Doce Toquio - Durian Sukegawa
Doce Toquio - Durian Sukegawa
Doce Toquio - Durian Sukegawa
Ficha Técnica
Tradução
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Nota do Autor
1
Nessa noite, Sentarô deitou-se sem tocar numa única gota de álcool.
Sentia-se trémulo e febril. Enrolado por baixo da roupa, recapitulou o dia
passado em Tenshoen como um relógio a andar para trás.
Viu imagens do ossuário a brilhar ao sol do fim de tarde, o caminho que
atravessava a floresta, as flores na berma do caminho, a pequena colina
construída pelos doentes para recordarem as suas terras natais, a mulher que
lhes tinha trazido bolachas... e de repente lembrou-se de Tokue a assoar o
nariz.
A doença de Hansen era transmitida através do muco nasal... Ela própria
confirmara.
Um arrepio gelado percorreu-lhe o corpo febril e ele contorceu-se. Não
percebeu porquê. Tokue estava curada há mais de quarenta anos. Há tanto
tempo que quase não se justificava usar os termos antiga doente. Porque
sentia aquela sensação se sabia isso melhor que ninguém? Sentarô não
compreendia de onde vinha aquela ansiedade.
Wakana estaria bem? Esperou fervorosamente que não estivesse doente
como ele. Pousou a mão na testa e sentiu o calor escaldante. Lembrou-se de
que Wakana mantivera o rosto baixo e desviado durante todo o caminho de
volta. Estavam ambos abalados com a experiência do dia.
Depois de se despedirem de Tokue, tinham visitado o Museu Nacional da
Doença de Hansen ao lado do sanatório e tinham percorrido aquele vasto
espaço quase sem falar. Era um mundo novo para os dois, um mundo de
incomensurável tristeza e sofrimento, que tinha estado enterrado em
escuridão durante muito tempo. Sentarô estava contente por terem visitado o
museu e não queria que tivesse sido de outra forma. Embora não conseguisse
expressar por palavras, sentia que tinha ganhado alguma coisa ao ver e ouvir
o testemunho de pessoas que tinham vivido tanta adversidade. Ao mesmo
tempo, o seu cérebro estava cheio das imagens que vira e que não
desapareceriam, quer tivesse os olhos abertos ou fechados. Como a fotografia
intitulada Ler com a Língua, que retratava um doente idoso muito afetado
pela doença que lhe roubara a visão e os terminais nervosos dos dedos das
mãos e dos pés. Em resultado disso, o homem não conseguia sentir os relevos
do braille com as pontas dos dedos dormentes. Porém, como a sensação na
língua era a última a perder-se, em vez das pontas dos dedos ele usava a
ponta da língua para ler, percorrendo cada caractere, um por um. A imagem
do velho de costas direitas a lamber um livro estava gravada na sua cabeça.
Havia inúmeras fotografias como aquela. Numa delas, um grupo de
homens tocava música com dedos sem pontas a segurar harmónicas e, noutra,
uma mulher idosa estava muito concentrada a fazer olaria com mãos
deformadas e nodosas.
Sentarô nunca tivera qualquer ligação àquelas pessoas, mas agora tinham
entrado dentro dele, sussurravam-lhe coisas ao ouvido e olhavam-no com
expressões perturbadas. Não conseguiu suportar a dor e dobrou-se numa bola.
Respirou em febris arquejos.
Pensou no caminho que tinham percorrido na floresta. Quantas daquelas
pessoas teriam andado por ali, escondidas por aquelas árvores? E aquela
espinhosa sebe que os bania ferozmente o mundo? O que sentiriam quando a
viam? Supôs que era uma emoção completamente diferente da sensação de
derrota que sentia quando estava preso. Ele tinha cometido um crime —
aquelas pessoas eram inocentes. Havia um limite para o seu confinamento.
Pelo contrário, quando aquelas pessoas entravam naquele lugar, a lei
determinava que ficariam ali até ao fim da vida.
Se estivesse no lugar delas, o que teria sentido e pensado enquanto
percorria aquele recinto? Teria sentido uma profunda raiva? Ou talvez fizesse
todos os possíveis para esquecer o mundo lá fora?
Absorto naqueles pensamentos, Sentarô mergulhou num sono febril. De
repente, reparou que parecia ter voltado ao caminho e estava a percorrê-lo de
novo, dirigindo-se para o local onde as árvores eram densas. Avançou mais
um pouco e entrou numa clareira com erva cortada. Na orla da clareira, viu
uma menina com um rudimentar quimono de algodão.
Sentarô percebeu imediatamente de quem se tratava; uma menina de
catorze anos que fora levada para ali sem perceber porquê; a jovem Tokue,
que tinha chorado sem parar até não ter mais lágrimas para derramar.
Parou atrás dela, a tentar pensar em palavras de consolo. Todavia, sabia
que não poderia dizer nada que a ajudasse.
O que estaria aquela menina a sentir, depois de lhe terem dito que nunca
mais poderia voltar para o mundo que estava do outro lado daquela sebe e
sabendo que o seu rosto poderia ficar desfigurado? Onde encontraria
esperança?
Sentarô ficou a olhar para as costas dela.
Quais eram as forças que estavam em jogo naquela vida? Se estivesse a
ser um joguete por rancor, em algum momento aquele tormento chegaria ao
fim e ela poderia avançar. Por exemplo, se a opinião pública estivesse contra
ela, os tempos mudavam e um dia ela poderia voltar a andar livremente. Mas
quem ou o que quereria atormentar uma menina de apenas catorze anos até ao
fim da vida?
Aquele pensamento foi opressivo.
Claro... só podiam ser os deuses que estavam por detrás de tudo. Os
deuses que lhe sussurravam ao ouvido que mais valia não ter nascido. Os
deuses que tinham determinado que ela teria de sofrer a vida inteira. O que
pensara Tokue sobre a vida quando compreendera aquilo? Como viveria o
tempo que lhe restava?
Ela não passava de uma menina, a soluçar amargamente.
Sentarô não conseguiu ver mais. Virou-se e voltou pelo caminho da
floresta.
20
Cumprimentos.
Tokue Yoshii
Sentarô releu a carta tantas vezes que até se esqueceu de ligar a chapa. A
voz de Tokue ecoava em cada caractere escrito naquela característica
caligrafia ondulada. Era como se estivesse ali, a falar com ele.
Como não havia clientes, correu para a loja de conveniência para comprar
papel de carta.
***
Cara Tokue,
Obrigado por se dar ao trabalho de me escrever quando ainda não se
sente bem. Li a sua carta aqui na loja muitas vezes. Não me recordo de me
sentir tão animado há muito tempo.
«Escutar» é uma boa palavra. Gosto dela. Agora, sei o que estava a fazer
quando tinha a cara tão perto dos feijões. Estava a olhar para cada um deles
e a usar cinquenta anos de experiência para realçar o seu potencial. Eu
sabia que estava a olhá-los com atenção, mas pensei que só estava
preocupada com a intensidade correta do lume e com o número certo de
passagens por água para remover o amargor, coisas desse género. Nunca me
passou pela cabeça que estava a escutar os seus sussurros sobre onde tinham
nascido e crescido.
Se outra pessoa qualquer me tivesse dito isto, eu não teria acreditado.
Sobretudo porque nunca escutei a linguagem da forma que descreve. Na
verdade, nem sequer escutava a minha própria mãe, uma coisa que nunca
contei a ninguém.
Houve uma altura em que também estive afastado do mundo, por um
motivo muito diferente do seu. Por norma, não falo sobre isso, mas penso
que não fará mal contar-lhe agora. Alguns anos antes de começar a
trabalhar na Doraharu, infringi a lei. Em resultado disso, fui preso e passava
os dias a olhar para uma pequena tira de céu.
A minha mãe veio visitar-me diversas vezes. No entanto, nunca trocámos
mais do que duas ou três palavras. Ela faleceu antes de eu ser libertado.
Quando o meu pai a descobriu, ela já estava morta na sequência de um AVC.
Claro que eu pedi as desculpas que tinha de pedir à minha mãe, mas
nada mais. Naquela época não falávamos muito, por isso não pude dizer-lhe
nada nem ouvir o que ela tinha para me dizer. Pensar nisso ainda é
doloroso. Sinto uma grande culpa. Desisti da minha própria mãe e continuo
a ser um fracasso. Desculpe por falar tanto sobre mim, mas eu sou assim.
Porém, depois de passar tanto tempo a confecionar pasta de feijão
consigo, sinto que talvez tenha mudado um pouco. Antigamente, o meu único
objetivo era pagar as dívidas para poder deixar a Doraharu, mas agora
sinto-me ligado àquele lugar. Foi a senhora que provocou essa mudança em
mim. É por isso que acredito em si e na sua perceção das coisas. Ainda não
consigo sentir, mas gosto da ideia de que todas as coisas têm uma linguagem
própria e que podemos ser sensíveis a ela.
Na Doraharu, a luta continua. Alguns clientes elogiam a minha pasta de
feijão, mas continuo muito longe de atrair clientes com ela. Para dizer a
verdade, neste momento estou numa situação muito má. Será que o vento
soprou as minhas preocupações na sua direção?
No outro dia, quando fui visitá-la, tinha outro favor para lhe pedir além
do canário. Contudo, fiquei tão impressionado com tudo o que ouvi que não
consegui falar no assunto.
Sei que é egoísta da minha parte falar nisto quando deve estar
preocupada com a sua saúde, mas ainda preciso de que me ensine uma coisa.
Já sei fazer uma pasta de feijão razoável ao copiar o que a senhora faz. No
entanto, não faço ideia do que fazer nem que direção seguir para ir além
disso e fazer o meu tipo de dorayaki. Se conseguisse criar um estilo de
dorayaki, como a senhora me disse, talvez os clientes voltassem a fazer fila à
porta. Salvaria a Doraharu e seria um novo começo para mim.
A outra coisa é que gostaria muito de aprender mais consigo sobre
pastelaria em geral. Tenho a sensação de que, se isso fosse possível, algumas
coisas se tornariam mais claras para mim. Posso ir visitá-la de novo a
Tenshoen?
Também vou falar com a Wakana sobre o canário. No entanto, neste
momento ela está no último ano do segundo ciclo e deve estar ocupada com
os exames que se aproximam. Não posso fazer nenhuma promessa agora
sobre quando poderemos visitá-la juntos, mas vou arranjar tempo para ir aí
sozinho. Nesse dia, espero poder conversar consigo sobre muitas coisas.
Bem, vou parar por aqui. Peço desculpa por esta carta ser apenas sobre
os meus problemas e fracassos.
O tempo está a ficar muito mais frio, por isso espero que cuide bem de si
e não deixe a constipação piorar mais.
Cumprimentos,
Sentarô Tsujii
21
O novo ano chegou e trouxe consigo chuva misturada com neve. O sol
não apareceu no céu durante três dias seguidos.
Não obstante, Sentarô manteve a loja aberta. Não valia a pena beber o
festivo saqué condimentado sozinho, por isso começava a preparar a pasta de
feijão ao raiar do dia e abria a loja mais cedo do que era habitual. Pensou que
talvez pudesse vender às pessoas que se dirigiam para o outro lado da estação
para fazer a tradicional visita ao santuário durante o período do Ano Novo.
Contudo, como ele temia, as vendas continuavam fracas. Quando a
proprietária da loja veio verificar os livros de contabilidade no início do novo
ano, soltou um forte suspiro e murmurou mais uma vez que a Doraharu devia
começar a vender outro tipo de produtos. Uma loja de okonomiyaki podia ter
sido apenas um pensamento impulsivo a primeira vez que referira o assunto,
mas estava cada vez mais entusiasmada com a ideia e perguntou a Sentarô se
ele continuaria a trabalhar ali no caso de ela decidir fazer a mudança. Sentarô
não deu qualquer sinal de concordância.
— Vamos continuar com os dorayaki durante mais algum tempo — disse.
— Afinal de contas, foi o patrão que abriu esta loja... devíamos respeitar a
sua memória. Além disso, ainda tenho uma dívida para saldar.
A senhoria acenou ambiguamente e apertou os lábios.
— Se quiser mesmo manter o negócio, venderá qualquer coisa que dê
lucro. Todos temos de ganhar a vida.
Sentarô reconheceu que havia alguma verdade naquelas palavras, mas
não podia concordar. Manter o negócio também significava comprometer-se
a vender pasta de feijão com um determinado padrão, mesmo que não
corresse bem. Pensava que um negócio... fosse ele qual fosse... não devia ser
gerido com uma atitude de vale tudo.
E havia outra coisa, uma coisa muito mais interessante para Sentarô: a
pasta de feijão doce de Tokue. Estava determinado a continuar a confecioná-
la, porque se não o fizesse ela desapareceria deste mundo. Para além de ser
uma maravilhosa pasta de feijão, Sentarô pensava que era uma homenagem à
vida de uma notável mulher chamada Tokue Yoshii.
***
Em meados de janeiro, Sentarô recebeu um postal de Tokue, no mesmo
dia em que tinha tido uma discussão com a senhoria sobre o futuro da
Doraharu. Ela parecia já nem sequer pensar em dorayaki. Como sempre,
Sentarô defendeu que deviam ser pacientes durante mais algum tempo, mas
não conseguiu fundamentar a sua vontade.
Naturalmente, também estava frustrado. Quando pensava em todos os
clientes que nunca mais tinham voltado, sentia vontade de os amaldiçoar.
Contudo, ver a caligrafia de Tokue no postal fê-lo sentir-se ligeiramente
melhor. Ela tinha escrito para lhe contar que estivera doente e de cama
durante o período do fim do ano, pediu desculpa por não lhe ter escrito um
postal de Ano Novo e terminou dizendo que estava melhor e perguntando-lhe
se gostaria de lhe fazer outra visita. «Quando vier, vou recuperar o Grupo de
Pastelaria com Miss Moriyama», escreveu.
— Vou visitá-la — disse Sentarô para si mesmo na cozinha da loja,
depois de ler o postal. — Afinal de contas, não tenho muitos clientes.
***
Tenshoen estava tão silencioso como sempre. Com as árvores agora
despidas de folhas, a quietude parecia impregnar tudo com uma intensidade
ainda maior. O céu estava limpo e luminoso, mas um cortante vento gelado
soprava no recinto.
Ele seguiu pelo mesmo caminho que percorrera anteriormente até à loja,
onde devia encontrar-se com Tokue. O caminho deserto estava envolto em
silêncio e não encontrou ninguém. Entrou no estabelecimento e imobilizou-
se.
— Tokue... — Estava chocado com a alteração na sua aparência.
Miss Moriyama, que lhes oferecera tuiles na visita anterior, estava ao seu
lado.
— Olá — disse ele quando se aproximou da mesa. — Já não nos vemos
há muito tempo.
Sentarô estava chocado com a aparência de Tokue e tentou não deixar
transparecer a agitação que sentia. Embora se tivessem visto pela última vez
há pouco mais de um mês, ela estava tão diferente que parecia que se tinham
passado anos. Tokue sorriu prontamente, mas os seus olhos estavam
encovados e as faces estavam chupadas.
— Parece que aquela constipação a fez passar um mau bocado, Tokue.
— É verdade. Foi difícil. Não conseguia comer... — Ela passou os dedos
pelo cabelo branco despenteado que se espetava em pequenas ondas como a
casca de uma palmeira.
— Ela esteve muito mal durante algum tempo. A certa altura, pensei que
teria de lhe telefonar.
Miss Moriyama contorceu o rosto desfigurado numa expressão que se
assemelhava ao Grito de Munch para mostrar como Tokue tinha ficado
magra.
— Oh, para com isso. Já estou melhor.
— Desculpa. Mas durante algum tempo pensei que ias fazer companhia
ao teu marido.
— Ainda não. Tenho de acabar de ensinar o patrão a fazer a pasta de
feijão doce do Grupo de Pastelaria.
Apesar da magreza, a voz de Tokue tinha uma vivacidade surpreendente.
— Está mesmo curada? — perguntou Sentarô, a observar o rosto de
Tokue.
Ela acenou com uma mão, como se quisesse proteger-se do seu olhar
penetrante.
— Já estou melhor. Mas durante o Ano Novo foi difícil e tive de ficar na
cama.
— Lamento não ter sabido mais cedo — disse Sentarô.
— Oh, não se preocupe com isso. Estou muito contente por que tenha
vindo e esteja aqui agora.
Miss Moriyama levantou-se e afastou-se da mesa, dando-lhes alguns
momentos a sós. Voltou pouco tempo depois, a segurar um tabuleiro com as
duas mãos.
— Cá está — disse, pousando-o.
Sentarô viu três tigelas de onde se erguia um suave vapor.
— Aqueci-a no fogão nas traseiras.
Sentarô olhou para o conteúdo da tigela.
— Oh, isto é...
— Estamos a fazer uma repetição do Ano Novo — disse Tokue, juntando
as mãos num gesto de agradecimento pela comida.
— É sopa de feijão doce, a especialidade do Grupo de Pastelaria. — Miss
Moriyama também estava animada.
A pasta de feijão doce que Sentarô conhecia tão bem brilhava dentro das
tigelas, cada feijão cintilante ligado a todos os outros numa espessa sopa. O
aroma intenso e doce espalhou-se até às cadeiras mais próximas.
— Mm, cheira bem — afirmou alguém noutra mesa.
— Por favor, comece. — Miss Moriyama pousou uma tigela diante de
Sentarô.
— Coma enquanto está quente. Sei que não gosta muito de coisas doces,
mas creio que isto lhe agradará — incentivou-o Tokue num tom encorajador.
A verdade era que Sentarô nunca conseguira comer uma tigela inteira
daquele doce tradicional de Ano Novo, mas o seu rosto descontraiu após a
primeira colherada.
— Isto é muitíssimo bom! — As palavras saíram espontaneamente. A
doçura pareceu derreter a tensão nas suas faces e pescoço e foi seguida por
uma sensação de alívio.
— Querida Tokue. Não te esqueças do resto — declarou Miss Moriyama.
— Oh, sim, é verdade. Experimente isto também, Sentarô. — Tokue tirou
uma pequena caixa de plástico da mala e despejou o seu conteúdo num prato.
— Isto é bom. São as algas kombu salgadas especiais feitas pela Tokue.
— Algas kombu salgadas?
— Não é a mesma coisa sem kombu — afirmou Miss Moriyama, pegando
num pedaço. — Mm, perfeito — disse, a acenar para si mesma.
Sentarô também pegou num pedaço. As algas estavam cortadas em tiras
com o mesmo comprimento e largura e tinham um agradável aroma a ameixa
que fazia cócegas no fundo do nariz. Ele pôs a alga na boca e sentiu a textura
húmida e firme.
— Oh... sabe a pickles de ameixa.
— É verdade. Uso pickles de ameixa e shiso.
Sentarô provou de novo a sopa, espantado.
— Isto é maravilhoso... — Olhou para as duas senhoras idosas com uma
expressão intrigada. — Como é que fazem esta sopa e as algas kombu?
Claro que sabia que não havia uma resposta fácil para aquela pergunta,
mas foi a única forma que encontrou de expressar as suas emoções. Tokue
riu-se.
— Não é muito difícil. É um prato de referência do Grupo de Pastelaria.
Fazemo-lo todos os anos para o Ano Novo.
— É verdade. Este ano, como a Tokue estava doente, fui eu que fiz a sopa
sozinha, mas tive de usar kombu já pronta. Hoje, a Tokue começou a mexer-
se por fim para preparar as algas para a sua visita.
— Muito obrigado — agradeceu Sentarô. Olhou para a sua tigela e
reparou que estava quase vazia. — Nunca tinha comido uma sopa doce como
esta.
— Oh, não é encantador, Tokue? Ele parece gostar.
— Não sabia que a doçura podia ser tão suave... e o sabor das algas
kombu parece expandir-se na boca.
— Também pomos um pouco de sal diretamente na sopa. Mas só uma
pitada por causa das algas kombu, por isso não se percebe — explicou Tokue,
e só então provou um pouco. Olhou para um ponto longínquo enquanto
avaliava a sopa e depois as suas faces magras descontraíram num sorriso. —
Mm, o equilíbrio está perfeito.
Sentarô e Miss Moriyama acenaram vigorosamente.
— Patrão?
— Sim.
Tokue pousou a tigela e olhou Sentarô nos olhos.
— Eu diria que a minha pasta de feijão é um pouco para o salgado.
— Sim, eu sei — replicou ele.
— Pelo contrário — continuou ela —, aquela pasta de feijão que usava na
loja não tinha sal nenhum...
— Aquela pasta fabricada na China... não, não tinha — concordou
Sentarô.
— Foi por isso que achei que era pegajosa e a doçura não tinha
intensidade.
Tokue tinha razão. Era uma questão de gosto, mas Sentarô cansava-se
sempre daquela pasta de feijão — que não tinha sal — após uma ou duas
dentadas.
— Tenho a impressão de que os homens que gostam de beber, como o
senhor, preferem pasta de feijão com um pouco de sal.
— Oh, então é por isso que consigo comê-la.
— O patrão não gosta muito de coisas doces, mas gosta da minha pasta de
feijão, o que significa que o sal deve estar a ajudar.
— Não é isso. É a forma como a senhora prepara os feijões... é
extraordinário.
— No entanto, se não tivesse sal, é provável que não gostasse tanto.
— Talvez.
— É o que acontece aqui — disse Miss Moriyama, a olhar em volta. —
Quando servimos pasta de feijão aos homens, eles gostam sempre mais com
um pouco de sal.
— Na sua opinião, qual é a mais salgada, patrão? A pasta de feijão que
costumo fazer ou a sopa que comeu hoje? — continuou Tokue.
— Bem... — Sentarô ficou confuso durante alguns instantes, sem
compreender muito bem o que ela estava a perguntar-lhe. Depois, os seus
olhos iluminaram-se ao olhar para o prato de algas kombu salgadas.
— A sopa, talvez. Porque a comi com as algas.
— Sim, há uma grande diferença. Foi por isso que conseguiu comer uma
tigela cheia.
— Porque gosto de beber?
— Não é tão difícil para si comer pasta de feijão com um sabor salgado.
— Pois não.
— Mas quando prepara pasta de feijão não põe muito sal, pois não?
— Não. Acho que se pusesse muito estragaria tudo.
— Se acha isso, o que me diz desta sopa? As algas kombu salgadas
contêm um elevado teor de sal.
— O que está a tentar dizer-me?
O rosto magro de Tokue iluminou-se com um sorriso nos olhos. Miss
Moriyama olhou para ela sem falar.
— Quando preparamos pasta de feijão, não sabemos qual a quantidade sal
que é usada. Mas na sopa é óbvio por causa das algas kombu salgadas.
Porque não experimenta usar sal de outra forma quando faz os seus
dorayaki? Poderia ser um novo tipo de dorayaki para pessoas como o senhor,
que gostam de beber.
Miss Moriyama bateu palmas com entusiasmo.
— Sim! Já há bolos manju salgados e bolos de arroz salgados... é o
conceito das expectativas contrárias.
— Então, está a referir-se a... dorayaki salgados?
— Sim. Por vezes é bom fazermos o que gostamos mais.
Miss Moriyama inspirou com um longo assobio de admiração e bateu
entusiasticamente na mesa.
— Ela é a maior! A Tokue foi sempre a pessoa das ideias no Grupo de
Pastelaria.
— Isso é porque ponho esta cabeça vazia a funcionar.
Miss Moriyama inclinou-se sobre a mesa.
— Mr. Tsujii, a Tokue costuma ter razão. Se diz uma coisa destas, tem de
experimentar os dorayaki salgados.
— Acham que devo experimentar fazer dorayaki salgados?
— Vão ser um sucesso — declarou Miss Moriyama, e Tokue balbuciou
em sinal de concordância.
Sentarô acenou num agradecimento.
— Obrigado pela sopa. E pelas ideias novas. Como sempre, nunca sei
como agradecer-lhe o suficiente.
— Oh, deixe-se disso. Eu só estava a dar algumas ideias. Mais
importante... — Tokue calou-se, olhou para Miss Moriyama e em seguida
voltou os olhos encovados para Sentarô.
Miss Moriyama pegou nas tigelas e colocou-as no tabuleiro.
— Vou lavar isto — disse, e afastou-se.
— Não estou a pedir-lhe para dizer mais nada — afirmou Tokue em voz
baixa —, mas obrigada por ser honesto comigo.
— Uh... — Sentarô sabia ao que ela estava a referir-se e baixou a cabeça.
— Foi uma pena o que aconteceu com a sua mãe.
— Sim.
— O seu pai ainda está vivo e bem de saúde?
Sentarô acenou com a cabeça, mas não falou.
— Não acha que seria boa ideia ir visitá-lo?
— É difícil encontrar um bom motivo para ir.
— A sério?
— A culpa de tudo o que aconteceu foi minha. Foi difícil, especialmente
para a minha mãe... fiz uma coisa que não pode ser desfeita.
— Mas o senhor saldou a sua dívida. Na prisão.
— Sim.
— Nesse caso, tem de começar de novo.
Sentarô abanou a cabeça, incapaz de olhar Tokue nos olhos. Olhou para
as algas kombu salgadas que estavam no prato.
— Também pensei nisso durante muito tempo... como poderia começar
de novo. O patrão veio em meu auxílio e fui trabalhar naquela cozinha, mas...
— Sentarô fez uma pausa — só conseguia pensar em sair de lá.
— Claro que sim, porque não gosta de coisas doces.
— Sim, mas... — Sentarô inspirou fundo — agora quero manter a loja
aberta. À minha maneira.
— Eu percebo. Vejo-o a fazer o seu estilo de dorayaki. É por isso...
— O quê?
— Bem, para dizer a verdade, não posso ensinar-lhe mais nada sobre a
preparação de pasta de feijão. Agora, é consigo... faça como achar melhor. —
Os olhos de Tokue brilharam. — O senhor é capaz, Sentarô — disse.
22
Dorayaki salgados. Era fácil falar, mas confecioná-los não seria assim tão
simples. Sentarô pediu aos fornecedores para lhe trazerem marcas conhecidas
de sal marinho natural como Akô do lago Seto ou Yanbaru da ilha Iejima em
Okinawa. Porém, antes de conseguir chegar a um ponto em que a qualidade
do sal faria diferença teria de resolver o problema de quando e como
adicioná-lo aos dorayaki para criar um novo tipo de doçaria — e era essa
parte que não conseguia resolver.
Começou por tentar aumentar a quantidade de sal que misturava na pasta
de feijão. Normalmente, acrescentava apenas uma pitada a um lote de quatro
quilos — um grama, no máximo. Experimentou aumentar para dois gramas, e
depois para três gramas. E uma coisa misteriosa aconteceu quando o fez; o
sabor salgado destacou-se contra a doçura, claro e fresco — um inesperado
desabrochar de sabor. O paladar era fugaz e não era dominado pela doçura.
Sentarô achou que era refrescante, mas apenas quando acrescentava sal em
quantidades ínfimas. Se aumentasse a quantidade de sal — especificamente
para três ou mais gramas por lote de quatro quilos —, o sabor ficava abrup-
tamente forte e perdia toda a subtileza. Transformava-se numa sopa
demasiado salgada que não era comestível para além de certo ponto — um
sabor que não poderia servir nos dorayaki.
Por muito que pensasse em como poderia juntar sal à mistura de feijão,
Sentarô só se lembrava de usar o mesmo método que sempre usara:
acrescentar a pouco e pouco ínfimas quantidades enquanto misturava os
feijões. Não só era o melhor que conseguia fazer como sentia que era a única
forma.
Como poderia concretizar aquela ideia? A resposta óbvia era juntar sal
nas panquecas e começou a fazer experiências com a massa. Como sempre,
misturou quantidades iguais de ovos, açúcar e farinha para bolos. Em
seguida, acrescentou um pouco de fermento em pó para levedar a massa, mel,
saqué doce e uma pitada de chá verde para intensificar o sabor. Depois, divi-
diu a massa por várias tigelas, colocou diferentes quantidades de sal em cada
uma delas e confecionou as panquecas.
No dia em que fez aquela experiência, a proprietária da loja passou por lá
depois de ir ao médico, no preciso momento em que ele terminou a confeção
dos dorayaki.
— Isto é terrível — disse depois de analisar as contas. Estalou a língua
num sinal de desaprovação.
— Estou a experimentar uma coisa nova — replicou Sentarô.
A proprietária da loja evitava comer dorayaki por causa do açúcar, mas
ficou interessada.
— Vejamos — disse, pegando num.
A sua reação foi imediata.
— É salgado — exclamou com uma careta.
— Porque é um dorayaki salgado.
— O que é isto...? Provoca sede.
— Tenho um que é menos salgado.
— Há alguma coisa pobre nele.
Pobre? Sentarô ficou surpreendido com aquela escolha de palavras. Deu
uma dentada num e mastigou-o devagar, a avaliar cuidadosamente o sabor.
— Acha que sim? Parece-me bastante bom.
Sentarô foi sincero. Era um sabor diferente. Gostou da experiência de
sentir sal quando esperava doçura — era refrescante. Contudo, depois de duas
ou três dentadas, começou a perceber onde a senhoria queria chegar. Ao
contrário da impressão deixada pela primeira dentada, agora sentia apenas um
desagradável gosto na boca. Ao mesmo tempo, o sabor intenso e harmonioso
da panqueca desvanecia-se. O truque era escandalosamente desvendado.
— Estou a perceber o que quer dizer — disse Sentarô quando acabou de
comer. — Não apetece comer outro. — Olhou-a.
— Talvez atraia a atenção da clientela. Pode experimentar vendê-los. —
Ela falou num tom terminante e Sentarô pensou que mais valia dizer que
desaprovava aquela ideia.
Todavia, era impossível não perceber que a Doraharu estava em apuros.
Se não arranjassem uma nova solução, não haveria futuro.
— Como já lhe disse muitas vezes, não podemos continuar assim. É um
bom momento para deixarmos de vender dorayaki.
Aquela declaração foi mais longe do que os seus habituais comentários
sobre o assunto.
— Espero sentir-me muito melhor em relação a tudo isto quando aquela
cerejeira florir — disse, a apontar para a rua. — Qual é a sua opinião,
Sentarô? Acha que seria melhor recomeçar com uma loja de okonomiyaki?
Ou que tal passarmos a vender yakitori? Seria bom para si se pudéssemos
servir bebidas alcoólicas, não lhe parece?
— Não. Como já lhe disse, acho que não devíamos desistir dos dorayaki.
— Mas a realidade é que já não consegue atrair clientes.
Sentarô esteve quase a dizer-lhe que isso se devia à atitude dos clientes
para com Tokue e que agora... mas engoliu as palavras e inspirou fundo.
— Por favor, posso pedir-lhe um pouco mais de paciência?
— Paciência...?
— Se tem meios para financiar a renovação da loja e a abertura de uma
loja nova, não pode dar uma última oportunidade aos dorayaki?
— Você é incrível, Sentarô. Se bem me lembro... nem sequer gostava de
dorayaki, pois não? Sei que só trabalha nesta loja para pagar as suas dívidas.
Porque diabo começou a esforçar-se a sério agora? Se vendermos
okonomiyaki, também poderemos servir bebidas alcoólicas... não seria mais
do seu agrado? Acho que seria muito melhor para si. Porque está a ser tão
teimoso agora a respeito dos dorayaki?
— Eu... bem...
— E mais uma coisa. Se vamos renovar, tem de ser agora.
— Porquê?
— Porque as minhas poupanças estão a esgotar-se. Se perdermos esta
oportunidade, é possível que tenha de vender a loja. Está a compreender?
Isso, sim, seria uma grande traição ao meu marido. Se não fizermos alguma
coisa enquanto ainda tenho recursos, ficaremos sobrecarregados de dívidas
até ao pescoço e será o fim. O que faria, Sentarô? — A proprietária da loja
fez uma pausa. — Já tenho tantas preocupações e o que me propõe é...
dorayaki salgados?
— Bem...
Ela deu mais uma dentada no dorayaki parcialmente comido.
— É mais salgado ainda quando está frio! Experimente.
Perante a insistência, Sentarô aceitou o pedaço que ela tinha partido para
lhe oferecer e colocou-o na boca. Ela tinha razão sobre a mudança de sabor,
agora que estava frio. O sabor a sal era muito mais forte do que seria
desejável.
— Valorizo a sua tentativa de fazer uma coisa nova. Mas a realidade é o
que é. Estamos no fim de janeiro... tenho uma proposta.
— Diga.
— No fim de fevereiro, vou tomar uma decisão com base nos lucros. Se
as vendas aumentarem no próximo mês e voltarem o nível anterior, poderá
continuar a vender dorayaki. Se não, desistimos. Talvez seja boa ideia
abrirmos uma loja ao estilo de Osaka. Poderemos vender okonomiyaki e
pastéis de polvo... é possível fazer as duas coisas, não é? Os clientes podem
sentar-se ao balcão e beber. O gasto médio por pessoa deverá subir e, como já
pagou uma grande parte da dívida, vou esquecer o resto. O que puder pagar-
me no fim de fevereiro será suficiente.
— Como?
— Já pagou quase tudo. Vou dispensá-lo de pagar o resto. Vamos fazer
isto de boa vontade, Sentarô. Há momentos na vida em que temos de fazer
mudanças.
Sentarô não falou durante algum tempo.
— Está bem — concordou por fim.
— Aconteça o que acontecer, no próximo mês teremos um novo começo.
Percebeu?
— Percebi.
A senhoria pousou o resto do dorayaki num prato e empurrou-o na sua
direção.
23
Doraharu
Cara Tokue,
Como está? O tempo continua muito frio e invernoso e espero que se
mantenha quente e não tenha apanhado mais constipações.
A minha situação ainda é difícil, apesar de ter aproveitado o que me
disse quando estive aí e começado logo a fazer experiências. Tenho a certeza
de que sabe ao que estou a referir-me — dorayaki salgados!
Comecei por aumentar a quantidade de sal na pasta de feijão, mas foi um
fracasso. No entanto, fez-me perceber que a quantidade que a senhora utiliza
sempre é perfeita. Como não podia deixar de ser! Por isso, nada mudou na
pasta de feijão.
Depois, comecei a pensar no que mais poderia fazer para dizer que são
dorayaki salgados. Demasiado simples, talvez, mas a seguir experimentei pôr
sal nas panquecas. Consegui alguns dorayaki muito interessantes. Se os co-
mermos enquanto estão quentes, o sabor é completamente novo, e pensei que
talvez tivesse encontrado a resposta. Contudo, passado algum tempo o sal
torna-se excessivo. Como um condimento subtil que se sobrepõe a todos os
sabores. Tentei reduzir a quantidade para que isso não acontecesse, mas
torna-se tão subtil que não se consegue aquele sabor surpreendente na
primeira dentada.
Descobri que pôr sal na panqueca também é difícil e cheguei à conclusão
de que a resposta não é simplesmente dissolver sal na pasta de feijão ou na
massa das panquecas. Penso que as algas kombu salgadas resultam na sopa
doce que comemos naquele dia porque funcionam como uma intensificação
do palato. Se fosse uma sopa salgada, já com uma generosa quantidade de
sal, haveria resistência ajuntar mais.
Por isso, não sei. Tenho de descobrir alguma coisa que mantenha a
textura e o sabor, como as algas kombu salgadas na sopa doce, mas que
possa realçar ao mesmo tempo o sabor dos dorayaki. Tendo em conta a
situação em que a Doraharu se encontra, não tenho muito tempo para pensar
no assunto, mas estou a tentar pôr em prática o que aprendi consigo sobre
Escutar. Talvez isso ajude. Ainda não perdi a esperança. No entanto, as
vendas continuam muito fracas. Agora, só faço um lote de pasta de feijão de
quatro em quatro dias. Quando penso em como estávamos ocupados há
apenas seis semanas, quase não consigo acreditar.
Todos os dias tento estar atento e escutar. No entanto, a realidade é que
continuo a não ouvir coisa alguma.
Gostaria de ir visitá-la de novo quando o tempo aquecer. Desta vez,
levarei a Wakana. Nessa altura, decidiremos se libertamos o canário.
Desculpe por falar tanto sobre todos os meus problemas, mas sei que
consigo não vale a pena fingir que estou bem e foi por isso tomei a liberdade
de escrever os meus pensamentos.
Continuarei a tentar e a esperar que, um dia, o deus da pastelaria
também me sussurre palavras ao ouvido.
Cumprimentos,
Sentarô Tsujii
Caro Sentarô
Tokue Yoshii
24
Miss Moriyama levou Sentarô e Wakana até à rua com filas de casas,
dobrou uma esquina e parou à entrada de um pátio relvado. Não era muito
longe da loja. Uma placa na parede lateral indicava que o nome do edifício
era «Vento de Primavera». Eles seguiram atrás dela, a caminhar sobre as lajes
do jardim, e passaram por três apartamentos iguais até chegarem ao quarto,
na extremidade mais afastada.
Miss Moriyama abriu uma porta de correr que não estava trancada.
— Não se importam de entrar pelas traseiras, pois não? — perguntou. —
Era o que fazíamos sempre.
A estrutura de madeira à volta da entrada estava gasta e branca do uso.
Através do vidro, viram uma divisão com alcatifa azul. Uma gaiola que
conheciam bem estava no chão ao lado da janela, mas Marvy não se
encontrava no interior. Sentarô olhou discretamente para Wakana. Ela estava
a olhar para a gaiola vazia com os olhos marejados de lágrimas.
— Façam o favor de entrar.
Era uma pequena divisão de seis tatâmis, com cerca de dez metros
quadrados ao todo. Um lava-loiça e um frigorífico eram visíveis na zona que
devia ser a cozinha, ao fundo. O teto de traves de madeira parecia ter sido
feito com restos de tábuas. O estuque das paredes apresentava manchas
escuras em alguns sítios. Havia apenas uma cómoda, uma escrivaninha, uma
caixa de contraplacado usada para guardar livros e uma pequena televisão. A
roupa de cama, o colchão e outros pertences deviam estar guardados fora da
vista, no armário de parede.
— Foi aqui que a Tokue... aqui?
— Não. Ela faleceu na enfermaria da clínica. Mas foi muito repentino. Na
verdade, eu não estava à espera disto.
Miss Moriyama pediu-lhes que descalçassem os sapatos, deixando-os no
jardim, e entraram no alojamento de Tokue. A zona da cozinha estava pouco
iluminada, mas perto da janela via-se luz do sol.
Havia diversas fotografias em cima da caixa de contraplacado.
— Aqui está a Tokue com o marido, o Yoshiaki — disse Miss Moriyama,
e aproximou o rosto da fotografia enquanto tentava pegar num pau de incenso
com os dedos aleijados para fazer uma oferenda.
— A Tokue era muito linda. — A voz de Wakana soou nasalada, como se
ela tivesse o nariz tapado.
É verdade, pensou Sentarô.
Todas as fotografias eram a preto e branco, provavelmente tiradas quando
Tokue tinha vinte e tal anos. Os antiquados penteados pareciam tirados de
cenas de um filme antigo, mas ela parecia alegre e nada indicava que sofria
de uma doença. Com o bem proporcionado nariz e olhos cheios de vida, asse-
melhava-se à menina que Sentarô vira no sonho. Sorria com ternura para o
homem que estava ao seu lado e ele mostrava claramente a adoração que
sentia por aquela radiosa jovem.
As fotografias foram a confirmação do que Sentarô soubera por Tokue: o
marido era muito mais velho. A nuca e a curvatura dos ombros sugeriam um
homem de constituição delicada e frágil, o que só confirmou o que Tokue lhe
contara. No entanto, havia apenas uma coisa que não correspondia ao que ela
lhe dissera. Segundo Tokue, o marido era alto como uma palmeira, e ele
imaginara um homem alto, mas o homem que via na fotografia tinha uma
estatura mediana e era apenas ligeiramente mais alto do que Tokue.
Aquela observação não passou de uma distração momentânea e os seus
pensamentos depressa tomaram outro rumo. Tokue parecia tão viva na
fotografia que ele sentiu outro nó na garganta ao pensar nas provações que
tinham ensombrado a vida daquele sorridente casal.
Sentarô e Wakana acenderam os paus de incenso, colocaram-nos diante
das fotografias e juntaram as mãos em oração.
— Agora, se não se importam, há algumas coisas que sei que a Tokue
gostaria que lhe desse. — Miss Moriyama indicou uma caixa de madeira ao
lado de um pequeno forno num canto da cozinha. Estava cheio de utensílios
para confecionar doçaria.
— Pensámos dividi-los entre nós para ficarmos com uma recordação da
Tokue, mas também estamos todos velhos e é bem possível apanharmos
alguma coisa e morrermos de um dia para o outro. — Miss Moriyama
esboçou um pequeno sorriso.
— É por isso que é preferível ficarem com uma pessoa como o senhor,
Mr. Tsujii. Tudo o que está nesta divisão será retirado no fim do mês. Tudo
desaparecerá.
Sentarô ajoelhou-se ao lado da caixa de madeira e esticou a mão para
tocar nos utensílios de cozinha que Tokue usara no Grupo de Pastelaria.
Havia uma panela de cobre e uma espátula de madeira para confecionar pasta
de feijão doce, bem como um passador com rede de seda para transformar a
pasta de feijão grumosa em macia. Havia acessórios para gravar padrões nos
rikkyu manju, os bolos com pasta de feijão doce que eram servidos com chá
verde, um molde para confecionar geleia yokan de feijão azuki e um
recipiente para cozinhar dango, bolas doces de arroz, ao vapor. Também
havia muitos utensílios para doces Ocidentais: tigelas de vários tamanhos,
formas de tartes, latas para bolos, uma espátula para bolos e uma batedeira.
Dentro de um saco de plástico havia uma coleção de pontas metálicas de um
saco de pasteleiro.
Sentarô recordou o que Tokue lhe dissera a respeito de confecionar pasta
de feijão doce a primeira vez que estivera na Doraharu.
Faço pasta de feijão há cinquenta anos.
Lembrava-se claramente e também não esquecera a expressão de orgulho
no seu rosto quando proferira aquelas palavras.
Tocou ao de leve nos objetos com as pontas dos dedos.
— Estes utensílios foram muito usados.
Pegou numa velha espátula de madeira e mostrou-a a Miss Moriyama.
— Acho mesmo que seria melhor irem para o Grupo de Pastelaria.
Ela abanou a cabeça.
— O Grupo de Pastelaria não está ativo há dez anos ou mais.
— O quê? Mas eu pensei...
— Depois de sermos autorizados a sair daqui, podíamos comprar o que
quiséssemos. Se nos apetecer um bolo, compramo-lo no supermercado.
Deixou de haver necessidade de todos se juntarem para fazer bolos.
Sentarô acenou com a cabeça sem falar.
— A Toku era muito ativa e penso que ficou triste com essa mudança.
— Suponho que ela queria continuar a cozinhar. Doçarias — declarou
Sentarô.
— Sim. Oh, também há... — Miss Moriyama interrompeu o que estava a
dizer e fechou a boca.
Sentarô alinhou todos os objetos no chão. Em seguida, escolheu vários e
embrulhou-os num pano da loiça de algodão que viu na cozinha.
— Obrigado. Fico grato por levar estes.
Quando voltaria a estar diante de uma chapa? Não podia ter a certeza de
que esse dia chegaria. Não obstante, guardaria aqueles utensílios de cozinha
como recordação de Tokue.
Depois de terminar, Sentarô sentou-se de novo na divisão principal e viu
que Miss Moriyama tinha pousado uma lata de bolachas em cima da mesa.
— Isto é para si. — Retirou a tampa, revelando um maço de folhas de
papel de carta. — Ela deu-me esta carta antes de ser levada para a enfermaria
da clínica. Queria pedir-lhe desculpa por alguma coisa e, se não voltasse, eu
devia entregar-lha. — Miss Moriyama estendeu as folhas a Sentarô. Ele
olhou para Wakana. — Não está acabada. Foi o que ela disse.
Sentarô pegou nas folhas.
— Se me permite uma sugestão, quer lê-la aqui, onde ela a escreveu? A
Tokue demorou muito tempo a redigi-la. O senhor sabe bem como ela era
lenta a escrever.
Sentarô acenou com a cabeça e abriu a carta. Viu de novo a familiar
caligrafia ondulada, cada traço de cada caractere desenhado com dificuldade.
Caro Sentarô,