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MODALIDADE: COMUNICAÇÃO
Resumo. Neste artigo são apresentados dados parciais de uma pesquisa em andamento que
tem como objetivo investigar as escolhas interpretativas do trombonista Palmer Traulsen
para o Concerto para Trombone e Orquestra de Launy Grøndahl. Através da análise de duas
edições publicadas da partitura da obra, foi possível identificar que o intérprete promoveu
mudanças de registro e de andamentos em relação a versão original da obra. Tais mudanças,
embora desaprovadas pelo compositor, se tornaram referência para gerações futuras de
trombonistas, se configurando como um padrão interpretativo da obra.
Abstract. This paper presents partial data from ongoing research that aims to investigate
trombonist Palmer Traulsen's interpretive choices for the Concerto for Trombone and
Orchestra by Launy Grøndahl. Through the analysis of two published editions of the score,
we’ve identified that the performer promoted changes in register and tempos from the
original version of the work. Such changes, although disapproved by the composer, became
a reference for future generations of trombonists, configuring themselves as an
interpretative standard of the work.
1. Introdução
O Concerto para Trombone e Piano ou Orquestra do compositor Launy Grøndahl (1886-
1960), é um dos concertos mais relevantes do repertório do trombone, segundo Granau (1998).
Devido sua dificuldade técnica e de interpretação, frequentemente é solicitado em audições para
orquestra, concursos, recitais, além de compor as matrizes curriculares de instituições de ensino
como universidades (cursos de bacharelado ou licenciatura) e conservatórios (GRANAU, 1998,
p. 48-49).
Composto em 1924, a obra foi dedicada e estreada por Vilhelm Aarkrogh, amigo do
compositor na Orquestra do Zoo na Dinamarca. Grøndahl se inspirou no brilhantismo de
Aarkrogh, quando “ele encantava o público no final de um programa com um romance de La
Traviata de Verdi, uma canção da ópera Der Evangelimann de Kienszl ou com a Peça
Concertante de Rousseau” (BROWN, 1978).
O Concerto também é conhecido entre eufonistas e tubistas, como menciona Lipton
(2010): “O concerto Grøndahl tem três movimentos e [...] goza de popularidade crescente entre
eufonistas, bem como tubistas”1 (LIPTON 2010, p. 1, tradução nossa).
Grøndahl teve uma carreira extensa como regente da Orquestra Sinfônica da Rádio
Nacional Dinamarquesa, tendo alcançado reconhecimento por tal fato e pelo Concerto para
Trombone. Segundo Granau (1998), com relação ao Concerto, chama atenção que este
apresente tantas interpretações diferentes e consideradas distantes daquela idealizada pelo
compositor, mesmo sendo um concerto composto há menos de um século, o que podemos
observar em sua afirmação de que “hoje o concerto é um dos mais tocados do gênero, e pode
parecer estranho que um concerto com menos de 75 anos tenha sido submetido a tantas
interpretações errôneas sobre sua origem e sua interpretação”2 (GRANAU, 1998, p. 48,
tradução minha).
Apesar da obra ser composta para acompanhamento orquestral, este não foi o primeiro
acompanhamento que Grøndahl teria usado neste Concerto. Ele preferiu usar o mesmo
procedimento usado em outras composições, fazendo uma espécie de partitura curta para
instrumento solo e piano. Ao todo, são dezessete obras com mesmo procedimento, instrumento
solo com acompanhamento no piano (GRANAU, 1998, p. 49).
O modelo de interpretação considerado padrão desta obra se deve a interpretação de
Palmer Traulsen (1913-1975) com a Orquestra da Rádio de Alborg, sob regência do maestro Jens
Schoder. Traulsen mudou a forma que era tocada essa obra, deixando muitos músicos perplexos
na época, por sua maneira diferenciada de tocar. Andamentos mais rápidos que o original e adição
de oitavas são dois elementos marcantes nas modificações adotadas pelo intérprete (GRANAU,
1998, p. 51).
As mudanças promovidas por Traulsen não foram bem recebidas pelo compositor, que
manifestou seu descontentamento com frases como “você ouviu como eles estragaram meu
1
The Grøndahl concerto has three movements and [...] enjoys increasing popularity among euphoniumists as
well as tubists.
2
Today the concerto is one of the most widely played of its kind, and it may seem strange that a concerto not yet
75 years old has been subjected to so many misinterpretations regarding its origin and performance practice.
concerto ?!”3 (GRANAU, 1998, p. 51, tradução minha). Declaração forte e desconhecida por
parte dos intérpretes atuais, mas que faz ressoar a reflexão do papel do intérprete de expressar
a concepção inicial de uma obra por parte de seu compositor ou buscar uma interpretação mais
próxima das suas concepções e experiência enquanto instrumentista, sugerindo ideias além do
que está grafado na partitura.
Após o episódio, Grøndahl promoveu uma revisão na partitura e inseriu correções, na
tentativa de que suas intenções ficassem mais claras e que interpretações como a de Traulsen
não voltassem a se repetir (GRANAU, 1998, p. 51).
Ainda que as mudanças não tenham agradado o compositor, a interpretação de
Traulsen influenciou inúmeras gravações realizadas ao longo dos anos. Nas apresentações ao
vivo e gravações de instrumentistas de destaque no cenário musical internacional como os
trombonistas Alain Trudel, Christian Lindberg, Joseph Alessi e Peter Steiner, apenas para
mencionar alguns, podemos perceber nitidamente a influência exercida pela interpretação de
Traulsen. Inclusive, a versão impressa e publicada na data de 1974 da Samfundet Tiludgivelse
Af Dansk Musik que contém as alterações feitas por Traulsen como ad libitum (BAUER, 2020,
p. 2).
3
“Did you hear how they spoiled my concerto?!”
Como solista, era bastante requisitado. Compositores como Vagn Holmboe, Asger
Liund Christiansen, Hildingsen, Ole Schmidt, Wilkenschildt e Julius Jacobsen escreveram
concertos para que ele fosse o intérprete (SVANBERG, 1992 p. 33).
Observando a biografia de Traulsen, podemos entender a sua importância como
intérprete e professor, tendo influenciado uma geração de trombonistas com o seu modo único
de interpretar. Ao Concerto para Trombone de Grøndahl, Traulsen conferiu uma maneira
diferenciada de toar, com alguns elementos que serão destacados, como mudanças de registro
(oitavas não autênticas) e mudança de andamento.
4
Intérprete Christian Lindberg. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=RJMjOtN4xvM. Acesso em:
29 de abr. 2022.
5
Intérprete Joseph Alessi. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=riMtzAztZoQ. Acesso em: 29 de
abr. 2022
uma oitava acima demonstre virtuosismo, se configurando como uma opção interpretativa do
instrumentista, há, também, uma justificativa do ponto de vista estrutural da obra, já que no
primeiro movimento, esse trecho segue no mesmo registro de oitava que a frase anterior.
Seguindo o sentido estrutural, quando transposto para o tom da dominante, o trecho
deveria ser escrito na oitava que os solistas gravaram. Possivelmente, a escolha do compositor
em colocar no terceiro movimento oitava abaixo se deva pela dificuldade técnica de fazer esse
trecho nesta oitava, que é uma região aguda para o trombone.
Figura 4 II movimento, Quasi uma Leggenda, Concerto para Trombone e Piano ou Orquestra, Launy
Grøndahl.
Fonte: Insicoria e stamperia musicale G. Ferrario – Milano – corso P. Vittoria, 48, 1929
Outro trecho que Palmer deixou sua marca pessoal foi no III terceiro movimento,
Finale. Essa mudança é uma das mais desafiadoras de ser executada por qualquer intérprete.
Traulsen tocou oitava acima o trecho, alcançando o Mi Bemol 4, uma tessitura considerada
extrema do instrumento mesmo por intérpretes renomados. Alguns intérpretes que abraçaram
as indicações de Traulsen são: Alain Trudel6, Christian Lindberg7 e Peter Steiner8. Em seguida,
na Figura 6, podemos observar a escrita original de Grøndahl para este trecho.
6
Intérprete Alain Trudel. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=8_HMlDD3aQs. Acesso em: 08 de
jun. 2022.
7
Intérprete Christian Lindberg. Disponível em https://www.youtube.com/watch?v=H_1vF64pEVQ. Acesso em:
08 de jun. 2022.
8
Intérprete Peter Steiner. Disponível em https://www.youtube.com/watch?v=6nTudCqiAoo. Acesso em: 08 de
jun. 2022.
Figura 5 III movimento, Finale, Concerto para Trombone e Piano ou Orquestra, Launy Grøndahl (com as
indicações de Traulsen)
Figura 6 III movimento, Finale, Concerto para Trombone e Piano ou Orquestra, Launy Grøndahl
Fonte: Insicoria e stamperia musicale G. Ferrario – Milano – corso P. Vittoria, 48, 1929
Figura 8 III movimento, Finale, Concerto para Trombone e Piano ou Orquestra, Launy Grøndahl
Fonte: Insicoria e stamperia musicale G. Ferrario – Milano – corso P. Vittoria, 48, 1929
Como vimos anteriormente, essas mudanças de oitavas não foram bem-vistas por
Grøndahl, que entendeu que a atitude de Traulsen fora um desrespeito com sua obra, afirmando
que o intérprete havia estragado seu Concerto (GRANAU, 1998, p. 51).
Figura 9: I e III movimento do Concerto de Launy Grøndahl (partitura original escrita pelo compositor)
Fonte: Insicoria e stamperia musicale G. Ferrario – Milano – corso P. Vittoria, 48, 1929
9
I would like to empahasize that first movement and the rondo are to be played in exatly the given tempo
seminima - 80 in first movement and seminima – 80 in the rondo. To play the movements at a different speead
is play it incorrectly.
Apesar do andamento adotado não ser aparentemente tão distante (8 pontos no
metrônomo), a mudança é bem significativa por conta da dificuldade técnica encontrada para
executar o trecho no instrumento.
Corroboramos com a afirmação de Freire (2006), pois a escolha de um andamento é
essencial para a qualidade da performance musical (FREIRE, 2006, p. 1). Entretanto, o
intérprete não deve criar sem nenhum embasamento. Existem várias pontes de conexão para
esta criação, como o diálogo entre o compositor e intérprete, com a tradição oral/aural, com
texto, com a ecologia, com o corpo de conhecimento musical e com o público (DOMENICI,
2012, p. 175).
Por mais que o compositor tenha ficado inconformado com as mudanças adotadas por
Traulsen, trombonistas de importância no cenário musical internacional, como Trudel,
Lindberg e Steiner, já mencionados anteriormente, realizaram gravações da obra em
conformidade com as mudanças sugeridas por Palmer.
O descontentamento de um compositor com a interpretação conferida a uma de suas obras
nos remete a uma antiga discussão, na qual o papel da interpretação deveria estar ancorado
fielmente nas intenções do compositor, como se o papel da performance fosse a reevocação do
compositor (ABDO, 2000, p. 17). No entanto, estudo recentes como o de Domenici (2012)
apontam que o sentido da interpretação não reside na reevocação das intenções do compositor,
nem no diálogo isolado do intérprete consigo mesmo; estes novos apontamentos sobre a
performance, acreditam que a interpretação seja multifatorial. Em outras palavras, o intérprete
dialoga com todos que estão a sua volta, com seus mestres, com o compositor, partitura, entre
outros (DOMENICI, 2012, p. 175).
3. Conclusão
Quando um artista se prepara para a interpretação de uma obra, ele está sempre dando
origem a processo de pesquisa, ou seja, o ato de interpretar está enraizado na pesquisa, seja pela
procura em descobrir novas formas de tocar, pelo descobrimento de novas técnicas para facilitar
seus estudos, entre outras. Tudo isso é feito com intuito de entregar uma interpretação que seja
o retrato de si mesmo, algo novo, que seja sua marca pessoal, e não uma cópia de alguém, ou a
simples reprodução mecânica de uma partitura. Esta última pode ser executada por intermédio
de programas de computador, por exemplo, entretanto, quando máquinas falam, não ressoam a
voz de ninguém.
A partir do momento que um artista toca uma obra, trazendo para ela, não
exibicionismo, mas elementos musicais escondidas entre as notas, outros músicos tomam para
si tais modificações e de certa forma outros músicos fazem novas descobertas. Esse é um
caminho infinito que sempre possibilita novas descobertas, ou são retomadas interpretações
passadas (BOWEN, 1993).
Desta forma, é natural que a partitura, com a passar dos tempos, possa sofrer algumas
alterações, por causa dos intérpretes. Não por mero capricho ou arrogância do intérprete, mas
por se tratar de um processo de pesquisa, de criação e recriação de um texto escrito previamente,
porém repleto de possibilidades. Uma nova interpretação representa um olhar atento que o
artista tem com a obra. É tarefa dos intérpretes identificar, na obra, elementos musicais que
estavam ausentes ao olhar do compositor, sejam mudanças de andamento, de dinâmicas.
Durante esta etapa da pesquisa, ao analisarmos a partitura publicada com as ressalvas
do compositor e a partitura criada a partir da interpretação de Traulsen, foi possível identificar
que o intérprete promoveu mudanças de registro e de andamentos. Tais mudanças se
configuraram como um padrão interpretativo que se perpetuou ao longo dos anos, comprovado
a partir das gravações posteriores que foram realizadas por trombonistas de destaque no cenário
internacional e seguiram tal padrão estabelecido por Traulsen.
Sendo assim, esperamos que estas observações sirvam como ponto de partida para
aqueles instrumentistas que desejam compreender mais sobre as escolhas interpretativas de
Traulsen para o Concerto de Grøndahl. Além disso, continuar a investigação na tentativa de
encontrar outras mudanças originadas pelo intérprete que tenham sido incorporadas às
interpretações desta obra por músicos das gerações subsequentes.
Referências
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24, 2000. Disponível em:
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