Siqueira & Furlan - Realismo
Siqueira & Furlan - Realismo
Siqueira & Furlan - Realismo
Portuguesa
Autores
Stélio Furlan
José Carlos Siqueira
2008
© 2008 – IESDE Brasil S.A. É proibida a reprodução, mesmo parcial, por qualquer processo, sem autorização por escrito dos autores e do detentor dos
direitos autorais.
ISBN: 978-85-7638-872-2
CDD 869.09
O Humanismo | 25
O homem como centro do universo | 26
O Humanismo em Portugal | 27
Gil Vicente (c. 1465-c. 1537): a grande figura literária do Humanismo | 29
Classicismo: 1527-1580 | 45
A Renascença Portuguesa | 45
Os gêneros clássicos | 46
Épica: Os Lusíadas, um prodígio arquitetônico | 47
Os Lusíadas: episódios | 50
Conclusão sobre Os Lusíadas | 56
A lírica camoniana | 57
Os sonetos de Camões | 58
Amor com engenho e arte | 60
Barroco (1580-1756) | 65
Pode-se falar em Barroco? | 65
Poesia barroca portuguesa | 67
Prosa barroca portuguesa | 71
Conclusão | 76
Arcadismo (1756-1825) | 79
A reação contra o Barroco literário | 79
Principais lemas dos poetas árcades | 82
Bocage e o Arcadismo | 86
Conclusão | 87
O Romantismo: prosa | 95
Romantismo e burguesia | 95
A sensibilidade romântica e o gênero romance | 96
O estabelecimento do liberalismo em Portugal e o romance | 100
A sedimentação do romance em Portugal | 111
Simbolismo | 163
Portugal simbolista | 169
O simbolismo português | 170
Modelos para o Modernismo | 177
O Saudosismo | 183
A Sociedade Renascença Portuguesa e o Saudosismo | 183
Florbela Espanca (1894-1930): uma poesia em suspensão | 190
Precursores do modernismo | 193
Gabarito | 231
Referências | 239
Apresentação
Chega mais perto e contempla as palavras.
Cada uma
tem mil faces secretas sob a face neutra
e te pergunta, sem interesse pela resposta,
pobre ou terrível que lhe deres:
Trouxeste a chave?
Carlos Drummond de Andrade
“Navegadores antigos tinham uma frase gloriosa: ‘Navegar é preciso,
viver não é preciso’. Quero para mim o espírito (d)esta frase, transformada a
forma para a casar com o que eu sou: Viver não é necessário; o que é necessá-
rio é criar”: esta conhecida passagem de Fernando Pessoa serve-nos de mote
para justificarmos as travessias e os percursos pelo vasto espaço da Literatura
Portuguesa.
O objetivo principal é o de compreender elementos para o estudo crí-
tico-produtivo das manifestações canônicas da Literatura Portuguesa, entre
1189 e 1915, situando-a no contexto da literatura ocidental.
Como estratégia de leitura, vamos centrar nosso investimento discur-
sivo e investigativo no que singulariza as diferentes manifestações literárias
do medievo ao início do século XX, a saber:
– Trovadorismo (1198-1418),
– Humanismo (1418-1527),
– Classicismo (1527-1580),
– Barroco (1580-1765),
– Arcadismo (1756-1825),
– Romantismo (1825-1865),
– Realismo (1865-1890),
– Simbolismo (1890-1915),
– Saudosismo (a partir de 1912), e
– Modernismo (a partir de 1915).
Você deve se perguntar o porquê do ano 1189, o porquê do ano 1915.
Utilizaremos essas datas menos como marcos definitivos que como balizas
temporais para localizarmos, entre aproximações e distanciamentos, cada
arte poética ao longo desse recorte temporal.
Alguns estudiosos das origens da Literatura Portuguesa consideram
1189 um dos anos prováveis da escrita da “Canção da Ribeirinha”, de Paio
Soares de Taveirós, a quem se atribui o primeiro poema escrito em língua
portuguesa. Outros pesquisadores consideram a publicação da revista
Orpheu, em 1915, com a participação fundamental de Fernando Pessoa,
o marco inicial do Modernismo em Portugal. Se tais datas não passam de
convenções (não consensuais, diga-se de passagem), não é menos certo di-
zer que derivam de um esforço reflexivo e investigativo sobre as condições
de possibilidade da textualidade lusitana.
Em última instância, desejamos que estas páginas sobre Literatura
Portuguesa estimulem a reflexão sobre a importância da Literatura como
um modo privilegiado de conhecimento, como uma maneira especial de ver
e dizer o mundo. E também que possam incentivar o contato prazeroso com
o Texto, ao que chamaremos fruição textual.
Em A Lírica Trovadoresca, Segismundo Spina escreve que para se
compreender a Literatura da Idade Média é necessário amá-la. Pode-se
acrescentar que não só a compreensão da literatura medieval, mas a Litera-
tura Portuguesa de modo geral, das primeiras cantigas de amor e de amigo
às textualidades contemporâneas, solicita um envolvimento amoroso.
Nesse sentido, consideramos oportuno iniciarmos a nossa travessia
literária com uma reflexão sobre a arte de amar (ars amatoria), tema por
excelência do lirismo trovadoresco medieval.
Stélio Furlan e José Carlos Siqueira
O Realismo (1865-1890)
José Carlos Siqueira
O trecho acima é um dos grandes momentos da peça de Tennessee Williams, Um Bonde Chamado
Desejo.1 Blanche Dubois, uma mulher madura que procura fugir da decadência e da velhice, explica para
Mitch, um quase namorado, sua filosofia de vida. Além de ser uma fala de grande efeito na dinâmica da
peça de Tennessee Williams, ela ainda possibilita outras leituras. Há aqui um sentido metalingüístico, in-
dicando talvez um certo esgotamento da estética realista no drama da primeira metade do século XX
— o que se comprovaria com novas experiências cênicas como o Teatro do Absurdo, de um Ionesco, e
Teatro Épico, de um Brecht, escolas que ganharam espaço depois da Segunda Guerra.
Mas, num sentido ainda mais amplo, a fala de Blanche com certeza estava antecipando uma ten-
dência cultural que se manifestaria com toda força bem depois de 1947, ano em que a peça de Williams
estreou. Estamos falando dos movimentos contraculturais que se desdobraram a partir dos anos 1960,
e que tiveram sua face política com as revoltas estudantis de 1968. Neste caso, um dos lemas mais sig-
nificativos dos jovens rebeldes era “a imaginação no poder”.
Feitos os devidos descontos, o paralelo com “Não quero realismo. Eu quero magia” é muito pertinen-
te. Os estudantes não defendiam apenas mais “criatividade” na condução política, mas sim uma inversão de
valores na sociedade burguesa. Eles desejavam, assim como Blanche, mais magia na vida dos indivíduos e
comunidades. Mais liberdade sexual, possibilidades de novas experiências (o uso de alucinógenos foi uma
característica desse movimento), novos caminhos espirituais que escapassem do monopólio cristão etc.
1 Há um filme clássico baseado nesta peça, dirigido por Elia Kazan, com Vivien Leigh e Marlon Brando (no Brasil saiu com o nome Uma Rua
Chamada Pecado), que pode ser facilmente encontrado em DVD.
142 | Literatura Portuguesa
Uma das diretrizes das revoltas estudantis de 1968 era a de que a atitude “realista”, fosse na políti-
ca, na crítica social e na arte, não era mais suficiente. Havia agora necessidade de um maior espaço para
a espontaneidade e a intuição, além de, é claro, muita imaginação. O Realismo enquanto posição epis-
temológica e política havia fracassado na tentativa de se alcançar um mundo mais justo e livre. Chegara,
portanto, a vez da magia.
No entanto, mais ou menos um século antes das barricadas estudantis de 68, ironicamente um
grupo de jovens intelectuais, estes também rebeldes, propunha na Europa exatamente o contrário para
se atingir os mesmíssimos propósitos, justiça e liberdade. Estamos nos referindo às Conferências do
Casino, em Lisboa, no ano de 1871.
Condenada por muitos, que a consideravam uma espécie de fim do mundo, a Comuna foi vista por ou-
tros como a possibilidade de redenção e início de uma nova era para a humanidade. Entre estes últimos,
estavam os conferencistas do Casino.
3 Pierre-Joseph Proudhon (1809-1865), teórico político e jornalista francês. Uma das principais lideranças anarquistas sua obra mais conhecida
e polêmica se chama O que é a propriedade, na qual ele responde: ela é um roubo.
4 François-Marie Charles Fourier (1772-1837), filósofo francês, membro do movimento denominado Socialismo Utópico.
5 Mikhail Bakunin (1814-1876), revolucionário russo, um dos fundadores e formuladores do Anarquismo. Uma de suas principais obras: Deus
e o Estado.
6 Karl Heinrich Marx (1818-1883), filósofo e economista alemão. Formulador do Socialismo Científico, além de O Capital (3v., 1867-1894),
escreveu ainda O Manifesto Comunista (1848) e A Ideologia Alemã (1846), ambos em colaboração com Friedrich Engels (1820-1895), filósofo e
líder socialista.
144 | Literatura Portuguesa
7 Charles Robert Darwin (1809-1882), biólogo e naturalista inglês. Formulador da Teoria da Evolução, sua principal obra é A Origem das Espécies
(1859).
8 Adam Smith (1732-1790), filósofo e economista escocês. Um dos pais da economia de mercado ou liberalismo econômico, sua principal obra
é A Riqueza das Nações (1776).
9 Hippolyte-Adolphe Taine (1828-1893), filósofo e historiador francês. Uma de suas principais obras é História da literatura inglesa (1864-1869),
na qual aplica seu método determinista.
O Realismo (1865-1890) | 145
mas de alterá-la da maneira que melhor conviesse aos interesses da humanidade. Mas para isso era ne-
cessário abdicar do pensamento religioso, que obstaculizava a apreensão da realidade como ela era, e
dos “enganos” metafísicos que filósofos e poetas românticos colocavam como a verdadeira essência do
ser humano.
Eis aqui alguns dos pressupostos que levaram os conferencistas do Casino a propor um novo qua-
dro mental para a nação portuguesa, que segundo eles se encontrava na mais atrasada mentalidade da
Europa, e também a propor radicais mudanças na condução política de Portugal e em sua estrutura so-
cial. Em termos culturais e literários, os princípios expostos tiveram como expressão uma corrente esté-
tica que seus próprios proponentes denominaram de Realismo. Um conceito que seria apresentado e
analisado nas Conferências do Casino por aquele que se tornaria o maior romancista português desse
século, Eça de Queirós.
10 Há um resumo da palestra na obra de António Salgado Jr., História das Conferências do Casino. Lisboa: Cooperativa Militar, 1938.
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Nesse trecho, Eça está criticando em particular o Romantismo português, que segundo ele havia
se alienado da realidade social e se fechado num convencionalismo insípido. Há também com certeza
uma crítica ao romance histórico, “nossa arte é de todos os tempos”, uma das principais correntes ro-
mânticas dentro da produção romanesca. Bom, e o que seria então o Realismo para o conferencista:
Que é, pois, o realismo? É uma base filosófica para todas as concepções do espírito – uma lei, uma carta de guia, um
roteiro do pensamento humano, na eterna região do belo, do bom e do justo. Assim considerado, o realismo deixa de
ser, como alguns podiam falsamente supor, um simples modo de expor – minudente, trivial, fotográfico. Isso não é
Realismo: é o seu falseamento. É o dar-nos a forma pela essência, o processo pela doutrina. O realismo é bem outra coi-
sa: é a negação da arte pela arte; é a proscrição do convencional, do enfático e do piegas. É a abolição da retórica consi-
derada como arte de promover a comoção usando da inchação do período, da epilepsia da palavra, da congestão dos
tropos. É a análise com o fito na verdade absoluta. Por outro lado, o Realismo é uma reação contra o Romantismo: o
Romantismo era a apoteose do sentimento; o Realismo é a anatomia do caráter. É a crítica do homem. É a arte que nos
pinta a nossos próprios olhos – para nos conhecermos, para que saibamos se somos verdadeiros ou falsos, para conde-
nar o que houver de mau na nossa sociedade. (MATOS, 1988, p. 127)
Por fim, Eça de Queirós dá como modelos de Realismo o romancista francês Flaubert, autor de
Madame Bovary, e o pintor, também francês, Gustave Courbet (1819-1877). A menção a esse pintor não
é gratuita. Na verdade, o Realismo enquanto corrente estética foi introduzido pelas artes plásticas, exa-
tamente por Courbet. Ele foi o criador dos famosos e polêmicos quadros Enterro em Ornans (veja a figu-
ra a seguir) e As Banhistas, além do escandaloso, e portanto ainda mais famoso, A Origem do Mundo11.
Courbet teve suas pinturas recusadas na Exposição Universal de Paris e, em represália, montou uma ex-
posição paralela nas ruas de Paris em 1855. Dizia ele: “O título de realista me foi imposto, como impu-
seram aos homens de 1830 o título de românticos”, sendo que o que procurava em seus quadros era
“traduzir os costumes, as idéias, o aspecto de [sua] época”, “fazer arte atual” (apud MOISÉS, 1980, p. 201).
Fazendo uma síntese, podemos dizer que o Realismo se caracterizaria pelos seguintes traços:
::: a reação ao Romantismo (que passara a ser uma literatura convencional e conservadora), rejei-
tando qualquer tipo de sentimentalismo ou de devaneios exacerbados da imaginação;
::: objetividade em contraposição ao subjetivismo do Romantismo;
::: a utilização de métodos racionalistas típicos da filosofia empirista e da ciência;
::: a elaboração de uma crítica precisa à sociedade burguesa, mostrando com fidelidade suas ma-
zelas e injustiças (proposta tipicamente revolucionária).
Depois da palestra de Eça de Queirós, a tribuna foi ocupada por Adolfo Coelho, com o tema A
questão do ensino, no dia 19 de junho de 1871. Foi uma contundente crítica à educação portuguesa e,
em particular, à influência da Igreja Católica sobre o país, propondo que houvesse uma total separa-
ção entre o Estado e a Igreja. Talvez pela contundência dessa última palestra, ou pelo conjunto da obra,
o governo português de forma arbitrária e algo acovardada suspende as Conferências do Casino ain-
da nos seus inícios. Não podemos deixar de pensar que a Comuna de Paris e seu massacre também
tenham influenciado nessa decisão. Sabe-se lá o que poderia acontecer na capital portuguesa se as
Conferências fossem até o fim... No Texto complementar, a seguir, poderemos ler um delicioso e irônico
artigo de Eça sobre o fechamento despótico das conferências.
O Realismo e o Naturalismo
Antes de passarmos à apresentação dos principais autores e obras do Realismo português, deve-
mos esclarecer a distinção entre a corrente realista e a naturalista. Ambas são contemporâneas e parti-
lham dos princípios expostos na seção anterior, no entanto, têm lá as suas diferenças.
As duas vertentes participam ainda da mesma base de pensamento: o empirismo, o positivismo,
a teoria determinista de Taine, o ímpeto revolucionário, a crítica social e panfletária etc. E cumprem es-
sas diretrizes escolhendo para sua produção literária temas contemporâneos ao autor e ligados à vida
quotidiana, em geral, à família (adultério, incesto), à esfera do dinheiro (exploração, carreirismo, gover-
no) e da cultura (jornalismo, teatro, religião).
O Naturalismo seria uma espécie de prolongamento dessas características, adicionando-lhes um
maior grau de cientificidade e de interesse pelo patológico. Ou seja, a literatura naturalista funciona-
ria como um complemento ao Realismo, continuando onde este pára e aguçando sua análise num viés
mais fisiológico e centrado no doentio, na excentricidade. Isso se deve a um maior apego às idéias po-
sitivistas. O Positivismo é ele também um prolongamento e uma radicalização do pensamento empi-
rista, e sua índole materialista, experimentalista e, principalmente, organicista (isto é, que interpreta o
universo ou a natureza como um gigantesco organismo vivo) era levada tão a sério por seus adeptos
que o Positivismo chegou mesmo a conhecer um caráter religioso – em seus próprios termos, é claro.
Auguste Comte (1798-1857), um dos mais importantes pensadores positivista, chegou a fundar uma
nova doutrina religiosa, a Religião da Humanidade e há no Brasil uma seção desse sistema religioso, a
Igreja Positivista do Brasil.
O romance será o gênero preferencial do Naturalismo, veículo competente para longas análises de
personagens e de suas histórias. Por meio dos enredos romanescos se destrincham longínquas causas so-
ciais, étnicas, hereditárias etc., capazes de explicar os comportamentos anômalos e desviantes desses per-
148 | Literatura Portuguesa
sonagens e das situações sociais que era o foco dos naturalistas. Sempre com a meticulosidade própria de
um fisiologista, especialidade médica à qual os escritores dessa corrente gostavam de se comparar. Émile
Zola (1840-1902), romancista naturalista francês, explica o processo do romance experimental:
Possuir os mecanismos dos fenômenos humanos, mostrar a engrenagem das manifestações intelectuais e sensuais, tais
como a fisiologia as explicará, sob as influências da hereditariedade e das circunstâncias do ambiente; a partir daí, mos-
trar o homem vivo no meio social que ele mesmo produziu, que ele modifica quotidianamente e no seio do qual expe-
rimenta, por sua vez, uma transformação contínua. (REIS, 2001, p. 22).
É nesse sentido que se define o “romance de tese”, uma subcategoria romanesca, própria do
Realismo e Naturalismo: obra ficcional que emprega métodos experimentais sobre dados raciais, am-
bientais e sociais a fim de provar uma tese, em geral proposta pelas ciências (Biologia, Sociologia,
Psicologia). O autor coloca personagens-tipos, ou seja, que exemplificam um conjunto de indivíduos
(uma classe social, uma profissão, uma tara etc.), em situações controladas, portanto, experimentais, e
o desenvolvimento da história, por meios deterministas, demonstra a validade de tal tese. Nas palavras
de Émile Zola:
Os romancistas naturalistas observam e experimentam e [...] todo o seu labor decorre da dúvida em que se colocam pe-
rante as verdades mal conhecidas, os fenômenos inexplicados, até que uma idéia experimental desperta bruscamente
um dia o seu gênio e leva-os a instituir uma experiência, para analisar os fatos e dominá-los. (REIS, 2001, p. 22)
A poesia realista
Apesar do romance ser a forma preferencial do Realismo e do Naturalismo, uma importante gera-
ção de poetas realistas surgiu na segunda metade do século XIX, em Portugal, que devolveu a poesia lu-
sitana aos patamares que havia atingido no Classicismo e no Arcadismo. Duas características principais
devem ser mencionadas para se definir essa produção:
::: trata-se de uma poesia engajada, tanto no sentido de se aferrar aos movimentos sociais e po-
líticos do momento, logo, revolucionários, quanto no de promover e discutir os grandes prin-
cípios filosóficos e intelectuais que informavam o Realismo;
::: era uma poesia ligada ao seu tempo e ao cotidiano, buscando na vida contemporânea temas
e imagens para difundir seus ideais poéticos e de escola.
O nome mais proeminente da poesia portuguesa realista é o já mencionado Antero de Quental, a
quem dedicaremos uma seção exclusiva.
ais auto-intitulado O Cenáculo (1868). Desse grupo faziam parte Eça de Queirós, Jaime Batalha Reis e
Ramalho Ortigão, entre outros.
Em 1871, como já dissemos, Antero dirige as Conferências do Casino e participa ativamente delas.
Nos anos seguintes, procura desenvolver ações e grupos socialistas em Portugal, associando-se a orga-
nizações operárias e mantendo relações com o movimento proletário internacional. Depois de um lon-
go período de frustrações políticas e isolamento auto-imposto, o poeta volta à militância revolucionária
e se filia à Liga Patriótica do Norte, um grupo de ativistas organizado após o Ultimatum inglês (1890).
Mais uma vez vendo frustrado os seus planos de mudança social, Antero se isola novamente em sua ter-
ra natal e termina se suicidando em 11 de setembro de 1891.
Antero escreveu poesia e a prosa polêmica e filosófica. No primeiro caso, temos: Odes Modernas
(1865), Primaveras Românticas, Versos dos Vinte Anos (1871), Sonetos completos (1886), Raios de extinta luz
(1892). No segundo, sua produção foi reunida em três volumes: Prosas (1923, 1926, 1931).
Foi com as Odes Modernas que Antero, muito jovem, fez-se conhecido em Portugal, desencadean-
do a famosa Questão Coimbrã, como informado acima. Nesse livro, seus versos são revolucionários, ico-
noclastas e irreverentes, motivo de haver mexido com os brios conservadores da crítica da época:
(QUENTAL, 2008)
Eu quero perguntar aos Sacerdotes,
Que, chamando rebanho a seus irmãos,
Cuidam que Deus lhes cabe em duas mãos,
E todo o céu debaixo dos capotes;
Percebe-se nesse trecho do poema “Pater” a atitude anticlerical e anti-religiosa típica do Realismo.
O sarcasmo é evidente, ampliado pela estratégia de perguntas irreverentes e blasfemas.
Se a obra de juventude mostra seu interesse e vigor pela disposição de afrontar, a produção de
maturidade de Antero nos descortina uma poesia mais atormentada. O tormento vem de uma série de
dilemas existenciais experimentados pelo poeta e filósofo a partir de sua vida adulta. Havia nele uma
disposição pelas grandes lutas coletivas, pela revolução, mas também era vítima de uma grave consci-
ência das questões últimas de todo o indivíduo: o sentido da vida, o da morte, a imortalidade da alma.
Antero por vezes demonstrava aquela confiança típica de sua geração na ciência e na racionalidade hu-
manas, porém, em outros momentos, se dava conta da futilidade dessas faculdades em responder às
angústias do indivíduo.
Tese e antítese
(QUENTAL, 2008)
Já não sei o que vale a nova idéia,
Quando a vejo nas ruas desgrenhada,
Torva no aspecto, á luz da barricada,
Como bacante após lúbrica ceia!
Nesse poema, composto de dois sonetos, o próprio título e a própria forma adotada já exprimem
o dilaceramento do poeta. À necessidade de implantar uma idéia aqui na terra, certamente a revolução,
se contrapõe o horror das lutas que se seguem. No entanto, a idéia, que é chama e sofrimento na men-
te dos homens, é um ser divino e impassível numa dimensão transcendente. Duas realidades opostas e
irreconciliáveis, tese e antítese incapazes de uma síntese para o inconstante e mortal ser humano.
Biblioteca Nacional Digital de Portugal.
de Notícias. Continuou publicando seus versos em jornais até morrer em 1886, aos 31 anos, vítima da tu-
berculose. No ano seguinte à sua morte, Silva Pinto coligiu os poemas do amigo e publicou O Livro de
Cesário Verde.
Sua produção pode ser classificada como “poesia do cotidiano”. Bem próximo dos princípios rea-
listas que tematizavam o tempo contemporâneo e a realidade material, Cesário Verde desejava cantar
o cotidiano mais prosaico, escapando assim dos temas nobres: amor, morte, subjetividade, que faziam
parte do repertório romântico. No entanto, sua poesia trazia um jogo entre objetividade e subjetivida-
de que lhe é muito peculiar. Assim, a percepção objetiva da realidade passa pelo crivo de sua subjetivi-
dade, gerando um conjunto de imagens bastante originais e críticas dessa realidade:
III — Ao Gás
(VERDE, 2008)
E saio. A noite pesa, esmaga.
Nos Passeios de lajedo arrastam-se as impuras.
Ó moles hospitais! Sai das embocaduras
Um sopro que arrepia os ombros quase nus.
Cercam-se as lojas, tépidas. Eu penso
Ver círios laterais, ver filas de capelas,
Com santos e fiéis, andores, ramos, velas,
Em uma catedral de um comprimento imenso.
As burguesinhas do Catolicismo
Resvalam pelo chão minado pelos canos;
E lembram-me, ao chorar doente dos pianos,
As freiras que os jejuns matavam de histerismo
Num cutileiro, de avental, ao torno,
Um forjador maneja um malho, rubramente;
E de uma padaria exala-se, inda quente,
Um cheiro salutar e honesto a pão no forno.
Percebe-se nesse trecho de “O sentimento dum ocidental” como todos os tipos humanos têm seu
lugar: prostitutas, carolas, artesãos, trabalhadores. Na segunda estrofe, há uma fusão entre a descrição
fiel que se fazia da rua e a sensação do eu poético de estar vendo um longo átrio de igreja. Lojas, vitrines,
postes de luz e asfalto se reconfiguram na sensibilidade do poeta e transformam-se num lugar ironica-
mente sagrado: a rua de comércio resplandecente torna-se o templo do homem moderno, o templo do
consumo, ao qual corresponde a nova religião — o consumismo — praticada especialmente pelos bur-
gueses do final do século XIX.
A prosa realista
Na prosa de ficção realista portuguesa, incluindo-se romances e contos, destacam-se nomes
como Abel Botelho (1854-1917), que escreveu o romance O Barão de Lavos (1891), de viés naturalista,
obra que aborda pela primeira vez a homossexualidade em Portugal. Fialho de Almeida (1857-1911),
importante contista, deixou-nos as coletâneas Contos (1881), A Cidade do Vício (1882) e O País das Uvas
(1893). Temos ainda outros nomes significativos, como Ramalho Ortigão e Oliveira Martins, mas que se
destacaram principalmente no jornalismo e na prosa intelectual.
Há, porém, uma figura cuja estatura literária e intelectual acaba obscurecendo esses seus con-
temporâneos: Eça de Queirós. Para fins didáticos, vamos dividir sua produção em jornalismo e ficção.
Eça jornalista
José Maria Eça de Queirós nasceu em Póvoa de Varzim, em 1845. Estudou Direito em Coimbra e
fez parte da agitada geração acadêmica daquele período, entusiasmada com as idéias de Proudhon e
de Comte. Foi amigo de Antero de Quental, Teófilo Braga e outros envolvidos com a Questão Coimbrã.
Terminada a universidade, muda-se para Lisboa e escreve crônicas e folhetins para a Gazeta de Portugal,
diário de certa importância da capital, de 1865 a 1867. Nesse meio tempo, Eça vai para a cidade de
Évora, interior de Portugal, onde funda, redige sozinho e comercializa um jornal de oposição chamado
O Distrito de Évora, numa fantástica experiência tanto empresarial quanto jornalística. O projeto vai de
janeiro de 1867 até agosto do mesmo ano, quando retorna para Lisboa e se filia ao já mencionado gru-
po do Cenáculo (1868), capitaneado por Antero.
Em 1869, viajou ao Egito para acompanhar a inauguração do Canal de Suez. No regresso, partici-
pou das Conferências do Casino (1871), já comentadas, e em seguida foi para Leiria como administra-
dor do Concelho, condição para que pudesse ingressar na carreira diplomática. De sua estada em Leiria
(seis meses) veio a inspiração para O Crime do Padre Amaro (1875). Aprovado em concurso, foi nomeado
cônsul em Havana (1873). No ano seguinte foi transferido para Newcastle upon Tyne (Inglaterra). Dali
é transferido para Bristol onde fica até 1878. Finalmente consegue sua desejada nomeação para Paris.
Nesse período se casou, teve quatro filhos. Morando na periferia de Paris e cercado de familiares e ami-
gos, faleceu em 1900.
154 | Literatura Portuguesa
Além das duas experiências jornalísticas de juventude, conforme acima comentado, Eça ainda co-
laborou com os seguintes órgãos de imprensa:
::: As Farpas, uma revista de pequenas proporções que ele fundou e dirigiu junto com Ramalho
Ortigão de 1871 a 1872;
::: A Actualidade, jornal do Porto, de 1877 a 1878, em que colaborou como correspondente na
Inglaterra;
::: A Gazeta de Notícias do Rio de Janeiro, de 1880 a 1897, em que, além de correspondente, foi
também o diretor de seu Suplemento Literário, o primeiro publicado no Brasil;
::: A Revista de Portugal, projeto ambicioso de uma revista ilustrada que Eça fundou e coordenou
de 1889 a 1892;
::: Revista Moderna, também uma revista ilustrada de propriedade de um empresário brasileiro.
Eça dirigiu a revista de 1897 a 1899.
Em vista de semelhante participação na imprensa, teve uma importante atuação junta à forma-
ção intelectual de muitos portugueses e brasileiros, o que o transformou numa referência intelectual no
Brasil e em Portugal.
Eça romancista
Apesar de ter sido muito famoso como jornalista, é como romancista que Eça de Queirós vai pas-
sar para a posteridade. Sua produção romanesca não é muito extensa, mas é de grande qualidade,
sendo que, apesar de reconhecido como o mais importante escritor realista, ele experimentou outros
gêneros e estilos que se afastavam dessa corrente.
Podemos dividir suas obras conforme abaixo:
::: romances publicados em vida: O Crime do Padre Amaro, 1876 (segunda versão); O Primo Basílio,
1878; O Mandarim, 1880; A Relíquia, 1887; Os Maias, 1888;
::: romances semi-póstumos (que chegaram a ter alguma divulgação ou revisão antes da morte
de Eça, mas só foram publicados por inteiro após seu falecimento): A Ilustre Casa de Ramires,
1900; A Cidade e as Serras, 1901.
::: romances e novelas póstumos e inconclusos: A Capital (1925); O Conde de Abranhos (1925);
Alves & Cia. (1925); A Tragédia da Rua das Flores (1980).
Entretanto, essa não é a única divisão possível da obra eciana. Há também um certo consenso
por parte da crítica sobre a existência de duas fases na vida do romancista. A primeira seria aquela dos
romances marcadamente realistas, que vai do Crime do Padre Amaro até Os Maias. Após a publicação
deste último, a escrita dos romances de Eça teria sofrido certas mudanças e se distanciado das balizas
realistas, algo que teria ocorrido com A Ilustre Casa e A Cidade e as Serras.
listas, seu primeiro romance, O Crime do Padre Amaro, é de um anticlericalismo atroz. O escritor portu-
guês delineia um amplo quadro da vida dos clérigos numa pequena cidade interiorana, Leiria. Nele, os
padres são glutões, avarentos, ambiciosos, lascivos e, em suma, corruptos e corruptores. Amaro, um jo-
vem padre que assume a igreja da Sé em Leiria, seduz uma moça carola, Amélia, com quem tem um fi-
lho. Apesar do caso terminar em tragédia, o final do livro mostra um Amaro, anos mais tarde, bem posto
na carreira eclesiástica, sem remorsos e, tendo como única lição de todo o infortúnio, a consciência de
que só deveria se envolver com mulheres casadas.
No capítulo XXV desse romance, o padre Amaro se encontra com o cônego Dias no centro de
Lisboa e eles falam sobre os acontecimentos da Comuna de Paris:
Então indignaram-se contra essa turba de maçons, de republicanos, de socialistas, gente que quer a destruição de tudo
o que é respeitável — o clero, a instrução religiosa, a família, o exército e a riqueza... Ah! a sociedade estava ameaçada
por monstros desencadeados! Eram necessárias as antigas repressões, a masmorra e a forca. Sobretudo inspirar aos ho-
mens a fé e o respeito pelo sacerdote.
— Aí é que está o mal, disse Amaro, é que nos não respeitam! Não fazem senão desacreditar-nos... Destroem no povo
a veneração pelo sacerdócio...
— Caluniam-nos infamemente, disse num tom profundo o cônego.
Então junto deles passaram duas senhoras, uma já de cabelos brancos, o ar muito nobre; a outra, uma criaturinha del-
gada e pálida, de olheiras batidas, os cotovelos agudos colados a uma cinta de esterilidade, pouff enorme no vestido,
cuia forte, tacões de palmo.
— Cáspite! disse o cônego baixo, tocando o cotovelo do colega. Hein, seu padre Amaro?... Aquilo é que você queria
confessar.
— Já lá vai o tempo, padre-mestre, disse e pároco rindo, já as não confesso senão casadas!
O cônego abandonou-se um momento a uma grande hilaridade... (QUEIRÓS, 2008)
Apesar do tema forte e provocativo, O Crime passou despercebido pelo público. Somente com O
Primo Basílio, Eça viria a conhecer a fama e o reconhecimento. Nesse segundo romance, nosso autor vai
abordar o adultério. Podemos dizer que ele providencia a versão portuguesa de Madame Bovary. Agora
seu alvo é a pequena burguesia lisboeta. Luísa, jovem esposa de um graduado funcionário público, se
aproveita de uma viagem a serviço do marido para se entregar aos prazeres com um primo, namorado
de infância, que retornara a Portugal depois de longa ausência. Basílio, o tal primo, é um cafajeste de
posses e se diverte com a prima, alimentando-lhe os sonhos românticos. Saciado, Basílio parte para o
exterior e deixa Luísa em papos de aranha com sua criada, Juliana, que se apossara de cartas compro-
metedoras e passa a chantagear Luísa. Tudo se resolve da pior maneira possível, demonstrando a falta
de princípios e o individualismo exacerbado dessa classe média.
No capítulo VII de O Primo Basílio, Luísa e Basílio discutem no “Paraíso” (quarto imundo que ele ha-
via alugado para os encontros), e ela resolve ir embora:
— Vais-te, Luísa?
— Vou. É melhor acabarmos por uma vez...
Ele segurou o fecho da porta rapidamente.
— Falas sério, Luísa?
— Decerto. Estou farta!
— Bem. Adeus.
Abriu a porta para a deixar passar, curvou-se silenciosamente.
156 | Literatura Portuguesa
O discurso amoroso de ambas as partes é, no limite, falso, pois Luísa se envolve com Basílio por
simples tédio e Basílio conquista Luísa por diversão. Denuncia-se, assim, a falta de valores consistentes
da burguesia.
Em Os Maias, Eça visa a alta burguesia portuguesa. Sofisticada e cosmopolita, essa classe não pos-
sui qualquer responsabilidade com o país e seu povo, apenas usufruindo o que a nação possa lhe dar
de bom, e pronta para “abandonar o navio” a qualquer contratempo. O charmoso e elegante Carlos da
Maia, modelo maior de dandy e perfeito representante da elite econômica, usa sua alta formação de
maneira totalmente diletante, sem propósitos concretos e sem dar a sua existência qualquer significa-
do mais elevado. Envolve-se apaixonadamente com a amante de um outro endinheirado, e acaba por
montar-lhe uma confortável casa nos arredores de Lisboa. Nessa situação idílica, Carlos descobre que a
amante, Maria Eduarda, era sua irmã de sangue. A mãe de Carlos havia abandonado o lar quando este
era ainda muito pequeno e levara com ela a filha, mais nova do que Carlos, para viver uma aventura
amorosa pela Europa, e nunca mais dera notícias.
Assim resumida, a história parece rocambolesca, mas não é. Estruturado com rigor, o enredo se
desenvolve entre cenas da high society lisboeta, tornando plausível o caso de incesto. Já nesse livro Eça
dá sinais de mudanças no seu estilo literário, o tema é ainda chocante, mas há menos crítica direta, me-
nos denúncia sarcástica das mazelas dos homens que deveriam comandar os destinos da nação por-
tuguesa. Na verdade, o escritor passa a utilizar uma estratégia literária mais sutil, apesar de não menos
competente, de denunciar, por meio da estruturação do romance, abrindo mão do ataque direto, a falta
de compromisso da alta burguesia com os caminhos da nação.
Vejamos esta conversa entre o grupo de amigos de Carlos, em que se discutem os graves proble-
mas financeiros do país durante um lauto jantar. O principal convidado é Cohen, um banqueiro que tem
informações privilegiadas, que ouve uma indagação de João da Ega, melhor amigo de Carlos da Maia:
— Então, Cohen, diga-nos você, conte-nos cá... O empréstimo faz-se ou não se faz?
E acirrou a curiosidade, dizendo para os lados, que aquela questão do empréstimo era grave. Uma operação tremen-
da, um verdadeiro episódio histórico!...
O Cohen colocou uma pitada de sal à beira do prato, e respondeu, com autoridade, que o empréstimo tinha de se re-
alizar absolutamente. Os empréstimos em Portugal constituíam hoje uma das fontes de receita, tão regular, tão indis-
pensável, tão sabida como o imposto. A única ocupação mesmo dos ministérios era esta — cobrar o imposto e fazer o
empréstimo. E assim se havia de continuar...
O Realismo (1865-1890) | 157
Carlos não entendia de finanças: mas parecia-lhe que, desse modo, o país ia alegremente e lindamente para a bancarrota.
— Num galopezinho muito seguro e muito a direito, disse o Cohen, sorrindo. Ah, sobre isso, ninguém tem ilusões, meu
caro senhor. Nem os próprios ministros da fazenda!... A bancarrota é inevitável: é como quem faz uma soma...
Ega mostrou-se impressionado. Olha que brincadeira, hein! E todos escutavam o Cohen. Ega, depois de lhe encher o cá-
lice de novo, fincara os cotovelos na mesa para lhe beber melhor as palavras.
— A bancarrota é tão certa, as coisas estão tão dispostas para ela — continuava o Cohen — que seria mesmo fácil a
qualquer, em dois ou três anos, fazer falir o país...
Ega gritou sofregamente pela receita. Simplesmente isto: manter uma agitação revolucionária constante; nas vésperas
de se lançarem os empréstimos haver duzentos maganões decididos que caíssem à pancada na municipal e quebras-
sem os candeeiros com vivas à República; telegrafar isto em letras bem gordas para os jornais de Paris, Londres e do Rio
de Janeiro; assustar os mercados, assustar o brasileiro, e a bancarrota estalava. Somente, como ele disse, isto não con-
vinha a ninguém. (QUEIRÓS, 2008)
O jogo aqui é que o leitor perceba a posição dos personagens: todos bem de vida, fruindo um
saboroso convívio, alguns deles em postos de comando no país (o caso de Cohen, diretor do Banco
Nacional) e discutindo os problemas da nação como se fosse um assunto bizantino. Eça abria mão de
um discurso mais contundente por uma estratégia literária muito mais irônica e mais interessante em
termos estéticos e críticos.
Ou seja, o escritor português fez uma opção por uma representação mais equilibrada do seu país,
sem perder a marca crítica, mas procurando também uma autenticidade maior naquilo que havia de
positivo e esperançoso em Portugal. Podemos talvez perceber isso no personagem Gonçalo de A ilustre
Casa de Ramires: apesar de inseguro e, por vezes, imoral, esse aristocrata rural decadente faz um enorme
esforço para escrever uma novela histórica sobre sua antiga família e conseguir ser eleito para o parla-
mento português. No final do romance, o personagem João Gouveia, amigo de Gonçalo, faz a seguinte
análise do herói desta obra para vários amigos a sua roda:
158 | Literatura Portuguesa
— Talvez se riam. Mas eu sustento a semelhança. Aquele todo de Gonçalo, a franqueza, a doçura, a bondade, a imen-
sa bondade, que notou o Senhor Padre Soeiro... Os fogachos e entusiasmos, que acabam logo em fumo, e juntamente
muita persistência, muito aferro quando se fila à sua idéia... A generosidade, o desleixo, a constante trapalhada nos ne-
gócios, e sentimentos de muita honra, uns escrúpulos, quase pueris, não é verdade?... A imaginação que o leva sempre
a exagerar até à mentira, e ao mesmo tempo um espírito prático, sempre atento à realidade útil. A viveza, a facilidade
em compreender, em apanhar... A esperança constante nalgum milagre, no velho milagre de Ourique, que sanará to-
das as dificuldades... A vaidade, o gosto de se arrebicar, de luzir, e uma simplicidade tão grande, que dá na rua o bra-
ço a um mendigo... Um fundo de melancolia, apesar de tão palrador, tão sociável. A desconfiança terrível de si mesmo,
que o acovarda, o encolhe, até que um dia se decide, e aparece um herói, que tudo arrasa... Até aquela antigüidade de
raça, aqui pegada à sua velha Torre, há mil anos... Até agora aquele arranque para a África... Assim todo completo, com
o bem, com o mal, sabem vocês quem ele me lembra?
- Quem?...
- Portugal.
(QUEIRÓS, 2008)
Dicas de estudo
::: A Biblioteca Nacional de Portugal possui uma homepage muito bonita e informativa em ho-
menagem a Eça de Queirós: <http://purl.pt/93/1/>.
::: Há uma nova e interessante biografia de Eça de Queirós: Mónica, M. F. Eça de Queirós. Lisboa:
Quetzal, 2001.
::: Em celebração aos 150 anos de nascimento de Eça, a USP publicou os Anais do III Encontro
Internacional de Queirosianos. S. Paulo: Centro de Estudos Portugueses, 1997.
Texto complementar
O senhor ministro do Reino
(QUEIRÓS, 2008)
O senhor ministro do Reino fez entregar por um empregado de polícia ao senhor Zagalo, dire-
tor do Casino, um papel – reacionário pela intenção, mas demagógico pela gramática – em que se
notificava que, por ordem superior, estavam fechadas as conferências democráticas.
Conheces já decerto, leitor sensato e honrado, o protesto dos conferentes, a adesão de outros
cidadãos, a opinião da imprensa...
E achas certamente na tua consciência que este ato do senhor marquês de Ávila, não tendo de
certo modo eqüidade, não tem de modo algum legalidade; que é sobretudo profundamente inábil;
O Realismo (1865-1890) | 159
e que o senhor marquês, dando um golpe de Estado contra alguns escritores que no Casino faziam
crítica de história e de literatura, foi criar uma atitude política onde só havia um intuito científico.
[...]
Vejamos a legalidade do fato. Num país constitucional, tem-se sempre aberta sobre a mesa a
Carta Constitucional – ou para descansar nela o charuto, ou para tirar dela um argumento. Diz a Car-
ta no seu artigo 145º:
A inviolabilidade dos direitos civis e políticos dos cidadãos portugueses..., é garantida pela Consti-
tuição do Reino, pela maneira seguinte:
§ 3º Todos podem comunicar o seu pensamento por palavras e escritos, e publicá-los pela imprensa
sem dependência de censura, contanto que hajam de responder pelos abusos que cometerem no exer-
cício desse direito.
Temos, pois, adquiridos à certeza dois pontos:
1.º Que todo o cidadão pode publicar o seu pensamento falando ou escrevendo;
2.º Que o cidadão fica responsável pelo abuso do seu direito.
Por conseqüência, logo na primeira conferência:
1.º O Senhor Antero de Quental podia falar sobre a religião em toda a liberdade da sua opi-
nião;
2.º Se abusasse, o Senhor Antero de Quental respondia pelo abuso.
É lógico. Ora quem torna efetiva a responsabilidade desse abuso?
[...]
As conferências que se seguiram foram, uma sobre crítica literária contemporânea, outra sobre
o realismo, como nova expressão da arte, a terceira sobre o ensino e as suas reformas. Em que ataca-
vam estas a religião ou as instituições políticas?
[...]
Ora, segundo o citado artigo da Carta, só se pode coibir a liberdade de pensamento quando
houver abuso: e como esse abuso não existia, pelo simples motivo que a conferência ainda não fora
feita, e por conseqüência o pensamento não fora manifestado – segue-se que o senhor ministro do
Reino violou a Carta, se esta palavra violar ainda se pode empregar a respeito da Carta, sem atrair
sorrisos maliciosos sobre tão insensata metáfora.
Ao ministro cabia unicamente o direito de fazer processar o Senhor Antero de Quental. Isso era
a lógica, o bom senso, a legalidade.
Do que o ministro não tem o mínimo direito é da rude supressão da palavra a preletores de lite-
ratura, de arte e de pedagogia. Fazendo, como fez, tal supressão está fora da lei, fora do espírito do
tempo, quase fora da humanidade.
[...]
Seria portanto possível responder à portaria do senhor marquês de Ávila com o instrumento
seguinte:
160 | Literatura Portuguesa
– «Requeiro à Câmara dos Deputados que torne efetiva a responsabilidade do senhor ministro
do Reino, procedendo contra ele como infrator do § 3º do art. 145º da Carta Constitucional – segun-
do me é permitido pelo § 28 do citado artigo.»
Tanto em relação ao preletor que abusou da liberdade, segundo a Carta, como para o ministro
que infringiu a lei, segundo a mesma Carta, temos até aqui argumentado com a legalidade.
Agora a equidade:
Que se quis fazer calar nas conferências? Foi a crítica política? Para que se deixa então circular
no País os livros de Proudhon, de Girardin, de Luís Blanc, de Vacherot?
Foi a crítica religiosa? Para que se consente então que atravessem a fronteira ou a alfândega os
livros de Renan, de Strauss, de Salvador, de Michelet?
Sejamos lógicos; fechemos as conferências do Casino onde se ouvem doutrinas livres, mas ex-
pulsemos os livros onde se lêem doutrinas livres. Ouvir ou ler dá os mesmos resultados para a in-
teligência, para a memória, e para a ação: é a mesma entrada para a consciência por duas portas
paralelas. Façamos calar o Senhor Antero de Quental, mas proibamos na alfândega a entrada dos li-
vros de Vítor Hugo, Proudhon, Langlois, Feuerbach, Quinet, Littré, toda a crítica francesa, todo o pen-
samento alemão, toda a idéia, toda a história. Dobremos a cabeça sobre a nossa ignorância e sobre a
nossa inércia, e deixemo-nos apodrecer, mudos, vis, inertes, na torpeza moral e no tédio.
Nós não queremos também que num país como este, ignorante, desorganizado, se lance atra-
vés das ambições e das cóleras o grito de revolta! Queremos a revolução preparada na região das
idéias e da ciência; espalhada pela influência pacífica de uma opinião esclarecida; realizada pelas
concessões sucessivas dos poderes conservadores; – enfim uma revolução pelo Governo, tal como
ela se faz lentamente e fecundamente na sociedade inglesa. É assim que queremos a revolução.
Detestamos o facho tradicional, o sentimental rebate de sinos; e parece-nos que um tiro é um argu-
mento que penetra o adversário – um tanto de mais!
[...]
Homens que escutam gravemente uma voz que fala de justiça, de moral, de arte, de civilização
– isso é proibido com tanta violência que se salta por cima da Carta para o proibir! a isso manda-se
um polícia dar duas voltas à chave! Miserere! Miserere!
Atividades
1. Quais são os pressupostos históricos do Realismo?