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Professores Digital

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PROFESSORES

Libertar o futuro
António Nóvoa

1
Este é um livro para quem acredita no professor e na escola pú-
blica. Para quem se orienta pela bússola da liberdade e do bem
comum. Para quem defende, acima de tudo, o humano – e seus
direitos. Para quem reconhece a Educação como processo inse-
parável do encontro entre pessoas, de relações humanas, de co-
construção do sentido de humanidade.
Reunindo textos publicados em conceituadas revistas pedagógi-
cas, bem como muitos ensaios inéditos, Professores – Libertar
o Futuro constrói uma ponte entre o passado da Escola e suas
perspectivas de futuros. Sim, no plural, pois o futuro é uma es-
colha que seres humanos, como indivíduos ou organizados em
diferentes coletivos, devem fazer, dentro de um necessário e ur-
gente novo contrato social.
A nova obra do pesquisador António Nóvoa pode ser entendida,
assim, como reflexão lúcida, rigorosa e muito bem-organizada
em torno dos temas definidos pela UNESCO e pela Organização
Internacional do Trabalho para o Dia do Professor, nos últimos
10 anos. Mais do que isso, porém, é um manifesto inquestionável
em defesa de uma posição que não deixa dúvidas.
“Para deixar tudo claro: o que me interessa, desde sempre, é a
defesa dos professores e da sua profissionalidade, no contexto
de uma valorização da escola pública e do espaço público da edu-
cação. Assumo uma postura crítica em face dos discursos que
diminuem ou corroem a profissão docente. Refiro-me às inter-
mináveis discussões, que se prolongam há mais de meio século,
sobre a pertinência de aplicar à docência o conceito de profissão:
é como se estivéssemos perante um círculo vicioso que só con-
tribui para rebaixar os professores. Refiro-me também às expres-
sões, cada vez mais correntes, que tratam os professores como
colaboradores, facilitadores ou mediadores: é como se a palavra
“professor” fosse incômoda e inadequada para pessoas e grupos
que pretendem diluir a profissionalidade docente”.

2
PROFESSORES
Libertar o futuro
António Nóvoa
Com a colaboração de Yara Alvim

São Paulo
2023

3
© Diálogos Embalados
Rua Boa Esperança, 106 - Tatuapé
03408-000 - São Paulo - SP

Gestão Editorial
Ana Paula Piti Azevedo
Telma Holanda

Coordenação Editorial
Ana Paula Piti Azevedo

Consultoria
Paulo de Camargo

Capa, projeto gráfico e diagramação


Orlando Pedroso / Estúdio Bala

Revisão
Hebe Ester Lucas

—----------------------------------------------------------------------------------------------------

Nóvoa, António
Professores : libertar o futuro / António Nóvoa. -- 1. ed. -- São Paulo : Diálogos
Embalados, 2023.

ISBN 978-65-980068-0-8

1. Educação 2. Formação docente 3. Professores - Formação I. Título.

23-151810 CDD-370.71

—----------------------------------------------------------------------------------------------------

1ª edição

Todos os direitos desta edição reservados à Editora Diálogos Embalados.

Grafia atualizada segundo o Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa de


1990, que entrou em vigor no Brasil em 2009.

Impresso no Brasil
maio de 2023

Impressão e acabamento
Pigma

SAC (11) 2613-0512 / (11) 11 993629541


atendimento@dialogosviagenspedagogicas.com.br
www.dialogosviagenspedagogicas.com.br

Versão gratuita para leitura autorizada pelo autor.

4
Dedico este livro às professoras e professores brasileiros
que, ao longo das últimas três décadas, tiveram
a generosidade de me ouvir, de me ensinar
e de trabalhar comigo.
De Boa Vista a Pelotas, de João Pessoa a Porto Velho,
e por todo o lado, encontrei, na vossa hospitalidade,
a parte de mim que me faltava.
Obrigado.

5
6
Índice
Abertura ....................................................................................... 6

Capítulo 1
Os professores e os futuros da educação .......................................... 9

Capítulo 2
Professores: alargar as possibilidades de futuro ............................... 19

Capítulo 3
A educação e os nossos futuros comuns .......................................... 29

Capítulo 4
Nada substitui um bom professor ................................................... 39

Capítulo 5
A liberdade como princípio e como fim ........................................... 49

Capítulo 6
O conhecimento profissional docente:
consequências para a formação de professores ................................ 57

Capítulo 7
Jovens professores: o futuro da profissão ........................................ 77

Capítulo 8
Os professores depois da pandemia:
a reinvenção do futuro .................................................................. 91

Capítulo 9
E depois da pandemia? Recuperar ou transformar? ......................... 109

Capítulo 10
Os professores e a mudança:
que papel para a formação de professores? ..................................... 119

Referências bibliográficas ............................................................. 133

7
Abertura
Em 1966, a UNESCO (Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a
Cultura) e a OIT (Organização Internacional do Trabalho) juntaram-se, no âmbito de
uma conferência intergovernamental especial, para a aprovação da importante Recomen-
dação relativa ao estatuto dos professores.

Neste documento reconhece-se o papel fundamental dos professores no processo edu-


cativo e o significado da sua contribuição para o desenvolvimento da personalidade
humana e da sociedade moderna; e estabelecem-se orientações internacionais sobre
o estatuto, a formação, a carreira docente, as condições de trabalho e os direitos e
deveres dos professores.

Aprovada no dia 5 de outubro de 1966, a Recomendação é um marco na história dos pro-


fessores e da profissão docente. Em 1994, o dia 5 de outubro será instituído como Dia
Mundial do Professor.

Anualmente, a UNESCO e a Internacional da Educação, federação sindical mundial que


representa mais de 32 milhões de professores no mundo, lançam uma campanha que cha-
ma a atenção para um tema central da profissão.

A presente recolha de textos, uns já publicados, outros inéditos, escritos em diferentes


momentos e com diferentes propósitos, organiza-se em torno dos temas escolhidos para
celebrar o Dia Mundial do Professor nos últimos dez anos:

∙ 2013 - Professores: pilares da democracia.


∙ 2014 - Investir no futuro, investir nos professores.
∙ 2015 - Reforçar os professores, construir sociedades sustentáveis.
∙ 2016 - Valorizar os professores, melhorar o seu estatuto.
∙ 2017 - Ensinar em liberdade, fortalecer os professores.
∙ 2018 - O direito à educação também é o direito a um professor qualificado.
∙ 2019 - Jovens professores: o futuro da profissão.
∙ 2020 - Professores: liderar em tempos de crise, reinventar o futuro.
∙ 2021 - Os professores estão no centro da recuperação educacional (pós-pan-
demia).
∙ 2022 - A transformação da educação começa com os professores.

Os textos aqui reunidos são uma espécie de colagens, à maneira artística, que iluminam
distintas facetas da profissão docente. O livro assume uma certa “circularidade”, isto é,

8
o regresso aos mesmos temas, ora para repetir ideias fundamentais, ora para as estudar a
partir de diferentes ângulos.

A intenção é contribuir para uma reflexão sobre os professores e a profissão docente num
tempo de profundas mudanças na educação e nas escolas. Estamos a passar por um mo-
mento de grandes dúvidas e incertezas, que não nos devem arrastar para o desânimo, mas
para uma mobilização coletiva e para a abertura de novos caminhos. A educação é um dos
lugares de transformação do mundo, mas, para isso, tem ela própria de se transformar.

Não se trata de alimentar visões mirabolantes de um futuro sem escolas e sem professo-
res, substituídos por aparatos tecnológicos ou pelo admirável mundo novo da inteligên-
cia artificial. Pelo contrário, devemos proteger, transformar e valorizar a educação como
bem público e comum e reforçar o papel dos professores (Nóvoa & Alvim, 2022).

O filósofo francês Edgar Morin, num dos seus últimos livros, convida-nos a mudar de via
(2020). Mudar de via e de vida nas escolas, com a adoção de um novo contrato social, pro-
posta feita pela UNESCO no seu último relatório sobre os futuros da educação (2021).

Evitemos o pathos da novidade, a ideia “futurista” de um começo a partir do zero. Deve-


mos honrar e prolongar o patrimônio comum da educação pública, construindo os pro-
cessos de transformação a partir de milhares de experiências e de projetos que já existem
nas nossas escolas, em todo o mundo, em Portugal e no Brasil também. A partir dessas
dinâmicas “de baixo” podemos imaginar um outro futuro, multiplicando até o infinito as
possibilidades de agir em conjunto.

Temos de assumir, com coragem, as nossas dúvidas e, até, o risco de nos enganarmos.
O risco é uma necessidade essencial da alma, diz-nos Simone Weil: “A ausência de risco
suscita uma espécie de aborrecimento que paralisa de maneira diferente, mas quase tanto
como o medo” (1949, p. 49).

A escola futura será feita de cooperação. Ninguém se educa sozinho. Precisamos dos
outros para nos educarmos. Precisamos de professores. Precisamos do poder da relação,
do encontro entre mestres e discípulos. Precisamos, como escreve Bernard Charlot, de
ocupar o mundo com humanidade e ocuparmo-nos dele, com todas as formas de soli-
dariedade que este termo implica: “Deve ser este o princípio de base de uma educação
contemporânea. É da educação, e da educação humana, que se trata” (2020, p. 323).

As professoras e professores que hoje habitam as escolas são a geração da mudança. Du-
rante as vossas vidas profissionais, a educação e o ensino vão mudar profundamente.

9
Há um grande mal-estar devido à falta de reconhecimento dos professores e a todas as in-
certezas que rodeiam o seu futuro. Mas, ainda assim, temos de ser capazes de um gesto de
esperança. Não se trata de um otimismo ingênuo, mas de uma esperança que se aprende
e se cultiva em comum. Precisamos criar um movimento de transformação da educação.
Esse movimento começa nos professores e com os professores.

O mais importante é sermos capazes de libertar o futuro, subtítulo que adotei para este
livro, inspirado por Ivan Illich (1971). Ninguém sabe como será o futuro e nem sequer
vale a pena tentar adivinhá-lo. Mas temos a obrigação de tudo fazer para não fechar as
possibilidades de futuro, para garantir a liberdade das gerações futuras.

Como bem lembrou o poeta e artista visual brasileiro Wlademir Dias-Pino, a liberdade é
sempre experimental.

São Paulo, 1º de maio de 2023.

10
Capítulo 1

Os professores
e os futuros da educação
Lema do Dia Mundial do Professor 2013
Professores: pilares da democracia

A educação como prática da liberdade é uma forma de


ensinar que qualquer um pode aprender. Esse processo
de aprendizagem é mais fácil para aqueles de nós que
ensinamos e acreditamos na existência de uma dimensão
sagrada da nossa vocação; que acreditamos que o nosso
trabalho não é apenas partilhar informações, mas também
participar no desenvolvimento intelectual e espiritual
dos nossos alunos.
bell hooks

11
Este texto apresenta as linhas principais do novo relatório da UNESCO
sobre os futuros da educação, intitulado Reimaginar juntos os nossos fu-
turos: um novo contrato social da educação (2021).
Redigido por uma Comissão Internacional, nomeada em 2018, pela di-
retora-geral da UNESCO, Audrey Azoulay, este relatório assumiu, como
ponto de partida, a difícil situação dos direitos humanos no mundo e a
necessidade de a educação contribuir para consolidar as democracias e
um novo humanismo mais do que humano, isto é, capaz de incluir também
os direitos da Terra e de todas as espécies.
O relatório atribui um papel central aos professores, na transformação da
educação e na metamorfose da escola, em linha com o lema do Dia Mun-
dial do Professor, em 2013 – Professores: pilares da democracia.
Uma primeira versão deste texto foi publicada no JL - Educação (n. 1335,
2021, pp. 1-2), com o título Um novo contrato social da educação: repen-
sar juntos os nossos futuros.

12
Os professores e os futuros da educação
No final de 2021, a UNESCO lançou um novo relatório, desta vez sobre os futuros da
educação, no plural. O documento vem na linha dos relatórios Edgar Faure (Aprender
a ser, 1972) e Jacques Delors (Educação: um tesouro a descobrir, 1996). A Comissão
Internacional era composta por 18 membros, tendo eu assumido a responsabilidade do
respectivo Comitê de investigação-redação.

No início dos trabalhos, em abril de 2018, muita gente se interrogou sobre a pertinên-
cia de um novo exercício prospectivo. Não seria mais importante concentrar esforços
na concretização da Agenda 2030, nomeadamente no 4.º Objetivo do Desenvolvimento
Sustentável sobre educação, em vez de perder tempo com exercícios “fúteis” de imagi-
nação do futuro?

As dúvidas foram brutalmente desfeitas pela irrupção da Covid-19. Em poucos meses,


assistimos à maior “experimentação”, caótica, confusa, desorganizada, desde sempre, na
história da educação. Podemos mesmo dizer que a pandemia encerrou o longo “século
escolar”, iniciado na segunda metade do século XIX.

No Relatório Faure, de 1972, já se afirmava que a educação estava num impasse e que
não bastavam as “fórmulas tradicionais”, exigindo-se uma “transformação qualitativa”
da educação. Cinquenta anos depois foi com esta ambição que a Comissão Internacional
sobre Os futuros da educação realizou os seus trabalhos. O ponto de partida foi a situação
do mundo e a necessidade de promover uma educação baseada nos direitos humanos.
Vale a pena transcrever alguns excertos do resumo que abre o relatório:

“A nossa humanidade e o planeta Terra estão ameaçados. A pandemia ser-


viu para revelar a nossa fragilidade e a nossa interdependência. Agora, são
necessárias ações urgentes, realizadas em conjunto, para alterar o rumo e
reimaginar os nossos futuros. Este Relatório reconhece o poder da edu-
cação para realizar mudanças profundas. […] Para isso, é necessário um
novo contrato social da educação, que possa reparar as injustiças enquanto
transforma o futuro. Este novo contrato social deve basear-se nos direitos
humanos e em princípios de não discriminação, justiça social, respeito pela
vida, dignidade humana e diversidade cultural. Deve integrar uma ética de
cuidado, reciprocidade e solidariedade. Deve fortalecer a educação como
um esforço público e um bem comum” (UNESCO, 2021, p. i).

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O relatório atribui um papel central aos professores nos processos de transformação da
educação e da escola, e também como “pilares da democracia”.

“Isto não é um relatório”


À maneira de Magritte, no seu quadro Ceci n’est pas une pipe, também poderíamos dizer:
“Isto não é um relatório”. A Comissão Internacional não quis fechar-se dentro de uma
sala, entre especialistas, a redigir um texto técnico com recomendações ou orientações
para os governos.

Foi outra a sua intenção: construir uma conversa pública com educadores de todo o mun-
do, tentando perceber as grandes questões que atravessam a educação e identificar expe-
riências e iniciativas com futuro.

Os esforços dirigiram-se à valorização de um debate público, global, sobre educação,


procurando envolver, sobretudo, as gerações mais jovens. Ao longo de três anos (2018-
2021), cerca de um milhão de pessoas participaram dessa conversa. O texto final procura
fazer uma síntese dessas contribuições e abrir novas possibilidades.

Em educação nunca há novidades. Tudo já foi dito ou inventado. Mas há mudanças im-
portantes, dinâmicas de transformação. É preciso repensar o que já se sabe e o que já se
faz evitando cair na ilusão de uma “novidade” sem raízes e sem história.

Como disse Arjun Appadurai, um dos membros da Comissão Internacional, este Relató-
rio é sobretudo food for thought (alimento para o pensamento), é sobretudo um convite
para o diálogo e a ação, e não tanto um relatório no sentido tradicional do termo.

Quando o tempo parece esgotar-se num interminável presente, é preciso recordar que
só os seres humanos têm consciência do futuro. A Comissão afastou-se de “visões futu-
ristas”, muito em voga, que anunciam a morte da escola e o retraimento da educação em
espaços domésticos ou familiares, imaginando que a inteligência artificial vai entrar no
cérebro de cada criança e fornecer-lhe “pílulas personalizadas de aprendizagem”.

Adotamos uma perspectiva utópica, não de um otimismo vazio, mas de esperança, para
não acrescentar crise à crise, e tudo verter num discurso catastrofista. Trabalhar para
um futuro comum foi, sempre, a nossa preocupação primeira. As ideias vêm de muitos
lugares do mundo. Tudo o que quisemos foi repensar, juntos, os futuros da educação.

14
Juntos: o tema central do Relatório
O título provisório do Relatório foi, quase até o final dos trabalhos da Comissão, Lear-
ning to become (a tradução para português é difícil, talvez Aprender a tornar-se, o que
soa estranho). Ao longo dos debates, percebemos que este título acentuava as dimensões
individuais e diminuía as referências à educação como projeto coletivo.

Então, acrescentamos a palavra “juntos” (Learning to become together), para bem marcar
a importância das interdependências e da educação como um bem comum. O título final,
definido apenas na última reunião, ficou mais composto: Reimaginar juntos os nossos fu-
turos: um novo contrato social da educação. O Relatório foi tecido em torno do conceito
de “juntos”, enunciado sistematicamente no decurso do texto para sublinhar três ideias:

1.ª a educação é um percurso individual, mas que se faz no encontro com os


outros, sobretudo com os outros que são diferentes de nós;
2.ª o que sabemos depende do que os outros sabem e da partilha de conhe-
cimento mútuo;
3.ª nada substitui as dinâmicas de cooperação e de colaboração, na pedago-
gia, na escola e na sociedade.

Essas ideias, ou ideais, não são de agora, fazem parte das melhores tradições pedagógi-
cas. Trata-se de valorizar “os laços que libertam” para recorrer a Bruno Latour (2021).
E para isso é preciso reformar a educação como projeto público e como bem
comum mundial. Há três movimentos que ficam muito claros no texto do relatório:

1.º a necessidade de pensar a educação como um direito humano ao longo de


toda a vida, desde o nascimento até as idades mais avançadas;
2.º a caracterização da educação como um projeto público e um bem co-
mum, reforçando a participação e a capacidade de decisão dos cidadãos;
3.º a afirmação da educação como uma responsabilidade mundial, e não ape-
nas nacional.

A articulação entre esses princípios sublinha o poder transformador da educação, mas


também a ideia de que esse poder só poderá ser devidamente exercido se a própria escola
se transformar. Dizer isso é afirmar igualmente que a educação tem um papel importante
a cumprir na democratização das sociedades, mas, para cumpri-lo, tem, ela própria, de se
organizar como uma instituição democrática, de participação e de cooperação.

15
Entre promessas passadas e futuros incertos
A primeira parte do Relatório faz um diagnóstico da educação no mundo, reconhecendo
os progressos feitos nas últimas décadas, mas também a persistência de exclusões e de
desigualdades. Os números são conhecidos: 250 milhões de crianças não vão à escola;
mais da metade dos alunos escolarizados não atingem níveis mínimos de aprendizagem;
750 milhões de adultos não são alfabetizados. E todos esses números se agravaram, bru-
talmente, durante a pandemia.

As promessas incumpridas explicam-se por falta de compromisso e de investimento nos


planos nacional e internacional. Mas devem-se também a um modelo escolar que parece
ter atingido o limite das suas possibilidades e precisa urgentemente se renovar. Devemos
continuar a fazer “mais”, certamente, mas devemos também fazer “diferente”. São qua-
tro as disrupções ou transformações em curso que a Comissão considera particularmente
importantes para repensar a educação:

- um planeta em perigo e a necessidade de um novo humanismo, mais do


que humano, com particular atenção às alterações climáticas e à proteção
da biodiversidade;
- as questões digitais, enquanto fatores de ligação, mas também de divisão,
com as ilusões de um “solucionismo tecnológico” e os perigos de uma in-
teligência artificial sem limites;
- os retrocessos democráticos e uma polarização crescente no mundo,
obrigando a pensar a educação no quadro de uma cidadania global e de uma
luta contra as desigualdades e contra todas as formas de discriminação;
- as incertezas no domínio do trabalho, com os avanços da automatização
e a necessidade de pensar a relação entre a escola e o trabalho em moldes
totalmente diferentes.

Uma quinta transformação, particularmente importante, acabou por não ter o devido
destaque: a demografia, com todas as suas consequências na vida social, na relação entre
gerações e no tempo disponível para a educação nas idades mais avançadas, quando se
prevê para breve uma esperança média de vida de 100 anos.

Renovar a educação
As propostas mais importantes, resultado de muitos diálogos com educadores de todo o
mundo, são apresentadas na segunda parte do Relatório. A Comissão não buscou a “no-

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vidade inédita”, mas antes as práticas e realidades concretas que, em muitos lugares, têm
vindo a transformar a educação. “Juntos” é a palavra que serve de denominador comum
aos cinco pontos analisados: pedagogia, currículo, professores, escola e sociedade.

1.º Pedagogias cooperativas e solidárias. A Comissão faz um apelo ao desenvolvimento


de pedagogias baseadas na cooperação, no sentido de um reforço das capacidades de alu-
nos e professores para trabalharem em conjunto. Sem recusar a importância da “lição”,
propõe-se ir além desse modelo de uma aprendizagem colaborativa, por temas e proble-
mas. Aprender “juntos” implica ligar o conhecimento à solidariedade, à ética e à empatia.

2.º Os currículos e a evolução do patrimônio dos “conhecimentos comuns”. A Comissão


deu particular atenção ao debate sobre o knowledge commons, conceito de difícil tradu-
ção, que procura valorizar o patrimônio dos “conhecimentos comuns”. A ligação entre o
sentir e o saber (Damásio, 2020) ou entre o pensar (de conhecer) e o pensar (de cuidar)
(Stiegler, 2018-2020) esteve sempre muito presente. Partindo do triângulo pedagógico
– alunos, professores e conhecimento –, a Comissão chama a atenção para a necessidade
de conceber a educação numa nova relação com o mundo e a Terra. Defende, por isso,
a importância da literacia científica e da compreensão do conhecimento, o que implica
integrar no ensino uma reflexão sobre as próprias disciplinas e a forma como se consti-
tuíram historicamente.

3.º O trabalho transformador dos professores. Uma das posições mais fortes da Comissão
prende-se com a recusa de “visões futuristas” que apontam para o desaparecimento dos
professores, substituídos por dispositivos tecnológicos, ou para a diluição da sua profis-
sionalidade, transformando-os em “tutores”, “facilitadores” ou quaisquer outras figuras.
O reforço das dimensões colaborativas da profissão e de novos espaços de formação, jun-
tando universidades e escolas básicas, com a presença dos professores mais experientes
na formação das novas gerações docentes, é uma das linhas orientadoras do Relatório.

4.º Proteger e transformar a escola. A Comissão deixa um aviso sério contra as tendên-
cias, muito populares, que anunciam uma “educação ubíqua”, desvalorizando o espaço
da escola. O Relatório afirma mesmo que, se a escola não existisse, seria necessário in-
ventá-la como lugar de relação, de trabalho, de convivialidade, onde as crianças podem
encontrar o mundo e encontrar-se com ele. Mas a Comissão considera que esta escola
tem de se reinventar, renovando um “modelo escolar” obsoleto.

5.º Os diferentes tempos e espaços da educação. O último ponto é dedicado a pensar uma
educação que vai muito além da realidade escolar. A Comissão retoma perspectivas dos

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relatórios anteriores sobre a educação ao longo (tempos) e ao largo (espaços) da vida, de-
dicando particular atenção à educação de adultos, que deve ser repensada à luz das novas
dinâmicas de participação social e de cidadania e das mudanças demográficas. Propõe-se
um novo olhar sobre o conceito de formação, menos marcado, sobretudo nas idades mais
avançadas, pelo princípio de “preparar para uma vida futura”, e mais centrado no “viver
bem a coisa presente”.

A análise de cada um desses cinco pontos termina com uma referência ao ensino su-
perior. A Comissão considera que universidades e escolas básicas não podem estar de
costas voltadas e que é preciso inventar novas formas de partilha e de entendimento, no-
meadamente na produção de conhecimento, na pedagogia e na formação de professores.

Convite ao diálogo e à ação conjunta


A última parte do Relatório, mais breve, chama a atenção para a necessidade de uma nova
agenda de investigação em educação, pois, sem conhecimento seguro, fiável e consis-
tente, não será possível construir novos caminhos. A Comissão deixa um apelo à solida-
riedade mundial e à cooperação internacional, chamando a uma mobilização mundial de
financiamentos e de vontades para que sejam cumpridas as promessas da Agenda 2030.

O Relatório termina com um convite ao diálogo e à ação. A Comissão gostaria que o seu
texto fosse apenas o início de um processo de partilha de experiências, de troca de ideias
e de práticas entre educadores. É urgente refletir sobre o que já sabemos, e há um patri-
mônio extraordinário de conhecimentos comuns sobre educação.

Todo o Relatório foi concebido e realizado como um exercício de democracia e de par-


ticipação. A Comissão quis chamar a atenção dos educadores, em particular dos profes-
sores, para a urgência de uma ação democrática num tempo de tantos autoritarismos. As
escolas são lugares de cidadania, de aprendizagem da vida em comum. Os professores
têm uma responsabilidade maior na criação das condições para que a democracia se alar-
gue, dentro e fora das escolas.

É esse o sentido de um dos últimos livros de Philippe Meirieu sobre Ce que l’école peut
encore pour la démocratie:

“É preciso apostar na educação para afastar a explosão de individualismos


e a guerra entre clãs. É preciso apostar na educação para controlar o ban-
ditismo da bolsa e a violência das gangues. É preciso apostar na educação

18
para revelar às nossas crianças a impostura de todos os tocadores de flauta,
comerciais e religiosos, que as querem tutelar. É preciso apostar na educação
para lutar contra os egoísmos descontraídos e para combater os fanatismos
mortais… Em suma, é preciso apostar que a escola ainda pode alguma coisa
para nos ajudar a avançar em direção à democracia” (2020, p. 23).

As palavras do pedagogo francês inserem-se numa longa continuidade de autores que,


ao longo do século XX, defenderam a matriz democrática da escola. O mais conhecido é,
sem dúvida, John Dewey, que chegará mesmo a dizer que a democracia deve renascer a
cada geração, e que esse trabalho é uma missão central dos professores.

Promover a cidadania nas escolas é explicar a importância da participação, num duplo


sentido. Por um lado, por meio da construção daquilo a que Alain Touraine chama uma
“escola do sujeito e da comunicação intercultural”, para que os alunos “se tornem seres
livres e sejam capazes de encontrar e de preservar a unidade da sua experiência mesmo
com as perturbações da vida e a força das pressões que se exercem sobre eles” (1997, p.
347). Por outro lado, por meio de processos coletivos de decisão, uma vez que a partici-
pação não é apenas escuta e consulta é também deliberação.

O Relatório desenvolve-se sempre com este espírito, chamando a atenção para a impor-
tância e a responsabilidade dos professores. O seu papel é primordial como pilares da
democracia, numa educação baseada nos direitos humanos e nos deveres que esses di-
reitos nos impõem.

No início do século XX, a filósofa francesa Simone Weil, no seu texto Étude pour une
déclaration des obligations envers l’être humain, afirma que a cada necessidade de um ser
humano “deve corresponder uma obrigação” (2018, p. 67).

No fundo, é o que José Saramago nos dirá no dia 10 de dezembro de 1998 ao receber o
Prêmio Nobel de Literatura, afirmando que nenhuns direitos humanos poderão subsistir
sem a simetria dos deveres que lhes correspondem: “Tomemos então, nós, cidadãos co-
muns, a palavra e a iniciativa. Com a mesma veemência e a mesma força com que reivindi-
carmos os nossos direitos, reivindiquemos também o dever dos nossos deveres. Talvez o
mundo possa começar a tornar-se um pouco melhor” (2013, p. 90).

19
20
Capítulo 2

Professores: alargar as
possibilidades de futuro
Lema do Dia Mundial do Professor 2014
Investir no futuro, investir nos professores

Uma das grandes lições da minha vida é ter deixado de


acreditar na perenidade do presente, na continuidade
do devir, na previsibilidade do futuro. São incessantes,
embora descontínuas, as irrupções repentinas do ines-
perado que vêm abalar ou transformar, de forma feliz
ou infeliz, a nossa vida individual, a nossa vida de cida-
dãos, a vida da nossa nação, a vida da humanidade.
Edgar Morin

21
Este texto procura refletir sobre o papel dos professores no alargamento
do futuro, melhor dizendo, no alargamento das possibilidades de futuro.
A defesa de uma “humana docência”, de um trabalho de “educar humanos
por humanos para o bem da humanidade”, justifica-se na perspectiva de
libertar o futuro. Os professores têm de ser protegidos e valorizados para
que possam cumprir plenamente a sua missão humanista.
O texto dialoga com o lema do Dia Mundial do Professor, em 2014 – Inves-
tir no futuro, investir nos professores.

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Professores: alargar as possibilidades de futuro
Paul Valéry avisa-nos ser fútil, e perigoso, prever com base em dados recolhidos na vés-
pera ou na antevéspera, ainda que seja sábio mantermo-nos preparados para tudo, ou
para quase tudo: “Nunca o futuro foi tão difícil de imaginar. Mesmo quando o tentamos
esboçar, os traços confundem-se, as ideias opõem-se às ideias, e perdemo-nos na desor-
dem característica do mundo moderno” (1932).

Paul Valéry refere, ainda, que “todo o futuro da inteligência depende da educação”
(1935). É um apontamento muito importante, que apela à humildade perante o futuro,
perante qualquer tentativa de prever ou de controlar o futuro. Nesses tempos de crise,
há muita gente com coragem de viver, mas, por vezes, com medo de imaginar o futuro, o
que pode nos levar a inércias fatais, nomeadamente no campo da educação.

Ser capaz de imaginar é central para que se alarguem as possibilidades de futuro. É a


nossa responsabilidade geracional. Não se trata, apenas, de nos prepararmos para o que
aí vem, ou pode vir. Trata-se de escolhermos os caminhos desejáveis de futuro, e de tra-
balharmos para que eles se realizem.

Kery Facer tem razão quando diz que pensar em “escolas preparadas para o futuro” re-
presenta, muitas vezes, uma atitude defensiva e que devemos, isso sim, imaginar “esco-
las construtoras do futuro”:

“O propósito destas escolas está muito mais próximo do próprio presente, da


capacidade de olhar para as lacunas e para as oportunidades e possibilidades
de fazer pequenas mudanças agora. Trata-se de dar pequenos passos e criar
pequenas oportunidades para imaginar que as coisas podem ser diferentes, e
começar a fazê-las. Trata-se também de assumir a responsabilidade pelas es-
colhas e ações que fazemos. Trata-se de experimentar e de refletir sobre o que
fazemos. […] É uma questão de ética, de cuidado com o futuro e um sentido
de que o podemos construir, de que somos responsáveis por agir” (2016).

A ideia de investir no futuro está bem presente nessa posição. É nela que devemos basear
a nossa atitude em face das crises que atravessam as sociedades contemporâneas e à pos-
sibilidade de uma transformação da educação.

23
A humana docência
Num tempo de grandes mudanças, muitos alimentam visões “fantásticas” de um futuro
sem escolas e sem professores. Seria um futuro sem futuro, pois a educação implica a
existência de um trabalho em comum num espaço público, implica uma relação humana
marcada pelo imprevisto, pelas vivências e pelas emoções, implica um encontro entre
professores e alunos mediado pelo conhecimento e pela cultura. Perder essa presença
seria diminuir as possibilidades da educação.

Por isso é tão importante proteger, transformar e valorizar as escolas e os professores


(Nóvoa & Alvim, 2022):

- Proteger… porque as escolas são lugares únicos de aprendizagem e de so-


cialização, de encontro e de trabalho, de relação humana, e precisam ser pro-
tegidas para que, nelas, os seres humanos se eduquem uns aos outros.
- Transformar… porque as escolas precisam de mudanças profundas, nos
seus modelos de organização e de funcionamento, nos seus ambientes edu-
cativos, para que alunos e professores possam construir juntos processos de
aprendizagem e de educação.
- Valorizar… porque as escolas são espaços imprescindíveis para a formação
das novas gerações e nada substitui o trabalho de um bom professor, de uma
boa professora, na capacidade de juntar o saber e o sentir, o conhecimento e
as emoções, a cultura e as histórias pessoais.

Os efeitos devastadores da pandemia podem prolongar-se por muito tempo na nossa vida
em comum, social, coletiva, partilhada. Por medo ou por precaução, podemos ter ten-
dência a nos retrair, a nos fechar em ambientes familiares, privados, isolados, separados
dos outros.

Ora, a educação é o contrário da “separação”, é a “junção” de pessoas diferentes


num mesmo espaço, é a capacidade de trabalharmos em conjunto. Não há educação
fora da relação com os outros, por isso é tão importante preservar as escolas como
lugares de educação.

As tecnologias fazem parte da nossa vida, do dia a dia das nossas crianças, mas a educação
dá-se sempre num contexto de relação humana. A educação não é apenas um ato indi-
vidual, é uma dinâmica de aprendizagem com os outros. Ninguém se educa sozinho. É
impossível. A relação humana é tão importante que não consigo imaginar que a educação

24
possa ser feita de forma totalmente virtual, a distância. Os dispositivos digitais que temos
ao nosso alcance são úteis. Ninguém deve recusá-los. Mas dizer que a educação vai passar
a ser feita unicamente a distância seria perder a dimensão da relação humana, do impres-
cindível encontro humano. Não há educação sem afeto, não há educação sem sentimento,
não há educação sem relação humana profunda, de alunos com alunos, de alunos com
professores. Não se pode conhecer sem sentir, não se pode aprender sem emoção, sem
empatia. Não podemos nos educar sem os outros.

Durante a redação do último relatório da UNESCO – Reimaginar os nossos futuros jun-


tos: um novo contrato social da educação, consultamos cerca de um milhão de pessoas no
mundo. Que avaliação faço dessa consulta?

Quando perguntamos sobre o futuro da educação, recebemos respostas frágeis e sem


grande interesse ou originalidade. As pessoas limitavam-se a reproduzir o que já conhe-
cem ou, então, lançavam-se em delírios futuristas, quase sempre com base no digital ou
na inteligência artificial, muito pouco interessantes.

Mas sempre que perguntamos às pessoas, sobretudo aos professores, o que estavam fa-
zendo, em que experiências ou iniciativas estavam envolvidos, tivemos respostas extra-
ordinárias, com exemplos de processos de renovação e transformação da educação. São
experiências que nasceram, quase sempre, de dois ou três professores, frequentemente a
partir da mudança dos espaços da escola (junção de salas de aula, organização diferente
das turmas etc.) ou de dinâmicas inovadoras de trabalho pedagógico (projetos, temas
transversais etc.). Percebemos, por meio dessas respostas, que o futuro já está inventado.
Falta apenas transformá-lo em presente.

Uma das grandes filósofas norte-americanas, Maxine Greene (1982), feminista e pen-
sadora das artes na educação, afirmou que não é possível encontrar nenhum propósito
coerente para a educação se alguma coisa comum não acontecer num espaço público. É
uma fórmula extraordinária para juntar o comum e o público, explicando que a educação
depende de uma relação com os outros, sobretudo com os outros diferentes.

As tendências recentes de uma “domesticação” da escola, isto é, de um regresso da


educação aos espaços “domésticos”, familiares, é um retrocesso imenso numa visão
humanista que se destina a educar todos com todos. Retiradas da relação com os ou-
tros, as crianças ficam impedidas de desenvolver a arte do encontro e as sociedades
ficam privadas de uma das poucas instituições onde ainda se pode tentar construir uma
vida em comum.

25
Aprender e estudar em comum é a melhor forma de promover uma “sociedade convi-
vial”, uma humanidade comum. Ainda temos tempo?

Nos tempos dramáticos que estamos vivendo, temos obviamente muitas dúvidas e hesita-
ções. Não sabemos bem o que pensar, nem o que fazer, nem a melhor forma de agir. Essas
dúvidas são legítimas, e até necessárias. Precisamos conversar sobre elas com os nossos
colegas e ir encontrando os caminhos que permitam continuar a ação.

A conversa entre nós, a partilha das nossas dúvidas, é a melhor forma de manter a liber-
dade, uma liberdade que pertence a cada um de nós, irredutivelmente, mas que ganha um
alcance maior no encontro com os outros.

Nunca pensamos sozinhos. Hoje, sabemos, melhor do que nunca, que isoladamente pou-
co ou nada podemos. Só “juntos” poderemos encontrar os caminhos do futuro para a
educação.

Educar humanos por humanos para o bem da humanidade


Numa obra intitulada The transformative humanities – A manifesto, Mikhail Epstein ex-
plica que a educação é um dos momentos mais misteriosos e íntimos da vida, uma expe-
riência verdadeiramente existencial. Nesse sentido, escreve que a universidade é uma
instituição humanista, cujo propósito é “educar humanos por humanos para o bem da
humanidade” (2012, p. 291).

Vale a pena trazer essa expressão para uma reflexão geral sobre a educação, particular-
mente nos tempos pós-pandêmicos que estamos vivendo.

Educar humanos. Ninguém pode fazer a viagem por nós. Permitam-me uma afirmação
evidente, mas para alguns inaceitável: a missão de um professor de Matemática não é
ensinar Matemática, é formar um aluno por meio da Matemática. Estaria eu, por esta via,
diminuindo a importância da Matemática e do seu ensino? De modo nenhum. Estou afir-
mando precisamente o contrário, que a sua necessidade é tão grande que, sem Matemáti-
ca, não é possível a educação de um ser humano. Mas a educação é um processo pessoal
de apropriação do conhecimento, pelo qual nos tornamos mais preparados e capazes.

Achar que tudo termina com a aula do professor, por muito notável que ela seja, isso sim
seria cair num preocupante “facilitismo”. A nossa palavra como educadores será inútil se
não for capaz de despertar a palavra própria do educando.

26
Por humanos. Ninguém se educa sozinho, nem mesmo com o admirável mundo da inte-
ligência artificial que bate às nossas portas. Precisamos de outros humanos, dos nossos
professores e dos nossos colegas. Dos professores, esperamos uma expansão do nosso
repertório, por meio da aquisição de linguagens que nos permitam ler o mundo e inter-
pretar a avalanche diária de informação e desinformação. Se ficarmos só com as imagens
rasas do dia a dia, não sairemos do lugar. Precisamos que os professores nos ajudem a
chegar a Camões, a Einstein, a Picasso. Esperamos que eles se juntem e nos juntem numa
aprendizagem cooperativa. A cooperação é a chave da educação na contemporaneidade.

Para o bem da humanidade. Voltemos a George Steiner (2017) e à pergunta que tem
repetido ao longo da sua vida: por que é que alguns dos gestos mais bárbaros da história
humana foram cometidos por pessoas cultas? Como é possível apreciar um concerto de
Debussy enquanto ao longe se ouvem os gritos daqueles que são levados para o campo
de concentração de Dachau? Por que é que a cultura e o conhecimento não nos humani-
zam? A resposta está na incapacidade de pensar a educação como um bem comum. Não
me interessa acentuar o comum que vem de “comunidade”, pois vivemos um tempo de
identidades excessivas e a missão da escola é alargar horizontes e pertenças. Interessa-
-me, antes, chamar a atenção para o comum que vem de “comunicação”, pois é nele que
residem as possibilidades de diálogo e de partilha com os outros. É o tema da cidadania,
da participação na res publica, da importância da educação como projeto público.

Professores – Futuros a construir


Os professores vivem vários dilemas, num tempo marcado por transformações profundas
na educação. Não são dilemas novos, mas tornaram-se mais nítidos nos últimos anos, em
particular, durante a crise pandêmica (2020-2022).

Historicamente:

- a identidade profissional dos professores constituiu-se a partir de uma “se-


paração” em relação às famílias e às comunidades locais; hoje, todos os dis-
cursos apontam para a necessidade de os professores refazerem uma ligação
forte com os espaços sociais e familiares – eis um primeiro dilema;
- as escolas funcionaram segundo um mesmo modelo, uma mesma gramáti-
ca, uma mesma forma de organização do espaço e do tempo; hoje, impõe-se
uma maior diversidade, respostas diferentes, novos ambientes educativos
– eis o segundo dilema;

27
- os professores nunca viram o seu conhecimento próprio devidamente
reconhecido, mesmo quando se enalteceu a sua missão; hoje, temos a
consciência clara de que nada será conseguido sem uma valorização do
conhecimento profissional docente – eis o terceiro dilema.

A partir desses três dilemas, é possível identificar três disposições dos professores que
são decisivas para o futuro.

A primeira é a capacidade de articulação, certamente no interior do espaço escolar, mas


também num espaço público da educação mais amplo. O trabalho docente prolonga-se
naturalmente para fora da escola, colaborando para a construção da “cidade educadora”,
de uma capilaridade educativa que faz parte do programa da “sociedade convivial” tal
como apresentado, há cinquenta anos, por Ivan Illich (1973a).

A segunda é a capacidade de construir novos ambientes educativos, muito diferentes do


espaço tradicional da sala de aula. A realidade futura não deve ignorar as possibilidades
que existem numa sala de aula, nomeadamente no encontro entre mestres e discípulos,
mas tem de acolher também uma diversidade de outros ambientes que permitam novas
modalidades pedagógicas, sobretudo o trabalho em cooperação, em comum.

A terceira é a capacidade de elaborar, consolidar e difundir um conhecimento próprio


da profissão, o que implica uma análise crítica sobre o trabalho docente, feita a partir de
um exercício pessoal, mas também de processos coletivos de reflexão. O conhecimento
profissional tem uma dimensão teórica, mas não é só teórico; tem uma dimensão prática,
mas não é só prático; tem uma dimensão experiencial, mas não é só produto da experi-
ência. A formalização desse conhecimento é muito importante para o reconhecimento
profissional e público dos professores.

Essas três dimensões são essenciais para reforçar os professores e para permitir que de-
sempenhem plenamente o seu papel na construção dos futuros da educação. São muitas
as crises globais que atingem a educação: a transição digital, as alterações climáticas, os
retrocessos democráticos, as transformações do trabalho, as mudanças demográficas, as
migrações e as mobilidades etc. Para pensar e agir com lucidez em face dessas crises, os
professores necessitam de condições excepcionais.

Não bastam declarações retóricas ou gestos simpáticos de reconhecimento do trabalho


dos professores. É necessário valorizar as suas condições de trabalho e de remuneração,
reduzir os enquadramentos burocráticos e dar-lhes mais autonomia pedagógica, criar os
meios indispensáveis para um exercício coletivo da profissão, redesenhar a formação dos

28
professores e a carreira docente, acolher e ajudar os jovens professores, apoiar a partilha
de experiências e de iniciativas.

Para investir no futuro precisamos investir nos professores. Dito de outro modo: se que-
remos que os professores sejam elementos centrais para “libertar o futuro”, precisamos
libertar o futuro dos próprios professores. Não podemos continuar a exigir-lhes quase
tudo, e a dar-lhes quase nada.

29
30
Capítulo 3

A educação e os nossos
futuros comuns
Lema do Dia Mundial do Professor 2015
Reforçar os professores, construir sociedades sustentáveis

Quando um professor ensina matemática, física, ge-


ografia, biologia, economia ou análise literária, en-
sina saberes supostamente “constituídos” que são,
de fato, saberes “destituídos”: o que ensinamos
hoje nas escolas aos alunos é desde logo destituído
pela realidade de uma velocidade cada vez maior.
Bernard Stiegler

31
Este texto procura refletir sobre o papel da educação e dos professores na
construção de sociedades sustentáveis.
Após uma referência ao futuro, o texto refere a importância de uma abor-
dagem educativa baseada nos direitos humanos e de cinco temas centrais
para a agenda da sustentabilidade: a paz, as alterações climáticas, as desi-
gualdades, o digital e a demografia.
O texto dialoga com o lema do Dia Mundial do Professor, em 2015 – Re-
forçar os professores, construir sociedades sustentáveis – e termina com
uma análise sobre os nossos futuros comuns e a importância do espaço
público e comum da educação.

32
A educação e os nossos futuros comuns
Em 2015, os países do mundo estabeleceram um acordo em torno da Agenda 2030,
composta por 17 Objetivos do Desenvolvimento Sustentável. Foi um passo de grande
significado, um marco no multilateralismo. Desde então, a maioria dos documentos e
das iniciativas das Nações Unidas tem como horizonte essa Agenda. Naturalmente, nesse
ano, o Dia Mundial do Professor chama a atenção para esta realidade e adota como lema
Reforçar os professores, construir sociedades sustentáveis.

O 4.º Objetivo do Desenvolvimento Sustentável tornou-se, desde então, uma referência


para as políticas educativas nacionais e internacionais: “Garantir o acesso à educação in-
clusiva, de qualidade e equitativa, e promover oportunidades de aprendizagem ao longo
da vida para todos”. A qualificação e a formação dos professores passaram a ser, também,
uma prioridade da ação multilateral.

Neste texto, quero sublinhar a forma como a Agenda 2030 coloca a sustentabilidade no
centro das preocupações internacionais e, ao fazê-lo, convida a educação a assumir uma
perspectiva mais ampla e a reorganizar-se para “construir sociedades sustentáveis”. Ape-
sar de sabermos que as metas desta Agenda não serão atingidas até 2030, nem por isso
esse documento deixou de contribuir, significativamente, para uma compreensão mais
ampla dos temas educativos e da ação dos professores.

Celebrar a consciência é libertar o futuro


Há cerca de cinquenta anos, Ivan Illich publicou uma obra com um título em inglês – Ce-
lebration of awareness – e outro em francês – Libérer l’avenir. Foi o título francês que
prevaleceu na edição portuguesa – Libertar o futuro –, expressão de que me apropriei
para apresentar este livro.

Pensar o futuro, e pensar no futuro, implica este duplo movimento: consciência e liber-
tação. Consciência em face dos desafios presentes e futuros, o que obriga a enfrentar os
dilemas presentes sem pôr em jogo as possibilidades futuras. Libertação que quer dizer,
também, deliberação, capacidade de participar e de tomar decisões sobre as nossas vidas.

A educação serve para nos ajudar a proteger e a libertar o futuro. Nada fazer que ponha
em risco o futuro. Tudo fazer para preservar e ampliar as possibilidades de escolha e de-
cisão das gerações futuras. Esses dois movimentos são exatamente o contrário do que te-

33
mos feito nos últimos tempos. Arrastada para uma lógica de sobrevivência, imposta pelas
sucessivas crises (financeira, climática, pandêmica), a vida contemporânea tem sido mar-
cada por um presentismo que reduz a temporalidade social e fecha tudo no imediatismo.

Não se trata de criticar um presentismo da existência, da vida, mas um presentismo da


sobrevivência que ignora e anula o futuro. A educação tem de ser capaz de se abrir ao
futuro, de abrir futuros. É um trabalho que tem de ser feito em comum.

Cinco temas centrais para o futuro


Olhando para a Agenda 2030, mas também para os discursos mais recentes do secretá-
rio-geral das Nações Unidas, António Guterres, identificamos facilmente cinco temas
centrais que reconfiguram as nossas perspectivas educativas no sentido da construção de
sociedades sustentáveis.

Antes de sobre eles refletirmos, é importante marcar a centralidade dos direitos huma-
nos, de uma intenção educativa pautada pela defesa e promoção dos direitos humanos.
É nesse sentido que o secretário-geral das Nações Unidas decidiu lançar um grande pro-
grama multilateral, designado A nossa agenda comum. Nesse programa, voltado para o
futuro, os jovens desempenham um papel fundamental.

Na sua concretização, a educação ocupa um lugar maior, como se comprova pelo fato de
a primeira iniciativa ter sido a realização da cúpula das Nações Unidas, Transformando
a educação, realizada em Nova York no mês de setembro de 2022, na qual se faz uma
menção direta à importância da formação de professores como um desafio global.

Chama-se a atenção que, para atingir os Objetivos do Desenvolvimento Sustentável, fal-


tam mais de quarenta milhões de novos professores na educação primária e secundária.
A transformação da educação só acontecerá se os professores forem profissionalizados,
formados, motivados e apoiados para liderar o processo e guiar seus alunos para alcançar
seus objetivos e o seu bem-estar, informa um dos documentos preliminares.

Primeiro tema: a paz. A educação deve ter como grande orientação a paz, não num sen-
tido retórico, mas na possibilidade de organizarmos as escolas e os ambientes educativos
como lugares de convivialidade, de aprendizagem do viver com o outro, com os outros.
Ivan Illich disse-o de maneira extraordinária quando escreveu o livro Tools for convivia-
lity (1973b), isto é, a construção de instrumentos que nos permitam viver em comum. A
educação é um desses instrumentos, talvez mesmo o mais importante.

34
Segundo tema: as alterações climáticas. A questão climática adquiriu, recentemente,
uma enorme centralidade. Há a consciência mundial de que, se não mudarmos de vida,
se não pusermos fim a uma sociedade consumista e predadora dos recursos naturais, a
humanidade não terá qualquer futuro. A educação de base humanista tem de pensar num
“humanismo mais do que humano”, que integra os direitos do planeta e de todos os seres
e espécies. Esta deve ser uma linha estruturante do currículo e da educação, sempre com
o propósito de maior justiça climática, com o reconhecimento e a inspiração em comuni-
dades e culturas que sempre souberam viver em paz com a Terra.

Terceiro tema: as desigualdades. A cada crise – econômica, financeira, pandêmica, cli-


mática… –, aumentam as desigualdades no mundo. É impossível imaginar um futuro sau-
dável com desigualdades tão acentuadas. Muitos futuristas chegam a imaginar um futuro
com 4/5 das pessoas vivendo com uma renda mínima e sem trabalho, substituídas por
robôs. Já não é a utopia do lazer e do tempo livre, mas a do pesadelo da pobreza e da in-
dignidade. Combater as desigualdades é também valorizar as diversidades (de gênero, de
vida, de culturas, de formas de pensar e de viver...). Devemos recusar os identitarismos
que nos fecham – “identidades assassinas”, escreve Amin Maalouf (1999) – e valorizar
as diversidades que nos abrem. O comum nunca é o menor denominador comum, mas o
trabalho em comum. Eis a tarefa maior para a qual nos deve preparar a educação.

Quarto tema: o digital. As questões do digital e da inteligência artificial estão alterando


definitivamente os nossos futuros. A sua utilização é muito importante para novas peda-
gogias e novos ambientes educativos. Mas todos conhecemos os perigos desses novos
“meios”. É útil citar o discurso de António Guterres na 77.ª sessão da Assembleia Geral
das Nações Unidas, proferido no dia 20 de setembro de 2022:

“As plataformas digitais, baseadas num modelo de negócios que monetiza in-
dignação, raiva e negatividade, estão causando danos incalculáveis a comuni-
dades e sociedades. Discursos de ódio, desinformação e abuso – direcionados
especialmente a mulheres e grupos vulneráveis – estão proliferando. Os nos-
sos dados estão sendo comprados e vendidos para influenciar o nosso com-
portamento, sem levar em consideração a privacidade. A inteligência artificial
pode comprometer a integridade dos sistemas de informação, da mídia e até
da própria democracia. A computação quântica pode destruir a segurança ci-
bernética e aumentar o risco de mau funcionamento de sistemas complexos”.

Precisamos nos preparar para este mundo. A melhor forma é pela educação.

35
Quinto tema: a demografia. Por fim, precisamos entender as imensas consequências da
maior revolução de nossas sociedades, a revolução demográfica, com consequências na
participação na vida política, social e econômica, na transmissão do patrimônio familiar,
nas dinâmicas intergeracionais, na habitação, na saúde, nos transportes, nas cidades, no
consumo e, sobretudo, na educação. Deixem-me dar um exemplo para explicar a dimen-
são dessa revolução, recorrendo a valores médios no mundo. Em 1920, há cem anos,
a expectativa de vida era de 40 anos – tudo acontecia entre duas gerações. Cinquenta
anos depois, em 1970, a expectativa de vida já era de 60 anos – tudo acontecia entre três
gerações. Hoje, em 2022, a expectativa de vida aumentou para 80 anos – tudo acontece
entre quatro gerações. E daqui a trinta anos, mais rápido do que nos ciclos anteriores,
tudo aponta para uma expectativa de vida de 100 anos – tudo acontecerá entre cinco gera-
ções. Alguém consegue imaginar uma mudança mais profunda com consequências para
a educação e para o futuro?

Para enfrentar esses desafios é preciso recuperar um pensamento que se projeta num
tempo longo. Temos todos os motivos para sermos pessimistas e poucos para sermos oti-
mistas. O mundo parece cada vez mais desregulado e ao sabor de todo tipo de ditadores.
Mas denunciar esse mundo não deve nos impedir de cultivar a esperança, no sentido de
uma das grandes obras do século XX, O Princípio Esperança, do filósofo alemão Ernst
Bloch (1982), que nos lembra a docta spes, ou seja, a esperança que se cultiva, que se
aprende, a esperança aprendida.

Futuros comuns
Historicamente, o processo de construção da cidadania nacional fez-se por meio de uma
escola que adquiriu uma forma uniforme (idêntica e homogênea em todo o mundo) e um
currículo uniforme (a cultura geral que todos devem possuir).

A forma escolar consolida-se ao longo do século XX, de tal maneira que, pouco a pouco,
vamos esquecendo a existência de outras formas de educar. Simultaneamente, definem-
-se as bases de um currículo escolar que adquire configurações muito semelhantes em
todo o mundo.

Nas décadas finais do século XX, tem lugar processo de valorização de um novo conceito
ou ideário. Depois da cidadania, a economia. Em torno do “capital humano” vulgariza-se
a tese de uma ligação direta entre a educação e o desenvolvimento econômico, uma visão
que domina as políticas educativas até os dias de hoje.

36
A forma da escola, o conhecimento escolar e a ligação com a economia têm de ser re-
pensados à luz das realidades contemporâneas, por meio de um processo de metamor-
fose da escola.

A primeira face da metamorfose é a mudança da forma escolar. As escolas continuam


organizadas segundo modelos que serviram no passado, mas já não servem no presente:
espaços fechados, tendo como núcleo central a sala de aula, na qual um professor dá as
suas lições aos alunos durante um determinado período de tempo. O pensamento dico-
tômico tem-nos feito perder muito tempo. A questão não é um ensino centrado no pro-
fessor versus uma aprendizagem centrada no aluno. A questão é a construção de espaços
e de processos educativos que permitam aos alunos trabalhar o conhecimento, uns com
os outros e com os professores.

A segunda face é a concepção de currículo, não só enquanto “curso dos conhecimentos”,


mas também enquanto “percurso dos alunos”. Deve haver uma base comum, mas o mais
importante é a aquisição das linguagens (alfabética, matemática, científica, artística). Não
se trata apenas de valorizar o “comum” de cultura geral, mas sobretudo o “comum” do
domínio das linguagens. Também os percursos dos alunos devem ser individualizados,
permitindo ritmos e escolhas impossíveis num modelo escolar uniforme. Mas essa dife-
renciação tem de ser abertura de possibilidades e nunca confirmação das desigualdades
de nascimento. Devemos ter muito cuidado com as vias que acabam em becos sem saída.

A terceira face é a valorização da dimensão humana. A educação não pode ser reduzida a
mera formação técnica para o desenvolvimento econômico. Juntemos uma filósofa e um
neurocientista. Martha Nussbaum (2010) refere-se à empatia como elemento decisivo
para a aprendizagem. Assume, assim, a importância de uma relação humana que não se
limita à aquisição de técnicas e de competências. António Damásio (2020) fala-nos das
emoções e dos sentimentos como provocadores das aprendizagens. Ao fazê-lo, enrique-
ce o fenômeno educativo com dimensões subjetivas que são centrais para o processo de
conhecimento. O grande ensino é aquele que desperta dúvidas, que encoraja a dissidên-
cia, que prepara o aluno para a partida, diz-nos George Steiner (1994). Educar não é
apenas formar “recursos humanos”.

Por um momento, acreditamos que o digital ia ser uma imensa janela para todos os mun-
dos, culturas e conhecimentos. A ilusão tornou-se pesadelo. Uma das nossas maiores
surpresas é a fragmentação e o hiperindividualismo que reinam no cibermundo. Na rede
podemos ser tudo o que quisermos, transformar-nos nos heróis exaltados, gloriosos, que
proclamam a sua “liberdade total” num universo totalmente vigiado.

37
Contrariamente ao que esperávamos, a rede não tem sido uma porta de acesso à diversi-
dade, mas antes um lugar aonde vamos à procura dos que pensam como nós e dos argu-
mentos que reforçam as nossas crenças e convicções. Hoje, mais do que nunca, a escola
tem de reconstruir o comum como elemento central da educação e da sociedade.

Este comum não remete para uma “comunidade de identidade”, mas para uma “comuni-
dade de trabalho”, isto é, para aquilo que fazemos uns com os outros, independentemen-
te de quem somos ou de onde vimos. Nesse sentido, assenta num princípio de comunica-
ção, de encontro, não entre semelhantes, mas entre diferentes. Importante é “um modo
comum de compreender”, o que implica a capacidade de enriquecermos mutuamente as
nossas experiências pessoais e a inteligência do mundo.

Já não nos basta uma pátria comum (a cidadania nacional). Precisamos recorrer a duas
outras metáforas para explicar o que se espera da escola: uma Terra comum e uma Hu-
manidade partilhada.

A Terra comum, a Terra-pátria de Edgar Morin, revela-nos a importância da ciência, de


uma cultura científica sem a qual não há aprendizagem. A Humanidade partilhada cha-
ma-nos a atenção para a importância das artes e do diálogo. Num mundo fragmentado,
dividido, a escola tem de construir as condições para uma vida em comum. Não se trata
de unir, artificialmente, o que é diferente, mas de criar ambientes que permitam trabalhar
em comum, pensar em conjunto, partilhar uma reflexão sobre os mesmos objetos.

Esse trabalho, esse pensamento e essa partilha não se fazem no vazio, necessitam de ins-
trumentos, de linguagens, que só a ciência, a criação e o conhecimento podem fornecer.
O cibermundo está incentivando uma sucessão interminável de monólogos entre iguais.
A escola tem de construir as condições para um diálogo entre diferentes, assente no co-
nhecimento, na compreensão mútua e num debate esclarecido e informado.

O espaço público e comum da educação


A metamorfose da escola tem uma quarta face: a construção do espaço público e comum
da educação. No século XIX, a educação foi trazida para dentro de um lugar “sagrado”,
a escola. Hoje, precisamos de um movimento de profanação, no sentido que Giorgio
Agamben (2006) dá a este termo, devolver um objeto sagrado ao uso público.

Dito de outro modo: precisamos rever o contrato social assinado no século XIX – “deem-
-nos os vossos filhos, nós os educaremos nas escolas” – e trabalhar em conjunto para o

38
reforço de um espaço público que junte a escola com outras instituições, e os professores
com os pais e outros atores sociais. Não se educa apenas no interior do recinto escolar.

O espaço público e comum da educação tem de ser uma esfera de discussão, mas também
de deliberação e de ação. Não se trata apenas de ouvir os cidadãos, mas de inscrevê-los
como parceiros num esforço educativo que pertence ao conjunto da cidade, da polis. Só
assim conseguiremos criar novos vínculos e responsabilidades, e evoluir para uma maior
presença dos professores e da sociedade na construção das políticas públicas de educação.

O comum é mais do que o público, na medida em que assenta necessariamente num es-
forço de partilha, de participação e de decisão coletiva. Não é unificação a partir de um
qualquer imaginário do mundo, seja nacional, seja outro, mas antes abertura a práticas
de colaboração e de cooperação.

Nesta capacidade de construir o comum está a força de uma sociedade sustentável. A edu-
cação tem um papel insubstituível nesse processo, tanto pela capacidade de transmitir
um conhecimento científico atento aos grandes temas do nosso tempo como pela criação
de ambientes de estudo e de trabalho baseados no trabalho conjunto e na cooperação.
Fortalecer os professores é uma condição necessária para que a educação cumpra a sua
missão na construção de sociedades sustentáveis.

39
40
Capítulo 4

Nada substitui um bom professor


Lema do Dia Mundial do Professor 2016
Valorizar os professores, melhorar o seu estatuto

Muitas vezes se assume, de fato, se não mesmo em


palavras, que os professores não têm a formação que
lhes permita dar uma cooperação inteligente à ciência.
A objeção revela muito, tanto que é quase fatal para
a possibilidade de haver uma referência científica na
educação. Na verdade, os professores são quem está
em contato direto com os alunos e, portanto, aqueles
através dos quais os resultados das descobertas cien-
tíficas chegam aos alunos. Eles são os canais que per-
mitem levar para a vida na escola as consequências da
teoria educacional.
John Dewey

41
Este texto procura explicar a importância dos professores e a necessida-
de de reforçar o seu estatuto e a sua liberdade, em linha com o lema do
Dia Mundial do Professor, em 2016 – Valorizar os professores, melhorar
o seu estatuto.
Após uma introdução em que se explica a razão por que “nada substitui
um bom professor”, analisam-se cinco aspectos da Recomendação da
OIT/UNESCO de 1966 relativa ao estatuto dos professores.
No final, deixa-se um apontamento sobre a importância de uma relação
entre mestres e discípulos baseada na liberdade.

42
Nada substitui um bom professor
Nada substitui um bom professor. Nada. Nada mesmo. Nada o substitui para apresen-
tar o mundo, todos os mundos, aos mais novos. Nada o substitui para dar aos alunos
a possibilidade de chegarem mais longe, aonde nunca chegariam sem o seu trabalho,
sem a sua dedicação.

Em tempos do digital, é preciso dizer que a relação humana é insubstituível. É preciso


dizer que os professores têm uma responsabilidade maior, a maior de todas: colocar a sua
autoridade a serviço da liberdade dos alunos.

Para isso, precisamos de professores inteiros, seguros, confiantes. E aqui surge um pri-
meiro problema, que se arrasta há anos. Como construir essa confiança num tempo em
que os professores parecem culpados de todos os males, de todas as dúvidas, de todas as
hesitações que a escola vive?

Nada substitui um bom professor. Na construção pública da educação, na construção


de um espaço habitado por todos os alunos, independentemente do seu “cheiro, cor,
linguagem ou encadernação”, como dizia João dos Santos (1983, p. 33).

As famílias podem, e devem, dar aos seus filhos a educação que considerem mais adequa-
da. As religiões, também. As comunidades, também. Mas a educação escolar – e sobre-
tudo a escola pública – é de um outro tipo: aqui apresenta-se a humanidade toda, e não
apenas uma parte da humanidade, uma dada visão familiar, religiosa ou comunitária. Por
isso, a ciência é tão importante como matriz do currículo. E as artes, também.

É certo que quando se educam crianças iguais com crianças iguais, da mesma “cor” ou
“encadernação”, tudo parece mais fácil. Mas, nessa facilidade, perde-se o sentido do “co-
mum”, do espaço em que partilhamos as nossas diferenças e nos construímos como so-
ciedade. Nessa facilidade, perde-se a escola enquanto lugar de todos, nas suas igualdades
e nas suas diversidades.

Aqui surge um segundo problema, bem patente em certas ideologias. Os pais é que de-
veriam ditar a “cor” da escola, e a isso chamam “liberdade de escolha”. Esquecem-se de
falar da liberdade dos alunos, melhor dizendo, do direito dos alunos a uma educação com
a humanidade toda, feita de diálogo, para que todos aprendam a conviver, a viver com o
outro, com todos os outros.

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A escola não é apenas um serviço, por mais qualidade que tenha. É, acima de tudo, uma
instituição, que nos constrói como sociedade, que nos abre ao mundo e aos outros, que
alarga a liberdade dos alunos, que permite a cada um construir um futuro a que nunca
teria chegado se tivesse ficado em “casa”, na escola do seu lugar de nascimento.

Nada substitui um bom professor. Na capacidade de estar presente nas escolas e no espa-
ço público da educação. Na capacidade para organizar o trabalho docente e para partici-
par nas políticas públicas de educação.

Terceiro problema: sistematicamente, as políticas educativas definem-se contra os pro-


fessores, e raramente, ou nunca, com eles, como se só assim se conquistasse a cumplici-
dade midiática de que a política se alimenta.

A participação é difícil, demora tempo, exige trabalho. Mas sem ela não vale a pena a
retórica constante sobre a importância dos professores. Fica tudo na casca das palavras.
A vida deve ser conduzida na procura de envolvimento das pessoas, de um reforço da
proximidade, não de uma proximidade vazia, paternalista, mas de uma proximidade que
promova a participação e a decisão.

É muito curioso que haja apelos tão pungentes para um consenso em torno das políticas
da saúde ou da justiça, com o envolvimento de todos os “parceiros”, de todos os “profis-
sionais”, mas quando o mesmo apelo surge na área da Educação, fala-se da “estabilidade”
e da “continuidade” das políticas, mas logo se esquecem os professores, que constituem
o grupo profissional mais numeroso e mais qualificado das sociedades contemporâneas.
Estranha incoerência.

Recomendações para uma profissão com futuro


As três batalhas enunciadas – pelo prestígio da profissão, pela defesa da escola pública
e pela participação dos professores nas políticas educativas – não se ganham com uma
atitude defensiva. A escola pública não se defende nas trincheiras do passado, mantendo
e conservando rotinas de um tempo que já não é o nosso.

A escola pública defende-se com um pensamento de futuro, compreendendo as mudan-


ças profundas na aprendizagem e na relação com o conhecimento, no trabalho docente e
num espaço público da educação que vai muito além dos muros da escola.

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Estamos perante transformações só comparáveis às que aconteceram em meados do sé-
culo XIX, quando se consolidou, em todo mundo, o modelo escolar que ainda hoje pre-
valece. A geração atual é a geração que vai mudar as escolas. Não sabemos como será o
futuro, mas sabemos que este modelo escolar tem os dias contados. Debaixo dos nossos
olhos e, por vezes, perante certa indiferença da nossa parte, está surgindo uma realidade
nova. Para compreendê-la, precisamos de coragem, de uma abertura ao futuro, de uma
profissão forte, dentro e fora, na escola e na sociedade.

Estas reflexões abrem espaço para uma reinterpretação, em cinco andamentos, da Re-
comendação da OIT/UNESCO relativa ao estatuto dos professores, adotada em 1966.
Entre aspas são transcritos os parágrafos do texto que orientam a leitura.

1.º andamento

“6. O ensino deve ser considerado uma profissão, cujos membros prestam
um serviço público; esta profissão exige dos professores não apenas co-
nhecimentos profundos e competências específicas, adquiridos e mantidos
através de estudos rigorosos e contínuos, mas também um sentido das suas
responsabilidades pessoais e coletivas tendo como objetivo a educação e o
bem-estar dos alunos a seu cargo.”

Este primeiro andamento parece quase desnecessário, mas não é – o ensino deve ser
considerado uma profissão. Parece óbvio, mas não é. Na verdade, alguns dos equívocos
que ainda hoje atingem os professores prendem-se ao fato de muitas pessoas não consi-
derarem o ensino uma profissão. Diz-se que quem sabe alguma coisa naturalmente sabe
ensiná-la, sobretudo com todas as ajudas que o digital proporciona.

As políticas de “desprofissionalização”, hoje tão ativas em várias regiões do mundo, dos


Estados Unidos à Ásia, passando pelo Reino Unido, pela Austrália e por alguns países do
norte europeu, aí estão para o demonstrar.

Para que a pertença, o enraizamento profissional? Para que a construção de uma identi-
dade, de uma profissão? Para que complicar essa coisa tão simples, ao alcance de qual-
quer um, que é ensinar crianças?

É justamente porque esta conversa não é inocente e tem informado muitas políticas que
vale a pena recordar a Recomendação de 1966 e o lema do Dia Mundial do Professor, em
2016 – Valorizar os professores, melhorar o seu estatuto.

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2.º andamento

“19. O objetivo da formação profissional de um professor deve ser o desenvol-


vimento dos seus conhecimentos gerais e da sua cultura pessoal; a sua aptidão
para ensinar e educar; a sua compreensão dos princípios que presidem ao es-
tabelecimento de boas relações humanas no interior do país e além-fronteiras;
a sua consciência do dever que lhe incumbe de contribuir, pelo ensino e pelo
exemplo, para o progresso social, cultural e econômico.”

“39. A organização de um período probatório, para a entrada na profissão,


deve ser considerada pelos professores e pelos seus empregadores como um
momento útil para encorajar e iniciar o jovem professor a construir e preservar
as normas profissionais e a promover o desenvolvimento das suas qualidades
pedagógicas.”

“32. As autoridades, em diálogo com as organizações de professores, devem


promover o estabelecimento de um vasto sistema de instituições e de serviços
de aperfeiçoamento, postos gratuitamente à disposição de todos os professo-
res. A este sistema, que deve oferecer uma grande variedade de escolhas, é útil
associar os estabelecimentos de formação de professores, as instituições cientí-
ficas e culturais e as organizações de professores.”

Nesse segundo andamento, a Recomendação toca num ponto decisivo, falando da forma-
ção “profissional” dos professores. É o que tantas vezes nos recusamos a ver.

Deixamo-nos tentar por intermináveis discussões sobre os conhecimentos, as capacida-


des ou as competências, por guerras entre os ditos “conteúdos” e as ditas “pedagogias
ou didáticas”, por repartições das cargas horárias entre grupos, departamentos e dis-
ciplinas, e esquecemo-nos de fazer as perguntas necessárias: Como é que se forma um
professor como um profissional? Como é que se aprende a profissão?

Para responder a essas perguntas, precisamos, nas universidades, nas instituições de


ensino superior, de um lugar próprio, específico, dedicado à formação de professores,
sem a fragmentação que hoje existe. E nesse lugar tem de haver profissão, e escolas, e
professores, e cultura profissional. Tem de ser um “terceiro lugar”, e não apenas um
“lugar interno” da academia.

A ideia de “terceiro lugar” ou de “terceiro espaço” explica bem a necessidade de juntar


universidades e escolas, com base numa “terceira realidade”, sem cair nos discursos di-

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cotômicos habituais, valorizando ora a universidade como lugar da teoria, ora a escola
como lugar da prática. As dicotomias fecham o pensamento e impedem a construção de
novas ideias e propostas. Nada se faz numa lógica binária. A saída está sempre num “ter-
ceiro lugar” que é muito mais do que a simples soma dos dois lugares anteriores.

O que é verdade para a formação inicial é mais verdade ainda para o período de indução
profissional, esse período tão decisivo, mas tão descuidado de integração na profissão,
durante o qual nos tornamos professores. A ausência de estratégias de acolhimento, de
socialização profissional, fragiliza, e muito, a profissão docente.

E depois vem a formação continuada. Reproduzimos “catálogos de formação”, cursos e


mais cursos, em vez de construirmos uma reflexão conjunta, partilhada, em torno da es-
cola, do ensino e do trabalho docente. Reproduzimos modelos “academizantes”, no pior
sentido do termo, em vez de reforçarmos os professores, a sua capacidade de análise e
de reflexão, a investigação dos professores sobre o seu próprio trabalho. Sem esta tripla
revolução – na formação inicial, na indução profissional e na formação contínua – dificil-
mente conseguiremos valorizar os professores e o seu estatuto.

3.º andamento

“85. O trabalho do professor é tão especial e tão útil que deveria ser organizado
e facilitado de modo a evitar toda a perda de tempo e de energias.”

O terceiro andamento é curto, mas da maior importância. Nos últimos anos, a queixa
mais ouvida dos professores é a burocracia, a imensidão de tarefas, tantas vezes inúteis,
que infernizam o seu dia a dia. E têm razão.

As possibilidades tecnológicas multiplicam infinitamente os impulsos burocráticos – in-


quéritos, questionários, relatórios, tabelas, estatísticas etc. – que, graças às tecnologias,
são a custo quase zero para os burocratizadores, mas têm custos elevadíssimos para os
burocratizados.

Tudo nos desvia do nosso trabalho, do tempo, da reflexão, de uma relação serena com a
profissão. Precisamos “limpar” o dia a dia dos professores de tudo o que isso traz – um
grande esgotamento pessoal, uma falta de sentido na nossa relação com a profissão, des-
motivação e mal-estar.

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É também daqui que vem um desgaste coletivo, a impossibilidade de encontrar o tempo
e a disposição para trabalhar com os colegas, para a cooperação, para a colegialidade
docente, para o tão necessário reforço do coletivo profissional.

Ora, é no reforço desse coletivo que se define grande parte do futuro da profissão, na
liberdade de organização do trabalho docente, na avaliação interpares, no papel a exer-
cer por aqueles professores que, devido ao seu reconhecimento pelos colegas, devem
ser uma referência no espaço da escola e da profissão. Que grande política seria esta, a
do ponto 85 da Recomendação: libertar o trabalho do professor de modo a evitar toda a
perda de tempo e de energias.

4.º andamento

“9. É importante reconhecer que as organizações de professores podem con-


tribuir, e muito, para o progresso da educação e que, por isso mesmo, devem
ser associadas à elaboração das políticas educativas.”

“76. As autoridades devem reconhecer a importância da participação dos pro-


fessores, através das suas organizações ou por outros meios, nos esforços ten-
dentes a melhorar a qualidade do ensino, nas investigações pedagógicas, bem
como no desenvolvimento e difusão de novos e melhores métodos de ensino.”

Este quarto andamento é tão óbvio que dispensa grandes explicações. Os pontos 9 e 76
da Recomendação dizem tudo. E, no entanto, ainda há muita gente que olha para os pro-
fessores e para as suas organizações como um “problema” para as políticas educativas.
Não percebem a importância da liberdade, da liberdade que é participação, da partici-
pação que é “fazer parte” da decisão, e não apenas ser “consultado”. Pensam o futuro,
e a política, com os olhos de ontem. Apenas como representação. Quase nunca como
participação. Estão fechados no passado.

5.º andamento

“10. k) Deve existir uma cooperação estreita entre as autoridades competen-


tes e as organizações de professores, de empregadores, de trabalhadores e
de pais, as instituições culturais, acadêmicas e de investigação, com vista à
definição das políticas educativas e dos seus objetivos.”

“79. Convém promover a participação dos professores na vida social e públi-


ca, no seu próprio interesse, do ensino e da sociedade no seu todo.”

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O quinto andamento parece idêntico ao anterior, mas não é. Pretende chamar a atenção
para o espaço público da educação, um espaço que tem “escolas”, mas que tem muitas
outras instituições, muitos outros lugares de aprendizagem, de cultura e de formação.

A educação nunca coube apenas nas fronteiras escolares, mas hoje ainda menos. As no-
vas formas de acesso ao conhecimento, as novas dinâmicas de aprendizagem, bem como
a existência de sociedades mais capazes e mais preparadas, abrem uma realidade nova
e exigem um novo contrato social em torno da educação, muito diferente daquele que
celebramos há 150 anos.

Nesse tempo, impôs-se um “modelo escolar” que trouxe quase tudo para dentro da es-
cola. Agora, é preciso devolver uma parte da educação à sociedade, compreender a ca-
pilaridade educativa, a malha de possibilidades, físicas e virtuais, de aprendizagem e de
conhecimento. Estamos perante uma realidade radicalmente nova que vai transformar as
escolas e a forma como serão habitadas pelos alunos e pelos professores.

É para esta abertura que precisamos da participação dos professores na vida social e pú-
blica, na polis, na cidade, “no seu próprio interesse, do ensino e da sociedade no seu
todo”. É para este debate que precisamos de professores com uma voz respeitada e reco-
nhecida, que falem dos temas da educação, no espaço público, a partir do conhecimento,
e não da ignorância, a partir do compromisso, e não da indiferença ou do cinismo.

Liberdade para educar


Vale a pena ainda mencionar o ponto 61 da Recomendação da OIT/UNESCO de 1966,
porque sem liberdade não há ensino nem educação:

“61. No exercício das suas funções, o corpo docente deve usufruir de liber-
dade acadêmica. Os professores estão nas melhores condições para definir
os meios e métodos de ensino mais adequados aos seus alunos e, por isso,
devem ter um papel decisivo na escolha dos materiais de ensino, na seleção
dos manuais e na aplicação dos métodos pedagógicos, no âmbito dos pro-
gramas aprovados e em colaboração com as autoridades escolares.”

Há muito que as sociedades têm dificuldade em dar um rumo à educação das suas crian-
ças. Será isso a “crise” da educação? Se tivermos, primeiro, a coragem de reconhecer
que “não sabemos”, poderemos, então, procurar um sentido para o ato de educar. As
metáforas do molde ou da escultura não nos ajudam. A metáfora da planta e do jardineiro,

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também não. A melhor metáfora educativa é a viagem, a preparação para uma viagem pelo
desconhecido. Para que serve a educação? Para libertar futuros, individuais e coletivos.
Para preparar antecipadamente as crianças para a tarefa que lhes pertence, a de renova-
rem um mundo comum, escreveu Hannah Arendt (2001).

É frequente atribuir a Jean-Jacques Rousseau a origem de todas as ilusões de uma peda-


gogia que recusa a autoridade. Será? Parece que sim, quando citamos esta passagem de
O Emílio dirigida a um jovem professor: “a criança só deve fazer aquilo que quer”. Parece
que não, quando lemos as linhas seguintes: “Mas não deve querer senão o que quiserdes
que ela faça; não deve dar um passo que não tenhais previsto; não deve abrir a boca sem
que saibais o que vai dizer”. A autoridade existe para instaurar uma realidade nova, para
autorizar a autonomia daqueles que estão dando os primeiros passos.

Os humanos não se educam sozinhos. Precisam de mestres e de colegas. Só no encon-


tro e no diálogo é possível educar uma criança. A autoeducação é importante, mas tem
limites. Vale a pena recordá-lo num tempo pós-pandêmico sobrecarregado de ilusões
tecnológicas, a distância e virtuais, com aprendizagens ditas “personalizadas”, feitas fora
de um espaço de partilha.

A relação entre um mestre e um discípulo é feita de encontro, trabalho, empatia, colabo-


ração, confiança. Não há nenhum futuro se não fortalecermos essa relação, no sentido
tantas vezes explicado por George Steiner:

“Ensinar, ensinar bem, é ser cúmplice de possibilidades transcendentes.


Uma vez desperta, essa criança exasperante que se senta na última fila
poderá escrever os versos ou conjeturar o teorema que ocuparão séculos.
Uma sociedade, como a do lucro desenfreado, que não honre os seus pro-
fessores, é uma sociedade defeituosa” (2005, p. 148).

É para isso que serve a liberdade dos professores, para despertar a liberdade dos alunos.
Porque nada, nada mesmo, substitui um bom professor.

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Capítulo 5

A liberdade como princípio e como fim


Lema do Dia Mundial do Professor 2017
Ensinar em liberdade, fortalecer os professores

A melhor educação é exatamente isto: a liberdade – o


imperativo – de pensar, imaginar, desafiar, mudar. Ino-
var com uma corrente profunda de humanidade, é para
isso que servem as universidades. O nosso propósito
não é apenas criar empregos melhores, mas criar vidas
melhores – promover o pensamento criativo, que dis-
tinguimos da mera informação ou do conhecimento re-
cebido, pôr em causa certezas, abrir as nossas mentes e
expandir o nosso sentido partilhado de possibilidades.
Drew Faust

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Este texto reflete sobre a liberdade, em diálogo com o lema do Dia Mundial
do Professor, em 2017 – Ensinar em liberdade, fortalecer os professores.
O texto desdobra-se em diversas referências à liberdade, a partir de seis
conceitos centrais para a educação pública: igualdade, diversidade e
aprendizagem, mas também participação, autonomia e criação.
Na parte final, defendem-se três movimentos de transformação: reforçar
o espaço público da educação; renovar a educação como bem público e
comum; e abrir a educação ao futuro.
Trata-se, no fundo, de fortalecer os professores para ensinarem em liberda-
de, e com liberdade. A liberdade como princípio e como fim da educação.

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A liberdade como princípio e como fim
No ano de 2017, o lema do Dia Mundial do Professor foi dedicado à liberdade: Ensinar
em liberdade, fortalecer os professores. Os ataques aos direitos humanos, à democracia
e à liberdade cresciam, em todas as regiões do mundo, e era importante destacar o papel
dos professores na defesa da liberdade.

O tema terá sido escolhido pensando também no centenário da publicação de uma das
obras mais famosas da literatura educacional, Democracia e educação, de John Dewey,
ocorrido no ano anterior. Na apresentação da edição brasileira, Anísio Teixeira saúda
aquele que é considerado o filósofo da democracia: “Coube a ele desenvolver em todas as
suas possibilidades e consequências o ideal democrático, em face das condições moder-
nas da ciência e do mundo” (1952, p. 13).

Ao mesmo tempo, as escolas estavam a tornar-se, em todo o mundo, lugares de grandes


conflitos e até de violência, tornando muito difícil o trabalho dos professores. Muitas
respostas baseavam-se na autoridade e na ordem. Ao escolher este tema, a UNESCO e
a Internacional da Educação quiseram marcar a importância da liberdade na educação e
nas escolas.

Como dissemos anteriormente, viagem é a melhor metáfora da educação. “Quem não


se move, nada aprende”, diz-nos Michel Serres, no seu livro extraordinário, O terceiro
instruído (1991). Devemos acrescentar: uma viagem pela liberdade. O propósito maior
da educação é aumentar as possibilidades de cada um, para podermos ser aquilo que
quisermos ser. Cita-se muitas vezes, erradamente, a célebre frase de Píndaro: “Torna-te
naquilo que és”. A frase original é diferente: “Torna-te naquilo que aprendeste a ser”
(Quérini, 2016).

Adotei para este capítulo o título A liberdade como princípio e como fim, a liberdade
como orientação e como finalidade. Precisamos instaurar ambientes educativos que
promovam a liberdade de professores e de alunos, que ajudem a dar liberdade ao nosso
futuro comum.

Três vezes liberdade


Liberdade que é igualdade. A escola pública representa, historicamente, um lugar da
igualdade de oportunidades. Aqui se travaram as lutas históricas pela escolaridade obri-

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gatória, libertando as crianças e os jovens de um destino que, muitas vezes, os em-
purrava para a ignorância e para o trabalho infantil. Graças à escola pública, o sonho
de uma “educação para todos”, que pareceu impossível a tantas gerações, deixou de
ser uma miragem.

A igualdade implica uma responsabilidade social, um compromisso cívico. É nesse sen-


tido que Darcy Ribeiro escreve que “a escola pública é a maior invenção do mundo”.
A nossa liberdade depende da liberdade dos outros, está no diálogo, no encontro, na
relação. Nos últimos tempos fomos arrastados para uma visão individualista da liberdade,
como se fosse possível sermos livres num mundo de escravos. Vejam bem o que escreve
Sa’adi, poeta persa do século XIII: “Um sofre, todos sofrem dano/ Se és indiferente,
como é que és humano?” A liberdade não é individualista, é irredutivelmente solidária.

Liberdade que é diversidade. A escola pública é, por definição, um lugar da diversidade.


Nela, todas as crianças de todas as famílias devem sentir-se bem acolhidas. Não há melhor
instituição para aprender a palavra e o diálogo, para aprender a conviver, a viver em co-
mum com os outros. Este “comum” não é uniformidade, mas diversidade. “A identidade
comum produz diferenças”, disse Edgar Morin em 2013, no jornal Humanité, acrescen-
tando mesmo que “a diversidade humana é o tesouro da unidade humana e a unidade é o
tesouro da diversidade”.

É este o sentido do trabalho em comum nas escolas. A educação não é só conectividade,


é também coletividade, exercício que junta pessoas diferentes num trabalho em comum.
Sem nunca esquecer que vivemos num mundo de interdependências e que, para a coesão
e resistência da sociedade, “estamos muito mais dependentes do mais frágil do que do
mais forte” (Orsenna, 2020, p. 150).

Liberdade que é aprendizagem. Não basta uma “escola para todos”, precisamos de uma
“escola onde todos aprendam”. Muitos contentam-se com o “sucesso parcial” de alguns.
Mas a nossa ambição tem de ser infinitamente maior. O compromisso com a aprendiza-
gem de todos é a marca d’água da escola pública. Não me refiro a métricas e indicado-
res que, nas últimas décadas, têm procurado medir a qualidade das aprendizagens e dos
sistemas de ensino, e que têm um alcance limitado. A educação é muito mais do que as
aprendizagens mensuráveis, pois tem dimensões incomensuráveis. É na capacidade de
ensinar os alunos que não querem ou não conseguem aprender que, verdadeiramente, se
define o grande desafio dos professores.

Deixem-me recordar duas histórias contadas por Antoine Prost (1985), num dos seus
livros mais conhecidos, Éloge des pédagogues. A primeira refere-se a uma aluna que pede

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para falar com um professor e lhe diz que está grávida, que quer ter o bebê e casar com o
pai, mas tem a oposição da família. A segunda é de uma adolescente que diz a uma profes-
sora que se droga, pedindo-lhe para guardar segredo. Esses dois professores preferiam,
certamente, que essas alunas não lhes tivessem feito essas confidências. Mas fizeram. E
agora? Ser professor é infinitamente mais do que dar bem a matéria de uma disciplina.

Ficam aqui três liberdades que definem a educação pública. Ainda é longo o caminho
para que se cumpram plenamente. Completam-se com três outras liberdades.

Mais três vezes liberdade


Liberdade que é participação. Muitos entendem que a democracia deve parar à porta da
escola. Não. A escola pública tem de habituar as crianças ao exercício da democracia, por
meio da reflexão, do debate e da decisão. É por isso que falamos de uma “escola demo-
crática”, onde professores e alunos, obviamente com estatutos diferentes, cooperam no
trabalho escolar.

Richard Sennett escreveu uma obra importante, Together, na qual explica a importância
de trabalhar em conjunto, de valorizar as práticas de cooperação como elemento central
do trabalho humano: “A cooperação está inscrita nos nossos genes, mas não pode ficar
bloqueada num comportamento rotineiro; necessita de ser desenvolvida e aprofundada”
(2012, p. ix). É assim na sociedade. É assim na escola. A cooperação tem de ser aprendida
e praticada, tem de ser cultivada em novos ambientes educativos que incentivem a parti-
cipação de professores e alunos.

Liberdade que é autonomia. Pouco avançaremos se não construirmos uma liberdade de


iniciativa e de organização das escolas, que rompa com a rigidez, a burocracia e o cen-
tralismo. Precisamos construir propostas pedagógicas coerentes e inovadoras, organizar
escolas diferentes com diferentes projetos educativos. As escolas são espaços de cida-
dania e de convivialidade. A cidadania não é apenas escuta ou proximidade, é também
decisão, construção de novas formas de decisão.

O conceito de convivialidade, elaborado por Ivan Illich (1973a), tem sido muito utilizado
nos últimos anos, sobretudo durante a pandemia, quando se tornou nítida a necessidade
de criar condições para uma vida em comum. A importância dos laços, dos vínculos, dos
entrelaçamentos, ganhou uma dimensão inesperada e inscreve-se numa nova consciên-
cia planetária. Os laços que nos ligam também nos libertam. É um trabalho que deve ser

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feito nas escolas e pelos professores, na perspectiva mencionada por Pierre Dardot e
Christian Laval no seu ensaio sobre a revolução no século XXI, que termina assim: “não
existem bens comuns, existem comuns que devem ser instituídos” (2017, p. 620).

Liberdade que é criação. A escola é cultura, e não há cultura sem criação. A cultura é o
que nos une ao nosso “elemento”, mas é também o que nos permite sair de nós mesmos
e aceder a novos mundos. Educar é transmitir e, por isso, a primeira palavra pertence ao
professor. Mas não há educação sem criação e, por isso, é tão importante a cultura cientí-
fica e artística que permite a cada um inscrever a sua palavra no mundo.

Olivier Reboul, um dos mais lúcidos pensadores do século XX, dá uma resposta extraor-
dinária à pergunta: “Que é que vale a pena ensinar?”:

“Vale a pena ensinar o que une, e o que liberta. O que une: sim, o que vale a
pena ensinar é o que integra cada indivíduo, de um modo duradoiro, numa
comunidade tão vasta quanto possível. […] O que liberta, tal é o segundo cri-
tério. Ao fim e ao cabo, que há de comum entre as diversas disciplinas, entre
a educação física, técnica, artística, intelectual, e até entre os diversos ramos
desta, o científico e o literário? Justamente isso” (2000, pp. 81-82).

Dito de outro modo: o trabalho dos professores destina-se a apresentar o mundo às


crianças, mas também a ajudar as crianças a inscreverem no mundo a sua própria palavra.
Unir e libertar.

A liberdade é substantivo, mas também é verbo


Num debate muito importante, realizado na Rádio de Hessen, em 1966, Theodor Adorno
interrogou-se sobre a finalidade da educação e deixou este apontamento luminoso:
“Gostaria de apresentar a minha concepção inicial de educação. Evidentemen-
te não a assim chamada modelagem de pessoas, porque não temos o direito de
modelar pessoas a partir do seu exterior; mas também não a mera transmissão
de conhecimentos, cuja característica de coisa morta já foi mais do que des-
tacada, mas a produção de uma consciência verdadeira. […] Uma democracia
efetiva só pode ser imaginada como uma sociedade de quem é emancipado”
(Adorno, 2020, p. 154).

56
Três anos mais tarde, na mesma rádio, falará sobre educação e emancipação. As seis li-
berdades de que falei (três mais três) só têm sentido neste movimento de emancipação.
A liberdade é um substantivo, mas é também um verbo de ação. A escola pública tem de
saber repensar-se, renovar-se, abrir-se. Os professores têm de compreender bem os seus
novos papéis na escola do século XXI.

Para haver liberdade, temos de libertar o futuro de inevitabilidades, de fatalidades, de


destinos traçados. A escola precisa recolher e promover as energias de mudança que
já existem e avançar em dinâmicas de inovação e de transformação. Os professores de-
vem partilhar as suas experiências, refletir em conjunto sobre elas, ajudar a construir os
processos de transformação da educação. Graças a esse esforço encontraremos novas
possibilidades e caminhos para a educação pública. Caso contrário, deixaremos as dinâ-
micas de transformação nas mãos de interesses privados, da grande indústria global da
educação, o que pode mesmo pôr em risco a renovação da educação como bem público
e comum.

Assinalem-se três movimentos necessários para o futuro da educação.

Primeiro – Reforçar o espaço público da educação. Há mais educação para além da es-
cola. Hoje, precisamos reforçar os laços entre a escola e a sociedade, e assim renovar
um compromisso social em torno da educação. É uma mudança decisiva, que exige uma
efetiva capacidade de coordenação e de decisão dos cidadãos, das autarquias e das ins-
tituições para a construção do espaço público da educação. Não gosto muito da metá-
fora das “cidades educadoras”, mas é a que melhor ilustra a dimensão de partilha e de
corresponsabilização que marca a educação nas sociedades contemporâneas. No último
relatório da UNESCO, traduz-se essa ideia com a defesa de “um novo contrato social da
educação”, assim apresentado pela sua diretora-geral, Audrey Azoulay: “Se o Relatório
nos ensina algo, é o seguinte: precisamos tomar medidas urgentes para alterar o rumo,
porque o futuro das pessoas depende do futuro do planeta, e ambos estão em risco. O
Relatório propõe um novo contrato social para a educação, que visa a reconstruir nossas
relações uns com os outros, com o planeta e com a tecnologia” (2021, p. v).

Segundo – Renovar a educação como bem público e comum. A educação tem de renovar-
-se, mas sempre como “coisa pública”. A escola não é um “serviço” ou uma “mercado-
ria”, é uma instituição da res publica. Quando se compara a escolha da escola à escolha
das malas, dos sapatos, do jornal, do carro ou da casa, como já se escreveu, perde-se todo
o sentido, social e cultural, individual e coletivo, do ato de educar. A escola pública cria
um público, forma públicos, cidadãos. Podemos aprender no interior de esferas privadas,

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domésticas, familiares? Sim. Mas para nos educarmos precisamos de esferas públicas,
de diálogo, de encontro com os outros. Num tempo de fragmentação das sociedades,
de recolhimento defensivo das pessoas e das famílias nas suas esferas mais próximas,
é necessário que a escola seja um lugar de abertura, de comunicação pública entre di-
ferentes. E comunicação, como bem nos recordou John Dewey (1952), tem como raiz
a palavra comum.

Terceiro – Abrir a educação ao futuro. Vivemos uma época de profunda mudança ge-
racional e de revolução na educação. Os edifícios escolares vão desaparecer ou, pelo
menos, vão transformar-se radicalmente. Os tempos escolares vão ser organizados de
modo totalmente diferente. O trabalho dos professores vai sofrer alterações profundas,
também pelo impacto do mundo digital. A escola do século XXI está a nascer, ainda que
aos tropeções, de forma confusa, desorganizada. Todos aqueles que acreditam na escola
pública têm de se inscrever num movimento de transformação que não ponha em risco as
dimensões públicas da educação. Particularmente importante, para pensar a educação do
futuro, é compreender o significado do aumento impressionante da esperança de vida,
com a coabitação de várias gerações, e a necessidade de valorizarmos as dimensões inter-
geracionais que podem ajudar muito as crianças e os jovens no seu desenvolvimento, mas
também as pessoas de maior idade no seu bem-estar e reconhecimento. Nesse sentido, a
dimensão do cuidar, do cuidado mútuo entre gerações, passa a ser um elemento central
dos futuros da educação.

A escola pública tem de ser, cada vez mais, um espaço de liberdade. Hoje, possuímos
possibilidades culturais e meios tecnológicos que permitem concretizar os sonhos, que
muitos sonharam antes de nós, de uma escola que é igualdade, diversidade e aprendiza-
gem, mas que é também participação, autonomia e criação.

A liberdade tem uma característica única e singular: só existe em mim se existir também
nos outros. Não posso ser livre se os outros viverem sem liberdade. A escola pública é o
lugar da liberdade, de todos e não apenas de alguns. Para levantar a liberdade, é preciso
fortalecer os professores para ensinarem em liberdade, e com liberdade.

58
Capítulo 6

O conhecimento profissional docente:


consequências para a formação
de professores
Lema do Dia Mundial do Professor 2018
O direito à educação também é o direito a um professor qualificado

O processo educativo não pode ter fins elaborados fora dele


próprio. Os seus objetivos se contêm dentro do processo e
são eles que o fazem educativo. Não podem, portanto, ser
elaborados senão pelas próprias pessoas que participam do
processo. O educador, o mestre é uma delas. A sua participa-
ção na elaboração desses objetivos não é um privilégio, mas a
consequência de ser, naquele processo educativo, o partici-
pante mais experimentado e, esperemos, mais sábio.
Anísio Teixeira

59
Este texto reflete sobre a importância da qualificação dos professores. O
direito à educação, por parte dos alunos, inclui também o direito a ter um
“bom professor”, um professor devidamente formado e qualificado.
A minha reflexão não se centra na habitual definição de listas de qualida-
des ou de competências que os professores devem possuir, mas antes na
importância de valorizar o conhecimento profissional docente, também na
definição e desenvolvimento dos programas de formação de professores.
Na primeira parte, argumenta-se que a questão central da formação de pro-
fessores prende-se com um “terceiro gênero de conhecimento”, designa-
do por conhecimento profissional docente. Na segunda parte, ensaia-se a
definição desse conhecimento, com base nos conceitos de contingente,
coletivo e público, e retiram-se consequências para a formação de profes-
sores nos planos institucional, profissional e público. A terceira parte é
dedicada à análise dessas consequências, referindo-se à necessidade de
um “terceiro lugar” institucional, de um reforço do coletivo docente e de
uma projeção pública dos professores.
Uma primeira versão deste texto foi publicada na Revista Brasileira de
Educação (Vol. 27, 2022), com o título Conhecimento profissional docen-
te e formação de professores.

60
O conhecimento profissional docente:
consequências para a formação de professores
A cada ano, em todo o mundo, publicam-se milhares de títulos sobre a profissão docente
e a formação de professores. Essa literatura prolixa tem uma falha maior: reflete insufi-
cientemente sobre os professores como detentores de um conhecimento próprio, como
produtores de um conhecimento profissional docente. E mesmo quando essa reflexão
existe, ela é dinamizada por acadêmicos e não pelos professores da educação básica. Não
se pense que é um tema menor.

É mesmo a questão central para os professores e a sua formação. Se desconsiderarmos


a existência desse conhecimento, podemos manter os atuais modelos de formação de
professores, com pequenos retoques. Mas, se afirmarmos o conhecimento profissional
docente como a base do trabalho dos professores, e da sua identidade, impõem-se mu-
danças profundas na arquitetura e nos processos de formação de professores.

Eis a argumentação central deste capítulo, escrito com palavras cruas, porque não pode-
mos ser cúmplices, ainda que pelo silêncio, do desgaste da profissão docente a que vimos
assistindo Sinto a urgência da ação. E chamo as universidades à sua responsabilidade.

Ainda há quem sustente que os processos de mudança e de qualificação dos professores


dependem, acima de tudo, da pesquisa e da universidade. Consideram que o dia a dia das
escolas é rotineiro e conservador, e que os professores não estão preparados para refletir
entre eles e para construir novas práticas pedagógicas. Essa posição é raramente mani-
festada de forma explícita e frontal, mas influencia, e muito, implicitamente, a maioria
das perspectivas e das políticas de formação de professores.

Desengane-se quem assim pensa. Apesar de todas as dificuldades e problemas,


qualquer mudança real na educação e na pedagogia só poderá vir de dentro da pro-
fissão docente, sempre com um forte apoio externo, nomeadamente dos acadêmi-
cos e das universidades.

Por isso é tão importante construir novos ambientes educativos, nos quais os profes-
sores, coletivamente, possam construir diferentes pedagogias e novos modos de orga-
nização do seu próprio trabalho. É um caminho mais difícil, que demora mais tempo a
percorrer? Sem dúvida. Mas é o único que, no prazo de uma geração, pode permitir uma
mudança de fundo na educação e na profissão docente.

61
A formação de professores é um campo decisivo para essa mudança, se for capaz de evitar
uma subalternização dos professores e contribuir para uma valorização, qualificação e
reforço da profissão docente. É esta ligação entre formação e profissão que quero pôr
em destaque.

Para começar:
Qual é a questão central da formação de professores?
Desde as suas origens, há cerca de dois séculos, a formação de professores tem sido atra-
vessada por disputas e controvérsias. Não são meras questões técnicas ou metodológicas,
mas visões distintas, e muitas vezes contraditórias, da educação e da profissão docente.

Em pleno século XIX, a criação das escolas normais representa um momento decisivo na
história da educação. A intenção é formar “novos professores”, dotados de maior legiti-
midade social e influência política, numa época em que os Estados impõem, em todo o
mundo, a obrigatoriedade escolar. A edificação dos grandes sistemas de ensino, e o seu
papel na consolidação das cidadanias nacionais, dependem, em grande medida, desses
novos profissionais docentes.

Simplificadamente, podemos dizer que, na segunda metade do século XIX, o referencial


principal da formação docente é a prática. Tudo se organiza para fornecer aos professo-
res os métodos e os meios para transmitirem os conhecimentos. A formação de professo-
res tem uma dimensão instrumental. A docência aprende-se pela prática, sobretudo em
“estágio” junto de professores mais experientes.

Essa visão, tradicionalista, nunca mais abandonou o campo da formação de professores,


e continua presente. De tempos em tempos, voltam os discursos e as políticas que glo-
rificam a prática como elemento estruturante da formação. Em 2012, Ken Zeichner es-
creveu um artigo muito interessante, denunciando o cíclico regresso dessas tendências.
O título diz quase tudo: The turn once again toward practice-based teacher education (A
virada, uma vez mais, para uma formação de professores baseada na prática).

Nas últimas duas décadas, esse regresso dá-se por vias diversas, com um argumento mais
sofisticado do que no passado, mas sempre sustentado no princípio de que os professo-
res se formam “na prática” ou “no chão da escola”. Assinalem-se três dessas vias.

62
Em primeiro lugar, o recrutamento como professores de pessoas sem qualquer forma-
ção, apenas com o domínio de uma dada matéria e interessadas em ensinar, que são trei-
nadas em seminários intensivos de poucas semanas e colocadas na sala de aula, ao lado de
um professor mais experiente, aprendendo a docência por meio da prática.

Em segundo lugar, a tendência para sobrevalorizar as “competências” técnicas, e agora


tecnológicas, acreditando que são suficientes para formar os professores, sem sequer ha-
ver necessidade de grande reflexão, contextualização ou problematização.

Por fim, a maneira como as learning sciences olham para a educação como uma mera apli-
cação das “evidências” produzidas pela ciência, reforçando uma imagem dos professores
como profissionais que se limitam a pôr em prática descobertas e orientações vindas
de “fora”.

Qual é o denominador comum das tendências tradicionalistas? Simples: o conhecimento


é visto como externo aos professores, sendo desvalorizado o conhecimento interno, pro-
duzido no interior da docência. Os professores são definidos como “aplicadores” de um
conhecimento alheio e ignorados como “produtores” de um conhecimento próprio. A for-
mação de professores assume uma dimensão essencialmente prática e instrumental.

Ao longo dos últimos cem anos, a visão tradicionalista tem sido contestada por ten-
dências modernas (progressistas e inovadoras), que defendem a importância e a com-
plexidade da formação de professores. A partir das primeiras décadas do século XX,
em todos os países do mundo, as disciplinas de pedagogia, de psicologia e de sociolo-
gia da educação, de história da educação, de organização dos sistemas de ensino, de
educação comparada ou de desenvolvimento curricular passam a ocupar cada vez mais
espaço na formação de professores.

Essa mudança coincide com a afirmação do mais importante movimento educativo da


modernidade pedagógica, a Escola Nova, que reúne o seu primeiro Congresso Interna-
cional em Calais, em 1921. Em certo sentido, ainda hoje somos herdeiros da sua Carta
de princípios, que apresenta a escola nova como um “laboratório de pedagogia prática”.

Mas, sobre isso, é impossível não recordar as palavras premonitórias de Jean Houssaye,
num texto brilhante, intitulado “O escravo pedagogo e os seus diálogos”:

“Paradoxalmente, a Educação Nova é, ao mesmo tempo, a consagração e a


morte da pedagogia: é a consagração porque dá origem a uma verdadeira
explosão das práticas inovadoras; é a morte porque instaura a referência à

63
ciência e a deriva para as ciências da educação. O prático inovador aca-
bará por ser enterrado e renegado em nome das ciências da educação,
em nome da exclusão da prática” (Houssaye, 1984, p. 47).

As tendências modernas tornam-se mais influentes nos anos 1960, quando as ciências
da educação renascem na França e no mundo. Simultaneamente, assiste-se à universita-
rização da formação de professores, com a extinção gradual das escolas normais e a sua
substituição por cursos universitários.

As dimensões teóricas ganham grande relevância, contribuindo para uma expansão


sem precedentes dos estudos pós-graduados em educação. Nas últimas décadas, pu-
blicaram-se dezenas de milhares de títulos e criaram-se centenas de revistas especiali-
zadas no campo da formação de professores. É um universo vasto, de grande comple-
xidade e diversidade.

Três grandes eixos, interligados, dominam a maioria dos escritos e das propostas de
trabalho das tendências modernas: o professor reflexivo, o professor pesquisador e as
abordagens (auto)biográficas.

O conceito de professor reflexivo difunde-se a partir do trabalho de Donald Schön, pu-


blicado na década de 1980, com base numa reinterpretação de argumentos inicialmente
avançados por John Dewey. Muito influente, essa ideia marca o campo da formação de
professores nos últimos trinta anos. Hoje, porém, vive-se um sentimento de insatisfação,
e até de frustração, pela maneira como esse conceito tem dado origem a uma imensidão
de trabalhos na esfera acadêmica, mas menos na esfera profissional docente, e pouco tem
contribuído para reforçar o estatuto, a condição e a autonomia dos professores.

As teses do professor pesquisador remontam a meados do século XX, mas é também nas
décadas de 1980-1990 que ganham uma presença forte na formação de professores. Em
essência, pretendem afastar-se de uma visão tecnicista e afirmar os professores como
produtores de um conhecimento próprio, e não apenas como aplicadores ou transmis-
sores de um conhecimento alheio. No entanto, a pesquisa realizada tem se centrado so-
bretudo em temas acadêmicos (históricos, filosóficos, psicológicos, sociológicos…) e,
quando procura analisar o trabalho docente, tem sido realizada mais pelos universitários
do que pelos professores.

Finalmente, devem mencionar-se as histórias de vida e as abordagens (auto)biográficas


que, a partir de diferentes perspectivas, procuram valorizar a pessoa do professor, as suas
experiências e percursos. Apesar da vastidão de textos e escritos, muitos de inegável in-

64
teresse e qualidade, essas abordagens deparam-se, desde há alguns anos, com um senti-
mento de exaustão ou saturação, revelando-se incapazes de passar de um somatório de
narrativas individuais para dinâmicas de renovação da profissão docente.

Qual é o denominador comum das tendências modernas (progressistas e inovadoras)?


A resposta é simples: apesar das intenções declaradas, há uma desvalorização da refle-
xão própria dos professores sobre o seu trabalho. O impacto das pesquisas teóricas na
construção de uma nova profissionalidade docente é muito limitado. Os professores são
apresentados como “pesquisadores”, ou mesmo “intelectuais críticos”, mas, na verdade,
são substituídos no seu pensamento por outros profissionais, sobretudo por acadêmicos, e
são, também nesse caso, desqualificados como “produtores” de um conhecimento próprio.
A formação de professores assume uma dimensão teórica e universitária, o que é da maior
relevância, mas pouco tem contribuído para um reforço da autonomia dos professores e
da profissionalidade docente.

As reflexões anteriores identificam claramente a questão central da formação de profes-


sores: o conhecimento profissional docente. As tendências tradicionalistas nem sequer
colocam a questão, pois olham para os professores como simples mediadores ou aplica-
dores de conhecimentos alheios. As tendências modernas reconhecem a pertinência da
questão, mas não conseguem agir de forma consistente e congruente. Por quê?

É possível referir três ausências ou incompreensões que conduziram a formação de pro-


fessores para a encruzilhada em que se encontra.

Em primeiro lugar, a desatenção às dimensões institucionais. Há cinquenta anos, os


movimentos progressistas eram muito críticos em relação à instituição escolar (ver, por
exemplo, Pierre Bourdieu, Paulo Freire ou Ivan Illich). Hoje, em reação a tendências
de fragmentação da escola, regra geral por via de uma valorização de espaços privados
e tecnológicos, assiste-se à defesa e ao elogio da escola (ver, por exemplo, Gert Biesta,
Jan Masschelein ou Jorge Larrosa). Identifico-me com estes últimos autores, mas não
esqueço a necessidade de uma transformação (ou metamorfose) da escola, e também na
formação de professores, com a criação de novos contextos institucionais, ligando as
universidades, as escolas, os professores e as suas associações e os responsáveis pelas
políticas públicas de educação. No interior desses “terceiros espaços”, é possível tra-
balhar e sistematizar o conhecimento profissional docente como base fundamental dos
programas de formação inicial e contínua.

O Complexo de Formação de Professores do Rio de Janeiro, ainda a dar os primeiros


passos, é um dos melhores exemplos dessa nova institucionalidade. O Complexo procura

65
reunir numa mesma estrutura institucional os vários atores da formação de professores,
em pé de igualdade e com idêntica capacidade de participação e de decisão: universi-
dades, escolas, professores, entidades municipais, estaduais e federais etc. É nessa res-
ponsabilidade conjunta, compartilhada, que podemos encontrar novos caminhos para a
formação de professores.

Em segundo lugar, a depreciação das questões profissionais. Um dos grandes problemas


do campo da formação de professores é a fragilidade dos debates sobre a profissão e a
profissionalização docente. Ninguém pode duvidar da importância da colaboração do-
cente e do reforço dos coletivos docentes como lugares de produção de um conheci-
mento próprio dos professores. Mas, estranhamente, continuamos a assistir à dissemi-
nação de textos e artigos acadêmicos que põem em dúvida a docência como profissão e
a formação de professores como formação profissional (isto é, como formação para uma
profissão). Tenho dificuldade em compreender o alcance dessas “ruminações” que, na
verdade, contribuem para perpetuar uma hesitação muito negativa para a afirmação pro-
fissional dos professores.

Em terceiro lugar, a omissão dos referenciais públicos. É surpreendente que, na análise


dos professores e da sua formação, não haja praticamente qualquer menção ao seu papel
no debate público, na construção de um espaço público da educação. Fala-se muitas ve-
zes da “voz” dos professores, mas é como se fosse uma voz interna, e não externa. Fala-se
por vezes da importância da escrita, mas é como se fosse uma escrita dirigida apenas aos
outros professores. Importa, por isso, pensar a formação de professores a partir de um
conhecimento docente que não se esgota nas fronteiras da profissão, e que tem visibili-
dade e reconhecimento público, permitindo aos professores uma participação plena nos
debates e nas decisões públicas sobre educação.

Insisto no meu argumento central. Precisamos de dinâmicas de transformação profunda


da formação de professores, tendo como ponto central a produção e consolidação do
conhecimento profissional docente. Para isso, é indispensável olhar com mais atenção
para as dimensões institucionais, profissionais e públicas.

66
Para continuar:
Um conhecimento contingente, coletivo e público

Não pretendo aprofundar uma discussão essencialmente epistemológica, filosófica ou


conceitual, mas antes juntar os três termos da expressão conhecimento – profissional –
docente: um conhecimento que está na docência, isto é, que se elabora na ação (contingen-
te); um conhecimento que está na profissão, isto é, que se define numa dinâmica de partilha
e de coconstrução (coletivo); um conhecimento que está na sociedade, isto é, que se projeta
para fora da esfera profissional e se afirma num espaço mais amplo (público).

Não me interessa compor longas listas de capacidades, competências ou saberes que os


professores devem possuir. Essas enumerações ou tipologias, tão correntes na literatu-
ra educacional, são de pouca ou nenhuma utilidade. Foi sempre com desconfiança que
assisti à sua fabricação, que, na minha opinião, serve mais para o controle e autoridade
sobre os professores do que para a sua autonomia e liberdade.

O conhecimento profissional docente tem características próprias, é um “terceiro gêne-


ro de conhecimento”, tal como procurei defini-lo em artigo publicado nos Cadernos de
Pesquisa (Nóvoa, 2017). Não é um conhecimento facilmente reconhecível, pois escapa
aos parâmetros habituais. Precisamos adotar novos pontos de vista, a fim de conseguir-
mos captar a sua natureza e sentido. E precisamos fazê-lo com uma posição clara sobre
os professores, sem nos perdermos em debates improdutivos, e até perigosos, que põem
em xeque a docência como profissão.

O potencial transformador do conhecimento profissional docente reside no fato de ser


contingente, coletivo e público. São características que se encontram também noutras
profissões, mas que adquirem configurações muito próprias no caso do professorado.

Um conhecimento contingente

“Os pensadores que transformaram o estatuto do pensamento no século


XX, fizeram-no instalando o contingente no centro desta transformação”
(David-Menard, 2011, p. 93).

67
A primeira característica do conhecimento profissional docente é a sua natureza contin-
gente, num duplo sentido.

Por um lado, é um conhecimento que não existe fora da ação, que se constrói no seu
interior. O trabalho pedagógico é definido pela imprevisibilidade, pela capacidade de os
professores darem respostas e tomarem decisões em face de cada nova situação. Há uma
dimensão de risco, de incerteza, no modo como esse conhecimento se elabora, a partir
de uma diversidade de experiências e da sua análise. Risco e acaso, pois não é possível
controlar, a priori, a sucessão de acontecimentos que têm lugar no espaço da sala de
aula e da escola. Mas os acasos não surgem por acaso. São os acontecimentos vulgares e
cotidianos que dão sentido à educação. É neles que reside a possibilidade de um conhe-
cimento profissional docente.

Por outro lado, é um conhecimento contextualizado, em permanente reconstrução, que


se elabora graças às relações e tensões produzidas no espaço institucional da docên-
cia. Não é possível a sua transposição para outros lugares, o que não impede que possa
inspirar outras iniciativas e projetos. A contingência é a realidade das coisas, não a sua
propriedade, alertou-nos, há muito, Spinoza. Porém, desviando-se de uma longa tradi-
ção filosófica, Jean-Claude Milner (1995) escreve que só uma proposição contingente é
refutável e que, portanto, apenas há ciência do contingente. É nessa possibilidade que se
firma o conhecimento profissional docente. A compreensão de cada situação educativa,
dos incidentes e acidentes, dos episódios e enigmas, contém um importante poder trans-
formador. O conhecimento profissional docente funda-se na singularidade pedagógica.

A reflexão de John Dewey, na conferência The sources of a science of education, mere-


ce ser retomada, sobretudo quando refere que o contributo dos professores continua a
ser negligenciado ou, dito de outro modo, “continua a ser uma mina pouco explorada”
(1929, p. 46). A sua conclusão principal é que “a realidade final da ciência educacional
não se encontra nos livros, nem nos laboratórios experimentais, nem nas salas de aula
onde é ensinada, mas nas mentes daqueles que estão envolvidos na execução das ativida-
des educacionais” (1929, p. 32). O trabalho dos professores inclui a ciência dentro dele.

Nesta perspectiva, a ideia de conhecimento contingente ganha todo o seu significado,


constituindo um elemento central da profissionalidade docente. Um professor tem de
lidar com muitas e diferentes formas de conhecimento, dos conteúdos das disciplinas às
teorias e aos métodos pedagógicos, mas a síntese deve ser feita com base num “terceiro
gênero de conhecimento”. Produzir essa afirmação implica uma concepção do trabalho
dos professores que não se limita à prática, mas que inclui, necessariamente, uma dimen-
são de reflexão e de análise.

68
A literatura educacional é fugaz e efêmera. Torna-se obsoleta rapidamente. Mas há livros
que ficam conosco por muito tempo. É o caso de Le trajet de la formation: les enseignants
entre la théorie et la pratique, de Gilles Ferry, publicado em 1983, no qual se defende um
modelo de formação de professores centrado na análise das situações educativas e do seu
carácter único, imponderável e imprevisível. A relação de regulação entre a teoria e a
prática é apresentada como fonte de lucidez e conhecimento: “os professores ou futuros
professores colocam-se, assim, em condições para desenvolverem, eles próprios, os ins-
trumentos da sua prática e os meios da sua formação” (1983, p. 61).

Eis o sentido de um conhecimento contingente, um conhecimento difícil de codificar e


impossível de generalizar, que ganha sentido enquanto inventário ou repertório de acon-
tecimentos e situações vividas, experienciadas, analisadas e partilhadas. Não se trata,
obviamente, de elaborar um “manual de atividades” qualquer ou uma “lista de experi-
ências” a realizar. Estaríamos, nesse caso, perante uma mera lógica de reprodução. A
ideia de repertório está associada a um imaginário ou coleção de imagens, algumas já
existentes, outras ainda por construir.

Falar de um conhecimento repertorial em vez de um conhecimento codificado é aban-


donar os esforços para definir a “cientificidade” da pedagogia e partir à procura, com
base na contingência, de um conhecimento profissional docente. Depois de submetidas
a um processo de reflexão e de apropriação, as experiências passadas contêm um impor-
tante potencial de conhecimento. Mas as experiências futuras, isto é, as dinâmicas de
experimentação e inovação, são, também elas, produtoras de novos conhecimentos. O
que importa é marcar devidamente a contingência da ação como base do conhecimento
profissional docente.

Um conhecimento coletivo

“O que mudou em mim, felizmente, são os outros, porque eu sou esse


outro que me fala, que eu escuto e que me faz caminhar com ele. Como
seria feliz se pudesse aplicar a mim mesmo estas palavras de Brecht: Ele
pensava noutras cabeças; e, na sua, outros pensavam-no. É isto o verda-
deiro pensamento” (Barthes, 1981, p. 252).

A segunda característica do conhecimento profissional docente é a sua natureza coletiva,


o fato de se constituir no interior de uma profissão ou, melhor dizendo, de um coletivo
profissional. Não se trata de diminuir a relação de cada um, individualmente, com o co-
nhecimento, mas de projetar essa relação pessoal numa produção coletiva. É a passagem

69
do cogito ao cogitamus (Latour, 2010). O princípio de um conhecimento mútuo sustenta
a necessidade de uma formação mútua, de uma formação em cooperação (Niza, 1997).

Há um conhecimento tácito, implícito, que faz parte do patrimônio da profissão do-


cente e que se transmite, “naturalmente”, de geração em geração. É crucial que este
conhecimento subentendido se torne “entendido”, consciente e partilhado por todos.
Para isso, é necessário conduzir um trabalho de explicitação num quadro coletivo, co-
laborativo e colegial.

A transformação da formação de professores implica mudanças de fundo na organização


das escolas e do trabalho docente. O modelo escolar que tem dominado a história da edu-
cação, induz uma ação essencialmente individual do professor, porta adentro da sala de
aula com os seus alunos. Os novos ambientes educativos definem-se numa diversidade de
espaços e de tempos, e fazem apelo a um trabalho conjunto entre os professores.

A passagem de uma identidade individual a uma constituição coletiva é essencial para a


emergência de um conhecimento profissional docente. É indispensável valorizar os diá-
logos e encontros profissionais e os dispositivos que permitem a cooperação e a colabo-
ração; ou, dito de outro modo, que permitem um trabalho de reflexão, de partilha e de
análise, no seio de “comunidades de conhecimento” organizadas por professores.

Gilles Deleuze refere-se à “contingência do encontro” em texto sobre Marcel Proust:


“O que nos obriga a pensar é o signo. O signo é o objecto de um encontro; mas é pre-
cisamente a contingência do encontro que assegura a necessidade por ele sugerida. O
acto de pensar não decorre de uma simples possibilidade natural. Ele é, pelo contrário, a
única criação verdadeira” (1964, p. 118). Em conclusão, afirma mesmo que o “hieróglifo”
se encontra por todo o lado, sob “o duplo símbolo do acaso do encontro e da necessidade
do pensamento: fortuito e inevitável” (1964, p. 124).

A contingência é, assim, definida pelo encontro, por uma relação e um diálogo que se
produzem no interior de um coletivo. Como pensamento necessário, construído a partir
de um trabalho em comum, o conhecimento profissional docente permite firmar e afirmar
a profissão. É nele que radica a possibilidade de uma renovação da profissão, a partir de
sucessivos encontros intergeracionais, desde os momentos da formação inicial, ao perío-
do de entrada na profissão (a indução docente) e à formação continuada.

Este interconhecimento contém, inevitavelmente, uma dimensão ética e política. Ética,


enquanto compromisso de combate pela equidade e pela justiça social. Não há conheci-
mento profissional sem esse compromisso. Política, enquanto presença no espaço públi-

70
co da educação. Não há conhecimento profissional sem essa presença. Os professores
não podem tornar-se invisíveis. É como coletivo que devem assumir plenamente as suas
responsabilidades na escola e na sociedade.

O conhecimento de cada professor depende do conhecimento dos seus colegas, das


possibilidades infinitas contidas nas suas interações e diálogos. Essa abertura torna os
professores mais vulneráveis, na medida em que os obriga a sair do seu espaço próprio,
protegido, para se expor aos outros e com os outros? Talvez. Mas é a condição necessária
para um desenvolvimento profissional baseado num conhecimento coletivo, inscrito na
profissão e fator da sua projeção pública.

Um conhecimento público

“Faz dois séculos – disse Settembrini – vivia no nosso país um velho


poeta, um excelente conversador, que atribuía suma importância à
beleza da grafia, porque, segundo a sua opinião, esta conduzia à bele-
za do estilo. Deveria ter ido um pouco mais longe e dizer que um belo
estilo conduz a belas ações. – Escrever bem já quase é pensar bem, e
daí a agir bem não há muita distância” (Thomas Mann, 1958, p. 167).

A terceira característica do conhecimento profissional docente é a sua natureza pública,


o que implica um processo de escrita e de publicação. O conhecimento organiza-se no
momento da sua sistematização e divulgação. Só assim fica à disposição dos outros. É a
leitura que garante a partilha no espaço da profissão. Muitas vezes tácito, o conhecimen-
to profissional docente necessita não só ser explicitado, mas também ser publicado.

Escrever é comunicar, isto é, abrir a possibilidade de pensar em comum. O convite de


Simone Weil deve ser acolhido pelos professores: “O que eu gostaria era de lançar um
apelo a todos aqueles que sabem ou fazem efetivamente alguma coisa, e para os quais
não chega saber ou fazer, e querem refletir sobre o que sabem e fazem!” (1966, p. 80).
Mas essa reflexão, esse entreconhecimento, tem de se prolongar num exercício público,
que inscreva os professores como elementos decisivos no debate e nas políticas públi-
cas de educação.

Os professores têm um certo retraimento em relação à escrita, como se esse exercício


lhes estivesse vedado e pertencesse apenas à esfera acadêmica. Muitas vezes, recolhem-
-se no interior dos espaços escolares. Mas, hoje, não podemos prescindir da sua expo-

71
sição pública, da sua voz pública. O conhecimento profissional docente ganha legitimi-
dade e relevância quando se difunde na sociedade. É preciso que os professores tenham
a possibilidade e a coragem de escrever e de publicar. Vale a pena uma vida sem risco?

Em língua portuguesa, publicar tem um duplo sentido: editar ou imprimir e tornar pú-
blico. A edição torna o texto autônomo em relação ao autor, dá-lhe existência e transfor-
ma-o num “objeto comum”.

Uma das passagens mais importantes do último relatório da UNESCO, Reimaginar nos-
sos futuros juntos: um novo contrato social para a educação, refere:

“A profissão docente não termina no espaço profissional, mas continua no


espaço público, na vida social e na construção do bem comum. Nesse senti-
do, é especialmente importante que os professores participem da definição
das políticas públicas. […] Ser professor é se posicionar na profissão e se
posicionar publicamente sobre as grandes questões educacionais e a cons-
trução de políticas públicas. Essa participação não visa primordialmente a
defender seus interesses, mas projetar sua voz e conhecimento em uma es-
fera social e política mais ampla” (2021, p. 88).

É este o ponto decisivo do meu argumento. A reflexão em comum deve prolongar-se por
uma sistematização escrita, de modo a instaurar o conhecimento profissional docente no
espaço público. A ressonância dos gestos marca o vigor e a credibilidade dos professores.
Uma profissão que não se escreve, não se inscreve do ponto de vista social e fica diminu-
ída na sua capacidade de participação no espaço público e no espaço das políticas públi-
cas. Escrever bem é condição necessária para pensar bem; e pensar bem aproxima-nos
da possibilidade de agir bem. O que significa publicação, no seu sentido literal? Significa
pública ação. O conhecimento profissional docente define-se na ação pública.

O que estou a advogar implica mudanças profundas na organização da profissão docente


e da formação de professores.

A identidade profissional dos professores não pode ser diluída num conjunto de “figu-
ras” (facilitador, colaborador, tutor…) que parecem trazer uma “linguagem inovadora”
quando, na verdade, destroem o núcleo central da profissionalidade docente. Do mesmo
modo, os programas de formação docente não podem ser substituídos por uma série de
workshops, oficinas ou atividades edtech, como se bastasse um treino rápido ou um con-
tato com as escolas para alguém se tornar professor.

72
Precisamos dar consistência ao conhecimento profissional docente e afirmar a sua cen-
tralidade no desenvolvimento profissional dos professores. Quais as consequências con-
cretas dessa posição para a formação de professores? Eis a pergunta que orienta a última
parte deste ensaio.

Para concluir:
Consequências para a formação de professores
“Um professor não é um guru…/ Um professor não é um inicia-
dor…/ Um professor não é um mediador…/ Um professor não é
um autor…/ Um professor não é um treinador…/ Um professor
não é um produtor…/ Um professor não é um gestor…/ Um pro-
fessor não é um fornecedor de serviços…/ Um professor não é um
pai, nem uma mãe…/ Um professor não é um companheiro…/ Um
professor não é um amigo…/ Um professor não é um líder…/ Um
professor não é um activista…/ Um professor não é um conselhei-
ro espiritual…/ Um professor não é um conselheiro emocional…/
Um professor não é um sedutor…/ Um professor não é um con-
dutor…/ Um professor não é um guia…/ Um professor não é um
comunicador…/ Um professor não é um moderador…” (Larrosa,
2019, p. 329).

Num dos seus livros mais recentes, Esperando não se sabe o quê: sobre o ofício de pro-
fessor, Jorge Larrosa apresenta, provocativamente, os resultados de um exercício sobre
“o que não é um professor”. A provocação poderia continuar ad infinitum: Um professor
não é um facilitador…/ Um professor não é um tutor…/ Um professor não é um cola-
borador…/Um professor não é um animador…/… e terminar inevitavelmente com uma
tautologia: Um professor é um professor.

A formação de professores não pode alimentar esse tipo de ambiguidades e de lingua-


gens que traduzem visões e ideologias perniciosas para o futuro da profissão docente.
Para combatê-las, e firmar os professores como professores, é indispensável consolidar
o conhecimento profissional docente e identificar as suas consequências institucionais,
profissionais e públicas no campo da formação de professores.

73
Consequências institucionais

O conhecimento profissional docente é um “terceiro gênero de conhecimento”. Natu-


ralmente, precisa de um “terceiro lugar” para a sua sistematização e mobilização nos
processos de formação de professores.

Regra geral, a formação inicial é da responsabilidade das universidades. Hoje, é impos-


sível ignorar que as universidades, por si sós, não são capazes de assegurar uma ade-
quada formação profissional dos professores. São indispensáveis, enquanto espaços de
conhecimento e de ciência, mas precisam da colaboração das escolas e dos professores
da educação básica, e de outros atores. Essa colaboração não pode ser baseada em hierar-
quias de poder e em relações desequilibradas, principalmente entre os professores das
universidades e das escolas.

Regra geral, a formação continuada é da responsabilidade das escolas de educação básica


e dos governos estaduais e municipais. Muitas vezes, recorrem à ajuda de outras entida-
des, nomeadamente a empresas e a fundações. Noutros casos, pedem apoio às univer-
sidades, mas frequentemente apenas para a oferta de cursos de determinadas matérias.
Não pode haver formação continuada sem uma presença forte dos professores e das es-
colas da educação básica, mas essa presença, por si só, não chega para construir modelos
efetivos de formação continuada. A prática pela prática é repetição, não tem qualquer
interesse ou utilidade para a formação dos professores.

Se o meu diagnóstico estiver certo, então a solução é óbvia: precisamos juntar as universi-
dades e as escolas de educação básica. Essa “junção” não pode ser feita, como até agora,
apenas por meio de parcerias ou acordos pontuais, em especial para os estágios – precisa
se configurar como uma nova institucionalidade. É a solução adotada pela Universidade
Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) com o Complexo de Formação de Professores do Rio
de Janeiro, uma experiência original e de grande alcance.

Construir este “terceiro lugar” é a consequência natural de pesquisas e reflexões produ-


zidas há décadas por vários autores, com destaque para Ken Zeichner:

“Precisamos de um novo modelo para os programas de formação de profes-


sores, mais centrado nas comunidades e nas escolas, no qual as universida-
des, as autoridades municipais e estaduais, as associações de professores e
as comunidades locais compartilhem a responsabilidade pela preparação de
professores sensíveis do ponto de vista cultural e comunitário, e capazes de
ensinarem todas as crianças” (2017, pp. 10-11).

74
Espera-se que este “terceiro lugar” seja capaz de agir no continuum do desenvolvimento
profissional docente, dando coerência e consistência aos processos de formação inicial,
de indução docente e de formação continuada. Uma palavra para sublinhar, uma vez
mais, a importância do período de indução docente ou profissional – os anos de transi-
ção entre a formação e a profissão – na história de vida e na formação dos professores.
Ignorar esses anos, como tem sido recorrente nos programas e nas políticas de formação
de professores, é um erro de consequências graves para a profissão docente.

A concretização de uma proposta desse tipo não será idêntica em todas as universidades,
municípios e estados. A diferença é bem-vinda, pois marca a necessidade de, a partir de
princípios genéricos, enraizar a formação de professores nas distintas realidades locais.
O futuro conjuga-se no plural e não nos esquemas uniformes do passado.

Consequências profissionais

A produção do conhecimento profissional docente não é um gesto individual, mas cole-


tivo, que se faz no interior da profissão. A reflexão conjunta é central para construir esse
conhecimento, mas também para organizar os programas de formação de professores.

O trabalho dos professores teve desde sempre uma base individual. Tradicionalmente, o
ensino tem lugar no interior de uma sala de aula, com uma configuração própria e rela-
tivamente isolada dos outros espaços escolares. Essa matriz está mudando, com a trans-
formação dos ambientes educativos e a necessidade de um trabalho colaborativo entre os
professores. A profissão docente está adquirindo uma dimensão cada vez mais coletiva.

O que é verdade para a profissão é igualmente verdade para a formação de professores.


Precisamos instaurar processos de formação mútua, cooperada, impossíveis de con-
cretizar sem uma presença conjunta das universidades, das escolas e dos professores
da educação básica.

A formação de um profissional não se limita à aquisição de determinados conhecimentos


ou competências, implica vivências, interações, dinâmicas de socialização, a apropria-
ção de uma cultura e de um ethos profissional. É uma realidade complexa que exige uma
presença e um trabalho em comum entre quem está se formando e quem já é professor.

A situação torna-se muito evidente na fase da vida em que nos tornamos professores,
isto é, nos primeiros anos de exercício docente. É um tempo decisivo da nossa história
profissional, mas frequentemente descuidado tanto pelas políticas públicas como pelas

75
universidades e pelas escolas. Porém, é nesses anos de transição entre a formação e a
profissão que se decide grande parte do nosso futuro como professores.

Ninguém se torna professor sem a colaboração dos professores mais experientes. Nessa
convivência, adquirimos os gestos e a cultura profissional. Convivência no seu preciso
sentido, viver com, ou seja, trabalhar com e pensar com os outros. Para que isso aconteça,
tem de haver condições nas escolas e uma nova organização do trabalho dos professores.

A partir da compreensão das mudanças em curso na profissionalidade docente, é possível


transformar os modelos e os programas de formação de professores. Não se trata, apenas,
de formar individualmente cada professor, mas também de reforçar o coletivo docente.
Como escrevi, provocativamente, em texto já antigo, é preciso “uma formação de profes-
sores construída dentro da profissão” (Nóvoa, 2009).

Não se trata de diminuir o papel das universidades, nomeadamente no que diz respeito
aos conhecimentos científicos e aos conhecimentos pedagógicos. Mas é preciso repetir
que, sem um “terceiro gênero” de conhecimento, o conhecimento profissional docente,
não há qualquer possibilidade de formar um professor. É preciso retirar todas as conse-
quências dessa afirmação, e assegurar a presença dos professores nas diversas fases do
continuum da formação docente: desde a formação inicial à formação continuada, pas-
sando pelo momento da indução profissional.

Consequências públicas

Uma profissão não é apenas uma realidade interna, contém também uma dimensão ex-
terna. O trabalho dos professores não se destina unicamente a servir um público, mas
também a formar e a criar públicos. O conhecimento profissional docente projeta-se para
fora das escolas e do ensino, para o espaço público da educação.

Nas últimas décadas, os professores perderam visibilidade pública e a sua voz foi sendo
substituída por especialistas de matérias tão diversas como o currículo, as tecnologias,
as competências socioemocionais ou os estudos do cérebro. Publicamente, ouvem-se
muitos discursos sobre educação, o que é de enaltecer, mas faltam maior presença e par-
ticipação dos professores.

No momento presente, de transformação profunda da educação, um certo retraimento


dos professores “dentro” dos espaços escolares é prejudicial ao seu prestígio e reconhe-

76
cimento público. O conhecimento profissional docente é fundamental para o trabalho
escolar, mas dota também os professores de melhores condições e de maior legitimidade
para participarem dos grandes debates públicos sobre educação.

A junção num mesmo espaço de professores, universitários, pesquisadores e autorida-


des políticas cria boas condições para que os momentos da formação sejam também mo-
mentos de afirmação e de participação pública dos professores. Isolados, os professores
podem pouco, mas, reunidos em instâncias fortes, não deixarão de ser devidamente tidos
em conta pelas políticas públicas.

Repito: a escrita é muito importante. Por isso, falar da dimensão pública do trabalho dos
professores significa valorizar a publicação das suas ideias, experiências e reflexões. São
palavras que têm a mesma raiz e intencionalidade.

No caso dos professores, há três palavras que devem seguir par a par: profissão, público e
participação. Não se espera dos professores que cuidem apenas da melhoria das escolas e
do ensino, mas que se envolvam numa reflexão e ação sobre o que deve ser o futuro ou os
futuros da educação. A sua credibilidade e o seu prestígio dependem dessa projeção no
futuro. Detentores de um conhecimento próprio, estarão preparados para cumprir o seu
papel como profissionais públicos, como profissionais publicamente comprometidos.

Coda:
Para deixar tudo claro
O que me interessa, desde sempre, é a defesa dos professores e da sua profissionalidade,
no contexto de uma valorização da escola pública e do espaço público da educação.

Assumo uma postura crítica em face dos discursos que diminuem ou corroem a profissão
docente. Refiro-me às intermináveis discussões, que se prolongam há mais de meio sécu-
lo, sobre a pertinência de aplicar à docência o conceito de profissão: é como se estivésse-
mos perante um círculo vicioso que só contribui para rebaixar os professores. Refiro-me
também às expressões, cada vez mais correntes, que tratam os professores como colabo-
radores, facilitadores ou mediadores: é como se a palavra “professor” fosse incômoda
e inadequada para pessoas e grupos que pretendem diluir a profissionalidade docente.

77
Esses discursos traduzem-se em políticas de formação de professores nocivas aos profes-
sores. No primeiro caso, recusam a ideia de uma formação profissional dos professores
e contribuem para organizar programas de formação de professores em que pouco se
trabalha ou se reflete sobre a profissão docente e o trabalho pedagógico. No segundo
caso, dão origem a processos de recrutamento de pessoas sem qualquer formação, como
se bastasse possuir conhecimentos de algum tema ou matéria para ser professor.

Nada disso é inocente. A formação de professores é atravessada por interesses diversos


(corporativos, universitários, econômicos…), parecendo, por vezes, que o menos impor-
tante é o reforço da profissão docente. Sabemos bem o que é preciso fazer, mas enreda-
mo-nos em justificações para não o fazer. Agora, chegou o tempo da coragem da ação,
também para as universidades.

Há muitas maneiras de ser professor, uma diversidade de opções e de caminhos. Mas, em


todos eles, há um ponto imprescindível: o conhecimento profissional docente, um conhe-
cimento contingente, coletivo e público. É com base nele que se devem organizar os novos
modelos de formação de professores.

78
Capítulo 7

Jovens professores:
o futuro da profissão
Lema do Dia Mundial do Professor 2019
Jovens professores: o futuro da profissão

O que se entende por ensino como possibilidade em tem-


pos obscuros e constrangedores? Trata-se de despertar e
reforçar os jovens de hoje para falarem, refletirem, imagi-
narem e agirem com uma responsabilidade concreta num
mundo cada vez mais multiforme. Ao mesmo tempo, trata-
-se de permitir que permaneçam em contato com o temor
e o desejo, com o cheiro dos lilases e o sabor dos pêssegos.
A luz pode ser incerta e oscilante; mas os professores,
com as suas vidas e obras, têm a notável capacidade de a
fazer brilhar em todos os cantos e, talvez, conseguir que
os recém-chegados se juntem a outros e transformem.
Maxine Greene

79
Este texto centra-se nos jovens professores argumentando que são deci-
sivos para o futuro da profissão. Depois de um começo, no qual se refe-
rem os estudos de Michael Huberman, a primeira parte do texto aborda a
importância do período de indução profissional, como um “tempo entre
dois”, entre as licenciaturas e o exercício pleno da profissão.
Na segunda parte, repetem-se algumas ideias alinhadas em seis pontos
que parecem simples, mas talvez não sejam, sobre o desenvolvimento pro-
fissional docente.
Finalmente, na terceira parte, faz-se um convite às universidades para se
envolverem seriamente na formação de professores e na indução profissio-
nal docente, retomando ideias apresentadas na Aula Inaugural da Cáte-
dra Anísio Teixeira de Formação de Professores, na Universidade Federal
do Rio de Janeiro, a 27 de julho de 2022.
Numa conclusão breve, insiste-se na importância dos jovens professores
para a renovação e o futuro da profissão docente.
O texto adota o lema do Dia Mundial do Professor, em 2019 – Jovens pro-
fessores: o futuro da profissão. Uma primeira versão deste texto foi publi-
cada na Revista Internacional de Formação de Professores (Vol. 8, 2023,
pp. 1-15).

80
Jovens professores: o futuro da profissão
Começando
No final da década de 1970, iniciei funções docentes numa Escola do Magistério Pri-
mário. Em Aveiro. Tinha praticamente a idade dos meus alunos. Foram tempos muito
importantes para mim, nos quais tomei consciência da importância de uma boa inte-
gração na profissão dos jovens professores.

Mais tarde, no início da década de 1980, iniciei os meus estudos sobre a profissão do-
cente na Universidade de Genebra. Tive a possibilidade de acompanhar os primeiros
estudos de Michael Huberman, na minha opinião o mais lúcido educador e pedagogo
da segunda metade do século XX, sobre o ciclo de vida profissional dos professores.
Em 1989, estive no lançamento da sua obra, A vida dos professores. Cada vez se foi
tornando mais nítida, na minha reflexão, a importância dos primeiros anos de exer-
cício profissional, quando os estudantes terminam as licenciaturas e iniciam funções
docentes nas escolas.

Adquiri a consciência clara de que os primeiros anos como professores iniciantes ou


principiantes são os mais decisivos na vida profissional docente, pois marcam, de mui-
tas maneiras, a nossa relação com os alunos, com os colegas e com a profissão. É o
tempo mais importante na maneira como nos tornamos professores, na construção da
nossa identidade profissional.

Mas é também um tempo decisivo para a renovação da profissão. É nos diálogos e vín-
culos entre jovens professores e professores mais experientes que se define a possibi-
lidade de novos processos e de novas práticas pedagógicas. Por isso essa relação é tão
importante. A profissão docente não terá futuro se não cuidar melhor dos seus profes-
sores mais jovens. Esse período entre dois, entre a formação e a profissão, é decisivo.

Um tempo entre dois: o período de indução profissional


Concentremo-nos nos primeiros anos de exercício docente, esse tempo entre dois, en-
tre o fim da licenciatura e o princípio da profissão. Sabemos, há muito, que são anos
decisivos nas nossas vidas profissionais, e também pessoais. Espanta, por isso, um cer-
to vazio que se criou, pelo menos nas últimas décadas, em torno desse período. Este
período entre dois pode ser pensado de duas maneiras distintas:

81
- Ou como a fase final da formação inicial, não para substituir o es-
tágio supervisionado, mas para estabelecer uma ponte entre a uni-
versidade e as escolas. Nesse caso, devemos organizar o conjunto do
currículo das licenciaturas tendo como alvo esse período. Dito de
outra maneira: temos de pensar o percurso do licenciando como um
processo progressivo de socialização profissional, de aquisição de
uma identidade profissional.
- Ou como a fase inicial da profissão, como o primeiro momento de
experiência da profissão, de contato com o conjunto das realidades
da vida docente. Nesse caso, devemos insistir na responsabilidade das
direções das escolas e dos professores mais experientes quanto ao aco-
lhimento e acompanhamento dos seus jovens colegas. Dito de outro
modo: temos de organizar as escolas de modo a receberem os jovens
professores, integrando-os no dia a dia da profissão.

As duas formas de pensar são úteis e pertinentes, mas quero, acima de tudo, chamar a
atenção para a necessidade de dar a este período de três ou quatro anos uma espessura
própria, isto é, de considerá-lo autonomamente como um tempo central para que cada
jovem professor adquira a sua própria identidade profissional docente.

Para isso, precisamos superar três silêncios que têm marcado o período de indução pro-
fissional, isto é, de iniciação e de introdução à profissão docente:

- o silêncio das instituições universitárias de formação de professo-


res, que pouca atenção têm dado a esse período, considerando que o
seu trabalho fica concluído com a entrega do diploma de conclusão
da licenciatura;
- o silêncio das políticas educativas, que não têm conseguido definir
os necessários processos de escolha e de recrutamento dos candidatos
ao magistério, de acesso à profissão e de acompanhamento dos jovens
professores nas escolas;
- o silêncio da própria profissão docente, isto é, dos professores em
exercício, mais experientes, e que deveriam assumir um maior compro-
misso com a formação dos seus jovens colegas, o que implica também
novas formas de organização do trabalho docente.

O meu argumento é que o período de transição entre a formação e a profissão é funda-


mental no modo como nos tornamos professores, no modo como construímos a carreira
docente, mas no modo como se renova a própria profissão docente.

82
A indução profissional pode realizar-se de várias maneiras. Apesar de haver uma abun-
dante literatura em torno desse tema, com milhares de títulos publicados nos últimos
anos, as experiências concretas são ainda limitadas. Mas já é possível construir uma
reflexão crítica para tentar preencher esse “vazio”.

A residência docente é uma das formas de indução profissional. Na minha opinião, é


um conceito mais apropriado do que residência pedagógica, pois trata-se de integrar
alguém em uma profissão, a profissão docente, e não apenas em um conhecimento ou
em uma forma de agir, a pedagogia.

A indução exige que os três vértices do triângulo estejam presentes e articulados de


forma sólida e equilibrada: (i) as instituições universitárias de formação de professo-
res; (ii) as entidades de gestão pública da educação; (iii) as escolas e os professores de
educação básica.

Em alguns países verifica-se a predominância de uma estratégia política, centrada fun-


damentalmente no recrutamento e em um “período probatório”, que acaba por afastar
os programas universitários e por desvalorizar o papel do coletivo docente. Assim con-
cebidas, as experiências de indução ou de residência assumem uma tendência pragmá-
tica (praticista) e acentuam a importância dos períodos probatórios ou das provas de
acesso à profissão, perdendo grande parte do seu interesse.

A minha abordagem tende a valorizar um equilíbrio entre os três vértices e, acima de


tudo, o reforço do ponto que tem recebido menos atenção, o coletivo docente. É esta
a minha preocupação, desde sempre, uma preocupação ainda maior à medida que se
acentuam os processos de dissociação entre as universidades e as escolas, entre os pes-
quisadores e os docentes, entre as políticas e a profissão.

O aspecto central que me interessa sublinhar é a necessidade de construir ambientes es-


colares propícios à socialização profissional. A minha reflexão tem, implícita, uma crítica
aos ambientes existentes – nas universidades e nas escolas, mas também na forma como se
recrutam os professores –, que não são favoráveis ao desenvolvimento profissional docen-
te, nem na sua primeira fase (a formação inicial), nem na sua fase intermediária (a indução
profissional), nem mais tarde no exercício profissional nas escolas (o trabalho docente).

Afirmo mesmo que não é possível formar devidamente um professor, nem nos enqua-
dramentos atuais das universidades, nem em ambientes escolares medíocres e desinte-
ressantes. Para que o período entre dois ganhe densidade e sentido, é necessário repen-
sar os ambientes de formação, de pesquisa e de trabalho:

83
(i) para construir licenciaturas significativas, é preciso alterar o ambien-
te da formação inicial, construindo terceiros espaços de ligação entre as
universidades, as escolas e os gestores públicos;
(ii) para valorizar a profissão docente, é necessário criar condições para a
produção de um terceiro gênero de conhecimento, o conhecimento pro-
fissional docente;
(iii) para reforçar os professores enquanto coletivo docente, é preciso re-
organizar os ambientes escolares, favorecendo um trabalho colaborativo
e de coconstrução do conhecimento e da pedagogia (Nóvoa, 2017; Nóvoa
& Alvim, 2022).

Em um equilíbrio entre esses três ambientes, podemos imaginar um percurso de for-


mação e de integração na profissão que, tendo como ponto de junção os primeiros anos
de exercício profissional, contribua para reforçar a profissionalidade docente, renovan-
do e valorizando o trabalho dos professores.

Seis pontos que parecem simples

Um
Tudo começa num reconhecimento, que parece simples, mas talvez não seja: a formação
de professores é uma formação profissional de nível universitário.

Alguns defendem que deve ser “formação profissional”, mas não necessariamente de
“nível universitário”, pois bastaria uma formação técnica, prática, “vocacional”, pre-
parando os professores para o seu trabalho diário. É por isso que, em muitos países, a
formação de professores está ainda sob a alçada de “escolas normais”, ou similares, de
nível médio e com um cariz aplicado.

Outros sustentam que deve ser “de nível universitário”, mas não lhes agrada que seja
“formação profissional”, pois entendem essa designação como uma diminuição ou des-
valorização das dimensões teóricas. É por isso que, em muitos países, a formação de
professores está no meio de cursos que formam para várias atividades ou profissões de
ensino e educação, diluindo a especificidade da formação de professores.

Pessoalmente, defendo que falar de formação profissional, isto é, de formação para uma
profissão, é elevar, e não diminuir; é dignificar, e não desvalorizar, os professores. Na
verdade, é fácil alinhar uma lista de livros, teorias e conceitos que os professores devem

84
conhecer. Difícil é ensiná-los de maneira problematizadora, emancipadora, a partir de
reflexões centradas na vida, na cultura e no exercício da profissão.

Mas defendo também que a formação de professores deve ser feita no espaço universitá-
rio, pois este é o lugar das profissões do conhecimento (medicina, engenharia, direito
etc.). É necessário que a universidade compreenda, de uma vez por todas, a necessidade
de construir parcerias e ligações com as escolas, os professores e os órgãos de gestão
pública da educação, pois só assim se poderão construir políticas coerentes de forma-
ção e de desenvolvimento profissional.

Dois
Tudo continua num outro reconhecimento, que parece simples, mas talvez não seja: a
formação de professores deve ser concebida ao longo de todo o ciclo de vida profissio-
nal, desde o primeiro dia como licenciando até o último dia como professor.

Na verdade, para pensarmos os professores e a sua formação, temos de levar em conta o


conjunto da vida profissional docente, construída em torno de três grandes momentos:

1.º Licenciatura – Trata-se de estudantes, que ainda não são profissio-


nais, mas já devem ir assumindo progressivamente uma cultura profis-
sional docente.
2.º Indução profissional – Trata-se de professores que já são profissio-
nais, mas que, na maioria dos casos, se encontram ainda em período
experimental ou probatório.
3.º Exercício docente em uma escola – Trata-se de professores no pleno
exercício autônomo da profissão, e que devem manter-se envolvidos em
dinâmicas de formação continuada.

Esses três momentos são muito distintos, mas devem estar articulados de forma coeren-
te. Podemos mesmo argumentar que há ainda uma fase anterior ao primeiro momento,
relacionada com estratégias para atrair estudantes do ensino médio para as licenciatu-
ras, e uma fase posterior ao último momento, dirigida a uma saída serena da profissão.

O estatuto dos professores ou futuros professores deve ser claro, em cada um desses
momentos, pois isso define também os seus graus de autonomia e de responsabilida-
de: no primeiro momento, são estudantes, sem autonomia no plano profissional; no
segundo momento, já são profissionais, ainda que com níveis limitados de autonomia;
no terceiro momento, são profissionais autônomos no pleno exercício das suas funções.

85
Este esquema permite compreender bem as razões e o sentido do segundo momento,
de indução profissional.

Três
Há cerca de quatro décadas, no início dos anos 1980, verificou-se uma grande expan-
são dos estudos relacionados com o ciclo de vida profissional dos professores. Esses
estudos resultavam do cruzamento entre tendências há muito estabelecidas na psico-
logia sobre o “desenvolvimento da carreira” (career development), com um interesse
renovado da sociologia pelas “autobiografias” ou “histórias de vida”.

No que diz respeito às histórias de vida de professores, o autor mais brilhante, por sua
inteligência e sensibilidade, foi, sem dúvida, Michael Huberman. Os seus trabalhos so-
bre a vida dos professores ou as fases da carreira docente, do fim da década de 1980,
continuam a ser hoje leituras fundamentais.

Quero destacar duas linhas de reflexão e de análise deste pesquisador e professor que
era, acima de tudo, um pedagogo:

- por um lado, a importância de olhar para a totalidade do ciclo de vida dos


professores, compreendendo de que forma as fases iniciais influenciam a re-
lação com a profissão, e vice-versa, e de que forma a vivência mais madura
da profissão é influenciada pelas memórias dos primeiros anos de docência;
- por outro, a chamada de atenção para a relevância dos primeiros anos como
professor, durante os quais os professores iniciantes seguem um processo
de indução (introdução, inscrição, integração, socialização) na profissão.

Já a essa altura, Michael Huberman se interrogava sobre a inexistência de políticas de


apoio e de enquadramento dos professores iniciantes. Há trinta anos, a pesquisa foi
confirmando, com abundância de estudos e trabalhos, a relevância deste segundo mo-
mento do ciclo de desenvolvimento profissional, ao mesmo tempo que foi revelando a
pobreza ou fragilidade das políticas dirigidas aos professores iniciantes. É a partir des-
sa dupla constatação que se têm vindo a consolidar programas de indução profissional.

86
Quatro
Os programas de indução profissional têm como objetivo estabelecer uma ponte entre
a formação inicial e o exercício profissional autônomo. Nesse sentido, não devem diri-
gir-se aos “estudantes”, mas sim a “profissionais” no início do seu percurso docente.

Os programas de indução profissional, também na forma de “residências docentes”,


não se destinam a substituir ou a melhorar os blocos de prática pedagógica ou os tradi-
cionais estágios das licenciaturas. Certamente que essas realidades são muito impor-
tantes, mas fazem parte da “formação inicial”, e não da “indução”.

As residências docentes devem ter como público principal os professores iniciantes,


recém-concursados no âmbito dos sistemas públicos de ensino. Dirigem-se a profes-
sores, responsáveis perante os seus alunos no quadro da sua autonomia profissional. É
nisso que reside o interesse das residências docentes. A tutela já não pertence aos pro-
fessores universitários, mas aos professores que atuam nas escolas da educação básica.
Esse ponto é muito importante, pois jogam-se aqui questões de “poder” no controle da
profissão, com o prolongamento de um “poder universitário” sobre os professores ou a
afirmação de um “poder coletivo dos professores” sobre a sua própria profissão.

Nesse sentido, as residências docentes constituem um tempo fundamental para a in-


tegração na profissão, por meio do apoio, do enquadramento e da supervisão dos pro-
fessores mais experientes. São um elemento fundamental, não só para assegurar uma
entrada mais natural na docência, mas também para consolidar uma perspectiva mais
coletiva, colegial, do exercício profissional docente. O futuro dos professores passa,
necessariamente, por uma vivência mais colaborativa, cooperativa, da profissão, que
começa nesses primeiros anos de docência.

Cinco
A indução profissional, sob a forma de residência docente ou em outro modelo, é um
momento decisivo na história individual de cada professor, permitindo assegurar uma
boa transição entre a formação e a profissão. Como pesquisadores, pedagogos e profes-
sores, devemos colocar as nossas melhores energias na compreensão dessa realidade e
na produção de estratégias e de políticas coerentes de apoio aos professores iniciantes.

Mas este momento é também decisivo na história coletiva da profissão docente. Os


enquadramentos adotados e a forma como os programas de indução profissional são
desenhados não têm nada de inocente.

87
Em certos casos, há uma extensão da “tutela universitária”, com as residências a serem
consideradas parte da formação inicial, o que, na minha opinião, é errado. Por essa via,
podem resolver-se alguns problemas com os atrasos na contratação dos jovens pro-
fessores e criam-se condições para que se mantenham em formação, mas perde-se o
sentido profissional, de acolhimento por parte da profissão, que deve ser o foco central
das residências. Os professores da educação básica que já foram, em grande parte, afas-
tados dos cursos de formação de professores, ou neles desempenham um papel menor,
são agora também afastados do processo de integração dos mais jovens na profissão.

Em outros casos, há a imposição de uma “tutela administrativa”, com as residências a


serem consideradas unicamente para avaliação dos períodos experimentais ou proba-
tórios, o que, na minha opinião, descaracteriza o seu sentido. Por essa via, resolvem-se
os problemas da avaliação dos candidatos a professores para o exercício docente, mas
perde-se o trabalho de socialização e de aquisição de uma cultura profissional docente.
Uma vez mais, os professores de educação básica acabam por desempenhar um papel
secundário nesse processo.

A minha concepção da residência docente assenta na emergência de uma “terceira for-


ça”, constituída pelos próprios professores da educação básica, exercendo plenamente
os seus direitos e obrigações na formação e integração das novas gerações de profis-
sionais. Estou consciente de que essa posição implica mudanças profundas na orga-
nização da profissão docente e das escolas, reforçando as suas dimensões coletivas e,
sobretudo, a sua autonomia e capacidade de auto-organização. Mas esse é o caminho
que sempre advoguei para os professores.

Seis
Para mim, a indução profissional é um momento decisivo, não só para a formação de
professores e a sua integração na carreira docente, mas também para a própria renova-
ção da profissão docente. Por isso, parece-me essencial pensar este momento no con-
texto mais amplo do desenvolvimento profissional docente.

A indução profissional acontece depois da “formação inicial” e deve ser concebida


como um primeiro momento da “formação continuada”. A responsabilidade maior deve
pertencer aos próprios professores da educação básica. Não se nega a importância do
papel dos professores universitários, que têm um contributo importante a dar às resi-
dências. Não se nega, também, o papel das entidades da gestão pública da educação.
Mas o papel central deve ser dos próprios profissionais docentes, dos professores
mais experientes.

88
Um dia, quando era reitor da Universidade de Lisboa, perguntei a alguns grandes médi-
cos do Hospital de Santa Maria, o nosso hospital universitário, a que função atribuíam
mais relevância no seu trabalho diário. De todos, recebi a mesma resposta: “Para nós, a
clínica e o ensino são muito importantes, mas nada é mais importante do que a ação que
desenvolvemos junto dos jovens médicos, ajudando-os, apoiando-os, na sua entrada na
profissão”. Um dia, gostaria muito de ouvir a mesma resposta aos professores de edu-
cação básica, assumindo que o compromisso com o apoio aos jovens professores é um
elemento essencial do seu trabalho e da sua responsabilidade intergeracional.

O que me interessa no debate sobre a indução profissional, por meio de residências


docentes ou de outros modelos, é o lugar da profissão docente, é o reforço dos próprios
professores na formação, produção e regulação da sua profissão.

Um convite às universidades
Quero fazer um convite às universidades para se comprometerem, seriamente, com a
educação básica, para se envolverem, plenamente, na formação de professores.

Historicamente, as universidades pouco ou nada se interessaram pela educação básica.


Não estou a falar apenas do Brasil, mas do mundo. Foram sempre outras as suas prio-
ridades. E pior ainda nas últimas décadas, quando o “produtivismo acadêmico” tomou
conta da vida universitária, e virou-nos por inteiro para a publicação científica.

Sobre educação básica, o mais que sempre se ouviu foi esse lamento cíclico, insuportá-
vel, repetido geração após geração, reclamando que os alunos não sabem nada, que vêm
mal preparados do ensino médio, que não estão prontos para os cursos universitários,
que são semianalfabetos etc.

Foi sempre um lamento inconsequente, que não provocou qualquer mudança na rela-
ção entre a universidade e a educação básica. Veio até os dias de hoje, e continua a ser
repetido, irresponsavelmente, isto é, sem que dele resulte uma nova responsabilidade
da universidade.

De tempos em tempos, sobretudo depois de meados do século XX, lá surge uma ini-
ciativa desgarrada para promover a universidade no ensino médio. Mas na maioria dos
casos é por mero oportunismo, quando os cursos do Stem – Ciências, Tecnologia, En-
genharia e Matemática – ficam sem alunos.

89
Não desconheço as histórias de vida de muitos universitários, de todas as áreas – filóso-
fos, cientistas, artistas, médicos, pedagogos, engenheiros… – que dedicaram o melhor
de si mesmos à educação e à formação de professores. Mas foram sempre a exceção,
nunca a regra.

Por dever de ofício, já tive de ler e avaliar centenas, talvez milhares, de currículos aca-
dêmicos. Nunca vi nenhum dar centralidade ao trabalho na formação de professores.
Mesmo na área da Educação, o que vem primeiro são sempre os artigos científicos e os
projetos de pesquisa.

Por dever dos cargos que ocupei, tive de analisar e estudar os planos estratégicos de
centenas de universidades em todo o mundo. Nunca vi nenhum dar prioridade à forma-
ção de professores.

A formação de professores não pode continuar a ser uma missão menor, relegada a um
plano secundário, como se decorresse “naturalmente” do trabalho nas outras áreas
científicas, como se não precisasse de uma atenção especial, de uma reflexão própria,
de um investimento transversal de toda a Universidade.

Não creio que possa haver uma mudança significativa na formação de professores se não
compreendermos duas questões:

(i) a formação de professores não é assunto apenas da Educação, mas


diz respeito a todas as áreas da Universidade;
(ii) a formação de professores não é assunto apenas da Universidade,
pois implica uma presença forte, organizada, das escolas e dos profes-
sores da educação básica, bem como dos gestores públicos da educação.

É nesse sentido que venho advogando a existência de uma “casa comum da formação e
da profissão”: uma casa comum dentro da Universidade, juntando todas as licenciatu-
ras; uma casa comum entre a Universidade e as redes públicas de educação. Trata-se de
uma nova realidade, juntando num “terceiro espaço” todos os que se interessam pela
formação de professores dentro da Universidade e todos os que, fora da Universidade,
têm um papel decisivo a desempenhar nesta missão: escolas, professores, autoridades
municipais e estaduais, associações de professores etc.

Esta casa comum não pode excluir, nem diminuir nenhuma presença, não é feita para
disputar poderes nem dentro nem fora da Universidade, mas para juntar e reforçar a
formação de professores e a profissão docente. Há muitas experiências desse tipo em

90
vários países, mas precisam de ser continuadas e reforçadas e, sobretudo, precisam
ter competências na organização do período de indução profissional (Zeichner, 2012,
2017). É a partir desse “ponto” que se podem imaginar e realizar mudanças importan-
tes na profissão docente, influenciando, por um lado, as licenciaturas e, por outro, a
dinâmica das escolas. Não consigo imaginar nada mais importante, nem mais urgente,
a ser feito pelas universidades no campo da educação.

Concluindo
Estamos vivendo um tempo difícil na formação de professores. Por um lado, há um ata-
que, em muitos países, às instituições universitárias de formação de professores, acusa-
das de mediocridade e de irrelevância. Políticas conservadoras e neoliberais procuram
regressar a um tempo anterior às escolas normais, quando não havia modelos institu-
cionalizados de formação, mas apenas uma aprendizagem ao lado de um professor mais
experiente.

Por outro lado, há um imobilismo das instituições universitárias e das comunidades


acadêmicas, envolvidas em disputas internas de poder e, sobretudo, na proteção das
suas carreiras, pautadas cada vez mais pelo ritmo dos artigos científicos e cada vez me-
nos pelo compromisso com a formação docente. Hoje, não há nas universidades um
lugar onde todos aqueles que se preocupam com a formação docente (matemáticos, his-
toriadores, biólogos, pedagogos etc.) possam trabalhar em conjunto, um lugar onde se
valorize o trabalho de formação docente com um compromisso com a escola pública,
com a pesquisa sobre o ensino e com a ação pública em educação.

A formação de professores é um espaço central na defesa da escola pública e da profis-


são docente. Não pode haver boa formação de professores se a profissão estiver fragili-
zada, enfraquecida, pois a participação da profissão é imprescindível para que haja uma
formação profissional. Mas também não pode haver uma profissão forte se a formação
de professores for desvalorizada e reduzida apenas às disciplinas a ensinar ou às técni-
cas pedagógicas.

Por isso, quero sublinhar a importância da relação entre a formação e a profissão e, em


particular, no período entre a formação e a profissão. É neste tempo entre dois que,
verdadeiramente, nos tornamos professores, que adquirimos uma pele profissional que
se enxerta na nossa pele pessoal.

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Uma nova concepção da formação de professores deve privilegiar este tempo entre dois,
a indução profissional, um tempo que é estruturante do desenvolvimento profissional
docente. É uma questão central para a integração de cada pessoa na profissão, mas é
também uma questão central para o próprio futuro da profissão docente.

Os jovens professores são centrais para renovar a vida da profissão e das escolas. Es-
tamos vivendo a maior transformação de que há memória na história da educação e da
pedagogia. Precisamos acolher bem os jovens professores se quisermos dar futuro à
profissão docente.

92
Capítulo 8

Os professores depois da pandemia:


a reinvenção do futuro
Lema do Dia Mundial do Professor 2020
Professores: liderar em tempos de crise, reinventar o futuro

A educação genuína deve envolver os propósitos e as


energias daqueles que estão sendo educados. Para
garantir esse envolvimento, os professores devem
construir relações de cuidado e de confiança e, den-
tro dessas relações, os alunos e os professores devem
construir cooperativamente os objetivos educacionais.
Nel Noddings

93
Este texto chama a atenção para a necessidade de mudanças profundas na
educação e no trabalho docente. Em tempos de crise, precisamos acredi-
tar nos professores e nas suas possibilidades de ação.
Assim, criticam-se três ilusões habituais, que a Covid-19 tornou ainda
mais visíveis, a saber: as aprendizagens acontecem “naturalmente” numa
diversidade de tempos e ambientes; a escola física vai dar lugar à “escola
virtual”; a pedagogia pode ser substituída pelas tecnologias.
Em alternativa a essas “ilusões”, sublinha-se que a educação implica
sempre uma intencionalidade e, por isso, é preciso valorizar o papel dos
professores na construção de um espaço público comum da educação, na
criação de novos ambientes escolares e na composição de uma pedagogia
do encontro.
Como escreve Pierre Furter, para que as crises possam ser momentos
frutíferos, torna-se necessário que os seres humanos tenham uma visão
esperançosa de sua existência: “A esperança é sem otimismo e sem ilu-
são” (1966, p. 94), mas faz parte do trabalho dos professores na reinven-
ção do futuro.
Uma primeira versão deste texto foi publicada, em coautoria com Yara Al-
vim, na revista Educação & Sociedade (Vol. 42, 2021, pp. 1-16), com o
título “Os professores depois da pandemia”.

94
Os professores depois da pandemia:
a reinvenção do futuro

Abertura
Em 2020 tudo mudou. Com a pandemia, terminou o longo século escolar, que come-
çou na segunda metade do século XIX. A escola, tal como a conhecíamos, acabou. Co-
meça, agora, uma outra escola. A era digital impôs-se nas nossas vidas, na economia,
na cultura e na sociedade, e também na educação. Nada foi programado. Tudo veio de
supetão. Repentinamente. Brutalmente.

Nada foi programado, mas tudo estava pronto. Há acontecimentos, alguns até de grande
importância, com pouco impacto no futuro. Há outros que, num instante, tudo mudam.
São “acontecimentos” que ocorrem em sociedades que já reconhecem a necessidade de
transições e dispõem dos “instrumentos” para concretizá-las (Nóvoa & Alvim, 2021). É
isso que se passa, hoje, com este acontecimento infeliz, a Covid-19. Em poucos meses,
deram-se transformações que, na normalidade dos tempos, teriam demorado décadas.

Desde o início do século XXI, vêm-se reforçando as tendências de crítica à escola,


sobretudo à escola pública e aos professores. Por um lado, por meio de uma dinâmica
crescente de retraimento da educação em espaços domésticos, protegidos, com as fa-
mílias a resguardarem os seus filhos da exposição pública e do contato com os outros
diferentes. Por outro lado, graças a uma expansão sem precedentes de uma “indústria
global da educação” (Verger, Lubienski, & Steiner-Khamsi, 2016), fortemente assente
no digital, com ofertas privadas, mas interessada sobretudo na produção de conteúdos,
materiais e instrumentos de gestão para a educação pública.

A Covid-19 deu um grande impulso a essas tendências que se apresentam, agora, como
uma “inevitabilidade” para o futuro. Com discursos atraentes, inovadores, empreen-
dedores, criativos, negam a herança histórica da escola e procuram fomentar uma edu-
cação esvaziada das dimensões públicas e comuns, pautada pelo ritmo do “consumismo
pedagógico” e do “solucionismo tecnológico”.

Muitos, seduzidos pelo canto dessas sereias, aderem acriticamente a modas e a um pa-
thos da novidade que é tudo, menos transformação. Outros, assustados, recusam qual-

95
quer debate, e querem imaginar o presente como um parêntese até que as coisas voltem
a um “normal” que imaginam feliz. Não nos deixemos encerrar nesta dicotomia entre o
“ilusionismo futurista” e a resignação. É preciso compreender a espessura do presente
e agir pela construção de uma outra escola, não pelo seu desaparecimento.

A questão digital merece de nós uma atenção especial. Não nos esquecemos das re-
flexões avisadas de Michel Serres quando, há quase dez anos, publicou a Polegarzi-
nha, a geração que habita o mundo teclando com os dedos. Depois de percorrer os três
grandes tempos históricos da educação e da pedagogia – a escrita, o livro e o digital
–, explica que as tecnologias obrigam a sair do formato espacial do livro e da página:

“Espaço de circulação, oralidade difusa, movimentos livres, fim das


classes classificadas, distribuições díspares, serendipidade da invenção,
velocidade da luz, novidade dos sujeitos e dos objetos, procura de uma
outra razão…: a difusão do saber já não pode ter lugar em nenhum dos
campus do mundo, ordenados, formatados página a página, racionais à
antiga, imitando os campos do exército romano” (Serres, 2012, p. 47).

Hoje, não é possível pensar a educação e os professores sem uma referência às tecnolo-
gias e à “virtualidade”. Vivemos conexões sem limites, num mundo marcado por fratu-
ras e divisões digitais. É preciso enfrentar com lucidez, e coragem, estas tensões: entre
um empobrecimento da diversidade e a valorização de diferentes culturas e modos de
viver; entre uma diminuição da privacidade e da liberdade e a afirmação de novas for-
mas de democracia e participação; entre a redução do conhecimento ao digital e a im-
portância de todo o conhecimento, humano e social.

Sabemos que o grande “mercado global da educação” vai continuar a crescer nos pró-
ximos anos. O que fazer? O mais importante é reforçar a esfera pública digital, desen-
volver respostas públicas na organização e “curadoria” do digital, criar alternativas
sólidas ao “modelo de negócios” que domina a internet, promover formas de acesso
aberto e de uso colaborativo. É com base nesses princípios que podemos imaginar uma
apropriação do digital nos espaços educativos e a sua utilização pelos professores, sem
cairmos no disparate de reproduzir “a distância” as aulas habituais ou na ilusão de que
as tecnologias são neutras e nos trazem soluções “prontas para usar”.

Pensar sem ceder ao imediatismo. Só conseguiremos enunciar novas possibilidades se


nos libertarmos da tirania do presente. Então, poderemos cumprir a nossa responsabi-
lidade perante a humanidade futura.

96
O texto parte de uma crítica a três ilusões perigosas:

Primeira – A ilusão de que educação está em todos os lugares e em todos


os tempos e acontece, “naturalmente”, num conjunto de ambientes, so-
bretudo familiares e virtuais.
Segunda – A ilusão de que escola enquanto ambiente físico acabou e, a
partir de agora, a educação terá lugar sobretudo “a distância”, com aces-
so a diferentes “orientadores” ou “tutores” das aprendizagens.
Terceira – A ilusão de que a pedagogia, enquanto conhecimento espe-
cializado dos professores, será substituída pelas tecnologias, “aumenta-
das pela inteligência artificial”.

Em alternativa a essas “ilusões”, utilizam-se três termos para salientar que a educação
implica sempre uma intencionalidade, obriga a um esforço de construção, de criação e
de composição das condições, dos ambientes e dos processos propícios ao estudo e ao
trabalho dos alunos. É esse esforço que define o papel dos professores.

Cada parte do texto sugere um andamento musical. Porque não há um único ser huma-
no neste planeta que não tenha relação com a música: “A maior parte da humanidade
não lê livros, mas canta e dança” (Steiner, 2006, p. 9). A música nos une e nos liberta.
Como a educação.

O título escolhido, Os professores depois da pandemia, inspira-se na conferência de


Theodor Adorno, A educação depois de Auschwitz, proferida em 1966 (ver Adorno,
2003). Dito de outro modo: como superar tragédias tão profundas e manter essa espe-
rança sem a qual não é possível educar? Eis a razão por que somos professores.

Como manter a esperança diante da “horrível recaída do humanismo na bestialidade”


(Zweig, 2015, p. 19)? O escritor busca e encontra na vida de Montaigne o sentido: ter
sido “ele próprio razoável, manter-se humano em um tempo de desumanidade, manter-
-se livre em meio à loucura das massas” (Zweig, 2015, p. 24).

A lucidez é a chave da liberdade. A máxima de Montaigne, “O homem de entendimento


não tem nada a perder”, se reatualiza na máxima de Zweig: “A loucura de seu tempo não
é uma calamidade enquanto você mantiver a sua lucidez” (2015, p. 26).

97
O que é a lucidez senão a capacidade humana do pensar? Em A vida do espírito, Hannah
Arendt (1971) evoca o pensar como faculdade que nos distingue e nos singulariza como
humanos. Escritora e testemunha ocular de um mundo de desumanização, Arendt evo-
ca a “necessidade urgente da razão”, entendida como a atividade do pensar, que se ali-
cerça pelo sentido e não pela cognição. O que nos humaniza não é mais conhecimento,
mais técnica, mais verdade, mas a busca de sentido para nossas ações.

No contexto de impossibilidade da experiência, é preciso, como nos adverte Jorge Lar-


rosa (2015), construir uma linguagem para a conversação, para que possamos elaborar
com os outros o sentido ou a ausência de sentido de nossa experiência. Elaborar o sen-
tido de nossa experiência é se colocar na tensão freiriana entre a denúncia de um pre-
sente cada vez mais intolerável e o anúncio de um futuro a ser criado por nós, mulheres
e homens (Freire, 1994). Acreditamos que só o podemos enunciar por meio de uma
linguagem para a conversação.

Primeiro movimento: Andante con moto

O papel dos professores na construção de um espaço público comum


(Andante con moto – Em ritmo do andar humano, agradável e compassado.
A educação está na cidade? Certamente. Mas não pode ceder aos ritmos da
“cidade”, ao frenesi de um presente permanentemente ocupado. A educa-
ção precisa da calma do tempo, com movimento. Talvez ouvir Schubert,
recordando George Steiner e a sua indignação: então alguns nazis ouviam
e tocavam, ao que parece de forma sublime, as suas obras e depois iam cum-
prir o “dever”, torturando e matando nos campos de concentração.)

A indignação de George Steiner diante de nazistas sensíveis ao som agradável de Schu-


bert e indiferentes aos horrores cometidos nos campos de concentração encontra eco
nas indagações de Hannah Arendt, diante do julgamento do nazista Eichmann, ocor-
rido no ano de 1961. Ao acompanhar o processo de um dos principais responsáveis pela
organização do extermínio de judeus na Alemanha, Arendt se indigna não apenas pela
monstruosidade dos atos de Eichman, mas por se ver diante de um homem “absoluta-
mente vulgar”, que não apresentava “nenhum sinal de convicções ideológicas firmes
ou de motivos maldosos específicos”. O que o caracterizava “não era a estupidez, mas a
irreflexão” (Arendt, 1971, p. 14).

98
A ausência de pensamento, na análise de Arendt, não se relacionava à ausência de co-
nhecimento, mas à incapacidade de refletir sobre as atrocidades cometidas. A “banali-
dade do mal” estava não apenas na monstruosidade daquelas atrocidades, mas na au-
sência da faculdade de pensar. A partir de Arendt e de Steiner, perguntamos: é possível
ouvir Schubert em ritmo de andar humano? É possível parar e pensar, produzir sentido
sobre o que nos acontece?

A pandemia da Covid-19 parou o mundo. Fechou as escolas. Mas foi capaz de pausar a
indústria global da educação, o consumismo pedagógico e a privatização da educação?
A pausa no frenesi dos sujeitos passantes da cidade, que se veem, mas não se olham,
se esbarram, mas não se encontram, foi acompanhada pela pausa do pensar a escola e
de produzir outros sentidos sobre sua finalidade educativa diante da fragmentação dos
laços sociais e do empobrecimento da faculdade dos sujeitos de “intercambiar experi-
ências” (Benjamin, 1996)?

Olhando retrospectivamente, quando, ao final do século XIX, se consolidam os gran-


des sistemas de ensino, a escola torna-se obrigatória. As sociedades atribuem a uma
instituição especializada a responsabilidade principal da educação das novas gerações,
pelo menos no que diz respeito à aquisição das bases da cultura e do conhecimento. A
escola funciona “isolada” da sociedade e, apesar de inúmeras tentativas de ligação com
as famílias e as comunidades, assim se manteve ao longo do século XX. A escola pôde,
desse modo, cumprir a sua missão, e também proteger as crianças, sobretudo no que
diz respeito ao trabalho infantil.

Este contrato tornou-se obsoleto à medida que as famílias deram mais atenção à edu-
cação escolar e as sociedades adquiriram maior permeabilidade e conectividade. Já no
relatório da UNESCO, coordenado por Edgar Faure, Aprender a ser, recomendava-se
a utilização “para fins educativos de todos os tipos de instituições existentes, educacio-
nais e outras, e as múltiplas atividades econômicas e sociais” (1972, p. 207).

Progressivamente, a ideia de uma “aprendizagem ubíqua”, isto é, que acontece em todos


os espaços e em todos os tempos, impôs-se no imaginário educativo (Gros, Kinshuk, &
Maina, 2016). A junção entre os princípios de uma educação lifelong (ao longo da vida)
e lifewide (ao largo da vida), alimentada pela valorização de todas as formas de educação
e aprendizagem (formais, informais, experienciais, em situação de trabalho etc.), deve
ser vista, também, no âmbito de uma importante mudança da demografia e do trabalho.
A serem verdade as projeções de uma esperança de vida acima dos 100 anos e de uma
diminuição do trabalho devido aos processos de automatização, que consequências po-
deremos retirar para a educação? Será que, pela primeira vez na história, iremos con-

99
ceber a educação não como preparação para a vida e para o trabalho, mas como uma
atividade inerente à condição humana? Será que a educação deixará de ser pensada,
primordialmente, para as primeiras idades, mesmo prolongando-se “ao longo da vida”,
e passará a desenvolver-se numa dinâmica intergeracional?

De modo caótico, dramático, a Covid-19 tornou inevitáveis essas perguntas, ao elimi-


nar, em poucos dias, as fronteiras escolares erguidas nos dois últimos séculos. Foi um
choque inédito na história da educação. Por agora, prevalecem as ilusões, animadas so-
bretudo pela possibilidade de a escola ser substituída pela “casa” e pelas “tecnologias”.
Citemos o jogo de palavras de François Dubet: “A escola na escola é melhor do que a
escola em casa e do que a escola digital” (2020, p. 111).

Primeiro, é preciso dizer que a “casa” é o contrário da “escola”. Em casa estamos entre
iguais, na escola entre diferentes: e o que nos educa é a diferença. Em casa estamos num
ambiente privado, na escola, num ambiente público. Em casa estamos num lugar que é
nosso, na escola, num lugar que é de muitos: e ninguém se educa sem iniciar uma via-
gem na companhia de outros. A grande vantagem da escola é ser diferente da casa. Por
isso é tão importante a colaboração entre a escola e as famílias, porque são realidades
distintas e ganham, uma e outra, com essa complementaridade.

Segundo, é preciso dizer que as tecnologias, por si só, não educam ninguém. É difícil
evitar uma das frases mais famosas do século XX – “o meio é a mensagem”. Na época, a
referência dirigia-se aos “meios de comunicação” e Marshall McLuhan acertava no alvo:
“A mensagem de qualquer meio ou tecnologia é a mudança de escala, ritmo ou padrão
que introduz na vida humana” (1969, p. 21). Hoje, a frase ganha uma outra dimensão,
em face das possibilidades infinitas do digital. Ninguém, no seu perfeito juízo, poderá
negar a sua importância. Mas as questões tecnológicas não são apenas tecnológicas,
são pedagógicas, e políticas. A nossa pergunta é a mesma de Gert Biesta, ainda antes
da pandemia: “Chegou a hora de desistir da escola moderna, e das suas promessas, en-
tregando-a nas mãos da Pearson, do Google e de outros capitalistas educacionais, ou
devemos tentar uma vez mais e, nesse caso, o que devemos fazer?” (2019, p. 657).

As ilusões da “casa” e das “tecnologias” alimentam-se mutuamente e transportam uma


terceira ilusão: com acesso ao digital e graças a acompanhamento por parte dos pais,
ou de algum “tutor”, as aprendizagens aconteceriam de modo natural ou espontâneo. É
uma ilusão perigosa e errada. Em um dos grandes livros da pedagogia contemporânea,
La mystification pédagogique, Bernard Charlot explica que “a educação não se pode
fazer por simples imersão da criança no meio social”, pois é necessária “uma mediação
entre a criança e os modelos sociais” (1976, p. 262).

100
O contrato entre a escola e a sociedade, estabelecido no final do século XIX, tem de ser
revisto. A Covid-19 já o revogou. É preciso pensar o que designamos por capilaridade
educativa, metáfora que procura traduzir uma disseminação da educação por diferentes
espaços e tempos. Mas essa capilaridade deve assentar em duas bases: o comum e a con-
vivialidade, melhor dizendo, a construção do comum e a construção da convivialidade.

O filósofo francês Alain escreveu, há cem anos, que “a cultura comum faz florescer as
diferenças” (1990, p. 58). A afirmação merece ser revisitada, neste mundo de fragmen-
tações e separações, neste tempo marcado pelo abrigo em “identidades fechadas” e em
“espaços domésticos”. A educação deve ser vista, acima de tudo, como uma forma de
produzir o comum, tudo aquilo que, valorizando as diferenças, nos faz pertencer a uma
mesma humanidade.

Aprender e estudar em comum é a melhor forma de promover uma vida em comum, uma
sociedade convivial. Para isso, precisamos de uma educação pública que nos permita ir
além do espaço que já habitamos, e chegar mais longe. Não há educação sem o desejo de
poder ser outro alguém. A educação não serve para nos fecharmos no que “já somos”,
serve para aprendermos a começar o que “ainda não somos”.

Chegamos, assim, à nossa primeira tese: para levantar o espaço público comum da
educação são necessários construtores. Precisamos de professores que assumam ple-
namente essa missão. São eles que, em proximidade com as famílias, os poderes locais,
as entidades públicas e privadas, podem construir as condições para uma capilaridade
educativa baseada no comum e na convivialidade.

Este espaço público comum só terá sentido no quadro de uma forte participação social,
com capacidade de deliberação. Não se trata, apenas, de consultar, mas de organizar
processos de decisão sobre as políticas de educação. Nada se fará sem mudanças de
fundo na vida familiar, social e do trabalho. Na verdade, o contrato celebrado no fi-
nal do século XIX destinava-se, também, a libertar o tempo das famílias e a uma nova
organização do trabalho. A Covid-19 revelou, com nitidez, que toda a vida familiar e
econômica é regulada pelo ritmo da escola. Construir um novo contrato entre a escola
e a sociedade implica, inevitavelmente, novas articulações entre os tempos familiares,
sociais e laborais. Mas não é isso mesmo que esperamos para depois da pandemia?

Tudo deve ser feito sem lançar as crianças na agitação dos tempos que correm. Por isso,
quisemos que esta parte do texto fosse lida ao som de um andante con moto. Movimen-
to, sim, mas ao ritmo humano, porque o tempo da escola é lento, precisa de um passo
seguro, pausado. A escola só vale a pena se for diferente da sociedade.

101
Segundo movimento: Allegro moderato

O papel dos professores na criação de novos ambientes escolares


(Allegro moderato. A sonata n.º 2 para violoncelo e piano de Heitor Villa-
-Lobos apresenta um andamento ligeiro e alegre, passando de moderato a
cantabile a scherzando e finalmente a vivace. É uma bela maneira de pen-
sar os ambientes escolares: moderados, “cantantes”, lúdicos e vivos. Sem
a construção de novos ambientes escolares, os esforços de transformação
das práticas pedagógicas estão condenados ao fracasso.)

No primeiro movimento apresentamos o contrato entre a escola e a sociedade estabele-


cido no final do século XIX. Nessa mesma época, e como parte desse contrato, consoli-
dou-se uma forma ou modelo escolar que, nos seus traços essenciais, mantém-se ainda
hoje… ou mantinha-se até a Covid-19.

Todos reconhecemos facilmente este modelo cada vez que entramos numa escola: um
edifício com características próprias, constituído sobretudo por salas de aula de di-
mensões semelhantes, nas quais um professor dá aulas a grupos de alunos de idades
próximas. Esse retrato grosseiro destina-se apenas a ilustrar um ambiente que, na es-
sência, prevalece nas escolas de todo o mundo entre o final do século XIX e o princípio
do século XXI.

Esse ambiente organiza uma determinada maneira de “fazer escola”. Há atividades


que se adequam a esse ambiente, outras não. É adequado para dar aulas, para cum-
prir um determinado programa de ensino, para um trabalho individual dos professo-
res. Não é adequado para estudar e trabalhar com os outros, para realizar atividades
diferentes, para fazer pesquisa, para diálogo e cooperação, para um trabalho colabo-
rativo dos professores.

Há muitas tendências que apostam na desintegração das escolas. Seria um erro. As


dinâmicas de “desescolarização”, nas suas diversas e distintas modalidades, são sedu-
toras, mas, se fossem concretizadas, traduzir-se-iam em maiores desigualdades e in-
justiças sociais. A escola, com todos os seus defeitos e limites, é ainda uma das poucas
instituições que pode proteger os mais pobres e vulneráveis.

Para cumprir essa promessa, a escola precisa de mudanças profundas. O modelo es-
colar está no fim. Precisamos de uma metamorfose da escola, de uma transformação
da sua forma. O mais importante é construir ambientes escolares propícios ao estudo

102
e ao trabalho em conjunto. Aprender não é um ato individual, precisa dos outros. A
autoeducação é importante, mas não chega. O que sabemos depende, em grande parte,
do que os outros sabem. É na relação e na interdependência que se constrói a educação.

Estamos falando de arquitetura? Certamente. Precisamos desenhar ou remodelar os


edifícios escolares com a mesma ousadia e criatividade com que foram pensados no
século XIX. Agora, têm de ser espaços abertos, adaptáveis e flexíveis, com condições
para estudo individual e em grupo, com lugares para pesquisa, para uso das tecnolo-
gias digitais, para uma relação de trabalho entre alunos e entre alunos e professores. É
provável que esses novos edifícios tenham espaços para uso público e espaços para uso
exclusivo de professores e alunos. Há milhares de exemplos, em todo o mundo, que vale
a pena conhecer.

Estamos falando de currículo? Certamente. A matriz curricular que predominou no


século XX está esgotada. Se olharmos para as dinâmicas contemporâneas da ciência e
da arte, facilmente encontraremos novos entrelaçamentos disciplinares. O ensino deve
organizar-se por grandes temas (Opertti, 2021). As metáforas do laboratório e do ate-
lier podem ajudar-nos a definir os novos ambientes escolares. No laboratório, trabalha-
-se em conjunto, estuda-se a realidade, resolvem-se problemas. No atelier, dá-se asas à
expressão e à imaginação, cria-se, antecipa-se o futuro. Há um erro crasso em certos
desenvolvimentos tecnológicos. Dizem-nos que, em breve, será possível falar línguas
diferentes sem a necessidade de aprender línguas ou fazer contas sem a necessidade de
aprender aritmética. Talvez. Mas não nos esqueçamos de que a aprendizagem de uma
disciplina não se destina apenas a adquirir uma “competência”; destina-se, acima de
tudo, a formar um ser humano. E esse processo não pode ser substituído por um chip.

Estamos falando de pedagogia? Certamente. Nas últimas décadas, os discursos sobre


a aprendizagem tornaram-se dominantes. Toda a educação parece reduzir-se à apren-
dizagem, e a uma aprendizagem mensurável: os alunos são aprendizes, as escolas são
ambientes de aprendizagem, os professores são facilitadores de aprendizagem… Mas é
preciso dizer que, se os seres humanos aprendem, é quase sempre porque são ensina-
dos. Não desvalorizemos, pois, os dois termos de uma mesma equação. Sem professo-
res, a nossa educação será muito mais pobre e limitada.

Os novos ambientes escolares não surgirão espontaneamente. Os professores têm um


papel essencial na sua criação. Graças ao seu conhecimento próprio e à sua experiên-
cia profissional, têm uma responsabilidade maior na metamorfose da escola. Para isso,
devem apelar às suas capacidades de colaboração e construir pontes, dentro e fora da
profissão, na escola e na sociedade.

103
Aos que acreditam numa educação inteiramente digital, dizemos que tal não é possível,
nem desejável, pois nada substitui a relação humana. Os meios digitais são essenciais,
mas não esgotam as possibilidades educativas. Grande parte das nossas vidas e cultu-
ras, da nossa criatividade, das histórias, das produções efêmeras e espontâneas, dos
laços e relações entre nós, dos nossos sonhos, não estão na internet. Há um patrimônio
humano, impossível de digitalizar. Sem ele, a educação ficaria reduzida a uma caricatu-
ra digital. Felizmente, as novas gerações de professores já são digitais, e conhecem bem
as possibilidades e os limites das tecnologias. Sem ilusões e sem fantasmas.

Aos que se referem aos professores como “práticos”, dizemos que a dimensão prática é
fundamental, mas como práxis, sempre em diálogo com a teoria. Dito de outro modo: é
necessário que nos tornemos conscientes daquilo que sabemos e que sejamos capazes
de um trabalho de sistematização, de escrita e de partilha. Para isso, a colaboração é
imprescindível. Encontra-se aqui a chave da nova profissionalidade docente.

Com essa consciência, com essa capacidade coletiva de ação e reflexão, os professores
podem ser criadores dos novos ambientes escolares. Não se trata de percorrer uma terra
incognita. Em todo o mundo, milhares de professores têm avançado nas direções que
aqui se apontam. Temos de conhecê-los, de estudá-los, de conversar com eles, para as-
sim nos sentirmos mais seguros e confiantes em relação ao futuro.

Como na música, há várias formas de alegria. Como no conto de Guimarães Rosa, “As
margens da alegria” (2005), a alegria está no minúsculo e no acontecimento que eclode
às margens do movimento acelerado da grande cidade, que se anuncia com sua narrati-
va de futuro presentificada no ruído das máquinas e nas monumentais construções que
violentam a paisagem.

A escola tem de ser um espaço de abertura (reencontramos aqui a capilaridade educa-


tiva), mas, também, de recolhimento. O tempo escolar é diferente do tempo social. A
escola tem de “desacelerar” e de “descoincidir” (Jullien, 2020). Os novos ambientes
escolares têm de permitir às crianças e aos jovens experiências que, de outro modo,
nunca teriam tido. Por exemplo, o silêncio e a escuta, num tempo em que só ouvimos o
som das nossas palavras. Por exemplo, a compreensão do outro, num tempo de tantas
“proclamações identitaristas”. Por exemplo, a capacidade de nos “desconectarmos”
para, assim, descobrirmos que o digital não esgota toda a existência humana. Ainda
temos tempo?

104
Terceiro movimento: Molto vivace

O papel dos professores na composição de uma pedagogia do encontro


(Molto vivace – O último movimento teria de traduzir a vivacidade
do encontro. Recorde-se uma das passagens da 9.ª Sinfonia de Bee-
thoven, interpretada pela West-Eastern Divan Orchestra, fundada
por Daniel Barenboim e Edward Said para juntar músicos de países
do Oriente Médio. A nona terá sido uma das primeiras sinfonias a
dar lugar de destaque à voz humana e esta orquestra é um exemplo
notável do diálogo e da criação em comum. Eis os dois elementos
que fundam uma pedagogia do encontro.)

No primeiro movimento, referimos a necessidade de um novo contrato entre a escola e a


sociedade. No segundo, defendemos a criação de novos ambientes escolares. Agora, no
terceiro movimento, procuraremos explicar o sentido de uma pedagogia do encontro.

A educação funda-se sempre em dois gestos: adquirir uma herança e projetar um fu-
turo. Na conclusão do seu livro mais recente, Éducation ou barbarie, Bernard Charlot
explica que a educação é humanização, o que significa “socialização e entrada numa
cultura” e “singularização e subjetivação”: “Pelo simples facto de nascer na espécie
humana, todo o ser humano tem direito à humanização, portanto à entrada num grupo
social e numa cultura e a tornar-se um sujeito singular” (2020, p. 319). O erro de mui-
tas correntes pedagógicas é desvalorizar um desses gestos.

Há meio século, Olivier Reboul dizia-nos que a educação é feita de dois gestos: inte-
grar cada indivíduo, de modo duradouro, numa comunidade tão vasta quanto possível;
e dar-nos a possibilidade de ir mais longe, por meio do conhecimento científico, artís-
tico, literário. A educação do ser humano é determinada por duas dimensões: ser livre
e não estar só (Reboul, 1980, p. 113). É nessa tensão que se define uma pedagogia do
encontro, no seu sentido mais amplo. Para apresentá-la, e mostrar como os professores
são centrais para a sua composição, deixamos seis apontamentos inacabados.

Primeiro. A pedagogia é sempre uma relação humana. Temos necessidade dos outros
para nos educarmos. Os professores têm um papel fundamental na criação das melho-
res condições para que essa relação tenha lugar. O digital pode ser útil para manter os
laços, mas nunca substituirá o encontro. Porque o sonho é um elemento central da edu-
cação, e as máquinas talvez possam pensar, e até sentir, mas nunca poderão sonhar. Mas

105
também porque a educação implica um vínculo que transforma, ao mesmo tempo, alu-
nos e professores. E, pela internet ou “a distância”, essa possibilidade fica diminuída.

Segundo. Não há ensino sem conhecimento, sem um encontro intenso, por vezes duro e
difícil, com o conhecimento. Mas a relação pedagógica faz-se também “com perguntas
e dedos no ar, desentendimentos, sobrancelhas franzidas, sussurros, suspiros, olhares
de surpresa, risos, tédio que os alunos podem manifestar de maneira mais ou menos
expressiva” (Calafat, 2020, p. 46). Para um professor, não há nada mais importante do
que saber lidar com a imprevisibilidade de cada momento, transformando cada inciden-
te ou circunstância numa ocasião de aprendizagem.

Terceiro. A pedagogia não pode ser a repetição monótona do que já conhecemos,


mas deve ser, como a pesquisa, um gesto de procura, de descoberta, de curiosidade.
Como bem explica Gilles Deleuze (2003), a docência organiza-se a partir daquilo
que procuramos e não daquilo que sabemos. É nesse sentido que todo ensino é ex-
perimental. Pode haver dois livros iguais, mas não duas formas iguais de lê-los. Pode
haver dois programas de ensino iguais, mas não duas formas iguais de dar as aulas.
Essa ideia alerta-nos contra as tendências de um “consumismo” que domina a “in-
dústria global de educação”.

Quarto. O encontro não se dá com um “conhecimento acabado”, pronto, concluído. A


ciência revê os conhecimentos a uma velocidade que os programas escolares não con-
seguem acompanhar. As didáticas, que ainda não se libertaram da ideia de “transpo-
sição”, têm dificuldade em reinventar-se. Por isso, deveríamos ser capazes de ensinar
todas as disciplinas como se fossem história (Postman, 1981) ou, melhor dizendo, de dar
historicidade às diversas disciplinas, da Matemática às Ciências, da Filosofia às Artes.
A compreensão das origens e da evolução dos diferentes conhecimentos é fundamental
para que os alunos contextualizem e se apropriem das matérias que lhes ensinamos.

Quinto. As neurociências têm dado contribuições muito importantes para perceber o


funcionamento do cérebro e os processos de aprendizagem. Por vezes, infelizmente,
alimentam uma visão redutora e até alguns equívocos. Mas, nas suas melhores páginas,
explicam que “a consciência é uma grande peça sinfônica”, que as emoções têm valor
cognitivo e que não é possível separar sentir e saber: “O universo dos afetos constitui o
alicerce para essa inteligência mais elevada que as mentes conscientes vieram gradual-
mente a desenvolver, a expandir e a impor” (Damásio, 2020, p. 253).

Sexto. A pedagogia é um processo conjunto de construção das aprendizagens, mas é


também uma forma de pertencimento mútuo. O princípio da reciprocidade é central

106
para pensar e praticar uma pedagogia do encontro. Como escreve Boris Cyrulnik
(2021), adoecemos quando somos privados da presença do outro. A empatia, enquanto
capacidade de nos colocarmos no lugar do outro e de sentirmos com ele, é um elemento
fundamental da educação.

Esses seis apontamentos inacabados constituem outros tantos desafios para os profes-
sores. Pode haver encontro no espaço virtual? Certamente que sim, desde que se valo-
rize a dimensão comum, a construção conjunta das aprendizagens. O digital não é ape-
nas mais uma “tecnologia”; instaura uma nova relação com o conhecimento e, por isso
mesmo, uma nova relação pedagógica, redefinindo o lugar e o trabalho dos professores.

O princípio da conectividade, e da urgência da conectividade, estabelece novas for-


mas de ação de professor e uma nova relação com o conhecimento profissional docente
(Nóvoa, 2017). Integrar o digital no trabalho docente é mais do que incorporar uma
“tecnologia”, é reconhecer as reverberações que os novos modos de ser, de agir e de
pensar – constituídos na era digital – provocam na escola e ser capaz de integrá-los
como referências fundamentais no reposicionamento dos professores.

Nesse sentido, a questão da autoria pedagógica do professor é decisiva para pensar as


mudanças na educação e na escola. É muito vulgar a afirmação de que, hoje, qualquer
um de nós traz no bolso, no seu celular, mais informações, dados e imagens do que a
ciência acumulou ao longo de séculos. Como trabalhar essa infinidade de “conheci-
mentos”? Como compreender a sua constituição? Como separar o verdadeiro do falso,
o real do fictício, os fatos das opiniões? Numa palavra, como aprender a pensar, saben-
do que nunca o poderemos fazer sozinhos? É para isso que precisamos dos professores,
para comporem uma pedagogia do encontro.

Coda
A situação provocada pela Covid-19 obrigou-nos a dar respostas imediatas, urgentes,
sem a necessária preparação e reflexão. O acesso indiscriminado aos meios digitais foi a
solução possível para manter uma certa “continuidade educativa”, para não cortar todos
os laços com os alunos e para proteger a saúde pública. Mas este não pode ser o futuro.

As tentativas dominantes de impor novas lógicas educativas baseiam-se em três eixos.


Por um lado, um retraimento em espaços domésticos, com um apelo forte a tendências
individualistas de consumo da educação.

107
Por outro lado, uma redução da educação às aprendizagens, isto é, a tudo aquilo que
pode ser medido e comparado, o que Gert Biesta (2015) designa por “indústria global
das medidas em educação”. Finalmente, o eixo que liga as tendências de privatização
aos grandes gigantes do digital, que se apresentam, agora, como os “salvadores” da
educação pública.

Diane Ravitch (2020) é uma das autoras que, de forma mais sistemática, tem denun-
ciado essas “novas” lógicas educativas, desenvolvidas por “bilionários imprudentes”
que têm procurado “reinventar” e “redesenhar” a educação nos Estados Unidos da
América, por meio da privatização, do empreendedorismo e do digital. Estão vendendo
o “sonho” de uma educação cada vez mais individualizada, recorrendo a sofisticadas
soluções tecnológicas. As escolas e os professores seriam dispensáveis ou, pelo menos,
teriam um papel secundário na educação do futuro.

O nosso texto é escrito contra essa visão. Nesse sentido, pode ser lido como um mani-
festo em defesa da valorização e da transformação da educação pública e do triplo papel
dos professores na construção de um espaço público comum da educação, na criação de
novos ambientes escolares e na composição de uma pedagogia do encontro.

Ao percorrer a história da educação, desde o final do século XIX até os nossos dias, qui-
semos “recordar” os desafios que temos pela frente. Se houver uma ruptura no projeto
histórico da escola, não perderemos apenas uma geração, perderemos um dos patrimô-
nios mais importantes da humanidade. O que nos mobiliza não é anunciar a morte desta
escola, é enunciar o surgimento de uma outra escola.

Nos próximos tempos será decidida grande parte do futuro da educação. Não podemos
ficar indiferentes e permitir, com a nossa ausência ou alheamento, que se imponham,
como se fossem “naturais” e “inevitáveis”, visões mercantilistas e consumistas da edu-
cação. Não é só o futuro da escola que está em jogo, é o futuro da nossa humanidade co-
mum. Nunca, como hoje, foi tão urgente uma educação que contribua para a democrati-
zação das sociedades, para a diminuição das desigualdades no acesso ao conhecimento
e à cultura, para a construção de formas participativas de deliberação: porque decidir
não é apenas escolher, é também produzir a obrigação de agir e de respeitar a decisão
tomada coletivamente em nome de um interesse comum (Urfalino, 2021).

Sabemos, pelo menos desde John Dewey, que uma democracia é mais do que uma forma
de governo, “é, primacialmente, uma forma de vida associada, de experiência conjunta
e mutuamente comunicada” (1952, p. 126). A escola deve ser um espaço de liberdade,
onde se aprende “a fabricar o que é comum” (Meirieu, 2020).

108
Nesse sentido, sem cairmos em ilusões ingênuas, temos de responder “sim” à pergunta
formulada pelos nossos colegas François Dubet e Marie Duru-Bellat (2020): A escola
pode salvar a democracia?

O mais recente livro de Bruno Latour, Où suis-je?, que tem um curioso subtítulo, Li-
ções do confinamento para uso dos terrestres, constrói-se a partir de uma releitura da
Metamorfose, de Kafka: “Estamos a passar de uma mutação desesperante para uma
metamorfose mais prometedora. É certo que asfixiamos por detrás das máscaras, mas
iremos finalmente, talvez, assumir uma outra forma” (Latour, 2021, p. 101). Somos, to-
dos, “corpos engendrados e mortais que devemos as nossas condições de habitabilida-
de a outros corpos engendrados e mortais de todos os tamanhos e de todas as origens”
(Latour, 2021, p. 127).

É uma bela maneira de pensar o comum em educação. Todos dependemos de todos.


Todos nos devemos inspirar mutuamente. As ideias que aqui trouxemos fazem parte,
já hoje, de um acervo de experiências e de realidades que têm lugar no mundo. Não
precisamos inventar nada. Precisamos apenas, e já não é pouco, conhecer o que se faz,
enunciar o trabalho de professores nos mais diversos lugares, debater, partilhar, nos
envolver coletivamente na produção de futuros.

Com a pandemia, o futuro mudou muito. A tragédia da Covid-19 acordou-nos? Ainda


bem. Neste presente incerto, precisamos afirmar que há sempre a possibilidade de ou-
tros futuros. Nem tudo se esgota no imediatismo do presente. Só o ser humano sabe
que há futuro. É isso que nos distingue de todos os outros seres vivos (Innerarity, 2011).
Voltar à normalidade? Não. Este é o tempo de reinventar o futuro, isto é, de construir
coletivamente uma outra educação.

109
110
Capítulo 9

E depois da pandemia?
Recuperar ou transformar?
Dia Mundial do Professor 2021
Os professores estão no centro da recuperação educacional
(pós-pandemia)

Levei quarenta anos a explicar coisas aos alunos.


Ficou-me assim o vício de explicar, mesmo o inex-
plicável. Precisava agora de outros quarenta anos
para desaprender a explicação do que expliquei.
Vergílio Ferreira

111
Este texto foi escrito em plena pandemia e procura pensar as respostas
educativas pós-pandemia. O argumento principal é que se impõe uma
dinâmica de transformação, pois não basta “recuperar”, com o regres-
so a uma “normalidade” escolar que já não servia antes e serve menos
ainda agora.
Referem-se algumas lições aprendidas durante a pandemia, nomeada-
mente no que diz respeito aos professores, à capacidade de iniciativa das
escolas e à construção de novos ambientes educativos.
Defende-se que “a escola depois do modelo escolar”, isto é, a escola no
seu processo de transformação, deve: i) valorizar a celebração de um novo
contrato social; ii) repensar a estrutura organizacional da escola; iii) ela-
borar novas propostas pedagógicas.
Uma primeira versão deste texto foi publicada, em coautoria com Yara Al-
vim, na revista Prospects (Vol. 49, 2020, pp. 35-41), com o título Nothing
is new, but everything has changed: A viewpoint on the future school.

112
E depois da pandemia?
Recuperar ou transformar?
Abertura
Repensar o modelo escolar
Neste texto defende-se a necessidade de transformar um modelo escolar que, edificado
no século XIX, atravessou o século XX e chegou, com sinais de fragilidade, ao século
XXI. A pandemia tornou inevitável uma transformação que, há muito, era sentida como
necessária. Não basta voltar a uma “normalidade” medíocre. É preciso transformar. E
nada se fará sem a participação dos professores, com iniciativa e liberdade.

No decurso das últimas décadas, muito se tem escrito sobre o fim do modelo escolar e
a necessidade de repensar as bases institucionais da escola (Nóvoa, 2006). Em traços
grosseiros, interessa assinalar três dimensões desse modelo, fixadas no século XIX e
que, hoje, precisam ser repensadas:

Primeira – A celebração de um contrato social que atribui a sistemas


especializados de ensino o direito e o dever de promover a escolarização
das crianças e dos jovens.
Segunda – A consolidação de uma forma organizacional centrada num
espaço escolar em salas de aula e num tempo horário fatiado de hora
em hora.
Terceira – A consagração da lição como base de uma pedagogia na qual
um professor dá aulas a uma turma relativamente homogênea de alunos.

Apesar de simplista, e quase caricatural, essa descrição permite identificar os três pila-
res da transformação ou da metamorfose da escola (Nóvoa, 2020). O século XX foi fér-
til em debates e inovações pedagógicas, mas o modelo escolar resistiu quase incólume.
Pelo menos, até a pandemia. Agora, estamos perante a sua inevitável transformação.

113
E, de repente, a pandemia
No início de 2020, o mundo foi surpreendido pela Covid-19. De repente, o que era tido
como impossível tornou-se realidade: diferentes espaços de aprendizagem, sobretudo
em casa; diferentes horários de estudo e de trabalho; diferentes métodos pedagógicos,
sobretudo por meio do ensino remoto; diferentes procedimentos de avaliação etc. A
necessidade impôs-se à inércia, ainda que com soluções frágeis e precárias.

Ao longo do triênio 2020-2022, assistimos à maior transformação da história da edu-


cação e da escola. Um processo caótico, desorganizado, confuso, que não sabemos
como terminará, mas que trará, necessariamente, mudanças profundas à escola e aos
seus modelos de organização.

A pandemia veio reforçar tendências que se vinham manifestando nas últimas déca-
das, apontando a “morte da escola” e a sua substituição por espaços familiares e comu-
nitários com forte acesso às tecnologias digitais. São tendências que, de modo geral,
acentuam uma perspectiva consumista da educação, assumida sobretudo como bem
privado. Vale a pena referir, brevemente, duas dessas tendências.

Por um lado, um conjunto díspar de referências à transição digital, à inteligência ar-


tificial ou às “máquinas de ensino”, que apelam a novas formas de aprendizagem cada
vez mais “personalizadas”. Um autor como Laurent Alexandre acredita que o futuro
passa por uma cada vez maior “individualização do ensino por meio de uma utilização
crescente das tecnologias digitais ampliadas pela inteligência artificial” (2019, p. 203).

Essa tendência estava pronta para responder à situação de emergência criada pela pan-
demia, por meio da mobilização de plataformas e de materiais de ensino disponíveis
em linha. Em certo sentido, era a oportunidade que estavam esperando. Porém, seria
trágico, para a dimensão pública da educação, para a autonomia das escolas e para a
profissionalidade docente, se as respostas dadas na urgência da crise fossem o pretexto
para instituir uma normalidade educativa desse tipo.

Por outro lado, um conjunto de autores e de cientistas que, nas últimas décadas, têm
promovido as chamadas “ciências da aprendizagem” (learning sciences). Os estudos
sobre o cérebro e as aprendizagens constituem um poderoso universo simbólico, refor-
çando a ideia de que é possível encontrar uma resposta personalizada para cada criança
e que essa resposta pode ser dada num espaço doméstico ou familiar. Essa tendência
também estava pronta para responder à situação de emergência criada pela pandemia,

114
com muitas famílias recolhendo-se em espaços protegidos e confinados e procurando
respostas individualizadas para os seus filhos. Porém, seria trágico que essas práticas
se perpetuassem no tempo, pois a educação exige uma forte relação humana e não se faz
em contextos de isolamento e de “distanciamento social”.

As propostas desses grupos, apoiados numa cada vez mais poderosa “indústria global
da educação”, foram “naturalmente” assumidas durante a pandemia, pois parecia não
haver qualquer outra alternativa. Mas, paradoxalmente, a pandemia chamou também
a atenção para a importância das interdependências, das relações, dos vínculos e das
emoções como elementos essenciais do processo educativo.

O apelo a uma “personalização” das aprendizagens em espaços “domésticos”, recor-


rendo-se a uma panóplia de meios digitais, conduz a uma desintegração da escola, em
particular da escola pública, onde as crianças se educam num espaço comum. As tecno-
logias fazem parte da nossa vida, do dia a dia das nossas crianças, mas a educação dá-se
sempre num contexto de relação humana. A educação não é apenas um ato individual,
é uma dinâmica de aprendizagem com os outros. Ninguém se educa sozinho. Admitir
que a educação vai passar a ser feita unicamente a distância seria perder a dimensão hu-
mana da relação e do encontro. Não se pode conhecer sem sentir. Não se pode aprender
sem emoção, sem empatia. Não nos podemos educar sem os outros. A transformação do
modelo escolar não pode servir para diminuir, mas antes para reforçar a educação como
bem público e comum.

Lições aprendidas durante a pandemia


Retomemos as três dimensões do modelo escolar assinaladas no início para avaliar, ge-
nericamente, as respostas educativas durante a pandemia.

Primeira – De modo geral, a resposta ao nível dos sistemas educati-


vos foi frágil e inconsistente. Os ministros e as autoridades públicas
ficaram muitas vezes dependentes de plataformas e de conteúdos
disponibilizados por empresas privadas, não sendo sequer capazes
de assegurar o acesso digital a todos os alunos.
Segunda – A resposta ao nível das escolas foi, via de regra, bastan-
te melhor. Por meio das suas direções, promoveram soluções mais
adequadas, sobretudo quando conseguiram uma boa ligação com as
famílias e o apoio das autoridades locais. Percebeu-se bem a impor-
tância dos laços de confiança entre as escolas, as famílias e os alunos.

115
Terceira – As melhores respostas vieram dos professores que, por
meio de dinâmicas de colaboração, conseguiram promover propos-
tas robustas, com sentido pedagógico e preocupações inclusivas.
Mais do que nunca, ficou claro que os professores são essenciais
para o presente e o futuro da educação.

Inúmeras publicações, sobretudo da responsabilidade de organizações internacionais


como a Unesco, a OCDE ou a ONU, descreveram as respostas dos países à pandemia
(ver o site da UNESCO, https://www.unesco.org/en/covid-19/education-response).
Talvez as três lições mais importantes a retirar sejam a importância dos professores, da
capacidade de iniciativa das escolas e da criação de novos ambientes educativos.

Os professores. A pandemia tornou evidente que o potencial de resposta está mais nos
professores do que nas políticas ou nas instituições. Professores bem preparados, com
liberdade, trabalhando em conjunto, dentro e fora do espaço escolar, em ligação com
as famílias, são sempre a melhor garantia de soluções oportunas e adequadas. Depois
de várias décadas de certa degradação do seu prestígio, os professores parecem, agora,
estar sendo mais valorizados e considerados pela sociedade. É um tempo importante
para a afirmação de novas dinâmicas de profissionalidade docente.

Capacidade de iniciativa. As escolas devem funcionar com mais autonomia e capacida-


de de iniciativa. As estruturas uniformes e rígidas têm os dias contados. São necessá-
rias soluções diversas, diferentes projetos educativos, escolares e pedagógicos. O mais
importante não virá “de cima”, por meio de políticas centralizadas, normalizadas, mas
“de baixo”, de um conjunto de experiências e de projetos que já estão sendo realizados
em todo o mundo. Neles reside a principal esperança de renovação e de transformação
da escola.

Os ambientes educativos. O mais importante é a construção de novos ambientes edu-


cativos, diversos e coerentes, que permitam concretizar o que, há muito, dizemos que
é preciso fazer: envolvimento e participação dos alunos, valorização do estudo e da
investigação, aprendizagens cooperativas, currículo integrado e multitemático, dife-
renciação pedagógica, trabalho em comum etc. A escola deve ser, também, um lugar
de convivialidade, no sentido que Ivan Illich (1973) deu a esse termo, um lugar para
aprender a conviver, a viver com os outros, para cultivar a arte do diálogo e do encontro.

Há dez anos, num artigo notável publicado no jornal Le Monde, o filósofo francês Edgar
Morin escrevia que, quando um sistema é incapaz de resolver os seus problemas vitais,
degrada-se, desintegra-se ou, então, é capaz de um gesto de metamorfose. E acrescen-

116
tava, referindo-se ao sistema Terra: “O provável é a desintegração. O improvável, mas
possível, é a metamorfose” (Morin, 2010).

O que é verdade para o sistema Terra é igualmente verdade para o sistema Educação.
Talvez o mais provável seja a desintegração, por meio de um cada vez maior consu-
mismo na educação. Grande parte das respostas dadas à crise pandêmica reforça essa
tendência. Mas a metamorfose ainda é possível, como se percebe em muitas iniciativas
de professores e escolas que foram capazes de reinventar a pedagogia e os ambientes
educativos, reforçando as dimensões públicas e comuns da educação.

A escola depois do modelo escolar


É difícil escrever a história do futuro, mas devemos tentar. A superação do “modelo
escolar” não pode pôr fim à escola, mas sim libertar as suas capacidades de inovação,
sempre com base nas suas dimensões públicas. Tal como Maxine Greene (1982), tam-
bém eu não consigo imaginar nenhum propósito coerente para a educação se alguma
coisa comum não acontecer num espaço público.

Fala-se frequentemente do poder transformador da educação. Certamente. Para exer-


cê-lo, a educação tem de se transformar. É possível identificar esse processo por meio
das três dimensões do modelo escolar apresentadas: o contrato social celebrado no sé-
culo XIX, a estrutura espaçotemporal da escola e a pedagogia da lição. Não se trata de
imaginar novas reformas, mas de olhar, de compreender e de partilhar as experiências
e inovações que estão tendo lugar em todo o mundo e que são inspirações para o futuro.

Primeira – É preciso refazer o contrato social da educação, tendo como referência já


não apenas sistemas especializados de ensino fortemente fechados sobre si mesmos,
mas um espaço público da educação mais amplo. O novo contrato social tem de reco-
nhecer a importância da capilaridade educativa, isto é, de processos educativos que
existem em muitos lugares da sociedade, e não apenas na escola. A metáfora das cidades
educadoras ilustra bem essa intenção. Muitas respostas à pandemia, em todo o mun-
do, revelaram as possibilidades dessa capilaridade, na ligação às famílias, mas também
numa compreensão da educação que vai muito além daquilo que é estritamente escolar.
Este espaço público não pode ser meramente consultivo e deve basear-se em direitos de
cidadania, deve ser um espaço de participação no qual, coletivamente, se possam tomar
decisões sobre a educação.

117
Segunda – É preciso transformar a estrutura organizacional da escola. No século XIX,
houve um grande projeto histórico de normalização da escola: espaços, tempos, currí-
culo, avaliação das aprendizagens, papel dos professores, turmas de alunos… Tudo foi
submetido a uma lógica de normalização, bem presente no nome dado às instituições
de formação de professores: escolas normais. Hoje, exige-se um movimento contrário:
diversificação dos espaços e dos tempos, dos currículos e das formas de avaliação, do
papel dos professores, do enquadramento dos alunos… O fundamental é a criação de
novos ambientes educativos que permitam o estudo individual e o trabalho em grupo, o
acompanhamento pelos professores, a realização de projetos de investigação, o traba-
lho presencial e também o acesso ao digital. O mais importante na escola é o trabalho
em comum de alunos e professores, e não apenas lecionar e ouvir aulas.

Terceira – É preciso construir pedagogias que valorizem uma diversidade de métodos


e de modalidades de estudo e de trabalho. A lição tem uma função importante, como
momento de síntese, mas não pode ser a única atividade de professores e alunos. O
dia a dia escolar não pode girar em torno da “aula”, mas antes em torno do “estudo” e
do “trabalho”. Estamos diante de uma mudança na profissionalidade docente, acentu-
ando a responsabilidade dos professores perante todo o processo educativo (acompa-
nhamento, tutoria, apoio etc., e não só “lições”), reforçando o seu papel na produção
de conhecimento pedagógico e curricular e aprofundando modos de trabalho colabo-
rativo. Não podemos esquecer que as melhores respostas à pandemia foram resultado
da colaboração entre grupos de professores, que conseguiram pôr em prática ideias e
projetos inovadores, mantendo os vínculos com os alunos e mobilizando-os do ponto
de vista das aprendizagens.

Fecho
A metamorfose ainda é possível?
Nada disto é novo. Há muito que o modelo escolar revela dificuldades para res-
ponder às questões do nosso século. A pandemia expôs com nitidez a urgência e a
possibilidade da sua transformação. Em poucos dias foi possível fazer o que parecia
impossível: construir novos espaços de aprendizagem, da sala de aula para casa,
com todas as consequências na vida familiar e social; reconverter a organização do
trabalho, da lição para o estudo por meio de trabalhos propostos pelos professores,
realizados num continuum diário e não no tradicional horário escolar; definir no-
vas modalidades de trabalho docente, sobretudo por meio de dispositivos digitais.

118
Claro que tudo isto foi possível pela necessidade de preservar a saúde pública e de res-
ponder a uma crise de proporções mundiais. Mas mostrou que a mudança é possível.
Para muitos, a mudança é sobretudo digital ou tecnológica, como se tudo agora passas-
se a ser feito virtualmente e a distância. Seria uma mudança indesejável. Perder-se-ia
uma dimensão central da educação, a interação humana, a convivialidade, a aprendiza-
gem da vida em comum. Acentuar-se-iam as tendências consumistas e perder-se-iam
as dimensões públicas.

Arriscamos uma previsão. Contrariamente ao que ouvimos todos os dias, não haverá
um mundo novo, nem uma escola nova, como resultado da pandemia. Mas a pandemia
revelou que a mudança é não só necessária, mas também possível. Essa consciência per-
mite-nos, hoje, imaginar a escola futura. Talvez o mais provável seja, depois da pande-
mia, uma aceleração do processo de desintegração e de fragmentação da escola. Mas a
metamorfose ainda é possível.

119
120
Capítulo 10

Os professores e a mudança: que papel


para a formação de professores?
Dia Mundial do Professor 2022
A transformação da educação começa com os professores

Não há utopia verdadeira fora da tensão entre a denúncia de


um presente tornando-se cada vez mais intolerável e o anún-
cio de um futuro a ser criado, construído, política, estética
e eticamente, por nós, mulheres e homens. A utopia impli-
ca essa denúncia e esse anúncio, mas não deixa esgotar-se
a tensão entre ambos quando da produção do futuro antes
anunciado e agora um novo presente. A nova experiência de
sonho se instaura, na medida mesma em que a história não se
imobiliza, não morre. Pelo contrário, continua.
Paulo Freire

121
Este texto procura, acima de tudo, chamar a atenção para o papel dos pro-
fessores nos processos de transformação da educação e de metamorfose
da escola.
O primeiro andamento é dedicado a uma análise centrada nas políticas
educativas e na organização da escola, por meio de uma referência ao
processo de metamorfose da escola que está tendo lugar nos dias de hoje.
Depois de uma “ponte”, o segundo andamento é dedicado à formação de
professores, insistindo-se na necessidade de uma nova institucionalidade,
juntando as universidades, a profissão docente e as escolas da rede. O tex-
to fecha com um breve epílogo sobre a importância de libertar o trabalho
dos professores e as suas capacidades de iniciativa e de experimentação.
Uma primeira versão deste texto foi publicada na revista Educação & Re-
alidade (Vol. 44, 2019, pp. 1-15), com o título “Os professores e a sua
formação num tempo de metamorfose da escola”.

122
Os professores e a mudança:
que papel para a formação de professores?
Abertura
Este texto é escrito num tempo de profundas transições na área da Educação. Em me-
ados do século XIX, consolidou-se e difundiu-se em todo o mundo um modelo escolar
que, apesar de muitas críticas, resistiu bem até os nossos dias.

Todos conhecem as suas características. A sua força é tal que nem sequer consegui-
mos imaginar outras formas de educar. A escola substituiu o trabalho, a rua e mesmo
o lar como lugar de socialização e de formação. O triunfo da escola é total, pelo me-
nos em face do seu principal inimigo, o trabalho infantil, dentro e fora das famílias
(Viñao Frago, 2004).

Mas, no preciso momento em que celebra a sua vitória, a escola revela-se incapaz de
responder aos desafios da contemporaneidade. O modelo escolar está em desagrega-
ção. Não se trata de uma “crise”, como muitas que se verificaram nas últimas décadas.
Trata-se do fim da escola, tal como a conhecemos, e do princípio de uma nova institui-
ção, que certamente terá o mesmo nome, mas que será muito diferente.

No tempo de uma geração, nos próximos vinte ou trinta anos, assistiremos a uma com-
plexa metamorfose da escola, isto é, a uma alteração da sua forma. É uma mudança de
via, uma nova origem (Morin, 2011).

1.º andamento

Políticas educativas e organização da escola


O modelo escolar consolida-se, em todo o mundo, há cerca de 150 anos. Para com-
preender a sua formação histórica, é necessário recorrer a uma dupla análise, po-
lítica e organizacional.

Politicamente, os Estados assumem a responsabilidade pela educação e impõem uma


escolaridade obrigatória, com o objetivo de fabricar uma identidade cívica e nacional.

123
A escola pública, laica, gratuita, obrigatória e única é um elemento central no processo
de construção dos Estados-nação (Bourdieu, 1993; Hutmacher, 1981).

Nada teria sido feito sem os professores. Para cumprir a sua missão, os Estados consti-
tuem um corpo profissional docente que é recrutado, formado, remunerado e controla-
do pelos poderes públicos. A profissionalização dos professores é um fator decisivo da
produção do modelo escolar.

Organizacionalmente, a escola adquire a configuração que, na essência, se mantém até


os dias de hoje: i) um edifício próprio, que tem como núcleo estruturante a sala de aula;
ii) uma arrumação orgânica do espaço, com os alunos sentados em fileiras, virados para
um ponto central, simbolicamente ocupado pelo quadro-negro; iii) uma turma de alu-
nos relativamente homogênea, por idades e nível com base em uma avaliação feita regu-
larmente pelos professores; iv) uma organização dos estudos com base em um currículo
e em programas de ensino que são lecionados, regularmente, em lições de uma hora.

No centro da cena estão os professores. São eles os responsáveis pela disciplina escolar,
no duplo sentido do termo: ensinam as disciplinas, as matérias do programa, em aulas
dadas simultaneamente a todos os alunos; e asseguram a disciplina, as regras de com-
portamento e de conduta dos alunos.

A criação das escolas normais, em meados do século XIX, revela bem o papel que os
professores desempenham na produção do modelo escolar. É nessas instituições espe-
cializadas de formação de professores que nasce e se reforça o corpo profissional que,
a serviço do Estado, promove a educação popular (em língua inglesa, o conceito é mais
preciso, “mass schooling”, escola de massas). Mas é também nessas instituições que se
“normaliza” o modelo escolar, conseguindo que, em um tempo histórico curto, se pas-
se de certa desordem nos espaços e nos processos educativos para uma forma escolar
estruturada e padronizada.

A escola se baseia num contrato social e político que lhe atribui a responsabilidade pela
formação integral das crianças por meio de um modelo organizacional bem estabeleci-
do (Nóvoa, 2006). No início do século XXI, começa a tornar-se claro que este contrato
precisa ser profundamente repensado. Já não se trata de melhorias ou de aperfeiço-
amentos, ou mesmo de inovações, mas de uma verdadeira metamorfose da escola. A
transformação da educação é um processo que começa nos professores.

124
E agora?

A escola parece perdida, inadaptada às circunstâncias do tempo presente, como se


ainda não tivesse conseguido entrar no século XXI. É certo que há muitas promessas
do passado ainda por cumprir, a começar pelo compromisso de uma escola pública de
qualidade para todos. Mas a escola revela, sobretudo, uma grande incapacidade para
pensar o futuro, um futuro que já faz parte da vida das nossas crianças.

Sem cedermos a uma simplificação excessiva, queremos apresentar duas tendências,


muito distintas, de pensar a crise atual da escola e o seu futuro presente.

A primeira tendência questiona o contrato social em torno da educação com base em


lógicas de “privatização” e procura ultrapassar as dificuldades do modelo escolar por
meio de processos de “individualização”.

A “privatização” tem um duplo sentido, social e econômico. Do ponto de vista social,


traduz um maior recolhimento das crianças no interior das suas comunidades de ori-
gem, dos seus espaços culturais ou familiares (a expansão de práticas de “educação
domiciliar”, uma espécie de regresso a um tempo anterior ao modelo escolar, é um bom
exemplo dessas tendências). Do ponto de vista econômico, denunciam-se as incapaci-
dades do Estado para, assim, abrir o campo educativo à operação de grupos econômi-
cos, diretamente ou por meio de “organizações da sociedade civil”.

A “individualização” manifesta-se em discursos que valorizam a educação mais como


“bem privado” do que como “bem público”, assim como em críticas à “escola única”,
com a consequente expansão de vias distintas de ensino (profissionais e acadêmicas).
As referências à aprendizagem estão onipresentes, uma espécie de “aprendixorbitân-
cia”, um discurso excessivo, exagerado, sobre a aprendizagem, que relega a segundo
plano as outras dimensões da educação. Verifica-se a desvalorização do sentido coleti-
vo da escola, ao mesmo tempo que se sublinha a importância de pôr as novas tecnolo-
gias a serviço da individualização das aprendizagens.

A segunda tendência defende a necessidade de repensar o contrato social e o modelo


escolar que lhe dá corpo, mas reforçando a dimensão pública da educação e a importân-
cia da escola na construção de uma “vida em comum”.

Uma das melhores notícias dos nossos dias é a emergência, em todo o mundo, de movi-
mentos que procuram refundar a escola, mas sem pôr em risco um compromisso público

125
com a educação. A mudança faz-se a partir de uma matriz cultural e científica, afirmando
a importância do conhecimento, sem ceder nem à ideologia do “back to basics” (a escola
mínima de antigamente, do “ler, escrever e contar”), nem a uma escola folclórica afogada
numa infinidade de projetos que, tantas vezes, apenas revelam a dificuldade para reno-
var as práticas pedagógicas. Não vale a pena alimentarmos ilusões, trazendo tudo para
dentro da escola, uma “escola transbordante”, sem rumo e sem sentido. Mas vale a pena
trabalhar para a construção de um espaço público de educação, a “cidade educadora”, no
qual a escola se articula com outras instituições, grupos e associações (Nóvoa, 2005).

No plano organizacional, é interessante acompanhar dinâmicas de inovação que


estão acontecendo em muitos lugares, abrindo o modelo escolar a novas formas de
trabalho e de pedagogia. É impossível ignorar o impacto da “revolução digital”, bem
como a necessidade de diferenciar os percursos dos alunos, mas isso não implica que
a escola abdique de ser um lugar de construção do comum. Hoje em dia, a fragmen-
tação a que estamos assistindo no cibermundo coloca a escola perante a urgência de
valorizar a nossa pertença a uma mesma humanidade e a um mesmo planeta. Este co-
mum não vem de “comunidade de identidade”, mas sim de “comunidade de trabalho”,
isto é, o que fazemos em comum uns com os outros independentemente das nossas
origens, crenças ou ideias.

E agora? As opções apresentadas são claras. Pessoalmente, enquadro o meu pensamen-


to e a minha ação nesta segunda tendência: a renovação da escola no contexto de um
espaço público da educação; e o esforço para reconstruir o “comum”, nunca deixando
de valorizar a diversidade. É nesse sentido que me interessa refletir sobre a metamorfose
da escola, um processo histórico que, obviamente, começa com os professores, na sua
formação e na ação pública que desenvolvem nas sociedades contemporâneas.

Ponte entre andamentos


As transformações enunciadas no primeiro andamento têm consequências profundas
no modo de pensar a profissão docente, a sua função, o seu estatuto e o seu trabalho.

Os movimentos que se inserem na primeira tendência acima descrita (privatização e


individualização), apesar de reconhecerem a importância dos professores, tendem a
esbater as dimensões profissionais e, mesmo, os referenciais coletivos. Frequentemen-
te, recorrem ao conceito vago de “educadores”, juntando na mesma análise docentes,
gestores, tutores, por vezes psicólogos, e mesmo pais e outras pessoas que exercem
uma função educativa. Desse modo, diluem o princípio do professorado como uma

126
profissão, conduzindo a políticas que desvalorizam a formação dos professores e que
se legitimam por meio de um discurso pragmático: “se escolhermos pessoas com bom
conhecimento de uma dada matéria, facilmente conseguiremos prepará-las para serem
professores”; “se dermos uma remuneração suplementar aos professores cujos alunos
têm bons resultados, o ensino melhorará”; “se tivermos bons materiais (livros, progra-
mas etc.) e boas tecnologias, seremos capazes de suprir as deficiências dos professores
e da sua formação”; e daí em adiante.

Os movimentos desse tipo têm como ponto de partida um diagnóstico muito crítico so-
bre as dificuldades das escolas e as fragilidades das instituições de formação de profes-
sores. Muito populares no mundo, estão hoje num processo de expansão internacional,
conduzindo a políticas de desprofissionalização e de degradação da profissão docente.
Obviamente, manifestam sempre uma grande desconfiança em relação à escola pública
e o desejo de instaurar novas formas de regulação privada da educação.

Pelo contrário, aqueles que, como eu, acreditam no compromisso público com a educa-
ção e na metamorfose da escola, partem também de um diagnóstico crítico, mas para re-
forçar e valorizar as dimensões profissionais, seja na formação inicial e continuada, seja
num exercício da docência que só se completa por meio de um trabalho coletivo com os
outros professores. É nessas bases que se fundamenta a minha proposta de renovação
do campo da formação de professores e do trabalho docente.

2.º andamento

Os professores e a sua formação


Vários pensadores do século XX defenderam a separação das universidades em dois
grandes tipos. Por um lado, as universidades da liberal education, conceito intraduzível
para a língua portuguesa, que significa uma educação de base generalista, humanista
e científica, de cultivo do otium (ócio no seu sentido filosófico). Por outro lado, as uni-
versidades das profissões, certamente tão importantes como as primeiras, mas vocacio-
nadas para a formação de profissionais (medicina, engenharia, advocacia, ensino etc.),
destinadas a preparar para o negotium (o não ócio).

Essa divisão é totalmente inadequada, na medida em que as profissões têm um forte


componente de conhecimento, também acadêmico, e, nos dias de hoje, todas as inven-
ções e tecnologias têm uma base científica. Mas ajuda a declarar o carácter profissional
da formação de professores.

127
A afirmação parece simples. E, no entanto, é esta a novidade que queremos trazer neste
texto, pois dela decorre uma nova matriz para pensar a formação de professores. Em vez
de listas intermináveis de conhecimentos ou de competências a adquirir pelos profes-
sores, a atenção concentra-se no modo como construímos uma identidade profissional,
no modo como cada pessoa constrói o seu percurso no interior da profissão docente.

Tornar-se professor – para nos servirmos do célebre título de Carl Rogers, Tornar-se
pessoa (1973) – obriga a refletir sobre as dimensões pessoais, mas também sobre as
dimensões coletivas do professorado. Não é possível aprender a profissão docente sem
a presença, o apoio e a colaboração dos outros professores.

Não se trata de convocar apenas as questões práticas ou a preparação profissional, no


sentido técnico ou aplicado, mas de compreender a complexidade da profissão em todas
as suas dimensões (teóricas, experienciais, culturais, políticas, ideológicas, simbólicas
etc.). Nesse sentido, a comparação mais adequada para a formação de professores é com
a formação dos médicos ou dos engenheiros. Mas dizer isso, que parece simples, é ques-
tionar muito do que se faz nos cursos de formação de professores.

Assim como a metamorfose da escola implica a criação de um novo ambiente educa-


tivo (uma diversidade de espaços, práticas de cooperação e de trabalho em comum,
relações próximas entre o estudo, a pesquisa e o conhecimento), também a mudança
na formação de professores implica a criação de um novo ambiente para a formação
profissional docente.

Fazer essa afirmação é reconhecer, de imediato, que os ambientes que existem nas uni-
versidades (no caso da formação inicial ou nas escolas, no caso da formação continuada)
não são propícios à formação dos professores no século XXI. Precisamos, pois, recons-
truir esses ambientes, tendo sempre como orientação que o lugar da formação é o lugar
da profissão.

Todas as profissões têm um lado conservador e rotineiro, o que as impede de constru-


írem políticas de formação que conduzam à renovação das práticas e dos processos de
trabalho. Impõe-se, por isso, compreender a importância de uma interação entre três
espaços – profissionais, universitários e escolares –, pois é na sua interação que se en-
contram as potencialidades transformadoras da formação docente.

Em muitos discursos sobre a formação de professores há uma oposição entre as uni-


versidades e as escolas. Às universidades atribui-se uma capacidade de conhecimento
cultural e científico, intelectual, de proximidade com a pesquisa e com o pensamento

128
crítico. Mas esquecemo-nos de que, por vezes, é apenas um conhecimento vazio, sem
capacidade de interrogação e de criação. Às escolas atribui-se uma ligação à prática, às
coisas concretas da profissão, a tudo aquilo que, “verdadeiramente”, nos faria professo-
res. Mas esquecemo-nos de que essa prática é frequentemente rotineira, medíocre, sem
capacidade de inovação e, muito menos, de formação dos novos profissionais.

Para escapar a essa oposição inútil e improdutiva, precisamos encontrar um terceiro


termo, a profissão, e perceber que é nele que está o potencial formador, desde que haja
uma relação fecunda entre profissão, universidades e escolas. É nesse entrelaçamento
que ganha força uma formação profissional, no sentido mais amplo do termo, a forma-
ção para uma profissão.

A ligação entre a formação e a profissão é central para construir programas coerentes


de formação, mas é também central para o prestígio e para a renovação da profissão
docente. Historicamente, essa ligação foi decisiva para profissões como a medicina ou a
engenharia. Infelizmente, com exceção das escolas normais, que tiveram o seu tempo,
mas que já não nos servem, no caso dos professores, as instituições de formação não
têm sabido comprometer-se com a profissão, e vice-versa (Nóvoa, 2017).

Tendo essa ideia como argumento central, desdobrarei a análise nos três momentos em
que se organiza o desenvolvimento profissional dos professores: a formação inicial, a
indução profissional e a formação continuada. Em cada um deles, procurarei explicar a
ligação formação-profissão, tendo sempre como pano de fundo a necessidade de repen-
sar a profissão de professor à luz dos desafios atuais, em face do fim do modelo escolar e
do princípio de um novo tempo para o ensino e a educação.

Formação inicial

No decurso da história, as universidades revelaram uma grande indiferença em relação


à formação de professores. Contrariamente a outras profissões (teologia, direito, medi-
cina) que estão na origem das universidades, a formação de professores foi sempre uma
preocupação ausente ou secundária.

No que diz respeito à formação de educadores de infância e de professores do ensino


fundamental, a indiferença foi quase total, até há pouco tempo, ficando essa tarefa nas
mãos de escolas normais, de nível médio e não superior. No que diz respeito à formação
de professores do ensino médio, o interesse dos universitários de Letras e de Ciências

129
foi, muitas vezes, por mero oportunismo, a fim de assegurarem os seus postos e finan-
ciamentos, podendo, assim, dedicar-se ao que verdadeiramente lhes interessa, as suas
áreas disciplinares. Também muitos universitários do campo da Educação relegaram
a segundo plano a formação de professores, mobilizados pelos seus interesses científi-
cos, legítimos, mas aproveitando-se dos professores, por vezes de forma paternalista,
para justificarem o seu poder nas pós-graduações e na pesquisa.

O diagnóstico é excessivamente duro, e até injusto, mas não podemos poupar nas pa-
lavras num tempo decisivo para o futuro dos professores e das escolas. É preciso re-
conhecer a dedicação e o compromisso de muitos universitários, de distintas áreas do
saber, que têm se dedicado à formação de professores. É neles, nos seus trabalhos, nas
suas iniciativas, nas redes que foram construindo, que está a resposta para os nossos
problemas. Precisamos juntá-los num mesmo espaço institucional, uma casa comum
da formação e da profissão, dentro das universidades, mas sempre com uma ligação
orgânica aos professores e às escolas da rede.

É nesta casa comum que se pode definir um campo estimulante, que escape à frag-
mentação atual da formação de professores. Precisamos, nesta casa comum, do conhe-
cimento dos conteúdos científicos das disciplinas (Matemática, Biologia, História…),
pois quem os desvaloriza comete um erro fatal. Se não dominarmos esses conteúdos,
as mais sofisticadas técnicas de ensino de pouco nos servirão. Precisamos, também, do
conhecimento científico em Educação, dos fundamentos às didáticas, à psicologia e ao
currículo, e a tantos outros assuntos. Mas esses dois tipos de conhecimento são insufi-
cientes para formar um professor se não construírem uma relação com o conhecimento
profissional docente, com o conhecimento e a cultura profissional dos professores.

Por isso é tão importante a existência, nas universidades, de uma casa comum da for-
mação e da profissão, isto é, de um lugar de encontro entre os professores universitá-
rios que se dedicam à formação docente e os professores da rede. Esta casa comum é um
lugar universitário, mas tem uma ligação com a profissão, o que lhe dá características
peculiares, assumindo-se como um “terceiro lugar”, um lugar de articulação entre a
universidade e a sociedade, nesse caso, entre a universidade, as escolas e os professo-
res. Nesta casa comum faz-se a formação de professores ao mesmo tempo que se produz
e se valoriza a profissão docente.

130
Indução profissional

A relação que se estabelece, na formação inicial, entre os estudantes universitários e


os professores da educação básica é muito importante para conceber políticas de indu-
ção profissional, isto é, de inserção dos jovens professores na profissão e nas escolas.
A formação nunca está pronta e acabada, é um processo que continua ao longo da vida.

Permitam-me que deixe um testemunho de homenagem a um dos mais notáveis peda-


gogos do século XX, Michael Huberman. Sabemos, pelo menos desde a publicação da
sua obra de 1989, A vida dos professores, que os anos iniciais como professores são
decisivos para moldar e definir a nossa relação com a profissão. É na passagem da uni-
versidade para as escolas, e na forma como os professores mais experientes acolhem
os mais jovens, que se joga grande parte do futuro profissional de cada um e o futuro
coletivo da profissão docente.

O que temos feito com o conhecimento produzido por Michael Huberman e tantos ou-
tros autores? Nada, ou quase nada. Contrariamente aos médicos, e a outros profissio-
nais, os jovens professores são deixados à sua sorte nas escolas, com pouco ou nenhum
apoio, lutando sozinhos pela sua “sobrevivência”. É preciso alterar esse estado de coi-
sas e construir políticas públicas de indução profissional.

Os programas de residência docente, baseados numa analogia com a residência médica,


são da maior importância, desde que concebidos como um espaço de transição entre a
formação e a profissão. Eles não devem servir para diminuir a formação inicial e, muito
menos, para políticas “racionalizadoras” de gestão que podem acentuar a precariedade
e relações de trabalho mais frágeis. Uma vez que se trata de cuidar da entrada na profis-
são, esses programas devem sublinhar a profissionalidade docente na pluralidade das
suas dimensões, e não apenas o referencial pedagógico.

O fundamental está na possibilidade de definir, nas escolas, regras de corresponsabiliza-


ção pela integração dos novos professores. Essa missão é considerada a mais nobre pela
maioria das profissões, pois dela depende o futuro dos jovens profissionais, mas também o
futuro da própria profissão e da sua capacidade de renovação. E, no entanto, pouco temos
feito, tanto nas universidades como nas políticas públicas e nas escolas.

Esse acolhimento e acompanhamento implica mudanças mais profundas do que parecem


à primeira vista na organização das escolas e da profissão docente. Implica que sejamos
capazes de valorizar os melhores professores e de lhes dar essa missão, que é a mais pres-

131
tigiante que podem desempenhar. Implica que abandonemos uma visão individualista da
profissão e que sejamos capazes de instaurar processos coletivos de trabalho.

Essa possibilidade é ainda mais urgente hoje do que no passado. Ninguém se integra
numa profissão sozinho, isoladamente. Ninguém constrói novas práticas pedagógicas
sem se apoiar numa reflexão com os colegas. Ninguém, sozinho, domina completamen-
te a profissão, como tantas vezes nos tem alertado Sérgio Niza (2012). Precisamos dos
outros para nos tornarmos professores.

Formação continuada

O ciclo do desenvolvimento profissional completa-se com a formação continuada. Em


face da dimensão dos problemas e dos desafios atuais da educação, precisamos, mais do
que nunca, reforçar as dimensões coletivas do professorado. A imagem de um professor
de pé junto ao quadro-negro, dando a sua aula para uma turma de alunos sentados,
talvez a imagem mais marcante do modelo escolar, está sendo substituída pela imagem
de vários professores trabalhando em espaços abertos com alunos e grupos de alunos.

Esta nova construção pedagógica precisa de professores empenhados num trabalho em


equipe e numa reflexão conjunta. É aqui que entra a formação continuada, um dos es-
paços mais importantes para promover essa realidade partilhada.

Há muitos discursos que referem a impossibilidade de haver práticas consistentes e ino-


vadoras de formação continuada nas escolas: “os professores têm muitas dificuldades”;
“as escolas não têm condições”; “é preciso trazer novas teorias e novos modelos que
não existem nas escolas” etc. Compreendem-se esses discursos, sobretudo por parte
daqueles que não se conformam com a situação atual das escolas e pretendem abrir
novos caminhos. Existe o receio de que enraizar a formação continuada nas escolas
contribua para fechar os professores em práticas rotineiras e medíocres, não lhes per-
mitindo o acesso a novas ideias, métodos e culturas.

Mas esses discursos prestam um péssimo serviço à profissão, pois conduzem, inevita-
velmente, a uma menorização ou desqualificação dos professores. De um ou de outro
modo, abrem caminho a um mercado de cursos, eventos, seminários e encontros no
qual especialistas diversos montam o seu espetáculo pessoal para vender aos professo-
res novidades inúteis sobre o cérebro e a aprendizagem, as novas tecnologias ou qual-
quer outra moda de momento.

É evidente que, em certos países, muitos professores em funções necessitam de uma

132
formação complementar, seja nas áreas disciplinares em que lecionam, seja em domí-
nios pedagógicos. Mas essa formação não deve ser confundida com a formação continu-
ada a ter lugar na escola com a participação das “comunidades profissionais docentes”.

Avançar esta proposta não representa nenhuma desvalorização dos saberes teóricos ou
científicos, mas antes a vontade de ressignificá-los no espaço da profissão. É na comple-
xidade de uma formação que se alarga a partir das experiências e das culturas profissio-
nais que podemos encontrar uma saída para os dilemas dos professores.

No meio de muitas dúvidas e hesitações, há uma certeza que nos orienta: a metamorfo-
se da escola acontece sempre que os professores se juntam em coletivo para pensar o
trabalho, para construir práticas pedagógicas diferentes, para responder aos desafios
colocados pelo fim do modelo escolar. A formação continuada não deve dispensar ne-
nhum contributo que venha de fora, sobretudo o apoio dos universitários e dos grupos
de pesquisa, mas é no lugar da escola que se define, se enriquece e, assim, pode cumprir
o seu papel no desenvolvimento profissional dos professores.

Epílogo
A pandemia do triênio 2020-2022 tornou mais urgente a mudança. Não se trata de co-
meçar do zero, mas de reinventar a escola, de inventar a escola de novo, aprofundando
a sua história, as suas possibilidades e a sua natureza como espaço público e comum.
Transformação ou metamorfose?

Para falar da educação, prefiro o conceito de “transformação”, mais amplo. “Trans”


quer dizer, etimologicamente, “para além de”, abre para novas possibilidades e manei-
ras de educar, muitas ainda por descobrir e desvendar. Para falar da escola, recorro ao
conceito de “metamorfose”, mais orgânico. Trata-se de mudar uma determinada forma,
de assumir novas formas, nomeadamente na organização das escolas. Inspiro-me em
análises importantes de Edgar Morin (2010) e de Bruno Latour (2021) sobre a meta-
morfose, adaptando-as ao universo educativo.

Como se produz a transformação da educação e a metamorfose da escola? Respondo


com um discurso recente do presidente da República francesa, Emmanuel Macron, no
dia 25 de agosto de 2022, na abertura do ano escolar:

“No que diz respeito à escola, temos perante nós um grande trabalho,
cujo objetivo é construir um novo projeto, escola por escola. […] Os

133
nossos professores, que trabalham com dedicação e paixão, devem re-
ceber de volta poder, responsabilidade e sentido. […] É um novo méto-
do construído a partir de baixo. […] Dar às escolas mais autonomia, dar
mais liberdade aos professores, dar às equipes novas margens de ação
e de iniciativa e, ao fazê-lo, devolver o gosto pela profissão e o sentido
da sua missão. É uma verdadeira revolução coperniciana que vos propo-
nho, e pondero bem as minhas palavras. […] Vamos abrir um processo
que, antes de mais, se baseia no voluntariado. […] Primeira pequena re-
volução que devemos assumir coletivamente, da liberdade. Só participa
quem quiser participar. […] O mais importante neste método é dar liber-
dade e valorizar a capacidade de iniciativa dos professores e das escolas”.

Este longo discurso do presidente francês baseia-se por inteiro na ideia de uma “revo-
lução coperniciana”, de uma “revolução cultural”, deixando de pensar a mudança em
educação por meio de uma nova lei, de uma nova reforma ou de uma nova tecnologia,
para valorizar, primordialmente, a iniciativa dos professores, a sua capacidade de se
organizarem coletivamente e de levarem a cabo experiências e projetos.

É aqui que residem as nossas esperanças de transformação da educação e da escola,


diz o presidente Macron. Para isso, acrescenta, temos de celebrar um “pacto de con-
fiança” com os professores e para os professores. Caso contrário, estaremos repetindo
palavras vazias, incoerentes e inconsequentes. É possível que esse discurso seja apenas
retórica vazia, de tal maneira o sistema francês é centralizado e burocrático. Mas inte-
ressa-me chamar a atenção para uma consciência que parece, hoje, chegar também às
mais altas esferas políticas.

Sim, é preciso libertar a energia individual e coletiva dos professores. É preciso criar as
condições favoráveis à “coragem dos começos” (Jankélévitch, 1960). Assumir riscos?
Claro, mas de que valeria um pensamento inofensivo, vazio, sem os riscos da ação, sem
a virtude do compromisso? A coragem é o contrário do medo, é mesmo o seu antídoto.
Em vez de dedicar o nosso tempo a elaborar justificativas para a inércia, concentremo-
-nos na “coragem da ação”.

A renovação da formação de professores é um dos pilares deste processo. Ninguém


se torna professor sem a colaboração dos colegas mais experientes. Começa nas uni-
versidades, continua nas escolas. Ninguém pode ser professor, hoje, sem o reforço das
dimensões coletivas da profissão. Pensar a coisa certa é agir. A transformação da educa-
ção começa mesmo com os professores. A metamorfose da escola, também.

134
Referências bibliográficas

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Editora Diálogos Embalados:
começa uma nova viagem pela Educação
“A melhor metáfora educativa é a viagem, a preparação para uma viagem
pelo desconhecido.” Assim escreve o pensador António Nóvoa, nesta
obra que marca – e honra – a estreia da Diálogos no mundo editorial.
Sim, professor Nóvoa, a viagem!
Foi pelas viagens pedagógicas que começou a Diálogos, pelo país e pelo
mundo. Depois, pela formação dos professores – respeitando sempre
o docente como um profissional, com cultura própria e saberes espe-
cíficos. Mais tarde, pelos livros que viajam pelo Brasil e além-mar, no
Embalados, o primeiro e maior clube de leitura dedicado a professores.
Sempre uma viagem. Pelo inédito e pelo desconhecido, tendo como bús-
solas o educador, a educação.
E agora seguimos adiante, velas abertas, com o lançamento da Editora
Diálogos Embalados, que chega ao mundo editorial com um propósito
claro: acreditar nos professores e nas professoras como insubstituíveis
protagonistas da Educação. Apoiá-los em seus desafios, ampliar seus
horizontes, aprofundar seus mergulhos, conectar seus saberes, tecer
mais laços, espantar mais olhos, semear e colher pensamentos, ouvir
seus corações.
A partir de agora, como um canal para a brilhante rede de autores, pes-
quisadores, escritores, pedagogos que viajam conosco, a Editora Diá-
logos Embalados chega ao mercado editorial com o sonho de trabalhar
junto com todos os que escolheram – e acolheram – essa profissão essen-
cial para o futuro humano: a docência.
Sim, professor Nóvoa, o sonho de educar humanos para o bem comum
da humanidade e seus futuros. Também sobre isso nos ensina sua obra.
“A pedagogia é sempre uma relação humana. [...] O digital pode ser útil
para manter os laços, mas nunca substituirá o encontro humano. Porque
o sonho é um elemento central da educação.”
E aqui, pois, começa um novo sonho, para que todos possamos sonhar.
Juntos. Sempre. Para todos.

Ana Paula Piti


Telma Holanda

141
António Nóvoa é professor do Instituto de Educação da
Universidade de Lisboa e titular da Cátedra UNESCO
Futuros da Educação.
Veio pela primeira vez ao Brasil em 1994, para um En-
contro com Paulo Freire, em Águas de São Pedro. Desde
então, realizou inúmeras viagens de trabalho e missões
acadêmicas em municípios, estados, universidades e ins-
tituições de todo o país.
Este trabalho foi também reconhecido através da outorga
do título de Doutor Honoris Causa por várias universi-
dades brasileiras: Universidade de Brasília, Universidade
Federal do Rio de Janeiro, Universidade Federal de Santa
Maria e Universidade de São Paulo.
Em 2014, foi consultor do Governo federal e professor
convidado da Universidade de Brasília. Em 2017, foi
professor visitante da Universidade Federal do Rio de
Janeiro. Entre 2018 e 2021, foi Embaixador de Portugal
na UNESCO.
O seu último livro, publicado na Bahia em 2022, foi es-
crito em colaboração com Yara Alvim, professora da
Universidade Federal de Juiz de Fora. Tem como título
Escolas e Professores: Proteger, Transformar, Valorizar.
O presente livro, Professores: Libertar o futuro, contém
dez capítulos, construídos com base nos lemas do Dia
Mundial do Professor nos últimos dez anos. Tem também
a colaboração de Yara Alvim, co-autora de dois capítulos.
António Nóvoa diz que os versos seguintes de Vitorino
Nemésio, importante autor português, natural dos Aço-
res, que viveu algum tempo na Bahia, traduzem bem a
forma como se sente brasileiro:
“Foi em Água de Mininos,
Na Bahia, à flor do mar,
Que o português percebeu
Que isto de ser brasileiro
É questão de começar.”

142
As professoras e professores que, hoje, habitam as escolas são a geração
da mudança. Durante as vossas vidas profissionais, a educação e o ensino
vão mudar profundamente.

Há um grande mal-estar devido à falta de reconhecimento dos professo-


res e a todas as incertezas que rodeiam o seu futuro. Mas, ainda assim,
temos de ser capazes de um gesto de esperança. Não se trata de um oti-
mismo ingênuo, mas de uma esperança que se aprende e se cultiva em
comum. Precisamos criar um movimento de transformação da educação.
Esse movimento começa nos professores e com os professores.

O mais importante é sermos capazes de libertar o futuro, subtítulo que


adotei para este livro, inspirado por Ivan Illich. Ninguém sabe como será
o futuro e nem sequer vale a pena tentar adivinhá-lo. Mas, temos a obri-
gação de tudo fazer para não fechar as possibilidades de futuro, para ga-
rantir a liberdade das próximas gerações.

Como bem lembrou o poeta e artista visual brasileiro Wlademir Dias-Pi-


no, a liberdade é sempre experimental.

143

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