenças se esmaecem. Quando então, perdidas as suas tintas fortes, elas se sacrificam
no altar das homogeneidades construídas abstratamente.
Por outro lado, há o registro sociológico destas celebrações. Mas aí também os sociólogos retemos com
freqüência apenas os condicionantes mais gerais da atividade sensível do homem. Dizemos, por exemplo, que existe um
padrão de casamentos, que se
apóia em uma trama extensa e intrincada de alianças e interesses econômicos. Tal seria, exemplificando, o
caso da família patriarcal brasileira. E que hoje encontramos já substituído por um casamento moderno, no qual contam,
acima de tudo, as satisfações profissionais dos personagens individuais e suas exigências muito pessoais de afetividade. E
sabemos, além disso, e num nível mais genérico, que a família, tal como a conhecemos a partir do século XIV no ocidente
europeu, é um produto típico da sociabilidade burguesa, que evolui historicamente com esta.
Não obstante, outras distintas ordens de realidade existem, para além destes fenômenos mais visíveis, e que
são freqüentemente mantidas na penumbra — pois ao menos uma certa sociologia não as desconhece. São estas, dentre
tudo, aquilo que mais precisamente obrigaria ocupar-nos, pois se somos nós a quem menos caberia descurar dos significados
humanos desta disciplina.
Pois é disto precisamente do que iremos aqui nos ocupar dessas espécies de realidades, que são constitutivas
mesmo da sociabilidade moderna. Que as distinguem dos fenômenos mais superficiais, que por isso chegam com mais
facilidade ao nosso entendimento, e se traduzem por um singularíssimo processo, sem paralelo fora das ciências humanas,
de inversão/encobrimento. Tratamos neste artigo precisamente destas ordens de realidades, no âmbito do casamento e do
parentesco, com o intercâmbio material que eles suscitam.
Casamento e rapto: a alienação revisitada
Pertence a uma espécie particular o casamento que aqui se estuda. Ele depende de um rapto e, por conseguinte,
de um conjunto de iniciativas, que os nubentes devem estar aptos a tomar, de modo a que propositadamente e de acordo
com um certo padrão cultural se configure um (consensual) rapto da mulher. Não pretendemos, entretanto, ir fazendo
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aqui a mera reconstrução de aspectos reiterativos de um conjunto de ações e relações, de tal modo que ao cabo desta
empreitada sobre os valores e as normas de alguns grupos se delineasse ao primeiro lance de olhos todo um espaço visível
de sociabilidade, no qual se pudesse circunscrever esse aparente imbroglio. Pelo contrário, para além dessa descrição,
interessam-nos os conflitos no interior dos grupos familiares, e as lutas em que se empenham mulheres, que estão, por
assim dizer, destinadas ao casamento. O sentido que elas põem nesses embates é o deliberado e pertinaz intuito de irem
quanto possível escapando ao dilaceramento, que as verdadeiras “potências estrangeiras” lhes infligem numa rede intrincada
de constrangimentos materiais e morais.
Por outro lado, buscamos aqui também desvelar outros significados de suas atividades, que em certo sentido
lhes subjazem à própria existência, posto que lhes escapam enquanto íntegras e plenas significações de vida, por se
mostrarem/mistificarem em fantásticas representações. Estas, na interação com os demais personae dramatis, elas próprias
as foram construindo, como produtos os mais tangíveis desta sua atividade sensível alienada.
Tratamos esta realidade em dois níveis. Um deles é o que remete às determinações impostas pela forma social
geral dominante em uma moderna sociedade capitalista. É aquele que impõe as demandas do “mercado” determinadas
pelo caráter geral privado da apropriação do trabalho. Um outro nível guarda com este uma certa relação de contrariedade
e é aquele das formas sócio-culturais da sociabilidade, que são específicas desses grupos familiares de trabalhadores.
Como diversas determinações de uma mesma estrutura, sua unidade não esconde, entretanto, a relação de contrariedade
que mantêm entre si como instâncias do real com relativa independência e movimento próprio.
Uma tal espécie de relação entre instâncias do real relativamente independentes tem a conseqüência geral de
impedir a plena manifestação de certos componentes da vida sócio-cultural. No plano desse “tecido social” da vida coletiva,
que é o dos valores, certos regulamentos que são absolutamente impositivos aos comportamentos dos atores (como é o
caso das regras de reciprocidade impostas por um certo padrão de casamento de “cultura rústica”) apesar de vigentes no
plano das ideologias não podem concretamente reger certas relações onde deveriam estar presentes. Preterem-se para as
calendas casamentos de filhas mulheres já contratados, viola-se a regra de patrilocalismo no casamento feito nestas
circunstâncias (quando se impõe o rapto), relegam-se praticamente ao abandono as filhas mulheres, cuja força de trabalho
tornou-se sobrante nos grupos familiares de cooperação. Por fim, estas mulheres são vilmente escorchadas em relação a
preceitos do Código Civil que lhes garantiriam determinados direitos de assistência e de propriedade. Entre o mundo
regido pelo império da Lei e estas espécies de indivíduos-cidadãos, interpõe-se a família, como instituição capaz de absorver,
de um modo contraditório, as demandas do “mercado”, do “interesse” impostas pelo caráter prierado da forma de
apropriação dominante, e, de outro lado, a reprodução das forças de trabalho familiares nos quadros de uma certa tradição
sócio-cultural que não é a própria do capital.
Um resumo de informações básicas
As regularidades que a estatística é capaz de fornecer sempre constituem para o trabalho sociológico um
ponto de partida de interesse, desde que possível o controle
teórico da sua produção. Ao iniciar este estudo, compulsamos registros criminais e civis em três localidades
paulistas, e fizemos um levantamento minucioso de um número relativamente alto de casamentos, todos oriundos de
procedimento judicial-criminal, posto que houvera indícios de ocorrências de rapto da mulher nubente.
No levantamento de fontes oficiais escritas, estão contados apenas os raptos consensuais, a que se seguiram
casamentos oficialmente celebrados, não constando, portanto, de nossa listagem aquelas uniões que não se oficializaram
pelos trâmites da lei civil.
O caráter de consensualidade é expressivo, posto que, mesmo no caso dos nubentes de menor idade, não
existem indícios de violência contra as livres vontades, como as define a lei, sendo, por consegüinte, raptos todos consensuais.
Um pormenor importante é que esta consensualidade atinge invariavelmente as famílias de ambos os nubentes, evidenciando
que é animada por cumplicidade exemplar.
Do confronto entre o processo criminal e o registro civil resultaram estas altas taxas de casamento com rapto,
que oscilam, entre os anos 1900-1950, de um mínimo de 3%, a um máximo de 20%, situando-se a média em torno de 6%.
Estas taxas seriam bem mais elevadas se pudéssemos confrontar os raptos (na quase totalidade, de origem rural) apenas
com os casamentos rurais e não com todos os casamentos, como fizemos.
As três localidades onde levantamos estas informações oficiais foram os municípios de Rafard, Capivari e
Mombuca, na região de Campinas, zona central do Estado de São Paulo. Esta área foi inicialmente centro de predominância
cafeeira, até por volta de 1920, e a partir daí uma região canavieira. As relações de trabalho, que predominaram deste
então, mantendo-se até época recente, foram os sistemas de trabalho do colonato (no café e na cana) e a parceria (no
algodão), e, com menor expressão, a propriedade parcelar. Em época mais recente, desenvolveu-se um novo sistema de
salariado, o de trabalhadores ditos “volantes” ou “bóias-frias”. Desaparece, com a generalização deste sistema, a antiga
associação, que vigia no sistema de colonos e empreiteiros de café e cana, entre um pagamento de salários monetários e
uma parceria.
Nessas três localidades realizamos também algumas entrevistas com pessoas que diretamente vivenciaram
situações da espécie, seja como personagens principais, seja como coadjuvantes, membros das famílias envolvidas. A
maioria das entrevistas foi feita com mulheres jovens, donde a importância que adquire neste artigo o estudo de suas
representações.
O significado da relação estatística entre raptos e salários rurais
Calculamos a covariância, pelo método da regressão linear, entre uma série histórica de taxas rurais anuais de
raptos (dadas pelo número anual de raptos por 1.000 habitantes rurais) e duas séries históricas de médias salariais anuais
de trabalhadores-co
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lonos: uma na colheita de 100 litros de café e outra no trato anual de 1.000 cafeeiros, de acordo com a fórmula:
y = a + bx, onde: y é o número de raptos por mil habitantes rurais e x é a taxa média de salário e encontramos os seguintes
coeficientes: r = 0,6580, para os salários de colheita, e r = 0,7208, para os salários de trato anual de cafezais.
A alta correlação estatística entre essas variáveis está indicando ser possível investigar a provável relevância,
que a situação econômica pauperizada (representada pela queda brusca dos salários de colonos abaixo da subsistência,
pois a importância dos ganhos monetários é, nessa relação, essencial), tem para o incremento notável das taxas rurais de
rapto entre as camadas mais representativas de trabalhadores do campo nessa área.
Quadro 1 — Casamentos Comuns e com Rapto nas Três Localidades, 1900- 1969
Período Média Anual Total no Período Média Anual Total no Período
1900- 12 2 6 95 380
1913- 17 4 22 115 577
1918-22 11 54 163 814
1923-29 14 98 169 1.181
1930-32 17 52 149 446
1933 -44 11 126 200 2.396
1945-50 4 25 195 1.170
1969* 16 16 120 120
*Somente um dos três distritos de paz: Capivari
O real e o imaginário nas fabulações sobre família e casamento
A vida de mulher casada não altera em muito a rotina quotidiana de uma jovem trabalhadora, nos regimes de
trabalho que estamos considerando, a saber, a parceria, o colonato, a propriedade parcelária. A rotina tem início aos 7 ou
8 anos de idade: carpir, trabalhar nas colheitas, cuidar de animais, além do serviço doméstico, que aí começa em idade
mais baixa.
Esta vida é por elas considerada muito dura, se comparada à da cidade, seja em trabalho em fábrica ou em
emprego doméstico. “Levantar-se de madrugada, enfrentar o caminho, pegar na enxada, voltar à tardezinha para dormir,
e sempre passando dificuldades”. Estas dificuldades referem-se à não correspondência entre o trabalho em excesso, que
delas é exigido, e os parcos ganhos. Símbolo maior desta dureza de vida é o uso
permanente de “pargata” (calçado grosseiro de solado de cordas e vestimenta de pano inferior). O uso de
sapatos é o sonho feminino. Quando uma jovem estava por receber o seu primeiro salário no corte de canas, foi promessa
de seu pai — posto que o salário ao pai já pertencia — a compra de um par de sapatos. No entanto, à pergunta da filha:
“Pai, e o sapato?”, sobre o destino de uma parte pequena de seu salário, a resposta do pai era sempre o invariável: “Este
mês não dá”.
Para esta jovem as coisas assim permaneceram até a mudança para a cidade, quando, vivendo só, obteve o
primeiro emprego fora do lar, que, na regra geral, foi um emprego doméstico. As que deste modo se mudam para a cidade
sempre a avaliam em relação ao campo, afirmando desta: “Aqui é o céu”. Esta avaliação seguramente não conduz água
para o moinho dos que fazem certos juízos genéricos e preconceituosos a respeito das possíveis relações entre família e
migração de trabalhadores.
O sentimento de generalizada opressão e expoliação, que é comum entre estas mulheres, particularmente as
solteiras, emerge à tona em duras verbalizações, relativas à imagem que formam da instituição familiar. Esta agressividade
generalizada, mas nem sempre conscientemente direcionada, costumam descarregá-la, se solteiras, contra as cunhadas
que vivem debaixo do mesmo teto, posto que diante delas estas gozam de certos privilégios, muito embora também
submetidas à mesma opressão genérica.
A situação de opressão tem origem na regra de patrilocalismo, que garante nesses grupos familiares a eficácia
das normas de sucessão e de controle sobre o patrimônio comum. Como resultante da vigência dessa norma social,
permanecem no grupo de origem os filhos do sexo masculino, mesmo já havendo constituído família própria. Na falta do
pai, exerce o controle dos bens e a direção da família o filho mais velho ou o casado, adulto do sexo masculino.
A expectativa de casando-se, irem morar na casa dos sogros não lhes figura um destino particularmente
agradável. Ressentem-se, em especial, nas representações que fazem, da obrigação de estarem sob tutela dos pais do
marido e de outros membros da nova família. Não se curvam facilmente à idéia de estarem destinadas socialmente a
serem as reprodutoras imediatas da força de trabalho desse grupo familiar, mais ainda quando tomam consciência de que
esta força de trabalho deve ser posta em uso, desde idade muito tenra, em benefício de uma comunidade, que se encontra
desde sempre, por sua própria natureza específica, cindida internamente.
A desigualdade no tratamento das mulheres frente aos homens é flagrante, por exemplo, na decisão paterna
em realizar com a brevidade possível o casamento de um filho homem, enquanto o casamento da filha mulher às vezes é
retardado e a decisão sempre muito relutante. Os pais de uma jovem desejosa de casar, ou aqueles membros da família
capazes de uma decisão, sempre esperam poder continuar usando em benefício próprio pelo mais largo espaço de tempo
possível essa força de trabalho, que de direito lhes pertence. Se a família do pretendente à mão da filha não goza lá de
muito
prestígio junto a eles, relutam em realizar despesas com o casamento, e as despesas não são poucas, como se
verá.
Interpenetrados pelas determinações mais abrangentes da vida econômica — precisamente pela forma social
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geral dominante na moderna sociedade capitalista, que os engloba, os grupos familiares se acham cindidos internamente
por conflitos variados, que as personagens devem vivenciar, e que efetivamente vivenciam em experiências pessoais as
mais diversificadas.
E a instituição familiar se interpõe nas relações entre estes grupos familiares, tanto os socialmente igualados
(os “grupos de pares”), quanto os outros, socialmente diferenciados. Na sua forma de conjunto ordenado e integrado de
valores, a instituição familiar empresta deste modo legitimidade a certas práticas econômicas que se apresentam
necessariamente carregadas de contradições.
O casamento com rapto: seus preparativos e condições
Nas condições de vida das mulheres, acima apontadas, o casamento com rapto está entre as expectativas
normais e correntes da maioria das jovens. O porquê desta normalidade é o que mais nos interessa desvendar. Mas antes
que nos proponhamos a esta tarefa, desejamos relatar as características principais que envolvem essa forma de união entre
mulher e homem.
Entre todos os personagens se estabelece um conluio não declarado, mas que se explicita em algumas situações.
Em um caso, compareceu a cartório, acompanhando raptor e raptada, a mãe do nubente, reclamando do “acerto” que se
havia estabelecido em relação ao rapto entre os pais da jovem e o seu filho. E ia aproveitando para lamentar-se de um
casamento indesejado, uma vez que fora abandonada pelo marido e este filho era o seu arrimo para sustentar a família.
Como ela residia na cidade e não tinha lides rurais, o filho iria mudar-se para a fazenda, onde a família da jovem morava
e trabalhava. Relatou que o motivo do rapto era claramente abreviar o casamento, evitando as despesas com enxoval,
festas, cartório, etc. — e que por esta razão a família da jovem vinha de longe facilitando os meios de “desencalhar” a filha.
Quando da celebracão do casamento é comuníssimo que compareçam a cartório os pais de ambos os nubentes,
irmãos, padrinhos, tios e outros parentes, sem que mutuamente se constranjam, e mesmo confraternizando. Em um caso o
namoro já era antigo, feito na casa da moça, na presença dos pais e sem nenhuma oposição, até que certo dia, passeando os
dois, ao voltarem à casa, o pai dela os impediu de entrar, motivo pelo qual decidir-se pelo rapto, indo a cartório para se
casarem. Em outro caso, residindo
em São Paulo, o filho de uma família de antigos vizinhos e colonos de café namorava uma das filhas do
informante. Esse jovem, vindo da Capital, chegando a Capivari foi recebido pelo informante que estava justamente à sua
espera e convidado para beberem juntos um copo de cerveja em casa de um compadre. O informante em seguida obteve-
lhe uma condução para que pudesse dirigir-se à fazenda onde ele informante residia com a família na qualidade de colono
de café. Aí chegando, com o propósito de namorar, o rapaz foi informado pela mãe da moça e esposa do informante que o
namoro não era do agrado nem dela nem do marido; ao que sem mais delongas o nubente resolveu raptar a moça, fazendo-
o de imediato, à plena luz do sol.
A formalização do casamento em cartório não é grandemente valorizada entre a família da mulher, justamente
pelos dispêndios monetários que implica. Ocorrem casos em que o nubente rapta a moça da casa dos pais, levando-a para
morar com ele. Depois de um tempo, sempre curto, voltam à casa dela, para pedir o consentimento e a bênção do pai e ali
viverem sem que formalizem a união.
O conluio, que se acabou de apresentar, vigindo na consciência e na ação de todos estes atores e sendo necessário
à efetivação do rapto, vai manifestando aos olhos das mulheres solteiras uma desqualificação dos anseios e necessidades
delas próprias, em todas estas diversas situações de vida. Os investimentos que elas fazem para garantir a existência de
um “tecido social” — e que se manifestam naquelas suas representações que valorizam a família, o casamento, e quanto a
este particularmente o religioso —, são desqualificados pela acentuação, que seus pais e irmãos, e seus cunhados e cunhadas
põem num individualismo exacerbado, como critério para a eleição de quem deve ser beneficiário de privilégios familiares.
Estas divergências intra-familiates manifestam-se não só na partilha de bens materiais, formalmente
determinada pelas regras da sucessão hereditária, quando a lei civil e a lei costumeira repõem, eternizado, o império da
propriedade privada. Mas, acima de tudo, as diferenças internas manifestam-se também cotidianamente, no confronto da
vida familiar com as leis da concorrência mercantil.
As exigências, que decorrem do império da produtividade, enquanto critério formalizador das relações,
invadem a instituição familiar nos seus mais vetustos modos de existência. Mas se elas podem deste modo invadir os
arcanos da família é porque o princípio essencial da propriedade privada estrutura generalizadamente todas as relações,
inclusive as da instituição familiar destes trabalhadores.
Casamento e “cultura rústica”
Mas além desta função ideológica de legitimação, o casamento tem um significado muito amplo e bem maior
do que aquele que se manifesta de modo geral na instituição vigente na cidade. Pois é por seu intermédio que nessas
condições rurais são disparados
vários mecanismos de solidariedade e de efetivo intercâmbio material. O casamento incorpora várias práticas
de solidariedade costumeira, destinadas a adjudicar novas famílias singulares a grupos de parentela mais amplos e a
outras relações de intercâmbio, nas quais a regra de reciprocidade é fundamental. Por meio dele adjudicam-se novas
forças de trabalho e não só às malhas da reciprocidade tradicional, que não apenas vigiam e decisivamente regiam nos
limites sociais de um bairro rural, mas também àqueles liames que resultam da rede de obrigações que se estabelece entre
assalariados com residências vizinhas em uma mesma fazenda.
As vias de ingresso nesses grupos não se cingem exclusivamente ao modo de entrada pela via direta do
casamento. Muitas outras vias incorporam pessoas ligadas por outros vínculos de parentesco, às vezes distante ou de linha
indireta e mesmo o de afinidade, cabendo, por conseguinte, diferentes vias de ingresso apenas convergentes com o casamento.
Particularmente importante para essa mesma adjudicação é o parentesco exclusivamente sagrado, não consangüíneo,
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expresso nas obrigações do compadresco.


No estágio pré-máquina, que até um passado bem recente caracterizava o trabalho agrícola na área, a posse
de braços em quantidade tinha a sua razão de ser, e mesmo era essencial à sobrevivência dos grupos familiares de
trabalhadores, fossem eles colonos, parceiros, pequenos arrendatários ou proprietários parcelares. A possibilidade de
formação de um modesto pecúlio pelas famílias, quando essa condição do trabalho agrícola foi generalizada, e a conseqüente
redistribuição continuada de prestígio entre os grupos em virtude dela, estáo entre os fatores mais decisivos para explicar
a valorização da espécie de casamento inter-pares, que incorpora, além disso, um ideal de prolificidade da mulher casada.
Mesmo sob a base material do sistema de colonato em fazendas, a organização da vida social apresenta
alguns aspectos que são próprios de “bairro rural”, forma social generalizada nos agrupamentos de cultura caipira. As
diferenças ficam não só por conta das limitações econômicas materiais, mas também pelas diferenças culturais e pelos
modos variados de inserção na rede de liames da forma social geral dominante. É a razão pela qual nem todos os aspectos
da vida social de bairro rural tradicional aí se conhecem, e, mesmo quando se manifestam, fazem-no sob a forma reatualizada.
O mutirão é prática difundida, embora despido de consumações e outras práticas rituais. A interpenetração
com critérios propriamente mercantis de avaliação dos partícipes e com valores individualistas na distribuição dos frutos
do trabalho familiar, aproxima essa organização social de um padrão de transição para a mera compra e venda da força de
trabalho em situação de mercado. Ademais, a limitada disposição de meios materiais próprios, bem assim a escassa
apropriação pessoal de tempo de trabalho, fora da relação de salariado, que são ambos elementos indispensáveis a essas
formas de cooperação, fundadas em uma certa margem de autonomia, aparecem como fatores restritivos. Embora não
sejam inexistentes, tanto a propriedade de animais e instrumentos de trabalho, quanto a apropriação sobre o tempo de
trabalho próprio e de familiares para
livre uso encontram barreiras maiores no sistema de colonato, do que em outros sistemas de trabalho e regimes
de produção rural, a despeito de que cada vez mais estas possibilidades de trabalho independente com meios rústicos vão
sendo restringidas em todos esses sistemas, de um modo generalizado. Mas assim mesmo essa já bastante relativizada
disposição do próprio tempo e a propriedade de animais e instrumentos de trabalho ainda vincula a todos esses sistemas
nas bases materiais e morais de uma “cultura rústica”.
Casamento, família e a sobrevivência individual
O absoluto predomínio do sistema de colonato significa que nessa região até um passado muito recente, não
estava constituído no campo um mercado de trabalho. O sistema de colonato, que consideramos uma combinação capitalista
entre o salariado e uma parceria rural reatualizada, permite que assimilemos esses trabalhadores à condição de proletários
rurais. Não obstante, as peculiaridades que os especificam impedem subsumi-los na condição de proletários divorciados
de um modo absoluto dos meios de trabalho e, pois, plenamente transformados em free hands do capital. Posto o indivíduo
nesta situação, o casamento, com as características com que já o apresentamos, se manifesta para qualquer um como meio
único de sobrevivência.
No sistema de trabalho de colonos vige desde época remota a figura do “jornaleiro”, trabalhador diarista,
mas que muito pouco tem a ver com a moderna figura do trabalhador “volante” ou “bóia-fria”. Até recentemente existia
esta figura de trabalhador despojado, mas de um modo meramente formal, posto que ainda umbelicalmente agregado,
seja ao sistema de colonato, seja ao de parceria, ou aos regimes da propriedade parcelar e do pequeno arrendamento. O
verdadeiro trabalhador livre, “só e escoteiro”, deve apenas vegetar, e de um modo precaríssimo, nos interstícios desse
sistema econômico, que fixa a mão-de-obra na propriedade fundiária e em tarefas muito singularizadas do trabalho agrícola.
Um tal sistema de fixação da força de trabalho apresenta-se como indispensável ao capital apenas nesse
estágio ainda muito limitado de constituição no campo das forças sociais produtivas que lhe são específicas. O trabalho de
jornaleiros, o capital o emprega agrilhoado a escassas disponibilidades sazonais, até meramente eventuais, de uma mãode-
obra que só pode aparecer como despojada porque tornada sobrante nesses sistemas dominantes. A despeito de que o
sistema híbrido, que o capital está então obrigado a montar no campo, também produz estas capacidades despojadas — e
de um modo similar ao que ocorre na parceria, pequeno arrendamento e propriedade parcelar — não se con
funde jamais com a produção das classes sociais que é específica ao regime capitalista amadurecido.
Neste quadro de fixação da mão-de-obra nas unidades familiares, o casamento representa para esta espécie
social de indivíduos o único modo possível de sobrevivência. Em se casando o indivíduo é incluído em grupo familiar, que
o transcende de maneira absoluta, e, portanto, em malha de intercâmbio econômico muito ampla, bem além da mera
possibilidade individual de vender a capacidade de trabalho.
Alternativa difícil seria migrar para a cidade, e, em passado recente, mesmo impossível. Foi só na época de
advento de um processo de industrialização acelerada, no período que se delimita pelos últimos anos da década de 50 e os
primeiros da de 60, que esta possibilidade se abriu, de um modo generalizado, a indivíduos de ambos os sexos. O emprego
assalariado no pequeno comércio, nos serviços e na indústria artesanal, sem mesmo falar na grande indústria, era
excessivamente problemático, de pronto, a pessoas sem as qualificações que só a cidade era capaz de produzir em seus
moradores. E também para as mulheres a urbanização acelerada abriu com o tempo uma nova oportunidade generalizada
de vida independente, aquela do emprego doméstico.
O que estamos relatando neste estudo é em parte a história do processo de libertação destas mulheres, mas
também o é da situação de extrema dependência em que ainda subsistem, assim como é um relato da vivência de seus
dramas pessoais nessa condição e das suas próprias e frequentemente fantasmagóricas representações sobre essa condição.
Miséria moral e família: o rapto segundo as representações das raptadas
Às categorias do senso comum o casamento não se apresenta sob outra espécie que na qualidade de instituição
em geral, abstratamente. É assim também como o vêem os atores, particularmente estas mulheres. Mas com a diferença
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específica de que se estas assim o vêem é por uma necessidade vital, porque necessitam espelhar nessa figuração
fantasmagórica a sua própria condição humana. Umas o valorizam pela fugaz esperança de libertação, enquanto outras
enxergam na relação com o outro sexo apenas o conteúdo que lhe foi dado pelo casamento, isto é, o quantum que essa
relação possui em si mesma (e, por conseguinte, apenas enquanto forma que se desdobra a si mesma, de uma maneira
espontânea e linear) de escravização.
O rapto é por isso o processo e o momento em que elas imaginam poder reivindicar um poder instituinte, que
não é seu. Querem apropriar-se por essa via de suas próprias pessoas, instaurando desse modo a vigência e a regência de
direitos pessoais e coletivos (de valores, portanto). Faltam-lhes, porém, as condições necessárias para que possam
edificar uma associação consciente de seres livres. Ora, o destino destas mulheres é o de serem o repositório
alienado de uma sociabilidade que os homens mascaram pela unilateralidade de uma “idade de ouro”. Só que, muito a
propósito, eles são infiéis (e podem, regra geral, sê-lo) a essa demanda, que aparece às mulheres dever ser bandeira
comum a uns e a outras. Tal destino, fundamento e substância do ser mulher, que, sendo forma cultural alienada, violenta
a precariedade da condição social, denota desde logo a igualdade fundamental, que a todos marca, mediada pelo dinheiro
(ou o “interesse”), e assinala a contradição (insolúvel, encerrada nesses acanhados limites) da forma categorial em que se
manifestam as posições sociais no grupo familiar.
Fixando-nos num pequeno exemplo, uma questão que se apresenta como de decisiva importância na vida
dessas mulheres, a saber, a escolha do cônjuge, ela se põe imediatamente à ação sob essa forma categorial, que é a única
que é a sua, enquanto realidade tangível, na exata medida em que esta é a forma socialmente necessária da normalidade
abstrata do casamento (e da família por extensão). Isto é, na espécie ela se põe como um “princípio” negociável, posto pela
interveniência do “interesse” (privado). Deixa a nu, por consegüinte, a natureza contraditória do valor (enquanto a categoria
sociológica por excelência) na sociabilidade da instituição familiar. Por isso a condição humana dessas mulheres, que se
apresentam deste modo dependentes, necessariamente deve aparecer como uma “condição de orfandade”, cuja carencia
de vontade pode ser perfeitamente suprida, seja pelo pai, seja pelo juiz (se ela tiver a idade inferior a 14 anos), seja pelo
padre (para que ela possa enfim, conforme a comunidade tolera, casar-se “de rosa”).
Em conseqüência somos obrigados a considerar que o tipo ideal da família-extensa-tradicional-patriarcal,
este valor que é ao mesmo tempo a pedra e a argamassa com que a sociologia constrói o edifício institucional, não encontra
os nutrientes suficientes para medrar em terra tão sáfara quanto esta, apesar de que o elemento ideológico, aí mais vivo e
presente do que nunca, proclame o contrário. O que realmente se é obrigado a encarar é a simples real existência de um
agregado, por justaposição, entre vínculos conjugais singulares, aos quais outras pessoas vão se apendiculando sem qualquer
agregação orgânica estável e eternizada. Na relação social familiar, que aparece para si mesma como se pressupusesse a
cumplicidade, existe apenas “desconfiança” mútua. E esta vai assim obnubilando astutamente o elemento “público” (isto
é, social), imposto pela vigência, mas sem a regência, de uma moralidade (sociabilidade) que se deveria manifestar nas
regras de reciprocidade, e mais na mútua proteção e no mútuo entendimento.
Nesta situação, os laços de família vão se manifestando (por partes, entenda-se) em toda a crueza do seu real
modo de existir. Não é incomum o cas, de ser raptada menor de idade entre os 14 e 18 anos, e passar a viver com a família
do raptor, sem que, num prazo muitas vezes dilatado, a família dela nem se importasse em tomar iniciativa
destinada à realização civil ou religiosa do casamento, o que espantaria alguém mais desavisado, quando se
revela que, no íntimo dessas mulheres, formalizar a união, particularmente na regra religiosa, lhes aparece como coisa
importante.
Se é inteiramente verdadeiro que o rapto se inscreve nas expectativas legítimas das jovens, perante o seu
grupo familiar e de vizinhança, também, por outro lado, não deixa de ser absolutamente certo que a sua prática lhes impõe
não pequenos custos pessoais. Pois se o casar-se perante o altar é uma prática que valorizam grandemente, o rapto, se não
impede o casamento religioso, implica ao menos restrições. Não é mais possível casar de branco, é necessário “vestir cor-
de-rosa”, e a violação deste preceito, se aparece como algo relativizável, lhes dá, entretanto, uma vaga sensação de conduta
errada, posto que algumas destas jovens mulheres se sentem compelidas a se referirem às suas próprias práticas com um
exemplar “não é bom”, que, sendo vago, vem carregado dos sentidos pungentes de miséria moral.
De um lado, o seu amado Páris ia lhes prometendo que, em saindo da casa paterna, elas iriam encontrar, não
mais as agruras já sobejamente experimentadas, mas um mundo novo e insuspeito de benesses jamais sonhadas, e isto sob
o empenho sagrado de uma palavra viril, quem ainda lhes ia também garantindo a expiação da falta por intermédio da
sagração do matrimônio no caso de elas lhe concederem no amor carnal. De sua parte, entretanto, a estas Helenas não
tocou aquela boa consciência, que, à semelhança da sua famosa irmã, lhes possibilitasse responder ao esperto Páris, com os
pés bem plantados no chão, que jamais teriam a pretensão de ser, entre os dele, nenhum dom assim tão precioso, e que se
contentariam, então, humildemente, como até ali devessem ter feito, em recolher para a sua beleza alguns votos masculinos.
Se lhes fosse dado, poderiam inscrever em suas bandeiras o que foi em priscas eras o brado de luta da eterna mulher: Aut
ego perpetuo famam sine labe tenebo, Aut ego te potius quam tua dona sequar.
Como se rapta e como sofrem as raptadas
Ao rapto antecede um período mais ou menos duradouro de namoro e, em alguns casos, noivado. O namoro
ocorre na casa dos pais da mulher; durante o transcorrer deste período é que o noivo ou simples namorado fica sabendo
do prestígio que goza junto à família dela. Se, diante da manifestada intenção de matrimônio, a data é sucessivamente
adiada, se o empenho da família é posto no casamento de outra irmã ou irmão da mulher, uma de duas conclusões é
possível: que o seu casamento se adia pelo motivo de a força de trabalho da mulher ser ainda muito necessária à família, ou
se retarda em
razão de indisposição da família da mulher, diante dos gastos requeridos por um casamento.
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As despesas com a realização de casamento oneram particularmente a família da mulher. Por mais pobre que
uma família possa ser, algum tipo de festa sempre é necessário, como é igualmente obrigatório convidar para a festa o
maior número possível de conhecidos, entre compadres, parentes e amigos, particularmente entre aqueles com quem se
trocam favores. Entre estes favores, incluem-se com particular destaque a participação em mutirões, que até os últimos
anos da década de 60 ainda eram comuníssimos entre os trabalhadores residentes no campo, mesmo entre os assalariados
do sistema de colonato. Obrigação absolutamente impositiva é a preparação de uma espécie de dote, que a jovem leva
consigo casada, uma vez que será ela quem irá residir em casa alheia, necessitando, portanto, de uma quantidade de
roupas pessoais, de instrumentos de costura, de um enxoval de roupas em comum do casal e particularmente de utensílios
de cozinha, pois vergonha maior não vexaria uma mulher do que a de usar as coisas pertencentes aos outros.
Em um dos relatos o jovem dizia que namorava a moça há cerca de um ano. Estando com a data do casamento
marcada, dois dias antes resolveu convidá-la a fugirem, com o fito de abreviar o casamento. O dono da fazenda onde os
pais de ambos eram empreiteiros de cana, em sistema de colonato, levou os jovens até ao cartório e serviu de testemunha
à celebração do casamento.
Que o nubente deva freqüentar a casa da mulher por espaços de tempo de namoro não inferiores a um
período em torno de três meses, é condição em todos esses casos de rapto. O namoro há mais de um ano é caso mais
freqüente. Se os namorados propõem o casamento, vão surgindo então as oposições da família, sejam as explícitas, quando
ocorrem rompimento de relações e maus tratos inflingidos ao homem, ou as implícitas, quando as datas marcadas para o
casamento vão sendo sucessivamente adiadas. Antes disso, entretanto, o tratamento é cordial e o namoro ocorre a horas
certas dentro da casa ou nas imediações da casa da mulher.
A oposição ao casamento surge freqüentemente pela fórmula da “antipatia”, apenas proferida ou então
manifestada em comportamentos e atos, comumente expressos por irmãos, e às vezes por um dos pais da moça. Um
expediente comum, que a família da moça emprega, é a cisão de vontade da família: o pai quer o casamento, a mãe ou um
irmão mais velho representa contra. Há relato de um caso em que um irmão da moça falou expressamente ao pretendente,
“brincando”, como este mesmo enfatizou, que era melhor ela e o noivo fugirem, porque não havendo despesas seria
facilitada a autorização para o casamento. A mãe de uma jovem raptada afirmou, rindo, mas um tanto constrangida:
“Assim não precisa ter muita despesa... ainda mais nessa crise”.
Há padrões no rapto. O homem deve dirigir-se à casa da mulher, de preferência à noite, onde ela já o espera.
Nem sempre à noite, entretanto. Em um caso foi dito que ele penetrou no quarto da moça à luz do dia e ali mesmo
deflorou-a. Mas, qualquer que seja
a situação, espera-se que dali se dirijam à casa de um parente oou conhecido íntimo, às vezes a própria casa
dos pais do nubente, mais freqüentemente a casa do padrinho de um dos dois, se algum mora perto.
O defloramento da mulher pode ou não verificar-se antes da celebração do casamento, sendo tão freqüente a
ocorrência quanto não. Muitas vezes não passam a noite juntos, dormindo em quartos e até casas separadas. Às vezes,
mesmo passando a noite juntos, em casos até no mato, em beira de estrada, a virgindade da moça é mantida.
Aos pais da mulher raptada impõe-se um padrão de conduta, que deles exige num período variável, em torno
de 15 dias, aparentarem descontentamento (“ficam bravos”). Do mesmo modo, os parentes mais velhos tecem críticas ao
comportamento dos nubentes (“que deveriam escutar os pais”). Mas, em seguida, muda o tom dos comentários e todos,
inclusive os pais, relatam o episódio rindo-se e em tom jocoso. Há um caso em que a “gozação” com a moça, feita
reiteradamente, no quotidiano da família, referia ao fato de, na fuga, terem abandonado a janela do quarto aberta e,
chovendo, molharem-se duas crianças.
A conduta de pessoas, quando prestam algum tipo de auxílio nas ações do rapto não é jamais recriminada,
pelo contrário, se torna renovado motivo para um acrescentamento da anterior estima. Esta particular amizade aparece
como amplamente generalizada em uma das fazendas onde ocorreram numerosos raptos, na pessoa do dono de um hotel
na cidade de Capivari, para cujo estabelecimento se dirigiam muitos dos casais em fuga, e a quem se estimava paticularmente
pelos muitos auxílios que prestava na eventual hospedagem, mas também desinteressadamente nas providências junto ao
cartório e delegacia de polícia, nos avisos aos pais, na obtenção de transporte para os familiares e outros convivas.
A continuidade da virgindade da mulher, pós rapto, não se apresentou, em nenhum dos casos, como razão
para que o casamento não se consumasse, por oposição de qualquer das famílias, e o consentimento dos pais foi dado nos
autos em todos os casos. A lei exige exame de defloramento para a dispensa de publicação de editais e a observância do
rito sumaríssimo no processo de habilitação ao casamento civil. Também é importante se desja impor-se a pena ao raptor.
Mas se este requisito esbarrou algumas vezes na negativa da mulher, particularmente entre as bem jovens, de submeter-se
a exame, de modo especial vexaminoso, diante de testemunhas e outros eventuais assistentes, como foi relatado, e de
funcionários policiais, além de dois médicos. Escrivães civis, mais humanitários, às vezes encaminhavam os nubentes
diretamente a um médico, conhecido por fornecer atestado de defloramento sem mais formalidades, mas esta atitude
ficava sempre na dependência da boa vontade dos juízes de direito.
Em alguns processos criminais, há transcrições a termo das falas dos peritos-médicos, formuladas pelos
escrivães de polícia com todos os requintes de precisão inquisitória, que põem a nu a insensibilidade burocrática da justiça
e o desrespeito mais abusivo
à intimidade de quase-crianças. A recusa a tais vexames, entre as mais jovens, estendeu-se em um dos casos
à própria mãe, na companhia de quem a raptada e seu raptor, imediatamente concluído o rapto, se dirigiram à delegacia.
Em um caso a nubente negou-se peremptoriamente ao exame, sem que se aventasse outra solução, motivo pelo qual não se
pode dispensar o edital de proclamas, e ela então no meio de tempo foi residir com o noivo na casa deste, até que se
casassem no prazo normal. Regra geral, entretanto, é aceitarem estas mulheres submeter-se ao exame do corpus delicti,
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conduta geralmente induzida pelos pais, conforme o relato de algumas jovens, que o fizeram com sentida acrimônia.
As formas sociais alienadas da cooperação
Com Durkheirn poderíamos dizer que nesses grupos ocorre a existência de uma taxa normal de raptos,
manifestando uma situação de crise e mais precisamente de anomia, que se põe a descoberto na elevação patológica dessa
grandeza. Entretanto, a realidade tem uma complexidade maior. Em verdade, um e outro destes patamares da taxa de
raptos estão indicando, para muito além deste simples diagnóstico descritivo da situação, a existência de uma contradição
estrutural insolúvel. A contradição é insolúvel não apenas no que refere aos destinos pessoais de muitos personagens,
mantidos os estreitos limites dentro dos quais se repõem os elementos da vida social, mas, além disso, no que diz respeito
a uma das instâncias nas quais se dá o processo de reprodução do regime social imperante. Estamos falando dos processos
de socialização dessas mulheres trabalhadoras e da reprodução de uma força de trabalho, que apresenta a exigência de ser
disciplinada em conformidade com as necessidades criadas pelo modo particular de inserção dessas famílias no circuito
do capital agrário.
O caráter já mercantil da disposição da força de trabalho dessas mulheres, que de fato pertence a esses grupos,
ganha uma nova forma de expressão na época em que se generaliza a forma mercadoria, em período recente, manifestando-
se sob a forma de constituição no campo de urn verdadeiro mercado de trabalho capitalista. Esse caráter já existia, por
certo, embora de maneira formal, antes dessa generalização. Mas é só agora que ele tem as condições necessárias para
manifestar-se segundo o seu próprio conceito, isto é, apresentar-se de maneira permanente em todos os momentos da
vida; pois, anteriormente, ele só se manifestava plenamente nas crises.
As crises, enquanto foi dominante o antigo sistema de colonato, tomaram a forma de uma sobreacumulação
de capital cafeeiro. A conseqüente desvalorização não teve naquela estrutura efeitos destrutivos marcantes sobre a maior
parte da força de trabalho, uma vez que na reprodução desta manteve-se viável o conhecido mecanismo de reforço
de algumas atividades de auto-subsistência, aquelas que o capital cafeeiro comportava, v. g., as relações de
parceria, reduzindo, de conseqüência, parcela do lado monetarizado dessa economia. Entretanto, os custos de manutenção,
quando implicavam dispêndios monetários, ficaram nessa circunstância prejudicados. As forças de trabalho, que se
aplicavam no setor monetarizado, ficaram sobrantes. O desemprego veio por aí. E ele deveu pesar por inteiro sobre os
ombros das mulheres mais jovens, posto que precisamente nelas devia recair por necessário o custo da sobra de braços
para as famílias.
No período mais recente de transição, agora se combinam na estrutura produtiva uma antediluviana
predominância de trabalho humano vivo, e a crescente importância do emprego de máquinas. Mas esta combinação só
quer dizer que ainda aí não tem existência um verdadeiro sistema de maquinaria, mas, ao contrário, o uso de máquinas
isoladas em operaçôes especiais do processo de trabalho. Esta inovação alterou toda a estrutura de emprego do trabalho
familiar, que vigia desde tempos remotos no sistema de colonato. O uso do trabalho humano vivo, não apendicular de um
sistema de máquinas, encolheu-se durante a maior parte do calendário agrícola, para voltar a concentrar-se maciçamente
em parcelas limitadas do tempo anual de trabalho. Nos períodos do calendário agrícola, em que estas forças de trabalho
mais fracas têm o seu emprego reduzido, elas devem ceder os seus postos às mais potentes. Tornam-se, então, absolutamente
sem valor as capacidades de trabalho pertencentes a mulheres solteiras e a adolescentes e crianças de ambos os sexos.
Pode-se avaliar o que esta situação representa para estes atores em grupos tão marcados pelo trabalho de
cada indivíduo como meio de existência. Esta situação só se reverte quando voltam a se empregar, o que em muitos casos
só vem a ocorrer fora da unidade familiar. Os mais jovens e as mulheres adultas solteiras são compelidos agora a buscarem
trabalho como serventes braçais na construção civil, na qualidade de empregadas nos serviços domésticos, empregando-
se como peões ou artífices na pequena indústria, ou ainda em trabalho manual não qualificado na indústria a domicílio, ou
também na própria agricultura, como apanhadores de algodão e de café, colhedores de laranjas e cortadores de cana.
Neste caso, da colheita agrícola, assim como nas atividades mais simples de plantio, estas capacidades de trabalho mais
fracas são as últimas que se reengajam e com os salários mais aviltados. A situação de carência material e moral a mais
constrangedora, que anteriormente era uma expressão periódica de crise, tornou-se em épocas mais próximas para esses
indivíduos uma condição geral de vida.
A conclusão que se tem de tirar, obrigatoriamente, é que não existe essa instituição do casamento in abstracto,
tão ao gosto de uma certa corrente norteamericana em sociologia, que seccionava as partes, quanto podia (e que não
poderia), desta atividade sensível de homens históricos, que é a “ação social”. Pois é impossível deslindar dos casamentos
a instituição da propriedade privada. Os casamentos, nesses grupos que estamos investigando, expressam a incorporação
possível de capacidades de trabalho in
dividuais a unidades singulares de cooperação caracterizadas por formas sociais de vida alienadas. Desvendar
por meio de um trabalho teórico as formas sociais alienadas desta cooperação é desvelar o que aos próprios personagens
concretos, portadores que são destas estruturas, aparece nesses modos encobertos.
A denegação dos valores sociais e dos direitos do indivíduo no casamento com rapto
Namoro e noivado, essa antecâmara do casamento, devem ser tomados, em sentido jurídico-sociológico,
como elementos objetivos do que os antigos apelidavam stipulatio, a saber a regra que possibilitava demanda em sentido
processual. Tão certo é este fato que o nosso Código Civil regulamenta obrigações na espécie na relação de noivado,
justamente pelo motivo que esta se tornou, em algum momento da história dos valores de nossa sociedade, uma promessa
cum causa, isto é, regulamentada por normas sociais, o que vale dizer sancionada.
No entanto, pela mera interveniência das vontades soberanas dos que dispõem do “poder” familiar, o noivado,
que é esta promessa de sociedade conjugal, solenizada nos costumes e mesmo juridicamente formalizada, pode ir se
metamorfoseando no seu oposto (e ir manifestando a partir daí a pele da promessa vulgaríssima que a recobre, devendo
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desde esse instante librar a sua ineficácia material pelo aforismo jurídico do “Ex nudo pacto, actio non nascitur” ).
De onde se deduz, como o fazem os próprios atores, que a mesma ordem da preferência implicada na regra
de patrilocalidade pode ir sendo violada impunemente. É assim que se deve entender a reação da mãe daquele jovem, que
referimos anteriormente, o qual, havendo consumado o rapto da noiva, foi viver com a família desta. A pobre mulher
sentia-se verdadeiramente esbulhada em uma pretensa expectativa de direito, que parecia pertencer-lhe ex vi lege neste
verdadeiro imbroglio. Mas, por outro lado, se o filho resolveu deliberar pela apropriação de seu próprio destino,
abandonando-a, o fez porque a moradia entre os familiares da jovem lhe punha à disposição uma “oportunidade”
personalíssima de, eventualmente, ir escapando à condição de mero assalariado, pelo ingresso no sistema de trabalho de
colono em lavouras de canas pertencente a uma usina de açúcar da localidade.
Estas adjudicações de indivíduos adultos a grupos familiares põem de manifesto uma reatualização de velhos
preceitos jurídicos oriundos do direito romano, como a manus e a alieni iuris, e mesmo ainda a pater patronus. Nas famílias
que estamos investigando, observa-se a existência de princípio equivalente à manus, pelo qual a mulher casada é posta em
posição formalmente idêntica à da antiga locus filii, que coloca
va as mulheres na posição de ‘’filha’’ (às vezes de fato neta) e serva da pessoa que eventualmente ocupasse a
posição de chefe do grupo. Já anotamos acima o poder discricionário do chefe dos grupos familiares de que nos ocupamos
sobre os ganhos pessoais de filhos, que se extende também aos de outros agregados, em geral parentes de terceiro e quarto
graus, indicando a existência reatualizada da antiga forma de patria potestas. Neste último caso, de agregados, revela-se a
reatualização do ancestral princípio romano da patronus.
A despeito da vigência destas formas reatualizadas de relações, que aparecem como normatizadas pelos
vínculos de natureza tradicional, estes grupos só se podem verdadeiramente compreender como um simulacro de
comunidades de pessoas e bens, sob o mando tradicional de um chefe, que por isso deveria deter o equivalente da antiga
patria potestas. A rigor não há como concluir que esta direção se fundamente em valores e normas sociais, que vinculem de
modo estável as distintas necessidades pessoais, historicamente determinadas, de todos os seus membros.
Na antiga sociedade romana os direitos, que regulamentaram questões de família, de um lado, originaram-se
de transferências de preceitos regulamentadores tradicionais, que regiam exclusivamente no âmbito da família, para a
esfera pública e, de outro lado, expressaram os cerceamentos dos poderes legais a certos abusos e excrescências da chefia
discricionária das famílias fundada na tradição. Mas, antes da existência destas instituições jurídicas, o grupo familiar
pautava-se por valores e normas sociais que emprestavam sustentação, enquanto base material-moral apropriada, a
sociabilidade específica desta comunidade histórica. Esta sociabilidade era o veículo pelo qual se fazia a incorporação de
todos os diversos membros ao grupo, inclusive os libertos sob o estatuto da patronagem.
Diverso é o modo de existência dos grupos familiares de trabalhadores rurais, que nos ocupa. Os esbulhos
que neste caso se praticam contra os patrimônios de alguns de seus partícipes — as mulheres e os agregados — indicam a
inexistência daqueles cimentos de tecido social, que dariam fundamento material-moral à forma específica de sociabilidade.
Na exata medida em que ao indíviduo nestas condições está vedado ter modo de existência fora da forma familiar de
cooperação econômica, a despeito da individualização formal das capacidades de trabalho, tais patrimônios pessoais se
afiguram como absolutamente necessários à existência individual quando uma força de trabalho se torna sobrante. Mas o
fundamento privado da forma da apropriação, aquela que se exerce no âmbito do grupo familiar, contradiz a possibilidade
de desenvolvimento de uma base material-moral, que dê modos de manifestação à individuação de seres livres e racionais.
Daí que, pelos caminhos tortuosos da reatualização dessas formas antigas da tradição, às misérias morais das velhas
estruturas se somem as que são próprias às novíssimas.
E para terminaar, se aqui se devesse agradecer às pessoas inumeráveis que viveram muitos destes dramas e me
acolheram co tamanha simpatia e tão imensa boa vontade, apenas poderia expressar que tudo aqui se relata foi trabalho edificado
aniamae huitus.
Tempo Social; Rev. Social. USP, S. Paulo, VOLUME 1(1) A R T I G O

EXPERIÊNCIAS DE MULHERES. DESTINOS


DE GÊNERO*
LOBO, Elisabeth Souza. Experiências de mulheres. Destinos de gênero. Tempo Social; Rev. Sociol. USP, S. Paulo, 1(1) 169-182, 1.sem. 1989.
RESUMO: O objetivo deste texto é refletir sobre a construção da experiência de operárias de uma indústria de
auto-peças de São Paulo, a partir de suas narrativas de vida. A análise de como as trabalhadoras pensam e representam
as circunstâncias de sua vida e de seu trabalho se faz a partir da descrição do trabalho na fábrica, de suas trajetórias
de vida e de suas trajetórias profissionais: o trabalho doméstico e o trabalho assalariado, as práticas familiares e a
carreira, as relações familiares e o trabalho, a migração e os projetos para o futuro. O fio condutor desta reflexão é a
interrogação sobre as condições de formação de uma experiência coletiva das operárias e sobre as formas de
representação desta experiência. Como conclusão, busca estabelecer relações entre estas experiências e a idéia de
destino, entre as práticas desenvolvidas na vida quotidiana e as representações que têm as operárias sobre si mesmas,
sobre suas vidas e sobre as mulheres.
UNITERMOS: Mulheres operárias: experiências e representações, histórias de vida.
* Este texto é o resultado de uma pesquisa realizada entre março e julho de 1986 em São Paulo, juntamente com Robert Cabanes (ORSTOM) e Marie
Agnés Chauvel. Foi apresentado na mesa-redonda internacional sobre “Rapports sociaux de sexe: problématiques, méthodologiques, champs
d’analyse” organizado pelo Atelier Production-Reproduction (APRE)/IRESCO/CNRS em Paris, novembro de 1987. Agradeço a Fundação
Ford e a Fapesp que apoiaram distintos momentos deste trabalho e aos diretores e funcionários desta empresa que se dispuseram a colaborar na
pesquisa.
** Professora do Departamento de Sociologia - FFLCH-USP.
1
Ver THOMPSON, E.P. A miséria da teoria. Rio de Janeiro, Zahar, 1981, p. 15.
2
Ver BARRINGTON MOORE JR. Injustiça. São Paulo, Brasiliense, 1987, p. 9.
3
Ver BARTHES, Roland. Introduction à l’analyse structurale des récits. Communications, Paris, n. 8, p. 1-27, 1966.
4
A fábrica B. situada num bairro industrial de São Paulo é uma empresa de porte médio, pertencendo a duas famílias de origem italiana. No
momento da pesquisa a fábrica empregava aproximadamente 700 empregados dos quais 20% eram mulheres. A empresa familiar se desenvolvera
com o milagre econômico dos anos 70, atravessara uma crise no início dos anos 80 e se beneficiava naquele momento de uma nova expansão. Os
locais da fábrica eram bastante precários e antigos: um grande galpão abrigava várias seções, pequenos galpões agregados completavam o
espaço onginal. No andar superior que contornava parte do local de trabalho com um corredor aberto, estavam pequenas salas para a
administração e a parte do refeitório e banheiros, num bloco fechado com vidros. Os escritórios dos técnicos estavam instalados no meio e ao
final do galpão principal. A produção da fábrica se centrava em auto-peças destinadas a algumas das principais montadoras da indústria
automobilística.
5
Ver os retratos em anexo.
6
Nas três narrativas, as observações de Bourdieu sobre a estreita relação entre probabilidades objetivas e aspirações subjetivas não se revelam
extremamente adequadas. Sobre isto ver BOURDIEU, Pierre. Esquisse d’une théorie de la pratique. Genève, Droz, 1972, p. 176.
7
Lembro as máquinas experimentadas pelas três operárias na fábrica B.: Luzia — tornos, furadeiras, fresas; Nair — prensas, furadeiras, fresas;
Belisa — soldadeiras, furadeiras, fresas.
8
As CIPAS - espécies de comissões encarregadas de fiscalizar a segurança no trabalho são formadas por membros indicados pelas chefias e direção
(50%) e eleitos pelos trabalhadores (50%). Na empresa B. funcionava uma só CIPA com 10 representantes. Conseqüentemente algumas seções
não estavam representadas na CIPA.
9
Ver HUMPHREY, John. The growth of female employment in brazilian manufacturing industry in the nineteen seventies. Journal of development
studies, 20 (3): 224-247. 1984.
10
Ver BORDIEU, Pierre. Esquisse d’une théorie de la pratique. Genève, Droz, 1972, p. 177.
11 Ver CHABAUD-RICHTER, Danielle; FOUGEYROLLAS-SCHWEBEL, Dominique; SONTHONAX, Françoise. Espaces et temps du travail domestique.
Paris, Librairie des Méridiens, 1985.
12
BOURDIEU, Pierre. Le sens pratique. Paris. ed. Minuit, 1980, p. 88.
13
Utilizo aqui o conceito de classe como define THOMPSON, E.P.: “E a classe acontece quando alguns homens, como resultado de experiências
comuns (herdadas ou partilhadas) sentem e articulam a identidade de seus interesses entre si e contra outros homens cujo interesses diferem (e
geralmente se opõem) dos seus”, in: A formação de classe operária inglesa. São Paulo, Paz e Terra, 1987, p. 10. (vol. 1).
14
Ver THOMPSON, E.P. A miséria da teoria. Rio de Janeiro, Zahar, 1981, p. 194.
15
Identidade está aqui empregada como cnstalização e reconhecimento de uma experiência comum. Apesar da complexidade do conceito, mantenho-
o porque é operatório para esta análise tratando de utilizá-lo na acepção de HABERMAS, Jürgen. La reconstrución del materialismo histórico.
Madrid, ed. Taurus, 1981, p. 22.
16
Ver BATTAGIOLA, Françoise. Formes de la mise en couple et itinéraires individuels. Paris CNRS, 1984.
17
Ver KERGOAT, Daniele. Les ouvrières. Paris, Le Sycomore, 1982 e VARIKAS, Eleni. La révolte des dames: genèse d’une conscience féministe dans la Grèce
du XIX siècle (1883-1908). Paris, 1986. Tese (Doutorado) defendida na Universidade de Pans Vll sob a direção de Mme. Michèle Perrot.

LOBO, Elisabeth Souza. Women’s experiences. Gender destinies. Tempo Social; Rev. Sociol. USP, São Paulo, 1(1): 169-182, 1.sem. 1989.
ABSTRACT: This text’s objective is to analyze the construction of women workers’ experiences in the São
Paulo auto-parts industry by examining their life stories. The analysis of how working women think and view their life
circumstances and their work is based upon their descriptions of work in the factory, of their life and professional trajectories:
domestic and wage labor, family practices and their careers, work and family relations, migration and future plans. This
text’s unifying thread is an examination of the formation of working women’s collective experience and of the images
resulting from that experience. In conclusion, it seeks to establish a relationship between those experiences and the idea of
destiny, as well as between the practices developed in daily life and the images women workers have of themselves, of
their lives, and of women in general.
UNITERMS: Working women: experiences and images, life histories.

Este texto é para Dona Luzia “que nunca conheceu a porta de um colégio
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porque não teve ‘direito’ ”.


Elisabeth Souza Lobo**
Introdução
O objetivo desta comunicação é de refletir sobre a experiência de três operárias, a partir de suas histórias de
vida.
Utilizei aqui o conceito de experiência tal qual foi definido por E. P. Thompson: “resposta mental e emocional
seja de um indivíduo ou de um grupo social a muitos acontecimentos inter-relacionados ou a muitas repetições do mesmo
tipo de acontecimento” 1. O conceito parece-me adequado na medida em que permite articular trajetórias e representações
das operárias, quebrando a dicotomia objetividade/subjetividade, que me parece levar sempre a um impasse, tanto nas
pesquisas que trabalham com histórias de vida, quanto naquelas que se pretendem “objetivas” e por consegüinte capazes
de separar a experiência real do imaginário vivido, a objetividade dos acontecimentos da subjetividade em que são vividos.
Refletindo sobre como trabalhadores e trabalhadoras “consideram e explicam as circunstâncias da sua vida”
e do seu trabalho2, procurei seguir as mesmas trilhas de Barrington Moore, colocando como questão articuladora da
pesquisa a problemática da dominação. E se toda a pesquisa, como toda narrativa é um agenciamento3, a construção de
um olhar, coloquei-me no ângulo da experiência da dominação, através da fala de três operárias. Voluntariamente renunciei
a qualquer preocupação de representatividade quantitativa ou a uma escolha de casos típicos. Estudei três experiências,
três respostas ao quotidiano do trabalho, à divisão sexual do trabalho, três itinerários individuais diferentes, reorganizados
em torno a dois eixos: 1) o trabalho; 2) a experiência do destino.
Como conclusão procurei estabelecer uma relação entre experiências e destino, entre as respostas dadas aos
acontecimentos vividos e as representações de Luzia, Nair e Belisa sobre si mesmas, suas vidas e sobre as mulheres.
O Trabalho
As três operárias cujas histórias de vida estão na origem desta reflexão: Luzia,
Nair e Belisa, trabalham numa indústria de autopeças4, na seção de usinagem, operando tornos, furadeiras e fresas.
A partir de suas narrativas, coloquei uma primeira questão: o lugar do trabalho nas suas experiências.
Luzia, Nair e Belisa trabalharam desde muito jovens, ajudando aos pais na agricultura, ou como assalariadas.
Continuaram a trabalhar para poderem educar seus filhos, o que fizeram e fazem praticamente sozinhas5. A relação ao
trabalho é não apenas permanente, mas determinante na organização de sua vida. A análise destas práticas sugere a
distinção de dois tempos: o tempo de trabalho ligado à sobrevivência, no campo ou em casa, no quotidiano, e, o tempo de
trabalho assalariado, que remete a um emprego e que produz a separação entre trabalho doméstico e o emprego em
termos de espaços e relações. Por outro lado, as diferentes práticas de trabalho se articulam, se superpõem e se impõem na
vida destas mulheres sem lugar para qualquer escolha. O trabalho doméstico faz parte da condição de mulher, o emprego
faz parte da condição de mulher pobre.
O trabalho doméstico não é dividido com o marido ou os filhos, mas entre as mulheres da família ou a ela
agregadas, estando na origem de migração das mais jovens que chegam a São Paulo para “ajudar” irmãs ou primas e por
seu lado chamam as mães, irmãs e primas para ajudá-las quando nascem seus filhos.
O trabalho assalariado tampouco é fruto de uma escolha: as mulheres não aprendem uma profissão, procuram
emprego através da rede familiar, dos amigos, ou simplesmente percorrendo as ruas dos bairros industriais em busca de
anúncios de emprego, de informações ou eventualmente da boa vontade de algum vigia que lhes apresente a “um chefe”.
A carreira, as mudanças de uma fábrica para outra, de um ramo industrial para outro, são determinados pelas oportunidades
do mercado de trabalho. Neste sentido, as trajetórias ocupacionais das três operárias são significativas:
Belisa — ajudante numa indústria plástica — numa metalúrgica — numa fábrica de bijouterias — soldadora na fábrica B.
— operadora de máquinas na mesma fábrica.
Luzia — costureira numa fábrica de móveis — soldadora numa indústria de material de telecomunicações — operadora de
máquinas na fábrica B. É ainda costureira a domicílio nas horas vagas e nos períodos de desemprego.
Nair — ajudante na fábrica B. há 9 anos, tendo percorrido várias seções: prensas, montagem. usinagem.
Nestes deslocamentos não há nenhuma possibilidade de “fazer carreira”. As três operárias desenvolveram
habilidades, saberes práticos que tornam possível trabalhar em funções diferentes sem nunca terem formalizado suas
competências. As funções ocupadas freqüentemente não correspondem às funções registradas na carteira de trabalho —
prática corrente na indústria brasileira. Tampouco os salários correspondem às funções. A grade de salários é variável
segundo critérios de antigüidade, para uma mesma função. Assim Nair é operadora, registrada como ajudante. Belisa foi
soldadora, tornou-se operadora, sempre registrada como ajudante mas ainda ganhando o adicional de salubridade que
corresponde à função de soldadora. Luzia é operadora. São todas polivalentes — tendo trabalhado em praticamente todas
as seções: montagem, usinagem, tornos, prensas, solda, pintura. Nunca trabalharam, no entanto, na ferramentaria.
A idéia de uma profissão se coloca para Luzia: reconhece a necessidade de um emprego fixo numa empresa,
mas preferiria ser costureira. Gosta de bordar e pensa instalar-se por conta própria depois da aposentadoria. Enquanto
isto, compra, experimenta, vende máquinas de costurar e quando possível costura à domicílio.
Nair e Belisa nunca tiveram uma profissão. Belisa fez o primeiro ciclo da escola secundária e examinou a
possibilidade de fazer um curso de datilografia, mas se dá conta de que seus estudos são insuficientes para chegar a uma
situação razoável num escritório e que finalmente, na produção, ganha mais do que uma simples datilógrafa. Elabora
rapidamente uma economia de suas possibilidades e necessidades para chegar à conclusão de que para ela, só um emprego
melhor pago seria interessante, tendo em vista suas obrigações familiares. Tem uma avaliação prática de suas possibilidades
e de seus conhecimentos, o que a faz excluir do campo do possível seu sonho de se tornar jornalista6.
Nair só pode comparar o trabalho agrícola que fez e o trabalho nas diferentes seções da mesma fábrica. Desta
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comparação conclui que já não pode suportar o trabalho no campo e afasta-o de seu universo possível.
Mas os projetos de carreira não existem para estas três mulheres. A possibilidade de escolher o seu trabalho
depende de alcançar uma situaçáo em que estejam garantidas as necessidades mínimas (a aposentadoria para Luzia); ou a
carreira permanece um sonho (Belisa) ou está completamente ausente dos projetos (Nair). As três mulheres têm no entanto
uma opinião muito precisa sobre o trabalho que fazem na fábrica.
Vejamos, em primeiro lugar, o que concerne à relaçáo com as máquinas, muito presente nas falas das operárias
e claramente associada a um sentimento de competência, de eficácia, de polivalência e mesmo de um relativo controle do
tempo de trabalho de cada uma. A relação com as máquinas começa por uma preferência pelas máquinas, em oposição ao
trabalho “manual” de montagem, considerado monótono. A montagem é talvez mais desvalorizada porque executada
exclusivamente pelas mulheres, enquanto que nas máquinas trabalham homens e mulheres. Também o conhecimento das
máquinas implica num saber prático, numa habilidade, num conhecimento adquirido. Daí a satisfação que proporciona,
em oposiçáo à monotonia da montagem de pequenos elementos, onde a habilidade parece natural e não um conhecimento
que se adquire, onde não se controla uma máquina.
Luzia declara que gosta das máquinas7, especialmente dos tornos, porque são violentos, perigosos e permitem
“terminar rapidamente o trabalho”, porque se produz a cada vez 1, 2, 3 mil peças. Ela as opõe às furadeiras, lentas e
monótonas, “em que o trabalho não rende porque é preciso fazer 14, 15 mil peças de cada vez”. É preciso distingüir aqui,
de um lado, a ilusão da velocidade relacionada com a quantidade de peças que é preciso fazer durante a jornada. Mesmo
sem variar a jornada de trabalho, uma quantidade de peças por fazer prolonga a sensação do tempo e a monotonia. Por
outro lado, há também um sentimento de satisfação relacionado com o domínio da máquina e o controle do torno,
considerado mais importante. A mesma satisfação aparece na fala de Nair que prefere as grandes prensas “porque são
práticas e rápidas, ajudam...” mesmo sendo perigosas.
É preciso considerar que as representações da divisão sexual do trabalho presentes nas falas de Luzia, Nair e Belisa
estão provavelmente marcadas pelo fato de que as três fazem tarefas que também os homens fazem. Elas não
vêem diferença entre homens e
e mulheres no que diz respeito às capacidades de cada um(a). Acreditam que as mulheres são capazes de fazer o que
fazem os homens “quando querem”. Nair diz: “aqui as mulheres fazem tudo, já vi mulheres em todas as máquinas, salvo
no torno maior”. Se as disposições biológicas não parecem inquestionáveis, as disposições “da vontade” parecem ser mais
importantes: os homens seriam (e são) capazes de operar as furadeiras e fresas, à condição de “quererem trabalhar nelas”.
Os argumentos não são naturalizados, a divisão sexual do trabalho é percebida como uma construção histórica e como
uma relação de submissão/resistência. Os homens não trabalham em algumas máquinas porque não gostam, porque trabalham
mal são considerados incompetentes para operá-las. As mulheres também podem trabalhar em qualquer máquina, desde
que queiram. Esta visão da divisão sexual do trabalho tem certamente a ver com a história local da empresa onde o caráter
informal e não planejado da gestão parece ter favorecido a intercambiabilidade das tarefas entre operários e operárias,
mesmo se as mudanças nos padrões da divisão sexual do trabalho — que exclui as mulheres das grandes prensas e lhes
reserva o trabalho nas furadeiras, fresas — foram datadas e provisórias. Através das diferentes narrativas, as modificações
nos padrões tradicionais foram assinaladas. As mulheres efetivamente trabalharam nas grandes prensas ao lado dos homens,
na solda, na pintura e decapagem — o que já não fazem mais de maneira sistemática (há no entanto uma mulher que
permaneceu na sessão de pintura fazendo o trabalho mais artesanal). Os argumentos que justificam a volta aos modelos
tradicionais remetem a várias ordens de questões:
1. Na fala das chefias, o trabalho nas prensas é considerado muito perigoso e pode provocar mutilações que são
duplamente dolorosas para as mulheres, na medida em que os defeitos físicos prejudicam não apenas suas
capacidades para o trabalho mas paralisam sua aparência física, o que para as mulheres é muito importante.
As operárias, de seu lado, não falaram em medo de acidentes, enquanto que os contramestres e supervisores
mencionavam freqüentemente reações nervosas das mulheres que não podiam mais ouvir o ruído das prensas
depois de terem sofrido algum acidente. Para as operárias, a decisão de não mais empregar mulheres na estamparia
era atribuída a uma política de gestão da diretoria de ordem não humanitária.
2. As mudanças na divisão sexual do trabalho nas outras seções de solda. decapagem, pintura, eram atribuídas às
pressões sindicais, na medida em que o trabalho nestas seções é considerado insalubre. Esta era uma versão das
operárias e seus chefes. No entanto, na fala de um contramestre da seção de solda era visível sua insatisfação face
à performance de algumas mulheres que iam com demasiada freqüência aos banheiros, ficavam lá muito tempo
conversando, etc. Esta insatisfação poderia estar perfeitamente na origem da transferência das mulheres, pois a
insalubridade não expulsara algumas mulheres da seção de decapagem nem da pintura. Por outro lado, a presença
do sindicato na fábrica inexistia e sabia-se que as tentativas de reforçar a militância sindical haviam sido controladas
pela direção e os ativistas afastados. A CIPA8 não tinha nenhuma autonomia, seus membros não dispunham de
tempo para exercer fiscalização e segundo algumas falas mais ousadas “não faziam nada”. O argumento da
insalubridade para justificar o afastamento das mulheres parecia ser mais um pretexto para justificar decisões que
remetiam às relações entre chefias e operárias.
3. O trabalho das mulheres nas seções masculinas pode também ser explicado por fatores conjunturais: a expansão
do emprego industrial em São Paulo9 e a escassez de mão-de-obra no período do boom industrial em São Paulo.
Este fator se articula ao de uma cultura de empresa em que a informalidade do recrutamento, das relações e
organização do trabalho privilegiam o recrutamento através de redes familiares e arranjos pessoais na formação
das seções e uma improvisação generalizada, para a qual contribuía a ausência de formação profissional entre as
chefias.
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Os vários argumentos parecem-me reforçar a hipótese da sexualidade das relações de trabalho e da articulação
trabalho/gênero nas situações que vivem operários e operárias na fábrica. As tarefas e as ferramentas não são vistas como
sexualizadas. Mas os cargos, estes sim o são. Mesmo quando as três mulheres insistem no fato de que elas são capazes de
fazer tudo o que fazem os homens e observam que estes não são muito hábeis para determinadas tarefas, elas explicam
que os homens não querem aprender justamente porque se tratam de tarefas penosas. Os homens podem se recusar alguns
constrangimentos. Homens e mulheres podem resistir quando querem. A resistência masculina é descrita como uma
afirmação de poder, a das mulheres como negligência, irresponsabilidade, falta de interesse.
Na fala das mulheres, as relações com os homens aparecem marcadas pela diferença ou pela distância
hierárquica. As duas atitudes favorecem uma relação de respeito, enquanto que as relações entre as mulheres se estabelecem
em situações de
promiscuidade, de igualdade mas também de competição, favorecendo os ciúmes, as “fofocas”. As falas insistem em que
as mulheres “não se respeitam”, quando uma trabalha melhor é criticada pelas companheiras por estar querendo “agradar”.
As mulheres são extremamente divididas entre elas. Assim, as três operárias não gostariam de ter uma chefe mulher,
mesmo tendo uma delas uma irmã que é contramestre. Também afirmam preferir as seções com maioria de homens e
acreditam que os chefes homens são mais compreensivos com as mulheres, “mais respeitosos”.
Observando os movimentos na seção em que Belisa, Nair e Luzia trabalham e analisando seus itinerários
pessoais, talvez seja necessário salientar o papel das relações de negociação entre homens e mulheres nas relações de
gênero. As mulheres negociam pequenas vantagens a partir de uma situação de inferioridade, os homens desempenham
um papel de superiores. Na medida em que “se viram”, Luzia, Nair e Belisa negociam a partir de uma situação que as
distingue das outras mulheres. A hierarquia que aceitam é negociada, trata-se de uma hierarquia sexuada, logo submetida
a regras próprias de negociação. A superioridade dos homens é considerada inevitável. A superioridade das mulheres não
é a regra, logo pode ser recusada. Tratar-se-ia de uma dupla negação, de uma recusa do recusado? 10 A hipótese me parece
válida desde que articulada com a experiência lestas mulheres, como resposta às situações e acontecimentos que marcam
as relações entre os gêneros, onde a hierarquia é clara e definitiva no que diz respeito às posições das mulheres face aos
homens, enquanto que as posições das mulheres entre si têm a falsa aparência de uma igualdade quebrada pela concorrência
nas situações de trabalho, pelas diferenças de salário aleatórias, pelas pequenas vantagens cuidadosamente silenciadas e
tendo que ser renegociadas sob a forma de relações pessoais. De fato, tudo se passa como se existisse uma identificação e
gênero (nós as mulheres, eles os homens) nós somos iguais entre nós é preciso negociar nossa singularidade numa relação
com eles que são diferentes e que tem uma outra posição na fábrica. Isto como se cada homem fosse um operário face às
mulheres indistintas e precisando negociar sua singularidade. A aceitação e o reforço da hierarquia não tem no entanto
uma conotação de incapacidade pessoal para Luzia, Nair e Belisa, cujos itinerários têm um aspecto comum: só podem contar
consigo próprias.
Para analisar as articulações entre os discursos sobre as práticas de trabalho e as narrativas de itinerários pessoais,
destaquei alguns pontos comuns. Primeiramente as três mulheres são casadas, ou foram casadas. Mas o marido de Luzia
abandonou-a onze anos depois do casamento, deixando-a só para sustentar seus cinco filhos, grávida de
mais outro; o marido de Belisa está na prisão e teve constantes problemas com a política; o marido de Nair “não conta”,
está desempregado, bebe e não a ajuda a criar seus filhos. As três mulheres se consideram capazes de sobreviver sós, mas
compartem um destino de mulheres construído pela família, os filhos para cuidar, enquanto que os homens não parecem
ter um destino, seus caminhos podem ser feitos e refeitos. Esta é a fala de Luzia. Foi escolhida por seu marido, o que era
natural pois sendo mulher, ela deveria ser escolhida, acompanhar seu marido e liberar o tio que a criara do encargo que
isto representara. O marido partiu para São Paulo e ela o acompanhou. Foi preciso trabalhar, nasceram as crianças. O
marido tinha outras mulheres, era natural, ele tinha sua liberdade. O marido deixou-a, ela ficou com os filhos para criar.
Na sua fala, sua vida está ligada à família, ao marido, aos filhos. A figura do marido é inevitável, faz parte do seu destino
enquanto mulher.
Na elaboração desta idéia de destino relacionada à experiência das mulheres, outros componentes são
importantes, e, em particular, o trabalho doméstico. As narrativas de Luzia, Nair e Belisa remetem a uma divisão do
trabalho doméstico muito rígida, enquanto trabalho das mulheres. “Meus irmãos não ajudam nunca, eles trabalham,
comem e dormem” (Belisa). Os filhos de Luzia tampouco ajudam na casa. A desigualdade na divisão das tarefas é vivida
como uma relação natural, que os homens podem mudar quando querem, conservando sempre a possibilidade de escolha,
de decisão. Luzia acredita que um homem deveria saber preparar “pratos especiais”, “os pratos de domingo”. Assim, a
escolha e a criatividade está reservada aos homens; às mulheres cabe a rotina.
Por outro lado, o trabalho doméstico, naturalizado e invisível se distribui no interior da rede familiar, restrito
à rede feminina em que as gerações se sucedem nas mesmas funções 11. A trajetória de Nair é exemplar: chegou a São Paulo
para cuidar dos filhos de sua irmã, alguns meses depois começou a trabalhar. Quando seus filhos nasceram, ela, por sua
vez, chamou uma prima que mais tarde por seu turno começou a trabalhar numa fábrica, enquanto que os filhos de Nair
são agora cuidados por uma outra moça mais jovem e também migrante. Os itinerários no interior das famílias e das
comunidades regionais tecem uma malha que articula os ciclos de vida familiar às gerações e às migrações. As articulações
se reproduzem depois ao nível do emprego, das empresas, dos espaços urbanos, criando movimentos de construção,
reconstrução e desconstrução dos grupos familiares, dos grupos regionais.
A experiência do destino
Nas narrativas das três operárias há um ponto em comum que unifica suas trajetórias: a ídéia do destino.
Foi o destino que casou Luzia e que a fez partir para o Sul. É o destino sob a forma da necessidade que está
embutido no trabalho doméstico como no trabalho assalariado. O trabalho, o casamento, a maternidade se sucedem
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naturalizados como os ciclos da natureza. Luzia explica que foi escolhida pelo marido, porque era o momento. O casamento
e a maternidade ocorrem nos itinerários de Nair e Belisa confundidos à necessidade de sobreviver. E sobreviver significa
“não pensar”. “Penso pouco, porque... para que serve pensar?”, diz Nair. “Deixei-me levar pelo trabalho, as crianças,
quando pensei em mim, quando me acordei, quando descobri, já era tarde”, disse Luzia. O sentimento de se abandonar
diante das necessidades, de um ritmo de viver “tão rápido” (Luzia) se tornou um hábito12 identificado ao trabalho. Trabalhar
é um hábito que Luzia opõe ao de estudar e que estabelece a distância entre “nós trabalha, que nós tamo acostumada a
trabalhar, nós só não trabalha em qualquer serviço se nós não tiver a boa vontade, a força de vontade”, “se você não tem
vontade de estudar você não consegue estudar, né? E que nem nós”.
Na fala de Luzia o trabalho é um hábito integrado a seu ser, que a define em relação aos outros, aos que
estudaram, por exemplo. Ao estudo ela diz que não teve direito porque era mulher pobre e o tio que a criou acreditava que
“mulher aprendia a ler era prá escrever prá os homens”. Seu destino era trabalhar. Por outro lado, é o trabalho manual que
define sua identidade de classe13. Luzia fala longamente sobre nós “que faz o trabalho pesado”. Comentando as novelas de
televisão, diz “é com gentes altas. Nós não temos esse direito. Eles querem aquelas pessoas que entende muito de leitura, né
? Entende muito de... como se diz? De música, de essas coisa assim, né? Da vida deles mesmo. Quer dizer que nós só entende
do martelo prá trás, né? Do martelo prá frente nós não entende nada”. E dirigindo-se aos pesquisadores, ela observa: “Com vocês
eu sei que eu não posso trabalhá que eu não tenho leitura. Não dá”.
A identidade, o universo possível, a vida, são claramente definidas a partir do trabalho manual em oposição
ao estudo, ao trabalho intelectual. Restaria a explorar em que medida esta representação do trabalho manual integra para
as mulheres as formas do trabalho doméstico, diferenciando-se assim das representações masculinas do trabalho manual.
Mas se por um lado a resposta que Luzia elabora à repetição das práticas de trabalho nas suas situações de
vida, faz de sua experiência um destino, por outro lado, o trabalho representa também o espaço da resistência que se opõe
ao aniquilamento, ao embrutecimento que ela identifica na sua vida e na vida das mulheres. Ela explica “uma mulher que
não trabalha é um monte, ...a pessoa que não trabalha tá amontoado. Ele não tá se explicando”... “Aquela pessoa que
trabalha, ela tá vendo o que tá se passando, ela tá vivendo dia por dia, hora por hora, né? Quer dizer que a pessoa que não
trabalha, ela só se dedica em comer, dormir, vestir e lavar alguma roupa. A mulher, né?... E nós que trabalha, nós tamo
vendo o que se passa... Nós tamo sabendo que nós tamo fazendo uma coisa, um projeto prá nossa vida!”
Sua resposta à vida de trabalho, que é a sua, integra várias dimensões: em primeiro lugar o trabalho por ser
inevitável aparece como parte de um destino imposto mas que pode ser dominado. Luzia viveu seu destino, dominou-o
sozinha, “se virou” como repete freqüentemente. Sua narrativa insiste na solidão, no fato de que só podia contar consigo
mesma uma vez que o marido abandonou-a. Por outro lado através do trabalho ela se sente “vendo o que se passa”
diferente de “um monte”. Reserva assim um espaco de ação e de controle sobre o destino que aparece também nos projetos
que tem, nas máquinas de costura que compra e vende, nos tornos que ela gosta de dominar, fazer funcionar. Seu espaço
de ação autônoma aparece também quando decide aceitar a separação do marido. Ela que aceitara tudo, mesmo que ele
tivesse outras mulheres, só não aceitou ser a única que trabalhava, tornar-se “escrava” das outras. Assim a experiência do
destino se faz também por rupturas e resistências.
Um terceiro aspecto de sua fala sobre o trabalho reside na construção de uma identidade que associa “nós as
mulheres que trabalhamos”, e “nós as pessoas que trabalhamos” diferenciando as mulheres que não trabalham. O trabalho
está aqui na raiz de uma identidade comum entre mulheres. O trabalho não é apenas um instrumento para ganhar a vida
mas articula uma identidade de mulheres trabalhadoras.
As narrativas de Belisa e Nair, ao contrário são unívocas e lineares. Em suas falas os projetos individuais não
aparecem, apenas a experiência que não integra o valor da resistência, como se ainda não tivessem experimentado este
valor no hábito de viver, tanto na família, quanto no trabalho e na comunidade imediata 14.
Algumas conclusões
É a partir da experiência de Luzia e de suas colegas que coloco algumas reflexões sobre as relações entre
experiências, identidades, destino e dominação15.
Em primeiro lugar a experiência no feminino se traduz na fala de Luzia de uma forma contraditória como
destino e resistência. Em segundo lugar, esta experiência é percebida como uma repetição de condições e fatos comuns às
outras mulheres (conforme o texto citado de E. P. Thompson).
Diz Luzia: “uma mulher é uma peça fina. Não é qualquer uma pessoa que pega uma mulher, que sabe o que uma
mulher necessita. É um espírito humano. Mais humano do que o homem... Porque eu falo isso prá voces não é por causa de
leitura que eu não tenho. Eu falo isso pela minha carne, por mim mesmo.” Aqui a experiência individual se descobre
coletiva e identifica nós as mulheres face aos homens configurando ao mesmo tempo uma identidade e uma experiência de
gênero.
Ao mesmo tempo, esta experiência é vivida como destino, como uma trajetória pré-fixada, que no entanto
é preciso “saber levar porque se a gente não sabe ela leva a gente, né?”
Luzia elabora uma relação contraditória entre um sujeito e seu destino, uma mulher que se debate com seu
destino de mulher.
Nas narrativas de Nair e Belisa, a identidade, o reconhecimento de experiências comuns, os espaços de
resistência permanecem menos visíveis, não formulados. Cada uma vive seu destino individual mas que é identificado
com um destino de mulheres16.
Todas elas também identificam as práticas e hábitos cotidianos de pobres e ricos, dos que trabalham face aos que
controlam. Os destinos de uns, as decisões de outros. Luzia descreve detalhadamente os defeitos do apartamento que com
sacrifício, comprou em um conjunto da COHAB: “tão pequenino, uma tristeza”... “eles deveriam ter feito a área de serviço,
Tempo Social; Rev. Social. USP, S. Paulo, VOLUME 1(1) A R T I G O

né?... Por exemplo uma sala melhor, mais grande. Aquele banheiro mais escondido, né?...” Ela tem idéias sobre o que seria
uma melhor disposição das peças, mas avalia suas possibilidades e conclui: “Pobre é aquela dureza. Tem que ir aonde o rico
quer, né?” Também Belisa observa que trabalha mas não sabe, que quem faz as peças não as conhece, nem sabe para que
servem. “Mas deveria saber, né? Mas a firma funciona dessa maneira, a gente não pode mudar, né?”
A idéia de uma ordem imutável na fábrica como na vida, a idéia de um destino tem a mesma origem nas
práticas quotidianas e dá sentido à experiência como resposta a estas práticas que se repetem, individualmente e
coletivamente.
As narrativas de Luzia, Belisa e Nair permanecem como falas individuais, traduzem experiências individuais
mas remetem a uma experiência coletiva17 do grupo de mulheres nos vários espaços de vida quotidiana, dentro e fora da
fábrica, no trabalho doméstico e no emprego. A experiência vivida da dominação aparece nas suas falas como destino.
ANEXO: As personagens
Belisa — 27 anos, nascida em São Paulo, completou estudos de primeiro ciclo. O pai era operário numa
fábrica de produtos alimentares. Casada com dois filhos de 3 e 4 anos, vive com a mãe e cinco irmãos. O marido está na
prisão.
Luzia — 42 anos, nascida no interior da Bahia. Sem pai, a mãe morreu quando ela tinha 3 anos, foi criada
por um tio. Trabalhou no campo. Casou-se aos 14 anos e foi para São Paulo. Com 24 anos, cinco filhos e grávida seu
marido abandonou-a. Tem dois filhos que moram em Brasília, dos quais pouco sabe, uma filha casada em São Paulo e
três filhos que vivem com ela. Nunca estudou, sabe apenas escrever o nome e ler um pouco.
Nair — 34 anos, nasceu no Piauí. Veio para São Paulo com 25 anos para cuidar dos filhos de sua irmã. Alguns
meses depois empregou-se na fábrica B. como ajudante. Tem dois filhos de 2 e 4 anos. Pediu para não falar no marido que
estava desempregado, mas que recomeçara a trabalhar como ferroviário dois dias antes. Vive com o marido, uma
prima, também operária, uma menina para cuidar das crianças. A mãe vive ainda no Piauí onde Nair visita-a às vezes.
Não conheceu o pai e estudou pouco, não mais do que dois anos.
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AS MULHERES E AS NAÇÕES UNIDAS:


AS LINHAGENS
DO PLANO MUNDIAL DE POPULAÇÃO*
Carmen Barroso**
BARROSO, Carmen. As mulheres e as Nações Unidas: as linhagens do Plano Mundial de População. Tempo Social; Rev.
Sociol. USP, S. Paulo, 1(1): 183-197, 1.sem. 1989.
RESUMO: Nos anos 70 a ONU passou a dar uma definição mais ampla aos direitos da mulher e a adotar uma
política de “integração da mulher ao desenvolvimento”. Um marco divisório da emergência desta questão nos fóruns
intergovernamentais foi a Conferência Mundial de População promovida pela ONU em 1974 quando, no bojo de uma
redefinição dos problemas demográficos no contexto econômico e cultural e de uma reafirmação do caráter político da
questão populacional, passa-se a enfatizar a necessidade de promover a participação da mulher na vida social, econômica,
cultural e política. O artigo analisa as duas linhagens de pensamento — a do controle da natalidade e a desenvolvimentista
— que estão na raiz da preocupação com a questão da mulher que, de fato, vinha crescendo no âmbito da ONU desde o
final dos anos 60.
UNITERMOS: Mulheres — Nações Unidas: direitos da mulher; política populacional; controle da natalidade;
mulher e desenvolvimento.

A Organização das Nações Unidas tem tido um papel central nos esforços institucionais para a eliminação da
discriminação contra a mulher. Nas últimas décadas atra
vés de conferências, resoluções, assistência técnica e apoio a projetos, a ONU contribuiu bastante paIa divulgar informações
sobre a posição subordinada da mulher em diferentes sociedades.
A Carta das Nações Unidas, assinada em 1945, já incluía o princípio da igualdade entre os sexos1. Desde 1948
reúne-se regularmente a Comissão sobre a Condição da Mulher, cujo braço executivo junto à Secretaria Geral é o Branch
for the Advancement
of Women2. Mas foi só nos anos 70 que as mudanças nas condições sociais em todo o mundo levaram os órgãos da ONU
a uma definição mais ampla dos direitos da mulher e a tentativa de traduzir os princípios em políticas. Nas décadas
anteriores “igualdade” significara principalmente direitos políticos e civis; nos anos 70 reconheceu-se o papel econômico
da mulher e questionou-se a divisão sexual do trabalho; a preocupação anterior com a igualdade legal cedeu lugar a uma
nova senha: a integração da mulher ao processo de desenvolvimento.
Essas mudanças foram o resultado de várias forças sociais, uma das quais foi o lobby criado em torno da
preocupação com o aumento populacional e a esperança de que as taxasBARROSO, Carmen. Women and the United
Nations: the lineages of the World Plan of Population. Tempo Social; Rev. Sociol. USP, São Paulo, 1(1): 183-197, 1.sem.
1989.
ABSTRACT: In the 70’s the United Nations adopted an enlarged definition of women’s rights and started the
implementation of a policy of “integration of women into the development process”. The 1974 World Conference on
Population sponsored by the UN was a landmark in the history of this issue within intergovernmental foruns. In the wake
of a redefinition of demographic problems within the context of economic and cultural development and of the restatement
of the political character of the population question, a new emphasis is given to the need to promote the participation of
women in social, economic, cultural and political life. This article analyzes fertility control and development — the two
issues that resulted in the lineages of thought at the root of the concern with women’s status and roles which was slowly
growing within the UN since the late 60’s.
UNITERMS: Women — United Nations: women’s rights, population policy, fertility control, women and
development.

* Essa pesquisa foi realizada durante licença da Universidade de São Paulo e da Fundação Carlos Chagas. Foi possível graças a uma bolsa de Pós-
Doutoramento da Fullbright, e o trabalho foi desenvolvido como pesquisadora visitante junto ao International Population Program da Cornell
University. Agradeço também aos delegados e funcionários(as) da ONU, desde o subsecretariado aos mais baixos postos profissionais, assim
como a vários membros de organizações não-governarnentais, que generosamente me concederam longas entrevistas. Como alguns deles pediram
para não serem identificados, segui essa regra para todos mas embora não possa nomeá-los, sua contribuição é inestimável. O presente artigo
corresponde à parte inicial da investigação, que também abrangeu a análise das fontes de financiamento e a política interna de organismos da
ONU.
** Professora do Departamento de Sociologia — FFLCH-USP.
1
O preâmbulo da Carta afirma: “Nós os povos das Nações Unidas determinamo-nos a reafirmar a fé nos direitos humanos fundamentais, na
dignidade e valor da pessoa humana, nos direitos iguais de homens e mulheres e de nações grandes e pequenas...”. O artigo 1 (3) define um dos
quatro objetivos da organização: “Obter a cooperação internacional para resolver problemas internacionais de caráter econômico, social,
cultural ou humanitáno, e para promover e estimular o respeito aos direitos humanos e liberdades fundamentais para todos, sem distinção de
raça, sexo, língua ou religião’’. O artigo 55 tem uma posição de destaque no esquema total da Carta para a promoção da cooperação econômica
e social e do respeito aos direitos humanos: afirma que estes devem ser promovidos pela ONU como condição que favorece a paz internacional.
Para o caso de dúvida quanto ao âmbito da palavra “humanos”, a frase é repetida, “sem distincão de raça, sexo...” A precisão do significado
da palavra “direitos” veio anos mais tarde, em 1948, com a Declaração Universal dos Direitos Humanos. Além da preocupação com a igualdade
no mundo em geral, a delegada do Uruguai conseguiu introduzir, vencendo fortes resistências, uma provisão para impedir a discriminação
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dentro do próprio sistema da ONU. Foi assim introduzido o artigo 8: “A ONU não imporá restrições à eligibilidade de homens e mulheres
para participar (...) em condições de igualdade em seu órgão principal e nos subsidiários. Redigida na negativa, representa um retrocesso em
relação à Convenção da Liga das Nações que estipulava que “todos os postos, inclusive o Secretariado, devem ser acessíveis igualmente a
homens e mulheres”. Alguns delegados argumentaram que isso poderia restringir a liberdade de países membros ao escolher suas delegações.
(Para um extenso comentário sobre a Carta da ONU, ver Goodrich et alii, 1969). A distância entre os princípios e sua implementação, como se
vê, é grande tanto na sociedade quanto na Organização... (ver Rogers, 1979).
As versões preliminares da Carta, preparadas antes da Conferência de São Francisco (que elaborou a Carta) não mencionavam a igualdade entre os
sexos. Seus redatores justificaram a omissão alegando que, a esse respeito, ainda não poderia haver acordo. Mas incluíram a proibição da
discriminação racial, embora isto apresentasse evidente contradição com as leis segregacionistas norte-americanas.
Foi na Conferência dos Estados Americanos, realizada na cidade do México em 1945, que se aprovou uma resolução pela abolição de toda
discriminação de sexo. Também se recomendava que os governos previssem a cooperação de mulheres na formação de suas respectivas delegações
a conferências internacionais, inclusive a de São Francisco (Russell, p. 568).
2
Em São Francisco, uma proposta para criar uma comissão sobre a condição feminina foi apresentada pela delegação brasileira e apoiada pela do
México e da República Dominicana — três governos que tinham incluído mulheres em suas delegações. As delegadas americanas e chinesas
argumentaram que, “em última instância”, a eliminação da discriminação contra as mulheres devia ser tarefa da Comissão de Direitos Humanos.
A delegada brasileira, a eminente feminista Bertha Lutz, pleiteou veementemente que a composição da comissão fosse exclusivamente feminina.
Sua insistência parecia prever o evento de que foi vítima 30 anos mais tarde, quando era membro da delegação brasileira à Conferência das
Nações Unidas do Ano da Mulher e o chefe da delegação não lhe permitiu que usasse da palavra.
As memórias de Virginia Gildersleeve, reitora do Barnard College e única mulher na delegação americana, são esclarecedoras do tipo de
ideologia prevalecente nos EUA àquela época. Escrevendo em 1954 sobre suas lembranças de São Francisco em 1945, reconhece candidamente
que teve de enfrentar a suspeita inicial de pelo menos um colega da delegação, era tratada de ‘minha querida garota’ pelos colegas da Universidade
de Colúmbia (apesar dos seus óbvios 68 anos então!), tinha sido designada para a delegação porque as organizações de mulheres tinham
pressionado pela inclusão de uma delegada, era a única em meio a sete homens, eles a designavam para os comitês em que não estavam
interessados, e ainda consideravam irrelevante que ela discutisse com eles as decisões que deveria tomar naqueles comitês. Apesar de tudo, ela
diz que pensava ter “o velho feminismo militante se acabado”, e se surpreendeu de encontrá-lo entre as pouquíssimas delegadas, especialmente
na Dra. Bertha Lutz do Brasil e em Jessie Street, consultora da delegação australiana. Em suas palavras “talvez, nesses países atrasados, onde as
mulheres não votam e não têm mesmo quase direito algum, o feminismo espalhafatoso ainda seja necessário...” (p. 353). Isso até pode soar
irônico hoje, quando as feministas do Terceiro Mundo às vezes são criticadas por aderirem a uma ideologia tida como mais adequada a mulheres
de classe média dos países industrializados. Também é curioso que, ao se opor à Comissão da Condição Feminina, a simpática senhora tenha
recorrido a um argumento que ainda hoje é usado por feministas que temem a criação de guetos e o “tokenismo”: ela argumentou que, se as
mulheres fossem segregadas em uma comissão, os homens as manteriam fora de outras comissões e grupos com o álibi de que elas teriam seu
espaço em sua própria comissão.
3
Jason L. Finkle e Barbara B. Crane (1975) fizeram uma excelente análise da política da Conferência. É a eles que devo a sugestão da dupla
ascendência das idéias que emergiram no Plano, o que desenvolvo adiante.
4
Por exemplo, a Declaração Internacional do Meio Ambiente Humano aprovada em Estocolmo em 1972 continha raras mudanças em relação à
proposta onginal feita pelo Secretariado (Finkle e Crane, 1975). Em Bucareste, a confrontação foi tão intensa que, ao final, um senhor que era
líder no campo da população estava quase em lágrimas, lamentando que tudo aquilo por que trabalhara durante 25 anos tinha sido traído “com
essa história de ficar cedendo tudo ao pessoal do desenvolvimento” (entrevista pessoal).
5
Entre as diferenças que ele menciona há uma de particular interesse: enquanto a “comunidade internacional” enfatizara o planejamento familiar
como um instrumento demográfico, o Plano o justificou por razões de saúde e direitos humanos.
6
O movimento pela regulação dos nascimentos começou na Europa e nos Estados Unidos no século XIX. Representava tanto um sintoma quanto
uma causa das grandes mudanças sociais nas relações entre os sexos (Gordon, 1976). Em 1905, o presidente dos EUA, Theodore Roosevelt,
condenou a regulação dos nascimentos como um sinal de decadência moral . As mulheres que evitavam ter filhos, segundo ele, eram “criminosas
contra raça” e “objeto de repugnância e desprezos das pessoas sadias”; ele comparava “a obrigação reprodutiva da mulher ao dever do soldado”.
A defesa feminista recorreu a todo tipo de argumento; e Susan B. Anthony inclusive alegou o perigo de superpopulação, idéia pouco aceita
numa época em que o temor generalizado era de uma queda na taxa de natalidade (Gordon, 1976, p. 136 ff).
Foi só em 1914 que surgiu nos EUA um movimento de massa pregando a regulação dos nascimentos como uma luta revolucionária. A maternidade
involuntána era vista como levando tanto à sujeição da mulher quanto ao enfraquecimento da classe trabalhadora. A líder anarquista Emma
Goldman, ex-parteira (e que não conhecia então método anticoncepcional algum), tendo participado de um Congresso néo-malthusiano secreto
em Paris em 1900, resolveu incluir o tema da regulação dos nascimentos em seu programa de conferências pelos EUA (Goldman, 1931, p. 86,
552). Como a anticoncepção era considerada obscena e proibida por lei, Emma, Margaret Senger e outras foram presas por sua tática de ação
direta (Sanger, 1931, 1938). Entretanto na Inglaterra a anticoncepção era acessível através das clínicas do sistema governamental (Sanger, 1931).
Referindo-se à relação entre o movimento pela regulação dos nascimentos e os controlistas da população, Stycos (1971, p. 19-20) escreveu:
“Durante décadas, pequenos grupos de mulheres corajosas têm insistido em que o bem-estar físico e social da mulher depende da sua capacidade
de regular racionalmente o número e espaçamento da prole. Essa insistência tem recebido o pequeno grau de atenção e respeito normalmente
conferido a grupos de mulheres corajosas nos Estados Unidos. Mas ao mesmo tempo, um pequeno grupo de homens de negócios, menos
barulhentos e mais influentes, começaram a se preocupar com as implicações econômicas e políticas do crescimento da população mundial,
especialmente o das áreas subdesenvolvidas. Entre outras coisas, esses senhores temiam a fome, intranqüilidade, guerra e comunismo. Embora
os meios buscados pelos dois grupos coincidam, os objetivos visados e os modi operandi são completamente diferentes... Os dois grupos se
evitam mutuamente, mas quando são postos lado a lado em alguma conferência internacional, olham um para o outro com uma mescla de
suspeita e desejo de exploração...”
7 GA Resol. 1838 (XVII).
8
Estudo sobre a Inter-relação entre a Condição Feminina e o Planejamento Familiar. E/Conf. 60/CBP/11/Add. 2; 19 junho 1974. E; A Condição
Feminina e o Planejamento Familiar. E/CN. 6/575/Rev 1; 1975.
9
Ver o Documento da ONU ST/ESA/SERA/57 p. 715.
10
The Population debate: dimensions and perspectives. Papers of the World Population Conference V. II.
11
GA Resol. 2716 (XXV).
12
Ver principalmente Huntington (1976) e Beneria & Sen (1982).
13
Na bibliografia sobre mulher e desenvolvimento, preparada por Buvinic em 1976 para um projeto da American Association for the Advancement
of Science (Tinker et al., 1976) estão listados 27 documentos elaborados pelas Comissões Regionais Econômicas, FAO, UNESCO e UNICEF.
Todos forarm escritos nos anos 70, a maioria entre 1974 e 1975.
14
A primeira pesquisadora encarregada do estudo não pôde realizá-lo porque foi presa pelo regime de Pinochet, o que fala por si sobre o grau de
integracão das mulheres ao “desenvolvimento”.

de nascimentos pudessem ser reduzidas pela ampliação de papéis sociais para as mulheres. Essa não era a
única motivação por trás do apoio à participação feminina, mas foi certamente a que logrou maior aceitação entre aqueles
que têm voz no delineamento de políticas da ONU, e particularmente junto à poderosa “comunidade de doadores”. Em
conseqüência dessa associação entre a questão da mulher e as questões demográficas o FNUAP (Fundo das Nações Unidas
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para Atividades de População) ocupa uma posição importante em meio às agências da ONU ligadas ao apoio de proje
tos para a mulher. Como uma fonte de recursos para governos do Terceiro Mundo e para outras agências da ONU, as
políticas e decisões do FNUAP afetam os programas ligados à mulher de todo o sistema da ONU, assim como os de muitos
países subdesenvolvidos, seja diretamente através de projetos especiais sobre a condição de mulher, seja indiretamente
através de projetos ligados ao planejamento familiar.
As políticas de planejamento familiar e seu impacto sobre a situação da mulher têm sido objeto de críticas nos
meios acadêmicos e entre diversas correntes políticas.
Um componente da crítica refere-se a diversos aspectos da qualidade dos serviços. Os programas tendem a
oferecer um leque limitado de tecnologias de regulação da fecundidade, os cuidados médicos necessários geralmente são
precários ou totalmente inexistentes, a maioria das tecnologias faz recair o ônus da anticoncepção sobre a mulher, as
informações sobre efeitos colaterais e contra-indicações não são difundidas, e as necessidades da mulher em termos de
privacidade e tratamento digno recebem pouca atenção.
O segundo componente da crítica está ligado à natureza dos materiais educacionaís e de comunicações,
carregados de idéias simplistas sobre as vantagens de limitar a prole, e planejados, via de regra, com o único objetivo de
aumentar a motivação para o uso de anticoncepcionais.
O terceiro aspecto da crítica refere-se ao relativo isolamento dos programas de planejamento familiar frente
às políticas econômicas e sociais mais amplas, que poderiam visar ao aprimoramento das condições sob as quais a
mulher toma as decisões sobre a procriação.
O FNUAP e a maioria dos responsáveis por programas de planejamento familiar não negam que aquele
aprimoramento seja desejável, mas costumam argumentar não ser realista visar padrões mais altos ou abordagens mais
amplas do que os vigentes. Essa posição, segundo seus críticos, revela uma prioridade concedida às metas demográficas
em detrimento dos direitos humanos. Seria também a resultante da reduzida participação de mulheres em todos os níveis
de tomada de decisões.
Para compreendermos as questões levantadas acima, é importante apreender como o sistema da ONU passou
a realizar a ligação entre políticas de mulher e políticas de população.
A emergência da questão da mulher
A Conferência Mundial da População, promovida pela ONU em Bucareste em 1974, foi um marco nas políticas
de população. Concebida principalmente para incre
mentar o compromentimento de governos e de agências internacionais com programas de população e de planejamento
familiar, não seguiu o roteiro previsto por seus principais organizadores, e acabou por reafirmar o caráter político da
questão populacional, redefinindo os problemas demográficos no interior do contexto do desenvolvimento econômico e
cultural3.
O Plano de Ação para a População Mundial (WPPA) que resultou da Conferência foi uma versão completamente
revisada do Plano Preliminar preparado pelo Secretariado da ONU, no que deve ter sido um caso sem precedentes. Em
geral nas conferências da ONU sobre questões econômicas e sociais, o Secretariado reconcilia as divergências entre os
governos previamente, os delegados oficiais apenas referendando o plano proposto com alterações mínimas4. No caso da
Conferência de Bucareste, uma comparação detalhada efetuada por Berelson (1975) apontou que em três de cada quatro
parágrafos houve uma mudança substantiva de significado entre o plano inicial e o finalmente aprovado5.
Na onda de revisões, em que as metas quantitativas de taxas de natalidade foram substituídas por amplas
mudanças sociais, introduziram-se vários parágrafos sobre a posição da mulher. O primeiro se refere a um dos princípios
em que se baseia o próprio plano: “as mulheres têm o direito à completa integração no processo de desenvolvimento,
especialmente através de acesso igual à educação e participação na vida social, econômica, cultural e política” (WPPA §
14h). Coerentemente, um dos objetivos gerais do Plano é o de “promover a condição da mulher e a expansão de seu papel,
sua total participação na formulação e implementação de políticas sócio-econômicas, assim como promover a consciência,
entre as mulheres, de seus papéis atuais e potenciais na vida nacional” (§ 15e).
O ônus da implementação recai sobre os governos, que “devem assegurar a plena participação das mulheres
na vida educacional, social, econômica e política de seus
países, em bases iguais com os homens” (§ 41). Mas, por via das dúvidas os cônjuges são alertados sobre suas
responsabilidades: “o princípio da igualdade deve ser integralmente aplicado no planejamento familiar, onde cada cônjuge
deve considerar o bem-estar dos demais membros da família” (§ 42).
A incerteza acerca de quais devam ser os atores atinge seu grau mais alto numa peculiar “recomendação para
a ação” que não contém imperativo e não menciona ação alguma planejada; na verdade apenas enuncia a relação recíproca
entre o status da mulher e o tamanho da família: “a melhoria da condição da mulher na família e na sociedade pode
contribuir (...) para uma família menor, e a oportunidade para a mulher de planejar os nascimentos também pode concorrer
para melhorar sua condição individual” (§ 43).
Nas recomendações para pesquisa, duas áreas referem-se especificamente à mulher: a avaliação do impacto
dos diferentes métodos de planejamento familiar sobre as condições de saúde das mulheres e de outros membros da
família, e o parágrafo-miscelânea onde se acomodaram todos os tipos de investigações: “mudanças estruturais, funções e
dinâmica da família como instituição, inclusive mudanças nos papéis masculino e feminino, atitudes em relação a, e
oportunidades para, as mulheres em educação e emprego; as implicações das tendências populacionais atuais e futuras
para o status da mulher; pesquisa biomédica de fertilidade masculina e feminina, e os benefícios econômicos, sociais e
demográficos que advirão da integração da mulher no processo de desenvolvimento” (WPPA § 72p). Na educação as
mulheres também foram lembradas, embora só na última hora: “Considerando o papel da educação no progresso do
Tempo Social; Rev. Social. USP, S. Paulo, VOLUME 1(1) A R T I G O

indivíduo e da sociedade, e o impacto da educação no comportamento demográfico, todos os países são instados a promover
seus programas de educação formal e informal; devem-se envidar esforços para erradicar o analfabetismo, promover a
educação da juventude e abolir os fatores discriminatórios contra a mulher” (WPPA § 86).
Nenhum desses parágrafos constava do Plano Preliminar. Qual foi o processo que levou a sua inclusão durante
a Conferência? Quais as suas implicações? Constituem inovações ou meras peças de retórica?
Berelson (1975) observou que, apesar das claras diferenças cruciais e irreconciliáveis entre o Plano e os doadores
que vinham apoiando as atividades em população, o Plano legitimou um leque tão amplo de atividades que os países e
órgãos internacionais poderiam prosseguir no que já vinham desenvolvendo sem violar princípio algum do Plano. Finkle
& Crane (1975) também consideraram que houve uma acomodação entre, de um lado, a expressão, pelos governos do
Terceiro Mundo, de seus valores e aspirações no clima politizado de Bucareste e, de outro, suas tentativas de lidar com os
problemas populacionais de uma forma pragmática. Neste quadro, onde entram as mulheres? Para responder essa pergunta,
examinaremos o pano de fundo histórico onde se construiu o discurso sobre a mulher.
No âmbito da ONU, a preocupação com a questão da mulher vinha crescendo lentamente desde o final dos
anos 60, ligada à combinação de duas linhagens de pensamento: a do controle da natalidade e a do desenvolvimento.
A linhagem do controle da natalidade: os primeiros movimentos pela regulação da fecundidade, inspirados na
preocupação com o bem-estar da mulher e seu direito ao controle do próprio corpo, não conseguiram influenciar políticas
públicas a nível nacional ou internacional6. Nos anos 20 e 30, as tentativas de Margaret Sanger para inclusão da regulação
da fecundidade no programa da Liga das Nações alcançou tons patéticos. Ela organizou uma conferência mundial de
populacão a se realizar em Genebra em 1927, reunindo especialistas em economia, sociologia, demografia e biologia, na
esperança de que a Liga das Nações participasse. Determinada a tornar a conferência respeitável, convidou Sir Bernard
Mallet, cuja esposa tinha sido dama de companhia da Rainha Vitória, para presidir a conferência. Mas ela tinha subestimado
a natureza controversa do tema. Para que os convidados concordassem em comparecer, as organizado
ras tiveram que prometer que qualquer menção a malthusianismo ou à regulação da fecundidade seriam proibidas. Além
disso, Sir Eric Drummond, secretário-geral da Liga das Nações, considerou que “os eminentes cientistas que ela tivera
tanto trabalho para tentar reunir se ressentiriam do fato de que uma mulher tivesse sido responsável pela organização da
conferência. Relutantemente, ela aceitou retirar seu nome e de suas auxiliares do programa oficial” (Symonds e Carder,
1973). Apesar disso, Sir Drummond não ficou satisfeito e recusou o convite para que a Liga estivesse representada, inclusive
expressando a esperança de que os membros do Secretariado não participassem nem a nível pessoal. Entretanto, alguns
membros da Liga compareceram e até nomearam representantes, ao final da conferência, para uma reunião posterior
visando a formação de uma organização permanente, que deu origem à União Internacional para o Estudo Científico da
População (International Union for the Scientific Study of Population).
Em 1932-33 outra mulher, Dame Janet Campbell, foi o fulcro de uma controvérsia na Liga das Nações: quando
dirigia o Comitê para o Bem-estar Materno e a Higiene Infantil, publicou um relatório contendo uma seção curta que
enfatizava os perigos do aborto: recomendava que “em alguns casos de problemas de saúde, em que a gravidez pode pôr
em perigo a vida da mulher, é preferível impedir que a gravidez ocorra do que interrompê-la. Mas não basta apenas
explicar à mulher que tem tuberculose, problema cardíaco ou nefrite, que não deveria engravidar novamente: é necessário
explicar exatamente as medidas que ela e o marido deverão tomar para impedir que a gravidez ocorra”. Este curto parágrafo
provocou tamanha oposição de meios católicos que, após dois anos de debate em vários comitês, terminou-se por suprimir
o relatório inteiro.
Foi só nos anos 60 que a preocupação com o aumento populacional, especialmente por parte dos Estados
Unidos, Suécia e Índia, ganhou maior aceitação no sistema da ONU, superando gradualmente a resistência de países
católicos, socialistas e africanos (Symonds & Carder, 1973). Em 1962, a Assembléia Geral realizou seu primeiro debate
sobre população e aprovou uma resolução requerendo uma investigação, pelo Secretariado-Geral junto aos países membros,
acerca dos problemas resultantes das mútuas influências entre desenvolvimento econômico e as mudanças populacionais7.
Três anos mais tarde Aziza Hussein, delegada do Egito na Comissão da Condição Feminina e mais tarde presidente da
International Planned Parenthood Federation, propôs a investigação da inter-relação entre a condição da mulher e o
planejamento familiar. Embora o relatório final da investigação tenha levado dez anos para ser emitido, uma versão
preliminar foi distribuída como subsídio em Bucareste e sua preparação tinha gerado uma
atividade considerável antes da conferência8. Helvi Sipilla foi designada relatora especial para assumir a responsabilidade
desse estudo. Em 1970 distribuíram-se questionários aos governos, agências especializadas das Nações Unidas e organizações
não-governamentais. Em 1973, tinham chegado respostas de 48 governos e 12 organizações não-governamentais. Além
disso, realizaram-se dois seminários regionais e um seminário inter-regional em 1972-73.
Em preparação à Conferência de Bucareste, o Centre for Social Development and Humanitarian Affairs (um
órgão da ONU) elaborou um documento sobre os direitos da mulher e a fecundidade para dois simpósios da ONU que
reuniram especialistas em população em 1973 e 1974, simpósios preparatórios à Conferência. O estudo apresentava uma
análise da pesquisa existente sobre a situação da mulher, tanto como determinante quanto como conseqüência das variações
no comportamento reprodutivo. Medindo a posição da mulher principalmente através dos anos de escolaridade, de sua
representação na força de trabalho remunerada tal como aparece nos Censos e surveys, de sua integração nos postos de
decisão política, da idade ao casar e dos direitos e obrigações familiares, o estudo delineia o quadro do quê se sabia até
então — e dos limites à generalização impostos pela complexidade das inter-relações.
Reconhecendo que um número considerável de questões permanecia sem respostas: e reconhecendo que,
quando comparadas ao papel social das condições econômicas, das estruturas sociais e dos valores culturais, as condições
demográficas podem ter um papel menor na determinação da posição da mulher na família e na sociedade mais ampla.
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ainda assim o estudo insiste na relevância demográfica da igualdade entre os sexos e do direito humano de planejar os
nascimentos.
Esse estudo foi apresentado no simpósio sobre Direitos Humanos e População (realizado em Amsterdã em
janeiro de 1974), onde Sipilla também enfatizou, em sua colocação, que a promoção de direitos e oportunidades iguais,
ainda que constituindo um objetivo em si, também era essencial para o sucesso do planejamento familiar e da regulação da
fecundidade. As principais conclusões do simpósio indicam claramente que “é essencial assegurar às mulheres a plena
igualdade aos homens, principalmente o acesso igual à educação e ao emprego, de maneira a que elas não se sintam
inclinadas a buscar a realização pessoal exclusivamente na maternidade”9. A clareza dessa conclusão
contrasta vivamente com as observações inconclusivas sobre o aborto: “quanto ao difícil e delicado problema do aborto, o
simpósio discutiu os diversos aspectos dos direitos humanos, especialmente o do direito à vida e do direito da mulher e da
família de decidir livremente sobre assuntos relativos à integridade física e saúde mental. Foi considerado desejável que o
Estado e a comunidade internacional tentem reconciliar os direitos envolvidos na questão. Qualquer que seja a solução
encontrada, será necessário um sistema de controle para a defesa dos direitos humanos, envolvendo a participação de
pais, médicos, juízes, assistentes sociais e outros. Toda e qualquer recomendação relativa ao aborto deverá dar a máxima
atenção às necessidades e valores sócio-culturais dos vários países e deverá levar em consideração informação médica
abragente sobre as implicações e conseqüências do aborto, tanto para a mãe quanto para filhos futuros”10.
O reconhecimento da importância do acesso igual à educação e ao emprego representou, em si, um avanço
em relação às conclusões do Simpósio sobre População e a Família, realizado no ano anterior, e ao qual o mesmo estudo
sobre fecundidade e direitos da mulher tinha sido apresentado. O relatório do simpósio anterior dizia que “a elevação da
posição da mulher é sem dúvida importante, mas igualmente importante é o aprimoramento dos direitos de todos os
setores desprivilegiados da comunidade”, o que pode ser considerado indiscutível mas parece nada mais do que uma
estratégia clássica para desconsiderar o tema. E essa deve ter sido a opinião prevalecente no Secretariado da ONU, já que
este não incluiu a questão da mulher no Plano Preliminar para Bucareste.
A linhagem do desenvolvimento: As mulheres não foram figuras predominantes na literatura nem nos programas
de desenvolvimento nos anos 50 e 60. Como tão bem descreveram Wiarda e Helzner (1981): “No começo dos anos 60 (...)
o desenvolvimento foi analisado, planejado e implementado segundo o modelo que persistentemente considerou a
experiência da industrialização da Europa e América do Norte como válida para o resto do mundo. (...) As infusões de
ajuda externa e transferência de tecnologia acabariam por garantir que os benefícios em última instância atingissem a
população inteira. (...) Os estágios progressivos do crescimento econômico iriam supostamente dar conta dos problemas
remanescentes (...). A idéia de que o desenvolvimento poderia na verdade piorar as condições de homens e mulheres, mal
sobrevivendo ao nível da subsistência, não era cogitada nos planos de desenvolvimento”.
No âmbito da ONU, em 1970, uma tentativa de associar “uma ação internacional para o avanço da mulher” à
estratégia da Segunda Década da ONU para o Desenvolvimento foi proposta em termos de “um progresso contínuo”,
“maior participação das mulheres, ou “utilização de seus talentos em benefício da sociedade”11. Isso refletia a visão
prevalecente que ignorava o papel produtivo das mulheres do Terceiro Mundo e presumia que a mão-de-obra feminina
era uma inexplorada fonte de recursos humanos.
A primeira grande crítica desta cegueira em relação ao sexo, presente nos esforços desenvolvimentistas, partiu
do trabalho de Boserup, Women’s role in Economic Development, publicado em 1970. Lastreada em dados da África, Ásia e
América Latina, ela demonstrou que a introdução de tecnologia economizadora de mão-de-obra destruía muitas das
atividades femininas tradicionais geradoras de renda, ao mesmo tempo que no setor moderno não se promoviam atividades
alternativas. Argumentou que a modernização aumentava a distância entre homens e mulheres quanto a níveis de
conhecimento e de preparação para o trabalho, aumentando o prestígio e a capacidade de ganho dos homens às custas das
mulheres. Embora tenha sido objeto de revisões e críticas posteriores12, seu trabalho foi um marco na área e teve algum
impacto em certos ramos do sistema da ONU.
Entretanto, a maioria dos estudos sobre mulher e desenvolvimento produzidos no âmbito da ONU13 era
muito limitada e sem imaginação. Alguns disfarçavam a velha abordagem de economia doméstica e artesanato com a
palavra “desenvolvimento”. Outros pareciam supor que os problemas da mulher na sociedade restringiam-se a atitudes
tradicionais e falta de preparo para o trabalho qualificado. A educação enquanto panacéia foi receitada para todos os
males. Alguns dos estudos, entretanto, apresentaram críticas substanciais à abordagem tradicional e ofereceram sugestões
específicas de estratégias para a mudança a curto e longo prazo.
Um trabalho de grande influência, sobre orçamento-tempo, estava sendo elaborado por Alexander Szalai,
consultor da UNESCO e UNITAR (Instituto das Nações Unidas para Treinamento e Pesquisa). Embora a metodologia de
orçamento-tempo já fosse usada desde o começo do século atual, a descrição que Szalai fez da divisão sexual do trabalho
em 12 países, com regimes políticos e graus de industrialização diferentes, foi de
grande importância para chamar a atenção para a contribuição invisível da mulher à economia de todos os países, mostrando
também a parcela ínfima de tempo livre á disposição das mulheres para a participação na vida cívica ou em treinamento
profissional. (Szalai, 1972).
Por sua vez a CEPAL encomendou em 1973 — por iniciativa de Allende — um estudo sobre a participação
das mulheres no desenvolvimento na América Latina14. E, apesar de a CEPAL não ter evidentemente uma postura feminista,
o documento foi bem recebido. Isso se deveu provavelmente ao fato de que, embora tivesse reconhecido, en passant, a
importância do movimento de mulheres (“desde que desenvolva sua base política nos estratos inferiores da sociedade”),
e tivesse também levantado a questão da medição econômica do trabalho feminino não remunerado dentro e fora de casa,
esse estudo tenha evitado cuidadosamente a ênfase em questões não-econômicas e relacionado a atividade econômica
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feminina a fatores estruturais como a dependência do capital estrangeiro, a distribuição desigual da renda etc.
Por outro lado, junto ao Secretariado o documento enfretou dificuldades por uma outra razão: seu capítulo
sobre Cuba, um país tabu àquela altura. Foi finalmente aprovado em 1976 mas, proposto para o Seminário Regional sobre
a Mulher no Desenvolvimento Econômico, Social e Político em Buenos Aires, não pôde ser discutido devido ao golpe
militar de março de 1976 que interrompeu a realização do seminário.
Esse documento só foi divulgado após a Conferência de Bucareste, mas apresenta dois pontos de importância
para a compreensão da inclusão da questão da mulher no Plano Mundial de População.
Em primeiro lugar, nele se afirma que todos os aspectos do desenvolvimento são igualmente importantes
para o avanço das mulheres e portanto os problemas ligados às mudanças demográficas não podem ser isolados do
contexto do desenvolvimento global. Um indício, pois, de que a linhagem da população não era a única a adotar a
questão da mulher. Num foco diferente, a mulher estava também na agenda política dos estrategistas da Nova Ordem
Econômica Internacional.
Em segundo lugar, o documento insiste em que a questão da mulher no desenvolvimento é válida porque as
mulheres constituem uma força social e histórica que pode levar as sociedades a atingir uma melhor qualidade de vida
para todos. Parece assim inferir que a metade subordinada da humanidade teria de assumir a tarefa hercúlea de re
solver os problemas de todos a fim de validar sua própria causa. É significativo que, embora possa não ter tido essa
intenção instrumental, a própria autora deste estudo para a CEPAL tenha achado necessário recorrer a isso para que o
documento fosse aceito.
De qualquer forma, as duas linhagens começavam a fundir-se. Em 1974 o FNUAP patrocinou seminários
regionais sobre a Integração da Mulher ao Desenvolvimento com Referência Especial aos Fatores de População e, no
mesmo ano, um fórum internacional sobre o Papel da Mulher na População e no Desenvolvimento reuniu especialistas das
várias áreas em Nova Iorque. Os documentos preparatórios desses encontros examinavam como o acesso limitado da
mulher ao emprego, além das más condições de vida, da desnutrição e doença, afetam as taxas de fecundidade e,
simultaneamente, têm efeitos adversos sobre o desenvolvimento.
Quando a questão da mulher surgiu no Plano Mundial de População, portanto, já era uma cria viável das
duas linhagens, a da população e a do desenvolvimento.
Mas o crucial aqui é que o interesse de ambas pela condição feminina é derivado basicamente de um
reconhecimento: o da importância das mulheres como solução para outros problemas, embora essa instrumentalidade nunca
tenha sido explicitamente enunciada.
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Tempo Social; Rev. Social. USP, S. Paulo, VOLUME 1(1) A R T I G O

FOUCAULT: O SILÊNCIO DOS SUJEITOS


José Carlos Bruni*

BRUNI, José Carlos. Foucault: o silêncio dos sujeitos. Tempo Social; Rev. Sociol. USP, S. Paulo,1(1): 199-207, 1.sem. 1989.
RESUMO: Este pequeno estudo mostra como Foucault, ao romper com as filosofias tradicionais do sujeito —
o marxismo, o existencialismo, o positivismo —, empenha-se na reconstituição histórico-social das tecnologias da sujeição,
sem apontar os caminhos possíveis da libertação dos oprimidos. Crime e loucura surgem como figuras do mal e da
desrazão, prisão e manicômio circunscrevem espaços da exclusão total, instituições estratégicas para se compreender os
fundamentos da ordem social. Recusando-se a dar voz ao silêncio dos sujeitos, Foucault coloca, de modo radical, a questão
da representação, convidando-nos a uma nova reflexão sobre o papel específico do intelectual e do político em geral.
UNITERMOS: Foucault, sujeição, representação, poder.
BRUNI, José Carlos. Foucault: the silence of subjects. Tempo Social; Rev. Sociol. USP, São Paulo, 1 (1): 199-207, 2.sem.
1989.
ABSTRACT: This short study shows how Foucault, upon parting with the traditional philosophies concerning
the subject — Marxism, Existentialism, Positivism, —engaged in the reconstruction of socio-historical technologies of
subjection, without ever printing out to possible paths for the liberation of the oppressed. Crime and insanity emerge as
figures of evil and the absurd. Prisons and insane asylums circunscribe spaces of total exclusion, being strategic institutions
for us to understand the foundations of social order. Refusing to give voice to the subjects’ silence, Foucault radically
confronts us with the question of representation, inviting us to reflect once again upon the specific role of intellectuals and
the politicians in general.
UNITERMS: Foucault, subjection, representation, power.

* Professor do Departamento de Sociologia — FFLCH-USP.


2
“Limite onde se dá a decisão ontológica: contestar é ir até ao amago vazio, onde o ser atinge seu limite e onde o limite defIne o ser. Lá, no limite
transgredido, ressoa o sim da contestação” (Foucault apud Carvalho, 1985, p. 84).

Imensa foi a polêmica desencadeada por Foucault, ao anunciar, em As Palavras e as Coisas (1966), a “morte do
Homem”. Duplo escândalo: 1) o Homem não é, segundo Foucault, uma realidade plena, o ser concreto que vive, luta,
trabalha, fala, e que
conquistou a natureza, subjugou suas forças e sobre ela estabeleceu um império. Não, o Homem é apenas uma figura do
saber contemporâneo, efeito produzido pelas novas estruturas da epistemé surgida no fim do século XVIII, presentes na
Filologia, na Biologia e na Economia. Essas novas ciências, ao romperem com a forma clássica do modo de ser do saber —
a representação —, colocam no seu lugar o Homem, pensado como origem, sujeito e ser da linguagem, da vida e do
trabalho; 2) a filosofia vive, desde Kant até nossos dias, um novo sono dogmático, no qual a Antropologia filosófica
constitui a matriz fundamental; é justamente o Homem que impede o pensamento de pensar ou que leva a saberes confusos,
heteróclitos e incertos como são os saberes das modernas Ciências Humanas. Acumulando fatos positivos que concercem
sua existência ou procurando as condições de possibilidade de seu conhecimento, o Homem torna-se essa figura monótona
— verdade, fundamento e essência de qualquer questão. Propõe então Foucault, seguindo a fórmula nietzscheana da
morte de Deus, a morte do Homem como condição da retomada do pensar e do saber que queira sair fora desta Identidade
que devora a Alteridade.
Tudo isto bastou para que Foucault fosse considerado anti-humanista, pensador empenhado em destruir o
Sujeito, categoria primeira, central, sagrada e evidente da filosofia moderna desde Descartes. Tanto mais que não é só este
Sujeito em geral que Foucault tem em mira; seus alvos são também os sujeitos específicos das três principais formas da
filosofia contemporânea: o Proletariado do marxismo, a Consciência da fenomenologia (e do existencialismo), a Razão
Científica do positivismo, na medida em que se constituem como centros de um império universal em que se reverenciam
a História, a Dignidade Humana e o Progresso.
Ponto de partida do saber moderno, o Homem é concebido como sujeito ativo, autor de seu próprio ser,
seja destinado à revolução, à liberdade ou à conquista da natureza. É no interior de um projeto em que seu ser deve se
realizar que o Homem se revela como Sujeito, construindo-se a si próprio. É no interior do projeto que os obstáculos à
realização do Homem deverão ser analisados, como outras tantas figuras de sua finitude: a alienação, a morte, o
inconsciente...
Ora, em vez de enaltecer o Homem ou procurar as razões que impedem o desenvolvimento de suas
potencialidades, em vez de apresentar o Homem como podendo se libertar pela ciência ou pela consciência, em suma em
vez de começar pelo Sujeito, o trabalho de Foucault consiste muito mais em analisar o processo de sujeição, o conjunto de
obstáculos que antecedem à constituição dos sujeitos. Inteiramente descrente do poder redentor da razão reflexiva, em
quaisquer das suas formas contemporâneas, de Hegel a Sartre, Foucault vai tentar mostrar, numa postura decididamente
não-filosófica, como, a partir de mecanismos sociais complexos que incidem sobre os corpos muito
antes de atingir as consciências, foram-se dando historicamente mil formas de sujeição: os homens são, antes de mais nada,
objetos de poderes, ciências, instituições.
Mas esta observação é insuficiente para identificarmos a originalidade de Foucault quanto a esta questão.
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Pois, num único movimento que ao mesmo tempo coloca em xeque o Homem (o Sujeito) e o Poder (a Instituição) enquanto
campos legítimos em que vêm se inscrever a filosofia e a ciência instituídas, Foucault como que desce aos infernos: antes
do Homem Racional e Moral, lá estão, silenciados e excluídos, os loucos e os criminosos. Na verdade, a “morte do Homem”
concerne primeiramente o Homem branco, adulto, ocidental, civilizado e normal. A morte do Homem nos conduz ao
caminho daquilo que foi construído como não-humanidade no Homem: a loucura e o crime. Assim, torna-se claro qual
Homem as ciências e a filosofia tomam implicitamente como modelo: o Homem de Razão e o Homem de Bem, senhores da
ordem, competentes para o exercício da exclusão do Outro.
Exclusão: o lugar mais fundo da sujeição. É para lá que Foucault nos conduz; é de lá que Foucault fala. É deste
fundo que se podem reconstituir os processos insidiosos de estigmatização, discriminação, marginalização, patologização
e confinamento, operando ao nível da percepção social, do espaço social, das instituições sociais, do senso comum, do
aparelho judiciário, da família, do Estado, do saber médico. De qualquer maneira, o resultado é o mesmo: o silêncio dos
sujeitados, silêncio que é o primeiro e mais forte componente da situação de exclusão, a marca mais forte da impossibilidade
de se considerar sujeito àquele a quem a fala é de antemão desfigurada ou negada. História da Loucura e Vigiar e Punir
constituem assim incursões por entre esses espaços extremos da exclusão, manicômio e prisão, com o objetivo de
desentranhar a lógica da produção do silêncio de seus habitantes sem rosto.
“Em meio ao mundo sereno da doença mental, o homem moderno não comunica mais com o louco; há de um
lado o homem de razão que delega o médico para a loucura, autorizando assim a relação apenas por meio da universalidade
abstrata da doença; há por outro lado, o homem da loucura que comunica com o outro somente pelo intermediário de uma
razão completamente abstrata, que é ordem, coerção física e moral, pressão anônima do grupo, exigência de conformidade.
Linguagem comum não há; ou melhor, não há mais; a constituição da loucura como doença mental, no fim do século XVIII,
comprova o diálogo rompido, dá a separação como já adquirida, e afunda no esquecimento todas essas palavras imperfeitas,
sem sintaxe fixa, um pouco balbuciantes, nas quais se fazia a troca da loucura e da razão. A linguagem da psiquiatria, que
é monólogo da razão sobre a loucura, só pôde se estabelecer sobre tal silêncio.
Não quis fazer a história dessa linguagem, mas sim a arqueologia desse silêncio” (Foucault, 1961, p. 9).
Arqueologia do silêncio: reconstrução das práticas, saberes, regras e normas que determinam a percepção
social do louco, o imaginário que nele se investe, o medo que dele se tem, a proteção que dele se necessita, o espaço
peculiar onde é enclausurado (pela família, pelo Estado, pelos juízes, pelos médicos), o olhar que o objetiva. Mas Foucault
não visa dar voz à loucura, no sentido da construção de um repertório de enunciados dos loucos. Não visa dar voz à
loucura, mas descrever o dispositivo racional que concretamente a constitui enquanto objeto. Por mais respeito que tenha
pelo louco, por mais que sinta na loucura a expressão de uma experiência trágica do mundo (aliás cuidadosamente dissolvida
pela razão), jamais o discurso de Foucault constitui o louco como sujeito, de cujos direitos ou de cuja teoria de libertação
seria o porta-voz. Não há “identificação” com o sujeitado, não se pensa no lugar do e pelo sujeitado. Foucault recusa-se a
“representar” as vítimas da opressão, no sentido preciso de constitui-las imaginariamente em sujeitos de uma possível
ação de libertação. É como se dissesse: “a sua própria liberdade os constituirá em sujeitos através de sua própria ação e do
seu próprio saber”. Posição radical, sustentada até em relação aos loucos que — não é isto que diria o senso comum? —
necessitam realmente de tutela.
O mesmo se verifica na análise da delinqüência e da prisão. Todo o interesse está em mostrar as formas
concretas de objetivação do poder, seu modo de operação, a incidir basicamente sobre os corpos, através da ordenação
meticulosa do espaço e do tempo no interior da instituição, enfim, como se estabelece uma tecnologia da punição. É o
projeto de uma genealogia do poder, desenvolvida a partir do dispositivo carcerário.
“No ponto de partida, podemos então colocar o projeto político de classificar exatamente as ilegalidades, de
generalizar a função punitiva, e de delimitar, para controlá-lo, o poder de punir. Ora, daí se definem duas linhas de
objetivação do crime e do criminoso. De um lado, o criminoso designado como inimigo de todos, que têm interesse em
perseguir, sai do pacto, desqualifica-se como cidadão e surge trazendo em si como que um fragmento selvagem de natureza;
aparece como o celerado, o monstro, o louco talvez, o doente e logo o ‘anormal’. É a esse título que ele se encontrará um dia
sob uma objetivação científica, e o ‘tratamento’ que lhe é correlato. De outro lado, a necessidade de medir, de dentro, os
efeitos do poder punitivo prescreve táticas de intervenção sobre todos os criminosos, atuais ou eventuais: a organização de
um campo de prevenção, o cálculo dos interesses, a entrada em circulação de representações e sinais, a constituição de um
horizonte de certeza e verdade, o ajustamento das penas a variáveis cada vez mais sutis, tudo isso leva igualmente a uma
objetivação dos crimes e dos criminosos” (Foucault, 1977, p. 92).
Por mais que a delinqüência seja produzida pela lógica perversa do sistema, Foucault não consente em passar
do nível da sujeição para o da constituição do sujeito. Não oferece aos presos o programa da transformação da sua situação,
nem incorpora à análise histórica os movimentos de resistência ou de revolta contra o cárcere. O livro termina evocando
vagamente “o rumor da batalha”, sem pô-la contudo em cena. A retórica de Foucault insiste em “fazer sobressair o fato da
dominação no seu íntimo e na sua brutalidade” (Foucault, 1978, p. 181), expondo cruamente os mecanismos implícitos no
processo de objetivação, para mais intensamente tentar provocar o gesto de liberação dos indivíduos-enfim-sujeitos.
Mas nos engananamo s outra vez se pensássemos ser o interesse de Foucault as instituições1 enquanto tais.
Estas são muito mais do que simples lugares da exclusão. Seus procedimentos internos tendem a extravazar o espaço
fechado de seus muros e a envolver a sociedade inteira. Assim, a razão positivista — formada no momento em que as
formas do internamento clássico se desfazem e a loucura passa perigosamente a ocupar o espaço público antes de ser
novamente confinada ao manicômio, onde é vista como doença mental — se instaura como parâmetro normal de
racionalidade para toda a sociedade. Racionalidade definida no interior de um ideal de medicalização integral da sociedade
e que, apoiada na distinção básica entre o normal e o patológico, torna possível a retomada de todo um imaginário da
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peste, a recair sobre as figuras tidas como anormais. Por outro lado, a prisão não se restringe a castigar os criminosos. A
reforma judiciária do século XVIII, que instituiu o moderno sistema carcerário, tem como “seus objetivos primeiros: fazer
da punição e da repressão das ilegalidades uma função regular, coextensiva à sociedade; não punir menos, mas punir
melhor; punir talvez com uma severidade atenuada, mas para punir com mais universalidade e necessidade; inserir mais
profundamente no corpo social o poder de punir” (Foucault, 1977, p. 76). É a ordem social, pensada na sua complexidade
como sociedade disciplinar, que Foucault tenta reconstruir nos seus múltiplos micro-mecanismos, mas sem remeter a
exposição do que é a um dever-ser. Isto o afasta de qualquer positivismo, que transforma todo fato em norma, todo o ser
em valor. É assim que o discurso de Foucault tem a admirável qualidade de nos arrastar para baixo, para o fundo, para
fora do mundo da razão, da moralidade e do poder constituídos, conferindo ao mesmo tempo a esse mundo uma visibilidade
insuportável.
1 “As instituições não são fontes ou essências, e não possuem nem essência nem interioridade. Elas são práticas,
mecanismos operatórios que não explicam o poder pois que supõem os seus relacionamentos e contentam-se em ‘fixá-los’,
segundo uma função reprodutora e não produtora” (Deleuze, 1987, p. 105-6).
Para além dos conceitos e da metodologia específica de Foucault, há qualquer coisa como uma sensibilidade
específica que o freqüentar seus textos desperta. Não uma sensibilidade da emoção “vivida”, mas uma estranha sensibilidade
da razão, dura e aguda, uma nova forma de olhar. Olhar que é o tema central de O Nascimento da Clínica, este livro que, por
tratar “do espaço, da linguagem e da morte, trata do olhar” (Foucault, 1980, p. VII). Olhar que, lá do fundo do espaço da
exclusão, supostamente lugar da desrazão e da transgressão, é perpetuamente engendrado por uma vertigem constante,
retomando sempre o mesmo lugar, de onde o mundo da razão e da ordem é visto e desmontado. Vertigem. É uma palavra
que me parece descrever essa sensação de queda por dentro de um abismo sem fundo, quando os parâmetros tidos como
intocáveis da nossa existência individual ou coletiva são pelo menos sacudidos pelo modo de pensar de Foucault. Sua
transgressão nos leva ao limite2, ao ponto em que todas as formas instituídas de sentir, pensar e agir são como que viradas
do avesso, deixando escapar suas garras ocultas, constituídas por uma contingência irredutível. Somos remetidos a um
ponto em que tudo merece ser re-visto, re-sentido e re-pensado, em que nada mais aparece como um valor: daí essa
reflexão sobre o Grande e o Pequeno, o Alto e o Baixo, o Mais e o Menos, que põe a nu, pela desmontagem da “anatomia
política do detalhe” (Foucault, 1977, p. 128) o modo de constituição da Hierarquia, ou melhor, de todas as hierarquias. É
desta fundura que podemos ver como se vão constituindo pouco a pouco, dos pequenos detalhes até as grandes formas
institucionais, os poderes disciplinares a que estamos presos de mil maneiras. Dos olhares às normas, da repreensão à
punição, da discriminação à exclusão, da ordenação à instituição, o social se dispõe como imensa malha cerrada que o
discurso de Foucault possibilita ver por dentro na sua construção minuciosa, exata, eficiente, científica — e detestável, em
que o “sentido” é apenas obra da racionalização. “Poder” é força social múltipla que assimila ou exclui, ou melhor, é
confronto belicoso das forças: é esta “hipótese de Nietzsche” (Foucault, 1979, p. 176) que constitui o fundamento último de
suas análises.
Ora, é do ponto de vista da exclusão que a questão tradicional da representação política é radicalmente
renovada. Pois como conciliar a produção ininterrupta de inúmeros mecanismos de exclusão gerados pela sociedade
disciplinar com a representação enquanto modo de “participação” política? Como dar voz aos sujeitos silenciados pela
exclusão a não ser fingindo cinicamente que ela é inexistente, desconhecendo a alteridade radical para onde foram
empurrados os excluídos? Creio que é Deleuze que chega
ao fundo da questão levantada por Foucault quando afirma: Foucault “foi o primeiro a nos ensinar — tanto
em seus livros quanto no domínio da prática — algo de fundamental: a indignidade de falar pelos outros. Quero dizer que
se ridicularizava a representação, dizia-se que ela tinha acabado, mas não se tirava a conseqüência desta conversão ‘teórica’,
isto é, que a teoria exigia que as pessoas a quem ela concerne falassem por elas próprias” (Foucault, 1979, p. 72).
Mas Foucault prefere não colocar a questão da representação nos quadros mais gerais da teoria política, e sim
remetê-la a uma dimensão precisa: a questão do intelectual e do seu papel na sociedade. Começa por distinguir o intelectual
“universal” do intelectual “específico”. O intelectual universal, herdeiro de uma longa tradição jurídica que o legitima
como porta-voz dos direitos dos subalternos de toda espécie, seria o depositário da verdade, em sua forma clara e racional,
que outros possuiriam de forma obscura e parcial. Coloca-se no elemento da consciência e seu objetivo é instituir, para
além da ideologia e da alienação, a consciência verdadeira. Fiel ao ideal da Ciência e do Saber Unitário, procura incorporar
qualquer saber particular num conjunto hierarquizado de conhecimentos, empenhando-se em construir uma concepção
totalizante da realidade, uma “visão do mundo”. O intelectual específico, por sua vez, liga-se à figura do cientista perito,
portador de saberes que se filiam em última análise à biologia e/ou à física, e que, ligado ou não ao Estado, defronta-se
com condições econômico-institucionais de trabalho bem específicas e complexas. Em todo o caso, é detentor de saberes
vitais para a sociedade, e neste sentido, o poder desse intelectual torna-se cada vez mais decisivo. Em qualquer dos casos,
“o problema político essencial para o intelectual não é criticar os conteúdos ideológicos que estariam ligados à ciência ou
fazer com que sua prática científica seja acompanhada por uma ideologia justa, mas saber se é possível constituir uma
nova política da verdade. O problema não é mudar a ‘consciência’ das pessoas, ou o que elas têm na cabeça, mas o regime
político, econômico, institucional de produção da verdade” (Foucault, 1979, p. 14).
A verdade, para Foucault, não é a expressão discursiva da natureza mesma das coisas, mas o conjunto de
procedimentos regrados para a produção, a distribuição e a circulação de enunciados aos quais se atribui efeitos específicos
de poder: o poder de serem aceitos como verdadeiros. O regime de produção da verdade é institucionalizado basicamente
pela Ciência, que se apresenta como detentora dos enunciados verdadeiros. Para Foucault, a década de 70 comportaria
não tanto a insurreição dos sujeitos silenciados, mas dos saberes locais, esquecidos, desqualificados, discriminados,
inferiorizados perante a Ciência. Mas “não se deve antes interrogar sobre a ambição de poder que a pretensão de ser
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ciência traz consigo? As questões a colocar são: que tipo de saber vocês querem desqualificar no momento em que vocês
dizem ‘é uma ciência’? Que sujeito falante, que sujeito de experiência ou de saber vocês querem ‘menorizar’ quando
dizem: ‘Eu formulo este discurso, enuncio um discurso científico e sou um cientista’? Qual
vanguarda teórico-política vocês querem entronizar para separá-la de todas as numerosas, circulantes e descontínuas
formas de saber?” (Foucault, 1979, p. 172). Não se trata, pois, de simplesmente retornar à fala viva do sujeito dominado, ou
de ouvir deslumbrado a pureza de sua diferença, mas de analisar os mecanismos de poder da Ciência enquanto instituição
que, ao filtrar essa fala, desfiguram-na, desqualifícam-na, inferiorizam-na. Dir-se-ia que o intelectual, para Foucault, deve,
antes de mais nada, ser crítico de suas próprias condições de trabalho que, de modo muito concreto, por seus regulamentos,
suas hierarquias, sua organização, sua conformação aos espaços e aos tempos, acabam por assimilar estes saberes, na
verdade anti-ciências, como parte “normal” do discurso científico, isto é, os reduzem novamente ao silêncio. Que se pense
na universalidade da ciência: por falar em nome de todos os sujeitos, dispensa a fala particular. Antecipando-se à experiência,
é como se já possuisse seu sentido ou conceito, supondo conhecido de antemão o conteúdo e o significado das falas dos
outros.
Por ter colocado tão agudamente a questão da representação e da fala do sujeito silenciado, melhor do que
recordar, mais vale reler Foucault.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
CARVALHO, José Carlos de Paula. A corporiedade outra. In: RIBEIRO, Renato Janine, org. Recordar Foucault. São
Paulo, Brasiliense, 1985. p. 72-93.
DELEUZE, Gilles. Foucalt. Lisboa, Vega, 1987.
FOUCAULT, Michel. Histoire de la folie à l’age classique. Paris, Union Générale D’Editions,1961. (Col. 10/18).
FOUCAULT, Michel. Vigiar e punir. Petrópolis, Vozes, 1977.
__________.Microfísica do poder. Rio de Janeiro, Graal, 1979.
__________.O nascimento da clínica. 2.ed. Rio de Janeiro, Forense Universitária, 1980.
LEBRUN, Gérard. Transgredir a finitude. In: RIBEIRO, Renato Janine, org. Recordar Foucault. São Paulo, Brasiliense,
1985. p. 9-23.
RIBEIRO, Renato Janine, org. Recordar Foucault. São Paulo, Brasiliense, 1985.
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AS VÁRIAS CORES DO TOPÁZIO


Um ensaio sobre a questão do limite em Grande Sertão: Veredas
Paulo Roberto Arruda de Menezes*
MENEZES, Paulo R.A. As várias cores do topázio. Tempo Social; Rev. Sociol. USP, S. Paulo, 1(1): 209-226, 1.sem. 1989.
RESUMO: Um passeio pelas veredas do Grande Sertão, por suas entranhas sinuosas, que constituem uma
narrativa labiríntica por onde transcorre a vida contada de Riobaldo Tatarana. De professor a Urutú-Branco, suas aventuras
como jagunço, suas desventuras com as mulheres, seu diálogo com o Demo e com o Divino, expressões multifacetadas de
uma mesma experiência. A memória como recuperação dos sentidos e do entendimento desta experiência, sempre mediada
pelo mundo jagunço, transitório, e pelas mulheres, seus amores, eternas portadoras dos segredos de seus caminhos.
Nhorinhá, Otacília e, por fim, Diadorim, diversas possibilidades, as várias cores do topázio.
UNITERMOS: Grande Sertão: Veredas; jagunço: experiência, memória.

MENEZES, Paulo R. A. de. Topaz’s various colors. Tempo Social; Rev. Sociol. USP, São Paulo, 1(1): 209-226, 1.sem. 1989.
ABSTRACT: An excursion through the Great Sertão’s paths constitutes a labrynthine narrative through which
Riobaldo Tatarana’s life passes. From being a teacher to becoming Urutú-Branco, his adventures as a jagunço, his
misadventures with women, his dialogues with God and the Devil, are all multifaceted expressions of the same experience.
Memory becomes the recovery of the several meanings of that experience and the understanding of them all — always
mediated by the transitory world of the jagunço and by women — he loved, eternal bearers of the secrets of his paths.
Nhorinhá, Otacília, and, finally, Diadorim are all diverse possibilities — the various colors of topaz.
UNITERMS: Grande Sertão: Veredas; jagunço: experience, memory.

* Professor de Sociologia da Arte do Departamento de Sociologia — FFLCH-USP.

— Nonada
O começo de um romance tem sempre uma importância que não deve ser desprezada. De suas primeiras
páginas o leitor poderá colher o ímpeto de se entregar à leitura e se deixar ser levado pelas águas, às vezes turvas, da
narrativa. Elas poderão também, ao contrário, criar uma barreira intransponível entre obra e leitor, terminando por fazer
com que a relação de leitura não se construa e, conseqüentemente, com que o livro seja fechado e esquecido em um canto
empoeirado de um lugar qualquer.
A sensação de se abrir um livro e se deparar logo na primeira palavra da primeira linha com algo, uma
palavra sem dúvida, que não tem para nós nenhum significado é, no mínimo, assustadora. Após avançarmos mais algumas
páginas a sensação de estranheza constitui-se definitivamente pois o romance começa sem aparentemente começar. O
autor, em primeiro lugar, discorre sobre vicissitudes da relação entre homem e diabo, após o que conta algumas histórias
sobre os descaminhos da maldade, deixando o leitor meio aturdido sem saber, afinal, de qual assunto trata o livro. A
narrativa parece começar efetivamente na página 25, quando surgem “Diadorim e eu, nós dois.”
“Narrar algo significa, na verdade, ter algo especial a dizer, (...).” (Adorno, 1982, p. 270). A história começa
quando seus personagens principais, Riobaldo e Diadorim, surgem pela primeira vez na narrativa. Sabemos que o que
de especial se narrará tem estreita ligação com eles e primodialmente com a relação entre eles. O romance coloca como
narrador primordial Riobaldo, ex-chefe jagunço, a contar e a duvidar de sua própria experiência. Porém, não será o
único pois encontraremos, no decorrer da narração, com outros narradores como Jõe Bexiguento e seu Ornelas (que
contam as histórias de Maria Mutema e do delegado Dr. Hilário respectivamente), entre outros. O interlocutor é um
homem diferente do narrador, um homem de cidade, o que prenuncia que a problemática homem rústico/homem
urbano será desenvolvida no desenrolar de suas passagens. De fato, o contraste e, porque não, a atração entre o moderno
e letrado e o não moderno e iletrado permeia incansavelmente as idas e vindas de Riobaldo, de professor a Urutú-
Branco. Nesta narrativa, Diadorim surge não só como mediação da vida de Riobaldo mas como mediação da própria
forma de narrar. Veja-se a relação de nomes Diadorim/Dia/Diabo, por exemplo.
Esta forma de narrar labiríntica (ou laviríntica) instituiu-se como a sublinhar a densidade emotiva do que se
vai contar, seu lugar fundamental na estruturação do personagem Riobaldo como tal. “A lembrança da vida da gente se
guarda em trechos diversos, cada um com seu signo e sentimento, uns com os outros acho que não se misturam. Contar
seguido, alinhavado, só mesmo coisas de rasa importância” (Rosa, p. 77-8). A arte de contar é tortuosa. As lembranças vêm
à mente pelo significado que tiveram para quem as experimentou e não cronologicamente encadeadas, em seqüência de
acontecimentos que se sucedem no tempo e no espaço. É em parte também astúcia intencional “devido que mesmo um
contador habilidoso não ajeita de relatar as peripécias todas de uma vez” (Rosa, p. 315). Intenção de criar no leitor uma
sensação embaçada de estar compreendendo o que ainda não foi falado.
As informações, as histórias se sucedem sem interrupções através das reminiscências de Riobaldo, suas
aventuras como jagunço e como chefe de jagunços, suas desventuras com as mulheres, seu encontro (?!) com o Demo.
Tudo isto ocorre em desordem pensada levando o leitor ao exercício de tentar constituir com pequenos pedaços de vidro
coloridos, o belo vitral do final da narrativa. Mosaico aparentemente desconexo que faz com que o leitor se assuste quando
no meio do livro (p. 234), onde as coisas parecem estar adquirindo algum significado, Riobaldo nos comunica que já
contou tudo, que já poderia acabar. Neste momento tentamos sem sucesso encontrar o elo de ligação entre todos os
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acontecimentos já ocorridos. Em vão. “O senhor sabe?: não acerto no contar porque estou remexendo o vivido longe alto,
com pouco caroço, querendo esquentar, demear, de feito, meu coração, naquelas lembranças. Ou quero enfiar a idéia,
achar o rumorzinho forte das coisas, caminho do que houve e do que não houve. Às vezes não é fácil. Fé que não é” (Rosa,
p. 135).
A narração começa no meio da luta com Medeiro Vaz e a travessia fracassada do Liso do Sussuarão e só
muitas páginas depois Riobaldo introduz sua mãe e seu encontro com Diadorim menino (p. 80). Se “contar é muito, muito
dificultoso” (Rosa, p. 142), não o é por problemas de memória, nem porque “mente pouco, quem a verdade toda diz”
(Rosa, p. 276).
O movimento da memória tem para Riobaldo o significado de tentar entender o que se passou, lembrar para
entender as coisas que ele viveu e as formas como viveu. Temos em Riobaldo uma perene re-avaliação da experiência e, de
uma forma mais profunda, a estruturação dos significados desta própria experiência. É pela arte do contar que o narrador
busca a compreensão de sua própria existência. “Conto ao senhor é o que eu sei e o senhor não sabe; mas principal quero
contar é o que eu não sei se sei, e que pode ser que o senhor saiba” (Rosa, p. 175). Riobaldo conta para tentar saber o que
aconteceu, num fluxo contínuo e meticulosamente confuso, onde está perdida toda a verdade. Parte da tomada de dois
temas, que são o diabo e o sertão, para desaguar no da sua relação com Didadorim — amor/homossexualismo — e de sua
relação consigo mesmo. Para contar, Riobaldo tem de mergulhar na dúvida de suas paixões: “Eu era dois, diversos? O que
não entendo hoje, naquele tempo eu não sabia” (Rosa, p. 369). O ato de saber não desemboca, obrigatoriamente, no
entendimento.
Riobaldo expõe sua história, seus ódios, suas vinganças, seu pacto, seus amores incertos, desenvolvendo no
decorrer de suas palavras as ambigüidades que, deixadas pelo caminho, só serão relacionadas através da revelação final
do livro. Da mesma forma que o astronauta de 2001- Uma Odisséia no Espaço (filme de Stanley Kubrick) luta com as
artimanhas do futuro, representadas por HAL — o computador de bordo, para
tentar descobrir o segredo da origem e existência humana, a chave do ciclo interminável que liga nascimento-crescimento-
maturação-morte, Riobaldo busca na re-visão de seu passado compreender o significado profundo das ações humanas nos
fatos que compuseram sua vida.
Respostas que não se darão imediatamente aos sentidos mas poderão surgir (não é nem mesmo certo que
surjam) no desenrolar da narração. A possibilidade de se estabelecer uma relação de significado não se dá nem no início
nem no fim do romance mas no próprio decorrer de suas páginas. “O real não está na saída nem na chegada: ele se dispõe
para a gente é no meio da travessia” (Rosa, p. 52). Conseguindo-se relacionar as diversas situações descritas por Riobaldo,
acumuladas pacientemente e encadeadas segundo as possibilidades da memória, o final revelador nos dará muito mais
que um dado essencial: nos dará a unidade das várias histórias pelas quais passamos. Unidade esta que, voltamos a
repetir, não implica no estabelecimento de valores pretensamente universais e eternos mas em proposições sempre
intencionalmente transitórias e relativas, nunca verdades imutáveis.
A forma de narrar de Riobaldo não deixa dúvidas quanto a suas dúvidas. Seus pressupostos são explicitados
logo nas primeiras páginas: “O senhor... Mire veja: o mais importante e bonito do mundo, é isto: que as pessoas não estão
sempre iguais, ainda não foram terminadas — mas que elas vão sempre mudando” (Rosa, p. 20). Riobaldo já previne o
interlocutor (e o leitor) que existirá um certo relativismo permeando toda nossa viagem. Afasta de princípio a possibilidade
de que respostas prontas e acabadas surjam facilmente à nossa frente. Pelo contrário, introduz o leitor no mundo do
inconcluso, em um mundo permeado pela eterna re-constituição de sentidos e significados, em um mundo em constante
movimento onde nada está pronto: nem os fatos, nem o que se pensa sobre estes mesmos fatos. Esta forma não afirmativa
de narrar se expressa abundantemente por todo o livro. Estas são algumas das passagens onde isto se coloca: “Pessoa
limpa, pensa limpo. Eu acho” (Rosa, p. 113). “Ah, tempo de jagunço tinha mesmo de acabar, cidade acaba com o sertão.
Acaba?” (Rosa, p. 129). “Sendo que a sorte também prevalecia do nosso lado, aí vi: a morte é para os que morrem. Será?”
(Rosa, p. 182). “Assente enfim, tudo estava passado, terminado. Estava?” (Rosa, p. 215). Nesses momentos, Riobaldo
parece fugir deste pressuposto soltando frases bastante afirmativas. Mas, ao fim de cada verdade instituída, uma palavra
em interrogação devolve-nos ao limbo de uma perspectiva que se coloca sempre como construtiva de si própria.
Neste sentido, o clima de incertezas de Riobaldo não vem, como uma leitura mais rápida poderia nos levar a
crer, de um pretenso desconhecimento do mundo (que é efetivo), mas justamente de seu oposto, da percepção profunda
de que o mundo, as pessoas

e relações que o conformam não são estáticos mas estão em constante processo de constituição. Temos, então, um processo
duplo de transformação onde seus pólos estão sempre em incessante movimento, o que torna a tarefa de Riobaldo muito
mais dificultosa e inesperada.
Olhemos mais de perto a fonna como se define o lugar central de ocorrência das aventuras de Riobaldo: o
sertão.
Aqui já se coloca uma dificuldade inicial que é de se tentar estabelecer limites para esta entidade que, a
primeira vista, poderia levar o leitor desatento a imaginar contornos geográficos que a delimitassem. Esta tentativa
rapidamente mostraria sua fragilidade. O sertão não é apenas, e não cremos que o seja prioritariamente, um palco onde
atores desempenham o papel de suas vidas. A primeira referência ao sertão que surge no livro não nos deixa muito
tranquilos. A tarefa não é tão fácil como poderíamos supor. Nossas esperanças geográficas se esvaem. “Sertão. O senhor
sabe: sertão é onde manda quem é forte, com as astúcias. Deus mesmo, quando vier, que venha armado! E bala é um
pedacinhozinho de metal...” (Rosa, p. 17-18). O sertão já surge aqui como uma realidade difusa que permeia vários níveis
diferentes de apreensão significativa. Vale a pena sublinhar que o contraste pequeno/grande feito por Riobaldo nestas
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palavras — grande pois terra de macho, pequeno pois simbolizado num pedacinho de chumbo — reforça a idéia de que os
limites do sertão são impalpáveis.
Sertão também é beleza, os “formosos gerais” de Riobaldo, terra natural de flora e fauna exuberantes, um
mesclado de flores, cachoeiras e animais que se apresenta, mas não para poder ser visto por qualquer um. Para Riobaldo,
os caminhos das belezas do sertão passam por Diadorim. “Quem me ensinou a apreciar estas belezas sem dono foi Diadorim”
(Rosa, p. 23). Diadorim surge aqui como a estrada para o sertão, via sensitiva que abre para Riobaldo a possibilidade de
enriquecer sua experiência e sua apropriação desta realidade informe e pluralista. Abre-se mais uma entrada neste labirinto
de paixões e emoções, lugares dispersos. Sertão, se é terra do perigo, terra da arma e do gatilho, é também terra do susto,
do inesperado. “Sertão é quando menos se espera; digo” (Rosa, p. 218). Ele surge sobre e sob nós, nos envolvendo numa
trama misteriosa de possibilidades de ação e sensação que nos toma sem aviso ou misericórdia. “Porque o sertão se sabe só
por alto. Mas, ou ele ajuda, com enorme poder, ou é traiçoeiro muito desastroso. O senhor...” (Rosa, p. 402). 0 sertão é um
País, país da emoção venha ela de uma paixão romântica, da explosão violenta na luta entre os homens ou dos desígnios de
Deus ou do Diabo.
Franklin de Oliveira nos afirma que a palavra sertão permite infinitas possibilidades significativas: “realidade
geográfica, realidade social, realidade política, dimensão folclórica, dimensão psicológica conectada com o subconsciente
humano, dimensão
metafísica apontando para as surpreendentes virtualidades demoníacas da alma humana, dimensão ontológica referida à
solidão existencial” (Oliveira, 1983, p. 180). Não gostaríamos de discordar desta multiplicidade de significados associados
ao termo, mas gostaríamos de levantar o problema de que, com sua abrangência alargada desta maneira, o termo ao tentar
explicar tudo, acaba não servindo para explicar nada.
Essas várias dimensões da realidade social não devem ser desmembradas de uma forma segmentar, mas
devem ser relativizadas como formas de manifestacão coexistentes de uma realidade que se desenvolve como um processo
que em seu movimento de instituição põe e repõe formas constitutivas de sua própria identidade. Ao contrário de mutação
de significado, uma mesma forma como propõe o autor, teríamos a contínua alteração de formas de manifestação de uma
realidade que se encontra ela mesma em constante movimento de constituição, formas estas diferentes dependendo do
local por onde nossa abordagem pretender entrar. Diferentes pois expressam dimensões diferenciadas de um mesmo
processo de reprodução do real. Real este que não existe a não ser se manifestando nestas formas, não existe senão através
destas formas.
Nesse sentido, sertão é o espaço simbólico de realização de uma realidade social com todas as suas dimensões
de constituição. Recordemo-nos de Antônio Candido: “em Grande Sertão: Veredas, como n’Os Sertões, três elementos
estruturais apoiam a composição: a terra, o homem, a luta” (Candido, 1983, p. 295). O sertão surge então como um espaço
de efetivação destes elementos fundantes da narrativa. Espaço onde a realidade social se manifesta pela mediação das
emoções vividas pelo personagem/narrador no decorrer de sua existência. Daí Riobaldo afirmar que “o sertão não tem
janelas nem portas. E a regra é assim: ou o senhor bendito governa o sertão: ou o sertão maldito nos governa” (Rosa, p.
374). Riobaldo, preocupado em descobrir de quem é a culpa do amor, nos dá mais um dado no sentido de se precisar o
mapeamento deste termo.
O sertão é esta unidade de homem e terra, traiçoeiro e inesperado, perigoso... Perigo de morrer com uma bala
perdida, perigo de morrer de amor em terreno movediço. “Sertão não é maligno nem caridoso, mano oh mano!: — ... ele
tira ou dá, ou agrada ou amarga ao senhor, conforme o senhor mesmo” (Rosa, p. 394). Guimarães disse em entrevista a
Gunter Lorenz que “o sertão é o terreno da eternidade, da solidão” (Lorenz, 1983, p. 86). Sertão é esta terra, esta maneira
de viver e de ver o mundo, este lugar onde homens lutam para viver e vivem para lutar. Lugar de se experimentar sem
saber emoções e possibilidades que o próprio sertão enquanto realidade social acaba impedindo.
A contradição eterna de Riobaldo em relação ao amor que ele sente por Diadorim expressa bem esta
impossibilidade. Sertão é a terra do amor, mesmo que para se amar tenha que se sair do sertão. E o caminho do amor passa
pela luta, pela guerra, guerra que é o próprio movimento do sertão. “Só remontei um pasmo e um consolo expedito;
porque a guerra era o constante mexer do sertão, e como com o vento da seca é que as árvores se entortam mais. Mas
pensar na pessoa que se ama, é querer ficar à beira d’água esperando que o riacho, alguma hora, pousoso esbarre de
correr” (Rosa, p. 273).
E o homem, membro e parte deste sertão, não é um homem qualquer. “Jagunço é o sertão” (Rosa, p. 236).
Ser jagunço não é somente existir no sertão. Ser jagunço é um sistema de vida que tem suas próprias formas,
é ser parte de uma realidade maior que o define enquanto tal, que o faz ter com o mundo, determinadas relações especiais.
O jagunço é fundamentalmente um homem de luta. Luta esta que leva ao saque. O jagunço vive do saque, o que faz com
que os bandos estejam em constante movimento, sem poder parar em qualquer lugar por muito tempo. “É de ver que não
esquentamos lugar na redondez, mas viemos contornando — só extorquindo vantagens de dinheiro, mas sem devastar
nem matar — sistema jagunço” (Rosa, p. 391). Neste sistema de vida é de suma importância para os bandos serem respeitados,
mesmo nos lugares saqueados, pois estes lugares podem vir a se tornar esconderijos no futuro. Para fugir da polícia (e de
outros bandos, eventualmente) é decisivo que o bando possa ser acolhido em alguns lugares seguros, com a complascência/
medo dos moradores. Nesse sentido, matar só se pode em coisas de guerra, só no calor da batalha. Para tanto, o bando
jagunço nunca deve ser muito grande, deve ter dimensões que permitam uma mobilidade rápida e segura pois neste meio,
rapidez é meio de ficar vivo.
É curioso ver como Riobaldo não dá muito sentido à jagunçagem, mesmo tendo ficado tanto tempo nela. “Aí
mesmo, no momento, flui escogitando: que a função de jagunço não tem seu que, nem p’rá que” (Rosa, p. 321). Já enquanto
Urutú-Branco um sentido, ainda difuso, começa a transparecer. “Chefe não era para arrecadar vantagens, mas para emendar
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o defeituoso” (Rosa, p. 373). Não ficam claras no decorrer do romance as relações deste “mundo” com o outro “mundo”.
O “mundo” dos fazendeiros, por um lado, com o “mundo” das cidades (relações entre jagunçagem e eleições, por exemplo,
encarnadas nas idas e vindas de Zé Bebelo), por outro. A função social da jagunçagem, sua participação em uma determinada
conformação de poder e de organização social das regiões do sertão acabam por não aparecer claramente nas páginas do
romance. Há algumas referências aos fazendeiros, pelos quais os jagunços guerreiam, e suas relações com a política local,
mas isto é sugerido de forma rápida e nunca explícita.
Vivemos no reinado do transitório. Mesmo ser jagunço é provisório. Riobaldo não o era, seu reencontro com
Reinaldo lhe abriu as portas deste mundo desconhecido, e a morte de Diadorim fez com que realizasse vontades antes
sentidas e nunca efetivadas: largar a luta e a guerra. É como se Riobaldo estivesse sempre sendo levado por circunstâncias
fora de seu controle. “Arassuaí não eram os meus campos... Viver é um descuido prosseguido” (Rosa, p. 56) ao mesmo
tempo que é sempre perigoso. Perigoso “porque ainda não se sabe” (Rosa, p. 443), porque mutante, porque mágico e
místico, porque sempre surpreendente. Riobaldo afasta qualquer possibilidade de se interpretar de uma forma maniqueísta
os vários significados possíveis que a leitura pode levantar.
Ele mesmo se ressente desta falta de fácil definição de opostos contraditórios que pudessem ser rapidamente
classificados. Mas ele não se dá a respostas simples, mesmo que as deseje, e as necessite. “Que isso foi o que sempre me
invocou, o senhor sabe: eu careço de que o bom seja bom, e o rúim ruím, que de um lado esteja o preto e do outro o branco,
que o feio fique bem apartado do bonito e a alegria longe da tristeza! Quero os todos pastos demarcados... Como é que
posso com este mundo? A vida é ingrata no macio de si, mas transtraz a esperança mesmo do meio do fel do desespero. Ao
que, este mundo é muito misturado...” (Rosa, p. 169).
A necessidade de separação dos fatos do mundo não leva, em Riobaldo, a uma narrativa linear e episódica
mas, curiosamente, a sensação que se tem é de que se quer secar a lama que confunde nosso caminho, derramando sobre
ela cada vez mais água. Se o mundo é muito misturado, suas possibilidades de compreensão só poderão sair de um
exacerbamento da interrupção do contar não alinhavado e da mistura. Como se o embaralhar incessante das cartas de um
baralho fizesse com que, em dado momento, todas as seqüências de seus quatro naipes surgissem prontas à nossa frente,
agora sim dando significado aos vários números de várias cores que vínhamos vendo aparecer caoticamente.
Se o mundo é todo misturado, seria ingenuidade buscar em Riobaldo características precisas e perenes. Ele
mesmo está em constante transformação, nada tem a ver com aquela imagem do herói nos legada pela infância. Herói
coerente, valorativamente construído, corajoso, em resumo, infalível. Nada tem Riobaldo de um Robin; muito menos de
um Batman. Sua vida começa já com um ponto obscuro — a paternidade.
De sua mãe, Riobaldo pouco fala. Seu pai é misterioso, uma nuvem a ser encontrada e nomeada. Até a página
95, onde se encontra a passagem onde ele conta que soube da identidade de seu pai quando alguém, de quem ele nem
mesmo se recorda mais, lhe disse que não era de graça que suas feições copiavam as do retrato de Selorico Mendes, todas
as referências à paternidade são sugeridas de uma forma muito disfarçada. Como se o leitor devesse tomar contato com
esta informação da mesma forma como Riobaldo tomou. Ele já desconfiava do fato, juntando pelos tempos pedaços de
conversas, frases fugidias, sempre insinuações, sem jamais ter a Selorico Mendes pergutando qualquer coisa sobre o assunto.
O leitor segue o mesmo caminho, informações, meias palavras. Seria pouco pensar que o problema que aqui se coloca é
simplesmente um problema de identidade. Não o é. A relação Riobaldo/Selorico Mendes é uma relação conflituosa do
começo ao fim do livro, relação que para ser enfrentada demandaria de nosso herói uma coragem que ele nunca conseguiu
ter. Riobaldo assume que demorou a ser um homem corajoso: “coragem em mim era variável” (Rosa, p. 38).
Coragem que ele vê em Diadorim desde menino, desde aquele dia perdido de sua infância em que o garoto
Reinaldo o convidou para passear de canoa. O duplo medo de Riobaldo — ao ter de atravessar o rio e depois ao se
defrontar com o mulato insinuador — se contrasta com a presença de espírito de Reinaldo no trato destas situações.
Estado este que em Diadorim é uma constante e que inclusive o levará à morte. Se é certo que Riobaldo, tanto como o
leitor, a partir de um certo momento já não tem mais dúvidas sobre sua paternidade, também o é que em nenhum momento
Riobaldo dá a relação por resolvida. Pelo contrário, ele até nomeia seu cavalo em lembrança a seu pai: “E foi por durante
quase uma hora, montado no meu cavalo ruim chamado Padrim-Selorico, a passo por aqueles ruins campos até se chegar
perto do povoado do Sucruiú, onde estava arranchada a horrorosa doença, por cima da pior miséria” (Rosa, p. 295).
É bastante significativo que esta referência se dê neste momento do livro. Riobaldo e seus cavaleiros, a caminho
do Chapadão do Urucúia, se deparam com um grupo armado que tenta impedí-los de seguir em frente, passando por
Sucruiú. Sucruiú é uma cidade desolada, perdida que está em meio a uma terrível doença, “peste de bexiga preta”, que
transformou seus habitantes em miseráveis chagas de humanidade. Atravessar Sucruiú, montado em Padrim-Selorico,
simboliza um profundo mergulho em suas próprias chagas, deixadas ao relento no decorrer destes anos todos. Rumo ao
escuro de incertezas meticulosamente precisas.
Transpassar este espaço foi para Riobaldo também superar o afastamento intencional em relação a seu pai,
desde que ele fugiu da fazenda São Gregório para nunca mais voltar. Foi poder assumir a relação como parte de si mesmo,
como algo que poderia ter sido, como parte de uma memória a ser resguardada e resgatada. “Nunca mais vi meu padrinho.
Mas por isso ele não me desejou mal; nem entendo. De certo, ficou entusiasmado, quando teve notícias de que eu era o
jagunço. E me deixou por herdeiro, em folha de testamento: das três fazendas, duas peguei. Só o São Gregório foi que ele
testou para uma mulata, com que no fim de sua velhice se ajuntou. Disso não fiz conta. Mesmo o que eu recebi eu menos
merecia. Agora, derradeiramente, destaco: quando velho, ele penou remorso por mim; eu, velho, a curtir arrependimento
por ele. Acho que nós dois éramos mesmo pertencentes” (Rosa, p. 90).
O encontro de Riobaldo com suas lembranças é mediado pela herança que ele recebe de seu pai. Isto nos deixa
frente a um outro tema relevante do romance. A relação entre dois lugares diferentes do universo social: a cidade e o
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campo.
A cidade (e mesmo uma parte do campo) é o reino do valor de troca, da venalidade que permeia todas as
relações que aí se desenvolvem, que domina impetuosamente o mundo, transformando tudo o que toca em mercadoria
e elegendo como mercadoria primordial o trabalho humano, enquanto trabalho assalariado. Ao transformar a forma
de produzir, no processo de trabalho, se objetiva a subsunção real do trabalho ao capital (Marx, 1978). Temos aí a instauração
de uma nova forma de se ver o espaço ao lado de uma nova temporalidade. Um tempo racional, quantitativo, se contrapõe
a um tempo cósmico, natural e qualitativo. O tempo marcado pelas diferentes intempéries e pelas variações físicas — dia/
noite, primavera/inverno, chuva/sol — se contrapõe ao tempo abstrato, medido pela convenção da hora, minuto, segundo,
tempo repartido, passível de controle. O espaço, medido por referências naturais — o lugar é depois daquele morro, a
cidade está a três dias a cavalo — é suplantado pelo espaço abstrato — o metro.
Este é o mundo da mais-valia, o mundo onde as necessidades são definidas pelo capital. Portanto, é lugar
socialmente constituído pelo antagonismo. O mundo do trabalho camponês é o mundo do produto excedente e não do
trabalho excedente. É um mundo que é destruído pelo antagonismo, onde a relação do trabalho com o capital é uma
relação residual.
A relação entre as pessoas é mediada pelo resíduo de seu trabalho. A consciência dessas pessoas se forma pela
mediação da natureza, ponto de referência básico em suas vidas. Queremos deixar claro que o processo de desenvolvimento
do capitalismo cria estas duas realidades ‘separadas’ como formas de manifestação de um mesmo processo de realização
de mais-valia, de reprodução de capital, onde estas relações são duas dimensões diferentes deste processo. Temos ritmos
diferentes criados dentro desta lógica de reprodução e não dois lugares separados, um deles resquício de um passado
“pré-capitalista”. Se o trabalho camponês ainda pode ocorrer de uma forma não especificamente capitalista (trabalho não
assalariado), a realização de sua produção se dá sob a égide do capital (subsunção formal do trabalho ao capital) (Martins,
1980). O que queremos aqui ressaltar é que estas duas formas diferentes de trabalho criam duas formas diferentes de
apreensão da realidade, dois espaços simbólicos que se chocam e ao mesmo tempo se mesclam na realidade social. Se a
realidade expressa um processo contraditório, seria de se estranhar que o seu simbólico não expressasse esta mesma
contradição. Esta diferenciação para nós é importante para podermos perceber como estas possibilidades se combinam no
percurso de Riobaldo.
O universo da jagunçagem é um universo simbólico mais permeado pelo universo do trabalho camponês do
que pelo universo do trabalho assalariado. A natureza como mediadora da constituição deste universo, é uma constante
durante todo o romance. Se Diadorim é o caminho para Riobaldo em direção às belezas da natureza, “o comum: essas
garças, enfileirantes, de toda brancura; o jaburú; o pato-verde, o papo-preto, topetudo; marrequinhos dansantes; martim-
pescador; mergulhão; e até uns urubús, com aquele triste preto que mancha. Mas, melhor de todos — conforme o Reinaldo
disse — o que é o passarim mais bonito e engraçadinho de rio-abaixo e rio-acima: o que se chama o manuelzinho-da-crôa.
Até aquela ocasião, eu nunca tinha ouvido dizer de se parar apreciando, por prazer de enfeite, a vida mera
deles pássaros, em seu começar e descomeçar dos vôos e pousação. Aquilo era para se pegar a espingarda e caçar. Mas o
Reinaldo gostava: — ‘É formoso próprio...’ — ele me ensinou” (Rosa, p. 111). Riobaldo se refere a Diadonm. expressa seus
sentimentos sempre pedindo auxílio aos atributos naturais desta mesma natureza. “Mas os olhos verdes sendo os de
Diadorim. Meu amor de prata e meu amor de ouro” (Rosa, p. 42).
Os verdes olhos de Diadorim, que reluzem em seu rosto reforçando sua beleza são motivo de comparações
bastante sugestivas com a cor das campinas do sertão e com a instabilidade das águas de seus rios. “Os olhos — vislumbre
meu — que cresciam sem beira, dum verde dos outros verdes, como o de nenhum pasto (Rosa, p. 374). ‘Naqueles olhos e
tanto de Diadorim, o verde mudava sempre, como a água de todos os rios em seus lugares ensombrados. Aquele verde,
arenoso, mas tão moço, tinha muita velhice, muita velhice (...)” (Rosa, p. 219).
A própria relação de Riobaldo com as mulheres, relação oscilante entre o perigo do desconhecido e a calma
do certeiro mostra como o coração pode ser maior que seu próprio peito. “Do ódio, sendo. Acho que, às vezes, é até com
ajuda do ódio que se tem a uma pessoa que o amor tido a outra aumenta mais forte. Coração cresce de todo lado. (...)
Coração mistura amores. Tudo cabe” (Rosa, p. 145). Se no coração tudo cabe, as dimensões do amor para Riobaldo não são
menores: “Minha vida o diga. Se amor? Era aquele latifúndio” (Rosa, p. 148). Se grande, é ao mesmo tempo sempre
assustador e inesperado, cheio de improvisos. “Amor é assim — o rato que sai dum buraquinho: é um ratazão, é um tigre
leão”’ (Rosa, p. 323). Até mesmo a flor do amor muda de nome dependendo da situação onde ela surge. Dorme-comigo,
pronunciada por Nhorinhá, casa-comigo por Otacília, e liroliro, pela mesma Otacília em presença de Diadorim. Mistérios
que perpassam o dia e a noite. Quando a gente dorme, vira de tudo: vira pedras, vira flor (Rosa, p. 219). Dia que para
Urutú-Branco por ser chefe é penoso: “Ser chefe, às vezes é isso: que se tem de carregar cobras na sacola, sem concessão de
se matar..” (Rosa, p. 390).
Se as situações da existência de Riobaldo, seus amores, seus afazeres, recebem pela mediação da natureza
expressões invejáveis, com o tempo, nao poderia ocorrer nada muito diferente: “Isto tudo se deu curto que nem mijar dum
sapo” (Rosa, p. 299). Mesmo a morte de Diadorim será chorada por Riobaldo de maneira não menos singular: “Diadorim,
Diadorim, oh, ah, meus buritizais levados verdes... Buriti, do ouro da flor...” (Rosa, p. 453). Assim, a importância dos
atributos naturais como mediação da própria constituição de significado dos fatos, ações e sentimentos humanos para os
personagens do romance, são mais do que evidentes e, por isso, não nos deteremos mais sobre este ponto.
Os personagens do romance manifestam de forma exemplar a tensão destes universos regidos por formas
diferentes de produzir.
Nos chefes jagunços temos uma outra mostra desta multiplicidade genética que conforma nossa história.
Temos na figura de Zé Bebelo o representante chave da política dos novos tempos. Temos em Medeiro Vaz o seu outro,
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homem que parece surgir do escuro do tempo, ex-fazendeiro que tudo larga para cavaleiro se tornar. Em Riobaldo e Joca
Ramiro temos duas formas diferentes de uma certa simbiose original. Joca Ramiro ocupa um lugar quase místico, como se
ele estivesse acima dos mortais, enquanto Riobaldo incorpora a dúvida, parece estar sempre com um pé em cada mundo,
um pensamento em cada universo.
Não é de se estranhar, portanto, que Riobaldo Tatarana, no episódio da Fazenda dos Tucanos, exteriorize
suas próprias angústias. “Disso eu fiz um pensamento: que eu era muito diverso deles todos, que sim. Então eu não era um
jagunço completo, estava ali no meio executando um erro” (Rosa, p. 271). Esta formação mesclada está presente em Riobaldo
o tempo todo e interfere em seus pensamentos de formas às vezes surpreendentes. “Olhe: o que devia de haver, era de se
reunirem-se os sábios, políticos, constituições gradas, fecharem o definitivo a noção — proclamar por uma vez, artes
assembléias, que não tem diabo nenhum, não existe, não pode. Valor de lei! Só assim, davam tranqüilidade boa à gente.
Por que o Governo não cuida?!” (Rosa, p. 15).
É bastante expressiva esta passagem. Riobaldo relembra seus passeios pelos terrenos obscuros da existência
do “cara de cão” e formula neste trecho um pedido realmente original: institucionalizar a não existência do Diabo. Pois,
nos novos tempos em que se vive, o poder da lei, poder jurídico, de regulação e regulamentação da possibilidade de
conflito, indispensável para a existência da troca, é invocado com o sentido de impedir o conflito espiritual dos homens,
perdidos em batalhas dicotômicas celestiais/infernais. Invocado, surge com a autoridade que só um mundo onde a relação
entre os homens aparece como uma relação entre produtos poderia lhe conferir. Esta contradição informa o pensamento e
o imaginário de Riobaldo durante toda sua existência enquanto personagem-narrador. “Sei quem é chefe? Só o gatilho de
arma-de-fogo e os ponteiros do relógio” (Rosa, p. 434). Chefes distintos de realidades distintas comandadas pelo mesmo
processo de reprodução.
Isto se expressa também, mutatis mutandis, quando Riobaldo afirma que “Não gosto de me esquecer de
coisa nenhuma. Esquecer para mim é quase igual a perder dinheiro” (Rosa, p. 308). Riobaldo sublinha a importância da
memória pois só através dela pode um narrador que acumulou experiências ter o que contar mesmo que isso se dê em
um mundo onde “a experiência caiu de cotação” (Benjamin, p. 57).
Max Weber, ao citar Tolstói, compara o significado da experiência para os antigos e para o homem civilizado.
“Abraão ou qualquer camponês dos velhos tempos morria ‘velho e saciado de viver’ porque fazia parte do círculo orgânico
da vida; porque, de
acordo com o seu sentido imanente, a sua vida lhe tinha já dado, ao chegar ao fim dos seus dias quanto a vida lhe poderia
oferecer; porque não ficava, à sua frente nenhum enigma que desejasse decifrar e podia sentir-se ‘satisfeito’. O homem
civilizado, pelo contrário, imerso num mundo que constantemente se enriquece com novos conhecimentos, idéias e
problemas, pode sentir-se ‘cansado de viver’ mas não saciado. Nunca terá sido capaz de captar mais que uma porção
mínima do que a vida do espírito constantemente ilumina, e que será, além disso, algo de provisório, nunca definitivo”
(Weber, 1973, p. 159-160). Este trecho nos mostra como a experiência só tem significado em um mundo onde existe a
possibilidade do homem se sentir saciado. Sublinha a perda da importância da experiência, dúvida que perpassa Riobaldo
durante todo o romance e que se expressa de forma exemplar no episódio do velho do Morro dos Ofícios onde, a desconfiança
em relação à experiência, cortou de Riobaldo um de seus possíveis caminhos — o reencontro com Nhorinhá. Se a experiência
joga alguma luz sobre o passado, mostra-se incapaz de nos dizer qual dentre as possibilidades do futuro é a melhor. Isto
coloca em relevo uma problemática cara a Max Weber: qual o significado das ações sociais, seus fundamentos, suas
motivações.
A citação de Riobaldo, onde perder dinheiro aparece como mais importante que o lembrar, expressa dúvidas
em relação ao potencial desta experiência contida pela memória. Vivemos um tempo onde perder dinheiro é perder tempo
de trabalho em um mundo onde “acabou o tempo em que o tempo não vinha ao caso” (Benjamin, 1982, p. 63).
O julgamento de Zé Bebelo coloca em destaque duas formas diferentes de se conceber uma mesma realidade.
Preso e confrontado com Joca Ramiro, exige julgamento, atitude de homem que tem nas leis um parâmetro de referência
de sua existência. Isto ressaltou nos sertanejos que aquele homem era de fora, não pertencia àquela terra. “Arte, o julgamento?
O que isto tinha de ser, achei logo que ninguém ao certo não sabia. O Hermógenes me ouviu, e gostou: — ‘É e é. Vamos ver,
vamos ver, o que não sendo dos usos...’ — foi o que ele citou” (Rosa, p. 195). É claro que a cena só poderia se constituir
como parte narrativa se o pedido de Zé Bebelo encontrasse ressonância em um universo simbólico semelhante ao seu, no
caso, o de Joca Ramiro.
Seu Habão, por,seu lado, representa de forma mais evidente o homem do novo tempo, mesmo sendo sertanejo.
Homem comercial, ao mesmo tempo que cedia cabeças de gado aos bandos de Zé Bebelo, preocupava-se com a quantidade
que já havia sido abatida para acertar sua contabilidade. É o homem do futuro, do dinheiro, do lucro, da troca. Sua
fazenda não é pensada simplesmente como fazenda, mas como uma empresa, entidade permanente. “Eu pensei: enquanto
aquele homem vivesse, a gente sabia que o mundo não se acabava” (Rosa, p. 312). “O que me dava a qual inquietação, que
era de ver: conheci que fazendeiro-mor é sujeito da terra definitivo, mas que jagunço não passa de ser homem muito
provisório” (Rosa, p. 312-3). Seu Habão representa um futuro que não é o seu. A dupla temporalidade expressa,
arrasadoramente, a superação de uma
realidade social por outra. A finitude do jagunço contrasta com a infinitude do fazendeiro empresarial, do novo processo
que se instaurou como que definitivo com o estatuto de eternidade. A luta é luta desigual e Riobaldo é sagaz em perceber
que o destino é inelutavelmente dominador.
Destino este que só se realizará como possível através da superação da dicotomia Deus/Diabo que será alvo
de Riobaldo durante todo o romance. O que para nós aqui é interessante ressaltar é que em nenhum momento Riobaldo
resolve o problema de uma forma religiosa, dogmática. A questão que se coloca em discussão não é valorativa, não se trata
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de se descobrir os caminhos do bem, fugindo-se da tentação do mal, mas relativizar ambas as partes pela mediação do
próprio Homem. Riobaldo sente o tempo toda influência dos dois, cada um se apresentando em determinados momentos
interferindo em determinados pensamentos. Se os dois surgem, existe uma possibilidade de que nenhum deles realmente
exista.
O homem é múltiplo, tem Deus e tem Diabo. “Explico ao senhor: o diabo vige dentro do homem, os crespos
do homem — ou é o homem arruinado, ou o homem dos avessos. Solto por si, cidadão, é que não tem diabo nenhum.
Nenhum! — é o que digo” (Rosa, p. 11). O Diabo não tem existência própria, ele surge em determinados momentos do
próprio homem. Daí Urutú Branco afirmar que “Não sou do demo e não sou de Deus!” (Rosa, p. 373), pois se somos a um
tempo Deus e Diabo, somos ao mesmo tempo a negacão de ambos.
Deus/Diabo trocam de lugar o tempo todo, são entidades que participam do processo de estabilização do
universo simbólico do sertão, que tem em Veredas Mortas a materialização de seu espaço primordial dentro de Grande
Sertão: Veredas. Lugar simbólico, lugar de passagem, união entre dois mundos, entre duas temporalidades, entre o Novo e
o Velho, entre Demo-Dia-Deus. O pacto proposto tem seu lugar neste processo de investigação da existência do par, pois
Deus/Diabo são entidades definidas uma pela outra. A travessia do Liso por Riobaldo e a morte de Hermógenes por
Diadorim/Dia fazem com que o processo de desmitificação aconteça. Fazem com que se dissipe o diabo na rua no meio do
redemoinho. “O diabo não há! É o que eu digo, se for... Existe é o homem humano. Travessia” (Rosa, p. 460).
Homem é o que existe, e nas páginas do romance este homem é o homem que “‘perdeu a inocência no dia da
criação, e não conheceu ainda a força que produz o pecado original’. Ele está ainda além do céu e do inferno” (Fala de
Guimarães Rosa in Lorenz, 1983, p. 86). Esta amoralidade, que a nosso ver é um dos pontos marcantes do
romance foi representada no filme Noites do Sertão de Carlos Alberto Prates Correa, em que pese a dificuldade de se colocar
Guimarães Rosa nas telas de cinema, de uma forma bastante exemplar.
A imagem que Riobaldo tem das prostitutas reforça esta visão externa a julgamentos valorativos, precisamente
quando ele valora de forma positiva o consolo que delas provem. “Que queriam mulheres principalmente a fim, estava
certo: eu também. Eu queria, com as faces do corpo, mas também com entender um carinho e melhor-respeito — sempre
a essas do mel eu dei louvor de meu agradecimento. Renego não, o que me é de doces usos: graças a Deus toda a vida tive
estima a toda meretriz, mulheres que são as mais nossas irmãs, a gente precisa melhor delas, dessas belas bondades”
(Rosa, p. 180).
Amoralidade que também se expressa de maneira exemplar na história de Maria Mutema, a história mais
longa dentro da história de Riobaldo. A história de Maria Mutema é contada em um momento importante do livro, logo
após a luta contra Zé Bebelo e exatamente antes do desaparecimento de Diadorim, que tanta expectativa e tristeza trouxe
a Riobaldo.
Maria Mutema era uma mulher comum que, um dia, perde o marido. Torna-se então religiosa fervorosa que
ia à igreja confessar-se várias vezes por semana. O padre que ouvia suas confissões começa a definhar e acaba por morrer.
Depois, toda a história se esclarece. Maria Mutema havia matado o marido derrubando chumbo quente dentro de seu
ouvido e confessava-se ao padre atribuindo a um amor por ele as razões de seu crime. As duas mortes, porém, sem
nenhum motivo concreto. Ao fim, tomada de arrependimento, pedia a todos perdão e castigo, cuspidas e bordoadas,
exclamando merecer tudo isso. Após algum tempo, tamanha a humildade, começaram a dizer que Maria Mutema estava
virando santa.
A nosso ver, a história fala, em um primeiro momento, sobre os limites entre o berm e o mal. Mas, e mais
profundamente, o que se explicita ali são as potencialidades da pureza, que através da história de um “mal puro”
(Galvão, 1983, p. 410) consegue embaçar os limites entre o bem e o mal e, por conseqüência, seus fundamentos em
relação ao que seria divino ou diabólico. A pureza é fundamento de santidade vem a ela associada tanto ao bem como ao
mal. Isto nos demonstra que o bem e o mal acabam se encontrando no divino. A situação não se presta a julgamentos
morais. Como não lembrar aqui de Adrian Leverkühn, o compositor em Doktor Faustus de Thomas Mann? Não é de
graça, portanto, que Riobaldo assuma seu amor por Diadorim poucas páginas após a narração desta história. Ele também
representa uma coisa dentro de outra, quem é sem nunca ter sido.
As mulheres são decisivas na vida de Riobaldo. Elas têm uma importância que pode passar despercebida se
levarmos em conta sua presença efetiva nas páginas do ro
mance. Exceção feita e comprovada por Diadorim que, embora mulher, ocupa 454 páginas do romance como se fosse
homem. Seu sexo é sugerido, nas mais variadas passagens do livro, tanto por sua aparência como por suas atitudes sui
generis. Diadorim tem braços delicados e seu rosto é composto por traços finos, singelos. Diadorim lava as roupas de
Riobaldo, ao mesmo tempo que nunca toma banho no rio em companhia de seus companheiros mas, somente ao cair da
noite. Solitariamente. Jamais tira seu jaleco, o que deixaria a mostra seus contornos femininos. Apesar de sugerido, o sexo
de Diadorim nunca se explicita, o que acaba fazendo com que Riobaldo sofra tenazmente em função da forte atração que
sente por ele.
Esses indícios são, às vezes, bastante simbólicos. “Noite essa, astúcia que tive uma sonhice: Diadorim passando
por debaixo de um arco-íris. Ah, eu pudesse mesmo gostar dele — os gostares...” (Rosa, p. 41). Riobaldo luta ferozmente
contra as tentações em direção a Diadorim. Curiosamente, entretanto, quanto mais ele se esforça para fugir de Diadorim,
mais apaixonado por ele Riobaldo acaba se encontrando. Quanto mais ele evita tocar em Diadorim, mais ele se sente
impelido a tocá-lo. Provocativamente. É Riobaldo quem toma a iniciativa em direção a Diadorim, mesmo que ele alegue
inconsciência: “Mas minha mão, por si, pegou a mão de Diadorim, eu nem virei a cara, aquela mão é que merecia todo
entendimento. Mão assim apartada de tudo, nela um suave de ser era que me pertencia, um calor, a coisa macia somente”
(Rosa, p. 273). Ato este que provocou em Diadorim um encolhimento de repulsa. Ou de medo. A relação entre ambos, a
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forma das reflexões de Riobaldo, navegam sempre no sentido de sugerir uma relação homossexual, o que faz com que
Riobaldo tenha que elaborar as mais variadas justificações para compreender suas atrações por Diadorim, seu amor calado,
jamais confessado.
As mulheres portam os segredos de nossa história. São elas que representam a discussão sobre as possibilidades
dos diversos caminhos a se seguir. São elas as causas potenciais dos possíveis pontos de inflexão na vida de Riobaldo. São
elas que trazem os momentos de ruptura. São elas expressão do amor de Riobaldo: “sempre que se começa a ter amor a
alguém, no ramerrão, o amor pega e cresce é porque, de certo jeito, a gente quer que isso seja, e vai, na idéia, querendo e
ajudando; mas, quando é destino dado, maior que o miúdo, a gente ama inteiriço fatal, carecendo de querer, e é um só
facear de surpresas. Amor desse, cresce primeiro; brota é depois” (Rosa, p. 108). O amor é fatal. Cresce para todo lado.
Mesmo para o lado do proibido. Diadorim está ali e é impossível. Sempre tentação. Benedito Nunes nos diz que Riobaldo
conhece três espécies diferentes de amor: o enlevo por Otacília, a recordação voluptuosa por Nhorinhá e a paixão dúbia e
flamejante por Diadorim (Nunes, 1983, p. 144). Não nos parece que esta separação faça jus às paixões de Riobaldo. A nosso
ver, a atração que Riobaldo sente pelas três mulheres explicita, materializando-se em pessoas diferentes, três dimensões de
um mesmo processo afetivo, três momentos de uma mesma paixão. Seus três amores são as várias possibilidades de um
mesmo amor. Paixão que não tem limites, que tenta romper as bar
reiras do socialmente aceitável, não sem profundas angústias para Riobaldo. Se o sexo de Diadorim se prova possível no
final, isto não invalida o fato de Riobaldo ter se colocado o problema de amar Diadorim. O amor não tem fronteiras. Sua
efetivação sim. “O amor dá as costas a toda reprovação” (Rosa, p. 353).
Diadorim, Otacília, Nhorinhá. Três mulheres, três destinos. Elas levam a Riobaldo as possibilidades de alteração
de sua vida. O velho do Morro dos Ofícios, ao contar da existência de um tesouro enterrado numa fazenda, poderia ter
levado Riobaldo a, passando por São Josezinho da Serra, reencontrar Nhorinhá. Riobaldo teria então se casado com ela e
não com Otacília. Sua vida teria sido outra. Como foi outra ao seguir Reinaldo na jagunçagem. É uma mulher que carrega
também o segredo de Diadorim. A única pessoa a saher seu verdadeiro sexo é a mulher de Hermógenes, ninguém mais.
A morte de Diadorim será seu derradeiro ato de coragem. A vingança desnudaria Diadorim definitivamente.
“... — Riobaldo, o cumprir de nossa vingança vem perto... Daí, quando tudo estiver repago e refeito, um segredo, uma
coisa, vou contar a você...” (Rosa, p. 386). Quis o destino romanesco que Diadorim assumisse seu sexo ao morrer pela mão
de Hermógenes e não por intermédio de suas próprias palavras, o que teria dado outro rumo à vida de Riobaldo. Ele tinha
todos os possíveis, Nhorinhá, Otacília, Deodorina. Casou-se com Otacília. Por acaso. Sobraram mágoas das lembranças
carinhosas de Nhorinhá e Diadorim. Viver é muito perigoso. Pelos mistérios e perigos que uma vida no sertão pode conter.
Pelos mistérios e perigos que o amor pode trazer.
Como a morte que, ao se efetivar, realiza todo o sentido de uma vida. Morte reveladora que carrega consigo
os significados do impossível. Que estabelece a unidade sempre esperada e nunca encontrada. É através dela que o amor
impossível por Diadorim se torna efetivamente impossível. Se torna perenemente memória.
A narrativa de Riobaldo nos fez colher dados dispersos que compuseram a imagem final do livro, de uma
forma sempre lenta, com grossas pinceladas de cores fortes, cada uma contendo mais do que a si própria. Como em um
quadro de Monet onde fixar a fugacidade da luz, o efêmero das coisas, é mais importante que as elaborações desenhísticas,
onde o jogo de luz e sombras sugere o movimento e o espaço. Onde o fato do resultado final do trabalho se concretizar em
algo que emociona o espírito, acaba por atestar sua transcendência em relação a seus componentes materiais — tela e tinta.
Traços que, olhados de perto, nada mais são que borrões multicoloridos, mescla informe de pinceladas rápidas e precisas,
brilhante mistura de matizes, só adquirem forma visível quando nos afastamos o suficiente para possibilitar que a impressão
se transforme magicamente em sensação. Finalmente.
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WEBER, Max. O Político e o Cientista. Lisboa, Editonal Presença, 1973.
Tempo Social; Rev. Social. USP, S. Paulo, VOLUME 1(1) A R T I G O

POR UMA GEOGRAFIA HOSPITALAR


José Leopoldo Ferreira Antunes*

ANTUNES, José Leopoldo Ferreira. Por uma geografia hospitalar. Tempo Social; Rev. Sociol. USP, S. Paulo, 1(1): 227-234,
1.sem. 1989.
RESUMO: O artigo postula e anuncia uma nova disciplina — a “geografia hospitalar” — que enfoca as
instituições de atenção à doença e os procedimentos profissionais de saúde. Suas bases são lançadas de modo sumário, e
seu objeto de intervenção é dividido em três áreas: o estudo retrospectivo da inserção do hospital no traçado urbano, o
registro da divisão interna de espaços no ambiente hospitalar e o reconhecimento dos diferentes fluxos migratórios em seu
interior, e a análise da relação que entre si estabelecem hospital e sociedade. Sob o pretexto de apresentar os principais
parâmetros de uma disciplina inédita, o ensaio procura sublinhar uma perspectiva não-convencional de abordagem das
instituições médicas, e, ainda que apenas como diretriz para pesquisas, converge para a crítica desses estabelecimentos.
UNITERMOS: Instituições de saúde, hospital e urbanismo, hospital e sociedade.

ANTUNES, José Leopoldo Ferreira. Towards a hospital geography. Tempo Social; Rev. Sociol. USP, São Paulo, 1(1): 227-
234, 1.sem. 1989.
ABSTRACT: The article’s aim is to introduce “hospital geography” as a new discipline in the field of social
sciences, focused on medical institutions and professional health proceedings. Its bases are summarily established and its
object is defined by means of three research areas: retrospective studies of hospital insertion in urban space, examinations
of hospital internal divisions, both with regard to space and to the migratory flow of people, and discussion of the relationship
between hospital and society. Under the pretense of presenting some parameters for the establishment of an unprecedented
discipline, this study tries to emphasize a non-conventional approach to hospital leading to a criticism of medical institutions,
even if only by means of a few directions for empirical research.
UNITERMS: Health institutions, hospital and urbanism, hospital and society.

* Pesquisador científico do Instituto Adolfo Lutz da Secretaria de Estado da Saúde (São Paulo). Pós-graduando do Departamento de Sociologia da
FFLCH-USP.

Muito antes que a medicina, a arquitetura foi a primeira arte a ocupar-se do hospital. A idéia de que o doente
necessita de cuidados e abrigo é anterior à possibilidade de lhe dispensar tratamento médico. E todas as cidades, em todas
as épocas, mobilizaram-se para prover esta necessidade. Templos, conventos e mosteiros foram as primei
ras instituições a recolher doentes e providenciar-lhes atenções especiais, como no culto a Asclépio na Grécia Antiga.
Organizações especificamente médicas surgiram no Império Romano inspiradas por motivos econômicos e militares. Mesmo
assim, toda a Idade Média partilhou a convicção de que a assistência social era o remédio mais indicado em casos de
doença e outros infortúnios.
O que fazer com o doente? Essa questão é antiga, e tem implicações coletivas e sociais desde sempre
reconhecidas. Curiosas soluções foram-lhe aplicadas ao longo dos anos, todas centradas no postulado de que o doente
deveria ser instalado na posição horizontal numa área de acesso restrito. Dessa maneira, os hospitais medievais foram
construídos como verdadeiros labirintos onde pequenas celas, com o tamanho da cama, sucediam-se num emaranhado de
corredores pelo qual circulavam os religiosos que vinham trazer conforto espiritual aos corpos doloridos. A caridade fora
cultivada pelas principais religiões do Ocidente — judaísmo, cristianismo e islamismo — e, assim, toda uma classe de
desprovidos não tardou a reivindicar os benefícios do recolhimento hospitalar. Além deles, também os viajantes costumavam
recorrer a este expediente, contribuindo à confusão etimológica entre hospital e hospitalidade.
Associada à secularização de seu controle administrativo, a conjunção da medicina com o hospital favoreceu,
num momento histórico posterior, o surgimento do hospital moderno. Louvado por uns, temido por outros, foi
considerado espaço ideal para o provimento de serviços gerais de saúde à população. E experimentou intenso
desenvolvimento baseado no progresso científico recente. A especialização da medicina dividiu as doenças em diferentes
categorias, e separou os enfermos de acordo com esta classificação. Além disso, a complexidade crescente dos
procedimentos diagnósticos e terapêuticos complicou a tal ponto o ambiente hospitalar, que hoje em dia, quem adentrasse
seus corredores desavisadamente, poderia acreditar estar passeando numa dessas naves espaciais que vemos nos seriados
de ficção científica.
Alçados ao topo de sua hierarquia técnica e administrativa, os médicos determinaram talvez a maior parte
dessas alterações. Outras terão sido impostas pelos critérios modernos de otimização de recursos, enquanto algumas,
ainda, teriam derivado de mudanças nos costumes. De qualquer modo, o hospital erigiu-se em monumental acervo de
documentos que ultrapassa as necessidades de transmissão do saber médico, e o converte em lugar privilegiado da producão
de conhecimentos humanos em geral. Uma nova disciplina abordando as diferentes questões espaciais envolvidas na
configuração hospitalar poderia ser proposta. Seu título — geografia hospitalar — seria o índice da aspiração médica em
estatuir o hospital como meio natural de perseguir fins legítimos. O presente artigo propõe-se, numa pretensão desmesurada,
a lançar bases para a nova disciplina.
Além dos arranha-céus, igrejas e shopping centers, um tipo de prédio chama atenção por seu porte imponente:
o hospital. A instituição médica cultiva uma singularidade que a diferencia no contexto urbano, e justifica-a enquanto local
aparte. Visa instalar um espaço onde fosse permitido algo que a sociedade no mais das vezes exclui — de um lado, a
Tempo Social; Rev. Social. USP, S. Paulo, VOLUME 1(1) A R T I G O

sobrevivência dos enfermos, de outro, a morte. As doenças dotam uma situação de certas tensões psicológicas que impedem
as pessoas de cumprirem suas responsabilidades sociais. Os hospitais pretendem cumprir a função de distender esse
amplo leque de preocupações que poderia emperrar a vida social. E tal despreocupação, característica urbana acentuada
nas metrópoles, apenas é possível graças a um espaço próprio especialmente designado para o super-dimensionamento de
uma preocupação.
Ao configurar um espaço alheio às atribulações do dia a dia, onde estão teoricamente maximizadas as condições
de cuidado com a saúde, os hospitais acreditam liberar os cidadãos a seus muitos afazeres, eximindo-os de preocupações
com a própria saúde e a de seus próximos. Desse modo, os cidadãos poderiam otimizar a aplicação de seu tempo nas
demais esferas da vida societária — o trabalho, o lazer, as relações familiares, as amizades, etc. O funcionamento de seus
corpos, assim como a educação de seus filhos, a construção de suas moradas e a confecção de suas roupas, passa a ser
delegado a um segmento social especificamente qualificado. Esse processo exime as pessoas de até mesmo pensar neste
assunto. Hoje em dia, o precavido, que “pensa” na saúde, é quem não atrasa o pagamento mensal de algum tipo de seguro
de saúde ou consórcio médico, e não os que tentam refletir sobre as próprias reações fisiológicas.
“Vá cuidar de sua vida, que de sua saúde cuidamos nós!” dizia o anúncio de um convênio empresarial para
prestação de serviços de assistência médico-hospitalar. De certa forma, captara bem o sentido da intervenção dos hospitais
nas sociedades contemporâneas. A distinção idealizada entre “vida” e “saúde” reflete a segmentação da organização
social, e a alienação de dimensões da existência a que estamos sujeitos. E é a outra face da exterioridade que o hospital
institui com relação à vida social. Este é o principal conceito que a nova disciplina utiliza num primeiro enfoque geográfico,
que aborda a inserção do hospital nas cidades. Sua percepção implica em duas conseqüências.
Por um lado, essa exterioridade apresenta vias de escape aos encargos sociais de uma vida tão perturbada por
obrigações e carências, e exerce um certo fascínio, um poder de atração sobre os cidadãos. A atenção médica, uma ação
sobre os corpos, pode ser pensada em uma acepção benigna, como um carinho aos despossuídos. Deste modo, a função do
hospital seria conceder a bênção de um local sagrado ao qual as pessoas acorrem exigindo sua internação, mesmo que,
muitas vezes, e sem o saberem, apenas para comungar uma refeição ou uma noite dormida em leitos hospitalares.
Por outro lado, entretanto, o hospital é responsável por um poder de repulsa sobre os cidadãos, que faz eco às
configurações hospitalares de outrora. O hospital superou
ao longo da história inúmeras restrições da opinião pública que o tomava por lugar infecto onde a morte campeava às
soltas. Além da aversão à doença e o receio de contágio, outro processo incrementava o repúdio ao hospital: a identificação
dos ideais sanitários com a consciência moral que consiste e cimenta a vida urbana. Este mecanismo é responsável por
uma intervenção recíproca, e faz da doença um mal, ao mesmo tempo que transforma em doença, e por extensão, em
objetos da ação hospitalar, outros males morais, como o são considerados o homossexualismo, o consumo de drogas e o
crime.
Este intrincado jogo de atração e repulsão faz do hospital objeto do desejo e da aversão, e suscita angústia a
quem com ele se envolve. Tem como subproduto a maior dificuldade em se atribuir sentidos e decifrar os significados de
tudo quanto pode ser vislumbrado em seu interior. Este processo realimenta o medo de alguns, a admiração de outros, e
motiva sentimentos ambígüos em todos. A atração e a repulsão que o hospital provoca nos cidadãos serão também
instrumentos do trabalho científico do geógrafo hospitalar, que estuda a incidência da instituição médica no traçado
urbano.
Fenômeno típico da vida em cidade, o hospital é imprescindível mesmo àquelas de pequeno porte, e raramente
é construído no campo. As exceções que confirmam a regra se inserem em projetos mais amplos de urbanização e extensão
de serviços urbanos à zona rural. A proximidade necessária aos centros populosos é compensada por uma tendência
secular que direciona a instalação de hospitais para os limites de jurisdição do município. É interessante notar que,
recentemente, quando representantes eclesiásticos falam em financiar a construção de um hospital especializado na atenção
aos pacientes com AIDS, lembrem-se também de mencionar que ele deveria ser localizado na periferia de São Paulo.
Este fato reflete a atração e a repulsão concomitantes de que o hospital historicamente fora objeto, e apenas
virtualmente podem ser hoje apreendidas. A expansão desigual e não projetada sofrida principalmente pelas metrópoles
obscureceu essa tendência, tornando difícil sua percepção, posto que os hospitais aparecem espalhados em todo o espaço
urbano. O Hospital Emílio Ribas, no valorizado bairro de Cerqueira César, atesta essa inversão de registros, e nos auxilia
a visualizá-la. Inaugurado a 8 de janeiro de 1880, o antigo Hospital de Isolamento de São Paulo tivera sua construção
iniciada quatro anos antes por subscrição pública promovida pela Câmara Municipal. Convencido da necessidade de
segregar os focos de infecção para evitar a propagação da varíola, então epidêmica na Capital, o Governo da Província
destinara uma verba que cobriria também as despesas de desapropriação do terreno situado à Estrada do Araçá (a atual
Av. Dr. Arnaldo), nº 1. Para se ter uma idéia de quão descampada era, na época, essa região, basta lembrar que apenas em
1896 foi, ali mesmo, instalado o Cemitério do Araçá, como complemento ao Cemitério da Consolação, fundado em 1854, e
de cuja expansão também podemos derivar o sentido do crescimento urbano.
Ao diferenciar nas pessoas o ser político de seu corpo biológico, o hospital assesta um dos limites da definiçáo
de cidadania, e se institui enquanto espaço fronteiriço ao direito de seu pleno exercício. A condição de exterioridade do
hospital em relação à vida social pode ou, ao menos, pôde ser também caracterizada a partir do ponto de vista da geografia
do traçado urbano. A primeira tarefa do pesquisador da nova disciplina será, portanto, reconstituir a história da cidade
através do estudo retrospectivo de seus hospitais.
A mesma relação de exterioridade e o mesmo jogo de proximidades e distâncias, de alheamento e integração,
podem ser identificados num segundo estudo geográfico abordando agora a divisão de espaços no interior do hospital. A
lógica médica que ordena o ambiente hospitalar impõe uma série de barreiras e acessos diferenciais, dirigindo o fluxo de
Tempo Social; Rev. Social. USP, S. Paulo, VOLUME 1(1) A R T I G O

todos que ali adentram. Alguns preceitos da divisão funcional dos blocos e andares que compõem um hospital são
transparentes e, pode-se mesmo dizer, louváveis. Tentam, por exemplo, afastar ao máximo os locais como as salas cirúrgicas
e os berçários, onde a susceptibilidade a infecções é mais acentuada, das seções que assistem aos portadores de moléstias
contagiosas. Em outros casos, no entanto, o mesmo não poderia ser dito. Os subterfúgios empregados para ocultar a
trajetória que precisam fazer os mortos percorrer, e a preocupação em dispor as salas de velório em locais de acesso
separado, são exemplos de como as razões médicas podem reforçar os estigmas sociais.
A centralização do poder de definição do espaço interno dos hospitais, e da rotina de seu funcionamento,
coincide com a centralização das decisões clínicas e terapêuticas na figura do médico, respaldadas ambas por sua titulação
acadêmica. Esse fato estabelece o topo de uma hierarquia à qual se agregam as demais categorias profissionais que atuam
no hospital, e cuja forma de relacionamento mútuo, a disciplina, é fator de constantes ressentimentos e tensões que se
repassam preferencialmente a seus mais baixos escalões, chegando inúmeras vezes a repercutir nos pacientes, em suas
visitas e em seus acompanhantes. É comum funcionários sem maiores habilitações terapêuticas erigirem-se em pequenos
ditadores que suscitam o pavor de doentes e familiares aflitos.
Situada na intersecção do hospital com a cidade, a portaria delimita seu ambiente interno com o entorno
social, e não apenas do ponto de vista espacial. Ali os pacientes são triados e encaminhados às unidades de pronto-
atendimento, à internação ou ao ambulatório. Ali são preenchidos os papéis necessários à efetivação do ato médico. Ali
são prestadas as contas dos serviços prestados, e se procura acertá-las. A portaria é um lugar tão importante, que há quem
a chame de “coração” do hospital. Em muitos hospitais, os médicos plantonistas costumam inclusive revezar-se na função
de porteiro para evitar triagens excessivamente invasivas realizadas por funcionários sem qualificação clínica.
Do ponto de vista do hospital, a portaria representa um primeiro teste a respeito da aceitação dos pacientes
quanto às normas da casa. Daí sua eminente conotação simbólica: desse teste se deduz a possibilidade de efetivar a bom
termo todas as etapas do ato médico. Do ponto de vista do paciente, entretanto, o relevo da portaria reside no fato de ela
marcar, para ele, o princípio de sua desventura hospitalar. Como se já não tivesse bastante preocupações, é também ali que
ele começa a enfrentar os tiranetes vestidos de branco.
Um outro ponto de intersecção do hospital com a vida social pode ser percebido, por quem está ali dentro,
nas próprias janelas do hospital. Uma pesquisa inaudita realizada no Hospital de Yale — New Haven, e relatada por John
D. Thompson e Grace Goldin, em seu The Hospital: A Social and Architectural History (New Haven, Yale University Press,
1975), perguntara aos pacientes o que mais lhes agradava no hospital em que estavam internados. A resposta fora quase
unânime entre homens e mulheres de todas as classes sociais, e em todas as seções clínicas: “as janelas”. Apreciavam olhar
pela janela, e revelavam passar bastante tempo fazendo-o. Uma mulher disse que a janela comunicava o quarto com o
exterior, e a fazia sentir-se menos prisioneira.
O Hospital Israelita Albert Einstein, em São Paulo, descobriu empiricamente a importância da janela para
seus internos: os quartos com visão para o bairro do Morumbi sempre lotam antes, de modo espontâneo, que a fachada
oposta. Também ciente disso, o Hospital Osvaldo Cruz oferece dois tipos de acomodações a seus pacientes. Ambos são
apartamentos individuais servidos por todas as regalias de um hotel cinco estrelas. A única diferença entre eles é a existência
de um terraço dando para um belíssimo jardim central nos quartos cuja diária é mais elevada. Além de consolidar as
estratégias de marketing do hospital, e ampliar sua captação de recursos, sua administração cultiva o jardim como fator de
incremento da eficácia terapêutica da instituição médica. O Hospital Emílio Ribas talvez não estivera atento a essa questão
no passado, e hoje indaga as conseqüências de sua fachada, quase de frente a um grande cemitério, sobre os pacientes.
Sejam os passarinhos, seja a confusão no tráfego ou o paulatino desenvolvimento de uma construção civil, o
paciente que olha para a janela vê aquilo que não existe no hospital. Quando vista de longe, apenas consegue identificar
sua moldura. Mesmo assim a janela lhe faz lembrar sua liberdade e autonomia, conseguidas a duras penas, e que lhe foram
suprimidas na internação. Por menores que elas possam ser nas sociedades contemporâneas, onde variam segundo a
posição social de seus integrantes, são sem dúvida ainda menores no interior de um hospital.
A segunda tarefa do cientista da nova disciplina será, então, levar adiante o projeto de esmiuçar, do ponto de
vista humano, o ambiente interno de cada hospital estudado. A história de constituição deste ambiente. Sua organização
setorial. A divisão funcional de seus blocos e andares. O fluxo diferencial das diversas correntes migrató
rias em seu interior: a verdadeira peregrinação dos pacientes, os caminhos percorridos pelas várias categorias profissionais
que ali atuam, a trajetória da roupa suja, do material descartado, etc. Os arredores do hospital. O desfile das desgraças que
começa em suas calçadas, e pode ser sentido no cenho franzido das pessoas sentadas nas salas de espera. Estes, dentre
outros poderiam ser alguns dos temas de interesse da nova disciplina.
O principal conceito da nova disciplina (a exterioridade do hospital à vida social) e seus corolários (a atração
e a repulsão concomitantes que exerce sobre os cidadãos) deverão ser integrados também a uma terceira e última tarefa a
ser apresentada aos novos cientistas. Sob a legenda de uma filosofia da ciência, eles deverão conjugar a teoria que elaboram
sobre o hospital a uma teoria sobre a sociedade que o institui.
Os médicos atribuem a manutenção e a proliferação de hospitais, um privilégio oneroso, a uma contribuição
positiva que eles exercem sobre a vida social. Em outras palavras, dizem que os hospitais existem para cumprir necessidades
que a sociedade, de outro modo, não poderia contemplar. Em vez de reforçar a base teórica sobre a qual se assentam os
hospitais, esta proposição deveria prestar-se a uma crítica social, visto que se a sociedade precisa do hospital para existir
é por ser, desde logo, uma sociedade doente.
Apesar de terem formas variando do individual (cura, fuga à dor, reabilitação) ao coletivo (profilaxia, higiene,
saúde pública), as necessidades que o hospital procura satisfazer são representações sociais das próprias carências instituídas
pela vida urbana. Uma configuração social competitiva e positivamente orientada exclui diversas dimensões da existência
Tempo Social; Rev. Social. USP, S. Paulo, VOLUME 1(1) A R T I G O

para além das fronteiras que delimitam sua identidade. Uma sociabilidade que não comporta a dor e o sofrimento, a
imanência da morte, a fragilidade biológica — dimensões que coexistem com a alegria, a capacidade produtiva e a
prodigalidade biológica — não pode cuidar de seus enfermos, nem tampouco promover a saúde coletiva, e para isso
recorre às instituições médicas.
Uma sociabilidade que não suporta a tristeza, a infelicidade e o fracasso que muitas vezes ela mesma
provoca, precisa construir espaços de supressão de si própria para onde possa deportar quem lhe desvia a atenção para
aquilo que já fora excluído de sua identidade. Neste sentido, não a doença em si, mas seu reconhecimento institucional
é um dos passaportes que habilitam algumas pessoas, em alguns momentos, numa seleção imponderável, à exclusão
social.
O hospital é então, uma das bordas da cidade, onde a vida social entra em regime de suspensão. Lugar da
dor, da ausências lugar da restrição de possibilidades. Em tais
lugares se evidenciam os limites físicos da existência humana. A fronteira da intimidade recua para dentro da própria
pele, deixando-a desprotegida. Já não se é senhor de seu próprio corpo, e é muito se ao menos o coração se pode manter
incólume. A existência de hospitais é duplamente triste. Por um lado eles presenciam condições desprivilegiadas de vida
e a morte. E, por outro, atestam a insensibilidade de uma forma de vida em comum que para manter-se necessitou erradicar
os desafortunados.
Tempo Social; Rev. Social. USP, S. Paulo, VOLUME 1(1) A R T I G O

MAIO DE 68: O ADVENTO DO


INDIVIDUALISMO E DA HETERONOMIA
Irene de Arruda Ribeiro Cardoso *

CARDOSO, Irene de Arruda Ribeiro. Maio de 68: o advento do individualismo e da heteronomia. Tempo Social; Rev,
Sociol. USP, S. Paulo, 1(1): 235-246, l.sem. 1989. Comentário crítico da obra de Jean Luc-Ferry e Alain Renaut.
Pensamento 68: ensaio sobre o anti-humanismo contemporâneo. São Paulo, Ensaio, 1989.

* Professora do Departamento de Sociologia — FFLCH-USP.

Comentário crítico da obra de


Jean Luc-Ferry & Alain Renaut — Pensamento 68: ensaio sobre o anti-humanismo contemporâneo. São Paulo,
Ensaio, 1988.
Este livro inscreve-se claramente no debate modernidade versus pós-modernidade (Habermas, 1983) e nas
suas diversas formulações: cultura do narcisismo (Lasch, 1983), declínio do homem público (Sennett, 1988), o pós-
modernismo e a emergência de uma cultura hedonista (Bell, 1979), para ficar com os exemplos mais conhecidos.
Entretanto, a especificidade do livro é a da construção de uma análise do Pensamento 68, entendido como a
“filosofia francesa dos anos 68”, uma “constelação de obras cronologicamente próximas a Maio” e sobretudo aquelas
“cujos autores reconheceram quase sempre explicitamente um parentesco de inspiração com o movimento” (p. 12). A
interpretação construída pelos autores propõe que a filosofia francesa dos anos 68 “escolheu resolutamente o partido do
anti-humanismo” (p. 18) (Foucault, Althusser, Derrida, Lacan, Bourdieu, Deleuze, Lyotard).
Simultâneamente os autores procuram reconstruir a questão da “significação cultural de Maio de 68”, partindo
de uma aparente heterogeneidade entre o pensamento filosófico de 68 e a contestação de Maio (que longe de significar a
“liquidação da subjetividade”, teria exatamente se apresentado como uma “revolta dos indivíduos contra o sistema que os
negaria enquanto tal”) (p. 55). No entanto, o que a análise mostrará é que esta “aparente heterogeneidade” se dissolve
quando a interpretação reconstrói a questão da “afirmação do Eu contra o sistema” a partir de uma significação muito
precisa: a da afirmação da individualidade contra a pretensão da universalidade das normas, que inaugura um processo
de “dissolução do Eu como vontade autônoma”, inscrito na “lógica da heteronomia”. A morte do sujeito no advento do
Indivíduo, enquanto uma significação reconstruída pela interpretação, permitiria então compreender em que medida o
Pensamento 68 legitima filosoficamente o anti-humanismo e a heteronomia.
Identificar o posicionamento filosófico, teórico e metodológico dos autores é fundamental, no sentido de
perceber de que modo a interpretação se inscreve no debate contemporâneo no que se refere à questão humanismo/anti-
humanismo, à questão do “estatuto da subjetividade” e à questão do “estatuto da razão em sua relação com o Outro”(p.
23). O livro, construído centralmente na interpretação da filosofia dos “anos 68” e na interpretação da significação cultural
de Maio de 68, detém-se especial e longamente na análise das “modalidades filosóficas da volatização da subjetividade”
(Foucault, Derrida, Bourdieu e Lacan). Assumindo, claramente, um posicionamento teórico e metodológico de
exaustivamente “esclarecer os debates”, “identificar posições”, “fazer críticas no sentido de uma delimitação” e “desvelar as
contradições” (p. 264), os autores conferem pouco espaço a uma explicitação, mais longamente trabalhada, da sua própria
interpretação. Considerando o “impressionante e persistente simplismo” da crítica anti-humanista construída pela filosofia
francesa dos anos 68, propõem que há ainda uma tarefa a ser realizada: a de escrever uma “história do sujeito”, isto é, das
“representações modernas da subjetividade”. Neste sentido, os autores comprometem-se com uma continuação do livro
onde “as faces plurais do sujeito, não totalizáveis sob um conceito único”, pudessem ser reconstruídas numa perspectiva
que, recusando a postura de uma “história linear” do sujeito, fizesse emergir as “variações e clivagens” daquela história
(“do aparecimento cartesiano do cogito às desconstruções empiristas da
idéia de substância, da crítica kantiana da psicologia racional à sua reabilitação analítica em Schelling e Hegel”) (p. 264-5).
Embora o livro (vale a pena insistir) realize uma reconstrução rigorosa da “filosofia dos sixties”, constrói, ao
mesmo tempo, uma interpretação, no mínimo polêmica, sobre o Pensamento 68. Este, iniciando e acompanhando o “processo
de desagregação do Eu que conduz à consciência cool dos anos 80”(p. 92), seria marcado ainda segundo os autores por um
certo “estilo de vida filosófica”: o “culto do paradoxo”, a “busca da marginalidade”, o “fantasma da conspiração”, o
“destino de párias intelectuais” (p. 357).
Enfrentar esta interpretação que se coloca num registro de objetividade que pretende esclarecer, identificar,
delimitar e desvelar posições, e que efetivamente pouco explicita, do mesmo modo exaustivo com que analisa o Pensamento
68, a sua própria posição, exige uma leitura teórica que esteja atenta aos seus pressupostos metodológicos e filosóficos. A
reconstrução, passo a passo, da interpretação construída pelos autores (evidentemente que dentro dos limites de espaço
deste comentário), a adoção de uma postura analítica, têm aqui a vantagem de permitir a explicitação das referências
valorativas dos autores, atribuídas à filosofia e à modernidade.
Concordando com os autores do livro de que o debate aí posto configura o problema filosófico do mundo
contemporâneo, que está simultaneamente referido ao plano político (“a questão da subjetividade na democracia”) importa
ressaltar que o enfrentamento das questões postas pelo texto, se obviamente concernem à Filosofia, concernem também às
chamadas Ciências Humanas (à Sociologia, à Antropologia, à História, à Ciência Política, à Psicanálise) que em maior ou
Tempo Social; Rev. Social. USP, S. Paulo, VOLUME 1(1) A R T I G O

menor grau, muitas vezes colocam-se defensivamente à margem daquelas questões.


O tipo ideal da “Filosofia dos sixties”
O primeiro passo fundamental realizado pelos autores é o da construção do “tipo ideal do pensamento 68”. A
partir de uma definição detalhada de tipo ideal (remetida a Raymond Aron de As Etapas do Pensamento Sociológico e
obviamente a Weber) explicitam as suas “premissas metodológicas”. Consideram o tipo ideal um “instrumento de pesquisa”,
caracterizado por ser uma “reconstrução inteligível de uma realidade histórica singular”, que “reúne segundo uma escolha
entre outras os aspectos essenciais (típicos) suscetíveis de constituir um todo inteligível”. A pertinência do tipo ideal seria
medida “pela sua congruência (pela inteligibilidade das relações que realizam os elementos do todo) e pela possibilidade
de sua comparação com as realidades singulares
(às quais por definição ele não corresponde jamais integralmente) para adquirir delas uma compreensão”. A construção
do tipo ideal tem uma “função de delimitação”, permitindo precisar o que os autores entendem por Pensamento 68, ou seja,
“o pensamento que deixa que se lhe aplique, segundo um grau de adequação maior ou menor (mas em todo caso, um certo
grau) um tal tipo, ou, ao menos um certo número de elementos do tipo” (p. 25-6).
É dentro desta premissa metodológica que são construídas, então, as “quatro características essenciais do
pensamento 68”:
1. O tema do fim da filosofia: marcado pelo rompimento com a tradição filosófica de Platão a Hegel, corresponde
a dois grandes “modelos de desconstrução”, o marxismo ( AIthusser) e a genealogia nietzscheana/heideggeriana (Derrida)
(p. 26 e segs.).
2. O paradigma da genealogia: que “tanto do lado do marxismo ou do freudismo, quanto na tradição nietzscheana/
heideggeriana constrói a convicção de que a atividade filosófica por excelência dever-se-ia definir, hoje, pelo método
genealógico, no sentido em que Nietzsche o entendia”. A questão filosófica fundamental não seria mais “o que é que...?”,
mas sim “quem é que...?”. Não mais discernir sobre o “conteúdo” do discurso mas “interrogar-se sobre suas condiçóes
exteriores de produção” (p. 28 e segs.).
3. A dissolução da idéia de verdade: conseqüência lógica da genealogia nietzscheana, aqui a própria idéia de
verdade (ao menos em sua concepção tradicional) é posta em questão. “A prática da genealogia impõe, assim, a referência
a uma outra concepção de verdade que, já presente em Nietzsche, só será verdadeiramente tematizada em Heidegger,
através da definição da verdade como aletheia, como um desvelamento inseparável de uma parte de velamento” (p. 31 e
segs.).
4. A historicização das categorias e o fim de toda referência ao universal: esta quarta e última característica, com laço
estreito com as anteriores, “termina a constituição do tipo como inteiramente inteligível”. Marca esta característica a
proposição de Foucault de que “o verdadeiro sentido histórico reconhece que nós vivemos sem referências, nem coordenadas
originais, em miríades de acontecimentos perdidos” (p. 33-4).
A identificação do “fundo comum suscetível de juntar” “filosofias procedentes de orientações tão divergentes,
quanto as de inspiração marxista de um lado, e de outro a desconstrução nietzscheana/heideggeriana/freudiana da
racionalidade”, em torno de quatro características, resultou na possibilidade de uma construção inteligível, a partir do
tipo ideal. A inteligibilidade do Pensamento 68, assim construída permite então com que os autores afirmem que aquele
“fundo comum” seria justamente o do projeto de uma “crítica radical da subjetividade”, da proclamação da “morte do
homem como sujeito” (p. 38). A genealogia — questionando a idéia do sujeito como consciência (“o sujeito consciente
torna-se um puro objeto”); negando a subjetividade e portanto destruindo a “idéia mesma da humanidade como
intersubjetividade”, que levaria conse
qüentemente ao “desaparecimento da comunicação por trás das puras relações de força”; proclamando o “ódio ao universal”
— produz o que há de específico no Pensamento 68, o anti-humanismo (p. 39-41).
Procurando buscar a “gênese intelectual” do Pensamento 68, os autores propõem compreender a filosofia
francesa como “repetição hiperbólica da filosofia alemã”. O Pensamento 68 seria “o resultado de uma utilização mais ou
menos complexa, de temas e teses emprestadas de filósofos alemães, no essencial de Marx, Nietzsche, Freud e Heidegger”.
Não simples repetição dos temas, mas sobretudo “radicalização” deles, de onde talvez tenha nascido o seu anti-humanismo
(p. 42). O “heideggerianismo francês”, o “marxismo francês”, o “nietzscheanismo francês”, o “freudismo francês” como
expressões daquela radicalização e portanto da “volatização da subjetividade” (p. 93), são detalhadamente analisados no
livro a partir de alguns autores considerados mais expressivos: Derrida (heideggerianismo francês); Bourdieu (marxismo
francês); Foucault (nietzscheanismo francês) e Lacan (freudismo francês).
Heterogeneidade ou homogeneidade entre o Pensamento 68 e o Movimento de Maio?
A grande questão posta pelos autores no que se refere à interpretação do movimento de Maio de 68 parte de
uma primeira constatação de que Maio não apareceria de início como “tendo sido dominado pela busca do inumano”,
como “liquidação da subjetividade”, mas como “revolta dos indivíduos contra o sistema”. Seriam, então, tão heterogêneos
e incompatíveis, o Pensamento filosófico dos sixties e a contestação de Maio de 68? Permanecendo no registro mais imediato
do movimento de Maio, o tipo ideal do Pensamento 68 poderia ser considerado então “imperfeito”: estando próximo
cronologicamente e por afinidade da contestação de Maio, a heterogeneidade entre eles questionaria a adequação do tipo.
A “aparência de Maio” tornava-se, então, um “obstáculo à interpretação do Pensamento 68” (p. 55-6).
Colocar o “problema da significação cultural de Maio de 68” é então uma questão absolutamente pertinente,
para Ferry e Renaut.
Dando-se conta da diversidade das interpretações relativas a Maio de 68, os autores, de um modo análogo ao
procedimento adotado na construção do tipo ideal do Pensamento 68, procuram buscar um “princípio” ou um “fio condutor”
que permitisse estruturá-la (num todo inteligível) e então compreender aquela diversidade. Pondo em
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primeiro plano a questão da objetividade da interpretação, propõem a construção de uma “lógica das interpretações” (a
“teoria dos pontos de vista ou das perspectivas”) (p. 57-8).
Partindo de uma classificação construída por P. Bénéton e J. Touchard (in: Les interprétations de la crise de mai-
juin 1968, de 1970), seria então possível colocar a “questão da lógica suscetível de organizar verdadeiramente o campo
interpretativo” (p. 58). Bénéton e Touchard propõem oito leituras do acontecimento: 1) Maio de 68 como complô; 2) Maio
de 68 como crise da Universidade; 3) Maio como acesso de febre ou como revolta da juventude; 4) Maio como crise de
civilização; 5) Maio como conflito de classes de um novo tipo; 6) Maio como conflito social de tipo tradicional; 7) Maio
como crise política, devida às instituições da V República e à ausência de uma real alternativa política; 8) Maio como
encadeamento de circunstâncias (p. 58-62).
A questão posta, então, é a da necessidade de indicar um “fio condutor preciso” que permita uma orientação
“nos labirintos deste campo interpretativo”, para descobrir nesta diversidade, uma “lógica”. O fio condutor proposto —
que procede de uma “consideração simples” — é o de que o problema do intérprete, diante do movimento histórico que se
apresenta como uma “subversão” ou “revolução”, é justamente o de saber “que alcance e estatuto atribuir ao ponto de
vista dos próprios atores”. Redimensionando a questão: o fio condutor seria a “questão da concepção do sujeito” —
“sujeito (finito) prático”; “sujeito (absoluto) como Sistema imanente à história”; “volatização de toda subjetividade” (a
perspectiva da desconstrução) (p. 62-4).
A reconstrução desta “lógica” do campo interpretativo permite então aos autores entender que “os problemas
colocados pelas interpretações de Maio deveriam aparecer como estranhamente homogêneos àquilo que constitui a questão
intelectual (do Pensamento 68) em jogo no acontecimento: o processo do sujeito” (p. 63-4).
A reconstrução da “lógica” do campo interpretativo permite ainda reduzir, a partir do fio condutor (a questão
da concepção do sujeito) a diversidade labiríntica anterior a três posturas interpretativas relativas a Maio de 68: 1) O ponto
de vista dos atores — a revolta da liberdade (sujeito prático) contra a opressão do Estado (Sartre, Castoriadis, Morin); 2)
Maio como pseudo-revolução, ou mudança na continuidade — duas análises de inspiração distintas, marxista e tocqueviliana,
onde a crise de maio aparece como etapa do desenvolvimento do individualismo burguês, efeito do sistema capitalista (R.
Debray e G. Lipovetsky); 3) O acontecimento de Maio - “a iniciativa é iniciação/inauguração absoluta, puro começo: a
revolução surge propriamente do nada, deste ‘lugar nenhum’ resistente a todas as explicações que, armadas do princípio
da razão, buscam uma origem” (Lefort) (p. 81-2).
Maio de 68: a morte do sujeito, o advento do individualismo e da heteronomia
Metodologicamente coerente com a interpretação construída até este momento — a construção (aroniana e
weberiana) do tipo ideal do Pensamento 68 cujo traço característico era o da “crítica radical da subjetividade”, a construção
de uma “lógica do campo interpretativo” cujo fio condutor era o da “concepção do sujeito” — os autores finalmente
propõem o “princípio do pluralismo interpretativo” que reencontram em R. Aron, como “uma efetivação concreta da
metodologia weberiana” (p. 85).
O pluralismo interpretativo — permitindo a construção de uma “hipótese” entre outras, de “um elemento
explicativo entre uma diversidade de outros possíveis” — poupa à interpretação os “excessos redutores que são inerentes
ao dogmatismo’’. Possibilita, ainda, “colocar a ênfase, antes sobre certo nível de interpretação do que sobre outro, sendo
que a escolha de um destes níveis constitui uma abstração metódica em relação ao modo em que se encontram estreitamente
imbricados na realidade histórica concreta” (p. 89).
Éjustamente em R. Aron (La Révolution Introuvable, publicado em 1968) que os autores descobrem, “integrada
a outras explicações”, uma importante relação entre o clima intelectual de 68, a crise de Maio e o que deveriam ser suas
conseqüências “tidas desde então como previsfveis”. “A intelligentsia dos anos 60, escreve Aron, tinha por deus não mais
o Sartre do pós-guerra, mas uma mistura de Lévi-Strauss, Foucault, Althusser e Lacan” (p. 87). Dois efeitos foram produzidos
a partir desta constelação: 1) ela favoreceu nos meios parisienses a fórmula segunda a qual “não há fatos”, “tudo se
equivale”, “não há normas que se devam impor ao jogo do desejo”; 2) há apenas um passo da “dissolução das normas” ao
“neo-niilismo”; a “recusa de uma ordem sem vislumbre de outra ordem alternativa”, seria “uma das causas da decomposição
de Maio” (p. 88).
Relacionar a crise de 1968 como “crítica das normas” com o trabalho crítico realizado em relação à
normatividade pela filosofia francesa, significa não uma relação de causa e efeito, mas sim que o Pensamento 68 integra-
se num conjunto significante que ele ilumina, sendo por ele iluminado, quanto ao seu alcance. Deste modo, consideram
os autores, que “desde o verão de 1968 era percebido, no horizonte do que viria a ser a ‘revolução perdida’, a deserção
do político, a volta à esfera privada, o prestígio do individualismo hedonista” (p. 88).
A partir da metodologia construída, “nada mais proíbe” aos autores, “privilegiar metodicamente uma leitura
norteada pelo problema do individualismo”. A “lógica do individualismo” transformada em “fio condutor para a reflexão
do historiador de 68”, não é mais a “infra-estrutura oni-explicativa”. Ela define — na sua “coexistência possível e necessária
com outras aproximações” — o “ângulo de leitura específica”, de uma
interrogação construída a partir de um “único ponto de vista”: o da “história intelectual e cultural recente de Maio de
1968” (p. 89).
Assumindo o “ângulo de leitura” ou o “fio condutor” da “lógica do individualismo”, nenhuma heterogeneidade
resta entre o Pensamento 68 e o Movimento de Maio.
“Num certo sentido”, Maio teria sido uma “revolta dos sujeitos contra as normas”, mas numa significação
muito precisa: o da “afirmacão da individualidade contra a pretensão das normas à universalidade” e a da inauguração de
um “processo que tem por horizonte previsível a dissolução do Eu como vontade autônoma, ou seja, a destruição da idéia
clássica do sujeito” (p. 89-90). O Eu do narcisismo contemporâneo obedecendo à “lógica da heteronomia” produziria,
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ainda, um outro efeito: o da “transformação da intersubjetividade”, que não mais seria “um reconhecimento recíproco das
liberdades”, fundada na vontade autônoma dos sujeitos, mas uma mera “contemplação humorística do outro, como um
‘gadget cômico’ ” (p. 91).
O “sujeito morre no advento do indivíduo”. Deste ponto de vista, “o papel desempenhado pelas diversas
figuras do pensamento 68 torna-se compreensível: da psicanálise lacanizada às derivações nietzscheano-marxistas, o
pensamento 68 legitima filosoficamente a heteronomia em nome da qual o Eu fluidificado se esvazia de toda substância.
Criticando como ‘metafísico’ ou como ‘ideológico’ o projeto de domínio e de verdade sobre si mesmo” (a noção tradicional
de subjetividade), (...) “os sixties filosofantes iniciaram e acompanharam o processo de desagregação do Eu, que conduz à
consciência cool e desenvolta dos anos 80” (p. 91-2).
O humanismo: o retorno do sujeito como vontade autônoma e da inter-subjetirvidade como diálogo entre consciências
(espaço público)
A reconstrução metodológica do livro realizada com o objetivo de identificar o posicionamento filosófico e
teórico dos autores e simultâneamente perceber de que modo a interpretação construída se inscreve no debate contemporâneo
sobre a modernidade, permite evidenciar algumas questões centrais.
As premissas metodológicas adotadas pelos autores na construção do tipo ideal do Pensamento 68, na
construção de uma lógica do campo interpretativo (no que se refere ao Movimento de Maio) e na construção do que
definem como princípio do pluralismo interpretativo, têm um pressuposto comum que precisa ser explicitado (explicitação
esta não realizada pelos autores). Ao assumir estas premissas (a partir de R. Aron e de Weber) os autores não explicitam,
até as últimas conseqüências, o recurso interpretativo adotado. A questão weberiana da “relação com os valores” e a
questão do estatuto do sujeito e da intersubjetividade permitem conduzir a análise na direção da elucidação daquele
pressuposto comum.
A questão da relação com os valores: o tipo ideal enquanto instrumento de pesquisa (dimensão explicitada) é
antes de tudo o recurso “indispensável para a formulação dos problemas” de que esta tratará. A construção dos problemas,
que “exprimem os interesses dos pesquisadores” remete aos “pressupostos valorativos da atribuição de um caráter significativo
ao campo do real selecionado” para análise: a construção do tipo está subordinada à importância significativa que os
traços dos eventos (...) selecionados para compô-lo, assumem para o pesquisador em termos de suas conseqüências”
(dimensão não explicitada). “Tomado em sua acepção plena o tipo é, portanto, a expressão metodológica da orientação do
interesse dos cientistas que o constroem e aplicam” (Cohn, 1979, p. 95-6). A questão do estatuto do sujeito e da intersubjetividade:
tanto a noção de sujeito como a de intersubjetividade estão presentes na concepção weberiana. O objetivo fundamental da
compreensão, categoria fundamental para a interpretação de Weber, é sempre o de compreender o sentido de uma ação
social ou de uma relação social. Em ambos os casos a sede efetiva do sentido é o sujeito/agente. No limite, a possibilidade
máxima da compreensão do sentido, seja da ação ou da relação está construída a partir da concepção da autonomia do
sujeito, fundada na racionalidade (embora em Weber as ações dos sujeitos possam muitas vezes ter conseqüências que
questionem a própria autonomia).
A questão da relação com os valores e o estatuto do sujeito na perspectiva weberiana (pressupostos apenas
implícitos na interpretação dos autores) permitem a construção da interpretação do livro, dentro dos objetivos propostos.
O humanismo: valor central da filosofia e da cultura contemporânea, não pode para Ferry e Renaut, ser
confundido com a metafísica nem com a ideologia burguesa. Se não se pode hoje “retornar aos valores da filosofia das
Luzes”, é impossível não se referir a eles e fazer (como o faz o Pensamento 68) “tábula rasa desta tradição” (p. 22). “Para que
o humanismo não seja destruído ao mesmo tempo em que a metafísica é desconstruída [numa discussão com Heidegger]
é preciso que seja levada em consideração a significação desta abertura constitutiva da ek-sistencia (...) A ek-sistencia como
abertura parece somente ter sentido se pudermos pensá-la enquanto autonomia: a idéia de humanidade apenas surge como
tal, se a abertura pode ser pensada a partir deste horizonte de autonomia que lhe confere seu sentido e sua representabilidade”
(p. 243). A construção do tipo ideal do Pensamento 68, enquanto anti-humanista está fundada nos pressupostos valorativos
dos pesquisadores, cujo traço significativo, atribuído à cultura, à filosofia e portanto à modernidade, é justamente o da
autonomia dos sujeitos.
A questão do sujeito: considerada como “fio condutor” para a construcão da lógica do campo interpretativo de
Maio de 68 — questão central na perspectiva weberiana, sem a qual a possibilidade mesma da compreensão não poderia
sequer ser posta — está do
mesmo modo fundada nos pressupostos valorativos dos pesquisadores. A morte do sujeito, entendida como o advento do
individualismo e da heteronomia enquanto características do tipo ideal do Pensamento 68 e do Movimento de Maio,
configura-se, aqui também, como uma construção cuja referência valorativa (construída a partir da modernidade) é a do
sujeito como vontade autônoma. No anti-humanismo e na filosofia da desconstrução, o “homem como dimensão de autonomia
desaparece” (p. 242). Contrariamente ao anti-humanismo, consideram os autores não ser absolutamente necessário “retirar
da idéia ou do ideal, isto é, da própria Idéia de autonomia todo sentido e toda função” (p. 244).
A questão da intersubjetividade: como “reconhecimento recíproco de liberdades”, fundada na “vontade autônoma
dos sujeitos”, do mesmo modo configura-se como pressuposto valorativo dos autores, atribuído à modernidade. O tipo
ideal do Pensamento 68 e do Movimento de Maio construído enquanto uma “transformação da intersubjetividade”
(contemplação humorística do outro), marcada pela “destruição do Eu como consciência voluntária” e pelo “ódio” à
universalidade das normas configura uma clara referência a valores: a de um “espaço comunicativo”, enquanto “espaço
público” (Habermas) fundado nos valores da res publica, possibilidade única de um “verdadeiro diálogo entre consciências
suscetíveis de pensar suas diferenças sobre o fundamento da identidade” (p. 148-9). Se o “consenso” é “livremente
consentido” o que teria de “tão temerário?” Se não se procura “obtê-lo pela livre discussão” o que restaria senão a
possibilidade da “violência?” (p. 264). Esta indagação (posta pelos autores visando especialmente Foucault e Lyotard) e
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que podemos formular como questão central, permite inscrever a interpretação construída pelo livro, no que se refere à
modernidade, no registro aberto por Habermas (o da “ação comunicativa”, que supõe a autonomia) e no limite no registro
de um retorno a Kant (o “uso público da razão” e a capacidade do “homem de servir-se de seu próprio entendimento”).
(Ver Torres F9, 1987).
A interpretação construída por Ferry e Renaut, embora rigorosa, é polêmica porque assume em alguns
momentos um discutível tom desqualificador em relação ao que chamam “filosofia da desconstrução”. Do Pensamento 68
à consciência “cool” dos anos 80, é o anti-humanismo que se abre à “barbárie”, enquanto regressão que substitui “o ideal
de uma natureza submissa a uma vontade [ideal moderno] por um ideal prémoderno de uma natureza à qual a vontade é
submetida” (referência à Kant) (p. 262). Sair do registro da mera polêmica e trazer para o primeiro plano o posicionamento
dos autores, no que se refere à modernidade, pareceu-me um caminho mais estimulante para o debate contemporâneo.
O anti-humanismo e a heteronomia como traços característicos do Pensamento 68, segundo Ferry e Renaut,
construídos segundo uma referência valorativa atribuída à modernidade — o sujeito como vontade autônoma e a
intersubjetividade como reconheci
mento recíproco de liberdades fundada na vontade autônoma do sujeito — estão remetidos à tradição filosófica clássica
do sujeito autônomo. Contudo, os autores, com relativa facilidade, designam como heteronomia perspectivas filosóficas
distintas que, ao romperem com a idéia clássica de sujeito, procuram problematizar a questão do sujeito e da autonomia a
partir de outros pressupostos.
Designar como legitimadoras da heteronomia as perspectivas que problematizam as questões da soberania
do sujeito e as das filosofias da identidade e da contradição sem falar da junção de autores tão distintos no “fundo comum”
do Pensamento 68 — nos leva a relativizar a seriedade filosófica dos autores que resvala para a retórica da ideologia
(embora mantendo o tom da objetividade, já apontado, na construção do tipo ideal do Pensamento 68).
Tentar inserir à força a idéia clássica de autonomia do sujeito na perspectiva heideggeriana da ek-sistencia e
designar como heteronomia a idéia de autonomia tematizada de modos distintos pelo conjunto dos autores analisados —
que põem a questão da relação inconsciente/consciente para refletir sobre a idéia mesma de sujeito e a possibilidade de
autonomia, enquanto negação do discurso do Outro (Lacan e mesmo Castoriadis, 1982, p. 122-129), ou que repõe a questão
do sujeito enquanto domínio de si, por si, enkrateia, independentemente de uma Lei moral (Foucault, 1984, p. 61-62), para
ficar com alguns exemplos — termina por obscurecer as questões da modernidade a partir de uma postura que acaba se
revelando como dogmática.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
BELL, Daniel. Les contradictions culturelles du capitalisme. Trad. M. Matignon. Paris, P.U.F, 1979.
CASTORIADIS, Cornelius. A institução imaginária da sociedade. Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1982.
COHN, Gabriel. Crítica e resignação: fundamentos da sociologia de Max Weber. São Paulo, T.A. Queiroz, 1979.
FOUCAULT, Michel. História da sexuatidade II. O uso dos prazeres. Rio de Janeiro. Graal, 1984.
HABERMAS, Jürgen. Modernidade versus pós-modernidade. Arte em Revista, São Paulo, 7, ano 5, ago. 1983.
LASCH, Christopher. A cultura do narcisismo. Rio de Janeiro, Imago. 1983.
SENNETT, Richard. O declínio do homem público: as tiranias da intimidade. São Paulo, Cia. das Letras, 1988.
TORRES Fº, Rubens Rodrigues. Respondendo à pergunta quem é a ilustração? In: ____________. Ensaios de filosofia
ilustrada. São Paulo, Brasiliense, 1987. p. 84-101.
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NATURAL, RACIONAL, SOCIAL: DISCUSSÃO


DE UMA SOCIABILIDADE
Maria Helena Oliva Augusto*

* Professora do Departamento de Sociologia — FFLCH-USP, Coordenadora do Núcleo Temático Saúde e Sociedade, do mesmo Departamento.

AUGUSTO, Maria Helena Oliva. Natural, racional, social: discussão de uma sociabilidade. Tempo Social;
Rev. Sociol. USP, S. Paulo, 1(1): 247-257, 1.sem. 1989. Comentário crítico da obra de Madel Therezinha Luz. Natural,
racional, social: razão médica e racionalidade científica moderna. Rio de Janeiro, Campus, 1989.

Comentário crítico da obra de


Madel Therezinha Luz — Natural, racional, social: razão médica e racionalidade científica moderna. Rio de
Janeiro, Campus, 1988.
A obra que é objeto deste comentário examina a Medicina e a Sociologia como formas de manifestação da
racionalidade científica moderna, seu mútuo suporte filosófico, político e conceitual, e suas repercussões na cultura e nas
instituições sociais, através da discussão de certas concepções, teorias e categorias estratégicas, consideradas biossociais,
por se referirem a ambos os domínios do conhecimento.
Enfatizando o caráter histórico da racionalidade científica e tentando dimensionar criticamente sua
modernidade, a autora pretende explicitar alguns de seus traços “estruturais” ou “constitutivos”, perceptíveis pela análise
socio-histórica. Pretende, também, discutir (“mexer com”) alguns dos pressupostos básicos dessa racionalidade científica,
em especial “sua ‘neutralidade’ em face da história, e sua ‘independência’ em face das paixões do sujeito”. Ao mesmo
tempo, procura “aquela encruzilhada (...) em que verdade e paixão, razão e emoção, sentimentos e vontade, beleza e
sentidos, se deram adeus” e manifesta o intuito de “ajudar a restaurar (...) essa unidade que conferirá ao homem a felicidade
de ser plenamente humano” (p. VIII e IX).
Revelam-se, nesta declaração de intenções, inquietudes bastante atuais e, também, alguns elementos polêmicos
do trabalho em foco. E importante, entretanto, antes de entrar em sua discussão, salientar os momentos mais expressivos
do desenvolvimento do texto.
“O que se pretende fazer aqui é, antes de tudo, uma análise socio-histórica da racionalidade científica moderna,
de seus efeitos políticos, de sua inserção e intervenção na vida social”, através do exame de um núcleo de categorias e
conceitos estratégicos — racional, natural, social e vida, saúde e a doença — comuns a duas disciplinas do social, a medicina e
a sociologia, “que emergem historicamente num, mesmo campo de representações sociais e de formulações teóricas
disciplinares, num período de tempo contígüo, senão contínuo” (p. 2 e p. 6).
Definida como racionalidade inaugural, a racionalidade científica moderna deve ser vista como o avanço
histórico de uma forma específica de racionalismo, filosófico e social, que vem sendo moldada de Copérnico aos atuais
tecnocratas da ciência e é contemporânea da fase avançada do Renascimento (século XVI), no qual emerge também a
representação do indivíduo como força criativa independente, como sujeito de mudanca, pessoal e social. Funciona, ao
mesmo tempo, como estrutura de explicação e ordenação dos seres e do mundo, e como princípio moral das relações
dos homens entre si e com as coisas.
Tanto quanto essa racionalidade, à qual estão referidas, as categorias em exame ao mesmo tempo, médicas e
sociológicas — são representativas de um tipo específico de sociabilidade e estão profundamente mescladas a políticas ou
instituições sociais que a sustentam e singularizam, visando a normalização dos sujeitos e a constituição ou a reprodução
de certas relações sociais.
A separação entre Deus, o homem e a natureza é um primeiro traço constitutivo dessa racionalidade. O objeto
natureza constitui-se com o Renascimento e, cada vez com mais ênfase, adquire o caráter de alteridade, “estranheza”,
exterioridade, independência e objetividade face ao homem, o que possibilita a busca sistemática e apaixonada de sua
ordem verdadeira.
O sucesso dessa busca supõe a observação como prática sistemática da descoberta e da invenção, resultando
o experimentalismo — utilitário, exploratório, interventor e desbravador — como outro dos traços constitutivos da
racionalidade científica moderna. A partir de Descartes, afirma-se um dogma filosófico importante, o da razão como produtora
de conhecimentos, isto é, como faculdade que descobre verdades perenes e como capacidade — garantida pelo método
científico — que produz verdades.
A síntese epistemológica das ciências físicas — modelo explicativo mecanicista, método experimentalista e
dedutivista e linguagem matematizante — é, assim, traço básico da racionalidade moderna. Todos os outros sistemas de
expressão de verdades (filosofia, artes, religiões, ação política, culturas, sistemas de saber passados, inclusive as disciplinas
do social) foram desqualificados epistemologicamente e tratados socialmente como formas de expressão incapazes de
produzir o “verdadeiro” conhecimento (o conhecimento científico).
Nesse modelo teórico, o natural é pensado como mecanismo dotado de leis que a razão pode descobrir se
aplicar ao objeto o método experimental e quantitativista e a linguagem matemática. A matéria é analisável, redutível a
seus elementos simples, da mesma forma que os conhecimentos que sobre ela se produzem. À fragmentação do objeto em
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seus elementos constituintes, corresponde a pulverização dos discursos científicos através da multiplicação de disciplinas,
que tematizam sobre quaisquer objetos com uma possibilidade quase infinita de desdobramentos.
O mecanismo tem uma proposta: a) de linguagem (matemática, geométrica) para as disciplinas da natureza
(física, astronomia, química, fisiologia, biologia), que depois se estende às disciplinas do social; b) de método (empírico,
analítico-dedutivo) para o conjunto das disciplinas científicas em que se buscam as leis da natureza, as causas e as
formas de movimento, e das “forças” ou “potências” que o supõem; e c) de ordenação e exploração da natureza, vista
como um mecanismo, que pode e deve ser exposto pelos filósofos naturais e pelos cientistas. O método aparece como
instrumento de exploração da natureza e a linguagem como expressão do método, de tal modo que há uma tendência a
confundirem-se nas ciências, sobretudo as da natureza, a partir do período clássico.
Hoje, as metáforas mecanicistas não são levadas tão a sério. Entretanto, permanece dominante na maioria das
disciplinas, sobretudo nos grandes ramos das ciências mais próximas da vida humana, a biologia e a medicina, a tendência
a decompor o objeto em elementos, a compará-los por uma operação analítica, e a ordená-los numa totalidade racionalmente
montada e hierarquicamente recomposta.
O movimento típico do conhecimento científico moderno é, portanto, prático. transformador, interventor,
classificatório, construtor de realidades. “A razão moderna
não apenas explica a realidade: modela-a”; dá-lhe uma ordem específica, com características próprias, identificáveis,
ordenação cujos efeitos são de natureza política e social.
A ciência tornou-se o modo socialmente dominante de produção de verdades, teologia de nossa época, que
operou uma dissociação entre os mundos “natural”, “humano” e “sobrenatural”. Trabalha com a suposição filosófica de
que as leis da razão são universais, aplicáveis tanto ao mundo natural quanto ao mundo humano.
A partir da segunda metade do século XIX, o modelo positivista tornou-se hegemônico nas ciências e o ideal
das disciplinas do social passou a ser a “exatidão” das disciplinas da Natureza. Esse procedimento surgia como estratégia
de legitimação frente à racionalidade científica moderna e derivava da crença na aplicabilidade dos métodos e leis naturais
às ciências humanas, permitindo maior “controle” do seu objeto: as relações sociais, a privacidade cotidiana dos afetos
humanos e seus hábitos individuais, a materialidade orgânica de seu corpo.
A aproximação do modelo das ciências físicas permitiu às ciências humanas construirem sua percerpção do
mundo e das relações em processo a partir de dicotomias e dualidades: normalidade-patologia, equilíbrio-desvio, harmonia-
perturbação, integridade-degenerescência. Nestas, o primeiro dos elementos tem sido sempre considerado sinônimo de
natural, racional, e/ou social, e o segundo, de rompimento de uma situação “original” de ordem, cujo restabelecimento é
buscado. Ao mesmo tempo, aquela aproximação condicionou os objetivos que as ciências humanas se propõem, de expor
a determinação recôndita que possa existir em toda realidade, de prever os movimentos dos objetos que tematizam e, se
possível, de antecipar tais movimentos — prevenindo-os, impedindo-os, suprimindo-os ou conduzindo-os e orientando-
os, conforme o caso.
Para Madel Luz, a medicina é disciplina social por produzir um discurso natural sobre uma realidade social, e
não porque um ramo subordinado da ciência médica — a medicina social — tematize a realidade capitalista como
origem ou causa da doença. É social, portanto, por seu objeto: o corpo do homem, decomposto em elementos constituintes;
o funcionamento e a desagregação desses elementos; as relações destes elementos com este corpo; as mentes humanas;
os sentimentos humanos; a sexualidade humana; seu sofrimento e morte através da doença e também seu comportamento
e atitudes frente a esses momentos.
Considera sociais todos esses aspectos do viver e do sofrer que têm sido, historicamente, objeto da medicina
— doença e morte, normalidade e patologia, equilíbrio e desvio —, mesmo que tenham recebido ordenação teórica como categorias
biológicas. Disciplina social, portanto, a medicina institui e normaliza estruturas e relações sociais, a partir de enunciados
“naturais” típicos do seu campo de objetivações. Neste último século e meio, tem sido mais social que a própria sociologia
e ambas se complementam
de forma notável: o que esta tematiza em termos macro-estruturais, aquela o faz em termos micro-estruturais, ou seja, dos
indivíduos.
São examinadas no texto a circulação e a complementariedade entre os conceitos das disciplinas da vida
humana (sobretudo a medicina) e das disciplinas do social (sobretudo a sociologia, a partir de Comte). O fato de as ciências
naturais possuírem maior legitimidade propiciará uma direção preferencial para a migração dos conceitos — do natural
para o social — movimento que, em termos teóricos, terá efeitos bastante produtivos na sociologia. Estes revelam-se
sobretudo com Durkheim, o continuador da identidade normal-patológico para o funcionamento da vida social e o definidor
da patologia social como desvio que confirma, ratifica e legitima a norma, em termos de princípios de organização e de
manutenção da vida coletiva:
“(...) tanto a medicina como a sociologia, partem do patológico para o normal: a primeira, tematizando o
corpo individual; a segunda, o corpo social. Ambas tendem a deduzir o estado normal (do indivíduo, da sociedade) em
função da manifestação, maior ou menor de sintomas, (...)expressão de desvios que se consideram patológicos. Estes supõem
(...) um ‘estado-padrão’ normativo, uma ordem reguladora” (p. 111).
Outro elemento enfatizado no decorrer do texto é o de que a medicina moderna evidencia um deslocamento
epistemológico e clínico: de uma arte de curar indivíduos doentes transforma-se numa disciplina das doenças. O alvo privilegiado
da intervenção médica se torna, cada vez mais, o corpo individual, o que ajuda a constituir o indivíduo moderno, átomo
de um corpo mais amplo.
Doença e indivíduo doente tornam-se estranhos nesse processo: o sujeito “paciente” converte- se em objeto
da ordenação social à medida que se desvia de um quadro de normalidade reconhecido. A questão da vida é transformada
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em questão metafísica: a medicina, aos poucos, verá na observação dos indivíduos doentes, homens vivos, uma fonte de
confusão, de des-conhecimento e excluirá, como questões positivamente tematizáveis, a vida, a saúde e a cura. “Tudo é
desvio em potencial. Juntamente com a doença [enquanto entidade], desfaz-se definitivamente, no grande universo da
racionalidade médica, o conceito de saúde” (p. 110). A saúde passará a ser vista não como afirmação da vida, mas como
ausência de patologia; a “cura” será substituída pela cessação de sintomas. Da eliminação da doença do corpo dos
indivíduos, nasce a saúde na medicina moderna.
A autora destaca que o processo de instauração da racionalidade científica moderna como racionalidade
dominante não significou sua existência isolada. Pelo contrário, esta seria uma razão entre outras a disputarem a hegemonia
durante a batalha, na qual o mundo da natureza e o mundo do homem deveriam ser conquistados. Pelo menos três
“razões” estariam, então, presentes: a) a racionalidade científica; b) a moralidade racional de origem religiosa; e c) a
racionalidade animista, imanentista, mística e implicitamente sensual das “ciências alquímicas” — astronomia, alquimia,
magia (p. 66).
O longo processo que culminou com a identificação da racionalidade científica como razão natural e social,
cuja expressão máxima se encontra no Século das Luzes, implicou deslocamentos e destruições, mais do que evolução ou
progresso. A afirmação de cada um dos seus traços constitutivos — racionalismo, mecanicismo, dualismo, fragmentarismo,
metodologismo, quantitativismo, materialismo, evolucionismo — supôs, portanto, o sufocamento e a negação de uma
característica oposta.
A ruptura mais significativa é o estilhaçamento do próprio sujeito em inúmeros compartimentos. A razão
converte-se em domínio da ciência; as paixões, da moral (ética) e da política; os sentimentos e os sentidos, das artes
(estética). “Esta compartimentação terá o efeito de ‘negar’ socialmente o sujeito humano e de ‘neutralizá-lo’
epistemologicamente, criando condições históricas para torná-lo, como a natureza, objeto de ciência, (...) coisa passível de
intervenção, de transformação, de modelação, de produção” (p. 26).
“Ruptura, descontinuidade, momento inaugural, são termos que não devem ser sinonimizados (...) com avanço
ou progresso, mas associados à: quebra, novidade, reorganização, mudança, mutação. Também a categoria da racionalidade não
deve ser identificada à idéia de ‘compreensibilidade’, no sentido weberiano de ‘tornar-se progressivamente racional’, ou
mais inteligível. Haveria aí uma valoração positiva da razão científica como princípio de ordenação universal, estranha às
intenções deste estudo” (p. 28).
A apreciação negativa da racionalidade moderna é, sem dúvida, elemento marcante a atravessar todo o texto.
A argumentação desenvolvida é crítica em relação à forma através da qual essa racionalidade se impôs, impedindo o
florescimento de outras presumivelmente mais satisfatórias, e à maneira pela qual opera, fragmentando ao analisar e
disciplinando ao instituir modos de conduta e de ser qualificados como normais. É crítica também quanto à naturalização
dessa racionalidade — como razão intrínseca ao homem e à sociedade — já que ela é o resultado histórico da vitória na
batalha contra outras concepções. A perda real de significados e da possibilidade de apreensão holística do homem, sua
vida e suas relações é, porém, do ponto de vista da autora, a dimensão mais expressiva de sua negatividade.
O momento em que essa posição fica mais claramente explicitada é aquele, no último capítulo, em que a
autora se utiliza da comparação entre dois tipos de racionalidade médica — a clínica moderna e o vitalismo homeopático
—, insistindo na maior adequação “humana” da segunda alternativa. Para tanto, arrola as características marcantes de
ambos, admite que se opõem de maneira incontestável e tenta provar como a homeopatia aponta para a possibilidade de
articulação das múltiplas dimensões humanas numa totalidade orgânica — aquela em que se reencontrariam razão, paixões,
sentidos e vontade, estilhaçados em compartimentos pela razão científica, da qual a clínica moderna é expressão.
A primeira das distinções destacadas é a de que o vitalismo homeopático, uma das teorias vitalistas em
presença no final do século XVIII e início do XIX, não se apresenta como sistema explicativo das doenças e suas causas,
mas como um sistema racional e experimentalista da arte de curar doentes:
“O saber da clínica moderna, orientado pela morte (anatomia patológica), volta-se para a causa da doença
(agente patogênico) e para sua origem espaço-temporal (localização orgânica e história sintomática), enquanto o saber da
clínica homeopática volta-se para o indivíduo desequilibrado (doente) no sentido de reparar-lhe a energia da vida (curá-
lo)” (p. 125).
As disparidades entre as duas medicinas estariam radicadas, ao mesmo tempo, no método, nas formas de
intervenção terapêutica e na concepção do processo saúde-doença:
— enquanto a clínica médica utilizaria o método “dedutivo” e “lógico”, a homeopatia seria “sistematicamente
experimentalista”;
— enquanto, na primeira, a intervenção terapêutica seria “empírica” e “arbitrária”, penetrando no “interior
invisível” do corpo do doente à procura das causas próximas da doença, a segunda pretenderia ser mais prática e de
maior eficácia, na medida que visa o restabelecimento do doente;
— enquanto naquela haveria a separação entre o doente e a doença, a partir da constituição de um quadro
classificatório de doenças e o estabelecimento de critérios de patologia e normalidade para a clínica, esta tomaria como ponto
de partida o homem enquanto totalidade indissociável, o indivíduo doente; e, enfim,
— enquanto a medicina oficial procuraria no doente a sua doença, considerando a ausência de sintomas sinal
de normalidade e excluindo a cura e a saúde de seus objetivos, para a homeopatia, adoecer seria visto como processo vital do
indivíduo enquanto totalidade bio-psíquica e o restabelecimento da saúde, entendida como equilíbrio da energia ou força
vital, seria a finalidade da intervenção médica.
A construção do texto encaminha o leitor para a seguinte conclusão, ainda que não de forma explícita: a
homeopatia institucionalizada poderia conduzir as práticas de saúde para uma direção mais correta, qual seja, a da efetiva
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instauração do homem enquanto unidade indivisível no centro de suas preocupações. A simpatia por ela demonstrada ao
examinar a modernidade científica do procedimento homeopático permite inferir uma certa adesão afetiva da autora a
esta vertente. O que pretende enfatizar, entretanto, é a luta travada entre as duas concepções no século XIX (luta ainda
intensa no Brasil contemporâneo) e a estratégia de silenciamento que a medicina oficial pretende — e tem conseguido, com
algum sucesso — impor à medicina homeopática:
“Trata-se de um conjunto de contra-estratégias políticas para conter o avanço da medicina homeopática. (...)
a luta política contra a homeopatia não se baseava apenas nas vantagens e posições sociais que a corporação médica ligada
à alopatia já tinha se
dimentado na sociedade brasileira do século XIX. Há diferenças (algumas radicais) nos modelos de saber médico, cujo
desconhecimento sistemático pela medicina oficial no terreno da prova clínica, da experimentação, transforma-se em
estratégia de bloqueio e marginalização da homeopatia, ainda hoje praticada (...)” (p. 142 e 143).
O tema desenvolvido no trabalho é, como já foi dito, extremamente atual. Em várias abordagens e de múltiplas
maneiras, a racionalidade dominante tem sido questionada, por fragmentar, unidimensionar e manipular os homens,
despojando-os de sua condição de sujeitos; por conduzir à perda da dimensão significativa da existência, humana e social,
e tornar possível a imposição de formas autoritárias de sociedade, através da afirmação de seu caráter funcional e
instrumental; por impedir percepções unitárias e/ou totalizadoras da natureza, do homem, da sociedade, e de suas relações,
à medida que, legitimada como razão científica, torna-se única forma “verdadeira” de conhecimento do mundo; e enfim,
por parecer levar à destruição as próprias verdades, conceitos e seres constituídos pela sociabilidade que expressa e que se
apresentaram como valores a perseguir, nos últimos trezentos anos.
Além de atual, portanto, trata-se de problemática bastante instigante visto que a conversão dessa racionalidade
funcional em negação da razão, pura irracionalidade, ameaça a vida no planeta, põe em jogo a própria sobrevivência da
humanidade: “a máquina expeliu o maquinista; está correndo cegamente no espaço” (Horkheimer, 1976, p. 139). A procura
de novas formas de ser e pensar é fundamental.
A escolha da racionalidade médica, social por seu objeto, como campo privilegiado de observação, e a
comparação entre dois tipos distintos da mesma, como forma de delimitar a perspectiva na qual o trabalho discutido se
insere, só faz acrescentar interesse ao tema. Enquanto a medicina oficial introduz distanciamento cada vez maior entre
médicos e pacientes, fragmenta em ritmo cada vez mais intenso os corpos sob seu cuidado, eleva progressivamente os seus
custos pela especialização extrema e a introdução de equipamentos sofisticados nos processos normais de atendimento, e
— por tudo isso — tem sido enfaticamente questionada por não responder às necessidades de saúde da população, a
homeopatia tem sido colocada entre as possibilidades alternativas de condução dos cuidados com a vida.
Não obstante, algumas observações críticas merecem ser dirigidas ao trabalho em foco. Apesar das intenções
enunciadas, a autora não consegue dar conta de seu objetivo, que possui escopo muito mais abrangente do que o espaço
reservado para examiná-lo. Trata-se de equacionar criticamente a racionalidade científica moderna, a medicina, a sociologia,
e a sociedade que estas explicitam, num período de, pelo menos, qua
tro séculos. Resulta daí que, mesmo tocando em aspectos muitíssimo interessantes sobre os temas em debate, cujo
aprofundamento é mais que desejável, a análise não chega a responder às expectativas que desperta.
Discutir uma problemática tão ampla num texto tão reduzido implica, necessariamente, passar de forma
ligeira por algumas questões importantes. Destaque-se entre elas a ligação entre a emergência da noção de indivíduo, a
constituição do “paciente” enquanto expressão do desvio em relação à norma biológica, e a ordenação disciplinar da
sociedade.
A forma pela qual a reflexão se exprime não é clara, ao lado de uma grande repetição de idéias e imagens. Isto
faz com que o núcleo central do argumento nem sempre fique explícito, exigindo do leitor um trabalho permanente de idas
e vindas no interior do texto para não se perder no emaranhado de temas e informações novas que vão emergindo (ver,
por exemplo, p. 32-34).
A proposta mesma do trabalho parece, entretanto, conter ambigüidades. Indica como opção teórica a abordagem
de Foucault, na qual o indivíduo é considerado representação e efeito do poder, a “humanidade” percebida como construção
discursiva, e a racionalidade moderna identificada como racionalidade inaugural, signo de ruptura, destruição e
disciplinamento. Ao mesmo tempo, revela a intenção nostálgica de “ajudar a restaurar” a humanidade plena, a unidade de
paixão e razão, instintos e vontade, desejo e prazer, numa perspectiva holística que supõe uma interioridade do sujeito
enfaticamente negada por aquela linha analítica (Foucault, 1977, 1977a, 1979).
E difícil conciliar duas posturas que partem de pressupostos epistemológicos absolutamente distintos. A
possibilidade de percepção do indivíduo enquanto totalidade, capaz de uma existência autônoma como sujeito, exige
um enfoque teórico diferente daquele escolhido, por implicar alteridade e subjetividade, elementos ausentes de uma
visão que o supõe, porque efeito do poder, “eficiente”, “produtivo” e “docilizado” pela disciplina.
Por outro lado, não há como indicar a homeopatia enquanto o “outro” abafado pelo discurso — e pela prática
— da clínica moderna e supor possível seu estabelecimento, enquanto “outro” (conservando as características que o
singularizam e o diferenciam) na mesma sociedade disciplinar. Sua ação como saber médico dominante seria tão
disciplinadora quanto o é, hoje, a da clínica. Quanto a isso, aliás, a própria autora é bastante clara: “A partir do triunfo
desta razão [científica] no final do século XVII, nenhuma teoria ou conceito pode mais fugir dos limites da morfologia do
modelo científico, sob pena de ser considerada não científica, portanto, não verdadeira” (p. 120).
De qualquer modo, mesmo trabalhando com as noções de resistência ou contra-poder, presentes na abordagem
adotada, não se pode supor a idéia de restauração ou de retorno a uma encruzilhada primeira. Trata-se da instituição de
uma nova racionalidade, de uma outra relação com (um)a (outra) natureza — não aquela objetificada pela razão
científica —, da inauguração de uma nova orientação na maneira de construir, organizar e se localizar no mundo, de um
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novo modo de ser individual e social.


A propósito, é possível estabelecer aproximações entre o texto em exame e outras abordagens como, por
exemplo, a de Horkheimer (1966, 1976), quando desenvolve análise sobre a perda da dimensão racional na civilização
moderna, ainda que se reconheça a diversidade de perspectivas. Esse autor mostra que, da forma como se efetiva atualmente,
a racionalização progressiva tende a obliterar a própria substância da razão na qual se apóia. Para embasar essa conclusão,
compara conceitos que exercem predomínio em distintos momentos históricos: uma concepção objetiva da razão, que a
afirma como princípio inerente à realidade, e uma outra que a considera faculdade subjetiva da mente. Pela primeira, o
grau de racionalidade de uma vida humana seria determinado por sua harmonização com a totalidade; pela segunda, a
razão seria identificada com o funcionamento abstrato do mecanismo do pensamento, sendo apanágio exclusivo do sujeito.
Ambos os aspectos estiveram sempre presentes, ainda que o segundo tenha se tornado predominante no
decurso de um longo processo. Do mesmo modo que Madel Luz afirma ser a racionalidade científica moderna forma de
ordenação do mundo, que implica principalmente atribuição de ordens de sentidos, mais que sua decodificação, para Horkheimer,
a crise atual resulta de que o pensamento moderno se tornou incapaz de conceber uma significação intrínseca à totalidade,
ou a nega como ilusão, tornando a razão mero instrumento, incapaz de perceber a verdadeira natureza da realidade e de
determinar os princípios que guiam a vida humana.
“A neutralização da razão, que a despoja de qualquer relação com o conteúdo objetivo e de seu poder de
julgar este último, e que a reduz ao papel de uma agência executiva mais preocupada com o como do que com o porquê,
transforma-a cada vez mais num simples mecanismo enfadonho de registrar os fatos” (Horkheimer, 1976, p. 65).
Entretanto, a transição através da qual a concepção subjetiva se afirmou sobre a objetiva não foi acidental,
mas histórica; assim, ainda que se reconheça o fato de esse predomínio indicar um processo de irracionalidade crescente,
pela perda de significados que supõe, não há como tentar um “retorno” ou “restauração” do passado. “(...) somos os
herdeiros, para melhor ou pior, do Iluminismo e do progresso tecnológico. Opor-se aos mesmos por um regresso a
estágios mais primitivos não alivia a crise permanente que deles resultou. Pelo contrário, tais expedientes nos conduzem
do que é historicamente racional às formas mais horrendamente bárbaras de dominação social (...)” (Horkheimer, 1976,
p. 138).
Para ele, portanto, a desejada emancipação do homem e da sociedade não se encontra no “restabelecimento”
de quaisquer situações anteriores, uma vez que sua exis
tência como realidade efetiva não foi possibilitada por nenhuma das formas de racionalidade historicamente predominantes.
Afirma que não são vias separadas e independentes, ainda que sua oposição represente verdadeira antinomia, devendo
ser promovida intelectualmente a crítica dos dois conceitos, para preparar sua conciliação na realidade. Entretanto, essa
conciliação será possível apenas com a instauração de uma nova sociabilidade.
Finalmente, é importante identificar uma outra abordagem utilizada pela autora, ainda que não oriente seu
discurso explícito. Reconhecendo um estado de profunda crise mundial, complexa e multifacetada, ameaçadora da própria
permanência da vida em nosso planeta, essa perspectiva aponta para a necessidade de uma estrutura econômica e social
radicalmente diferente e propõe uma nova visão da realidade — uma revolução cultural, na verdadeira acepção da palavra.
Esta, “baseia-se na consciência do estado de inter-relação e interdependência essencial de todos os fenômenos — físicos,
biológicos, psicológicos, sociais e culturais”, “transcende as atuais fronteiras disciplinares e conceituais e será explorada
no âmbito de novas instituições” e é “uma concepção sistêmica da vida” (Capra, 1986, p. 259). Supõe, entretanto, uma
dimensão mística e espiritualista que não se coaduna com uma análise da sociedade disciplinar. Impõe-se, portanto, a
opção.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
CAPRA, Fritjof. O ponto de mutação. São Paulo, Cultrix, 1986.
FOUCAULT, Michel. O nascimento da clínica. Rio de Janeiro, Forense Universitária, 1977.
___________. Vigiar e punir. História la violência nas prisões. Petrópolis, Vozes, 1977a.
___________. Microfísica do poder. Rio de Janeiro, Graal, 1979.
HORKHEIMER, Max. Eclipse da razão. Rio de Janeiro, Labor, 1976.
___________. Sobre el concepto de razón. In: ADORNO, Theodor & HORKHEIMER, Max. Sóciologica. Madrid,
Taurus, 1966. p. 257-271.

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