Lavagem Nova Lei
Lavagem Nova Lei
Lavagem Nova Lei
Área de Direito
Penal.
RESUMO
O clássico modelo explicativo da lavagem de dinheiro em três fases
(colocação, estruturação, integração) não é o mais adequado para
entender o fenômeno. A lavagem de dinheiro deve ser vista como um
processo. As alterações promovidas pela Lei nº 12.683/2012 incluíram
novos sujeitos obrigados ao compliance, dentre os quais, os consultores
e os advogados que prestem os serviços descritos no inciso XIV do
artigo 9º da lei de lavagem. Com a ampliação do âmbito dos
antecedentes, torna-se mais importante refletir sobre a relação entre eles
e o crime de lavagem de dinheiro. A proveniência delitiva não deve ser
entendida sob uma ótica causalista, e sim em sua acepção jurídica e
econômica.
ABSTRACT
The cycle model of money laundering is not the most appropriate to
understand it. Money laundering should be seen as a process. Federal
law 12.683/2012 added new persons to the compliance regime, including
the legal professionals, when they act as consultants in the activities
listed in article 9, para XIV, of the money laundering law. In the new
configuration, where any crime is able to generate proceeds, the
relationship between the predicate crimes and money laundering is more
important. Proceeds must be understood in an economic and legal
approach.
Keywords
Money laundering. Compliance. Relationship between predicate crimes
and money laundering. Definition of proceeds.
RESUMEN
1
El clasico modelo del blanqueo en tres etapas no es el más adecuado
para comprender el fenómeno. El blanqueo es un proceso. La ley
12.683/2012 ha incluido nuevos sujetos obligados al compliance, dentre
los cuales los profesionales juridicos, cuando actuen como consultores
en las actividades descritas en el apartado XIV del artículo 9 de la ley
antiblanqueo. Después de la ampliación de los delitos previos es más
importante refletir sobre la relación entre ellos y el delito de blanqueo. La
procedencia delictiva debe ser entendida bajo una perspectiva jurídica y
económica, y no causalista.
Palabras-clave
Blanqueo de capitales. Compliance. Relación entre los delitos previos y
el blanqueo. Procedencia delictiva.
1. Introdução
Duas das principais novidades, a meu juízo, são a ampliação dos crimes
antecedentes e a inclusão de novos sujeitos obrigados. Gostaria de
começar, contudo, por uma questão antiga, para propor uma abordagem
nova: trata-se do conhecido modelo explicativo da lavagem de dinheiro
em três fases.
2
legal, sem os rastros da ilicitude, prontos para serem utilizados pelo
agente do crime antecedente, quer para desfrutar dos ganhos obtidos
criminosamente, quer para refinanciar novas atividades delitivas.
Na realidade, esse modelo não funciona. E por que ele não funciona?
Mas isso é apenas uma forma de isolar dois aspectos da economia que
existem de maneira simultânea e entrelaçada. Na prática, os mercados
‘negros’ estão interrelacionados, há uma mistura de empreendedores
individuais e empresas, grandes e pequenas, que estão engajadas em
trocas comerciais de longo alcance. Pouquíssimos navios transportarão
apenas artigos contrabandeados, não existe um banco comercial que se
dedique somente a lavar dinheiro de seus clientes, e, certamente, todo
‘empresário’ do crime que pretenda ter sucesso em suas atividades
procura se assegurar de que seus negócios ilícitos estejam ligados a um
emaranhado de transações comerciais legítimas.2
3
expedientes que, em si, são legais: compra de imóveis, compra de
moeda, constituição de empresas, aplicação no mercado financeiro
nacional ou internacional, remessa de valores para o exterior,
investimentos internacionais, etc.
4
porque o problema da criminalidade não é um problema apenas do
Estado, e de seus agentes. É um problema da sociedade, pois o crime
afeta a todos5 - principalmente em matéria da lavagem de dinheiro, onde
as vítimas são normalmente difusas, indeterminadas.
5
Compreende-se por APFNDs, na redação da lei brasileira, as pessoas
físicas ou jurídicas que prestem, mesmo que eventualmente, serviços de
assessoria, consultoria, contadoria, auditoria, aconselhamento ou
assistência, de qualquer natureza, em operações:
6
ADI é a 4841 e questiona constitucionalidade do inciso XIV do artigo 9º.
7
A história da criminalização da lavagem de dinheiro é uma história de
expansão. Em um primeiro aspecto, uma expansão horizontal, que
compreende a multiplicação de legislações similares em vários países do
mundo, criando um regime global de proibição. Em um segundo aspecto,
uma expansão vertical, que aprofundou o âmbito de sua aplicação,
dando origem a legislações de primeira, segunda e terceira gerações.
8
5. O que significa ser ‘proveniente, direta ou indiretamente, de
infração penal’?
9
ganhos para os fins de confisco (perdimento). Há dois posicionamentos
principais: o princípio dos ganhos líquidos e o princípio dos ganhos
brutos.7 Pelo princípio dos ganhos líquidos, somente poderia ser
considerado objeto material do crime de lavagem de dinheiro aquilo que
foi obtido com a prática da infração penal antecedente, depois de
descontados os valores nela investidos, ou seja, o lucro líquido, aquilo
que foi efetivamente acrescido ao patrimônio do agente. Por outro lado,
de acordo com o princípio dos ganhos brutos, seriam objeto material da
lavagem de dinheiro todos os bens obtidos com a infração penal
antecedente, sem que seja preciso descontar-se o valor nela investido.
Essa questão foi alvo de amplos debates nos EUA, quando a Suprema
Corte americana, no Caso Santos, entendeu que proceeds não era
definido pela lei de lavagem de dinheiro, daí porque a interpretação
deveria ser a mais favorável ao réu, no caso, o princípio dos ganhos
líquidos.8
10
indiretamente, através de alguma forma de atividade ilegal, incluindo os
ganhos brutos de tal atividade. É por isso que Blanco Cordero afirma que
os Estados Unidos foram do princípio dos ganhos brutos ao princípio dos
ganhos líquidos, e depois retornaram ao princípio dos ganhos brutos.
11
inclusão dos crimes contra a ordem tributária entre as infrações penais
antecedentes. Em segundo lugar, pela expressa referência, na
justificativa do projeto de lei, aos crimes contra a ordem tributária:
Também era ilógica a ausência no rol do art. 1º dos crimes contra a ordem tributária. Só
a sonegação na área da Previdência está em torno de 40%. Isso significaria, em 2002,
cerca de R$ 28 bilhões. Os latifundiários, que deveriam pagar R$ 2 bilhões de ITR por
ano, não chegam a pagar R$ 300 milhões, dada a falta de estrutura de fiscalização da
Receita Federal. São montantes que, além de acarretarem enriquecimento ilícito, são
9
suficientes para desestabilizar o bem jurídico tutelado pela lei.
12
Na doutrina italiana, a interpretação de ‘proveniência’ é obtida através de
dois filtros: um, de natureza dinâmica, que exalta as conotações
intrinsecamente coordenadas ao complemento de movimentação de
lugar (introduzido pela preposição da), e outro, de valência estática, que
põe em relevo o nexo de proveniência em sentido econômico,
conferindo-lhe o significado de derivação causal da atividade delituosa,
na qual o enriquecimento (ou também a ausência de empobrecimento)
encontraria sua origem e colocação. Em outros termos, a proveniência
exigiria: a) um fluxo de riqueza ilícita proveniente do exterior e confiscada
pelo reciclador que opera mediante substituição, transferência ou outras
operações, no primeiro caso (o de natureza dinâmica); b) a conservação
ilícita de um quantum já interiorizado na esfera patrimonial do réu por
meio de atividades legítimas, segundo a acepção estática.11
13
interpretação (gramatical, sistemático e histórico), o autor reflete sobre o
tema à luz da interpretação teleológica (considerando os objetivos da lei
que incrimina a conduta), passando então a questionar a relação de
causalidade: testa a aplicabilidade da teoria da equivalência das
condições, da teoria da adequação e da teoria da imputação objetiva.
14
No Brasil, o exame dos crimes tributários como antecedentes de lavagem
de dinheiro é ainda mais complexo em razão do entendimento do
Supremo Tribunal Federal, expresso na súmula vinculante 24:
Não se tipifica crime material contra a ordem tributária, previsto no art. 1º, incisos I a IV, da Lei nº
8.137/90, antes do lançamento definitivo do tributo.
A análise que desejo fazer aqui, contudo, supõe a hipótese de que esses
valores tenham sido auferidos licitamente. Assim como a remessa para o
exterior à margem das normas aplicáveis contamina de ilicitude os
valores saídos do território nacional, no caso do crime de evasão de
divisas, a parcela do patrimônio do agente que representa o tributo
15
devido (a cota defraudada, como referem os autores espanhóis) no crime
de sonegação fiscal igualmente macula essa parcela do patrimônio do
agente, o que a torna apta a ser objeto material da lavagem de dinheiro.
Essas são apenas algumas reflexões que quis trazer para o debate,
neste Seminário. Espero que contribuam para o desenvolvimento da
doutrina sobre lavagem de dinheiro.
1
FRIMAN, H. Richard; ANDREAS, Peter. “International Relations and the Illicit Global
Economy”. In: The Illicit Economy & State Power, Edited by H. Richard Friman & Peter Andreas
(orgs.) Lanham; Boulder; New York; Oxford: Rowman & Littlefield Publishers, Inc., 1999, p. 1.
2
DE CARLI, Carla. Lavagem de dinheiro: ideologia da criminalização e análise do discurso.
Porto Alegre: Verbo Jurídico, 2012, p. 71-72.
3
CERVINI, Raúl. “Panorama sobre la evolución de la legislación antilavado en el Uruguay”. RT.
Fasc. Pen. Ano 96, v. 861, julho 2007, p. 393.
4
DE CARLI, Carla. “Dos Crimes: aspectos Objetivos” In: DE CARLI, Carla (org.). Lavagem de
dinheiro: prevenção e controle penal. Porto Alegre: Verbo Jurídico: 2013, p. 231. O GAFI é um
16
grupo de trabalho internacional que elabora os padrões antilavagem de dinheiro, as chamadas
“40 Recomendações”; faz avaliações dos países quanto ao grau de cumprimento dessas
recomendações, e é uma importante referência na elaboração das políticas criminais relativas
ao crime de lavagem de dinheiro. Mais informações em www.fatf-gafi.org.
5
GARCÍA-PABLOS, Antonio. Tratado de Criminologia. Tirant lo Blanch: Valencia, p. 103.
6
Traduzindo-se, na ordem: soft law é o direito flexível, não judiricamente vinculante. Peer
Review é a revisão pelos pares (os demais países), e peer pressure é a pressão política feita
pelos pares.
7
Isidoro Blanco Cordero explica em detalhes esse debate. Para que se compreenda os efeitos
da distinção entre os dois princípios, traz o exemplo de um traficante que compra uma
determinada quantidade de droga por 1.000,00 e quando a vende obtém 3.000,00. Os ganhos
líquidos serão 2.000,00, depois de descontar-se dos 3.000,00 finais o valor de 1.000,00 que
foram o investimento inicial. Se adotarmos o princípio dos ganhos líquidos, somente seriam
objeto da lavagem de dinheiro – e portanto de perdimento – os 2.000,00. Se adotarmos o
princípio dos ganhos brutos, seriam objeto da lavagem de dinheiro e do posterior perdimento
os 3.000,00.(BLANCO CORDERO, Isidoro. El delito de blanqueo de capitales. 3ª ed. Cizur
Menor: Editorial Aranzadi, 2012, p. 251-262)
8
UNITED STATES v. SANTOS (No. 06-1005) 461 F. 3d 886, affirmed.
9
Justificação do PLS 209/2003, publicada no Diário do Senado Federal de 29 de maio de
2003, p. 13339-13340.
10
CASTALDO, Andrea. NADDEO, Marco. Il denaro sporco. Prevenzione e repressione nella
lotta al riciclaggio. Milão: CEDAM, 2010, p.155
11
Idem, ibidem.
12
CASTALDO, Andrea. NADDEO, Marco. Il denaro sporco. Prevenzione e repressione nella
lotta al riciclaggio. Milão: CEDAM, 2010, p.155
13
O tipo espanhol, previsto no art. 301 do Código Penal, inicia a descrição da conduta típica
pelo verbo nuclear ‘adquirir’: “El que adquiera, posea, utilice, convierta, o transmita bienes…”
BLANCO CORDERO, Isidoro. El delito de blanqueo de capitales, p. 339-340 e 451-452
14
BARTON, Stephan. Das Tatobjekt der Geldwäsche: Wann rührt ein Gegenstand aus einer
der im Katalog des § 261 I Nr. 1-3 StGB bezeichneten Straftaten her? (NStZ 1993, 159), p. 160.
15
“Ein Gegenstand rührt dann aus einer Katalogtat des § 261 StGB her, wenn die Vortat kausal
und adäquat für den Vermögensgegenstand in seiner konkreten Gestalt oder dessen
wirtschaftlicher Zuordnung ist und wenn der ursächliche Zusammenhang nicht aus normativen
Erwägungen – wegen fehlender rechtlicher Significanz der Vortat für den Gegenstand –
unterbrochen wird. Dem objetktiven Zweck des Gesetzes entsprechend führt ein solches
Verständnis sowohl zu der principiell gebotenen weiten Erfassung von in Betracht kommenden
geldwäschetauglichen Gegenständen als auch zur Verhinderung eines unendlichen
Ableitungszusammenhanges zwischen Vortat un Gegenstand.” BARTON, Stephan. Das
Tatobjekt der Geldwäsche: Wann rührt ein Gegenstand aus einer der im Katalog des § 261 I Nr.
1-3 StGB bezeichneten Straftaten her?, p.165. Para uma análise profunda da tese de Barton,
ver BLANCO CORDERO, Isidoro. El delito de blanqueo de capitales, p. 343-369.
16
Em tradução livre, Idem, p.414.
17
Idem, ibidem.
18
Em razão da acessoriedade limitada, não é necessário que seja culpável a conduta da
infração penal antecedente para que se possa ter o objeto material da lavagem de dinheiro.
19
Em outros casos, a declaração de valores ilícitos poderá se revelar uma técnica de lavagem
de dinheiro, na tentativa de “legitimar” o que não tem, na realidade, origem legal.
17