Entre Marias e Madalenas
Entre Marias e Madalenas
Entre Marias e Madalenas
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Licenciado em História pela Universidade Estadual de Santa Cruz (UESC) e mestre em Memória: Linguagem e
Sociedade, pela Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia (UESB). E-mail: drummond.renato@yahoo.com.br.
da corte. Ao lado desses perfis de mulher, existia outro, em torno do qual muito do debate
médico, literário e jornalístico do Brasil oitocentista se concentrou: o da prostituta.
Assim como nos principais centros urbanos da Europa (Londres, Paris, etc.), o Rio de
Janeiro se tornou numa espécie de “laboratório de observação”, onde políticos, médicos e
reformadores sociais “construíram uma concepção de cidade permeada por imagens
contraditórias” (ENGEL, 2004, p. 37), entre elas o da “mãe-de-família” – identificada com a
moralidade – e o da “prostituta” – identificada com a imoralidade. A Europa não só exportava
para o Brasil produtos, capitais e colonos, como também mulheres (as chamadas polacas e as
cocotes francesas, entre outras) para a produção do prazer. Ao longo do século XIX,
especialmente a partir dos anos 1850, chegaram à corte “cáftens e prostitutas, agentes e objetos
de um desumano comércio que se expandia à medida que o capitalismo se irradiava pelos
demais continentes, a despeito da apologia da liberdade no trabalho” (MENEZES, 1992, p. 31).
Pode-se se dizer que foi no meado do oitocentos que se intensificou na capital brasileira um
grande número de prostitutas, classificadas em três ordens: as chamadas “aristocráticas”, as de
“sobradinhos”, ou a “escória” (que se espalhavam por casebres e mucambos). Eram
consideradas um “mal necessário”, dentro dessa sociedade de gostos burgueses, que se afixava
no Brasil durante o Segundo Reinado.
A imagem idealizada da mulher no século XIX associava-a ao espaço doméstico, sendo
a mulher considerada, portanto, um apêndice da casa e do marido e dedicada à criação dos
filhos. Embora houvessem certas dissimilitudes entre o discurso e a prática, esse perfil era
difundido em muitos romances de caráter pedagógico, em manuais de etiqueta, matérias de
jornal, teses médicas, entre outros meios de informação. Contrária a essa imagem de
virtuosidade estava a da prostituta, frequentemente associada ao vício e à proliferação de
doenças venéreas, como a sífilis. A historiadora Margaret Rago, no seu livro Os prazeres da
noite (2008), afirmou que p perfil da prostituta, no século XIX, foi construído em oposição ao
da dona-de-casa, e vice-versa. A “prostituta” como o estereótipo que deveria ser evitado a todo
custo pelas outras mulheres, e a “dona-de-casa” como aquilo que a prostituta nunca seria.
Porém, ao passo em que as mulheres adentravam no mercado de trabalho e se inseriam no
mundo do lazer, ganhando assim as ruas, elas começaram a dividir o espaço comum do
perímetro urbano com as meretrizes. Com a expansão da vida noturna no Segundo Império,
pode-se dizer também que um nova perfil de mulher, a da artista, chegou para oferecer maior
contraste à da “rainha do lar”. Por seu modo de ser e de agir, a figura da artista foi associada à
imagem da prostituta.
O discurso ideológico do século XIX, especialmente, acentuou a divisão de papéis entre
homens e mulheres. Cada um tinha suas funções, tarefas e espaços, com lugares a serem
ocupados e definidos nos seus mínimos detalhes: para o marido, o espaço público, para a esposa,
o privado. De acordo com Michelle Perrot, “existe um discurso dos ofícios que faz a linguagem
do trabalho uma das mais sexuadas possíveis. ‘Ao homem, a madeira e os metais. À mulher, a
família e os tecidos” (1992, p. 178). A própria política havia contribuído para acentuar essa
interpretação dos papéis masculinos e femininos ao distinguir as categorias “produção”,
“reprodução” e “consumo”. Nesse caso, caberia ao homem assumir a primeira, enquanto a
mulher ficara com a terceira. A segunda (a da reprodução), contudo, seria tarefa de ambos.
Segundo Roderick Barman:
Na opinião do cronista, o sentimento amoroso no Brasil estava ligado mais aos desejos
carnais do sexo do que a ideia de afeto mútuo, bastante defendida em alguns países europeus.
Além disso, Lamberg responsabiliza o clima quente dos trópicos, “particularmente no Brasil”,
como um fator predominante no desejo sexual. Complementando seu depoimento, o francês
conde de Suzannet observou que “a situação moral da população brasileira corresponde ao que
era de esperar: a corrupção de valores no Brasil é coisa demais conhecida para que eu cite
exemplos”. Para ele, o casamento entre as famílias ricas “é, apenas, um jogo de interesse. Causa
espanto ver-se uma moça ainda jovem rodeada de oito ou dez crianças”, sendo que “uma ou
duas, apenas, são dela, as outras são do marido” (apud LEITE, 1993, p. 43).
Na outra esfera, havia a prostituta, considera uma mulher lasciva, debochada e
insubmissa. O oposto do imaginário da mãe e dona-de-casa. Era um ser imaturo e instável, ou,
como disse Nickie Roberts, “mal-humorada e selvagemente frívola, arrogante e vulgarmente
familiar; mudava constantemente e impulsivamente suas opiniões, trajes, humores, casa e até
mesmo classe social” (1998, p. 268), contrário, portanto, ao ideal de passividade e submissão
esperado do sexo feminino. Em Os estrangeiros e o comércio de prazer nas ruas do Rio de
Janeiro (1890-1930), Lená M. de Menezes afirma que:
A alegre vida dos cafés, cantantes e dançantes, dos restaurantes, dos teatros e
das confeitarias modificou o cotidiano da mulher carioca. Paulatinamente esta
ganhou o mundo do lazer, ao mesmo tempo em que começava a se inserir no
mundo do trabalho. Cada vez mais a “mulher honesta” ganhou as ruas e
dividiu espaços comuns com as cortesãs de luxo, na vida noturna, e com o
baixo meretrício, na circulação das ruas. Tal convivência firmou a necessidade
da intervenção policial para a disciplinarização dos costumes, visando a
manutenção dos valores tradicionais e da imagem da mãe-de-família
(MENEZES, 1992, p. 25-6).
Referências Bibliográficas:
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_. Lucíola. – 22ª ed. São Paulo: Ática, 1998.
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AZEVEDO, Aluísio. O Cortiço. São Paulo: Editora Ática, 1997.
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BERNARDES, Maria Thereza Caiuby Crescenti. Mulheres de Ontem?, Rio de Janeiro,
século XIX. São Paulo: T. A. Queiroz, 1988.
CUNHA, H. A. L. Dissertação sobre a prostituição em particular na cidade do Rio de
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ENGEL, Magali. Meretrizes e doutores: saber médico e prostituição no Rio de Janeiro
(1840-1890). São Paulo: Brasiliense, 2004.
LEITE, Míriam Moreira (org.). A condição feminina no Rio de Janeiro, século XIX:
antologia de textos de viajantes estrangeiros. São Paulo: Editora da Universidade de São
Paulo, 1993.
LOURENÇO, Wander. Com licença, senhoritas: a prostituição no romance brasileiro do
século XIX. Niterói: Nitpress, 2006.
MACEDO, F. F. de. Da prostituição em geral, e em particular em relação à cidade do Rio
de Janeiro: prophylaxia da syphilis. Rio de Janeiro: Tip. Acadêmica, 1872.
MENEZES, Lená Medeiros de. Os estrangeiros e o comércio de prazer nas ruas Rio (1890-
1930). Rio de Janeiro: Arquivo Nacional, 1992.
RAGO, Margareth. Do cabaré ao lar: a utopia da cidade disciplinar e a resistência
anarquista. 4ª ed. São Paulo: Paz e Terra, 2014.
_. Os prazeres da noite: prostituição e códigos da sexualidade feminina em São Paulo
(1890-1930). 2ª ed. São Paulo: Paz e Terra, 2008.
ROBERTS, Nickie. As prostitutas na História. Tradução de Magda Lopes. Rio de Janeiro:
Rosa dos Tempos, 1998.
SOARES, Luiz Carlos. Rameiras, Ilhoas e Polcas: a prostituição no Rio de Janeiro do
século XIX. São Paulo: Editora Ática, 1992.
VERONA, Elisa Maria. Da feminilidade oitocentista. São Paulo: Unesp, 2013.