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Sete Contos Que Nunca Me Contaram

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Este livro é dedicado a Márcia Negrão e a Eugenia Zerbini, verdadeiras

fadas madrinhas, sem as quais ele não existiria. Graças à generosidade e ao


empenho de ambas eu consegui chegar a lugares distantes onde encontrei os
livros importantes e as pessoas essenciais.
Agradeço ainda a con ança e parceria de minhas editoras Eny Maia e
Carolina Maluf, da designer Renata Bruni e a arte das sete artistas brasileiras
que construíram esta obra comigo.

Susana Ventura
Sumário

Apresentação

Úrsula
Molly Esperta
A irmã valente
O Cavaleiro Afortunado
Filagranata
Catarina
Bete Felpuda

*Conto extra: A Boa Mãe

Sobre os contos deste livro


Sobre a autora
Sobre as ilustradoras
Apresentação

Aqui estão oito contos – sete originalmente, mais um conto extra – de


autoria feminina, escritos e publicados num período de quase duzentos
anos, entre os séculos XVII e XIX. Mas nunca me contaram esses contos.
Nem a mim nem a praticamente ninguém. Por quê? Porque suas autoras
caram esquecidas, apagadas pela borracha do tempo que, quando escolhe
apagar coisas, obras e pessoas, apaga mais e melhor as mulheres e o que
zeram.
O que me levou a traduzir e adaptar esses contos foi o modo como as suas
protagonistas enfrentam e dominam as situações, saindo-se bem sozinhas
ou com alguma ajuda, e conseguem construir vidas muito interessantes para
si mesmas.
Minha esperança é que eles passem a ser lidos e contados para
descobrirmos o que poderá resultar dessa experiência. Uma das maiores
faltas que senti enquanto menina foi a de modelos diferentes e interessantes
para seguir. Mas vou deixar que os contos sejam nalmente contados e vocês
me dirão o que acharam.

Susana Ventura
Úrsula
a partir de Uma princesa de brinquedo, de Mary de Morgan
ilustração de Marcela Scheid

Mais de mil anos atrás, num país quase do outro lado do mundo,
aconteceu de as pessoas carem tão, mas tão contidas que quase não falavam
mais umas com as outras. Quando falavam, era o estritamente necessário:
“Sim”, “Isso mesmo”, “Por favor”, “Obrigada”. Considerava-se, ali, que não
havia nada mais rude do que dizer se estava contente ou chateado, do que
gostava ou detestava, quem amava ou odiava. Ninguém tinha opinião sobre
nada. Naturalmente, também não se demonstrava emoção. Se alguém era
visto chorando, passava a ser evitado pelos “amigos”.
O rei desse país casou-se com a princesa de uma terra vizinha, que era
muito boa e bela, mas o povo do lugar de onde ela vinha era tão diferente da
gente daquele país quanto se possa imaginar. As pessoas riam, choravam e
tagarelavam. Eram festivas e barulhentas quando estavam felizes, mas
também chorosas e lamuriosas se acontecia de se entristecerem. Em
realidade, não tinham qualquer receio de expressar o que sentiam ou
pensavam, e a princesa era exatamente como eles.
Então, quando veio para o seu novo lar, embora estivesse apaixonada pelo
marido, ela não conseguiu compreender aquelas pessoas, nem o motivo de
serem tão caladas, formais e distantes.
Depois de algum tempo convivendo com elas, concluindo que jamais
mudariam seu jeito de ser, a recém-coroada rainha também se soçobrou e
começou a sentir muitas saudades de sua antiga casa. A cada dia, cava mais
pálida e triste, e os que viviam por perto estavam ensimesmados demais
para notar quão doente a jovem cara. Mas ela mesma sabia que não ia nada
bem de saúde.
Acontece que ela tinha uma fada madrinha, chamada Taboret, a quem
amava muito e que fora sempre muito boa com ela. Quando pressentiu que
seu m se aproximava, mandou avisar a fada madrinha e, reunidas a sós em
seu quarto, as duas tiveram uma longa conversa.
Ninguém soube o que elas disseram naquele dia e, pouco depois de dar à
luz uma princesinha, a rainha morreu. Naturalmente, todos na corte
sentiram a morte da jovem rainha, mas, como de hábito, ninguém disse
nada. Então, embora tenha havido um grande funeral e as pessoas,
silenciosas, tenham se vestido de preto em sinal de luto, tudo continuou
exatamente como era antes.
A criança foi batizada com o nome de Úrsula e entregue aos cuidados das
damas da corte. Pobre princesinha! Ela chorava bem alto e nada podia fazê-
la parar.
As damas comentavam que nunca haviam ouvido ruído tão aterrador por
tão longo tempo. Mas, até que a princesinha zesse dois anos, nada pôde
impedir que ela berrasse quando cava com frio ou fome, e que gargalhasse
quando se sentia feliz.
Depois do segundo aniversário, ela começou a entender as poucas
palavras que as damas de vez em quando pronunciavam, sempre em tom
frio e cerimonioso. Compreendendo quando as desagradava, também
começou a car mais silenciosa.
Era uma garotinha encantadora, com a face redonda e corada e os olhos
grandes, atentos e alegres. Mas, conforme crescia, seu rostinho se a nava e
empalidecia, e os olhos aos poucos também foram perdendo o brilho. As
damas não deixavam que ela brincasse com nenhuma outra criança, pois
poderia car malcriada. Ninguém falava muito com ela, e não havia nem
sombra de qualquer brinquedo.
Quando não estava na aula, Úrsula passava a maior parte do tempo
espiando o céu azul e os pássaros no jardim através de sua janela. Por vezes,
quando as damas não estavam ouvindo, ela suspirava profunda e
tristemente.
Um dia, a fada Taboret cou invisível e voou até o palácio do rei para ver
como estavam as coisas. Foi direto para o quarto da princesinha e a
encontrou sentada junto à janela, o rosto apoiado numa das mãos e o olhar
perdido. Era um quarto muito grande, mas quase vazio, sem nenhuma bola,
pião ou boneca. A fada, descontente, resmungou para si mesma, sacudindo a
cabeça de um lado para o outro.
– O jantar de Vossa Majestade está pronto – disse uma das damas a
Úrsula.
Sem desviar o olhar, a princesinha respondeu:
– Não quero jantar de jeito nenhum.
– Penso já ter dito a Vossa Majestade que não é educado dizer que não
quer alguma coisa – a mulher a repreendeu. – Estamos esperando por Vossa
Majestade.
Então a menina se levantou e caminhou para a sala de jantar, cabisbaixa.
A fada madrinha cou só observando. Quando viu a expressão de Úrsula
sentada à mesa, calada e quase sem tocar no seu prato, Taboret suspirou e
resmungou ainda mais do que antes. Depois bateu as asas e voou de volta
para casa.
A conversa que havia tido com sua a lhada lhe voltou à memória e,
depois de muito re etir, ela decidiu ir até a maior loja da Terra das Fadas.
Era um tipo bem diferente de loja. Não era uma mercearia, mas também
não era uma loja de roupas. Sim, havia ali açúcar, chapéus e vestidos. Mas o
açúcar era de um tipo especial, que transformava qualquer líquido ao qual
fosse misturado, os vestidos faziam mágicas e os chapéus realizavam desejos.
Era, na realidade, uma loja onde se vendia todo o tipo de sortilégio ou
encantamento.
Dentro da loja, Taboret literalmente voava, e como era conhecida como
boa cliente, o próprio dono veio recebê-la, cumprimentando-a efusivamente
e dizendo estar ansioso para saber o que poderia fazer por ela.
– Eu gostaria... de uma princesa! – disse Taboret.
– Uma princesa? – repetiu o dono da loja que, na realidade, era um velho
mago. – Que tamanho de princesa a senhora deseja? Tenho uma ou duas no
estoque.
– Ela precisa parecer ter seis anos... Mas terá de crescer! – revelou a fada.
– Bom, eu posso fazer uma sob encomenda – disse o dono da loja –,
porém, sairá mais caro.
– Eu não me importo. Veja – disse Taboret, retirando um retrato de
Úrsula da bolsa. – Ela precisa ter exatamente esta aparência.
O mago examinou o retrato e disse:
– Eu posso fazer. Para quando a senhora deseja?
– Tão logo quanto possível! De preferência, para amanhã à noite. Quanto
vai custar?
– Chegaremos a um bom negócio – disse o mago, pensativo. – É tão
difícil fazer tudo corretamente hoje em dia... Diga-me, que tipo de voz a
senhora quer que ela tenha?
– Ah! Não precisa ser muito falante – respondeu Taboret –, assim não
aumenta demais o preço. Ela só precisa dizer: “Por favor”, “Não, obrigada”,
“Certamente que sim” e “Está ótimo”.
– É mesmo? Sendo assim, farei por... deixe-me ver... Serão quatro
ronronares de gato, dois cantos de cisne e um grito de peixe.
– Ah, mas está muito caro! – exclamou Taboret. – Posso lhe dar os
ronronares de gato e os cantos de cisne. Mas o grito de peixe, francamente!
Ela não pensava isso de verdade, mas tinha o hábito de pechinchar com
todos os comerciantes.
– Sinto muito, senhora, mas não posso fazer por menos – respondeu o
mago. – Se está achando caro, pode tentar em outra loja.
– Bem – disse Taboret –, como estou realmente com pressa e não posso
gastar mais tempo, pagarei o seu preço. Mas digo que o considero muito
caro. Quando estará pronta?
– Amanhã no m da tarde.
– Está bem. Então, prepare-a que amanhã venho buscá-la. Mas atenção:
faça o senhor o que zer, por favor, não a faça barulhenta ou com maneiras
rudes.
No início da noite seguinte, ela voltou à loja e perguntou se a encomenda
estava pronta.
– Vou buscá-la para a senhora, e tenho certeza de que gostará dela! –
disse o mago, deixando o balcão enquanto falava. Logo, voltou trazendo pela
mão uma linda menina de seis anos: uma menininha tão parecida com a
princesa Úrsula que ninguém poderia dizer que não era ela mesma.
– Bem – disse Taboret –, parece-me boa. Mas o senhor tem certeza de que
está bem arrematada e não vai dar defeito?
– Modéstia à parte, é um trabalho excelente – disse o mago, fazendo a
criança dar uma volta completa sem sair do lugar. – Olhe para ela. Examine-
a e notará a qualidade do acabamento. Nem uma entre vinte fadas poderia
distingui-la de uma menina de carne e osso, e garanto que nenhum mortal
seria capaz de fazê-lo.
– Realmente, parece muito bem-feitinha – disse Taboret, dando uma
volta completa ao redor da criança. – Deixe-me pagá-lo e estaremos
acertados.
A fada suspendeu sua varinha mágica no ar, sacudiu-a três vezes e então
começou a fazer barulhos. O primeiro foi um ruído baixo e grave, que ela
repetiu algumas vezes; o segundo, uma série de gritos agudos e arrepiantes; e
o terceiro foi como um canto triste, mas de grande beleza, que ela repetiu
uma segunda vez, sem nenhuma alteração.
O mago pegou todos os sons no ar e os colocou no bolso. Taboret, sem
cerimônia, tomou a criança pela cintura e, encaixando-a sob um dos braços,
bateu as asas e foi embora.
Naquela noite na corte, Úrsula estava aborrecida e se recusou a ir cedo
para cama. Levou um bom tempo antes que as damas conseguissem colocá-
la para dormir. Uma vez deitada, apenas permaneceu imóvel, de olhos
fechados, e levantou-se assim que elas foram embora. Foi pé ante pé até a
janela, sentou-se numa almofada e pôs-se a observar a lua. Era uma
princesinha adorável, com seus cabelos brilhantes caídos sobre os ombros, e
seria difícil alguém conseguir se zangar com ela. Apoiou o queixo em suas
mãozinhas e, enquanto olhava para cima, lágrimas escorreram de seus
grandes olhos azuis. De repente, lembrou-se que as damas a censurariam e
enxugou o rosto com a manga da camisola.
– Ah, lua, brilhante lua – ela disse a si mesma. – Eu me pergunto se
deixam você chorar quando tem vontade. Gostaria muito de subir até aí e
viver ao seu lado. Tenho certeza de que seria muito melhor do que viver
aqui.
– Você gostaria de ir embora comigo? – perguntou uma voz bem ao lado
dela.
Voltando a cabeça, Úrsula viu uma velha vestida de vermelho. Assustou-
se, mas não teve medo, pois era uma gura engraçada: tinha um sorriso
largo, o nariz grande, meio curvo, e o queixo pontudo e proeminente.
– Aonde você me levaria? – perguntou a princesinha, encarando a
velhota.
– Eu a levaria para viver à beira-mar, onde você poderia correr pela areia
e teria meninos e meninas com quem brincar. Ah, e ninguém diria para você
não fazer barulho.
– Eu vou! – disse Úrsula, subitamente animada.
– Então venha – disse a velha, pegando-a ternamente nos braços e
acomodando-a nas dobras de seu manto vermelho. Elas atravessaram a
janela e seguiram voando por sobre os telhados das casas.
O ar da noite estava cortante de tão frio. Úrsula logo teve sono e
adormeceu envolta no manto enquanto elas sobrevoavam campos e bosques,
por milhas e milhas, rumando para o mar.
Muito longe do palácio, numa vila de pescadores, havia uma pequena
cabana onde um pescador chamado Mark vivia com a esposa, Mary, e suas
três crianças. Era uma família pobre, que vivia do que o homem trazia em
seu pequeno barco. As crianças, Oliver, Philip e a pequena Bell, eram
rosadas e também tinham olhos muito vivos. Os três passavam o dia todo na
praia, correndo e gritando até carem roucos. Foi para essa vila que a fada
carregou a adormecida Úrsula, colocando-a gentilmente na porta da cabana
de Mark. Então ela a beijou nas bochechas e, com um sopro, golpeou a porta
e desapareceu antes que pudessem vê-la.
O pescador e sua mulher estavam sentados junto à lareira. Ela costurava
roupas para as crianças e ele remendava sua rede de pesca. Foi quando a
porta se abriu sozinha e o ar frio daquela noite invadiu a sala.
– Querida, veja quem está aí – disse Mark.
Mary se levantou e viu Úrsula, com sua camisola branca, dormindo bem
na soleira da porta. A mulher deu um pequeno grito de susto e chamou o
marido.
– Querido, veja, uma garotinha! – exclamou a mulher enquanto a
carregava para dentro.
Trazida para a luz e o calor da sala, Úrsula despertou e olhou assustada
para a mulher. Ela não gritou, como outra criança faria, mas talvez qualquer
criança em seu lugar estivesse assustada demais para falar. Estranhamente, a
garotinha tinha se esquecido não só do voo noturno, antes de adormecer,
como não se lembrava de mais nada que pudesse dizer ao pescador e sua
esposa, a não ser que era uma princesa e se chamava Úrsula.
O pescador e sua mulher pensaram que ela estava delirando. Mas depois
repararam na roupa de dormir re nada, com uma coroa bordada, e
concluíram que de fato deveria se tratar da lha de alguma família de posses.
Avaliando o frio que fazia lá fora, decidiram que o melhor era car com a
menina até que alguém viesse procurá-la. Mary lhe preparou pão e leite
quente e colocou-a na cama junto com suas próprias crianças.
Pela manhã, as damas da corte encontraram a princesa dormindo em sua
pequena cama, e de forma alguma puderam imaginar que aquela não era a
princesa real, mas outra, de brinquedo, que havia sido colocada em seu
lugar. Na realidade, as damas tiveram uma agradável surpresa quando
disseram que era hora de Sua Majestade se levantar e ela respondeu apenas
“Certamente que sim” e, sem dizer mais uma palavra, deixou-se vestir.
Conforme o tempo passava, ela se mostrava menos teimosa e mais calada.
Todas as damas concordaram que a princesa havia melhorado muito e que
havia até alguma chance de ela se mostrar uma nobre elegante e, quem sabe,
tornar-se a mais elegante dama do reino. O rei também aprovou com prazer
o novo comportamento da lha.
Enquanto isso, lá longe, na cabana de Mark e Mary, a verdadeira Úrsula se
tornava forte e saudável como uma camponesa, livre, feliz e com o coração
leve como um pássaro.
Ninguém jamais apareceu perguntando por ela, então o bom pescador e
sua gentil esposa a criaram junto de seus lhos. Ela brincou com eles na
praia e aprendeu as lições. Toda a sua antiga vida no palácio se transformou
num sonho confuso do qual ela pouco se lembrava.
De vez em quando, porém, Mary pegava a antiga camisola bordada e
mostrava à menina, falando de seu desejo de saber de que lugar ela vinha e a
que nobre família pertencia.
– Eu não me importo com nenhuma outra família – dizia Úrsula –,
ninguém virá me levar para longe de vocês e é isso o que me interessa.
À medida que crescia – e cava cada vez mais bonita –, a princesa de
brinquedo, lá na corte, crescia também. E uma foi sempre exatamente como
a outra, exceto pelo fato de que o rosto da verdadeira Úrsula era corado de
sol, saúde e alegria, enquanto a face da de brinquedo era pálida como a neve.
Os anos se passaram. Na cabana, Úrsula era uma jovem radiante. Na
corte, igualmente bela, a princesa era admirada sobretudo pelas boas
maneiras, pois jamais dizia algo muito além de “Com licença”, “Por favor”,
“Certamente” e “Encantada”.
O rei era agora um homem velho, e o pescador Mark e sua esposa, Mary,
também estavam bem mais enrugados e bastante grisalhos. Seus lhos,
Oliver e Phillip, eram bons rapazes, e Bell e Úrsula eram jovens felizes e
cheias de saúde.
De vez em quando a fada Taboret sobrevoava a vila de pescadores para
saber como as coisas estavam. Tudo andava sempre bem por ali. Já na corte,
não se podia dizer o mesmo. Mas o rei apreciava os conselhos da fada e em
uma de suas visitas lhe disse:
– Taboret, você me encontrou bem a tempo de renunciar ao trono para
deixá-lo em mãos mais jovens e vigorosas. De fato, estou velho para reinar e
pretendo abdicar dessa responsabilidade em favor de minha querida lha.
Vou agora a uma reunião do conselho de ministros tratar de minha
sucessão.
– Antes de tomar qualquer atitude, preciso contar uma coisinha ao
senhor...
A “coisinha”, como todos sabemos, não era exatamente uma coisinha, não
é mesmo?
O rei, quando chegou para a reunião, tinha uma estranha expressão de
consternação e a todo o momento levava um lenço aos olhos.
– Meus caros nobres – começou –, perdoem meu comportamento
aparentemente estranho. Acabo de receber uma notícia estarrecedora:
minha querida lha... – neste instante, ele teve de interromper o
pronunciamento, pois, para o espanto de seus ministros, chorava de soluçar.
– Minha querida lha não é realmente minha lha, e sim uma farsa.
Então o rei afundou no trono, tomado pelo pesar, e a fada Taboret,
postando-se de frente para o conselho, contou a todos sua história: como ela
levara a princesa real, pois havia prometido à sua mãe que zelaria por sua
felicidade, e como a havia substituído por uma princesa de brinquedo.
Os membros do conselho se entreolharam surpresos – e era evidente que
não haviam acreditado numa só palavra do que ela dissera.
– A princesa é realmente uma jovem encantadora – disse o primeiro dos
ministros.
– Vossa Majestade tem qualquer queixa sobre a conduta da princesa? –
perguntou o segundo.
– Absolutamente – balbuciou o rei –, Úrsula sempre me pareceu uma
lha excelente.
– Então eu não vejo razão para Vossa Majestade prestar atenção ao que
essa, essa... pessoa, está dizendo! – replicou o segundo ministro.
– Pessoa esta que é uma fada! Coisa mais esquisita – completou o
primeiro.
Taboret levantou a voz:
– Se os senhores não acreditam em mim, seus velhos tolos, chamem a
princesa aqui e eu provarei as minhas palavras.
– Ótimo! – respondeu um coro de vozes.
O rei ordenou que a princesa fosse trazida, e depois de alguns minutos ela
surgiu, acompanhada por suas damas. Ela não disse nada, mas também
nunca falava nada, a não ser que alguém falasse com ela primeiro. Ficou
parada no meio da sala, em silêncio.
– Nós desejamos a sua presença para... – dizia o rei quando Taboret, sem
cerimônia, avançou na direção da princesa e de leve tocou a cabeça da
garota com sua varinha mágica. A cabeça então rolou para o chão, restando
o corpo de pé, estático como antes, como uma casca vazia.
– Está ótimo – disse a cabeça enquanto rolava na direção do rei.
Ele e os conselheiros quase sufocaram de medo. Quando estavam um
pouco refeitos do susto, o rei falou novamente:
– A fada me disse que em algum lugar está a verdadeira princesa, a quem
ela espera que eu reconheça como lha. Até lá, deixemos esta princesa
guardada num baú ou armário. Por ora, declaro luto o cial por este
desconcertante evento.
Depois de dizer tais palavras, o rei olhou ternamente para o corpo vazio e
a cabeça jacente no solo e começou a soluçar novamente, de maneira
contida.
Ficou decidido que Taboret buscaria a princesa Úrsula e que o rei voltaria
a reunir o conselho para o aguardado encontro com ela.
Naquela noite, a fada voou para a cabana de Mark e Mary e contou a
todos a verdade sobre Úrsula, deixando claro que deveriam deixá-la partir.
Eles lamentaram muito e Úrsula chorou copiosamente, mas após conversar a
sós com a fada, disse para a todos:
– Não se preocupem. Se eu realmente sou uma princesa, levarei todos
vocês para viverem comigo, porque são e sempre serão minha família. Mas
agora devo conhecer o meu pai e o seu reino.
No dia seguinte, Taboret e Úrsula partiram em direção à corte numa
grande carruagem que a fada criou. Foi uma longa, longa viagem e, antes de
chegarem, houve uma parada para que a fada vestisse a princesa com um
esplêndido vestido branco bordado com os de ouro. Ela também adornou
seu pescoço com um colar de pérolas e penteou seus cabelos, enfeitando-os
com uma coroa de diamantes. A princesa deveria se apresentar à corte da
maneira mais esplendorosa possível.
O rei e todo o conselho de ministros estavam a postos, ao lado de outros
cortesãos, ansiosos, embora não demonstrassem, quando as portas do
palácio se abriram e Taboret entrou conduzindo Úrsula pela mão.
– Aqui está seu pai – disse a fada, indicando o rei.
A princesa não esperou mais nada: correu na direção do rei e, colocando
seus braços ao redor do pescoço dele, deu-lhe um sonoro beijo.
O rei quase desmaiou. Os cortesãos viraram os rostos e fecharam os
olhos.
– Isso é realmente... – disse um ministro.
– É verdadeiramente... – concordou um outro.
– O que eu z? – perguntou Úrsula, passando os olhos de um para outro e
tentando entender o que havia de errado. – Eu beijei a pessoa errada?
Ouvindo isso, os conselheiros do rei resmungaram (polidamente, mas
resmungaram).
– Majestade – disse a fada –, se o senhor não gosta dela, diga agora, pois a
levarei de volta para os que a amam. Eu lhe dou uma semana para decidir.
Úrsula talvez seja boa demais para esta corte.
Taboret ignorou as caras feias (contidas, mas feias) dos cortesãos ao ouvi-
la dizer essas palavras e, depois de se despedir de Úrsula, voou de volta para
a Terra das Fadas.
Úrsula bem que tentou, mas logo percebeu que não seria fácil a vida na
corte. Nem se cogitava que a futura rainha opinasse sobre os assuntos da
administração do reino. Na realidade, qualquer comentário ou gesto que
zesse parecia surpreender e desagradar as pessoas. A vida ali, mais do que
estranha, parecia ser arti cial.
– Esta é uma grande mudança, depois de nossa doce princesa... – disse
uma dama a outra.
– Sem dúvida! – concordou a outra. – Quando me lembro de como ela se
portou tão placidamente ao ter a cabeça caindo do corpo...
– “Está ótimo”, ela disse, mesmo com a cabeça rolando no chão – lembrou
a primeira.
As demais damas também desgostaram da volta da verdadeira princesa e
(ainda que sutilmente) demonstraram sua desaprovação. Antes de completar
uma semana, quando Taboret deveria retornar, Úrsula já estava abatida e
pálida outra vez. Tinha receio de falar num tom que estivesse acima de um
mero sussurrar.
– O que deu errado? – perguntou Taboret assim que voltou e viu como
Úrsula havia mudado – Eles não são gentis com você?
– Leve-me de volta, querida Taboret – pediu Úrsula, indo às lágrimas. –
Leve-me de volta para Mark, Mary, Oliver, Phillip e Bell, minha querida
família que tanto amo. Quanto a essas pessoas, eu as detesto!
Taboret apenas sorriu e, tomando-a pela mão, conduziu-a para onde
estavam o rei e seus conselheiros.
– Bem, quero saber por que encontrei a princesa Úrsula chorando. Tenho
certeza de que foram vocês que a zeram se sentir infeliz. Quando tinham
aqui aquela princesa de madeira e couro, conseguiam se comportar. Mas
com uma pessoa real, de carne e osso, não conseguem se importar!
– Minha querida e falecida lha... – lastimou o rei.
– Uma princesa de brinquedo! – interrompeu a fada. – O pior é que não
duvido que o senhor pre ra ter aquela boneca de volta. Pois vou lhe dar a
chance da escolha. Qual delas quer que seja sua lha e futura rainha, esta
aqui, a princesa Úrsula real, ou aquela de brinquedo, que está guardada no
armário?
O rei se afundou ainda mais no seu trono e disse:
– Eu não posso decidir isso sozinho, preciso reunir o conselho.
Os ministros foram chamados e Taboret explicou-lhes o que estava em
discussão.
– Vamos colocar as duas princesas lado a lado – propôs.
A princesa de brinquedo foi tirada com grande cuidado do armário e
postada no centro da sala; o corpo de pé, estático, e a cabeça
cuidadosamente pousada sobre uma mesinha trazida para car a seu lado. A
princesa de verdade arfava de emoção e tinha o rosto inchado e os olhos
vermelhos de tanto chorar.
– Creio que não resta a menor dúvida sobre qual delas nós preferimos –
pronunciou-se novamente o primeiro ministro.
– De fato, não tenho nenhuma dúvida – concordou o segundo. – E Vossa
Majestade, o que pensa?
– Que quero minha única e querida lha de volta! – respondeu o rei.
Taboret não conteve o riso.
– Vocês são um bando de tolos, mas terão o que desejam!
Então a fada pegou a cabeça da princesa pelos cabelos e a xou-a no
pescoço da boneca, dando-lhe movimento com um toque de sua varinha
mágica.
– Está ótimo – disse a princesa de brinquedo, provocando uma polida
expressão de contentamento no rosto dos conselheiros e cortesãos.
– Pronto. Agora darei início aos trâmites para a minha abdicação.
Finalmente deixarei o reino aos cuidados de minha boa lha.
Os ministros assentiram com um gesto de cabeça. Taboret riu e disse:
– Úrsula, quer se despedir de alguém?
A princesa balançou a cabeça negativamente.
– Então vamos – sentenciou a fada.
As duas caminharam até a frente do palácio e embarcaram na mesma
carruagem em que haviam chegado ao reino na semana anterior.
– Querida Taboret, en m poderei voltar para a minha verdadeira casa! –
suspirou a verdadeira princesa.
À noite, a cidade esteve iluminada e timidamente contente, como se
comemorasse discretamente a volta da princesa de madeira e couro. Já a
Úrsula de carne e osso foi bem menos contida ao reencontrar seus queridos
pais e irmãos de criação. Depois disso, viveu por muitos e muitos anos uma
vida de verdade.
Molly Esperta
a partir de A corte do ogro, de Juliana Horatia Ewing
ilustração de Mayara Ferrão

No tempo em que os ogros ainda eram o terror daquela terra, houve um


deles que por muito tempo manteve toda a vizinhança amedrontada, sem
que ninguém jamais ousasse confrontá-lo. O tirano era conhecido como: o
Ogro (simples e terrível, não é? Como a praga de todas as pragas).
Por causa dos roubos e das extorsões, e pelos altos resgates obtidos de
velhos mercadores, velhos demais ou, quem sabe, duros demais para se
mastigar... bem, por uma razão e por outra, o Ogro tinha cado rico, muito
rico. E, embora aqueles que sabiam das coisas pudessem contar dos grandes
porões que ele mantinha cheios de ouro e de joias, o caso é que, quanto mais
rico o Ogro cava, mais ansioso e voraz se tornava.
Mas tem uma coisinha que eu ainda não lhes contei: o que ele tirava das
pessoas da aldeia não era o pior, nem mesmo a perspectiva de ser devorado
pela terrível criatura era o pior dos destinos. O pior mesmo era que, de
tempos em tempos, o Ogro se casava, e o grande temor da população era ter
de se tornar mulher do Ogro, ou então ver alguém amado obrigado a se
casar com ele. Lembram-se que eu disse que “de tempos em tempos” ele se
casava? Então, completando, “de tempos em tempos”, a mulher do Ogro
morria misteriosamente... e ele saía em busca de uma noiva fresca
(fresquinha, tenra, macia!).
No entanto, havia um porém: o Ogro ia atrás de mulheres que tivessem
fama de boas donas de casa (havia quem dissesse que por ser muito pão-
duro).
Pois bem, nossa história começa na época em que ele tinha acabado de
perder sua vigésima quarta mulher (estou me guiando pela memória dos
habitantes dali, que me contaram que ele começara a andar atrás da vigésima
quinta) e estava de olho na lha de um certo fazendeiro pobre, pois ela tinha
fama de ser boa cozinheira. O nome dela era Molly e todos a conheciam
como Molly Esperta. Não tinha se passado nem um mês do enterro da
vigésima quarta mulher quando o Ogro bateu na porta da casa do
fazendeiro e pediu a mão de Molly em casamento e aproveitou a ocasião
para se convidar para jantar com o fazendeiro e a futura noiva no dia
seguinte.
O pai só não se descabelou porque já era careca. Molly Esperta, por sua
vez, nem se abalou com a novidade. Foi logo falando:
– Pai, faça o que eu mandar e con rme o que eu disser. Vamos ver se
espantamos esse sujeito. Mas, de todo modo, não vamos sair dessa de mãos
abanando. Pegue o dinheiro guardado e compre um barril do melhor vinho
branco que encontrar.
– Mas, lha... – gemeu o fazendeiro, pensando no pouco dinheiro que
tinham.
– Não reclame, meu pai. Não há tempo para reclamar. Preciso que vá
caçar lebres porque vou precisar delas para o jantar.
Lá foi o pai, muito desgostoso, fazer o que ela pediu.
Molly Esperta passou o dia seguinte na cozinha: fez um ensopado
delicioso com as lebres que o pai conseguira pegar e acomodou o barril de
vinho num banco perto da mesa.
Quando o Ogro chegou, Molly serviu a comida deliciosa e abundante. O
Ogro devorou quase tudo. Molly e seu pai comeram um tantinho que mal
pôde ser visto, de tão pouco que era. O Ogro cou muito satisfeito e,
tentando ser educado, disse:
– Temo, minha querida, que você tenha tido muito trabalho e despesa por
minha causa. Eu tenho um grande apetite e gosto de comer bem.
– Ah, nem fale nisso! – ela respondeu. – Quanto menos ratos em casa,
mais milho nos sobra! Diga-me uma coisa, senhor Ogro, como você cozinha
os ratos de sua casa?
O Ogro se assustou. Então a maravilha que tinha comido era ensopado de
ratos!
– Uau, que maravilha! – exclamou.
E pensou consigo: “Que economia incrível! Que dona de casa excelente,
essa Molly!”
Então ele começou a tomar o vinho. Ah, que delícia estava!
Molly disse que precisava arrumar umas coisas e se despediu do
convidado.
O Ogro continuou bebendo, deliciado com a qualidade do vinho.
Resolveu propor um brinde:
– Um brinde à sua saúde e à nossa amizade, querido vizinho. Que vinho
delicioso!
O pai de Molly brindou, bebeu e respondeu:
– Eu realmente não conheço melhor serventia para maçãs estragadas...
O Ogro quase deixou cair a taça. E o fazendeiro continuou:
– Mas isso eu devo às habilidades de Molly, claro. E o senhor, meu
vizinho, também faz vinho em casa?
– Céus, em minha casa as maçãs estragadas vão para os porcos – grunhiu
o Ogro. – Mas as coisas vão ser muito mais bem organizadas quando sua
lha for minha esposa. E claro que o senhor sempre poderá ir tomar uma
tacinha conosco.
O fazendeiro respondeu:
– Ah, mas eu nem posso pensar em me separar de minha lha, sabe, meu
vizinho? Além de seu ótimo humor, não sei se consigo car sem sua comida
maravilhosa, sem o vinho tão bom que ela faz. O senhor não é o primeiro
que deseja se casar com ela, mas Molly adora viver aqui comigo, só se
mudaria para uma casa enorme, do gosto dela e... bem, eu não sei, acho que
vou esperar mais uns anos. Ainda preciso construir um novo paiol, Molly
tem me ajudado no trabalho... Vamos vivendo muito bem.
O Ogro viu a oportunidade de ouro escapando pelos vãos de seus dedões
e resolveu agir:
– O que é isso, meu caro vizinho? Eu o ajudo com o paiol, tenho mesmo
muita madeira estocada! E, quanto a uma casa, diga à sua lha que construo
a que ela quiser, do jeito que ela mandar!
O Ogro fazia contas de cabeça: “Vou gastar um bom dinheiro com a casa,
mas daqui para a frente posso viver de ratos. Com o que economizo em
carne de boi e carneiro, logo posso cobrir a despesa. Plantando mais umas
três macieiras, terei vinho de maçãs podres em abundância. Um bom
negócio, sem dúvida...”.
O fazendeiro concordou e disse:
– Volte amanhã e converse com ela. Ah, e já traga a madeira para
começarmos o paiol!
O Ogro voltou para casa saltitando (e causando estrago nas prateleiras de
louças das casas às quais passou em frente).
Na manhã seguinte, ele levou uma grande carga de madeira para o
fazendeiro e foi falar com Molly Esperta, que respondeu assim ao pedido de
casamento:
– Há duas coisas que eu pediria a qualquer parceiro amoroso: uma casa
nova, construída como eu disser, tendo em vista a economia, claro, e um
colchão de penas novas de ganso, preenchido quando a velha criadora de
gansos depena sua criação. Isso porque, vou contar a você... se eu não
dormir bem, não trabalho bem.
O Ogro pensou: “Bem, muito melhores esses pedidos do que se ela se
pusesse a pedir por enfeites e joias. E, a nal de contas, a casa será minha. Se
eu me cansar da garota, posso trocá-la por outra. Mas essa velha criadora de
gansos, quem será? Não importa, vamos a isso. Ah, aquele ensopado de
ratos! Ah, o vinho de maçãs podres! Mal posso esperar pelo casamento!”.
– Claro, Molly, você é a noiva, escolha tudo como desejar.
Então o Ogro começou a construção do paiol enquanto Molly preparava
o vestido de noiva. Ele até tentava se convidar para o jantar, mas o
fazendeiro dava desculpa atrás de desculpa: Molly ora estava dedicada aos
preparativos do casamento, ora trabalhava no desenho da casa, com o
talento nato que possuía.
Nas conversas com o Ogro, ela era prática:
– Veja, aqui está a casa desenhada. Terminou o paiol? Ótimo, pode
começar a construir a casa sob minha supervisão!
O inverno se aproximava e a barriga do Ogro roncava: ele trabalhava
duro e tinha saudade do ensopado de ratos de Molly. Mas terminou a casa e
eles levaram a mobília para dentro:
– Agora, para o colchão de penas de ganso, vou costurar o forro – disse
Molly. – E quando a velha depenar os gansos eu te aviso.
Quando neva, costuma-se dizer que uma velhinha no céu está depenando
seus gansos, mas o Ogro, que não convivia com as pessoas, nunca tinha
ouvido falar dessa história. Assim, quando aquele inverno trouxe a primeira
tempestade de neve, Molly mandou um recado para o Ogro, que veio
correndo:
– Veja, meu noivo, as plumas caindo! Aqui está o forro prontinho, basta
rechear de plumas agora.
– Mas como vou pegá-las? – perguntou o Ogro.
– Ora, veja como elas se empilham sozinhas! Pegue uma pá e mãos à
obra!
O Ogro obedeceu e recheou o forro do colchão com pás e mais pás de
neve, mas ela derretia tão logo ele ensacava, e parecia que o trabalho nunca
chegaria ao m. Já anoitecia quando o frio cou tão intenso que a neve
parou de derreter e o colchão pôde ser nalmente preenchido e levado para
dentro de casa e colocado sobre a cama.
Molly colocou sobre o colchão os lençóis e cobertores e disse:
– Descanse aqui esta noite, meu noivo, e depois me diga se a cama não é o
próprio conforto! Podemos nos casar amanhã mesmo!
O Ogro, exausto, desabou no colchão que ele havia enchido, mas não
conseguiu se aquecer de jeito nenhum. De manhã, acordou com dores tão
terríveis nos ossos que mal pôde se levantar. Além disso, metade do colchão
havia derretido.
– Não vai ser possível – grunhiu. – Ela é muito esperta, mas dormir numa
cama dessas seria a morte para mim. Pior, do jeito que é mandona, já deve
estar a caminho daqui para me buscar para o casamento!
O Ogro escapou o mais rápido que pôde. Àquela altura, começava a ter
um pouco de medo da noiva que havia escolhido.
Molly, quando achou que ele já tinha partido, mandou o pai atrás dele.
– O que ele quer? – perguntou o Ogro quando lhe disseram que o
fazendeiro batia à sua porta.
– Diz que a noiva está esperando pelo senhor! – foi a resposta.
– Diga a ele que estou muito doente para me casar! – gritou o Ogro.
Mas o mensageiro logo voltou:
– Ele quer saber o que o senhor vai lhe dar para compensar o
desapontamento por cancelar o casamento.
– A lha já tem a casa e o colchão de penas! – grunhiu o Ogro. – O que
mais ela quer?
Novamente, o mensageiro retornou:
– O pai diz que o senhor amassou o colchão de plumas e que ela quer
mais penas de ganso para recheá-lo.
– Há montes de gansos no curral! – berrou o Ogro. – Diga ao fazendeiro
para levá-los à menina. E diga que se disser mais uma palavra eu vou botá-lo
para assar!
O fazendeiro, que ouviu os berros do Ogro, não perdeu tempo. Passou
pelo curral, juntou os gansos e voltou para casa tocando o bando de aves
barulhentas.
Dizem que o Ogro nunca se recuperou dos efeitos de dormir no colchão
de plumas dos gansos da velha senhora e cou bem menos poderoso do que
antes.
Quanto a Molly Esperta, tendo agora uma bela casa e um bando de
gansos, começou vida nova e, quando achou oportuno, escolheu um noivo
de seu agrado.
A irmã valente
a partir do conto O leão e a rã, de Ludovica Brentano Jordis
ilustração de Fernanda Peralta

Houve uma vez um rei e uma rainha que tinham um lho e uma lha que
se amavam muito. O príncipe costumava sair para caçar e car até tarde na
oresta. Uma noite, porém, ele simplesmente não voltou para casa. A
princesa quase gastou seus olhos de tanto chorar. Finalmente, na manhã
seguinte, quando não aguentou mais esperar, embrenhou-se na oresta para
procurá-lo.
Depois de percorrer uma longa distância, ela se sentiu tão cansada que
não foi capaz de dar mais um passo sequer. Foi então que, olhando à sua
volta, viu um leão a alguns passos de distância. Ao contrário do que pudesse
supor, o animal se mostrou amigável e muito gentil. Ela montou em seu
lombo e ele a carregou oresta adentro, enquanto abanava o rosto da
princesa com a sua imensa cauda.
O leão já havia andado bastante quando eles chegaram a uma caverna. A
princesa não teve medo quando ele a levou para dentro, vendo que o bicho
era manso. Quanto mais avançavam, mais e mais escuro cava – até que
cou tudo tão escuro como se fosse noite dentro da caverna. Logo em
seguida eles emergiram, em plena luz do dia, num extraordinário jardim.
Tudo era fresco e brilhante à luz do sol e, no meio do jardim, havia um
esplêndido palácio. O leão caminhou mais um pouco até o portão de
entrada, e a princesa desceu de suas costas.
– Você viverá nesta bela casa e deverá me servir – ele lhe disse. – Quando
houver cumprido todas as provas que eu lhe propuser, você verá seu irmão
novamente.
Então, daquele dia em diante, a princesa serviu e obedeceu ao leão em
todos os detalhes.
Um dia ela estava andando no jardim. Tudo era amplo, luminoso,
colorido e adorável naquele lugar, mas ela se sentia triste, pois estava
solitária e apartada do mundo. Enquanto caminhava por ali sem rumo,
notou um lago e, no meio dele, uma pequena ilha com uma minúscula
tenda. Sentada sob a tenda, havia uma rã verde usando uma pétala de rosa
na cabeça como se fosse um chapéu.
– Por que está triste? – perguntou a rã.
– Oh, e por que eu não deveria estar? – respondeu a princesa, e contou à
rã tudo que lhe havia acontecido.
Quando terminou, a rã disse gentilmente:
– Sempre que precisar, venha até aqui que eu a ajudarei.
– Mas como vou recompensar o que zer por mim? – ela perguntou.
– Você não precisa me recompensar – coaxou a rã. – Apenas me traga
uma pétala de rosa fresca para meu chapéu sempre que voltar.
A princesa foi para casa menos desconsolada. Dali em diante, não
importava o que o leão pedisse, ela corria até o lago e, em troca de uma
pétala de or, via a rã pular daqui para lá, de lá para cá, e logo aparecer com
o que ela precisava.
– Esta noite, desejo comer uma torta de mosquito – disse certa vez o leão,
acrescentando que a refeição devia estar muito bem-preparada.
“Como vou fazer isso? É totalmente impossível!”, a princesa pensou. Mas,
como das outras vezes, foi procurar a rã e se lamentou sobre o pedido do
leão.
– Não se preocupe com nada! Eu posso providenciar uma boa torta de
mosquito tão rápido quanto você precisa.
A rã pôs-se a trabalhar, abrindo a boca para a esquerda e para a direita e
voltando a fechá-la para apanhar o exato número de mosquitos de que
necessitava para a torta. Então ela pulou de um lado para o outro, juntando
lenha e começando um foguinho para assar a torta. Enquanto as chamas
crepitavam, a rã preparou uma boa massa com suas patinhas e colocou a
torta no fogo. Em duas horas, a torta estava pronta e deliciosa como
qualquer prato que se pudesse desejar.
– Você não levará esta torta até que me prometa que, depois que o leão
cair no sono, você lhe cortará a cabeça com a espada que ele guarda atrás da
cama.
– Não! – ela respondeu. – Eu não vou fazer isso. O leão vai me ajudar a
reencontrar o meu irmão. Embora me obrigue a atender aos deus desejos,
ele sempre foi bom para mim.
– Se não zer isso, aí é que você não verá o seu irmão novamente. E, de
qualquer maneira, você não machucará o leão com o golpe que dará.
A garota tomou coragem, pegou a torta e a levou para o leão.
– Hum, isso parece saboroso! – disse ele, farejando o prato e depois
servindo-se de um pedaço da torta.
Ele comeu a torta inteira. Quando terminou, sentiu-se cansado e quis
dormir um pouco. Primeiro pediu à princesa:
– Venha, sente-se ao meu lado e coce um pouco atrás da minha orelha
enquanto eu tiro uma soneca.
E ela se sentou ao seu lado e coçou a orelha dele com a mão esquerda,
enquanto a direita tateava atrás da cama em busca da espada. Quando o leão
nalmente dormiu, a princesa pegou a espada, empunhou-a, fechou os olhos
e degolou o animal num só golpe. Quando abriu os olhos novamente, o leão
havia desaparecido e seu amado irmão estava ao seu lado. Ele a abraçou:
– Você me resgatou! Eu fui amaldiçoado e estava encantado naquele leão
até que a mão de uma garota, movida pelo amor, cortasse a cabeça do
animal.
Eles foram juntos ao lago para agradecer à rã. Quando chegaram, viram
que ela pulava de um lado para o outro, juntando lenha para fazer outra
fogueira. Depois de acendê-la, a rã pulou no meio das chamas. Elas
crepitaram mais um pouco e o fogo se extinguiu, e então uma adorável
jovem surgiu das cinzas. Era a bem-amada do príncipe, que também tinha
sido encantada. Os três voltaram juntos para casa e se apresentaram ao rei e
à rainha.
Houve uma grande festa de casamento, e ninguém que lá esteve voltou
para casa com fome.
O Cavaleiro Afortunado
a partir de Bela Bela ou O Cavaleiro Afortunado,
de Marie-Catherine d´Aulnoy
ilustração de Efe Godoy

Era uma vez um rei muito bom, mas que tinha o reino ameaçado por
outro soberano, o temível imperador Matapá. Com receio de ver a totalidade
de suas terras espoliadas, fez correr um decreto de que todos os condes,
duques, barões e marqueses deveriam ir pessoalmente ou mandar um de
seus lhos à corte para compor um exército de resistência em caso de
invasão, sob pena de pagarem uma grande multa.
Num con m do reino, vivia um conde velhinho com suas três lhas e
que, ao ter conhecimento do decreto, sentiu-se muito mal. Estava tão velho
que mal se aguentava nas pernas. Como iria à corte se apresentar ao rei e se
lançar numa batalha?
– O que farei? – indagou às três. – Estou velho demais para lutar e não
temos dinheiro que chegue para pagar a multa. Estamos sem saída.
As lhas caram desoladas:
– Que a ição, papai! – exclamou a mais velha.
– Estamos juntos e é isso que importa – disse a do meio.
– Vamos pensar e, sem dúvida, chegaremos a uma solução – disse a
caçula.
Elas pensaram, pensaram e pensaram. Estavam tão pobres que, para
pagar a multa, teriam de vender a casa. Sem a casa, cariam sem a horta
localizada atrás da casa e sem o pomar que cava atrás da horta. Passariam
fome!
A mais velha decidiu:
– Vou me vestir de homem e me apresentar ao exército!
Mas, vaidosa, pensou que teria de cortar o cabelo e... desistiu.
A lha do meio resolveu tomar a situação em suas mãos:
– Vou eu me vestir de homem e colocar as mãos à obra!
Mas, então, olhou para as mãos, tão delicadas, e... também desistiu.
A lha mais nova percebeu que era a única capaz de enfrentar a situação.
Conversou com o pai e propôs apresentar-se ao exército. O conde, a
princípio, se opôs, argumentando que ela seria logo descoberta e tornaria a
situação ainda pior. Mas ela insistiu:
– Papai, vou cortar o cabelo, me vestir de rapaz. O senhor verá, ninguém
vai descon ar de nada. Ademais, é isso ou perder nossa propriedade para
pagar a multa!
Sem alternativa, assim zeram. O pai deu-lhe a espada que cava
pendurada na parede da sala, intocada há décadas, e ela adaptou um traje de
montaria para se vestir. As irmãs ajudaram no corte de cabelo e, dias depois,
a moça montou no único cavalo que tinham e partiu.
Cavalgou, cavalgou e cavalgou, até que, passando por um prado, viu uma
velha pastora ajoelhada, puxando uma ovelha pelas patas dianteiras.
– Boa tarde, o que está fazendo, boa pastora? – perguntou, engrossando a
voz.
– Ah, nada de importante, meu rapaz! Desde que amanheceu estou
tentando desatolar minha ovelha desta lama e não consigo.
A moça desmontou do cavalo e foi ajudá-la. Juntas, conseguiram libertar
a ovelha, que parecia saudável e que, em pouco tempo, saiu saltitando.
A pastora então lhe disse:
– Você não vai se arrepender de ter me ajudado. Sei bem quem você é, de
onde veio e para onde vai. Sou uma fada e vou te ajudar a ser bem-sucedida
em sua aventura.
A pastora tocou a terra com seu cajado e res-surgiu esplendorosa, vestida
com ricos trajes. A jovem ouviu um relincho perto de si e, ao voltar-se para
trás, viu um belíssimo cavalo. Novamente batendo o cajado no chão, a fada
ordenou:
– Belo Camarada, cubra-se com arreios mais belos do que os arreios que
ornam os cavalos do imperador Matapá.
Imediatamente, o cavalo Camarada surgiu coberto por uma manta de
veludo verde, bordada com diamantes e rubis, encimada por uma linda sela
de couro trabalhado e rédeas cravadas de pérolas.
– O que você está vendo, minha jovem, é a coisa menos importante deste
cavalo. Camarada é um animal de muitos talentos. Ele conhece o passado, o
presente e o futuro e está comigo há muitos anos. É o melhor conselheiro
que uma fada pode ter. Ele vai lhe acompanhar nessa aventura e, quando
tudo terminar, voltará para mim. Trate-o como o mais el dos amigos, pois é
isso que ele realmente é.
A fada então bateu de novo com o cajado no chão e dele brotou um baú
que trazia na tampa as letras C e A entrelaçadas.
– Aqui estão as iniciais de sua nova identidade: Cavaleiro Afortunado.
Este baú é capaz de lhe fornecer todos os trajes, acessórios e objetos de que
precisa. Ele é mágico e Camarada não precisará carregá-lo para onde vocês
forem. Quando você precisar de alguma coisa, bata o pé no chão e diga:
“Baú de marroquim, venha logo para mim”. Aqui está a chave. Antes de abri-
lo, basta dizer o que precisa: “Baú de marroquim, preciso de calças. Baú de
marroquim, preciso de blusas e de coletes”. Quando o abrir, o que houver
pedido estará lá. Depois de usá-lo, diga apenas: “Baú de marroquim, volte
para o sem m”, e ele desaparecerá até seu próximo chamado. Agora, vão,
Afortunado e Camarada, rumo ao reino!
A jovem agradeceu e abraçou a fada com carinho. Para terminar o
encontro, a fada ordenou que o Cavaleiro Afortunado aparecesse num traje
de brocado verde e ouro. E assim, num átimo de segundo, suas vestes se
transformaram. Afortunado guardou a chave, montou sobre Camarada e os
dois partiram a galope.
A jornada durou dias. Camarada e o Cavaleiro Afortunado tiveram de
parar em hospedarias para pernoitar. Quando nalmente se aproximaram
da grande oresta que teriam de atravessar antes de chegar à divisa do reino,
o cavalo disse:
– Meu caro, estou encantado de estar com você, pois vejo que é gentil e
educado. Sinceramente, antes da fada, vivi ao lado de gente que me fazia
odiar a vida, tão intolerável era sua convivência. Permita-me lhe aconselhar:
sua aventura será grande, e grandes aventuras pedem grandes aliados.
Entremos por este caminho, pois aqui perto mora um lenhador que pode lhe
servir.
– Tem certeza, Camarada? – perguntou o Cavaleiro Afortunado. – Não
deveríamos seguir direto ao Palácio Real?
– Acredite em mim. O homem que vamos convidar a nos acompanhar
também recebeu um dom das fadas, como você verá.
Eles seguiram até avistarem um jovem que rachava lenha. Afortunado
con rmou com o cavalo se era dele que falava, e então se aproximou:
– Boa tarde, lenhador. Que grande pilha de lenha você tem aí... Onde
estão os outros que o ajudaram a cortar tanta madeira?
O homem, muito educadamente, respondeu que não tinha ajudante,
havia feito todo o trabalho sozinho e ainda racharia mais alguns troncos
para levar embora a carga de uma só vez.
– Como? – quis saber Afortunado. – Você pretende carregar toda essa
lenha de uma só vez?
– Sim, cavaleiro. Meu nome não é Fortespinha por acaso, minha força
não é comum.
– Você deve ganhar muito dinheiro! – considerou Afortunado.
– Muito pouco, cavaleiro, muito pouco – respondeu Fortespinha. – Aqui
somos todos muito pobres.
– Fortespinha, já que é assim, não gostaria de me acompanhar? Estou a
caminho da sede do reino e repartirei com você o que por lá conquistar. E,
se não gostar de lá, dou-lhe dinheiro para a viagem de volta.
O lenhador achou que não tinha nada de melhor a fazer. Largou seu
machado e seguiu com o Cavaleiro Afortunado e seu cavalo Camarada.
Ainda atravessavam a oresta quando se depararam com um homem que
tinha as pernas amarradas por uma ta verde. Camarada relinchou
suavemente.
– Afortunado, vamos precisar daquele homem. Ele também tem um dom
que nos será necessário.
Afortunado aproximou-se e, com sua simpatia habitual, perguntou por
que ele tinha as pernas enlaçadas.
– É que estou me preparando para a caça – respondeu o homem. – Sou
chamado de Ligeiro, pois não há cervo, cabrito, lebre ou qualquer bicho
terrestre que eu não ultrapasse quando minhas pernas estão livres. Como
estou aqui para pegar o meu jantar, preciso car amarrado, que é para correr
menos depressa.
Afortunado lhe fez a mesma proposta que havia feito a Fortespinha, e
Ligeiro, que não era lá muito feliz em sua terra, juntou-se aos três.
Mais adiante, já na saída da oresta, viram um homem à beira de um
pântano amarrando uma venda aos olhos. Camarada avisou Afortunado,
que abordou também aquele homem. Chamavam-no de Bom Atirador, e ele
estava vendando os próprios olhos para não dizimar um bando de aves
quando só precisava de uma para sua refeição. Em poucos minutos, Bom
Atirador passou a integrar a comitiva.
Mal haviam se movido quando viram um homem deitado com a orelha
colada ao chão e, a um sinal de Camarada, Afortunado o abordou. Era
Finorelha, que estava ouvindo as ervas crescerem para saber se poderia tirar
dali um punhado de hortelã para fazer um chá. Após alguns minutos de
conversa, Finorelha estava incorporado ao grupo, que continuou a viagem.
Logo atravessavam um belo campo cheio de moinhos de vento –
cinquenta e sete moinhos para sermos exatos. Foi quando vislumbraram
aquele que seria o novo integrante da comitiva de Afortunado. Impetuoso,
com um só sopro, podia manter os moinhos girando por quase uma hora
seguida.
Antes que alcançassem a sede do reino, ainda se juntariam a eles o
homem conhecido como Bebedor, que foi encontrado bebendo um lago
inteiro para aplacar a sua sede, e o chamado Comilão, capaz de devorar
quantidades imensas de delícias como pães, tortas e bolos.
Às portas da cidade onde cava o Palácio Real, o Cavaleiro Afortunado,
aconselhado por Camarada, convocou seus ajudantes:
– Ouçam, Fortespinha, Ligeiro, Bom Atirador, Finorelha, Impetuoso,
Bebedor e Comilão. Para o sucesso da nossa parceria, peço que guardem
segredo absoluto sobre os talentos de vocês. Da minha parte, lhes asseguro
que farei o que estiver ao meu alcance para que quem satisfeitos e
contentes.
Finalmente entraram na cidade e se dirigiram à grande planície onde se
reuniam todas as tropas que tinham atendido ao chamado do rei. Pouco
depois da comitiva do Cavaleiro Afortunado, chegou o rei, acompanhado de
sua irmã e de toda sua corte.
Montado em seu cavalo magni camente ornamentado, Afortunado
estava tão garboso nas roupas que havia ganhado da fada que logo foi
notado pelo rei e sua irmã, que o convidaram para jantar em sua companhia.
No jantar, cou fascinado pelo rei, que era belo, jovem e encantador. E a
irmã do rei cou tomada de amores por Afortunado, o mais maravilhoso
cavaleiro que ela já havia visto. Dali surgiu uma paixão indesejada por ele,
que fez com que, nos dias subsequentes, a princesa o procurasse a todo
momento e o convidasse para o que fosse possível. Preparado para defender
o reino, o Cavaleiro Afortunado se viu compelido a comparecer a chás,
lanches, almoços, jantares, ceias e até bailes. A princesa queria um
namorado, e o Cavaleiro Afortunado também... só que ele tinha se
apaixonado pelo rei!
Sentindo que sua afeição não era correspondida por Afortunado, ela
perguntou ao irmão:
– Então, meu irmão, como anda a campanha para a reconquista de nossos
bens tomados pelo imperador Matapá?
– Estou muito apreensivo, minha querida irmã – respondeu o rei –, pois
além das preocupações que já tenho com isso, agora temos a notícia de que
um dragão prodigiosamente grande está devastando a porção oeste de nosso
reduzido reino!
A princesa, que tinha a intenção de despachar o Cavaleiro Afortunado
para algum con m, não perdeu a chance que, a seu ver, tinha-lhe aparecido:
– Ah, eu soube hoje mesmo disso! Imagine você que o Cavaleiro
Afortunado, com quem estive há pouco, me contou. Por isso eu vim lhe ver,
para apresentar o seu pedido. Ele quer ir atrás do dragão. Diz ter um segredo
que faz adormecer até a mais brutal das feras! E só não veio lhe falar
pessoalmente porque temia que não o deixasse partir de imediato.
– Veja, mas isso é muito perigoso e temo que possa custar a vida de nosso
querido Afortunado. Mas vou chamá-lo aqui. Se estiver mesmo decido,
naturalmente o deixarei partir.
Chamado à presença do rei, o pobre Cavaleiro Afortunado quase
desmaiou ao saber da intriga promovida pela sua despeitada irmã. Mas, não
vendo jeito de dizer que não iria, foi se consultar com Camarada, a quem
revelou tudo.
– Eu já sei de tudo, Afortunado – respondeu o cavalo. – Vamos partir o
quanto antes, vou avisar nossa comitiva.
Saíram todos rumo ao oeste, para o local onde o dragão havia feito sua
última aparição. Quando chegaram a um descampado, Camarada disse bem
baixinho ao Cavaleiro Afortunado:
– Peça a Finorelha para descobrir se o dragão está por perto.
Afortunado pediu e Finorelha se deitou com a orelha colada ao chão e,
pouco depois, ouviu os berros do dragão, declarando que ele se encontrava a
poucos quilômetros dali.
Camarada então aconselhou Afortunado:
– Peça a Bebedor que beba toda a água daquela lagoa ali adiante e a
Fortespinha que traga a quantidade de vinho que for preciso para enchê-la
outra vez. E você, venha comigo, nós vamos espalhar nas margens da lagoa
de vinho coisas que você pedirá ao baú de marroquim: frutas secas, uvas-
passas, pimenta-do-reino, e mais uma porção de coisas que deem sede.
Afortunado chamou pelo baú depois que a lagoa estava preenchida com
vinho e, montado em Camarada, distribuiu os alimentos por toda a volta.
– Agora, Afortunado, vá com os seus sete ajudantes. Avise aos moradores
da vila mais próxima que se fechem em casa e, depois disso, você e sua
comitiva também se protejam.
Afortunado obedeceu, e o dragão não tardou a aparecer. Cansado,
aproximou-se da lagoa e caiu na armadilha. Comeu o que havia pelas
beiradas e, com as guloseimas incitando a sede, bebeu mais e mais até cair
de bêbado.
Camarada, que a tudo assistia escondido numa moita, riu e relinchou à
vontade. Depois trotou para a vila, procurando por seu mestre. Ao encontrá-
lo, levou-o de volta para a beira do lago, onde o Cavaleiro Afortunado
mandou que Fortespinha colocasse o dragão bêbado numa carroça e que os
outros o ajudassem a amarrá-lo para que pudessem retornar ao Palácio Real.
Foram recebidos com pompa e uma festa de arromba. O dragão foi
entregue ao rei ainda desacordado. A irmã, espantadíssima com o sucesso
do Cavaleiro Afortunado, não tardou em inventar uma nova mentira:
– Sabe, meu irmão, o Cavaleiro Afortunado disse que gostaria muito que
você desse permissão para que ele partisse para o reino do imperador
Matapá, pois se acha capaz de recuperar tudo aquilo que nos foi tomado.
– Mas não é possível que nosso querido Afortunado seja tão imprudente!
– respondeu o rei, que mandou chamá-lo para con rmar se ele estava
mesmo disposto a enfrentar o temível soberano.
– Vossa Majestade, não me lembro de ter dito isso. Mas se a sua irmã
disse que me ouviu dizer, estou pronto para partir para o reino do
imperador Matapá e farei tudo que estiver ao meu alcance para recuperar
seus bens e suas terras.
Cabisbaixo, o Cavaleiro Afortunado foi até o estábulo conversar com seu
amigo:
– Meu el Camarada, desta vez não vamos conseguir... – e contou ao
cavalo tudo o que havia se passado.
– Meu querido Cavaleiro – respondeu o cavalo –, não se preocupe, eu já
sabia que ela faria isso. Vamos partir sem demora!
Afortunado invocou seu baú de marroquim e pediu armaduras
magní cas para si e para todos os seus ajudantes. E montarias fabulosas para
Fortespinha, Ligeiro, Bom Atirador, Finorelha, Impetuoso, Bebedor e
Comilão, bem como os mais belos arreios, mantas, escudos e espadas – e até
mesmo ferraduras de ouro para os sete novos cavalos.
Tão bem equipados, chegaram num instante à capital do reino do
imperador Matapá. Era uma cidade maior que Paris, Constantinopla e Roma
juntas!
Afortunado pediu uma audiência com o soberano e, quando cou diante
dele, disse que vinha da parte de seu rei, que pedia de volta os territórios que
tinham sido ocupados, bem como os objetos da corte que lhe tinham sido
con scados.
Matapá respondeu com uma gargalhada:
– Cavaleiro Afortunado, é esse seu nome, não é? Você vem aqui pleitear
isso acompanhado por apenas sete homens? Que piada! Mas vou lhe dar
uma chance, já que se apresentou tão bem, tão belamente ornamentado e
com tanta educação. Eu lhe darei o que quiser se conseguir que um dos seus
homens coma, de uma só vez, todo o pão que for assado para um dia de
alimentação da população de minha cidade.
Ouvindo isso, o Cavaleiro sorriu e disse:
– Vossa Majestade, eu aceito o desa o. Amanhã cedo pode mandar deixar
todo o pão preparado e empilhado que virei até aqui com o homem que irá
comê-lo.
O imperador estava de acordo. Durante todo o resto daquele dia, não
houve outro assunto na cidade, senão a proposta do imperador Matapá ao
Cavaleiro Afortunado.
Afortunado chamou Comilão:
– Meu caro, peço que não coma mais nada hoje, pois amanhã de manhã
terá uma grande tarefa que, imagino, será também um grande prazer.
Na manhã seguinte, o imperador Matapá e sua corte se instalaram num
balcão diante das seis imensas pilhas de pães que tinham sido feitas no pátio
do castelo. Afortunado chegou com seu pequeno cortejo e cumprimentou a
família real com um aceno de cabeça. Comilão estava com os olhos
brilhantes e a boca salivando e, quando o Imperador respondeu ao
cumprimento, Afortunado disse-lhe que fosse até o pão e o comesse. De
forma paciente e com grande satisfação, Comilão comeu um a um todos os
pães. No nal, juntou as migalhas e as devorou também.
Nunca se viu tamanho espanto e as pessoas se perguntavam se era
verdade o que tinha acontecido bem diante de seus olhos. Naquele dia, aliás,
desde o imperador até o gato, todos cearam sem pão, pois não houve tempo
para preparar uma nova fornada para todos.
Afortunado, triunfante, aproximou-se do imperador e lhe perguntou,
com muito jeito, se ele estava pronto para cumprir a sua promessa. O
imperador respondeu irritado:
– Cavaleiro Afortunado, seu amigo comeu demais, sem beber. É preciso
que ele ou algum de seus homens beba todo o vinho das adegas e toda a
água das fontes, dos aquedutos e dos reservatórios da cidade.
– Seu desejo é uma ordem, imperador.
Voltando para junto de sua comitiva, pediu a Bebedor que zesse essa
gentileza. Bebedor não esperou por uma segunda convocação e se dirigiu
imediatamente à Fonte dos Leões, onde havia sete magní cas cabeças de
mármore com bocas que jorravam litros e litros de água e que escoavam
para um magní co rio no qual navegavam belas gôndolas. Sem nem tomar
fôlego, Bebedor esvaziou a fonte, que cou seca como se nunca tivesse tido
água; depois, secou o rio, e as gôndolas caram tombadas no leito seco. A
seguir, passou aos aquedutos e reservatórios e, quando perguntou ao
Imperador pelas adegas, este titubeou e disse que se dava por satisfeito.
Insaciável, Bebedor insistiu e o Imperador indicou com a mão trêmula a
direção da adega real, onde o el aliado de Afortunado ainda bebeu até
esgotar o líquido do último dos tonéis.
O Cavaleiro Afortunado foi até o imperador e, com tranquilidade,
lembrou-o de que era preciso cumprir a sua promessa. Mas Matapá ainda
não estava convencido e pediu que o cavaleiro e sua comitiva voltassem no
dia seguinte.
O imperador reuniu seu conselho e expôs sua difícil situação. Tinha
pedido missões impossíveis e sobre-humanas e o Cavaleiro Afortunado e
sua comitiva tinham cumprido todas elas. Não era mais possível continuar
postergando a entrega das terras e dos bens conquistados, sob pena de se
começar uma guerra. E se por acaso o rei tivesse um exército de pessoas tão
extraordinárias como as que acompanhavam o Cavaleiro Afortunado?
A lha de Matapá, que era uma exímia corredora, pediu a palavra:
– Papai, o senhor sabe que até agora consegui vencer todas as corridas
que disputei. Diga ao Cavaleiro Afortunado que se ele ou qualquer um de
sua comitiva conseguir correr mais rápido do que eu, então ele
de nitivamente terá a sua vitória.
O imperador conhecia os feitos da prodigiosa lha e, mesmo receoso,
acatou a ideia. Na manhã seguinte, recebeu o cavaleiro e sua comitiva com a
proposta da corrida. Afortunado cedeu ao desa o, que Matapá marcou para
a tarde daquele mesmo dia.
Na frente do castelo, construiu-se um caminho de areia socada, que
contornava a oresta retornando ao ponto de partida depois de doze
quilômetros. A princesa apareceu em um traje belíssimo e adequado, com
sapatilhas apropriadas e os longos cabelos presos. O Cavaleiro Afortunado
apresentou-se, ao lado do el Ligeiro, também vestido de maneira
magní ca, seguido por seus outros parceiros.
O imperador chegou para assistir ao páreo e, antes de autorizar o início
da prova, ordenou que todos brindassem com um cálice do melhor licor do
império – dado que o estoque de vinho estava esgotado. Mas Ligeiro não
estava acostumado a beber e sentiu muito, muito sono.
Foi dada a largada. Ligeiro partiu em disparada, mas, assim que dobrou a
primeira curva, perdendo-se de vista, foi para baixo da sombra de uma
árvore, sentou-se e adormeceu!
Algum tempo se passou e ao longe já se enxergava a princesa voltando
sozinha. Afortunado se a igiu e consultou o el Camarada, que lhe disse:
– Afortunado, é preciso que Finorelha escute. Talvez possa nos dizer o
que Ligeiro está fazendo que não aparece.
Ele foi até Finorelha, que atendeu ao seu pedido e deitou-se no chão.
Ouviu o ronco de Ligeiro e o reportou imediatamente a Afortunado.
– Não acredito! O que faremos, então? – perguntou Afortunado ao cavalo
Camarada.
– Peça a Bom Atirador que acerte uma echada na ponta da orelha de
Ligeiro para acordá-lo!
Bom Atirador preparou seu arco e atirou tão perfeitamente que Ligeiro
ganhou um pequeno furo bem no meio do lóbulo da orelha esquerda. O
susto o despertou num pulo. Ele então correu e correu, até que, já perto da
linha de chegada, ultrapassou a princesa, vencendo a prova.
O imperador Matapá cou tão surpreso que não quis estender a conversa.
Chamou Afortunado e disse que ele levasse tudo o que conseguisse carregar
consigo e que as terras tomadas seriam desocupadas o quanto antes. Só
pedia que ele deixasse seu reino o mais rápido possível. Não suportava mais
conviver com o cavaleiro e sua comitiva.
Na mesma hora, Afortunado e seus homens pediram licença para entrar
no depósito onde estavam guardados os móveis, as tapeçarias, as louças, as
porcelanas e as pratarias do reino. Fortespinha se adiantou e todos ajudaram
a empilhar os objetos de modo que ele os pudesse carregar numa única
viagem.
Assim partiram para o reino, onde foram recebidos de volta como heróis.
A essa altura, a irmã do rei decidiu que era melhor se retirar para seu palácio
de campo e, tão logo partiu, o Cavaleiro Afortunado solicitou uma audiência
com o rei. Nela, pediu que os sete homens de sua comitiva fossem
recompensados de forma a não terem mais de trabalhar até o m da vida – o
que o rei concedeu com muito gosto.
Por m, o cavaleiro revelou a sua verdadeira identidade e contou as
circunstâncias que o haviam levado a se disfarçar para tomar o lugar de seu
velho pai.
O rei, felicíssimo, contou que estava profundamente apaixonado por
Afortunado já há um bom tempo...
– Aliás, qual é seu verdadeiro nome?
– É Bela, Vossa Majestade.
– Bela... aceita ser minha rainha?
Ela consultou o seu cavalo, e o el Camarada predisse grandes alegrias.
Assim, o pai e as irmãs de Bela foram convidados para o casamento, bem
como a fada que, ao nal dos festejos, levou consigo seu cavalo mágico. Sem
ele, as maravilhas que lhes contei agora não teriam ocorrido da maneira que
ocorreram.
Filagranata
a partir do conto homônimo de Rachel Busk
ilustração de Lumina Pirilampus

Era uma vez uma mulher muito pobre que tinha grande predileção por
comer verduras frescas. Para ela, esse era o maior dos prazeres, e como não
possuía horta nem dinheiro para gastar em nada mais do que o estritamente
necessário à sobrevivência, ela satisfazia seu desejo roubando as hortas de
outras pessoas.
Perto de sua casa cava a sortida horta de um imenso palácio. Embora
estivesse cercada por um muro, o desejo da mulher era grande e ela passou a
andar com uma escadinha sobre o ombro. Ela encostava a escadinha no
muro, subia e lá de cima puxava a escadinha de volta, xando-a do outro
lado. Assim enchia sua sacola de verduras dia sim, dia não (certo, às vezes
ela repetia a tarefa dia sim, dia também, porque nem sempre as verduras
estavam “no ponto” e ela tinha um paladar exigente). Mas acontece que o
palácio pertencia a uma bruxa, que notou que sua horta andava cheia de
buracos estranhos e bem menos produtiva do que de costume.
Um dia, a bruxa cou à espera, bem escondida. Viu a mulher surgir sobre
o muro, puxar a escada e depois xá-la do lado de dentro. Viu a mulher
descer os degraus com a sacola e viu então sua horta desfalcada. Decidiu que
já havia visto o bastante e que era hora de agir:
– Bom dia, senhorita. Fazendo a feira em minha horta?
A mulher tomou um grande susto, mas, mesmo apavorada, pensou que o
melhor a fazer era dizer toda a verdade. Confessou que roubava as verduras
e pediu perdão.
– Eu não sei nada sobre perdão – respondeu a bruxa. – Você comeu
minhas verduras e tem de arcar com as consequências. E as consequências
são estas: eu serei madrinha de seu primeiro lho, seja menino ou menina,
e, assim que a criança estiver em idade de conseguir se vestir sozinha, você a
trará para mim.
A mulher cou assustada, mas se conformou. Quando teve a primeira
criança, a bruxa foi à porta de sua casa e se apresentou para ser a madrinha.
Era uma linda garotinha e a bruxa deu-lhe o nome de Filagranata.
Depois do batizado, a bruxa partiu. Assim que a menininha cresceu o
su ciente para se vestir sozinha, a bruxa voltou e a levou embora. A pobre
mãe nada pôde fazer com a bruxa impassível diante das súplicas e de todas
as lágrimas que derramou.
Filagranata foi levada para viver sozinha no alto da torre do palácio da
bruxa e, lá, tinha a tarefa de alimentar os pombos. A menina cresceu
afeiçoada pelas aves e nunca reclamou do trabalho. Porém, conforme o
tempo passava, ela começou a car muito triste por não ter mais ninguém
com quem brincar, jogar ou mesmo conversar. A bruxa aparecia uma vez
por dia, mas não era de jeito nenhum uma companhia agradável (ou mesmo
interessante). Não havia porta de acesso à torre, de modo que a bruxa
costumava cantarolar quando chegava:
Filagranata, bela bela,
Joga sua trança, aquela,
Para a avó, pela janela.
Quando a ouvia, Filagranata lançava torre abaixo seus longos cabelos, que
ela trançava zelosamente toda manhã. A bruxa se pendurava nas tranças e
por elas subia até o alto da torre.
Um dia, quando a bruxa chamava por Filagranata, passava por lá um
príncipe que viajava à procura de uma bela princesa (pois você sabe que é
esse o costume de um príncipe: sair pelo mundo à procura de uma donzela
adequada para ser sua esposa – ou pelo menos é o que se diz por aí!).
O príncipe cou horrorizado quando viu a bruxa e encantado quando
vislumbrou Filagranata. Desceu do cavalo para espiá-la recostada à janela,
no alto da torre. Assim, viu como a bruxa escalava as longas tranças de
Filagranata.
Depois que a bruxa partiu, o príncipe deu a volta na torre, mas não
encontrou nenhuma porta. Porém, ele havia observado o que a bruxa zera
e no dia seguinte voltou bem mais cedo.
O príncipe não tinha lá uma bela voz e, embora não tenha se saído muito
bem em imitar a voz trêmula e roufenha da bruxa, uma coisa ele conseguiu
fazer com sucesso: guardar de memória os versinhos e a entonação da
cantilena que tinha escutado. Foi assim que se postou embaixo da torre e
cantarolou:
Filagranata, bela bela,
Joga sua trança, aquela,
Para a avó, pela janela.
Filagranata teve a certeza de que nunca antes escutara aquela voz, tão
doce. Correu para a janela e viu, com prazer e surpresa, que não era a bruxa
que estava lá embaixo. Sua expressão a deixou ainda mais bela. O príncipe
olhou para cima, admirado e cheio de expectativa, enquanto um
pensamento passava rápido pela cabeça de Filagranata: “Fui ensinada a
deixar meu cabelo cair a cada vez que escutasse essas palavras. Por que não
faria isso agora que um lindo cavaleiro é quem está aqui embaixo, já que o
faço todos os dias para aquela bruxa velha?”.
Sem esperar que um segundo pensamento pudesse contrariar o primeiro,
Filagranata jogou suas tranças. O príncipe foi igualmente rápido em
aproveitar a ocasião. Fincou os calcanhares na barriga do cavalo, prendeu-o
bem entre as coxas, e começou a subir como vira a bruxa fazer, usando a
força dos braços (que eram melhores que a voz, verdade seja dita).
Filagranata nunca tinha conversado com mais ninguém além da bruxa
desde que fora colocada no alto daquela torre, mas o príncipe tinha tanto a
dizer que o tempo em que caram juntos voou. Somente quando escutaram
a bruxa cantar é que os dois se lembraram do perigo que corriam.
Outra pessoa teria aumentado o perigo com gritos de desespero, ou então
perdido um tempo precioso em lamentações inúteis. Mas Filagranata
demonstrou ter uma presença de espírito digna de uma heroína, e colocou
em prática coisas que aprendera com a bruxa, que entre um resmungo e
outro, acabara por ensinar à jovem alguns feitiços maravilhosos. Filagranata
lançou mão de uma varinha de condão e transformou o príncipe numa
romã. Com o mesmo artifício, transformou o cavalo numa laranja. Depois,
jogou as tranças para a bruxa, como fazia todos os dias.
Assim que chegou no alto da torre, a bruxa pareceu perceber que havia
algo de diferente:
– Que cheiro estranho! – exclamou, antes de sair metendo o nariz para
fungar cada cantinho do quarto.
Fungou, fungou e passou pela linda romã e pela dourada laranja numa
das prateleiras, mas nem a mais esperta das bruxas poderia pensar que havia
alguma coisa errada com as frutas. Enganada, a bruxa foi ver os pombos e
deu sua visita por encerrada.
Assim que ela se foi, Filagranata soube que estava livre até o dia seguinte.
Uma vez mais, com um toque da varinha de condão, devolveu ao príncipe e
ao cavalo as suas formas habituais.
– É assim a sua vida todos os dias? É possível isso? – perguntou o
príncipe – Não, não a deixarei aqui. Você pode estar certa de que meu cavalo
se orgulhará de carregá-la. Você tem apenas de montar atrás de mim na sela
que eu a levarei para casa, para o meu reino. Você poderá viver no palácio
com minha mãe e car comigo.
Filagranata gostou bastante da ideia de ir embora com o belo príncipe,
que parecia gostar tanto dela. Ir embora era bem preferível a car quieta
numa torre sem porta, prisioneira de uma bruxa. Assim, concordou
imediatamente: ajudou o príncipe e o cavalo a descerem por suas tranças e,
quando eles estavam lá embaixo, ela cortou os longos cabelos e os amarrou
no pé da cama. Desceu e, no chão, subiu na garupa do cavalo. Os três
partiram.
Andaram, andaram e andaram por um longo, longo tempo, até que
chegaram a uma oresta. Mas, como era de se esperar, a bruxa não demorou
a descobrir a fuga e saiu no encalço deles. Enquanto isso, Filagranata e o
príncipe viram uma velhinha à beira da estrada fazendo sinal para que eles
parassem. Embora estivessem com grande pressa, eles tinham escutado
muitas histórias e sabiam que, num caso desses, era preciso parar. Pararam –
e zeram bem, porque a velhinha era uma fada que queria ajudá-los a
escapar da bruxa!
A fada disse ao príncipe:
– Eu lhes dou estes três presentes. Quando a bruxa se aproximar, joguem
no chão esta colher de pedreiro. Se ela seguir adiante, joguem este pente. Se
ainda assim ela continuar a persegui-los, atirem por último o óleo que está
nesta jarra. Depois disso ela certamente não voltará a incomodá-los.
Para Filagranata, a fada ainda sussurrou algumas palavras ao pé do
ouvido antes de deixá-los irem embora. A bruxa não demorou a se
aproximar e, tão logo Filagranata avisou o príncipe, ele atirou a colher de
pedreiro no chão. Imediatamente um alto muro se ergueu entre eles e a
bruxa levou um tempo grande para escalá-lo, e ainda mais tempo para
conseguir descer para o outro lado.
No chão, no entanto, ela era mais rápida, de modo que em poucas horas
já estava próxima dos fugitivos novamente.
Foi então que o príncipe usou o pente e viu crescer entre eles uma cerrada
mata de espinhos que fez a bruxa perder mais algum tempo, além de deixá-
la toda arranhada. Determinada – e com a ajuda de seus poderes –, ela se
desvencilhou e se pôs atrás deles novamente. Foi a vez do príncipe derramar
todo o conteúdo da jarra, e do óleo formou-se um pântano onde a bruxa
atolou de vez.
Filagranata e o príncipe nalmente conseguiram fugir sãos e salvos para o
reino. Assim que puderam respirar tranquilos, o príncipe perguntou:
– Filagranata, o que a velha fada da oresta sussurrou para você?
– Ela me disse para recomendar-lhe, na nossa chegada, que você não beije
ninguém até depois do nosso casamento. Ninguém mesmo, nem sua ama,
nem sua mãe, nem suas irmãs... Que, se você zer isso, se esquecerá de todo
o seu amor por mim e de tudo que me disse.
– Que horror! – disse o príncipe – Você pode car certa de que eu não
irei beijar ninguém se a consequência for essa. Vai ser bastante estranho,
para ser sincero, voltar de uma grande jornada como esta e não beijar
ninguém de casa, nem mesmo minha própria mãe... Mas creio que, se eu
contar o motivo, todos entenderão. Pois que tranquila.
Então eles cavalgaram pelo último trecho da viagem. Nos degraus da
escada que levava ao palácio, o chanceler do reino saiu para recebê-los e
saudou Filagranata como a noiva escolhida que o príncipe trazia para casa.
Conduzidos à sala onde estava a rainha, o príncipe contou suas aventuras à
mãe e explicou a interdição de não a beijar até o seu casamento. A rainha
estava tão encantada com a beleza, modéstia e gentileza de Filagranata que
não se queixou da falta que sentia de beijar o lho.
Ao m do dia cheio, todos foram para os seus quartos se deitar. Mas o
príncipe, como fazia quando era criança, foi até o quarto de sua mãe. Ao vê-
la dormir placidamente, os cabelos brancos arrumados sobre o travesseiro,
não se conteve e deu-lhe um beijo na testa.
Instantaneamente passaram por sua mente todos os acontecimentos que
tinham sucedido desde o momento em que beijara sua mãe na véspera da
partida para a longa jornada. A viagem até o palácio da bruxa, a imagem de
Filagranata recostada à janela, a fuga a cavalo e os perigos que ao lado dela
enfrentou no caminho – tudo passou por sua mente como uma visão
noturna. Pela manhã, quando acordou, o príncipe não se lembrava de nada.
Quando trouxeram Filagranata à sua presença, foi como se não a
conhecesse, jamais a tivesse visto.
Ainda cansado da viagem, embora não soubesse por que, ordenou que
uma comitiva saísse em busca de uma noiva. A rainha, que já se afeiçoara a
Filagranata, cou chateada, mas nada do que ela pudesse dizer traria de
volta qualquer lembrança daqueles dias à memória do lho – tampouco dos
planos e das promessas que zera à jovem.
Filagranata, por sua vez, soube que o príncipe havia beijado a mãe na
noite anterior e entendeu que a falta de memória era efeito de um
encantamento sobre o qual a fada a alertara:
– Vou resolver o problema! – ela disse à rainha. – Preciso da melhor e
mais bem peneirada farinha, e também de um grande pacote de guloseimas.
A rainha ordenou que fosse colocado à disposição da jovem tudo o que
ela pedisse. Quando cou sozinha, pôs-se a trabalhar: fez uma massa da
farinha e com ela moldou dois pombos e os recheou com confeitos.
Quando a comitiva do reino voltou, já com a noiva escolhida, Filagranata
pediu à rainha que colocasse os dois pombos sobre a mesa que estava sendo
preparada para o banquete de noivado. E assim foi feito: cada uma das
esculturas em uma das pontas da mesa.
Quando todos se sentaram à mesa, e antes que qualquer comida fosse
servida, os dois pombos começaram a conversar. Todos caram
maravilhados, fazendo silêncio para entender as palavras ditas por aquelas
duas aves mágicas.
– Você se lembra, ou é possível que realmente tenha esquecido? Crruu,
crruu – disse o primeiro pombo. – Quando eu estava naquela torre sem
porta, você chegou e, debaixo da janela, imitando a voz da bruxa,
cantarolou:
Filagranata, bela bela,
Joga sua trança, aquela,
Para a avó, pela janela.
O outro pombo respondeu:
– Sim, senhora, eu me lembro disso agora.
O príncipe, ao escutar essa segunda fala, lembrou-se de ter estado numa
torre sem porta e de ter ele mesmo cantarolado tais versos.
– Você se lembra – continuou o primeiro pombo – como fomos felizes
juntos depois que eu o puxei para dentro da torre? Crruu, crruu. Você jurou
que me levaria contigo e que para sempre estaríamos juntos.
O segundo pombo respondeu:
– Ah, sim! Eu me lembro disso agora!
Na mente do príncipe surgiu então a doce face que ele uma vez olhou
com tão amorosos olhos, a da moça para quem ele havia jurado seu amor e
devoção pelo resto da vida.
Mas o primeiro pombo ainda disse:
– Você se lembra, ou terá se esquecido, de como fugimos juntos e como
tivemos medo da bruxa que nos perseguia? Crruu, crruu. E que nos
ajudamos e juramos que, se ela nos alcançasse, morreríamos juntos, nos
braços um do outro? Crruu, crruu. Você se lembra que eu o avisei que você
não poderia beijar ninguém, nem mesmo sua mãe, até depois do nosso
casamento?
– Sim! Ah, sim! Eu me lembro disso agora!
Quando o segundo pombo por m disse isso, todo o passado voltou à
memória do príncipe, com toda a dimensão de seu amor por Filagranata.
Ele se levantou e fez menção de pegar nas mãos cada um dos pombos, mas
assim que os tocou eles derreteram e os confeitos se esparramaram pela
mesa, sendo logo devorados pelos convidados. O príncipe correu para
encontrar Filagranata e a trouxe para o banquete, sentando-se ao lado dela.
Quanto à segunda noiva, ela foi mandada embora de volta para o reino de
onde viera (e cou bem zangada, coitada).
En m, tudo cou bem e o príncipe e a princesa foram muito felizes. Que
tempo de sorte! Já não há mágicas nos dias de hoje que coloquem tudo de
volta em seus lugares!
Catarina
a partir de A sorte de Catarina, de Laura Gonzenbach
ilustração de Hanna Gomes

Era uma vez um mercador que guardava um enorme tesouro, tão grande
que o fazia mais rico do que qualquer rei do mundo. Além de sua riqueza,
esse mercador tinha uma lha, sua única lha, chamada Catarina, e ela era
mais bonita que o sol. Um dia, estava Catarina em seu quarto quando a
porta subitamente se abriu. Uma dama alta e bela entrou. Ela tinha uma
roda nas mãos.
– Catarina – ela disse –, quando você prefere desfrutar sua vida, durante
sua juventude ou durante sua velhice?
Catarina encarou-a espantada e não conseguiu se recompor para
responder. A bela dama perguntou novamente:
– Quando você prefere desfrutar sua vida: durante sua juventude ou sua
velhice?
Então Catarina pensou: “Se eu disser na juventude, terei de sofrer na
velhice. Sendo assim, é melhor eu desfrutar a vida na velhice e colocar-me
nas mãos de Deus durante minha juventude”.
– Na minha velhice! – ela respondeu.
– Que seja como você deseja! – disse a outra, girando a roda que trazia
nas mãos e desaparecendo em seguida.
Aquela bela e alta dama não era outra senão a Sorte de Catarina.
Alguns dias depois, o mercador, pai de Catarina, recebeu a notícia de que
vários de seus navios haviam naufragado numa tormenta. Mais alguns dias
se passaram e ele soube que outros de seus navios também haviam virado.
Para encurtar a história, no prazo de um mês ele perdeu toda a sua
fortuna e teve de vender o que lhe sobrara. O dinheiro dessas vendas ele
também não demorou a perder e acabou pobre e triste. Dali a car doente
foi um passo, e a doença e a tristeza o levaram à morte.
Catarina viu-se completamente sozinha no mundo, sem ninguém para
cuidar dela. Também sem um tostão, pensou que pudesse procurar trabalho
em outro canto. Caminhou até a cidade mais próxima, onde passou a vagar
pelas ruas. Foi quando se deparou com uma bonita senhora debruçada
numa janela.
– Nobre senhora, eu gostaria de um trabalho para me sustentar. Será que
não poderia me empregar?
A dama contratou-a como serva, e Catarina desde logo se mostrou uma
boa aliada.
Depois de alguns dias, ao cair da tarde, a patroa disse a Catarina:
– Vou sair esta noite, não me espere acordada.
– Está bem – respondeu Catarina.
Assim que ela partiu, Catarina, que ainda tinha trabalho a fazer, pôs-se a
costurar. Subitamente, a porta se abriu e a Sorte cruzou o seu caminho outra
vez.
– Então aqui está você, não é, Catarina?! – ela gritou. – E você pensa que
vou deixá-la em paz?
Dizendo essas palavras, a Sorte correu para o guarda-roupa, pegou os
vestidos da patroa e começou a rasgá-los até reduzi-los a farrapos.
“Ai de mim”, pensou Catarina, “Quando minha patroa chegar e encontrar
seus vestidos nessas condições, ela certamente vai me denunciar às
autoridades!”.
Com medo, Catarina fugiu. Mas a Sorte voltou, recolheu aqueles trapos e
os reconstituiu, devolvendo os vestidos novamente intactos a seus devidos
lugares. Quando a patroa voltou para casa, chamou por Catarina, mas não
encontrou a jovem em lugar nenhum.
Catarina retomou sua caminhada até chegar à próxima cidade. Enquanto
vagava pelas ruas, uma outra senhora, debruçada à janela, perguntou-lhe:
– Onde você vai assim sozinha, menina?
– Ah, nobre senhora, procuro algum emprego para ganhar a vida. Você
faria a bondade de me empregar?
A dama a empregou. Catarina passou a servi-la e pensou que, nalmente,
havia encontrado alguma paz.
No entanto, isso durou só alguns dias. Numa noite em que patroa estava
fora, a Sorte reapareceu e dirigiu-lhe palavras ásperas:
– Aí está você! Você realmente achou que me escaparia?
E, enquanto dizia isso, a Sorte correu para a sala de jantar e começou a
quebrar toda a porcelana da casa. Catarina fugiu, temendo por sua vida.
Passados alguns dias, já noutra cidade, ela pediu emprego a uma senhora,
em uma terceira casa.
– Eu gostaria muito de empregá-la, mas você precisará fazer algo para
mim todos os dias, e não sei se você tem força para fazê-lo – respondeu a
senhora.
– Diga-me o que é – disse Catarina – e eu farei caso seja possível.
– Está vendo aquela montanha lá longe? – perguntou a dama. – Bem,
todas as manhãs você deverá carregar um tabuleiro grande, com pães
recém-assados, até o topo. Quando chegar lá em cima, deverá chamar em
voz alta: “Oh, Sorte de minha patroa! Oh, Sorte de minha patroa! Oh, Sorte
de minha patroa!”. Assim mesmo, três vezes. Então, minha Sorte aparecerá e
levará os pães.
– Farei isso com prazer – respondeu Catarina e, assim, foi contratada.
No primeiro dia, Catarina chegou ao topo da montanha e fez o que lhe
fora dito. Ao terceiro chamado, a Sorte apareceu e pegou todos os pães.
Ao voltar para casa, ela tomou coragem e contou à patroa toda a sua
história. A patroa pensou, pensou e disse:
– Sabe do que mais, Catarina? Às vezes é preciso renegociar com a nossa
Sorte. Amanhã, quando levar os pães ao topo da montanha, pergunte à
minha Sorte se ela poderia convencer a sua Sorte a deixá-la em paz. Talvez
isso possa ajudar.
O conselho agradou a Catarina, que na manhã seguinte, quando levou
pães à Sorte de sua patroa, contou-lhe sua história e pediu:
– Oh, Sorte de minha patroa, por favor peça à minha Sorte para não me
perseguir mais.
– Pobre garota... – respondeu a Sorte da patroa. – Sua Sorte, como todas
nós, as Sortes, está embrulhada em sete capas e não pode escutar você. Sua
patroa, quando descobriu isso, deu um jeito de vir até aqui para me agradar.
Pois eu também era, para ela, uma Sorte um tanto instável. Quando você
vier amanhã, eu a levarei para ver a sua.
Depois que Catarina partiu de volta para casa, a Sorte da patroa foi até a
Sorte de Catarina e disse:
– Querida irmã, por que não para de fazer a pobre sofrer tanto? Deixe
que ela aproveite alguns dias felizes de novo.
– Não sei não. Traga-a para mim amanhã – respondeu a Sorte de
Catarina. – Quero dar-lhe alguma coisa que, se ela for esperta, poderá ajudá-
la a sair do sofrimento em que se encontra.
Na manhã seguinte, quando Catarina levou os pães ao topo da montanha,
levou também um ramo de ores consigo. A Sorte de sua patroa a levou para
visitar sua própria Sorte, que estava mesmo embrulhada em sete capas.
Catarina fez uma reverência e entregou-lhe as ores. O presente pareceu ter
agradado, e a Sorte ofereceu em troca um corte de seda com a seguinte
recomendação:
– Guarde este tecido em lugar seguro. Ele poderá lhe ser bem útil.
Catarina voltou para casa e contou à patroa:
– Minha Sorte me deu de presente um corte de seda. O que vou fazer com
ele? Esse pedaço de tecido não deve valer grande coisa...
– Bem – respondeu a patroa –, eu o guardaria em um lugar protegido. Ele
pode trazer algum bem a você. Gostei da ideia das ores. A partir de
amanhã, você sobe com pães e também com dois ramos de ores para as
nossas duas Sortes. Vamos ver o que acontece.
Passado algum tempo, aconteceu que o jovem rei estava para ser coroado
e desejou que uma roupa especial fosse feita para a ocasião. Enquanto o
alfaiate fazia o belo traje, ele notou que faltava um pedaço de seda. Não
podendo encontrar tecido parecido em lugar nenhum do reino, o rei
mandou anunciarem por todo o território que aquele que tivesse uma seda
como a das amostras que carregavam deveria levá-la à corte e seria bem
pago por isso. Um dia, o mensageiro bateu à porta da casa em que Catarina
trabalhava e pediu para ser levado à dona da casa. Minutos depois, a patroa
a chamou à sala:
– Catarina, veja essa amostra na mão do mensageiro. Parece-me que seu
corte de seda é dessa cor. Leve-o ao rei, que vai recompensá-la com um belo
presente.
Catarina colocou suas melhores roupas e foi para a corte. Quando se
apresentou diante do rei, estava tão bonita que ele não pôde tirar os olhos
dela.
– Majestade – disse ela –, trouxe-lhe um corte de seda da cor que não
pode ser encontrada.
Um dos ministros disse contente:
– É mesmo, Majestade. Sugiro darmos a essa jovem o peso do corte de
seda em ouro!
O rei concordou, e uma balança foi trazida ao salão. O corte de seda foi
colocado num dos pratos. No outro, várias moedas de ouro.
Adivinhem o que aconteceu? Não importava quantas moedas de ouro o
rei pusesse no prato, o corte de seda pesava sempre mais!
O rei ordenou que trouxessem uma nova balança, maior e mais precisa, e
ela foi trazida. Mas a mesma coisa aconteceu. Um dos pratos já estava
abarrotado de moedas de ouro, mas ainda assim a balança pendia para o
lado do corte de seda.
Finalmente o rei tirou sua coroa da cabeça e a colocou sobre as centenas
de moedas. Só então o prato abarrotado de ouro cedeu e a balança entrou
em equilíbrio.
– Onde você conseguiu essa seda? – perguntou o rei.
Catarina então contou-lhe toda a sua história – e o fez com tanta graça
que, antes que pudesse terminar, o jovem rei já estava apaixonado. Ele foi
coroado e, em seguida, pediu a mão de Catarina em casamento.
A jovem, depois de tanto sofrer, foi feliz e ditosa a partir de então – e,
ainda assim, feliz e ditosa, ela deve permanecer, enquanto nós, aqui, mal
conseguimos pagar o aluguel!
Bete Felpuda
a partir de Beta Pilusa, de Laura Gonzenbach,
e de Maria de Madeira, de Rachel Busk
ilustração de Jess Vieira

Era uma vez um homem rico que vivia uma vida tranquila ao lado de sua
boa mulher e de sua única lha. Mas, um dia, sua mulher adoeceu e cou à
beira da morte. Quando percebeu que estava para morrer, ela chamou o
marido e disse:
– Querido, eu vou morrer logo e deixarei essa criança em suas mãos.
Prometa-me que você não permitirá que ela se case até encontrar um
homem que possa usar este anel no dedo anular. – E, tão logo lhe mostrou o
anel, ela morreu.
A lha deles cresceu, cando mais bonita a cada dia que se passava. Num
belo dia de primavera, veio se hospedar na casa deles um rapaz, que o rico
homem recebeu com toda a pompa.
Ao bater os olhos na garota, o rapaz logo disse ao seu pai que desejava se
casar com ela. O pai, achando o rapaz muito simpático, perguntou à jovem o
que ela achava da ideia. A lha então lembrou-o da promessa feita à mãe.
Mas os dois, mesmo procurando em toda parte, não encontraram o anel.
O rapaz, que insistia em car noivo, tratou de estender a estadia na casa
deles. A moça, incomodada, pediu para ir visitar a madrinha. O pai
consentiu e lá foi ela: contou tudo à madrinha, tim-tim por tim-tim.
– Que coisa mais estranha esse moço aparecer assim tão de repente e a
pedir em casamento. E mais estranho ainda é não acharem o anel. Ele não
estava na caixa de joias dela?
A menina garantiu que haviam olhado em tudo. A madrinha então
aconselhou:
– Diga a seu pai que para pensar em compromisso você precisa se sentir
adulta, e isso só vai acontecer se tiver um vestido da cor do céu, com o sol, a
lua e as estrelas estampados nele.
A garota voltou para casa, foi até o pai e fez tudo como elas haviam
combinado. Um vestido como esse não é fácil de se conseguir, mas o pai
acabou falando sobre o assunto com o candidato a noivo. E não é que ele
tinha um vestido exatamente daquele jeito em sua bagagem? E do tamanho
exato da moça!
A ideia do casamento a horrorizava, ainda mais depois de ela ter de ouvir
o sujeito numa conversa in nita, antes, durante e depois do almoço. À tarde,
naquele mesmo dia, a jovem disse ao pai que precisava visitar a madrinha
novamente. Ela foi até lá e lhe contou tudo, tim-tim por tim-tim.
A madrinha pensou, pensou e disse:
– Diga a seu pai que para pensar em noivado você precisa de um vestido
da cor do mar, com peixes, crustáceos e algas incrustados nele.
Então ela voltou para casa e pediu ao pai o tal vestido. O pai procurou
pelo vestido em muitos lugares e, claro, não pôde achar. O rapaz, ao ser
consultado, disse ter um vestido exatamente assim em sua bagagem, e que
gostaria muito de oferecê-lo de presente à sua futura esposa.
Quando viu o vestido, a moça se desesperou, mas precisou aceitá-lo e
escutar aquele rapaz estranho por todo o jantar até a hora de ir dormir,
tempo em que ele passou falando das maravilhas de sua propriedade rural.
No dia seguinte, ela saiu cedo de casa, sem dizer nada, e foi até a casa da
madrinha. Chegando lá, vocês já sabem, contou-lhe tudo, tim-tim por tim-
tim.
A madrinha suspirou e disse:
– Diga a seu pai que para pensar em casamento você precisa de um
vestido da cor da terra, com animais, plantas e ores estampados nele. Mas
espere, leve com você os dois pombos que estão nesta caixa. Se vir que as
coisas não estão dando certo, venha para cá, mas antes deixe os pombos
soltos no seu quarto, junto com uma bacia grande e cheia d’água. Ah, uma
última coisa: antes de fechar a porta do quarto, dê uma generosa cusparada
no chão.
A moça, é claro, estranhou as instruções, especialmente a parte de cuspir
no chão. Mas como con ava muito em sua madrinha, voltou para casa e fez
exatamente o que ela havia mandado.
O pai, que já começava a se aborrecer com toda aquela história de
vestidos, noivado e casamento, dirigiu-se ao quarto do rapaz, bateu na porta
e perguntou-lhe se por acaso ele teria em suas coisas um vestido da cor da
terra e com os animais, as plantas e as ores estampados nele.
Adivinhem! Sim, o pretendente trazia consigo um vestido exatamente
como aquele.
A moça vestiu o vestido na hora do lanche, e pelo resto do dia teve que
aturar a conversa mole do sujeito por um número de horas que lhe pareceu
in nito. Foi dormir exausta e, tão logo o dia clareou, pegou seus três
vestidos e mais meia dúzia de coisas, amarrou tudo numa trouxa, encheu a
bacia d’água, soltou os dois pombos no quarto e, antes de sair, deu uma
cusparada no chão.
Foi embora e chegou à casa da madrinha bem na hora do café da manhã.
Colocada a par de tudo, tim-tim por tim-tim, a madrinha foi até seu guarda-
roupas e voltou carregando um feio casaco feito de pele de gato cinza.
Enquanto isso, na casa da moça, o pai estranhou que ela estava atrasada
para o café da manhã e bateu na porta de seu quarto.
– Papai, já vou. Estou fazendo a toalete – respondeu o cuspe!
E os pombos, que eram amestrados, se meteram na bacia, fazendo
barulho e espalhando água pelo chão.
A madrinha aconselhou a moça a vestir o casaco de pele de gato cinza e
partir. Garantiu-lhe que, quando precisasse voltar, ela estaria ali para ajudá-
la. As duas se abraçaram e ela então partiu, com a trouxa debaixo do braço.
Enquanto isso, na casa dela, o pai batia novamente na porta e o cuspe,
que àquela altura era um cuspezinho quase seco, respondeu:
– Papai, já vou! Estou terminando a toalete!
E os pombos colaboraram fazendo o ruído de água mais ruidoso que
conseguiram.
Agora deixemos o pai esperando diante da porta, a bacia d’água, os
pombos, o cuspe falante dentro do quarto – e o candidato a noivo sentado à
mesa –, e vamos acompanhar nossa mocinha.
Com lágrimas nos olhos, ela caminhou até chegar a uma densa oresta
onde, por puro acaso, o jovem rei estava caçando. Quando ele viu uma
aparição cinza e meio corcunda em meio às árvores, achou que fosse um
animal esquisito e quase atirou na menina. Mas ela percebeu o movimento
do homem e gritou:
– Não atire!
O rei cou muito espantado com o fato de que um animal pudesse falar e
disse:
– Um bicho falante! Diga-me, que bicho você é?
– Não sou bicho, sou uma pobre empregada. Meu nome é... Bete Felpuda.
O rei pensou que por pouco não matara a pobre coitada, corcunda e com
aquela pelagem tão feia (a corcunda não era uma corcunda de verdade, e
sim a trouxa que a moça trazia no ombro).
– Certo, Bete Felpuda, você gostaria de vir comigo para meu castelo? Há
sempre trabalho extra por lá – disse ele, compadecido.
Ela aceitou. Quando chegaram ao castelo, o rei perguntou onde ela
gostaria de viver.
– No galinheiro – ela respondeu.
Daquele momento em diante, a jovem viveu no galinheiro e cuidou das
galinhas. O rei, que tinha gostado de conversar com ela, procurava-a todos
os dias, sempre com uma comida deliciosa para partilharem.
– Você sabe, Bete Felpuda, vou me casar em breve e haverá três dias de
festividades – disse-lhe um dia. – Hoje haverá um baile. Você quer ir?
– Como eu poderia ir ao seu baile? – ela resmungou. – Deixe-me em paz!
Quando a noite chegou, no entanto, ela tirou a capa de gato e desejou ter
uma camareira – pois quem quer que possuísse aqueles três vestidos poderia
desejar qualquer coisa que o desejo se realizaria. E não é que uma camareira
apareceu e ajudou Bete Felpuda a lavar e pentear os cabelos? Depois, a
camareira a ajudou a colocar o vestido com o sol, a lua e as estrelas e a
adornou com parte das joias que acompanhavam o vestido. Então, Bete
Felpuda desejou uma carruagem e belos cavalos, e um cocheiro em um
garboso uniforme a levou até o baile.
Assim que apareceu no salão, todos puseram os olhos nela. Estava
lindíssima! O rei deixou a noiva esperando e dançou toda a noite com a
moça. A certa altura, deu-lhe de presente uma agulha de ouro. Quando o
baile estava perto de terminar, Bete Felpuda saiu correndo. O rei, pego de
surpresa, gritou:
– Sigam aquela dama! Descubram para onde está indo!
Mas ela jogou tantas joias da carruagem que os guardas se deslumbraram
e a perderam de vista. Distante de seus perseguidores, a moça voltou para o
galinheiro e se apressou em colocar de volta seu casaco de pele de gato cinza.
Quando os festejos daquela noite terminaram, o rei apareceu para mais uma
visita:
– Ah, Bete Felpuda, se você pudesse ver a linda dama que esteve hoje no
baile! Ninguém sabe quem ela é, de onde veio e para onde foi...
– O que me interessa sua bela dama? – interrompeu Bete Felpuda. – Eu
estava descansando e você me acordou! Mas você é desocupado, hein?
O rei não sabia explicar por que gostava daquela jovem tão esquisita e
malcriada, mas era assim e pronto. Ela o escutava e era como se o
compreendesse. Mesmo assim, parecia bem zangada, e ele preferiu deixar o
resto da conversa para outro dia.
Na manhã seguinte, o rei passou pelo galinheiro e disse:
– Bete Felpuda, hoje é o segundo baile. Você gostaria de ir?
– Você está caçoando de mim? – ela perguntou. – Deixe-me em paz!
À noite, no entanto, ela se arrumou novamente e, com o vestido da cor do
mar incrustrado de peixes, crustáceos e algas e um colar de pérolas, cou
ainda mais linda do que da primeira vez.
Quando Bete Felpuda entrou no salão, os convidados caram admirados
com sua incrível beleza. O rei dançou somente com ela a noite toda e deu-
lhe um relógio de prata de presente. Naturalmente, sua noiva quase
enlouqueceu de ciúme e inveja. O rei preveniu os guardas para que
prestassem atenção a cada passo da bela dama. Porém, quando a festa
acabou e ela saltou para dentro da carruagem, eles não acharam seu rastro,
maravilhados que estavam com as pérolas que ela havia atirado no chão.
Embora o rei tenha cado muito zangado, isso não ajudou em nada. Bete
Felpuda voltou para o galinheiro e tornou a se vestir com o seu casaco.
Quando o rei foi novamente falar com ela, contou-lhe de novo sobre a
linda donzela. Como resposta, não recebeu mais que uns grunhidos.
Depois de dois dias, o rei voltou ao galinheiro e disse:
– Bete Felpuda, hoje haverá outro baile, e desta vez eu preciso saber quem
é aquela dama.
Ela só deu de ombros e disse que ele não passava de um bobalhão.
O rei deu risada de sua falta modos. À noite, antes que os primeiros
convidados chegassem ao salão, ele mandou reunir os empregados do
castelo e ameaçou:
– Se vocês não descobrirem quem é aquela dama no baile de hoje, estarão
todos na rua!
Naquela noite, Bete Felpuda vestiu seu vestido da cor da terra com
animais, plantas e ores e adornou-se com as joias que tinham sobrado.
Quando ela apareceu no salão, estava ainda mais bonita do que nos bailes
anteriores. A noiva do rei de novo entrou em desespero, porque ele voltou a
dançar com aquela donzela misteriosa e no m deu-lhe um precioso anel de
brilhantes. Quando a moça fugiu, os empregados não conseguiram
acompanhá-la, pois ela atirou grãos de milho no caminho (sim, o milho
com o qual alimentava as galinhas) e eles, coitados, escorregaram e caíram.
Rindo, Bete Felpuda voltou para o galinheiro. Desta vez, no entanto, ela
não tirou seu belo vestido, mas colocou o casaco de pele de gato cinza sobre
ele.
Quando o rei soube que a bela jovem havia sumido, cou furioso. Os
empregados explicaram que nada puderam fazer. Havia tantos grãos de
milho no caminho que todos, todos mesmo, terminaram no chão.
Então o rei, desolado, foi procurar por Bete Felpuda. De tanta tristeza,
estava adoecendo.
– Ela desapareceu, pela terceira vez, sem nem deixar rastro – ele se
lamentou.
Mas a moça apenas resmungou:
– Que me importa sua bela dama? Deixe-me em paz!
O rei foi dormir pensando nela. Na manhã seguinte, quando o cozinheiro
amassava o pão que seria levado à mesa do rei, Bete Felpuda foi até a
cozinha e pediu um pequeno pedaço de massa.
– Gostaria de fazer um pãozinho para mim – ela disse.
O cozinheiro, que também tinha amizade com ela, atendeu ao pedido.
Então ela começou a preparar a massa e dentro dela escondeu a agulha de
ouro que o rei havia lhe dado naquela primeira noite de baile.
– Certo – disse ela –, agora você tem de colocar esse pãozinho no forno.
O cozinheiro fez o que ela pediu – e vocês não imaginam o que
aconteceu! Quando o cozinheiro retornou ao forno para retirar os pães
assados, todos haviam queimado, exceto o pãozinho de Bete Felpuda.
– Oh, Bete Felpuda, me dê seu pão para que eu o leve ao rei! – pediu o
cozinheiro.
E ela, como se lhe zesse um grande favor, cedeu.
– Hoje o pão está especialmente apetitoso – comentou o rei à mesa.
Ao cortar uma fatia, encontrou a agulha de ouro e mandou chamar o
cozinheiro.
– Quem cozinhou este maravilhoso pão?
O cozinheiro não quis dizer a verdade:
– Fui eu, Vossa Majestade. Fui eu que assei o pão.
O rei achou que era mentira, mas cou em silêncio e guardou a agulha de
ouro de bolso. Na manhã seguinte, Bete Felpuda foi à cozinha enquanto o
cozinheiro preparava a massa.
– Ontem você tomou meu pãozinho, então agora você deve me dar um
pouco de massa novamente. Mas hoje eu vou comer meu próprio pão.
O cozinheiro deu-lhe um pedaço de massa, e dentro dele ela escondeu o
relógio de prata.
Quando chegou a hora de tirar a fornada, tudo havia queimado
novamente. Apenas o pãozinho que Bete Felpuda tinha preparado estava
salvo. Uma vez mais, o cozinheiro pediu que ela lhe desse o pão, e assim o
rei encontrou também o relógio de prata. Quando perguntou quem o tinha
preparado, ouviu a mesma resposta:
– Fui eu, Vossa Majestade.
No terceiro dia, Bete Felpuda cozinhou outro pão e nele escondeu o anel
de brilhantes. Como nos outros dias, a fornada do cozinheiro se perdeu,
restando apenas o pãozinho que guardava o anel, branco e macio. O
cozinheiro repetiu o pedido, ela concordou.
Desta vez o rei descon ou: “Hoje o anel deve estar lá dentro”. E ele estava
certo. Mandou vir o cozinheiro:
– Se você me disser a verdade sobre quem assou este pão, vou promovê-lo
agora mesmo!
O cozinheiro cou um pouco envergonhado e resolveu, en m, contar ao
rei tudo o que havia acontecido.
– Mandem Bete Felpuda vir aqui já! – ordenou o rei.
Quando ela apareceu, ele dispensou os empregados, fechou as portas do
salão e disse:
– Em três dias eu encontrei a agulha, o relógio e o anel no meio do pão
que você assou. São os presentes que eu dei àquela dama no baile. Você não
é a simples criada que quer que acreditemos que seja. Então, me diga: quem
você realmente é?
– Eu sou só Bete Felpuda – ela respondeu –, e eu não sei de que agulha,
relógio e anel você está falando.
Então o rei insistiu e insistiu, chegando cada vez mais perto dela. Bete
Felpuda tirou o casaco de pele de gato cinza e revelou quem realmente era, a
linda donzela do baile em seu mais belo vestido, cor de terra.
O rei a tomou nos braços e disse:
– Você se tornará minha noiva!
Então a moça pediu que avisassem seu pai e também sua madrinha, para
que viessem o quanto antes para o casamento. Quando os dois chegaram ao
reino, o reencontro foi muito feliz.
– Minha lha, como fui ingênuo – disse o pai. – Aquele homem era um
ladrão. Fugiu pouco depois de você, levando boa parte das joias da casa. Não
fosse sua esperteza e o bom conselho de sua madrinha, eu não sei o que teria
acontecido. Você estava em perigo e eu não percebi.
A madrinha revelou os detalhes:
– Minha lha, o ladrão foi capturado logo depois, aboletado na casa de
um marquês que tinha uma lha, e onde ele estava hospedado. Claro que ele
pretendia se casar com ela! Uma vez desmascarado, todas as joias que ele
roubou da casa do seu pai foram devolvidas. O anel de sua mãe também...
aqui está ele.
Bete pegou o anel e, por um momento, temeu que ele não coubesse no
dedo anular do rei. Mas foi ao encontro dele e pediu que o experimentasse.
Sim, servia perfeitamente.
Logo depois celebrou-se o casamento. O rei e a jovem rainha viveram
felizes e deleitados. Naquele dia, Bete, o rei, o pai, a madrinha e todos os
convidados comeram até car estufados – e nós continuamos aqui,
contando os centavos.
A Boa Mãe
a partir de A Boa Mulher, de Charlotte Rose de Caumont de La Force

Houve uma vez uma dama de grande bondade, que era honesta, franca e
muito corajosa. Vivia numa corte grandiosa e, talvez por falha da sorte,
talvez por suas qualidades – que por vezes perturbam os que vivem perto do
poder – sofria muitos dissabores.
Um dia, decidida a não mais viver num lugar onde os seus sentimentos
não tinham valor, ela partiu sozinha para bem longe, querendo tanto se
esquecer do lugar em que vivera, quanto também ser esquecida por todos os
que viviam naquela região.
Encontrou um lugar longínquo onde construiu uma casa simples, com
quintal e uma horta de onde pretendia tirar seu sustento. Com os recursos
que lhe restavam, comprou algumas ovelhas para ter leite o ano todo e
agasalho no inverno. Habilidosa no manejo da roca de ar, ela já antevia as
alegrias de passar as muitas horas da estação mais fria do ano ando e
pensando.
Tão logo se instalou e se acostumou com sua nova vida de trabalho e
solidão, a dama sentiu que tinha tomado a decisão certa. Porém, numa tarde
em que voltava para casa pastoreando suas ovelhas, elas se assustaram e
fugiram. A dama cou espantada e pensou: “Será que há um lobo por aqui?”.
Mas, aparentemente, não havia lobo algum e, após procurar por algum
tempo suas ovelhas, ela se sentou debaixo de uma árvore para descansar. De
repente, surgiram três crianças pequenas, belas como o mais belo dos dias, e
que, ao vê-la, correram em sua direção. A dama abraçou as crianças e
brincou um pouco com elas. Vestidas com grande pompa, cada uma delas
trazia um cordão no pescoço, com um pequeno pingente em forma de fruta.
As crianças – duas meninas que deviam ter dois ou três anos, e um
menino que andava pelos três – não souberam responder às perguntas que a
dama fez e a deixaram sem explicações.
Esperou para ver se aparecia alguém para buscá-las. Como já estava
anoitecendo, a dama as conduziu para sua própria casa. Ao acomodar os
pequenos hóspedes para dormir, a dama olhou melhor para os colares. Um
deles, pertencente a uma das meninas, tinha uma pequena cereja com o
cabo dourado onde estava gravado um nome: Lirette. A outra menina tinha
em seu colar um pequeno cacho de uvas onde estava gravado: Mirtis. Já do
colar do menino pendia uma pera e o nome gravado era Filipe.
Os cabelos das três crianças estavam ornamentados com pequenos pentes
nos quais havia várias pedras preciosas. A boa dama removeu os pentes para
que não os machucassem e desejou-lhes uma boa noite de sono:
– Então, meus queridos, que belos nomes vocês têm! Lirette, Mirtis e
Filipe. Durmam bem e vamos ver o que o amanhã nos trará.
Os dias se passaram e ninguém veio procurar pelas crianças. A dama
chegou à conclusão de que o céu lhe havia dado um presente: um pequeno
rebanho humano para cuidar e, sábia como era, aceitou-o com alegria. Um
dia, a dama foi com eles até o povoado mais próximo. Ali vendeu os pentes e
adquiriu um novo rebanho de ovelhas, algumas galinhas, três cachorros e
tudo o que pensou que sua nova família fosse precisar.
Começaram uma vida de alegria e colaboração: os pequenos ajudavam no
pastoreio, na horta e no jardim. À noite, quando as crianças já dormiam, a
dama ava e dizia consigo mesma:
– De onde vieram esses meus lhos? Será que são irmãos?
O tempo passou sem lhe trazer qualquer resposta, mas os três cresceram
felizes e muito amigos. Numa noite de verão, quando estavam do lado de
fora da casa conversando, Filipe disse:
– Mamãe, já faz muitos anos que chegamos aqui.
– É mesmo, meu lho, quando o outono vier, fará quinze anos daquele
dia em que eu os encontrei no bosque.
– Mamãe, você sabe o que querem dizer essas frutas em nossos colares? –
perguntou Mirtis.
– Não sei, minha lha, mas agradeço todos os dias vocês terem chegado
em minha vida.
Lirette disse:
– Ah, eu gostaria que essa minha cereja fosse mágica, mamãe, e que me
concedesse desejos!
– É mesmo, lhinha, e o que você desejaria? – gargalhou a mãe.
Lirette não parou muito para pensar. Segurou a cereja entre seus dedos e
desejou:
– Cereja, eu gostaria de ter uma casa toda enfeitada de rosas.
Assim que ela acabou de falar, ouviram um ruído e Mirtis exclamou:
– Olhem! Nossa casa!
No lugar da casa simples em que viviam, havia surgido um palacete com
o telhado todo enfeitado de rosas. Eles entraram no palacete e se depararam
com uma roseira num enorme vaso, ocupando um dos cantos de uma sala,
que agora estava muito bem mobiliada. Um corredor amplo levava a quatro
quartos, um para cada um deles, cada qual com uma roseira num vaso
precioso bem no centro do cômodo, com rosas de cores diferentes: brancas
para a Boa Mãe, amarelas para Mirtis, vermelhas para Lirette e vermelho-
escuras para Filipe.
Correram para ver a cozinha, onde uma moita de rosas silvestres pendia
de um vaso suspenso bem perto da porta.
– Ah, quer dizer que basta desejar? Então, meu cacho de uvas, por favor
nos conceda um jardim ainda mais bonito do que o nosso.
Saíram os quatro para encontrar o mais belo jardim jamais visto. Os
jovens corriam ao redor dos canteiros e das diversas fontes que haviam
surgido com o novo jardim.
A Boa Mãe, extasiada diante de tanta beleza, parava em cada recanto para
apreciar as mais diversas ores, as ervas aromáticas e os arbustos belíssimos
e bem cuidados, que haviam aparecido.
– Filipe, peça alguma coisa! – exclamou Lirette.
O rapaz cou alguns instantes pensativo e depois respondeu:
– Eu tenho tudo o que quero, o amor de vocês, nossa casa, agora ainda
mais bonita. O que mais posso desejar? Vou guardar o meu desejo para uma
próxima ocasião.
Enquanto a Boa Mãe se aproximava deles, ouviu Filipe e, contente,
respondeu:
– Muito sensato, meu lho. Temos tudo de que necessitamos...
Mas acontece que, há algum tempo, Filipe sentia crescer sua afeição por
Lirette e, mais tarde, já em seu quarto, disse em voz alta:
– Minha pera, eu desejo que se forme uma oresta aqui bem perto de
nossa casa e que nela venha caçar um príncipe que poderá se apaixonar por
Mirtis, para que formemos duas famílias.
Acordada ando e pensando, a boa mulher ouviu um ruído intenso e
sentiu passar por debaixo da porta um vento carregado do perfume da seiva
das árvores. Ela pensou: “Ah, meu lho querido, você pediu alguma coisa,
não foi?”.
No dia seguinte, Mirtis e Filipe saíram para pastorear o rebanho,
enquanto Lirette e a mãe cuidavam da casa e da horta. Ao cruzarem o
campo para onde levavam o rebanho todos os dias, Mirtis notou um maciço
de árvores que nunca estivera ali:
– Filipe, o que é aquilo?
– Ah, é a minha oresta, Mirtis.
– Sua oresta? Como assim?
– Eu desejei uma oresta, Mirtis, para que nós quatro possamos passear e
ver animais selvagens.
Mirtis riu:
– Ah, eu pensei que você fosse desejar cavalos ou uma charrete nova....
pois estamos precisando!
Pouco depois, como era de se esperar, o príncipe veio caçar e, ao longe,
vislumbrou Mirtis e Filipe sentados conversando. Aproximou-se deles e se
apresentou:
– Olá, como vão? Eu sou Jean. Vocês vivem por aqui? Nunca tinha visto
esta oresta antes!
Mirtis e Filipe partilharam seu lanche com Jean e depois o convidaram a
ir com eles até sua casa.
A Boa Mãe regava seus canteiros de hortaliças quando os viu chegando.
Mesmo distante da corte, ela sabia que aquele era o príncipe Jean, lho
único de um rei muito tirano daquela região. Foi ao encontro deles e deixou
que seus lhos a apresentassem:
– Mamãe – disse Filipe –, trouxemos um amigo para jantar, o nome dele é
Jean.
– Príncipe Jean, eu suponho – disse a Boa Mãe, com um sorriso
acolhedor.
Jantaram, conversaram e Jean foi convidado a pernoitar, visto que já era
muito tarde.
Enquanto isso, no castelo, a rainha e o rei se preocupavam com Jean, que
não voltara nem mandara notícias. A rainha não pensou duas vezes: como
conhecia o péssimo gênio do marido, foi para sua sala de música, abriu a
janela e chamou, baixinho, pela Fada Tutu, sua conselheira e amiga, que logo
se materializou à sua frente:
– Majestade! – disse Tutu e foi ao encontro da rainha para abraçá-la.
A rainha recebeu Tutu com muito carinho e confessou sua preocupação
com a demora de Jean em voltar para casa.
– Vamos já olhar minha bola de cristal, Majestade! – disse Tutu,
revirando a grande bolsa que trazia consigo.
Minutos depois, ela tranquilizou a soberana.
– Vejo que Jean está num palacete cheio de rosas não longe daqui,
acolhido por uma família amorosa.
– Ah, que alívio, Tutu. Ele não costuma fazer isso.
A fada, rindo, enunciou:
– É melhor se acostumar, Majestade. Ele já é um adulto agora e, pelo que
vejo, encontrou hoje à tarde o amor de sua vida...
A rainha cou feliz e, no dia seguinte, quando Jean retornou, insistiu para
saber sobre seu passeio. O rei também quis saber quem eram as pessoas que
o lho havia visitado e não esperou mais: no nal daquela mesma tarde,
mandou atrelar cavalos à sua mais luxuosa carruagem e partiu com a rainha
e Jean para o campo.
A Boa Mãe viu, da janela da cozinha, a carruagem se aproximar, com a
apreensão ditada pela experiência. Triste, ela lastimou aos lhos:
– Meus lhos, sinto que nossa tranquilidade está ameaçada. Costuma ser
assim, aliás: o menor sopro da Fortuna perturba a calma da vida...
Ela estava certa. A família real chegou, os jovens saíram para o jardim e o
rei começou a olhar a casa e fazer perguntas:
– Que bela casa, minha dama! Há tempos vive aqui? Não me lembrava de
ter visto sua casa antes, nem de ter sido informado da sua existência...
A senhora respondia com paciência, tentando não dizer muito e se
lembrando da péssima fama do soberano, conhecido por achacar seus
súditos com a cobrança de impostos abusivos e por perturbar os reinos
vizinhos com as inúteis brigas que promovia de tempos em tempos, ansioso
por expandir seus domínios.
Os jovens voltaram para casa e foram diretamente para a mesa, mas, nem
bem o chá foi servido, o rei evidenciou o que dele se dizia, bradando:
– Guardas, prendam já essas pessoas! Elas devem ter invadido esta casa!
A rainha fez menção de argumentar, mas antes que qualquer coisa
pudesse ser feita, Filipe tomou o pingente de seu colar nas mãos e disse:
– Pera, desejo que sejamos levados para longe do poder do rei.
E Lirette acrescentou:
– Cereja, que nós quatro sejamos levados daqui.
Por m, Mirtis disse:
– Uvas, que o Príncipe Jean venha conosco.
Quando Mirtis acabou de pronunciar seu desejo, os cinco se viram diante
de um lindo castelo. Momentos depois, a porta se abriu e a Fada Tutu surgiu
e se apresentou.
– Sejam bem-vindas, pessoas queridas. Sou a Fada Tutu e meu castelo
agora é de todos nós.
Então confessou que tinha sido ela que, anos antes, havia transportado
Filipe, Lirette e Mirtis até as imediações da casa da nobre dama.
– Minha dama, a senhora se tornou a melhor das mães. Não foi um lobo
que dispersou o seu rebanho, fui eu que z isso, porque precisava chamar
sua atenção para receber três crianças que precisavam de acolhimento.
Lirette e Mirtis são irmãs e eu as resgatei do reino vizinho ao do seu pai,
Jean – a fada tou o príncipe. – Ele o havia invadido e, após a luta, as
meninas caram órfãs. E você, Filipe, é na verdade primo de Jean, lho do
irmão mais velho do rei, que morreu há muitos anos. Temi por sua
segurança, Filipe, e por isso o enviei com as meninas para ser cuidado e
educado pela mais gentil das mulheres. Dei a vocês os colares com as frutas
e sabia que, cedo ou tarde, vocês descobririam o seu poder.
A Boa Mãe estava em lágrimas:
– Fada Tutu, não tenho como lhe agradecer. Meus lhos são tudo para
mim e por eles eu moveria o mundo.
A fada a abraçou e convidou todos a entrarem. No dia seguinte, Tutu os
levou para desfrutarem de um passeio encantador pelos seus domínios:
– Vocês serão felizes aqui. Cada um se ocupará do que quiser. Jean, Filipe,
Mirtis e Lirette façam de minha propriedade o lar de vocês. Mas, atenção, os
meus domínios e o meu poder terminam no grande carvalho que vocês
podem ver dentro daquele bosque – e apontou para um grande maciço
verde que cava numa das laterais do castelo. – O carvalho é bem
chamativo: tem um tronco enorme e está cercado por um gradil de ferro
forjado. Não o ultrapassem, pois, além dele, meus poderes enfraquecem e só
consigo fazer coisas pequenas.
As semanas seguintes foram de puro encantamento e alegria. Os jovens se
divertiram e trabalharam com os rebanhos. Filipe e Lirette planejaram seu
casamento. Jean e Mirtis estavam perdidamente apaixonados e passavam os
dias entre as mais doces conversas.
O rei tirano logo soube onde estavam os jovens. Mas, protegidos pela
magia da Fada Tutu, plena em seus domínios, ele sabia que não poderia
atingi-los e passou algum tempo procurando um ardil para atraí-los.
Houve então o dia infeliz – e existem dias que são inevitavelmente
terríveis – em que Lirette, vendo um belo pássaro, o seguiu pela oresta e
ultrapassou o limite demarcado pelo carvalho. Num átimo, viu-se
prisioneira de uma força que não compreendia, mas que não permitia que
continuasse a se mover e, ao gritar por socorro, Fillipe correu ao seu
encontro, cando preso também. O pássaro era um aliado do rei, que logo
chegou para levar seus prisioneiros. Jean e Mirtis assistiram à cena
penalizados, mas, ainda em segurança, voltaram para relatar o ocorrido para
a Boa Mãe e para a Fada Tutu.
– Oh, meus queridos, como estou infeliz. Eu que tanto z para, na
simplicidade, construir uma vida feliz, estou agora nesta triste situação.
A fada propôs que os jovens descansassem e que ela e a Boa Mãe fossem à
sua biblioteca – nos livros deveria haver uma resposta!
Ambas leram por quase toda a noite, até que, ao amanhecer, a Boa Mãe
viu a fada com lágrimas nos olhos.
– É inútil, minha amiga – disse Tutu. – Não posso salvá-los.
– Eles estão mortos? – perguntou a Boa Mãe, trêmula de a ição.
– Não, mas não se pode salvá-los a não ser que uma de nós duas se
entregue ao rei para saciar sua vingança. Infelizmente, não sinto por eles
su ciente amor e nem tenho bastante coragem para ir me expor à ira de um
homem tão malvado.
– Eu irei, Fada Tutu. Nada é impossível para mim se o que está em jogo é
salvar os meus lhos. Darei a esse rei cruel todo o sangue que tenho nas
veias em troca da liberdade de Filipe e Lirette.
A Fada Tutu prometeu ajudá-la e fez surgir uma carruagem puxada por
perdizes, na qual a Boa Mãe subiu e alçou voo até as portas do palácio do
rei. Ao se despedir da Boa Mãe, a perdiz que ia à frente estendeu um de seus
pés e disse:
– Pegue este pedaço de musgo que está preso em meu pé. Quando se vir
no pior dos perigos, jogue-o aos pés do rei.
A Boa Mãe agradeceu à perdiz e avançou corajosamente para a porta do
palácio. Não demorou a ser presa e levada ao rei.
– Finalmente a vejo aqui, madame.
– Vim pelos meus lhos, peço que os solte. Pode exercer a sua crueldade
sobre mim, entrego minha vida em troca da liberdade deles.
Todos os que estavam presentes se sentiram atravessados pela emoção. A
rainha tentou falar alguma coisa, mas o rei a deteve com um só gesto.
– Pois bem, recolham-na à masmorra. Aceito a troca. Amanhã será o seu
suplício e seus lhos serão libertados após assistirem à sua morte.
Na manhã seguinte, o rei ordenou que enchessem até a superfície um
buraco bem fundo que havia no pátio, com todo o tipo de cobras que
houvesse no reino. Depois ele mesmo se aproximou da beirada e olhou para
dentro com um brilho nos olhos.
– Agora tragam a senhora e também seus dois lhos. Eles irão assistir ao
suplício.
Lirette e Filipe, amarrados, foram trazidos e deixados num canto do pátio.
Em seguida, caminhando no meio de dois guardas, a Boa Mãe avançou pelo
pátio, acenou tristemente para os lhos e encarou o rei. Ele, à beira do
buraco, lhe sorriu malvadamente.
Pensando que talvez tivesse uma última chance, ela jogou o pedaço de
musgo aos pés do rei. O pequeno pedaço cresceu em segundos, subindo, a
partir dos pés, pelo corpo do rei cruel que, indefeso e se desequilibrando,
caiu no buraco das cobras.
Os guardas, fartos da crueldade de seu soberano, nada zeram para
impedir aquela cena. Libertaram Filipe e Lirette, que correram na direção da
Boa Mãe.
A rainha se juntou a eles e, logo, os quatro estavam numa carruagem a
caminho dos domínios da Fada Tutu. Depois de algumas semanas, um
duplo casamento foi celebrado.
Depois dele, a Boa Mãe e a rainha se recolheram à casa onde as rosas
oresciam e a Fada Tutu teve, dali por diante, a agenda repleta de visitas a
fazer.
Sobre os contos deste livro

Úrsula é a tradução e adaptação do conto Uma princesa de brinquedo, de


Mary de Morgan (1850-1907), que nasceu em Londres, Inglaterra, numa
família de intelectuais. Seu pai era um famoso matemático e foi professor
universitário. Sua mãe era militante pelo voto feminino, pela ampla
educação feminina (até o terceiro grau), defensora da melhoria das
condições carcerárias e também da proibição da vivissecção de animais e,
trinta anos antes das teorias freudianas sobre os sonhos, anotava
cuidadosamente os sonhos de seus lhos, dando a eles interpretações – um
caderno manuscrito permite ver suas observações sobre sonhos infantis.
Desde a adolescência, Mary esteve envolvida com o movimento sufragista;
era parte, assim como sua mãe, da Women´s Franchise League. Trabalhou
com mulheres em situação de risco e penúria naquela que era, à sua época, a
região mais degradada de Londres. Com sua família, fez parte do círculo dos
mais importantes artistas e pensadores de seu tempo. Escreveu bastante,
tendo publicado artigos em jornais e revistas, ensaios e também três livros
de contos de fadas que caram completamente esquecidos, embora tenham
feito muito sucesso na época. Em 1902, recebeu conselho médico para se
mudar para um clima quente, devido à tuberculose que a acometia. Mary
então se mudou para o Cairo, no Egito, onde dirigiu um escritório de
datilógrafas e também uma instituição para jovens mulheres banidas das
famílias e encarceradas pelo Estado. Morreu na própria cidade do Cairo, em
1907, de complicações da tuberculose. Na primeira década do século XXI,
começam a surgir os primeiros estudos acadêmicos sobre sua obra. Uma
princesa de brinquedo (o conto que deu origem a Úrsula) está no livro On a
pincushion, de 1877, e nele vemos uma notável “princesa robô” ou, nas
palavras da autora, “princesa de brinquedo”, feita sob medida para seguir as
regras de um país em que os sentimentos não tinham valor.
Molly Esperta é uma adaptação do conto A corte do ogro, de Juliana
Horatia Ewing (1841-1885). Nascida na Inglaterra, foi a segunda lha de
um pastor e escritor com uma tradutora e escritora de livros para crianças. A
família desfrutou de uma educação incomum, muito libertária, e que
permitia às crianças autonomia e grande possibilidade criativa. Juliana
parece ter estudado várias línguas além do inglês, e tudo indica que
dominasse também o francês, o alemão e o latim. Casou-se aos vinte e seis
anos e partiu com o marido para o Canadá, onde permaneceu por dois anos.
Dirigiu com a mãe uma revista para crianças, em que também publicava
seus textos. Obteve grande sucesso em vida, chegando a vender duzentas mil
cópias de seus livros. Após anos de sofrimento devido à sua saúde frágil,
morreu aos quarenta e três anos, possivelmente de câncer. Foi
completamente esquecida. Molly Esperta é um conto cheio de humor sobre
uma jovem determinada e que não se deixa intimidar por coisa alguma. Um
pai parceiro a ajuda nas decisões que toma, sem jamais duvidar de sua
capacidade.
A irmã valente é uma tradução quase literal da história O leão e a rã, de
Ludovica Brentano Jordis (1785-1852). Ela era lha de um comerciante e
de uma mulher ligada ao mundo das letras e também neta, por parte de
mãe, da romancista Sophie de la Roche (a primeira romancista mulher da
Alemanha). Cresceu em Frankfurt ao lado dos irmãos Clemens e Bettina,
que cariam mais conhecidos como escritores do que ela mesma. Os três
irmãos Brentano estiveram ligados ao projeto dos irmãos Grimm. Ludovica
colaborou com dois contos – um deles é este; o outro é O casamento da
senhora raposa. Neste momento em que Sete contos que nunca me contaram
é publicado, vários estudos estão redimensionando as contribuições da
família de Ludovica para a obra dos Grimm. A irmã valente mostra uma
jovem que leva a busca pelo irmão desaparecido às últimas consequências.
O Cavaleiro Afortunado é uma adaptação de Bela Bela ou O Cavaleiro
Afortunado, de Marie-Catherine le Jumel de Barneville, Baronesa e
Condessa d’Aulnoy (1652-1705), que nasceu numa família nobre na França.
Como era costume em sua classe social, aos catorze anos seus pais
arranjaram seu casamento com um nobre trinta anos mais velho que ela,
François de la Motte, Barão d’Aulnoy. O casamento não correu bem e Marie-
Catherine deixou o país, cando longo tempo entre o Reino Unido e a
Espanha. Publicou seu livro Contos de fadas em 1697, conferindo nome ao
gênero. Manteve um salão literário durante vários anos em Paris,
estimulando muitas escritoras e alguns escritores a produzir e publicar.
Infelizmente, seu nome pouco aparece na história da Literatura, mas estudos
recentes em várias partes do mundo estão revelando sua obra. O Cavaleiro
Afortunado é a história de uma donzela-guerreira que toma para si a função
de lutar vestida de homem em nome da família.
Filagranata é uma tradução e adaptação do conto homônimo de Rachel
Harriette Busk (1831-1907), que nasceu em Londres, numa família
protestante de boa posição social. Rachel teve ótima educação formal em
casa. Viajou bastante pelo território europeu e dominava várias línguas (pelo
menos espanhol, francês, alemão e italiano, além do inglês). Em 1858 se
converteu ao catolicismo, o que motivou sua mudança para Roma, onde
viveu até o nal dos seus dias. Publicou muitos livros, quase todos a partir
de contos populares que escutou em suas muitas viagens, sendo o principal
Roman legends: a collection of fables and folklore of Rome (Lendas romanas:
uma coleção de fábulas e folclore de Roma, em tradução livre), de 1877.
Manteve correspondência com todos os folcloristas importantes de seu
tempo e escreveu vários estudos comparativos na área. Foi muito bem
considerada como folclorista em vida e, depois, esquecida. Filagranata é um
conto que mostra o tema da mulher que rouba verduras de uma fada ou
bruxa e é punida por isso com a entrega de sua criança, que é encerrada
numa torre sem portas ou janelas cujo acesso se dá por seus próprios cabelos
– tema bastante presente na Península Itálica. Filagranata é uma heroína
ativa, inteligente, esperta e que aprendeu saberes mágicos com a bruxa.
Catarina é uma adaptação do conto A sorte de Catarina, de Laura
Gonzenbach (1842-1878), que nasceu em Messina, na Sicília. Laura era lha
de um rico comerciante suíço e perdeu a mãe aos cinco anos. Por isso, teve
sua educação supervisionada pela irmã mais velha, Magdalena, que, à época
da morte da mãe, tinha apenas dezesseis anos e era uma jovem cosmopolita
que conhecia a fundo as artes do passado e as do seu tempo, falava diversas
línguas, tocava instrumentos musicais, era apoiadora ativa do movimento
sufragista e foi a fundadora da primeira escola para meninas em Messina.
Laura parece ter sido um prodígio que teve todas as condições de se
desenvolver. Quando estava com vinte e sete anos, a família recebeu um
historiador alemão que pediu a ela que escutasse alguns contos das mulheres
da vizinhança e os mandasse para que ele publicasse num livro em que
estava trabalhando, sobre a região. Reconhecendo o grande valor da
contribuição que Laura lhe enviou (em alemão), e percebendo que o
material tinha vida própria, ele o publicou em 1870 num livro separado,
Sizilianische Märchen (Contos sicilianos), com o reconhecimento dela como
autora. Esse livro foi parcialmente republicado graças às descendentes de
Laura, mas somente em 2006 teve edição completa em inglês, o que
colaborou para a difusão da obra no Ocidente. Segundo o professor Jack
Zipes, no texto de abertura da primeira tradução para o inglês, Contos
sicilianos, é o único volume de contos do século XIX construído por uma
mulher de classe alta a partir do que escutou da boca de mulheres
camponesas. Laura morreu aos trinta e seis anos, possivelmente em
decorrência de seu quinto parto. Catarina é uma história sobre uma jovem
que precisa lutar para viver sozinha, enfrentando uma “sorte” adversa. O
nal do conto, como outros da mesma região, traz de volta o ouvinte – ou o
leitor – para a dura realidade dos contadores orais, sempre em luta contra a
pobreza e a opressão.
Bete Felpuda é uma adaptação de duas traduções, uma de um conto de
Laura Gonzenbach (Beta Pilusa) e outra de Rachel Busk (Maria de
Madeira). O tema da mulher que precisa se esconder e camu ar para fugir
de indesejadas abordagens tem nos dois contos aspectos bem interessantes,
tanto de humor quanto da apreensão da personalidade da mulher
injustamente perseguida e ameaçada e suas relações com a vaidade, a
aparência e a construção de uma relação de afeto. Bete Felpuda junta o que
há de mais inusitado em ambas as histórias e aponta para o modo de
abordar o tema na Península Itálica.
A Boa Mãe é uma tradução e adaptação do conto A Boa Mulher (La Bonne
Femme), de Charlotte Rose de Caumont de La Force (1650-1724). A autora
nasceu na França, pertencia à nobreza e aos quarenta e oito anos foi forçada
pelo rei a entrar para a Abadia de Gercy-en-Brie, como punição por seu
comportamento amoroso independente e livre. Dentro do convento ela
escreveu e fez publicar seu livro Os contos dos contos (Les contes des contes,
1698), uma coleção de contos de fadas, sob o pseudônimo de Mademoiselle
X. Ainda presa, escreveu várias novelas históricas, muito vendidas e
apreciadas à época. Com o dinheiro arrecadado com a venda de seus livros,
conseguiu permissão para se mudar, em 1703, para um convento melhor, em
Paris. Alguns anos depois, obteve nova permissão real para viver retirada no
castelo de sua própria família, fora da cidade. Em 1713 ela obteve perdão
real e retomou a liberdade. Voltou a Paris e tornou-se célebre nos salões
parisienses. A Boa Mulher (La Bonne Femme) é um dos contos que integra
Os contos dos contos.
Sobre a autora

Susana Ventura ama os contos de fadas. Em 2013, começou a pesquisar


e recontar do jeito dela contos de várias partes do mundo. Susana também
escreve outras histórias e é professora, doutora em Letras pela USP,
tradutora e pesquisadora em universidades no Brasil, na França e em
Portugal. Com seus livros, ganhou alguns prêmios importantes. Pela Editora
Gaivota, selo da Biruta, publicou Um lençol de in nitos os (Prêmio Glória
Pondé da Biblioteca Nacional, nalista do Prêmio Jabuti e parte do Clube de
Leitura da ONU) e, em parceria com Helena Gomes e Alexandre Camanho,
Dragões, maçãs e uma pitada de cafuné (Selo Altamente Recomendável pela
FNLIJ) e Reis, moscas e um gole de astúcia (Prêmio de Melhor Reconto pela
FNLIJ). Agora está realizando pós-doutorado no assunto que mais conhece:
os contos de fadas.
Sobre as ilustradoras

Marcela Scheid é artista e designer grá ca. Em seu trabalho, investiga as


questões de gênero em sua contemporaneidade, as imperfeições humanas e
o acesso à vulnerabilidade como libertação. Ilustrou o conto Úrsula.
Mayara Ferrão é natural de Salvador, Bahia, onde vive e trabalha. É
artista visual, diretora-criativa e ilustradora. Sua vivência enquanto mulher
negra associada a questões de gênero, sexualidade e ancestralidade é sua
principal inspiração; assim, signos e elementos da cultura afro-brasileira
estão sempre em diálogo com sua arte. Para o conto Molly Esperta,
imaginou uma protagonista negra, alquimista, com conhecimentos
ancestrais capazes de guiá-la e protegê-la durante todos os desa os.
Fernanda Peralta nasceu em São Paulo. Filha de professora e designer
grá co, desenha desde que se entende por gente. Mas só começou a
trabalhar com isso pro ssionalmente em 2018 e, hoje em dia, divide seu
tempo entre os desenhos e as pinturas a guache e sua pro ssão como
designer de produtos. Ilustrou o conto A irmã valente.
Efe Godoy vive e trabalha em Belo Horizonte, Minas Gerais. Graduada em
Artes Plásticas na Escola Guignard, sua proposta artística transita entre
desenho, pintura, música e performance. Sua relação com o desenho é quase
instintiva e começou na própria infância. Em suas obras, vê-se
frequentemente animais e plantas em forte simbiose com o humano e com
os aspectos ordinários da vida cotidiana, da memória e de passagem do
tempo, além de uma intensa ligação com letras de música e poesias. Ilustrou
o conto O Cavaleiro Afortunado.
Lumina Pirilampus é artista visual, ilustradora e também é arte-
educadora. Gosta de criar diálogos entre espaços, pessoas e universos
extraordinários. Ilustrar Filagranata a fez pensar que criar imagens é uma
forma mágica, muito responsável, de lutar pelo que acreditamos.
Hanna Gomes começou ilustrando para marcas de moda da Bahia, sua
terra natal, e de São Paulo. A maioria dos seus trabalhos foi inspirada pela
Literatura Brasileira. Para Hanna, ter ilustrado Catarina e dado vida às
palavras foi uma experiência incrível.
Jess Vieira nasceu em 1992, em Brasília. É artista visual multidisciplinar,
licenciada em Letras e pós-graduanda em Estudos Brasileiros pela FESP-SP.
Radicada em Salvador, aborda representações humanas gurativas,
centralizando a gura do "eu" e a experimentação de símbolos em suas
criações. A artista busca trazer elementos da sua origem para compor
cenários lúdicos que transitam entre o real e o imaginário. Flutuar na
imaginação: é assim que a artista vê o processo da ilustração de uma
história. Para ela, Bete Felpuda carregou em si mesma tudo que existia
quando usou os diferentes vestidos e, por isso, a ilustradora quis trazer um
pouco desses universos e a leveza do nal da história.
Renata Bruni nasceu em São Paulo e se formou em arquitetura, mas seu
amor por arte e ilustração a zeram mudar de carreira. Hoje trabalha como
muralista e designer grá ca para a Editora Biruta. O livro Sete contos que
nunca me contaram é sua primeira capa, e também foi a responsável pela
criação do projeto grá co.
Sete contos que nunca me contaram: contos de fadas pensados, ouvidos, escritos e recontados por
mulheres
Tradução e adaptação @ Susana Ventura, 2022
Ilustrações @ Efe Godoy, Fernanda Peralta, Hanna Gomes, Jess Vieira, Lumina Pirilampus,
Marcela Scheid, Mayara Ferrão, 2022
1a edição, 2022
Coordenação editorial Carolina Maluf
Assistência editorial Marcela Muniz
Capa e projeto grá co Renata Bruni
Preparação Pedro Bottino Teixeira
Revisão Andréia Manfrin Alves e Priscilla Vicenzo
CIP-Brasil. Catalogação na publicação
Sindicato nacional dos editores de livros, RJ

V578s
Ventura, Susana
Sete contos que nunca me contaram: contos de fadas pensados, ouvidos, escritos e recontados por
mulheres / [tradução e adaptação] Susana Ventura ; [ilustrações Efe Godoy ... [et al.]]. - 1. ed. - São
Paulo : Biruta, 2022.
recurso digital ; 14000 MB
Formato: epub
Requisitos do sistema: adobe digital editions
Modo de acesso: world wide web
ISBN 978-65-5651-037-8 (recurso eletrônico)
1. Contos. 2. Literatura infantojuvenil brasileira. 3. Livros eletrônicos. I. Godoy, Efe. II. Título.
22-75796
CDD: 808.899282
CDU: 82-93(81)

Meri Gleice Rodrigues de Souza - Bibliotecária - CRB-7/6439


31/01/2022 01/02/2022
Edição em conformidade com o acordo ortográ co da Língua Portuguesa.
Todos os direitos desta edição são reservados à Editora Biruta Ltda.
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