Professores Digital
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Libertar o futuro
António Nóvoa
1
Este é um livro para quem acredita no professor e na escola pú-
blica. Para quem se orienta pela bússola da liberdade e do bem
comum. Para quem defende, acima de tudo, o humano – e seus
direitos. Para quem reconhece a Educação como processo inse-
parável do encontro entre pessoas, de relações humanas, de co-
construção do sentido de humanidade.
Reunindo textos publicados em conceituadas revistas pedagógi-
cas, bem como muitos ensaios inéditos, Professores – Libertar
o Futuro constrói uma ponte entre o passado da Escola e suas
perspectivas de futuros. Sim, no plural, pois o futuro é uma es-
colha que seres humanos, como indivíduos ou organizados em
diferentes coletivos, devem fazer, dentro de um necessário e ur-
gente novo contrato social.
A nova obra do pesquisador António Nóvoa pode ser entendida,
assim, como reflexão lúcida, rigorosa e muito bem-organizada
em torno dos temas definidos pela UNESCO e pela Organização
Internacional do Trabalho para o Dia do Professor, nos últimos
10 anos. Mais do que isso, porém, é um manifesto inquestionável
em defesa de uma posição que não deixa dúvidas.
“Para deixar tudo claro: o que me interessa, desde sempre, é a
defesa dos professores e da sua profissionalidade, no contexto
de uma valorização da escola pública e do espaço público da edu-
cação. Assumo uma postura crítica em face dos discursos que
diminuem ou corroem a profissão docente. Refiro-me às inter-
mináveis discussões, que se prolongam há mais de meio século,
sobre a pertinência de aplicar à docência o conceito de profissão:
é como se estivéssemos perante um círculo vicioso que só con-
tribui para rebaixar os professores. Refiro-me também às expres-
sões, cada vez mais correntes, que tratam os professores como
colaboradores, facilitadores ou mediadores: é como se a palavra
“professor” fosse incômoda e inadequada para pessoas e grupos
que pretendem diluir a profissionalidade docente”.
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PROFESSORES
Libertar o futuro
António Nóvoa
Com a colaboração de Yara Alvim
São Paulo
2023
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© Diálogos Embalados
Rua Boa Esperança, 106 - Tatuapé
03408-000 - São Paulo - SP
Gestão Editorial
Ana Paula Piti Azevedo
Telma Holanda
Coordenação Editorial
Ana Paula Piti Azevedo
Consultoria
Paulo de Camargo
Revisão
Hebe Ester Lucas
—----------------------------------------------------------------------------------------------------
Nóvoa, António
Professores : libertar o futuro / António Nóvoa. -- 1. ed. -- São Paulo : Diálogos
Embalados, 2023.
ISBN 978-65-980068-0-8
23-151810 CDD-370.71
—----------------------------------------------------------------------------------------------------
1ª edição
Impresso no Brasil
maio de 2023
Impressão e acabamento
Pigma
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Dedico este livro às professoras e professores brasileiros
que, ao longo das últimas três décadas, tiveram
a generosidade de me ouvir, de me ensinar
e de trabalhar comigo.
De Boa Vista a Pelotas, de João Pessoa a Porto Velho,
e por todo o lado, encontrei, na vossa hospitalidade,
a parte de mim que me faltava.
Obrigado.
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6
Índice
Abertura ....................................................................................... 6
Capítulo 1
Os professores e os futuros da educação .......................................... 9
Capítulo 2
Professores: alargar as possibilidades de futuro ............................... 19
Capítulo 3
A educação e os nossos futuros comuns .......................................... 29
Capítulo 4
Nada substitui um bom professor ................................................... 39
Capítulo 5
A liberdade como princípio e como fim ........................................... 49
Capítulo 6
O conhecimento profissional docente:
consequências para a formação de professores ................................ 57
Capítulo 7
Jovens professores: o futuro da profissão ........................................ 77
Capítulo 8
Os professores depois da pandemia:
a reinvenção do futuro .................................................................. 91
Capítulo 9
E depois da pandemia? Recuperar ou transformar? ......................... 109
Capítulo 10
Os professores e a mudança:
que papel para a formação de professores? ..................................... 119
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Abertura
Em 1966, a UNESCO (Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a
Cultura) e a OIT (Organização Internacional do Trabalho) juntaram-se, no âmbito de
uma conferência intergovernamental especial, para a aprovação da importante Recomen-
dação relativa ao estatuto dos professores.
Os textos aqui reunidos são uma espécie de colagens, à maneira artística, que iluminam
distintas facetas da profissão docente. O livro assume uma certa “circularidade”, isto é,
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o regresso aos mesmos temas, ora para repetir ideias fundamentais, ora para as estudar a
partir de diferentes ângulos.
A intenção é contribuir para uma reflexão sobre os professores e a profissão docente num
tempo de profundas mudanças na educação e nas escolas. Estamos a passar por um mo-
mento de grandes dúvidas e incertezas, que não nos devem arrastar para o desânimo, mas
para uma mobilização coletiva e para a abertura de novos caminhos. A educação é um dos
lugares de transformação do mundo, mas, para isso, tem ela própria de se transformar.
Não se trata de alimentar visões mirabolantes de um futuro sem escolas e sem professo-
res, substituídos por aparatos tecnológicos ou pelo admirável mundo novo da inteligên-
cia artificial. Pelo contrário, devemos proteger, transformar e valorizar a educação como
bem público e comum e reforçar o papel dos professores (Nóvoa & Alvim, 2022).
O filósofo francês Edgar Morin, num dos seus últimos livros, convida-nos a mudar de via
(2020). Mudar de via e de vida nas escolas, com a adoção de um novo contrato social, pro-
posta feita pela UNESCO no seu último relatório sobre os futuros da educação (2021).
Temos de assumir, com coragem, as nossas dúvidas e, até, o risco de nos enganarmos.
O risco é uma necessidade essencial da alma, diz-nos Simone Weil: “A ausência de risco
suscita uma espécie de aborrecimento que paralisa de maneira diferente, mas quase tanto
como o medo” (1949, p. 49).
A escola futura será feita de cooperação. Ninguém se educa sozinho. Precisamos dos
outros para nos educarmos. Precisamos de professores. Precisamos do poder da relação,
do encontro entre mestres e discípulos. Precisamos, como escreve Bernard Charlot, de
ocupar o mundo com humanidade e ocuparmo-nos dele, com todas as formas de soli-
dariedade que este termo implica: “Deve ser este o princípio de base de uma educação
contemporânea. É da educação, e da educação humana, que se trata” (2020, p. 323).
As professoras e professores que hoje habitam as escolas são a geração da mudança. Du-
rante as vossas vidas profissionais, a educação e o ensino vão mudar profundamente.
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Há um grande mal-estar devido à falta de reconhecimento dos professores e a todas as in-
certezas que rodeiam o seu futuro. Mas, ainda assim, temos de ser capazes de um gesto de
esperança. Não se trata de um otimismo ingênuo, mas de uma esperança que se aprende
e se cultiva em comum. Precisamos criar um movimento de transformação da educação.
Esse movimento começa nos professores e com os professores.
O mais importante é sermos capazes de libertar o futuro, subtítulo que adotei para este
livro, inspirado por Ivan Illich (1971). Ninguém sabe como será o futuro e nem sequer
vale a pena tentar adivinhá-lo. Mas temos a obrigação de tudo fazer para não fechar as
possibilidades de futuro, para garantir a liberdade das gerações futuras.
Como bem lembrou o poeta e artista visual brasileiro Wlademir Dias-Pino, a liberdade é
sempre experimental.
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Capítulo 1
Os professores
e os futuros da educação
Lema do Dia Mundial do Professor 2013
Professores: pilares da democracia
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Este texto apresenta as linhas principais do novo relatório da UNESCO
sobre os futuros da educação, intitulado Reimaginar juntos os nossos fu-
turos: um novo contrato social da educação (2021).
Redigido por uma Comissão Internacional, nomeada em 2018, pela di-
retora-geral da UNESCO, Audrey Azoulay, este relatório assumiu, como
ponto de partida, a difícil situação dos direitos humanos no mundo e a
necessidade de a educação contribuir para consolidar as democracias e
um novo humanismo mais do que humano, isto é, capaz de incluir também
os direitos da Terra e de todas as espécies.
O relatório atribui um papel central aos professores, na transformação da
educação e na metamorfose da escola, em linha com o lema do Dia Mun-
dial do Professor, em 2013 – Professores: pilares da democracia.
Uma primeira versão deste texto foi publicada no JL - Educação (n. 1335,
2021, pp. 1-2), com o título Um novo contrato social da educação: repen-
sar juntos os nossos futuros.
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Os professores e os futuros da educação
No final de 2021, a UNESCO lançou um novo relatório, desta vez sobre os futuros da
educação, no plural. O documento vem na linha dos relatórios Edgar Faure (Aprender
a ser, 1972) e Jacques Delors (Educação: um tesouro a descobrir, 1996). A Comissão
Internacional era composta por 18 membros, tendo eu assumido a responsabilidade do
respectivo Comitê de investigação-redação.
No início dos trabalhos, em abril de 2018, muita gente se interrogou sobre a pertinên-
cia de um novo exercício prospectivo. Não seria mais importante concentrar esforços
na concretização da Agenda 2030, nomeadamente no 4.º Objetivo do Desenvolvimento
Sustentável sobre educação, em vez de perder tempo com exercícios “fúteis” de imagi-
nação do futuro?
No Relatório Faure, de 1972, já se afirmava que a educação estava num impasse e que
não bastavam as “fórmulas tradicionais”, exigindo-se uma “transformação qualitativa”
da educação. Cinquenta anos depois foi com esta ambição que a Comissão Internacional
sobre Os futuros da educação realizou os seus trabalhos. O ponto de partida foi a situação
do mundo e a necessidade de promover uma educação baseada nos direitos humanos.
Vale a pena transcrever alguns excertos do resumo que abre o relatório:
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O relatório atribui um papel central aos professores nos processos de transformação da
educação e da escola, e também como “pilares da democracia”.
Foi outra a sua intenção: construir uma conversa pública com educadores de todo o mun-
do, tentando perceber as grandes questões que atravessam a educação e identificar expe-
riências e iniciativas com futuro.
Em educação nunca há novidades. Tudo já foi dito ou inventado. Mas há mudanças im-
portantes, dinâmicas de transformação. É preciso repensar o que já se sabe e o que já se
faz evitando cair na ilusão de uma “novidade” sem raízes e sem história.
Como disse Arjun Appadurai, um dos membros da Comissão Internacional, este Relató-
rio é sobretudo food for thought (alimento para o pensamento), é sobretudo um convite
para o diálogo e a ação, e não tanto um relatório no sentido tradicional do termo.
Quando o tempo parece esgotar-se num interminável presente, é preciso recordar que
só os seres humanos têm consciência do futuro. A Comissão afastou-se de “visões futu-
ristas”, muito em voga, que anunciam a morte da escola e o retraimento da educação em
espaços domésticos ou familiares, imaginando que a inteligência artificial vai entrar no
cérebro de cada criança e fornecer-lhe “pílulas personalizadas de aprendizagem”.
Adotamos uma perspectiva utópica, não de um otimismo vazio, mas de esperança, para
não acrescentar crise à crise, e tudo verter num discurso catastrofista. Trabalhar para
um futuro comum foi, sempre, a nossa preocupação primeira. As ideias vêm de muitos
lugares do mundo. Tudo o que quisemos foi repensar, juntos, os futuros da educação.
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Juntos: o tema central do Relatório
O título provisório do Relatório foi, quase até o final dos trabalhos da Comissão, Lear-
ning to become (a tradução para português é difícil, talvez Aprender a tornar-se, o que
soa estranho). Ao longo dos debates, percebemos que este título acentuava as dimensões
individuais e diminuía as referências à educação como projeto coletivo.
Então, acrescentamos a palavra “juntos” (Learning to become together), para bem marcar
a importância das interdependências e da educação como um bem comum. O título final,
definido apenas na última reunião, ficou mais composto: Reimaginar juntos os nossos fu-
turos: um novo contrato social da educação. O Relatório foi tecido em torno do conceito
de “juntos”, enunciado sistematicamente no decurso do texto para sublinhar três ideias:
Essas ideias, ou ideais, não são de agora, fazem parte das melhores tradições pedagógi-
cas. Trata-se de valorizar “os laços que libertam” para recorrer a Bruno Latour (2021).
E para isso é preciso reformar a educação como projeto público e como bem
comum mundial. Há três movimentos que ficam muito claros no texto do relatório:
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Entre promessas passadas e futuros incertos
A primeira parte do Relatório faz um diagnóstico da educação no mundo, reconhecendo
os progressos feitos nas últimas décadas, mas também a persistência de exclusões e de
desigualdades. Os números são conhecidos: 250 milhões de crianças não vão à escola;
mais da metade dos alunos escolarizados não atingem níveis mínimos de aprendizagem;
750 milhões de adultos não são alfabetizados. E todos esses números se agravaram, bru-
talmente, durante a pandemia.
Uma quinta transformação, particularmente importante, acabou por não ter o devido
destaque: a demografia, com todas as suas consequências na vida social, na relação entre
gerações e no tempo disponível para a educação nas idades mais avançadas, quando se
prevê para breve uma esperança média de vida de 100 anos.
Renovar a educação
As propostas mais importantes, resultado de muitos diálogos com educadores de todo o
mundo, são apresentadas na segunda parte do Relatório. A Comissão não buscou a “no-
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vidade inédita”, mas antes as práticas e realidades concretas que, em muitos lugares, têm
vindo a transformar a educação. “Juntos” é a palavra que serve de denominador comum
aos cinco pontos analisados: pedagogia, currículo, professores, escola e sociedade.
3.º O trabalho transformador dos professores. Uma das posições mais fortes da Comissão
prende-se com a recusa de “visões futuristas” que apontam para o desaparecimento dos
professores, substituídos por dispositivos tecnológicos, ou para a diluição da sua profis-
sionalidade, transformando-os em “tutores”, “facilitadores” ou quaisquer outras figuras.
O reforço das dimensões colaborativas da profissão e de novos espaços de formação, jun-
tando universidades e escolas básicas, com a presença dos professores mais experientes
na formação das novas gerações docentes, é uma das linhas orientadoras do Relatório.
4.º Proteger e transformar a escola. A Comissão deixa um aviso sério contra as tendên-
cias, muito populares, que anunciam uma “educação ubíqua”, desvalorizando o espaço
da escola. O Relatório afirma mesmo que, se a escola não existisse, seria necessário in-
ventá-la como lugar de relação, de trabalho, de convivialidade, onde as crianças podem
encontrar o mundo e encontrar-se com ele. Mas a Comissão considera que esta escola
tem de se reinventar, renovando um “modelo escolar” obsoleto.
5.º Os diferentes tempos e espaços da educação. O último ponto é dedicado a pensar uma
educação que vai muito além da realidade escolar. A Comissão retoma perspectivas dos
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relatórios anteriores sobre a educação ao longo (tempos) e ao largo (espaços) da vida, de-
dicando particular atenção à educação de adultos, que deve ser repensada à luz das novas
dinâmicas de participação social e de cidadania e das mudanças demográficas. Propõe-se
um novo olhar sobre o conceito de formação, menos marcado, sobretudo nas idades mais
avançadas, pelo princípio de “preparar para uma vida futura”, e mais centrado no “viver
bem a coisa presente”.
A análise de cada um desses cinco pontos termina com uma referência ao ensino su-
perior. A Comissão considera que universidades e escolas básicas não podem estar de
costas voltadas e que é preciso inventar novas formas de partilha e de entendimento, no-
meadamente na produção de conhecimento, na pedagogia e na formação de professores.
O Relatório termina com um convite ao diálogo e à ação. A Comissão gostaria que o seu
texto fosse apenas o início de um processo de partilha de experiências, de troca de ideias
e de práticas entre educadores. É urgente refletir sobre o que já sabemos, e há um patri-
mônio extraordinário de conhecimentos comuns sobre educação.
É esse o sentido de um dos últimos livros de Philippe Meirieu sobre Ce que l’école peut
encore pour la démocratie:
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para revelar às nossas crianças a impostura de todos os tocadores de flauta,
comerciais e religiosos, que as querem tutelar. É preciso apostar na educação
para lutar contra os egoísmos descontraídos e para combater os fanatismos
mortais… Em suma, é preciso apostar que a escola ainda pode alguma coisa
para nos ajudar a avançar em direção à democracia” (2020, p. 23).
O Relatório desenvolve-se sempre com este espírito, chamando a atenção para a impor-
tância e a responsabilidade dos professores. O seu papel é primordial como pilares da
democracia, numa educação baseada nos direitos humanos e nos deveres que esses di-
reitos nos impõem.
No início do século XX, a filósofa francesa Simone Weil, no seu texto Étude pour une
déclaration des obligations envers l’être humain, afirma que a cada necessidade de um ser
humano “deve corresponder uma obrigação” (2018, p. 67).
No fundo, é o que José Saramago nos dirá no dia 10 de dezembro de 1998 ao receber o
Prêmio Nobel de Literatura, afirmando que nenhuns direitos humanos poderão subsistir
sem a simetria dos deveres que lhes correspondem: “Tomemos então, nós, cidadãos co-
muns, a palavra e a iniciativa. Com a mesma veemência e a mesma força com que reivindi-
carmos os nossos direitos, reivindiquemos também o dever dos nossos deveres. Talvez o
mundo possa começar a tornar-se um pouco melhor” (2013, p. 90).
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20
Capítulo 2
Professores: alargar as
possibilidades de futuro
Lema do Dia Mundial do Professor 2014
Investir no futuro, investir nos professores
21
Este texto procura refletir sobre o papel dos professores no alargamento
do futuro, melhor dizendo, no alargamento das possibilidades de futuro.
A defesa de uma “humana docência”, de um trabalho de “educar humanos
por humanos para o bem da humanidade”, justifica-se na perspectiva de
libertar o futuro. Os professores têm de ser protegidos e valorizados para
que possam cumprir plenamente a sua missão humanista.
O texto dialoga com o lema do Dia Mundial do Professor, em 2014 – Inves-
tir no futuro, investir nos professores.
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Professores: alargar as possibilidades de futuro
Paul Valéry avisa-nos ser fútil, e perigoso, prever com base em dados recolhidos na vés-
pera ou na antevéspera, ainda que seja sábio mantermo-nos preparados para tudo, ou
para quase tudo: “Nunca o futuro foi tão difícil de imaginar. Mesmo quando o tentamos
esboçar, os traços confundem-se, as ideias opõem-se às ideias, e perdemo-nos na desor-
dem característica do mundo moderno” (1932).
Paul Valéry refere, ainda, que “todo o futuro da inteligência depende da educação”
(1935). É um apontamento muito importante, que apela à humildade perante o futuro,
perante qualquer tentativa de prever ou de controlar o futuro. Nesses tempos de crise,
há muita gente com coragem de viver, mas, por vezes, com medo de imaginar o futuro, o
que pode nos levar a inércias fatais, nomeadamente no campo da educação.
Kery Facer tem razão quando diz que pensar em “escolas preparadas para o futuro” re-
presenta, muitas vezes, uma atitude defensiva e que devemos, isso sim, imaginar “esco-
las construtoras do futuro”:
A ideia de investir no futuro está bem presente nessa posição. É nela que devemos basear
a nossa atitude em face das crises que atravessam as sociedades contemporâneas e à pos-
sibilidade de uma transformação da educação.
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A humana docência
Num tempo de grandes mudanças, muitos alimentam visões “fantásticas” de um futuro
sem escolas e sem professores. Seria um futuro sem futuro, pois a educação implica a
existência de um trabalho em comum num espaço público, implica uma relação humana
marcada pelo imprevisto, pelas vivências e pelas emoções, implica um encontro entre
professores e alunos mediado pelo conhecimento e pela cultura. Perder essa presença
seria diminuir as possibilidades da educação.
Os efeitos devastadores da pandemia podem prolongar-se por muito tempo na nossa vida
em comum, social, coletiva, partilhada. Por medo ou por precaução, podemos ter ten-
dência a nos retrair, a nos fechar em ambientes familiares, privados, isolados, separados
dos outros.
As tecnologias fazem parte da nossa vida, do dia a dia das nossas crianças, mas a educação
dá-se sempre num contexto de relação humana. A educação não é apenas um ato indi-
vidual, é uma dinâmica de aprendizagem com os outros. Ninguém se educa sozinho. É
impossível. A relação humana é tão importante que não consigo imaginar que a educação
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possa ser feita de forma totalmente virtual, a distância. Os dispositivos digitais que temos
ao nosso alcance são úteis. Ninguém deve recusá-los. Mas dizer que a educação vai passar
a ser feita unicamente a distância seria perder a dimensão da relação humana, do impres-
cindível encontro humano. Não há educação sem afeto, não há educação sem sentimento,
não há educação sem relação humana profunda, de alunos com alunos, de alunos com
professores. Não se pode conhecer sem sentir, não se pode aprender sem emoção, sem
empatia. Não podemos nos educar sem os outros.
Mas sempre que perguntamos às pessoas, sobretudo aos professores, o que estavam fa-
zendo, em que experiências ou iniciativas estavam envolvidos, tivemos respostas extra-
ordinárias, com exemplos de processos de renovação e transformação da educação. São
experiências que nasceram, quase sempre, de dois ou três professores, frequentemente a
partir da mudança dos espaços da escola (junção de salas de aula, organização diferente
das turmas etc.) ou de dinâmicas inovadoras de trabalho pedagógico (projetos, temas
transversais etc.). Percebemos, por meio dessas respostas, que o futuro já está inventado.
Falta apenas transformá-lo em presente.
Uma das grandes filósofas norte-americanas, Maxine Greene (1982), feminista e pen-
sadora das artes na educação, afirmou que não é possível encontrar nenhum propósito
coerente para a educação se alguma coisa comum não acontecer num espaço público. É
uma fórmula extraordinária para juntar o comum e o público, explicando que a educação
depende de uma relação com os outros, sobretudo com os outros diferentes.
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Aprender e estudar em comum é a melhor forma de promover uma “sociedade convi-
vial”, uma humanidade comum. Ainda temos tempo?
Nos tempos dramáticos que estamos vivendo, temos obviamente muitas dúvidas e hesita-
ções. Não sabemos bem o que pensar, nem o que fazer, nem a melhor forma de agir. Essas
dúvidas são legítimas, e até necessárias. Precisamos conversar sobre elas com os nossos
colegas e ir encontrando os caminhos que permitam continuar a ação.
A conversa entre nós, a partilha das nossas dúvidas, é a melhor forma de manter a liber-
dade, uma liberdade que pertence a cada um de nós, irredutivelmente, mas que ganha um
alcance maior no encontro com os outros.
Nunca pensamos sozinhos. Hoje, sabemos, melhor do que nunca, que isoladamente pou-
co ou nada podemos. Só “juntos” poderemos encontrar os caminhos do futuro para a
educação.
Vale a pena trazer essa expressão para uma reflexão geral sobre a educação, particular-
mente nos tempos pós-pandêmicos que estamos vivendo.
Educar humanos. Ninguém pode fazer a viagem por nós. Permitam-me uma afirmação
evidente, mas para alguns inaceitável: a missão de um professor de Matemática não é
ensinar Matemática, é formar um aluno por meio da Matemática. Estaria eu, por esta via,
diminuindo a importância da Matemática e do seu ensino? De modo nenhum. Estou afir-
mando precisamente o contrário, que a sua necessidade é tão grande que, sem Matemáti-
ca, não é possível a educação de um ser humano. Mas a educação é um processo pessoal
de apropriação do conhecimento, pelo qual nos tornamos mais preparados e capazes.
Achar que tudo termina com a aula do professor, por muito notável que ela seja, isso sim
seria cair num preocupante “facilitismo”. A nossa palavra como educadores será inútil se
não for capaz de despertar a palavra própria do educando.
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Por humanos. Ninguém se educa sozinho, nem mesmo com o admirável mundo da inte-
ligência artificial que bate às nossas portas. Precisamos de outros humanos, dos nossos
professores e dos nossos colegas. Dos professores, esperamos uma expansão do nosso
repertório, por meio da aquisição de linguagens que nos permitam ler o mundo e inter-
pretar a avalanche diária de informação e desinformação. Se ficarmos só com as imagens
rasas do dia a dia, não sairemos do lugar. Precisamos que os professores nos ajudem a
chegar a Camões, a Einstein, a Picasso. Esperamos que eles se juntem e nos juntem numa
aprendizagem cooperativa. A cooperação é a chave da educação na contemporaneidade.
Para o bem da humanidade. Voltemos a George Steiner (2017) e à pergunta que tem
repetido ao longo da sua vida: por que é que alguns dos gestos mais bárbaros da história
humana foram cometidos por pessoas cultas? Como é possível apreciar um concerto de
Debussy enquanto ao longe se ouvem os gritos daqueles que são levados para o campo
de concentração de Dachau? Por que é que a cultura e o conhecimento não nos humani-
zam? A resposta está na incapacidade de pensar a educação como um bem comum. Não
me interessa acentuar o comum que vem de “comunidade”, pois vivemos um tempo de
identidades excessivas e a missão da escola é alargar horizontes e pertenças. Interessa-
-me, antes, chamar a atenção para o comum que vem de “comunicação”, pois é nele que
residem as possibilidades de diálogo e de partilha com os outros. É o tema da cidadania,
da participação na res publica, da importância da educação como projeto público.
Historicamente:
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- os professores nunca viram o seu conhecimento próprio devidamente
reconhecido, mesmo quando se enalteceu a sua missão; hoje, temos a
consciência clara de que nada será conseguido sem uma valorização do
conhecimento profissional docente – eis o terceiro dilema.
A partir desses três dilemas, é possível identificar três disposições dos professores que
são decisivas para o futuro.
Essas três dimensões são essenciais para reforçar os professores e para permitir que de-
sempenhem plenamente o seu papel na construção dos futuros da educação. São muitas
as crises globais que atingem a educação: a transição digital, as alterações climáticas, os
retrocessos democráticos, as transformações do trabalho, as mudanças demográficas, as
migrações e as mobilidades etc. Para pensar e agir com lucidez em face dessas crises, os
professores necessitam de condições excepcionais.
28
professores e a carreira docente, acolher e ajudar os jovens professores, apoiar a partilha
de experiências e de iniciativas.
Para investir no futuro precisamos investir nos professores. Dito de outro modo: se que-
remos que os professores sejam elementos centrais para “libertar o futuro”, precisamos
libertar o futuro dos próprios professores. Não podemos continuar a exigir-lhes quase
tudo, e a dar-lhes quase nada.
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30
Capítulo 3
A educação e os nossos
futuros comuns
Lema do Dia Mundial do Professor 2015
Reforçar os professores, construir sociedades sustentáveis
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Este texto procura refletir sobre o papel da educação e dos professores na
construção de sociedades sustentáveis.
Após uma referência ao futuro, o texto refere a importância de uma abor-
dagem educativa baseada nos direitos humanos e de cinco temas centrais
para a agenda da sustentabilidade: a paz, as alterações climáticas, as desi-
gualdades, o digital e a demografia.
O texto dialoga com o lema do Dia Mundial do Professor, em 2015 – Re-
forçar os professores, construir sociedades sustentáveis – e termina com
uma análise sobre os nossos futuros comuns e a importância do espaço
público e comum da educação.
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A educação e os nossos futuros comuns
Em 2015, os países do mundo estabeleceram um acordo em torno da Agenda 2030,
composta por 17 Objetivos do Desenvolvimento Sustentável. Foi um passo de grande
significado, um marco no multilateralismo. Desde então, a maioria dos documentos e
das iniciativas das Nações Unidas tem como horizonte essa Agenda. Naturalmente, nesse
ano, o Dia Mundial do Professor chama a atenção para esta realidade e adota como lema
Reforçar os professores, construir sociedades sustentáveis.
Neste texto, quero sublinhar a forma como a Agenda 2030 coloca a sustentabilidade no
centro das preocupações internacionais e, ao fazê-lo, convida a educação a assumir uma
perspectiva mais ampla e a reorganizar-se para “construir sociedades sustentáveis”. Ape-
sar de sabermos que as metas desta Agenda não serão atingidas até 2030, nem por isso
esse documento deixou de contribuir, significativamente, para uma compreensão mais
ampla dos temas educativos e da ação dos professores.
Pensar o futuro, e pensar no futuro, implica este duplo movimento: consciência e liber-
tação. Consciência em face dos desafios presentes e futuros, o que obriga a enfrentar os
dilemas presentes sem pôr em jogo as possibilidades futuras. Libertação que quer dizer,
também, deliberação, capacidade de participar e de tomar decisões sobre as nossas vidas.
A educação serve para nos ajudar a proteger e a libertar o futuro. Nada fazer que ponha
em risco o futuro. Tudo fazer para preservar e ampliar as possibilidades de escolha e de-
cisão das gerações futuras. Esses dois movimentos são exatamente o contrário do que te-
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mos feito nos últimos tempos. Arrastada para uma lógica de sobrevivência, imposta pelas
sucessivas crises (financeira, climática, pandêmica), a vida contemporânea tem sido mar-
cada por um presentismo que reduz a temporalidade social e fecha tudo no imediatismo.
Antes de sobre eles refletirmos, é importante marcar a centralidade dos direitos huma-
nos, de uma intenção educativa pautada pela defesa e promoção dos direitos humanos.
É nesse sentido que o secretário-geral das Nações Unidas decidiu lançar um grande pro-
grama multilateral, designado A nossa agenda comum. Nesse programa, voltado para o
futuro, os jovens desempenham um papel fundamental.
Na sua concretização, a educação ocupa um lugar maior, como se comprova pelo fato de
a primeira iniciativa ter sido a realização da cúpula das Nações Unidas, Transformando
a educação, realizada em Nova York no mês de setembro de 2022, na qual se faz uma
menção direta à importância da formação de professores como um desafio global.
Primeiro tema: a paz. A educação deve ter como grande orientação a paz, não num sen-
tido retórico, mas na possibilidade de organizarmos as escolas e os ambientes educativos
como lugares de convivialidade, de aprendizagem do viver com o outro, com os outros.
Ivan Illich disse-o de maneira extraordinária quando escreveu o livro Tools for convivia-
lity (1973b), isto é, a construção de instrumentos que nos permitam viver em comum. A
educação é um desses instrumentos, talvez mesmo o mais importante.
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Segundo tema: as alterações climáticas. A questão climática adquiriu, recentemente,
uma enorme centralidade. Há a consciência mundial de que, se não mudarmos de vida,
se não pusermos fim a uma sociedade consumista e predadora dos recursos naturais, a
humanidade não terá qualquer futuro. A educação de base humanista tem de pensar num
“humanismo mais do que humano”, que integra os direitos do planeta e de todos os seres
e espécies. Esta deve ser uma linha estruturante do currículo e da educação, sempre com
o propósito de maior justiça climática, com o reconhecimento e a inspiração em comuni-
dades e culturas que sempre souberam viver em paz com a Terra.
“As plataformas digitais, baseadas num modelo de negócios que monetiza in-
dignação, raiva e negatividade, estão causando danos incalculáveis a comuni-
dades e sociedades. Discursos de ódio, desinformação e abuso – direcionados
especialmente a mulheres e grupos vulneráveis – estão proliferando. Os nos-
sos dados estão sendo comprados e vendidos para influenciar o nosso com-
portamento, sem levar em consideração a privacidade. A inteligência artificial
pode comprometer a integridade dos sistemas de informação, da mídia e até
da própria democracia. A computação quântica pode destruir a segurança ci-
bernética e aumentar o risco de mau funcionamento de sistemas complexos”.
Precisamos nos preparar para este mundo. A melhor forma é pela educação.
35
Quinto tema: a demografia. Por fim, precisamos entender as imensas consequências da
maior revolução de nossas sociedades, a revolução demográfica, com consequências na
participação na vida política, social e econômica, na transmissão do patrimônio familiar,
nas dinâmicas intergeracionais, na habitação, na saúde, nos transportes, nas cidades, no
consumo e, sobretudo, na educação. Deixem-me dar um exemplo para explicar a dimen-
são dessa revolução, recorrendo a valores médios no mundo. Em 1920, há cem anos,
a expectativa de vida era de 40 anos – tudo acontecia entre duas gerações. Cinquenta
anos depois, em 1970, a expectativa de vida já era de 60 anos – tudo acontecia entre três
gerações. Hoje, em 2022, a expectativa de vida aumentou para 80 anos – tudo acontece
entre quatro gerações. E daqui a trinta anos, mais rápido do que nos ciclos anteriores,
tudo aponta para uma expectativa de vida de 100 anos – tudo acontecerá entre cinco gera-
ções. Alguém consegue imaginar uma mudança mais profunda com consequências para
a educação e para o futuro?
Para enfrentar esses desafios é preciso recuperar um pensamento que se projeta num
tempo longo. Temos todos os motivos para sermos pessimistas e poucos para sermos oti-
mistas. O mundo parece cada vez mais desregulado e ao sabor de todo tipo de ditadores.
Mas denunciar esse mundo não deve nos impedir de cultivar a esperança, no sentido de
uma das grandes obras do século XX, O Princípio Esperança, do filósofo alemão Ernst
Bloch (1982), que nos lembra a docta spes, ou seja, a esperança que se cultiva, que se
aprende, a esperança aprendida.
Futuros comuns
Historicamente, o processo de construção da cidadania nacional fez-se por meio de uma
escola que adquiriu uma forma uniforme (idêntica e homogênea em todo o mundo) e um
currículo uniforme (a cultura geral que todos devem possuir).
A forma escolar consolida-se ao longo do século XX, de tal maneira que, pouco a pouco,
vamos esquecendo a existência de outras formas de educar. Simultaneamente, definem-
-se as bases de um currículo escolar que adquire configurações muito semelhantes em
todo o mundo.
Nas décadas finais do século XX, tem lugar processo de valorização de um novo conceito
ou ideário. Depois da cidadania, a economia. Em torno do “capital humano” vulgariza-se
a tese de uma ligação direta entre a educação e o desenvolvimento econômico, uma visão
que domina as políticas educativas até os dias de hoje.
36
A forma da escola, o conhecimento escolar e a ligação com a economia têm de ser re-
pensados à luz das realidades contemporâneas, por meio de um processo de metamor-
fose da escola.
A terceira face é a valorização da dimensão humana. A educação não pode ser reduzida a
mera formação técnica para o desenvolvimento econômico. Juntemos uma filósofa e um
neurocientista. Martha Nussbaum (2010) refere-se à empatia como elemento decisivo
para a aprendizagem. Assume, assim, a importância de uma relação humana que não se
limita à aquisição de técnicas e de competências. António Damásio (2020) fala-nos das
emoções e dos sentimentos como provocadores das aprendizagens. Ao fazê-lo, enrique-
ce o fenômeno educativo com dimensões subjetivas que são centrais para o processo de
conhecimento. O grande ensino é aquele que desperta dúvidas, que encoraja a dissidên-
cia, que prepara o aluno para a partida, diz-nos George Steiner (1994). Educar não é
apenas formar “recursos humanos”.
Por um momento, acreditamos que o digital ia ser uma imensa janela para todos os mun-
dos, culturas e conhecimentos. A ilusão tornou-se pesadelo. Uma das nossas maiores
surpresas é a fragmentação e o hiperindividualismo que reinam no cibermundo. Na rede
podemos ser tudo o que quisermos, transformar-nos nos heróis exaltados, gloriosos, que
proclamam a sua “liberdade total” num universo totalmente vigiado.
37
Contrariamente ao que esperávamos, a rede não tem sido uma porta de acesso à diversi-
dade, mas antes um lugar aonde vamos à procura dos que pensam como nós e dos argu-
mentos que reforçam as nossas crenças e convicções. Hoje, mais do que nunca, a escola
tem de reconstruir o comum como elemento central da educação e da sociedade.
Este comum não remete para uma “comunidade de identidade”, mas para uma “comuni-
dade de trabalho”, isto é, para aquilo que fazemos uns com os outros, independentemen-
te de quem somos ou de onde vimos. Nesse sentido, assenta num princípio de comunica-
ção, de encontro, não entre semelhantes, mas entre diferentes. Importante é “um modo
comum de compreender”, o que implica a capacidade de enriquecermos mutuamente as
nossas experiências pessoais e a inteligência do mundo.
Já não nos basta uma pátria comum (a cidadania nacional). Precisamos recorrer a duas
outras metáforas para explicar o que se espera da escola: uma Terra comum e uma Hu-
manidade partilhada.
Esse trabalho, esse pensamento e essa partilha não se fazem no vazio, necessitam de ins-
trumentos, de linguagens, que só a ciência, a criação e o conhecimento podem fornecer.
O cibermundo está incentivando uma sucessão interminável de monólogos entre iguais.
A escola tem de construir as condições para um diálogo entre diferentes, assente no co-
nhecimento, na compreensão mútua e num debate esclarecido e informado.
Dito de outro modo: precisamos rever o contrato social assinado no século XIX – “deem-
-nos os vossos filhos, nós os educaremos nas escolas” – e trabalhar em conjunto para o
38
reforço de um espaço público que junte a escola com outras instituições, e os professores
com os pais e outros atores sociais. Não se educa apenas no interior do recinto escolar.
O espaço público e comum da educação tem de ser uma esfera de discussão, mas também
de deliberação e de ação. Não se trata apenas de ouvir os cidadãos, mas de inscrevê-los
como parceiros num esforço educativo que pertence ao conjunto da cidade, da polis. Só
assim conseguiremos criar novos vínculos e responsabilidades, e evoluir para uma maior
presença dos professores e da sociedade na construção das políticas públicas de educação.
O comum é mais do que o público, na medida em que assenta necessariamente num es-
forço de partilha, de participação e de decisão coletiva. Não é unificação a partir de um
qualquer imaginário do mundo, seja nacional, seja outro, mas antes abertura a práticas
de colaboração e de cooperação.
Nesta capacidade de construir o comum está a força de uma sociedade sustentável. A edu-
cação tem um papel insubstituível nesse processo, tanto pela capacidade de transmitir
um conhecimento científico atento aos grandes temas do nosso tempo como pela criação
de ambientes de estudo e de trabalho baseados no trabalho conjunto e na cooperação.
Fortalecer os professores é uma condição necessária para que a educação cumpra a sua
missão na construção de sociedades sustentáveis.
39
40
Capítulo 4
41
Este texto procura explicar a importância dos professores e a necessida-
de de reforçar o seu estatuto e a sua liberdade, em linha com o lema do
Dia Mundial do Professor, em 2016 – Valorizar os professores, melhorar
o seu estatuto.
Após uma introdução em que se explica a razão por que “nada substitui
um bom professor”, analisam-se cinco aspectos da Recomendação da
OIT/UNESCO de 1966 relativa ao estatuto dos professores.
No final, deixa-se um apontamento sobre a importância de uma relação
entre mestres e discípulos baseada na liberdade.
42
Nada substitui um bom professor
Nada substitui um bom professor. Nada. Nada mesmo. Nada o substitui para apresen-
tar o mundo, todos os mundos, aos mais novos. Nada o substitui para dar aos alunos
a possibilidade de chegarem mais longe, aonde nunca chegariam sem o seu trabalho,
sem a sua dedicação.
Para isso, precisamos de professores inteiros, seguros, confiantes. E aqui surge um pri-
meiro problema, que se arrasta há anos. Como construir essa confiança num tempo em
que os professores parecem culpados de todos os males, de todas as dúvidas, de todas as
hesitações que a escola vive?
As famílias podem, e devem, dar aos seus filhos a educação que considerem mais adequa-
da. As religiões, também. As comunidades, também. Mas a educação escolar – e sobre-
tudo a escola pública – é de um outro tipo: aqui apresenta-se a humanidade toda, e não
apenas uma parte da humanidade, uma dada visão familiar, religiosa ou comunitária. Por
isso, a ciência é tão importante como matriz do currículo. E as artes, também.
É certo que quando se educam crianças iguais com crianças iguais, da mesma “cor” ou
“encadernação”, tudo parece mais fácil. Mas, nessa facilidade, perde-se o sentido do “co-
mum”, do espaço em que partilhamos as nossas diferenças e nos construímos como so-
ciedade. Nessa facilidade, perde-se a escola enquanto lugar de todos, nas suas igualdades
e nas suas diversidades.
Aqui surge um segundo problema, bem patente em certas ideologias. Os pais é que de-
veriam ditar a “cor” da escola, e a isso chamam “liberdade de escolha”. Esquecem-se de
falar da liberdade dos alunos, melhor dizendo, do direito dos alunos a uma educação com
a humanidade toda, feita de diálogo, para que todos aprendam a conviver, a viver com o
outro, com todos os outros.
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A escola não é apenas um serviço, por mais qualidade que tenha. É, acima de tudo, uma
instituição, que nos constrói como sociedade, que nos abre ao mundo e aos outros, que
alarga a liberdade dos alunos, que permite a cada um construir um futuro a que nunca
teria chegado se tivesse ficado em “casa”, na escola do seu lugar de nascimento.
Nada substitui um bom professor. Na capacidade de estar presente nas escolas e no espa-
ço público da educação. Na capacidade para organizar o trabalho docente e para partici-
par nas políticas públicas de educação.
A participação é difícil, demora tempo, exige trabalho. Mas sem ela não vale a pena a
retórica constante sobre a importância dos professores. Fica tudo na casca das palavras.
A vida deve ser conduzida na procura de envolvimento das pessoas, de um reforço da
proximidade, não de uma proximidade vazia, paternalista, mas de uma proximidade que
promova a participação e a decisão.
É muito curioso que haja apelos tão pungentes para um consenso em torno das políticas
da saúde ou da justiça, com o envolvimento de todos os “parceiros”, de todos os “profis-
sionais”, mas quando o mesmo apelo surge na área da Educação, fala-se da “estabilidade”
e da “continuidade” das políticas, mas logo se esquecem os professores, que constituem
o grupo profissional mais numeroso e mais qualificado das sociedades contemporâneas.
Estranha incoerência.
44
Estamos perante transformações só comparáveis às que aconteceram em meados do sé-
culo XIX, quando se consolidou, em todo mundo, o modelo escolar que ainda hoje pre-
valece. A geração atual é a geração que vai mudar as escolas. Não sabemos como será o
futuro, mas sabemos que este modelo escolar tem os dias contados. Debaixo dos nossos
olhos e, por vezes, perante certa indiferença da nossa parte, está surgindo uma realidade
nova. Para compreendê-la, precisamos de coragem, de uma abertura ao futuro, de uma
profissão forte, dentro e fora, na escola e na sociedade.
Estas reflexões abrem espaço para uma reinterpretação, em cinco andamentos, da Re-
comendação da OIT/UNESCO relativa ao estatuto dos professores, adotada em 1966.
Entre aspas são transcritos os parágrafos do texto que orientam a leitura.
1.º andamento
“6. O ensino deve ser considerado uma profissão, cujos membros prestam
um serviço público; esta profissão exige dos professores não apenas co-
nhecimentos profundos e competências específicas, adquiridos e mantidos
através de estudos rigorosos e contínuos, mas também um sentido das suas
responsabilidades pessoais e coletivas tendo como objetivo a educação e o
bem-estar dos alunos a seu cargo.”
Este primeiro andamento parece quase desnecessário, mas não é – o ensino deve ser
considerado uma profissão. Parece óbvio, mas não é. Na verdade, alguns dos equívocos
que ainda hoje atingem os professores prendem-se ao fato de muitas pessoas não consi-
derarem o ensino uma profissão. Diz-se que quem sabe alguma coisa naturalmente sabe
ensiná-la, sobretudo com todas as ajudas que o digital proporciona.
Para que a pertença, o enraizamento profissional? Para que a construção de uma identi-
dade, de uma profissão? Para que complicar essa coisa tão simples, ao alcance de qual-
quer um, que é ensinar crianças?
É justamente porque esta conversa não é inocente e tem informado muitas políticas que
vale a pena recordar a Recomendação de 1966 e o lema do Dia Mundial do Professor, em
2016 – Valorizar os professores, melhorar o seu estatuto.
45
2.º andamento
Nesse segundo andamento, a Recomendação toca num ponto decisivo, falando da forma-
ção “profissional” dos professores. É o que tantas vezes nos recusamos a ver.
46
cotômicos habituais, valorizando ora a universidade como lugar da teoria, ora a escola
como lugar da prática. As dicotomias fecham o pensamento e impedem a construção de
novas ideias e propostas. Nada se faz numa lógica binária. A saída está sempre num “ter-
ceiro lugar” que é muito mais do que a simples soma dos dois lugares anteriores.
O que é verdade para a formação inicial é mais verdade ainda para o período de indução
profissional, esse período tão decisivo, mas tão descuidado de integração na profissão,
durante o qual nos tornamos professores. A ausência de estratégias de acolhimento, de
socialização profissional, fragiliza, e muito, a profissão docente.
3.º andamento
“85. O trabalho do professor é tão especial e tão útil que deveria ser organizado
e facilitado de modo a evitar toda a perda de tempo e de energias.”
O terceiro andamento é curto, mas da maior importância. Nos últimos anos, a queixa
mais ouvida dos professores é a burocracia, a imensidão de tarefas, tantas vezes inúteis,
que infernizam o seu dia a dia. E têm razão.
Tudo nos desvia do nosso trabalho, do tempo, da reflexão, de uma relação serena com a
profissão. Precisamos “limpar” o dia a dia dos professores de tudo o que isso traz – um
grande esgotamento pessoal, uma falta de sentido na nossa relação com a profissão, des-
motivação e mal-estar.
47
É também daqui que vem um desgaste coletivo, a impossibilidade de encontrar o tempo
e a disposição para trabalhar com os colegas, para a cooperação, para a colegialidade
docente, para o tão necessário reforço do coletivo profissional.
Ora, é no reforço desse coletivo que se define grande parte do futuro da profissão, na
liberdade de organização do trabalho docente, na avaliação interpares, no papel a exer-
cer por aqueles professores que, devido ao seu reconhecimento pelos colegas, devem
ser uma referência no espaço da escola e da profissão. Que grande política seria esta, a
do ponto 85 da Recomendação: libertar o trabalho do professor de modo a evitar toda a
perda de tempo e de energias.
4.º andamento
Este quarto andamento é tão óbvio que dispensa grandes explicações. Os pontos 9 e 76
da Recomendação dizem tudo. E, no entanto, ainda há muita gente que olha para os pro-
fessores e para as suas organizações como um “problema” para as políticas educativas.
Não percebem a importância da liberdade, da liberdade que é participação, da partici-
pação que é “fazer parte” da decisão, e não apenas ser “consultado”. Pensam o futuro,
e a política, com os olhos de ontem. Apenas como representação. Quase nunca como
participação. Estão fechados no passado.
5.º andamento
48
O quinto andamento parece idêntico ao anterior, mas não é. Pretende chamar a atenção
para o espaço público da educação, um espaço que tem “escolas”, mas que tem muitas
outras instituições, muitos outros lugares de aprendizagem, de cultura e de formação.
A educação nunca coube apenas nas fronteiras escolares, mas hoje ainda menos. As no-
vas formas de acesso ao conhecimento, as novas dinâmicas de aprendizagem, bem como
a existência de sociedades mais capazes e mais preparadas, abrem uma realidade nova
e exigem um novo contrato social em torno da educação, muito diferente daquele que
celebramos há 150 anos.
Nesse tempo, impôs-se um “modelo escolar” que trouxe quase tudo para dentro da es-
cola. Agora, é preciso devolver uma parte da educação à sociedade, compreender a ca-
pilaridade educativa, a malha de possibilidades, físicas e virtuais, de aprendizagem e de
conhecimento. Estamos perante uma realidade radicalmente nova que vai transformar as
escolas e a forma como serão habitadas pelos alunos e pelos professores.
É para esta abertura que precisamos da participação dos professores na vida social e pú-
blica, na polis, na cidade, “no seu próprio interesse, do ensino e da sociedade no seu
todo”. É para este debate que precisamos de professores com uma voz respeitada e reco-
nhecida, que falem dos temas da educação, no espaço público, a partir do conhecimento,
e não da ignorância, a partir do compromisso, e não da indiferença ou do cinismo.
“61. No exercício das suas funções, o corpo docente deve usufruir de liber-
dade acadêmica. Os professores estão nas melhores condições para definir
os meios e métodos de ensino mais adequados aos seus alunos e, por isso,
devem ter um papel decisivo na escolha dos materiais de ensino, na seleção
dos manuais e na aplicação dos métodos pedagógicos, no âmbito dos pro-
gramas aprovados e em colaboração com as autoridades escolares.”
Há muito que as sociedades têm dificuldade em dar um rumo à educação das suas crian-
ças. Será isso a “crise” da educação? Se tivermos, primeiro, a coragem de reconhecer
que “não sabemos”, poderemos, então, procurar um sentido para o ato de educar. As
metáforas do molde ou da escultura não nos ajudam. A metáfora da planta e do jardineiro,
49
também não. A melhor metáfora educativa é a viagem, a preparação para uma viagem pelo
desconhecido. Para que serve a educação? Para libertar futuros, individuais e coletivos.
Para preparar antecipadamente as crianças para a tarefa que lhes pertence, a de renova-
rem um mundo comum, escreveu Hannah Arendt (2001).
É para isso que serve a liberdade dos professores, para despertar a liberdade dos alunos.
Porque nada, nada mesmo, substitui um bom professor.
50
Capítulo 5
51
Este texto reflete sobre a liberdade, em diálogo com o lema do Dia Mundial
do Professor, em 2017 – Ensinar em liberdade, fortalecer os professores.
O texto desdobra-se em diversas referências à liberdade, a partir de seis
conceitos centrais para a educação pública: igualdade, diversidade e
aprendizagem, mas também participação, autonomia e criação.
Na parte final, defendem-se três movimentos de transformação: reforçar
o espaço público da educação; renovar a educação como bem público e
comum; e abrir a educação ao futuro.
Trata-se, no fundo, de fortalecer os professores para ensinarem em liberda-
de, e com liberdade. A liberdade como princípio e como fim da educação.
52
A liberdade como princípio e como fim
No ano de 2017, o lema do Dia Mundial do Professor foi dedicado à liberdade: Ensinar
em liberdade, fortalecer os professores. Os ataques aos direitos humanos, à democracia
e à liberdade cresciam, em todas as regiões do mundo, e era importante destacar o papel
dos professores na defesa da liberdade.
O tema terá sido escolhido pensando também no centenário da publicação de uma das
obras mais famosas da literatura educacional, Democracia e educação, de John Dewey,
ocorrido no ano anterior. Na apresentação da edição brasileira, Anísio Teixeira saúda
aquele que é considerado o filósofo da democracia: “Coube a ele desenvolver em todas as
suas possibilidades e consequências o ideal democrático, em face das condições moder-
nas da ciência e do mundo” (1952, p. 13).
Adotei para este capítulo o título A liberdade como princípio e como fim, a liberdade
como orientação e como finalidade. Precisamos instaurar ambientes educativos que
promovam a liberdade de professores e de alunos, que ajudem a dar liberdade ao nosso
futuro comum.
53
gatória, libertando as crianças e os jovens de um destino que, muitas vezes, os em-
purrava para a ignorância e para o trabalho infantil. Graças à escola pública, o sonho
de uma “educação para todos”, que pareceu impossível a tantas gerações, deixou de
ser uma miragem.
Liberdade que é aprendizagem. Não basta uma “escola para todos”, precisamos de uma
“escola onde todos aprendam”. Muitos contentam-se com o “sucesso parcial” de alguns.
Mas a nossa ambição tem de ser infinitamente maior. O compromisso com a aprendiza-
gem de todos é a marca d’água da escola pública. Não me refiro a métricas e indicado-
res que, nas últimas décadas, têm procurado medir a qualidade das aprendizagens e dos
sistemas de ensino, e que têm um alcance limitado. A educação é muito mais do que as
aprendizagens mensuráveis, pois tem dimensões incomensuráveis. É na capacidade de
ensinar os alunos que não querem ou não conseguem aprender que, verdadeiramente, se
define o grande desafio dos professores.
Deixem-me recordar duas histórias contadas por Antoine Prost (1985), num dos seus
livros mais conhecidos, Éloge des pédagogues. A primeira refere-se a uma aluna que pede
54
para falar com um professor e lhe diz que está grávida, que quer ter o bebê e casar com o
pai, mas tem a oposição da família. A segunda é de uma adolescente que diz a uma profes-
sora que se droga, pedindo-lhe para guardar segredo. Esses dois professores preferiam,
certamente, que essas alunas não lhes tivessem feito essas confidências. Mas fizeram. E
agora? Ser professor é infinitamente mais do que dar bem a matéria de uma disciplina.
Ficam aqui três liberdades que definem a educação pública. Ainda é longo o caminho
para que se cumpram plenamente. Completam-se com três outras liberdades.
Richard Sennett escreveu uma obra importante, Together, na qual explica a importância
de trabalhar em conjunto, de valorizar as práticas de cooperação como elemento central
do trabalho humano: “A cooperação está inscrita nos nossos genes, mas não pode ficar
bloqueada num comportamento rotineiro; necessita de ser desenvolvida e aprofundada”
(2012, p. ix). É assim na sociedade. É assim na escola. A cooperação tem de ser aprendida
e praticada, tem de ser cultivada em novos ambientes educativos que incentivem a parti-
cipação de professores e alunos.
O conceito de convivialidade, elaborado por Ivan Illich (1973a), tem sido muito utilizado
nos últimos anos, sobretudo durante a pandemia, quando se tornou nítida a necessidade
de criar condições para uma vida em comum. A importância dos laços, dos vínculos, dos
entrelaçamentos, ganhou uma dimensão inesperada e inscreve-se numa nova consciên-
cia planetária. Os laços que nos ligam também nos libertam. É um trabalho que deve ser
55
feito nas escolas e pelos professores, na perspectiva mencionada por Pierre Dardot e
Christian Laval no seu ensaio sobre a revolução no século XXI, que termina assim: “não
existem bens comuns, existem comuns que devem ser instituídos” (2017, p. 620).
Liberdade que é criação. A escola é cultura, e não há cultura sem criação. A cultura é o
que nos une ao nosso “elemento”, mas é também o que nos permite sair de nós mesmos
e aceder a novos mundos. Educar é transmitir e, por isso, a primeira palavra pertence ao
professor. Mas não há educação sem criação e, por isso, é tão importante a cultura cientí-
fica e artística que permite a cada um inscrever a sua palavra no mundo.
Olivier Reboul, um dos mais lúcidos pensadores do século XX, dá uma resposta extraor-
dinária à pergunta: “Que é que vale a pena ensinar?”:
“Vale a pena ensinar o que une, e o que liberta. O que une: sim, o que vale a
pena ensinar é o que integra cada indivíduo, de um modo duradoiro, numa
comunidade tão vasta quanto possível. […] O que liberta, tal é o segundo cri-
tério. Ao fim e ao cabo, que há de comum entre as diversas disciplinas, entre
a educação física, técnica, artística, intelectual, e até entre os diversos ramos
desta, o científico e o literário? Justamente isso” (2000, pp. 81-82).
56
Três anos mais tarde, na mesma rádio, falará sobre educação e emancipação. As seis li-
berdades de que falei (três mais três) só têm sentido neste movimento de emancipação.
A liberdade é um substantivo, mas é também um verbo de ação. A escola pública tem de
saber repensar-se, renovar-se, abrir-se. Os professores têm de compreender bem os seus
novos papéis na escola do século XXI.
Primeiro – Reforçar o espaço público da educação. Há mais educação para além da es-
cola. Hoje, precisamos reforçar os laços entre a escola e a sociedade, e assim renovar
um compromisso social em torno da educação. É uma mudança decisiva, que exige uma
efetiva capacidade de coordenação e de decisão dos cidadãos, das autarquias e das ins-
tituições para a construção do espaço público da educação. Não gosto muito da metá-
fora das “cidades educadoras”, mas é a que melhor ilustra a dimensão de partilha e de
corresponsabilização que marca a educação nas sociedades contemporâneas. No último
relatório da UNESCO, traduz-se essa ideia com a defesa de “um novo contrato social da
educação”, assim apresentado pela sua diretora-geral, Audrey Azoulay: “Se o Relatório
nos ensina algo, é o seguinte: precisamos tomar medidas urgentes para alterar o rumo,
porque o futuro das pessoas depende do futuro do planeta, e ambos estão em risco. O
Relatório propõe um novo contrato social para a educação, que visa a reconstruir nossas
relações uns com os outros, com o planeta e com a tecnologia” (2021, p. v).
Segundo – Renovar a educação como bem público e comum. A educação tem de renovar-
-se, mas sempre como “coisa pública”. A escola não é um “serviço” ou uma “mercado-
ria”, é uma instituição da res publica. Quando se compara a escolha da escola à escolha
das malas, dos sapatos, do jornal, do carro ou da casa, como já se escreveu, perde-se todo
o sentido, social e cultural, individual e coletivo, do ato de educar. A escola pública cria
um público, forma públicos, cidadãos. Podemos aprender no interior de esferas privadas,
57
domésticas, familiares? Sim. Mas para nos educarmos precisamos de esferas públicas,
de diálogo, de encontro com os outros. Num tempo de fragmentação das sociedades,
de recolhimento defensivo das pessoas e das famílias nas suas esferas mais próximas,
é necessário que a escola seja um lugar de abertura, de comunicação pública entre di-
ferentes. E comunicação, como bem nos recordou John Dewey (1952), tem como raiz
a palavra comum.
Terceiro – Abrir a educação ao futuro. Vivemos uma época de profunda mudança ge-
racional e de revolução na educação. Os edifícios escolares vão desaparecer ou, pelo
menos, vão transformar-se radicalmente. Os tempos escolares vão ser organizados de
modo totalmente diferente. O trabalho dos professores vai sofrer alterações profundas,
também pelo impacto do mundo digital. A escola do século XXI está a nascer, ainda que
aos tropeções, de forma confusa, desorganizada. Todos aqueles que acreditam na escola
pública têm de se inscrever num movimento de transformação que não ponha em risco as
dimensões públicas da educação. Particularmente importante, para pensar a educação do
futuro, é compreender o significado do aumento impressionante da esperança de vida,
com a coabitação de várias gerações, e a necessidade de valorizarmos as dimensões inter-
geracionais que podem ajudar muito as crianças e os jovens no seu desenvolvimento, mas
também as pessoas de maior idade no seu bem-estar e reconhecimento. Nesse sentido, a
dimensão do cuidar, do cuidado mútuo entre gerações, passa a ser um elemento central
dos futuros da educação.
A escola pública tem de ser, cada vez mais, um espaço de liberdade. Hoje, possuímos
possibilidades culturais e meios tecnológicos que permitem concretizar os sonhos, que
muitos sonharam antes de nós, de uma escola que é igualdade, diversidade e aprendiza-
gem, mas que é também participação, autonomia e criação.
A liberdade tem uma característica única e singular: só existe em mim se existir também
nos outros. Não posso ser livre se os outros viverem sem liberdade. A escola pública é o
lugar da liberdade, de todos e não apenas de alguns. Para levantar a liberdade, é preciso
fortalecer os professores para ensinarem em liberdade, e com liberdade.
58
Capítulo 6
59
Este texto reflete sobre a importância da qualificação dos professores. O
direito à educação, por parte dos alunos, inclui também o direito a ter um
“bom professor”, um professor devidamente formado e qualificado.
A minha reflexão não se centra na habitual definição de listas de qualida-
des ou de competências que os professores devem possuir, mas antes na
importância de valorizar o conhecimento profissional docente, também na
definição e desenvolvimento dos programas de formação de professores.
Na primeira parte, argumenta-se que a questão central da formação de pro-
fessores prende-se com um “terceiro gênero de conhecimento”, designa-
do por conhecimento profissional docente. Na segunda parte, ensaia-se a
definição desse conhecimento, com base nos conceitos de contingente,
coletivo e público, e retiram-se consequências para a formação de profes-
sores nos planos institucional, profissional e público. A terceira parte é
dedicada à análise dessas consequências, referindo-se à necessidade de
um “terceiro lugar” institucional, de um reforço do coletivo docente e de
uma projeção pública dos professores.
Uma primeira versão deste texto foi publicada na Revista Brasileira de
Educação (Vol. 27, 2022), com o título Conhecimento profissional docen-
te e formação de professores.
60
O conhecimento profissional docente:
consequências para a formação de professores
A cada ano, em todo o mundo, publicam-se milhares de títulos sobre a profissão docente
e a formação de professores. Essa literatura prolixa tem uma falha maior: reflete insufi-
cientemente sobre os professores como detentores de um conhecimento próprio, como
produtores de um conhecimento profissional docente. E mesmo quando essa reflexão
existe, ela é dinamizada por acadêmicos e não pelos professores da educação básica. Não
se pense que é um tema menor.
Eis a argumentação central deste capítulo, escrito com palavras cruas, porque não pode-
mos ser cúmplices, ainda que pelo silêncio, do desgaste da profissão docente a que vimos
assistindo Sinto a urgência da ação. E chamo as universidades à sua responsabilidade.
Por isso é tão importante construir novos ambientes educativos, nos quais os profes-
sores, coletivamente, possam construir diferentes pedagogias e novos modos de orga-
nização do seu próprio trabalho. É um caminho mais difícil, que demora mais tempo a
percorrer? Sem dúvida. Mas é o único que, no prazo de uma geração, pode permitir uma
mudança de fundo na educação e na profissão docente.
61
A formação de professores é um campo decisivo para essa mudança, se for capaz de evitar
uma subalternização dos professores e contribuir para uma valorização, qualificação e
reforço da profissão docente. É esta ligação entre formação e profissão que quero pôr
em destaque.
Para começar:
Qual é a questão central da formação de professores?
Desde as suas origens, há cerca de dois séculos, a formação de professores tem sido atra-
vessada por disputas e controvérsias. Não são meras questões técnicas ou metodológicas,
mas visões distintas, e muitas vezes contraditórias, da educação e da profissão docente.
Em pleno século XIX, a criação das escolas normais representa um momento decisivo na
história da educação. A intenção é formar “novos professores”, dotados de maior legiti-
midade social e influência política, numa época em que os Estados impõem, em todo o
mundo, a obrigatoriedade escolar. A edificação dos grandes sistemas de ensino, e o seu
papel na consolidação das cidadanias nacionais, dependem, em grande medida, desses
novos profissionais docentes.
Nas últimas duas décadas, esse regresso dá-se por vias diversas, com um argumento mais
sofisticado do que no passado, mas sempre sustentado no princípio de que os professo-
res se formam “na prática” ou “no chão da escola”. Assinalem-se três dessas vias.
62
Em primeiro lugar, o recrutamento como professores de pessoas sem qualquer forma-
ção, apenas com o domínio de uma dada matéria e interessadas em ensinar, que são trei-
nadas em seminários intensivos de poucas semanas e colocadas na sala de aula, ao lado de
um professor mais experiente, aprendendo a docência por meio da prática.
Por fim, a maneira como as learning sciences olham para a educação como uma mera apli-
cação das “evidências” produzidas pela ciência, reforçando uma imagem dos professores
como profissionais que se limitam a pôr em prática descobertas e orientações vindas
de “fora”.
Ao longo dos últimos cem anos, a visão tradicionalista tem sido contestada por ten-
dências modernas (progressistas e inovadoras), que defendem a importância e a com-
plexidade da formação de professores. A partir das primeiras décadas do século XX,
em todos os países do mundo, as disciplinas de pedagogia, de psicologia e de sociolo-
gia da educação, de história da educação, de organização dos sistemas de ensino, de
educação comparada ou de desenvolvimento curricular passam a ocupar cada vez mais
espaço na formação de professores.
Mas, sobre isso, é impossível não recordar as palavras premonitórias de Jean Houssaye,
num texto brilhante, intitulado “O escravo pedagogo e os seus diálogos”:
63
ciência e a deriva para as ciências da educação. O prático inovador aca-
bará por ser enterrado e renegado em nome das ciências da educação,
em nome da exclusão da prática” (Houssaye, 1984, p. 47).
As tendências modernas tornam-se mais influentes nos anos 1960, quando as ciências
da educação renascem na França e no mundo. Simultaneamente, assiste-se à universita-
rização da formação de professores, com a extinção gradual das escolas normais e a sua
substituição por cursos universitários.
Três grandes eixos, interligados, dominam a maioria dos escritos e das propostas de
trabalho das tendências modernas: o professor reflexivo, o professor pesquisador e as
abordagens (auto)biográficas.
As teses do professor pesquisador remontam a meados do século XX, mas é também nas
décadas de 1980-1990 que ganham uma presença forte na formação de professores. Em
essência, pretendem afastar-se de uma visão tecnicista e afirmar os professores como
produtores de um conhecimento próprio, e não apenas como aplicadores ou transmis-
sores de um conhecimento alheio. No entanto, a pesquisa realizada tem se centrado so-
bretudo em temas acadêmicos (históricos, filosóficos, psicológicos, sociológicos…) e,
quando procura analisar o trabalho docente, tem sido realizada mais pelos universitários
do que pelos professores.
64
teresse e qualidade, essas abordagens deparam-se, desde há alguns anos, com um senti-
mento de exaustão ou saturação, revelando-se incapazes de passar de um somatório de
narrativas individuais para dinâmicas de renovação da profissão docente.
65
reunir numa mesma estrutura institucional os vários atores da formação de professores,
em pé de igualdade e com idêntica capacidade de participação e de decisão: universi-
dades, escolas, professores, entidades municipais, estaduais e federais etc. É nessa res-
ponsabilidade conjunta, compartilhada, que podemos encontrar novos caminhos para a
formação de professores.
66
Para continuar:
Um conhecimento contingente, coletivo e público
Um conhecimento contingente
67
A primeira característica do conhecimento profissional docente é a sua natureza contin-
gente, num duplo sentido.
Por um lado, é um conhecimento que não existe fora da ação, que se constrói no seu
interior. O trabalho pedagógico é definido pela imprevisibilidade, pela capacidade de os
professores darem respostas e tomarem decisões em face de cada nova situação. Há uma
dimensão de risco, de incerteza, no modo como esse conhecimento se elabora, a partir
de uma diversidade de experiências e da sua análise. Risco e acaso, pois não é possível
controlar, a priori, a sucessão de acontecimentos que têm lugar no espaço da sala de
aula e da escola. Mas os acasos não surgem por acaso. São os acontecimentos vulgares e
cotidianos que dão sentido à educação. É neles que reside a possibilidade de um conhe-
cimento profissional docente.
68
A literatura educacional é fugaz e efêmera. Torna-se obsoleta rapidamente. Mas há livros
que ficam conosco por muito tempo. É o caso de Le trajet de la formation: les enseignants
entre la théorie et la pratique, de Gilles Ferry, publicado em 1983, no qual se defende um
modelo de formação de professores centrado na análise das situações educativas e do seu
carácter único, imponderável e imprevisível. A relação de regulação entre a teoria e a
prática é apresentada como fonte de lucidez e conhecimento: “os professores ou futuros
professores colocam-se, assim, em condições para desenvolverem, eles próprios, os ins-
trumentos da sua prática e os meios da sua formação” (1983, p. 61).
Um conhecimento coletivo
69
do cogito ao cogitamus (Latour, 2010). O princípio de um conhecimento mútuo sustenta
a necessidade de uma formação mútua, de uma formação em cooperação (Niza, 1997).
A contingência é, assim, definida pelo encontro, por uma relação e um diálogo que se
produzem no interior de um coletivo. Como pensamento necessário, construído a partir
de um trabalho em comum, o conhecimento profissional docente permite firmar e afirmar
a profissão. É nele que radica a possibilidade de uma renovação da profissão, a partir de
sucessivos encontros intergeracionais, desde os momentos da formação inicial, ao perío-
do de entrada na profissão (a indução docente) e à formação continuada.
70
co da educação. Não há conhecimento profissional sem essa presença. Os professores
não podem tornar-se invisíveis. É como coletivo que devem assumir plenamente as suas
responsabilidades na escola e na sociedade.
Um conhecimento público
71
sição pública, da sua voz pública. O conhecimento profissional docente ganha legitimi-
dade e relevância quando se difunde na sociedade. É preciso que os professores tenham
a possibilidade e a coragem de escrever e de publicar. Vale a pena uma vida sem risco?
Em língua portuguesa, publicar tem um duplo sentido: editar ou imprimir e tornar pú-
blico. A edição torna o texto autônomo em relação ao autor, dá-lhe existência e transfor-
ma-o num “objeto comum”.
Uma das passagens mais importantes do último relatório da UNESCO, Reimaginar nos-
sos futuros juntos: um novo contrato social para a educação, refere:
É este o ponto decisivo do meu argumento. A reflexão em comum deve prolongar-se por
uma sistematização escrita, de modo a instaurar o conhecimento profissional docente no
espaço público. A ressonância dos gestos marca o vigor e a credibilidade dos professores.
Uma profissão que não se escreve, não se inscreve do ponto de vista social e fica diminu-
ída na sua capacidade de participação no espaço público e no espaço das políticas públi-
cas. Escrever bem é condição necessária para pensar bem; e pensar bem aproxima-nos
da possibilidade de agir bem. O que significa publicação, no seu sentido literal? Significa
pública ação. O conhecimento profissional docente define-se na ação pública.
A identidade profissional dos professores não pode ser diluída num conjunto de “figu-
ras” (facilitador, colaborador, tutor…) que parecem trazer uma “linguagem inovadora”
quando, na verdade, destroem o núcleo central da profissionalidade docente. Do mesmo
modo, os programas de formação docente não podem ser substituídos por uma série de
workshops, oficinas ou atividades edtech, como se bastasse um treino rápido ou um con-
tato com as escolas para alguém se tornar professor.
72
Precisamos dar consistência ao conhecimento profissional docente e afirmar a sua cen-
tralidade no desenvolvimento profissional dos professores. Quais as consequências con-
cretas dessa posição para a formação de professores? Eis a pergunta que orienta a última
parte deste ensaio.
Para concluir:
Consequências para a formação de professores
“Um professor não é um guru…/ Um professor não é um inicia-
dor…/ Um professor não é um mediador…/ Um professor não é
um autor…/ Um professor não é um treinador…/ Um professor
não é um produtor…/ Um professor não é um gestor…/ Um pro-
fessor não é um fornecedor de serviços…/ Um professor não é um
pai, nem uma mãe…/ Um professor não é um companheiro…/ Um
professor não é um amigo…/ Um professor não é um líder…/ Um
professor não é um activista…/ Um professor não é um conselhei-
ro espiritual…/ Um professor não é um conselheiro emocional…/
Um professor não é um sedutor…/ Um professor não é um con-
dutor…/ Um professor não é um guia…/ Um professor não é um
comunicador…/ Um professor não é um moderador…” (Larrosa,
2019, p. 329).
Num dos seus livros mais recentes, Esperando não se sabe o quê: sobre o ofício de pro-
fessor, Jorge Larrosa apresenta, provocativamente, os resultados de um exercício sobre
“o que não é um professor”. A provocação poderia continuar ad infinitum: Um professor
não é um facilitador…/ Um professor não é um tutor…/ Um professor não é um cola-
borador…/Um professor não é um animador…/… e terminar inevitavelmente com uma
tautologia: Um professor é um professor.
73
Consequências institucionais
Se o meu diagnóstico estiver certo, então a solução é óbvia: precisamos juntar as universi-
dades e as escolas de educação básica. Essa “junção” não pode ser feita, como até agora,
apenas por meio de parcerias ou acordos pontuais, em especial para os estágios – precisa
se configurar como uma nova institucionalidade. É a solução adotada pela Universidade
Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) com o Complexo de Formação de Professores do Rio
de Janeiro, uma experiência original e de grande alcance.
74
Espera-se que este “terceiro lugar” seja capaz de agir no continuum do desenvolvimento
profissional docente, dando coerência e consistência aos processos de formação inicial,
de indução docente e de formação continuada. Uma palavra para sublinhar, uma vez
mais, a importância do período de indução docente ou profissional – os anos de transi-
ção entre a formação e a profissão – na história de vida e na formação dos professores.
Ignorar esses anos, como tem sido recorrente nos programas e nas políticas de formação
de professores, é um erro de consequências graves para a profissão docente.
A concretização de uma proposta desse tipo não será idêntica em todas as universidades,
municípios e estados. A diferença é bem-vinda, pois marca a necessidade de, a partir de
princípios genéricos, enraizar a formação de professores nas distintas realidades locais.
O futuro conjuga-se no plural e não nos esquemas uniformes do passado.
Consequências profissionais
O trabalho dos professores teve desde sempre uma base individual. Tradicionalmente, o
ensino tem lugar no interior de uma sala de aula, com uma configuração própria e rela-
tivamente isolada dos outros espaços escolares. Essa matriz está mudando, com a trans-
formação dos ambientes educativos e a necessidade de um trabalho colaborativo entre os
professores. A profissão docente está adquirindo uma dimensão cada vez mais coletiva.
A situação torna-se muito evidente na fase da vida em que nos tornamos professores,
isto é, nos primeiros anos de exercício docente. É um tempo decisivo da nossa história
profissional, mas frequentemente descuidado tanto pelas políticas públicas como pelas
75
universidades e pelas escolas. Porém, é nesses anos de transição entre a formação e a
profissão que se decide grande parte do nosso futuro como professores.
Ninguém se torna professor sem a colaboração dos professores mais experientes. Nessa
convivência, adquirimos os gestos e a cultura profissional. Convivência no seu preciso
sentido, viver com, ou seja, trabalhar com e pensar com os outros. Para que isso aconteça,
tem de haver condições nas escolas e uma nova organização do trabalho dos professores.
Não se trata de diminuir o papel das universidades, nomeadamente no que diz respeito
aos conhecimentos científicos e aos conhecimentos pedagógicos. Mas é preciso repetir
que, sem um “terceiro gênero” de conhecimento, o conhecimento profissional docente,
não há qualquer possibilidade de formar um professor. É preciso retirar todas as conse-
quências dessa afirmação, e assegurar a presença dos professores nas diversas fases do
continuum da formação docente: desde a formação inicial à formação continuada, pas-
sando pelo momento da indução profissional.
Consequências públicas
Uma profissão não é apenas uma realidade interna, contém também uma dimensão ex-
terna. O trabalho dos professores não se destina unicamente a servir um público, mas
também a formar e a criar públicos. O conhecimento profissional docente projeta-se para
fora das escolas e do ensino, para o espaço público da educação.
Nas últimas décadas, os professores perderam visibilidade pública e a sua voz foi sendo
substituída por especialistas de matérias tão diversas como o currículo, as tecnologias,
as competências socioemocionais ou os estudos do cérebro. Publicamente, ouvem-se
muitos discursos sobre educação, o que é de enaltecer, mas faltam maior presença e par-
ticipação dos professores.
76
cimento público. O conhecimento profissional docente é fundamental para o trabalho
escolar, mas dota também os professores de melhores condições e de maior legitimidade
para participarem dos grandes debates públicos sobre educação.
Repito: a escrita é muito importante. Por isso, falar da dimensão pública do trabalho dos
professores significa valorizar a publicação das suas ideias, experiências e reflexões. São
palavras que têm a mesma raiz e intencionalidade.
No caso dos professores, há três palavras que devem seguir par a par: profissão, público e
participação. Não se espera dos professores que cuidem apenas da melhoria das escolas e
do ensino, mas que se envolvam numa reflexão e ação sobre o que deve ser o futuro ou os
futuros da educação. A sua credibilidade e o seu prestígio dependem dessa projeção no
futuro. Detentores de um conhecimento próprio, estarão preparados para cumprir o seu
papel como profissionais públicos, como profissionais publicamente comprometidos.
Coda:
Para deixar tudo claro
O que me interessa, desde sempre, é a defesa dos professores e da sua profissionalidade,
no contexto de uma valorização da escola pública e do espaço público da educação.
Assumo uma postura crítica em face dos discursos que diminuem ou corroem a profissão
docente. Refiro-me às intermináveis discussões, que se prolongam há mais de meio sécu-
lo, sobre a pertinência de aplicar à docência o conceito de profissão: é como se estivésse-
mos perante um círculo vicioso que só contribui para rebaixar os professores. Refiro-me
também às expressões, cada vez mais correntes, que tratam os professores como colabo-
radores, facilitadores ou mediadores: é como se a palavra “professor” fosse incômoda
e inadequada para pessoas e grupos que pretendem diluir a profissionalidade docente.
77
Esses discursos traduzem-se em políticas de formação de professores nocivas aos profes-
sores. No primeiro caso, recusam a ideia de uma formação profissional dos professores
e contribuem para organizar programas de formação de professores em que pouco se
trabalha ou se reflete sobre a profissão docente e o trabalho pedagógico. No segundo
caso, dão origem a processos de recrutamento de pessoas sem qualquer formação, como
se bastasse possuir conhecimentos de algum tema ou matéria para ser professor.
78
Capítulo 7
Jovens professores:
o futuro da profissão
Lema do Dia Mundial do Professor 2019
Jovens professores: o futuro da profissão
79
Este texto centra-se nos jovens professores argumentando que são deci-
sivos para o futuro da profissão. Depois de um começo, no qual se refe-
rem os estudos de Michael Huberman, a primeira parte do texto aborda a
importância do período de indução profissional, como um “tempo entre
dois”, entre as licenciaturas e o exercício pleno da profissão.
Na segunda parte, repetem-se algumas ideias alinhadas em seis pontos
que parecem simples, mas talvez não sejam, sobre o desenvolvimento pro-
fissional docente.
Finalmente, na terceira parte, faz-se um convite às universidades para se
envolverem seriamente na formação de professores e na indução profissio-
nal docente, retomando ideias apresentadas na Aula Inaugural da Cáte-
dra Anísio Teixeira de Formação de Professores, na Universidade Federal
do Rio de Janeiro, a 27 de julho de 2022.
Numa conclusão breve, insiste-se na importância dos jovens professores
para a renovação e o futuro da profissão docente.
O texto adota o lema do Dia Mundial do Professor, em 2019 – Jovens pro-
fessores: o futuro da profissão. Uma primeira versão deste texto foi publi-
cada na Revista Internacional de Formação de Professores (Vol. 8, 2023,
pp. 1-15).
80
Jovens professores: o futuro da profissão
Começando
No final da década de 1970, iniciei funções docentes numa Escola do Magistério Pri-
mário. Em Aveiro. Tinha praticamente a idade dos meus alunos. Foram tempos muito
importantes para mim, nos quais tomei consciência da importância de uma boa inte-
gração na profissão dos jovens professores.
Mais tarde, no início da década de 1980, iniciei os meus estudos sobre a profissão do-
cente na Universidade de Genebra. Tive a possibilidade de acompanhar os primeiros
estudos de Michael Huberman, na minha opinião o mais lúcido educador e pedagogo
da segunda metade do século XX, sobre o ciclo de vida profissional dos professores.
Em 1989, estive no lançamento da sua obra, A vida dos professores. Cada vez se foi
tornando mais nítida, na minha reflexão, a importância dos primeiros anos de exer-
cício profissional, quando os estudantes terminam as licenciaturas e iniciam funções
docentes nas escolas.
Mas é também um tempo decisivo para a renovação da profissão. É nos diálogos e vín-
culos entre jovens professores e professores mais experientes que se define a possibi-
lidade de novos processos e de novas práticas pedagógicas. Por isso essa relação é tão
importante. A profissão docente não terá futuro se não cuidar melhor dos seus profes-
sores mais jovens. Esse período entre dois, entre a formação e a profissão, é decisivo.
81
- Ou como a fase final da formação inicial, não para substituir o es-
tágio supervisionado, mas para estabelecer uma ponte entre a uni-
versidade e as escolas. Nesse caso, devemos organizar o conjunto do
currículo das licenciaturas tendo como alvo esse período. Dito de
outra maneira: temos de pensar o percurso do licenciando como um
processo progressivo de socialização profissional, de aquisição de
uma identidade profissional.
- Ou como a fase inicial da profissão, como o primeiro momento de
experiência da profissão, de contato com o conjunto das realidades
da vida docente. Nesse caso, devemos insistir na responsabilidade das
direções das escolas e dos professores mais experientes quanto ao aco-
lhimento e acompanhamento dos seus jovens colegas. Dito de outro
modo: temos de organizar as escolas de modo a receberem os jovens
professores, integrando-os no dia a dia da profissão.
As duas formas de pensar são úteis e pertinentes, mas quero, acima de tudo, chamar a
atenção para a necessidade de dar a este período de três ou quatro anos uma espessura
própria, isto é, de considerá-lo autonomamente como um tempo central para que cada
jovem professor adquira a sua própria identidade profissional docente.
Para isso, precisamos superar três silêncios que têm marcado o período de indução pro-
fissional, isto é, de iniciação e de introdução à profissão docente:
82
A indução profissional pode realizar-se de várias maneiras. Apesar de haver uma abun-
dante literatura em torno desse tema, com milhares de títulos publicados nos últimos
anos, as experiências concretas são ainda limitadas. Mas já é possível construir uma
reflexão crítica para tentar preencher esse “vazio”.
Afirmo mesmo que não é possível formar devidamente um professor, nem nos enqua-
dramentos atuais das universidades, nem em ambientes escolares medíocres e desinte-
ressantes. Para que o período entre dois ganhe densidade e sentido, é necessário repen-
sar os ambientes de formação, de pesquisa e de trabalho:
83
(i) para construir licenciaturas significativas, é preciso alterar o ambien-
te da formação inicial, construindo terceiros espaços de ligação entre as
universidades, as escolas e os gestores públicos;
(ii) para valorizar a profissão docente, é necessário criar condições para a
produção de um terceiro gênero de conhecimento, o conhecimento pro-
fissional docente;
(iii) para reforçar os professores enquanto coletivo docente, é preciso re-
organizar os ambientes escolares, favorecendo um trabalho colaborativo
e de coconstrução do conhecimento e da pedagogia (Nóvoa, 2017; Nóvoa
& Alvim, 2022).
Um
Tudo começa num reconhecimento, que parece simples, mas talvez não seja: a formação
de professores é uma formação profissional de nível universitário.
Alguns defendem que deve ser “formação profissional”, mas não necessariamente de
“nível universitário”, pois bastaria uma formação técnica, prática, “vocacional”, pre-
parando os professores para o seu trabalho diário. É por isso que, em muitos países, a
formação de professores está ainda sob a alçada de “escolas normais”, ou similares, de
nível médio e com um cariz aplicado.
Outros sustentam que deve ser “de nível universitário”, mas não lhes agrada que seja
“formação profissional”, pois entendem essa designação como uma diminuição ou des-
valorização das dimensões teóricas. É por isso que, em muitos países, a formação de
professores está no meio de cursos que formam para várias atividades ou profissões de
ensino e educação, diluindo a especificidade da formação de professores.
Pessoalmente, defendo que falar de formação profissional, isto é, de formação para uma
profissão, é elevar, e não diminuir; é dignificar, e não desvalorizar, os professores. Na
verdade, é fácil alinhar uma lista de livros, teorias e conceitos que os professores devem
84
conhecer. Difícil é ensiná-los de maneira problematizadora, emancipadora, a partir de
reflexões centradas na vida, na cultura e no exercício da profissão.
Mas defendo também que a formação de professores deve ser feita no espaço universitá-
rio, pois este é o lugar das profissões do conhecimento (medicina, engenharia, direito
etc.). É necessário que a universidade compreenda, de uma vez por todas, a necessidade
de construir parcerias e ligações com as escolas, os professores e os órgãos de gestão
pública da educação, pois só assim se poderão construir políticas coerentes de forma-
ção e de desenvolvimento profissional.
Dois
Tudo continua num outro reconhecimento, que parece simples, mas talvez não seja: a
formação de professores deve ser concebida ao longo de todo o ciclo de vida profissio-
nal, desde o primeiro dia como licenciando até o último dia como professor.
Esses três momentos são muito distintos, mas devem estar articulados de forma coeren-
te. Podemos mesmo argumentar que há ainda uma fase anterior ao primeiro momento,
relacionada com estratégias para atrair estudantes do ensino médio para as licenciatu-
ras, e uma fase posterior ao último momento, dirigida a uma saída serena da profissão.
O estatuto dos professores ou futuros professores deve ser claro, em cada um desses
momentos, pois isso define também os seus graus de autonomia e de responsabilida-
de: no primeiro momento, são estudantes, sem autonomia no plano profissional; no
segundo momento, já são profissionais, ainda que com níveis limitados de autonomia;
no terceiro momento, são profissionais autônomos no pleno exercício das suas funções.
85
Este esquema permite compreender bem as razões e o sentido do segundo momento,
de indução profissional.
Três
Há cerca de quatro décadas, no início dos anos 1980, verificou-se uma grande expan-
são dos estudos relacionados com o ciclo de vida profissional dos professores. Esses
estudos resultavam do cruzamento entre tendências há muito estabelecidas na psico-
logia sobre o “desenvolvimento da carreira” (career development), com um interesse
renovado da sociologia pelas “autobiografias” ou “histórias de vida”.
No que diz respeito às histórias de vida de professores, o autor mais brilhante, por sua
inteligência e sensibilidade, foi, sem dúvida, Michael Huberman. Os seus trabalhos so-
bre a vida dos professores ou as fases da carreira docente, do fim da década de 1980,
continuam a ser hoje leituras fundamentais.
Quero destacar duas linhas de reflexão e de análise deste pesquisador e professor que
era, acima de tudo, um pedagogo:
86
Quatro
Os programas de indução profissional têm como objetivo estabelecer uma ponte entre
a formação inicial e o exercício profissional autônomo. Nesse sentido, não devem diri-
gir-se aos “estudantes”, mas sim a “profissionais” no início do seu percurso docente.
Cinco
A indução profissional, sob a forma de residência docente ou em outro modelo, é um
momento decisivo na história individual de cada professor, permitindo assegurar uma
boa transição entre a formação e a profissão. Como pesquisadores, pedagogos e profes-
sores, devemos colocar as nossas melhores energias na compreensão dessa realidade e
na produção de estratégias e de políticas coerentes de apoio aos professores iniciantes.
87
Em certos casos, há uma extensão da “tutela universitária”, com as residências a serem
consideradas parte da formação inicial, o que, na minha opinião, é errado. Por essa via,
podem resolver-se alguns problemas com os atrasos na contratação dos jovens pro-
fessores e criam-se condições para que se mantenham em formação, mas perde-se o
sentido profissional, de acolhimento por parte da profissão, que deve ser o foco central
das residências. Os professores da educação básica que já foram, em grande parte, afas-
tados dos cursos de formação de professores, ou neles desempenham um papel menor,
são agora também afastados do processo de integração dos mais jovens na profissão.
Seis
Para mim, a indução profissional é um momento decisivo, não só para a formação de
professores e a sua integração na carreira docente, mas também para a própria renova-
ção da profissão docente. Por isso, parece-me essencial pensar este momento no con-
texto mais amplo do desenvolvimento profissional docente.
88
Um dia, quando era reitor da Universidade de Lisboa, perguntei a alguns grandes médi-
cos do Hospital de Santa Maria, o nosso hospital universitário, a que função atribuíam
mais relevância no seu trabalho diário. De todos, recebi a mesma resposta: “Para nós, a
clínica e o ensino são muito importantes, mas nada é mais importante do que a ação que
desenvolvemos junto dos jovens médicos, ajudando-os, apoiando-os, na sua entrada na
profissão”. Um dia, gostaria muito de ouvir a mesma resposta aos professores de edu-
cação básica, assumindo que o compromisso com o apoio aos jovens professores é um
elemento essencial do seu trabalho e da sua responsabilidade intergeracional.
Um convite às universidades
Quero fazer um convite às universidades para se comprometerem, seriamente, com a
educação básica, para se envolverem, plenamente, na formação de professores.
Sobre educação básica, o mais que sempre se ouviu foi esse lamento cíclico, insuportá-
vel, repetido geração após geração, reclamando que os alunos não sabem nada, que vêm
mal preparados do ensino médio, que não estão prontos para os cursos universitários,
que são semianalfabetos etc.
Foi sempre um lamento inconsequente, que não provocou qualquer mudança na rela-
ção entre a universidade e a educação básica. Veio até os dias de hoje, e continua a ser
repetido, irresponsavelmente, isto é, sem que dele resulte uma nova responsabilidade
da universidade.
De tempos em tempos, sobretudo depois de meados do século XX, lá surge uma ini-
ciativa desgarrada para promover a universidade no ensino médio. Mas na maioria dos
casos é por mero oportunismo, quando os cursos do Stem – Ciências, Tecnologia, En-
genharia e Matemática – ficam sem alunos.
89
Não desconheço as histórias de vida de muitos universitários, de todas as áreas – filóso-
fos, cientistas, artistas, médicos, pedagogos, engenheiros… – que dedicaram o melhor
de si mesmos à educação e à formação de professores. Mas foram sempre a exceção,
nunca a regra.
Por dever de ofício, já tive de ler e avaliar centenas, talvez milhares, de currículos aca-
dêmicos. Nunca vi nenhum dar centralidade ao trabalho na formação de professores.
Mesmo na área da Educação, o que vem primeiro são sempre os artigos científicos e os
projetos de pesquisa.
Por dever dos cargos que ocupei, tive de analisar e estudar os planos estratégicos de
centenas de universidades em todo o mundo. Nunca vi nenhum dar prioridade à forma-
ção de professores.
A formação de professores não pode continuar a ser uma missão menor, relegada a um
plano secundário, como se decorresse “naturalmente” do trabalho nas outras áreas
científicas, como se não precisasse de uma atenção especial, de uma reflexão própria,
de um investimento transversal de toda a Universidade.
Não creio que possa haver uma mudança significativa na formação de professores se não
compreendermos duas questões:
É nesse sentido que venho advogando a existência de uma “casa comum da formação e
da profissão”: uma casa comum dentro da Universidade, juntando todas as licenciatu-
ras; uma casa comum entre a Universidade e as redes públicas de educação. Trata-se de
uma nova realidade, juntando num “terceiro espaço” todos os que se interessam pela
formação de professores dentro da Universidade e todos os que, fora da Universidade,
têm um papel decisivo a desempenhar nesta missão: escolas, professores, autoridades
municipais e estaduais, associações de professores etc.
Esta casa comum não pode excluir, nem diminuir nenhuma presença, não é feita para
disputar poderes nem dentro nem fora da Universidade, mas para juntar e reforçar a
formação de professores e a profissão docente. Há muitas experiências desse tipo em
90
vários países, mas precisam de ser continuadas e reforçadas e, sobretudo, precisam
ter competências na organização do período de indução profissional (Zeichner, 2012,
2017). É a partir desse “ponto” que se podem imaginar e realizar mudanças importan-
tes na profissão docente, influenciando, por um lado, as licenciaturas e, por outro, a
dinâmica das escolas. Não consigo imaginar nada mais importante, nem mais urgente,
a ser feito pelas universidades no campo da educação.
Concluindo
Estamos vivendo um tempo difícil na formação de professores. Por um lado, há um ata-
que, em muitos países, às instituições universitárias de formação de professores, acusa-
das de mediocridade e de irrelevância. Políticas conservadoras e neoliberais procuram
regressar a um tempo anterior às escolas normais, quando não havia modelos institu-
cionalizados de formação, mas apenas uma aprendizagem ao lado de um professor mais
experiente.
91
Uma nova concepção da formação de professores deve privilegiar este tempo entre dois,
a indução profissional, um tempo que é estruturante do desenvolvimento profissional
docente. É uma questão central para a integração de cada pessoa na profissão, mas é
também uma questão central para o próprio futuro da profissão docente.
Os jovens professores são centrais para renovar a vida da profissão e das escolas. Es-
tamos vivendo a maior transformação de que há memória na história da educação e da
pedagogia. Precisamos acolher bem os jovens professores se quisermos dar futuro à
profissão docente.
92
Capítulo 8
93
Este texto chama a atenção para a necessidade de mudanças profundas na
educação e no trabalho docente. Em tempos de crise, precisamos acredi-
tar nos professores e nas suas possibilidades de ação.
Assim, criticam-se três ilusões habituais, que a Covid-19 tornou ainda
mais visíveis, a saber: as aprendizagens acontecem “naturalmente” numa
diversidade de tempos e ambientes; a escola física vai dar lugar à “escola
virtual”; a pedagogia pode ser substituída pelas tecnologias.
Em alternativa a essas “ilusões”, sublinha-se que a educação implica
sempre uma intencionalidade e, por isso, é preciso valorizar o papel dos
professores na construção de um espaço público comum da educação, na
criação de novos ambientes escolares e na composição de uma pedagogia
do encontro.
Como escreve Pierre Furter, para que as crises possam ser momentos
frutíferos, torna-se necessário que os seres humanos tenham uma visão
esperançosa de sua existência: “A esperança é sem otimismo e sem ilu-
são” (1966, p. 94), mas faz parte do trabalho dos professores na reinven-
ção do futuro.
Uma primeira versão deste texto foi publicada, em coautoria com Yara Al-
vim, na revista Educação & Sociedade (Vol. 42, 2021, pp. 1-16), com o
título “Os professores depois da pandemia”.
94
Os professores depois da pandemia:
a reinvenção do futuro
Abertura
Em 2020 tudo mudou. Com a pandemia, terminou o longo século escolar, que come-
çou na segunda metade do século XIX. A escola, tal como a conhecíamos, acabou. Co-
meça, agora, uma outra escola. A era digital impôs-se nas nossas vidas, na economia,
na cultura e na sociedade, e também na educação. Nada foi programado. Tudo veio de
supetão. Repentinamente. Brutalmente.
Nada foi programado, mas tudo estava pronto. Há acontecimentos, alguns até de grande
importância, com pouco impacto no futuro. Há outros que, num instante, tudo mudam.
São “acontecimentos” que ocorrem em sociedades que já reconhecem a necessidade de
transições e dispõem dos “instrumentos” para concretizá-las (Nóvoa & Alvim, 2021). É
isso que se passa, hoje, com este acontecimento infeliz, a Covid-19. Em poucos meses,
deram-se transformações que, na normalidade dos tempos, teriam demorado décadas.
A Covid-19 deu um grande impulso a essas tendências que se apresentam, agora, como
uma “inevitabilidade” para o futuro. Com discursos atraentes, inovadores, empreen-
dedores, criativos, negam a herança histórica da escola e procuram fomentar uma edu-
cação esvaziada das dimensões públicas e comuns, pautada pelo ritmo do “consumismo
pedagógico” e do “solucionismo tecnológico”.
Muitos, seduzidos pelo canto dessas sereias, aderem acriticamente a modas e a um pa-
thos da novidade que é tudo, menos transformação. Outros, assustados, recusam qual-
95
quer debate, e querem imaginar o presente como um parêntese até que as coisas voltem
a um “normal” que imaginam feliz. Não nos deixemos encerrar nesta dicotomia entre o
“ilusionismo futurista” e a resignação. É preciso compreender a espessura do presente
e agir pela construção de uma outra escola, não pelo seu desaparecimento.
A questão digital merece de nós uma atenção especial. Não nos esquecemos das re-
flexões avisadas de Michel Serres quando, há quase dez anos, publicou a Polegarzi-
nha, a geração que habita o mundo teclando com os dedos. Depois de percorrer os três
grandes tempos históricos da educação e da pedagogia – a escrita, o livro e o digital
–, explica que as tecnologias obrigam a sair do formato espacial do livro e da página:
Hoje, não é possível pensar a educação e os professores sem uma referência às tecnolo-
gias e à “virtualidade”. Vivemos conexões sem limites, num mundo marcado por fratu-
ras e divisões digitais. É preciso enfrentar com lucidez, e coragem, estas tensões: entre
um empobrecimento da diversidade e a valorização de diferentes culturas e modos de
viver; entre uma diminuição da privacidade e da liberdade e a afirmação de novas for-
mas de democracia e participação; entre a redução do conhecimento ao digital e a im-
portância de todo o conhecimento, humano e social.
Sabemos que o grande “mercado global da educação” vai continuar a crescer nos pró-
ximos anos. O que fazer? O mais importante é reforçar a esfera pública digital, desen-
volver respostas públicas na organização e “curadoria” do digital, criar alternativas
sólidas ao “modelo de negócios” que domina a internet, promover formas de acesso
aberto e de uso colaborativo. É com base nesses princípios que podemos imaginar uma
apropriação do digital nos espaços educativos e a sua utilização pelos professores, sem
cairmos no disparate de reproduzir “a distância” as aulas habituais ou na ilusão de que
as tecnologias são neutras e nos trazem soluções “prontas para usar”.
96
O texto parte de uma crítica a três ilusões perigosas:
Em alternativa a essas “ilusões”, utilizam-se três termos para salientar que a educação
implica sempre uma intencionalidade, obriga a um esforço de construção, de criação e
de composição das condições, dos ambientes e dos processos propícios ao estudo e ao
trabalho dos alunos. É esse esforço que define o papel dos professores.
Cada parte do texto sugere um andamento musical. Porque não há um único ser huma-
no neste planeta que não tenha relação com a música: “A maior parte da humanidade
não lê livros, mas canta e dança” (Steiner, 2006, p. 9). A música nos une e nos liberta.
Como a educação.
97
O que é a lucidez senão a capacidade humana do pensar? Em A vida do espírito, Hannah
Arendt (1971) evoca o pensar como faculdade que nos distingue e nos singulariza como
humanos. Escritora e testemunha ocular de um mundo de desumanização, Arendt evo-
ca a “necessidade urgente da razão”, entendida como a atividade do pensar, que se ali-
cerça pelo sentido e não pela cognição. O que nos humaniza não é mais conhecimento,
mais técnica, mais verdade, mas a busca de sentido para nossas ações.
98
A ausência de pensamento, na análise de Arendt, não se relacionava à ausência de co-
nhecimento, mas à incapacidade de refletir sobre as atrocidades cometidas. A “banali-
dade do mal” estava não apenas na monstruosidade daquelas atrocidades, mas na au-
sência da faculdade de pensar. A partir de Arendt e de Steiner, perguntamos: é possível
ouvir Schubert em ritmo de andar humano? É possível parar e pensar, produzir sentido
sobre o que nos acontece?
A pandemia da Covid-19 parou o mundo. Fechou as escolas. Mas foi capaz de pausar a
indústria global da educação, o consumismo pedagógico e a privatização da educação?
A pausa no frenesi dos sujeitos passantes da cidade, que se veem, mas não se olham,
se esbarram, mas não se encontram, foi acompanhada pela pausa do pensar a escola e
de produzir outros sentidos sobre sua finalidade educativa diante da fragmentação dos
laços sociais e do empobrecimento da faculdade dos sujeitos de “intercambiar experi-
ências” (Benjamin, 1996)?
Este contrato tornou-se obsoleto à medida que as famílias deram mais atenção à edu-
cação escolar e as sociedades adquiriram maior permeabilidade e conectividade. Já no
relatório da UNESCO, coordenado por Edgar Faure, Aprender a ser, recomendava-se
a utilização “para fins educativos de todos os tipos de instituições existentes, educacio-
nais e outras, e as múltiplas atividades econômicas e sociais” (1972, p. 207).
99
ceber a educação não como preparação para a vida e para o trabalho, mas como uma
atividade inerente à condição humana? Será que a educação deixará de ser pensada,
primordialmente, para as primeiras idades, mesmo prolongando-se “ao longo da vida”,
e passará a desenvolver-se numa dinâmica intergeracional?
Primeiro, é preciso dizer que a “casa” é o contrário da “escola”. Em casa estamos entre
iguais, na escola entre diferentes: e o que nos educa é a diferença. Em casa estamos num
ambiente privado, na escola, num ambiente público. Em casa estamos num lugar que é
nosso, na escola, num lugar que é de muitos: e ninguém se educa sem iniciar uma via-
gem na companhia de outros. A grande vantagem da escola é ser diferente da casa. Por
isso é tão importante a colaboração entre a escola e as famílias, porque são realidades
distintas e ganham, uma e outra, com essa complementaridade.
Segundo, é preciso dizer que as tecnologias, por si só, não educam ninguém. É difícil
evitar uma das frases mais famosas do século XX – “o meio é a mensagem”. Na época, a
referência dirigia-se aos “meios de comunicação” e Marshall McLuhan acertava no alvo:
“A mensagem de qualquer meio ou tecnologia é a mudança de escala, ritmo ou padrão
que introduz na vida humana” (1969, p. 21). Hoje, a frase ganha uma outra dimensão,
em face das possibilidades infinitas do digital. Ninguém, no seu perfeito juízo, poderá
negar a sua importância. Mas as questões tecnológicas não são apenas tecnológicas,
são pedagógicas, e políticas. A nossa pergunta é a mesma de Gert Biesta, ainda antes
da pandemia: “Chegou a hora de desistir da escola moderna, e das suas promessas, en-
tregando-a nas mãos da Pearson, do Google e de outros capitalistas educacionais, ou
devemos tentar uma vez mais e, nesse caso, o que devemos fazer?” (2019, p. 657).
100
O contrato entre a escola e a sociedade, estabelecido no final do século XIX, tem de ser
revisto. A Covid-19 já o revogou. É preciso pensar o que designamos por capilaridade
educativa, metáfora que procura traduzir uma disseminação da educação por diferentes
espaços e tempos. Mas essa capilaridade deve assentar em duas bases: o comum e a con-
vivialidade, melhor dizendo, a construção do comum e a construção da convivialidade.
O filósofo francês Alain escreveu, há cem anos, que “a cultura comum faz florescer as
diferenças” (1990, p. 58). A afirmação merece ser revisitada, neste mundo de fragmen-
tações e separações, neste tempo marcado pelo abrigo em “identidades fechadas” e em
“espaços domésticos”. A educação deve ser vista, acima de tudo, como uma forma de
produzir o comum, tudo aquilo que, valorizando as diferenças, nos faz pertencer a uma
mesma humanidade.
Aprender e estudar em comum é a melhor forma de promover uma vida em comum, uma
sociedade convivial. Para isso, precisamos de uma educação pública que nos permita ir
além do espaço que já habitamos, e chegar mais longe. Não há educação sem o desejo de
poder ser outro alguém. A educação não serve para nos fecharmos no que “já somos”,
serve para aprendermos a começar o que “ainda não somos”.
Chegamos, assim, à nossa primeira tese: para levantar o espaço público comum da
educação são necessários construtores. Precisamos de professores que assumam ple-
namente essa missão. São eles que, em proximidade com as famílias, os poderes locais,
as entidades públicas e privadas, podem construir as condições para uma capilaridade
educativa baseada no comum e na convivialidade.
Este espaço público comum só terá sentido no quadro de uma forte participação social,
com capacidade de deliberação. Não se trata, apenas, de consultar, mas de organizar
processos de decisão sobre as políticas de educação. Nada se fará sem mudanças de
fundo na vida familiar, social e do trabalho. Na verdade, o contrato celebrado no fi-
nal do século XIX destinava-se, também, a libertar o tempo das famílias e a uma nova
organização do trabalho. A Covid-19 revelou, com nitidez, que toda a vida familiar e
econômica é regulada pelo ritmo da escola. Construir um novo contrato entre a escola
e a sociedade implica, inevitavelmente, novas articulações entre os tempos familiares,
sociais e laborais. Mas não é isso mesmo que esperamos para depois da pandemia?
Tudo deve ser feito sem lançar as crianças na agitação dos tempos que correm. Por isso,
quisemos que esta parte do texto fosse lida ao som de um andante con moto. Movimen-
to, sim, mas ao ritmo humano, porque o tempo da escola é lento, precisa de um passo
seguro, pausado. A escola só vale a pena se for diferente da sociedade.
101
Segundo movimento: Allegro moderato
Todos reconhecemos facilmente este modelo cada vez que entramos numa escola: um
edifício com características próprias, constituído sobretudo por salas de aula de di-
mensões semelhantes, nas quais um professor dá aulas a grupos de alunos de idades
próximas. Esse retrato grosseiro destina-se apenas a ilustrar um ambiente que, na es-
sência, prevalece nas escolas de todo o mundo entre o final do século XIX e o princípio
do século XXI.
Para cumprir essa promessa, a escola precisa de mudanças profundas. O modelo es-
colar está no fim. Precisamos de uma metamorfose da escola, de uma transformação
da sua forma. O mais importante é construir ambientes escolares propícios ao estudo
102
e ao trabalho em conjunto. Aprender não é um ato individual, precisa dos outros. A
autoeducação é importante, mas não chega. O que sabemos depende, em grande parte,
do que os outros sabem. É na relação e na interdependência que se constrói a educação.
103
Aos que acreditam numa educação inteiramente digital, dizemos que tal não é possível,
nem desejável, pois nada substitui a relação humana. Os meios digitais são essenciais,
mas não esgotam as possibilidades educativas. Grande parte das nossas vidas e cultu-
ras, da nossa criatividade, das histórias, das produções efêmeras e espontâneas, dos
laços e relações entre nós, dos nossos sonhos, não estão na internet. Há um patrimônio
humano, impossível de digitalizar. Sem ele, a educação ficaria reduzida a uma caricatu-
ra digital. Felizmente, as novas gerações de professores já são digitais, e conhecem bem
as possibilidades e os limites das tecnologias. Sem ilusões e sem fantasmas.
Aos que se referem aos professores como “práticos”, dizemos que a dimensão prática é
fundamental, mas como práxis, sempre em diálogo com a teoria. Dito de outro modo: é
necessário que nos tornemos conscientes daquilo que sabemos e que sejamos capazes
de um trabalho de sistematização, de escrita e de partilha. Para isso, a colaboração é
imprescindível. Encontra-se aqui a chave da nova profissionalidade docente.
Com essa consciência, com essa capacidade coletiva de ação e reflexão, os professores
podem ser criadores dos novos ambientes escolares. Não se trata de percorrer uma terra
incognita. Em todo o mundo, milhares de professores têm avançado nas direções que
aqui se apontam. Temos de conhecê-los, de estudá-los, de conversar com eles, para as-
sim nos sentirmos mais seguros e confiantes em relação ao futuro.
Como na música, há várias formas de alegria. Como no conto de Guimarães Rosa, “As
margens da alegria” (2005), a alegria está no minúsculo e no acontecimento que eclode
às margens do movimento acelerado da grande cidade, que se anuncia com sua narrati-
va de futuro presentificada no ruído das máquinas e nas monumentais construções que
violentam a paisagem.
104
Terceiro movimento: Molto vivace
A educação funda-se sempre em dois gestos: adquirir uma herança e projetar um fu-
turo. Na conclusão do seu livro mais recente, Éducation ou barbarie, Bernard Charlot
explica que a educação é humanização, o que significa “socialização e entrada numa
cultura” e “singularização e subjetivação”: “Pelo simples facto de nascer na espécie
humana, todo o ser humano tem direito à humanização, portanto à entrada num grupo
social e numa cultura e a tornar-se um sujeito singular” (2020, p. 319). O erro de mui-
tas correntes pedagógicas é desvalorizar um desses gestos.
Há meio século, Olivier Reboul dizia-nos que a educação é feita de dois gestos: inte-
grar cada indivíduo, de modo duradouro, numa comunidade tão vasta quanto possível;
e dar-nos a possibilidade de ir mais longe, por meio do conhecimento científico, artís-
tico, literário. A educação do ser humano é determinada por duas dimensões: ser livre
e não estar só (Reboul, 1980, p. 113). É nessa tensão que se define uma pedagogia do
encontro, no seu sentido mais amplo. Para apresentá-la, e mostrar como os professores
são centrais para a sua composição, deixamos seis apontamentos inacabados.
Primeiro. A pedagogia é sempre uma relação humana. Temos necessidade dos outros
para nos educarmos. Os professores têm um papel fundamental na criação das melho-
res condições para que essa relação tenha lugar. O digital pode ser útil para manter os
laços, mas nunca substituirá o encontro. Porque o sonho é um elemento central da edu-
cação, e as máquinas talvez possam pensar, e até sentir, mas nunca poderão sonhar. Mas
105
também porque a educação implica um vínculo que transforma, ao mesmo tempo, alu-
nos e professores. E, pela internet ou “a distância”, essa possibilidade fica diminuída.
Segundo. Não há ensino sem conhecimento, sem um encontro intenso, por vezes duro e
difícil, com o conhecimento. Mas a relação pedagógica faz-se também “com perguntas
e dedos no ar, desentendimentos, sobrancelhas franzidas, sussurros, suspiros, olhares
de surpresa, risos, tédio que os alunos podem manifestar de maneira mais ou menos
expressiva” (Calafat, 2020, p. 46). Para um professor, não há nada mais importante do
que saber lidar com a imprevisibilidade de cada momento, transformando cada inciden-
te ou circunstância numa ocasião de aprendizagem.
106
para pensar e praticar uma pedagogia do encontro. Como escreve Boris Cyrulnik
(2021), adoecemos quando somos privados da presença do outro. A empatia, enquanto
capacidade de nos colocarmos no lugar do outro e de sentirmos com ele, é um elemento
fundamental da educação.
Esses seis apontamentos inacabados constituem outros tantos desafios para os profes-
sores. Pode haver encontro no espaço virtual? Certamente que sim, desde que se valo-
rize a dimensão comum, a construção conjunta das aprendizagens. O digital não é ape-
nas mais uma “tecnologia”; instaura uma nova relação com o conhecimento e, por isso
mesmo, uma nova relação pedagógica, redefinindo o lugar e o trabalho dos professores.
Coda
A situação provocada pela Covid-19 obrigou-nos a dar respostas imediatas, urgentes,
sem a necessária preparação e reflexão. O acesso indiscriminado aos meios digitais foi a
solução possível para manter uma certa “continuidade educativa”, para não cortar todos
os laços com os alunos e para proteger a saúde pública. Mas este não pode ser o futuro.
107
Por outro lado, uma redução da educação às aprendizagens, isto é, a tudo aquilo que
pode ser medido e comparado, o que Gert Biesta (2015) designa por “indústria global
das medidas em educação”. Finalmente, o eixo que liga as tendências de privatização
aos grandes gigantes do digital, que se apresentam, agora, como os “salvadores” da
educação pública.
Diane Ravitch (2020) é uma das autoras que, de forma mais sistemática, tem denun-
ciado essas “novas” lógicas educativas, desenvolvidas por “bilionários imprudentes”
que têm procurado “reinventar” e “redesenhar” a educação nos Estados Unidos da
América, por meio da privatização, do empreendedorismo e do digital. Estão vendendo
o “sonho” de uma educação cada vez mais individualizada, recorrendo a sofisticadas
soluções tecnológicas. As escolas e os professores seriam dispensáveis ou, pelo menos,
teriam um papel secundário na educação do futuro.
O nosso texto é escrito contra essa visão. Nesse sentido, pode ser lido como um mani-
festo em defesa da valorização e da transformação da educação pública e do triplo papel
dos professores na construção de um espaço público comum da educação, na criação de
novos ambientes escolares e na composição de uma pedagogia do encontro.
Ao percorrer a história da educação, desde o final do século XIX até os nossos dias, qui-
semos “recordar” os desafios que temos pela frente. Se houver uma ruptura no projeto
histórico da escola, não perderemos apenas uma geração, perderemos um dos patrimô-
nios mais importantes da humanidade. O que nos mobiliza não é anunciar a morte desta
escola, é enunciar o surgimento de uma outra escola.
Nos próximos tempos será decidida grande parte do futuro da educação. Não podemos
ficar indiferentes e permitir, com a nossa ausência ou alheamento, que se imponham,
como se fossem “naturais” e “inevitáveis”, visões mercantilistas e consumistas da edu-
cação. Não é só o futuro da escola que está em jogo, é o futuro da nossa humanidade co-
mum. Nunca, como hoje, foi tão urgente uma educação que contribua para a democrati-
zação das sociedades, para a diminuição das desigualdades no acesso ao conhecimento
e à cultura, para a construção de formas participativas de deliberação: porque decidir
não é apenas escolher, é também produzir a obrigação de agir e de respeitar a decisão
tomada coletivamente em nome de um interesse comum (Urfalino, 2021).
Sabemos, pelo menos desde John Dewey, que uma democracia é mais do que uma forma
de governo, “é, primacialmente, uma forma de vida associada, de experiência conjunta
e mutuamente comunicada” (1952, p. 126). A escola deve ser um espaço de liberdade,
onde se aprende “a fabricar o que é comum” (Meirieu, 2020).
108
Nesse sentido, sem cairmos em ilusões ingênuas, temos de responder “sim” à pergunta
formulada pelos nossos colegas François Dubet e Marie Duru-Bellat (2020): A escola
pode salvar a democracia?
O mais recente livro de Bruno Latour, Où suis-je?, que tem um curioso subtítulo, Li-
ções do confinamento para uso dos terrestres, constrói-se a partir de uma releitura da
Metamorfose, de Kafka: “Estamos a passar de uma mutação desesperante para uma
metamorfose mais prometedora. É certo que asfixiamos por detrás das máscaras, mas
iremos finalmente, talvez, assumir uma outra forma” (Latour, 2021, p. 101). Somos, to-
dos, “corpos engendrados e mortais que devemos as nossas condições de habitabilida-
de a outros corpos engendrados e mortais de todos os tamanhos e de todas as origens”
(Latour, 2021, p. 127).
109
110
Capítulo 9
E depois da pandemia?
Recuperar ou transformar?
Dia Mundial do Professor 2021
Os professores estão no centro da recuperação educacional
(pós-pandemia)
111
Este texto foi escrito em plena pandemia e procura pensar as respostas
educativas pós-pandemia. O argumento principal é que se impõe uma
dinâmica de transformação, pois não basta “recuperar”, com o regres-
so a uma “normalidade” escolar que já não servia antes e serve menos
ainda agora.
Referem-se algumas lições aprendidas durante a pandemia, nomeada-
mente no que diz respeito aos professores, à capacidade de iniciativa das
escolas e à construção de novos ambientes educativos.
Defende-se que “a escola depois do modelo escolar”, isto é, a escola no
seu processo de transformação, deve: i) valorizar a celebração de um novo
contrato social; ii) repensar a estrutura organizacional da escola; iii) ela-
borar novas propostas pedagógicas.
Uma primeira versão deste texto foi publicada, em coautoria com Yara Al-
vim, na revista Prospects (Vol. 49, 2020, pp. 35-41), com o título Nothing
is new, but everything has changed: A viewpoint on the future school.
112
E depois da pandemia?
Recuperar ou transformar?
Abertura
Repensar o modelo escolar
Neste texto defende-se a necessidade de transformar um modelo escolar que, edificado
no século XIX, atravessou o século XX e chegou, com sinais de fragilidade, ao século
XXI. A pandemia tornou inevitável uma transformação que, há muito, era sentida como
necessária. Não basta voltar a uma “normalidade” medíocre. É preciso transformar. E
nada se fará sem a participação dos professores, com iniciativa e liberdade.
No decurso das últimas décadas, muito se tem escrito sobre o fim do modelo escolar e
a necessidade de repensar as bases institucionais da escola (Nóvoa, 2006). Em traços
grosseiros, interessa assinalar três dimensões desse modelo, fixadas no século XIX e
que, hoje, precisam ser repensadas:
Apesar de simplista, e quase caricatural, essa descrição permite identificar os três pila-
res da transformação ou da metamorfose da escola (Nóvoa, 2020). O século XX foi fér-
til em debates e inovações pedagógicas, mas o modelo escolar resistiu quase incólume.
Pelo menos, até a pandemia. Agora, estamos perante a sua inevitável transformação.
113
E, de repente, a pandemia
No início de 2020, o mundo foi surpreendido pela Covid-19. De repente, o que era tido
como impossível tornou-se realidade: diferentes espaços de aprendizagem, sobretudo
em casa; diferentes horários de estudo e de trabalho; diferentes métodos pedagógicos,
sobretudo por meio do ensino remoto; diferentes procedimentos de avaliação etc. A
necessidade impôs-se à inércia, ainda que com soluções frágeis e precárias.
A pandemia veio reforçar tendências que se vinham manifestando nas últimas déca-
das, apontando a “morte da escola” e a sua substituição por espaços familiares e comu-
nitários com forte acesso às tecnologias digitais. São tendências que, de modo geral,
acentuam uma perspectiva consumista da educação, assumida sobretudo como bem
privado. Vale a pena referir, brevemente, duas dessas tendências.
Essa tendência estava pronta para responder à situação de emergência criada pela pan-
demia, por meio da mobilização de plataformas e de materiais de ensino disponíveis
em linha. Em certo sentido, era a oportunidade que estavam esperando. Porém, seria
trágico, para a dimensão pública da educação, para a autonomia das escolas e para a
profissionalidade docente, se as respostas dadas na urgência da crise fossem o pretexto
para instituir uma normalidade educativa desse tipo.
Por outro lado, um conjunto de autores e de cientistas que, nas últimas décadas, têm
promovido as chamadas “ciências da aprendizagem” (learning sciences). Os estudos
sobre o cérebro e as aprendizagens constituem um poderoso universo simbólico, refor-
çando a ideia de que é possível encontrar uma resposta personalizada para cada criança
e que essa resposta pode ser dada num espaço doméstico ou familiar. Essa tendência
também estava pronta para responder à situação de emergência criada pela pandemia,
114
com muitas famílias recolhendo-se em espaços protegidos e confinados e procurando
respostas individualizadas para os seus filhos. Porém, seria trágico que essas práticas
se perpetuassem no tempo, pois a educação exige uma forte relação humana e não se faz
em contextos de isolamento e de “distanciamento social”.
As propostas desses grupos, apoiados numa cada vez mais poderosa “indústria global
da educação”, foram “naturalmente” assumidas durante a pandemia, pois parecia não
haver qualquer outra alternativa. Mas, paradoxalmente, a pandemia chamou também
a atenção para a importância das interdependências, das relações, dos vínculos e das
emoções como elementos essenciais do processo educativo.
115
Terceira – As melhores respostas vieram dos professores que, por
meio de dinâmicas de colaboração, conseguiram promover propos-
tas robustas, com sentido pedagógico e preocupações inclusivas.
Mais do que nunca, ficou claro que os professores são essenciais
para o presente e o futuro da educação.
Os professores. A pandemia tornou evidente que o potencial de resposta está mais nos
professores do que nas políticas ou nas instituições. Professores bem preparados, com
liberdade, trabalhando em conjunto, dentro e fora do espaço escolar, em ligação com
as famílias, são sempre a melhor garantia de soluções oportunas e adequadas. Depois
de várias décadas de certa degradação do seu prestígio, os professores parecem, agora,
estar sendo mais valorizados e considerados pela sociedade. É um tempo importante
para a afirmação de novas dinâmicas de profissionalidade docente.
Há dez anos, num artigo notável publicado no jornal Le Monde, o filósofo francês Edgar
Morin escrevia que, quando um sistema é incapaz de resolver os seus problemas vitais,
degrada-se, desintegra-se ou, então, é capaz de um gesto de metamorfose. E acrescen-
116
tava, referindo-se ao sistema Terra: “O provável é a desintegração. O improvável, mas
possível, é a metamorfose” (Morin, 2010).
O que é verdade para o sistema Terra é igualmente verdade para o sistema Educação.
Talvez o mais provável seja a desintegração, por meio de um cada vez maior consu-
mismo na educação. Grande parte das respostas dadas à crise pandêmica reforça essa
tendência. Mas a metamorfose ainda é possível, como se percebe em muitas iniciativas
de professores e escolas que foram capazes de reinventar a pedagogia e os ambientes
educativos, reforçando as dimensões públicas e comuns da educação.
117
Segunda – É preciso transformar a estrutura organizacional da escola. No século XIX,
houve um grande projeto histórico de normalização da escola: espaços, tempos, currí-
culo, avaliação das aprendizagens, papel dos professores, turmas de alunos… Tudo foi
submetido a uma lógica de normalização, bem presente no nome dado às instituições
de formação de professores: escolas normais. Hoje, exige-se um movimento contrário:
diversificação dos espaços e dos tempos, dos currículos e das formas de avaliação, do
papel dos professores, do enquadramento dos alunos… O fundamental é a criação de
novos ambientes educativos que permitam o estudo individual e o trabalho em grupo, o
acompanhamento pelos professores, a realização de projetos de investigação, o traba-
lho presencial e também o acesso ao digital. O mais importante na escola é o trabalho
em comum de alunos e professores, e não apenas lecionar e ouvir aulas.
Fecho
A metamorfose ainda é possível?
Nada disto é novo. Há muito que o modelo escolar revela dificuldades para res-
ponder às questões do nosso século. A pandemia expôs com nitidez a urgência e a
possibilidade da sua transformação. Em poucos dias foi possível fazer o que parecia
impossível: construir novos espaços de aprendizagem, da sala de aula para casa,
com todas as consequências na vida familiar e social; reconverter a organização do
trabalho, da lição para o estudo por meio de trabalhos propostos pelos professores,
realizados num continuum diário e não no tradicional horário escolar; definir no-
vas modalidades de trabalho docente, sobretudo por meio de dispositivos digitais.
118
Claro que tudo isto foi possível pela necessidade de preservar a saúde pública e de res-
ponder a uma crise de proporções mundiais. Mas mostrou que a mudança é possível.
Para muitos, a mudança é sobretudo digital ou tecnológica, como se tudo agora passas-
se a ser feito virtualmente e a distância. Seria uma mudança indesejável. Perder-se-ia
uma dimensão central da educação, a interação humana, a convivialidade, a aprendiza-
gem da vida em comum. Acentuar-se-iam as tendências consumistas e perder-se-iam
as dimensões públicas.
Arriscamos uma previsão. Contrariamente ao que ouvimos todos os dias, não haverá
um mundo novo, nem uma escola nova, como resultado da pandemia. Mas a pandemia
revelou que a mudança é não só necessária, mas também possível. Essa consciência per-
mite-nos, hoje, imaginar a escola futura. Talvez o mais provável seja, depois da pande-
mia, uma aceleração do processo de desintegração e de fragmentação da escola. Mas a
metamorfose ainda é possível.
119
120
Capítulo 10
121
Este texto procura, acima de tudo, chamar a atenção para o papel dos pro-
fessores nos processos de transformação da educação e de metamorfose
da escola.
O primeiro andamento é dedicado a uma análise centrada nas políticas
educativas e na organização da escola, por meio de uma referência ao
processo de metamorfose da escola que está tendo lugar nos dias de hoje.
Depois de uma “ponte”, o segundo andamento é dedicado à formação de
professores, insistindo-se na necessidade de uma nova institucionalidade,
juntando as universidades, a profissão docente e as escolas da rede. O tex-
to fecha com um breve epílogo sobre a importância de libertar o trabalho
dos professores e as suas capacidades de iniciativa e de experimentação.
Uma primeira versão deste texto foi publicada na revista Educação & Re-
alidade (Vol. 44, 2019, pp. 1-15), com o título “Os professores e a sua
formação num tempo de metamorfose da escola”.
122
Os professores e a mudança:
que papel para a formação de professores?
Abertura
Este texto é escrito num tempo de profundas transições na área da Educação. Em me-
ados do século XIX, consolidou-se e difundiu-se em todo o mundo um modelo escolar
que, apesar de muitas críticas, resistiu bem até os nossos dias.
Todos conhecem as suas características. A sua força é tal que nem sequer consegui-
mos imaginar outras formas de educar. A escola substituiu o trabalho, a rua e mesmo
o lar como lugar de socialização e de formação. O triunfo da escola é total, pelo me-
nos em face do seu principal inimigo, o trabalho infantil, dentro e fora das famílias
(Viñao Frago, 2004).
Mas, no preciso momento em que celebra a sua vitória, a escola revela-se incapaz de
responder aos desafios da contemporaneidade. O modelo escolar está em desagrega-
ção. Não se trata de uma “crise”, como muitas que se verificaram nas últimas décadas.
Trata-se do fim da escola, tal como a conhecemos, e do princípio de uma nova institui-
ção, que certamente terá o mesmo nome, mas que será muito diferente.
No tempo de uma geração, nos próximos vinte ou trinta anos, assistiremos a uma com-
plexa metamorfose da escola, isto é, a uma alteração da sua forma. É uma mudança de
via, uma nova origem (Morin, 2011).
1.º andamento
123
A escola pública, laica, gratuita, obrigatória e única é um elemento central no processo
de construção dos Estados-nação (Bourdieu, 1993; Hutmacher, 1981).
Nada teria sido feito sem os professores. Para cumprir a sua missão, os Estados consti-
tuem um corpo profissional docente que é recrutado, formado, remunerado e controla-
do pelos poderes públicos. A profissionalização dos professores é um fator decisivo da
produção do modelo escolar.
No centro da cena estão os professores. São eles os responsáveis pela disciplina escolar,
no duplo sentido do termo: ensinam as disciplinas, as matérias do programa, em aulas
dadas simultaneamente a todos os alunos; e asseguram a disciplina, as regras de com-
portamento e de conduta dos alunos.
A criação das escolas normais, em meados do século XIX, revela bem o papel que os
professores desempenham na produção do modelo escolar. É nessas instituições espe-
cializadas de formação de professores que nasce e se reforça o corpo profissional que,
a serviço do Estado, promove a educação popular (em língua inglesa, o conceito é mais
preciso, “mass schooling”, escola de massas). Mas é também nessas instituições que se
“normaliza” o modelo escolar, conseguindo que, em um tempo histórico curto, se pas-
se de certa desordem nos espaços e nos processos educativos para uma forma escolar
estruturada e padronizada.
A escola se baseia num contrato social e político que lhe atribui a responsabilidade pela
formação integral das crianças por meio de um modelo organizacional bem estabeleci-
do (Nóvoa, 2006). No início do século XXI, começa a tornar-se claro que este contrato
precisa ser profundamente repensado. Já não se trata de melhorias ou de aperfeiço-
amentos, ou mesmo de inovações, mas de uma verdadeira metamorfose da escola. A
transformação da educação é um processo que começa nos professores.
124
E agora?
Uma das melhores notícias dos nossos dias é a emergência, em todo o mundo, de movi-
mentos que procuram refundar a escola, mas sem pôr em risco um compromisso público
125
com a educação. A mudança faz-se a partir de uma matriz cultural e científica, afirmando
a importância do conhecimento, sem ceder nem à ideologia do “back to basics” (a escola
mínima de antigamente, do “ler, escrever e contar”), nem a uma escola folclórica afogada
numa infinidade de projetos que, tantas vezes, apenas revelam a dificuldade para reno-
var as práticas pedagógicas. Não vale a pena alimentarmos ilusões, trazendo tudo para
dentro da escola, uma “escola transbordante”, sem rumo e sem sentido. Mas vale a pena
trabalhar para a construção de um espaço público de educação, a “cidade educadora”, no
qual a escola se articula com outras instituições, grupos e associações (Nóvoa, 2005).
126
profissão, conduzindo a políticas que desvalorizam a formação dos professores e que
se legitimam por meio de um discurso pragmático: “se escolhermos pessoas com bom
conhecimento de uma dada matéria, facilmente conseguiremos prepará-las para serem
professores”; “se dermos uma remuneração suplementar aos professores cujos alunos
têm bons resultados, o ensino melhorará”; “se tivermos bons materiais (livros, progra-
mas etc.) e boas tecnologias, seremos capazes de suprir as deficiências dos professores
e da sua formação”; e daí em adiante.
Os movimentos desse tipo têm como ponto de partida um diagnóstico muito crítico so-
bre as dificuldades das escolas e as fragilidades das instituições de formação de profes-
sores. Muito populares no mundo, estão hoje num processo de expansão internacional,
conduzindo a políticas de desprofissionalização e de degradação da profissão docente.
Obviamente, manifestam sempre uma grande desconfiança em relação à escola pública
e o desejo de instaurar novas formas de regulação privada da educação.
Pelo contrário, aqueles que, como eu, acreditam no compromisso público com a educa-
ção e na metamorfose da escola, partem também de um diagnóstico crítico, mas para re-
forçar e valorizar as dimensões profissionais, seja na formação inicial e continuada, seja
num exercício da docência que só se completa por meio de um trabalho coletivo com os
outros professores. É nessas bases que se fundamenta a minha proposta de renovação
do campo da formação de professores e do trabalho docente.
2.º andamento
127
A afirmação parece simples. E, no entanto, é esta a novidade que queremos trazer neste
texto, pois dela decorre uma nova matriz para pensar a formação de professores. Em vez
de listas intermináveis de conhecimentos ou de competências a adquirir pelos profes-
sores, a atenção concentra-se no modo como construímos uma identidade profissional,
no modo como cada pessoa constrói o seu percurso no interior da profissão docente.
Tornar-se professor – para nos servirmos do célebre título de Carl Rogers, Tornar-se
pessoa (1973) – obriga a refletir sobre as dimensões pessoais, mas também sobre as
dimensões coletivas do professorado. Não é possível aprender a profissão docente sem
a presença, o apoio e a colaboração dos outros professores.
Fazer essa afirmação é reconhecer, de imediato, que os ambientes que existem nas uni-
versidades (no caso da formação inicial ou nas escolas, no caso da formação continuada)
não são propícios à formação dos professores no século XXI. Precisamos, pois, recons-
truir esses ambientes, tendo sempre como orientação que o lugar da formação é o lugar
da profissão.
128
crítico. Mas esquecemo-nos de que, por vezes, é apenas um conhecimento vazio, sem
capacidade de interrogação e de criação. Às escolas atribui-se uma ligação à prática, às
coisas concretas da profissão, a tudo aquilo que, “verdadeiramente”, nos faria professo-
res. Mas esquecemo-nos de que essa prática é frequentemente rotineira, medíocre, sem
capacidade de inovação e, muito menos, de formação dos novos profissionais.
Tendo essa ideia como argumento central, desdobrarei a análise nos três momentos em
que se organiza o desenvolvimento profissional dos professores: a formação inicial, a
indução profissional e a formação continuada. Em cada um deles, procurarei explicar a
ligação formação-profissão, tendo sempre como pano de fundo a necessidade de repen-
sar a profissão de professor à luz dos desafios atuais, em face do fim do modelo escolar e
do princípio de um novo tempo para o ensino e a educação.
Formação inicial
129
foi, muitas vezes, por mero oportunismo, a fim de assegurarem os seus postos e finan-
ciamentos, podendo, assim, dedicar-se ao que verdadeiramente lhes interessa, as suas
áreas disciplinares. Também muitos universitários do campo da Educação relegaram
a segundo plano a formação de professores, mobilizados pelos seus interesses científi-
cos, legítimos, mas aproveitando-se dos professores, por vezes de forma paternalista,
para justificarem o seu poder nas pós-graduações e na pesquisa.
O diagnóstico é excessivamente duro, e até injusto, mas não podemos poupar nas pa-
lavras num tempo decisivo para o futuro dos professores e das escolas. É preciso re-
conhecer a dedicação e o compromisso de muitos universitários, de distintas áreas do
saber, que têm se dedicado à formação de professores. É neles, nos seus trabalhos, nas
suas iniciativas, nas redes que foram construindo, que está a resposta para os nossos
problemas. Precisamos juntá-los num mesmo espaço institucional, uma casa comum
da formação e da profissão, dentro das universidades, mas sempre com uma ligação
orgânica aos professores e às escolas da rede.
É nesta casa comum que se pode definir um campo estimulante, que escape à frag-
mentação atual da formação de professores. Precisamos, nesta casa comum, do conhe-
cimento dos conteúdos científicos das disciplinas (Matemática, Biologia, História…),
pois quem os desvaloriza comete um erro fatal. Se não dominarmos esses conteúdos,
as mais sofisticadas técnicas de ensino de pouco nos servirão. Precisamos, também, do
conhecimento científico em Educação, dos fundamentos às didáticas, à psicologia e ao
currículo, e a tantos outros assuntos. Mas esses dois tipos de conhecimento são insufi-
cientes para formar um professor se não construírem uma relação com o conhecimento
profissional docente, com o conhecimento e a cultura profissional dos professores.
Por isso é tão importante a existência, nas universidades, de uma casa comum da for-
mação e da profissão, isto é, de um lugar de encontro entre os professores universitá-
rios que se dedicam à formação docente e os professores da rede. Esta casa comum é um
lugar universitário, mas tem uma ligação com a profissão, o que lhe dá características
peculiares, assumindo-se como um “terceiro lugar”, um lugar de articulação entre a
universidade e a sociedade, nesse caso, entre a universidade, as escolas e os professo-
res. Nesta casa comum faz-se a formação de professores ao mesmo tempo que se produz
e se valoriza a profissão docente.
130
Indução profissional
O que temos feito com o conhecimento produzido por Michael Huberman e tantos ou-
tros autores? Nada, ou quase nada. Contrariamente aos médicos, e a outros profissio-
nais, os jovens professores são deixados à sua sorte nas escolas, com pouco ou nenhum
apoio, lutando sozinhos pela sua “sobrevivência”. É preciso alterar esse estado de coi-
sas e construir políticas públicas de indução profissional.
131
tigiante que podem desempenhar. Implica que abandonemos uma visão individualista da
profissão e que sejamos capazes de instaurar processos coletivos de trabalho.
Essa possibilidade é ainda mais urgente hoje do que no passado. Ninguém se integra
numa profissão sozinho, isoladamente. Ninguém constrói novas práticas pedagógicas
sem se apoiar numa reflexão com os colegas. Ninguém, sozinho, domina completamen-
te a profissão, como tantas vezes nos tem alertado Sérgio Niza (2012). Precisamos dos
outros para nos tornarmos professores.
Formação continuada
Mas esses discursos prestam um péssimo serviço à profissão, pois conduzem, inevita-
velmente, a uma menorização ou desqualificação dos professores. De um ou de outro
modo, abrem caminho a um mercado de cursos, eventos, seminários e encontros no
qual especialistas diversos montam o seu espetáculo pessoal para vender aos professo-
res novidades inúteis sobre o cérebro e a aprendizagem, as novas tecnologias ou qual-
quer outra moda de momento.
132
formação complementar, seja nas áreas disciplinares em que lecionam, seja em domí-
nios pedagógicos. Mas essa formação não deve ser confundida com a formação continu-
ada a ter lugar na escola com a participação das “comunidades profissionais docentes”.
Avançar esta proposta não representa nenhuma desvalorização dos saberes teóricos ou
científicos, mas antes a vontade de ressignificá-los no espaço da profissão. É na comple-
xidade de uma formação que se alarga a partir das experiências e das culturas profissio-
nais que podemos encontrar uma saída para os dilemas dos professores.
No meio de muitas dúvidas e hesitações, há uma certeza que nos orienta: a metamorfo-
se da escola acontece sempre que os professores se juntam em coletivo para pensar o
trabalho, para construir práticas pedagógicas diferentes, para responder aos desafios
colocados pelo fim do modelo escolar. A formação continuada não deve dispensar ne-
nhum contributo que venha de fora, sobretudo o apoio dos universitários e dos grupos
de pesquisa, mas é no lugar da escola que se define, se enriquece e, assim, pode cumprir
o seu papel no desenvolvimento profissional dos professores.
Epílogo
A pandemia do triênio 2020-2022 tornou mais urgente a mudança. Não se trata de co-
meçar do zero, mas de reinventar a escola, de inventar a escola de novo, aprofundando
a sua história, as suas possibilidades e a sua natureza como espaço público e comum.
Transformação ou metamorfose?
“No que diz respeito à escola, temos perante nós um grande trabalho,
cujo objetivo é construir um novo projeto, escola por escola. […] Os
133
nossos professores, que trabalham com dedicação e paixão, devem re-
ceber de volta poder, responsabilidade e sentido. […] É um novo méto-
do construído a partir de baixo. […] Dar às escolas mais autonomia, dar
mais liberdade aos professores, dar às equipes novas margens de ação
e de iniciativa e, ao fazê-lo, devolver o gosto pela profissão e o sentido
da sua missão. É uma verdadeira revolução coperniciana que vos propo-
nho, e pondero bem as minhas palavras. […] Vamos abrir um processo
que, antes de mais, se baseia no voluntariado. […] Primeira pequena re-
volução que devemos assumir coletivamente, da liberdade. Só participa
quem quiser participar. […] O mais importante neste método é dar liber-
dade e valorizar a capacidade de iniciativa dos professores e das escolas”.
Este longo discurso do presidente francês baseia-se por inteiro na ideia de uma “revo-
lução coperniciana”, de uma “revolução cultural”, deixando de pensar a mudança em
educação por meio de uma nova lei, de uma nova reforma ou de uma nova tecnologia,
para valorizar, primordialmente, a iniciativa dos professores, a sua capacidade de se
organizarem coletivamente e de levarem a cabo experiências e projetos.
Sim, é preciso libertar a energia individual e coletiva dos professores. É preciso criar as
condições favoráveis à “coragem dos começos” (Jankélévitch, 1960). Assumir riscos?
Claro, mas de que valeria um pensamento inofensivo, vazio, sem os riscos da ação, sem
a virtude do compromisso? A coragem é o contrário do medo, é mesmo o seu antídoto.
Em vez de dedicar o nosso tempo a elaborar justificativas para a inércia, concentremo-
-nos na “coragem da ação”.
134
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140
Editora Diálogos Embalados:
começa uma nova viagem pela Educação
“A melhor metáfora educativa é a viagem, a preparação para uma viagem
pelo desconhecido.” Assim escreve o pensador António Nóvoa, nesta
obra que marca – e honra – a estreia da Diálogos no mundo editorial.
Sim, professor Nóvoa, a viagem!
Foi pelas viagens pedagógicas que começou a Diálogos, pelo país e pelo
mundo. Depois, pela formação dos professores – respeitando sempre
o docente como um profissional, com cultura própria e saberes espe-
cíficos. Mais tarde, pelos livros que viajam pelo Brasil e além-mar, no
Embalados, o primeiro e maior clube de leitura dedicado a professores.
Sempre uma viagem. Pelo inédito e pelo desconhecido, tendo como bús-
solas o educador, a educação.
E agora seguimos adiante, velas abertas, com o lançamento da Editora
Diálogos Embalados, que chega ao mundo editorial com um propósito
claro: acreditar nos professores e nas professoras como insubstituíveis
protagonistas da Educação. Apoiá-los em seus desafios, ampliar seus
horizontes, aprofundar seus mergulhos, conectar seus saberes, tecer
mais laços, espantar mais olhos, semear e colher pensamentos, ouvir
seus corações.
A partir de agora, como um canal para a brilhante rede de autores, pes-
quisadores, escritores, pedagogos que viajam conosco, a Editora Diá-
logos Embalados chega ao mercado editorial com o sonho de trabalhar
junto com todos os que escolheram – e acolheram – essa profissão essen-
cial para o futuro humano: a docência.
Sim, professor Nóvoa, o sonho de educar humanos para o bem comum
da humanidade e seus futuros. Também sobre isso nos ensina sua obra.
“A pedagogia é sempre uma relação humana. [...] O digital pode ser útil
para manter os laços, mas nunca substituirá o encontro humano. Porque
o sonho é um elemento central da educação.”
E aqui, pois, começa um novo sonho, para que todos possamos sonhar.
Juntos. Sempre. Para todos.
141
António Nóvoa é professor do Instituto de Educação da
Universidade de Lisboa e titular da Cátedra UNESCO
Futuros da Educação.
Veio pela primeira vez ao Brasil em 1994, para um En-
contro com Paulo Freire, em Águas de São Pedro. Desde
então, realizou inúmeras viagens de trabalho e missões
acadêmicas em municípios, estados, universidades e ins-
tituições de todo o país.
Este trabalho foi também reconhecido através da outorga
do título de Doutor Honoris Causa por várias universi-
dades brasileiras: Universidade de Brasília, Universidade
Federal do Rio de Janeiro, Universidade Federal de Santa
Maria e Universidade de São Paulo.
Em 2014, foi consultor do Governo federal e professor
convidado da Universidade de Brasília. Em 2017, foi
professor visitante da Universidade Federal do Rio de
Janeiro. Entre 2018 e 2021, foi Embaixador de Portugal
na UNESCO.
O seu último livro, publicado na Bahia em 2022, foi es-
crito em colaboração com Yara Alvim, professora da
Universidade Federal de Juiz de Fora. Tem como título
Escolas e Professores: Proteger, Transformar, Valorizar.
O presente livro, Professores: Libertar o futuro, contém
dez capítulos, construídos com base nos lemas do Dia
Mundial do Professor nos últimos dez anos. Tem também
a colaboração de Yara Alvim, co-autora de dois capítulos.
António Nóvoa diz que os versos seguintes de Vitorino
Nemésio, importante autor português, natural dos Aço-
res, que viveu algum tempo na Bahia, traduzem bem a
forma como se sente brasileiro:
“Foi em Água de Mininos,
Na Bahia, à flor do mar,
Que o português percebeu
Que isto de ser brasileiro
É questão de começar.”
142
As professoras e professores que, hoje, habitam as escolas são a geração
da mudança. Durante as vossas vidas profissionais, a educação e o ensino
vão mudar profundamente.
143