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Lavagem Nova Lei

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QUESTÕES ATUAIS SOBRE A LAVAGEM DE DINHEIRO

Carla Veríssimo De Carli


Procuradora Regional da República na 4ª Região. Mestre em Ciências Criminais pela PUCRS.
Especialista em Crime Organizado, Corrupção e Terrorismo pela Universidade de Salamanca
Doutoranda em Direito pela UFRGS. Doutoranda do Programa de Doctorado Estado de
Derecho y Gobernanza Global da Universidade de Salamanca.

Área de Direito
Penal.

RESUMO
O clássico modelo explicativo da lavagem de dinheiro em três fases
(colocação, estruturação, integração) não é o mais adequado para
entender o fenômeno. A lavagem de dinheiro deve ser vista como um
processo. As alterações promovidas pela Lei nº 12.683/2012 incluíram
novos sujeitos obrigados ao compliance, dentre os quais, os consultores
e os advogados que prestem os serviços descritos no inciso XIV do
artigo 9º da lei de lavagem. Com a ampliação do âmbito dos
antecedentes, torna-se mais importante refletir sobre a relação entre eles
e o crime de lavagem de dinheiro. A proveniência delitiva não deve ser
entendida sob uma ótica causalista, e sim em sua acepção jurídica e
econômica.

Palavras-chave. Lavagem de dinheiro. Compliance. Relação entre a


lavagem de dinheiro e a infração penal antecedente. Proveniência
delitiva.

ABSTRACT
The cycle model of money laundering is not the most appropriate to
understand it. Money laundering should be seen as a process. Federal
law 12.683/2012 added new persons to the compliance regime, including
the legal professionals, when they act as consultants in the activities
listed in article 9, para XIV, of the money laundering law. In the new
configuration, where any crime is able to generate proceeds, the
relationship between the predicate crimes and money laundering is more
important. Proceeds must be understood in an economic and legal
approach.

Keywords
Money laundering. Compliance. Relationship between predicate crimes
and money laundering. Definition of proceeds.

RESUMEN

1
El clasico modelo del blanqueo en tres etapas no es el más adecuado
para comprender el fenómeno. El blanqueo es un proceso. La ley
12.683/2012 ha incluido nuevos sujetos obligados al compliance, dentre
los cuales los profesionales juridicos, cuando actuen como consultores
en las actividades descritas en el apartado XIV del artículo 9 de la ley
antiblanqueo. Después de la ampliación de los delitos previos es más
importante refletir sobre la relación entre ellos y el delito de blanqueo. La
procedencia delictiva debe ser entendida bajo una perspectiva jurídica y
económica, y no causalista.

Palabras-clave
Blanqueo de capitales. Compliance. Relación entre los delitos previos y
el blanqueo. Procedencia delictiva.

Sumário. 1. Introdução. 2. A insuficiência do modelo explicativo de três


fases. 3. A inclusão de novos sujeitos obrigados. 4. A expansão da
criminalização da lavagem de dinheiro. 5. O que significa ser
“proveniente, direta ou indiretamente, de infração penal”?

1. Introdução

O tema deste Seminário Internacional são as “Questões atuais de direito


penal”. Pretendo, portanto, no painel sobre lavagem de dinheiro, trazer
algumas das questões que me parecem atuais, neste tema. Estruturei
minha abordagem tendo como foco as questões nacionais, cuja
discussão se impõe em razão das relevantes modificações trazidas pela
Lei nº 12.683/2012, que entraram em vigor em 10 de julho de 2012.

Duas das principais novidades, a meu juízo, são a ampliação dos crimes
antecedentes e a inclusão de novos sujeitos obrigados. Gostaria de
começar, contudo, por uma questão antiga, para propor uma abordagem
nova: trata-se do conhecido modelo explicativo da lavagem de dinheiro
em três fases.

2. A insuficiência do modelo explicativo de três fases

De acordo com esse conhecido modelo explicativo, a lavagem de


dinheiro ocorreria em três fases: uma fase inicial, que é a colocação dos
ativos ilícitos no sistema financeiro legal (placement), à qual se sucede a
fase da estratificação em diversas camadas de operações (layering),
culminando na fase final, chamada de integração (integration), quando os
ativos ilícitos, agora já “legitimados”, são reintroduzidos na economia

2
legal, sem os rastros da ilicitude, prontos para serem utilizados pelo
agente do crime antecedente, quer para desfrutar dos ganhos obtidos
criminosamente, quer para refinanciar novas atividades delitivas.

Acho que a adoção desse modelo traz problemas. De um lado, porque


pode levar à ideia de que se está a falar de fases do iter criminis, o que
não é o caso. Há também quem se utilize dessas etapas para avaliar, em
concreto, a relevância penal de uma conduta, no sentido de afirmar que,
se não se atingiu a fase da integração, não haveria lesão suficiente ao
bem jurídico.

Na realidade, esse modelo não funciona. E por que ele não funciona?

Primeiro, porque não corresponde com precisão à fenomenologia da


lavagem de dinheiro. Nem sempre as três etapas estão presentes, sendo
certo que podemos falar em lavagem de dinheiro consumada apenas
com a primeira etapa, a da colocação; outras vezes, as fases podem se
apresentar sobrepostas, não sendo possível uma nítida separação entre
colocação, estratificação e integração.

Depois, porque o modelo explicativo parte do pressuposto de uma


divisão (real) da economia. É claro que usamos os termos economia
global lícita para falar dos efeitos da globalização no campo econômico;
do conjunto de atividades econômicas que se desenvolvem dentro de um
marco de legalidade. Ao mesmo tempo, tratamos da economia global
ilícita como o sistema de atividades econômicas internacionais que são
criminalizadas pelos Estados nos países exportadores ou importadores
dos bens, serviços e práticas financeiras como o tráfico de drogas,
contrabando, tráfico de pessoas e de migrantes, despejo de lixo tóxico,
contrabando de armas, e a lavagem de dinheiro, obviamente.1

Mas isso é apenas uma forma de isolar dois aspectos da economia que
existem de maneira simultânea e entrelaçada. Na prática, os mercados
‘negros’ estão interrelacionados, há uma mistura de empreendedores
individuais e empresas, grandes e pequenas, que estão engajadas em
trocas comerciais de longo alcance. Pouquíssimos navios transportarão
apenas artigos contrabandeados, não existe um banco comercial que se
dedique somente a lavar dinheiro de seus clientes, e, certamente, todo
‘empresário’ do crime que pretenda ter sucesso em suas atividades
procura se assegurar de que seus negócios ilícitos estejam ligados a um
emaranhado de transações comerciais legítimas.2

O que ocorre é que dinheiro ‘lavado’ circula pelas mesmas instituições


financeiras utilizadas pelo sistema financeiro legítimo. Além disso, é da
essência da lavagem de dinheiro a pretensão de uma aparência de
legalidade, por isso, o ‘lavador’ normalmente utilizará instrumentos e

3
expedientes que, em si, são legais: compra de imóveis, compra de
moeda, constituição de empresas, aplicação no mercado financeiro
nacional ou internacional, remessa de valores para o exterior,
investimentos internacionais, etc.

Penso que é preciso abandonar a ideia das três etapas e pensar a


lavagem de dinheiro como um processo: um processo de legitimação de
um capital espúrio. Um processo que pode sempre ser aperfeiçoado,
mediante a adição de novas camadas de operações, as quais vão
distanciar cada vez mais o dinheiro de sua origem: a infração penal
antecedente.3 A visão da lavagem de dinheiro como um processo é
aparada pela definição do Grupo de Ação Financeira (GAFI) e por boa
parte da doutrina especializada.4

Jamais poderemos dizer que o objetivo da lavagem foi alcançado, no


sentido de que o dinheiro está, ao final, ‘limpo’, que é ‘legítimo’. Ele
sempre vai manter a ilicitude originária. O que a lavagem de dinheiro
consegue é dificultar – ou até mesmo impossibilitar – ao Estado a prova
dessa ilicitude e a recuperação dos bens e valores, mas isso é outra
coisa.

Para mim, o que a lei quer impedir é justamente o ‘processo’ de lavagem


de dinheiro; por isso ela elegeu alguns momentos dele, criminalizando-os
em distintos tipos penais. Eles não corresponderão necessariamente às
etapas da divisão mais conhecida do modelo de três fases, mas
representam quaisquer das várias camadas de operações que são
realizadas com o propósito de ocultar ou dissimular a verdadeira
natureza, origem, localização, disposição, movimentação ou propriedade
dos bens ou valores.

Isso, então, é o que caracteriza a lavagem de dinheiro – o que se oculta


ou se dissimula é a verdadeira natureza, origem, localização, disposição,
movimentação ou propriedade do bem.

3. A inclusão de novos sujeitos obrigados

O segundo aspecto que gostaria de abordar é uma das alterações


trazidas pela Lei nº12.683/2012: a inclusão de novos sujeitos obrigados.

No mundo inteiro, a política criminal que pretende enfrentar o fenômeno


da lavagem de dinheiro estrutura a ação em duas frentes: a prevenção e
a repressão penal.

No aspecto preventivo, a lógica é a de contar com setores da sociedade


civil – empresas e profissionais – como colaboradores do Estado na
chamada “luta” contra a lavagem de dinheiro. Penso que isso é acertado,

4
porque o problema da criminalidade não é um problema apenas do
Estado, e de seus agentes. É um problema da sociedade, pois o crime
afeta a todos5 - principalmente em matéria da lavagem de dinheiro, onde
as vítimas são normalmente difusas, indeterminadas.

A lavagem de dinheiro permite que condutas criminosas, inclusive as


muito danosas, permaneçam impunes. São os milhões desviados dos
cofres públicos, e que deixam de ser investidos na saúde, na educação,
no saneamento básico, que passam aos bolsos de indivíduos e são por
eles usufruídos quando o dinheiro público é ‘lavado’.

E são os frutos de todos os delitos que podem ser ‘lavados’, as fraudes


contra a Previdência, os crimes contra o sistema financeiro, ou seja,
todos aqueles que apresentem uma dimensão econômica ou patrimonial,
porque agora a lei os considera a todos infrações penais antecedentes.
Só pensar nisso já nos dá a dimensão da importância do enfrentamento
à lavagem de dinheiro. Nesse quadro, parece justificado que haja
participação dos setores privados na prevenção da lavagem.

A ideia básica do regime antilavagem de dinheiro é a de que os setores


pelos quais o dinheiro “sujo” transita façam o “dever de casa”, ou seja,
conheçam o seu cliente, guardem registros das operações realizadas, e
comuniquem a uma unidade de inteligência financeira quando as
transações despertarem suspeitas de serem feitas com produtos de
crimes.

A literatura sobre lavagem de dinheiro costuma chamar essas pessoas


de sujeitos obrigados. Obrigados aos deveres de compliance, ou seja, de
cumprir as normas e procedimentos do setor em que se inserem, seja
financeiro ou não-financeiro, da lei antilavagem, etc.

Em razão de estudos de tipologias desenvolvidos pelo GAFI já se


identificou que os profissionais jurídicos e consultores em geral –
financeiros, de contabilidade – oferecem serviços especializados a seus
clientes, propiciando uma lavagem de dinheiro mais refinada, mais difícil
de ser descoberta e comprovada, aos quais normalmente os agentes dos
crimes antecedentes não teriam acesso. É por isso que esses
profissionais são chamados de gatekeepers, ou porteiros, guardiões. São
os profissionais que dão acesso ao setor financeiro, contábil ou jurídico.

Pois a lei brasileira, com a inclusão do inciso XIV no artigo 9º da lei de


lavagem, incluiu os chamados APFNDs - Atividades e Profissões Não-
Financeiras Designadas nas obrigações dos artigos 10 e 11 da Lei nº
12.683/2012.

5
Compreende-se por APFNDs, na redação da lei brasileira, as pessoas
físicas ou jurídicas que prestem, mesmo que eventualmente, serviços de
assessoria, consultoria, contadoria, auditoria, aconselhamento ou
assistência, de qualquer natureza, em operações:

a) de compra e venda de imóveis, estabelecimentos comerciais ou


industriais ou participações societárias de qualquer natureza;
b) de gestão de fundos, valores mobiliários ou outros ativos;
c) de abertura ou gestão de contas bancárias, de poupança, investimento
ou de valores mobiliários;
d) de criação, exploração ou gestão de sociedades de qualquer natureza,
fundações, fundos fiduciários ou estruturas análogas;
e) financeiras, societárias ou imobiliárias; e
f) de alienação ou aquisição de direitos sobre contratos relacionados a
atividades desportivas ou artísticas profissionais.

A simples inclusão desses profissionais, nos deveres de compliance, já é


matéria nova e sujeita a polêmica, no cenário nacional. Mais polêmica e
contestada ainda é a questão de se os advogados estão incluídos nas
obrigações de compliance. A lei brasileira não referiu os advogados
expressamente, na redação do inciso XIV. Penso, entretanto, que a eles
se aplicam esses deveres, quando prestarem os serviços ali indicados.

O fato é que essa alteração visa dar cumprimento à Recomendação nº


23 do GAFI, pela qual se aplicam igualmente aos advogados, notários e
outras profissionais jurídicos, bem como consultores e assessores. O
GAFI publicou um Guia de Avaliação de Riscos para as Profissões
Jurídicas. Para regulamentar essas obrigações, em janeiro de 2013, o
COAF publicou a Resolução nº 24, que dispõe sobre os procedimentos a
serem adotados pelas pessoas físicas ou jurídicas não submetidas à
regulação de órgão próprio regulador, que prestem, mesmo que
eventualmente, serviços de assessoria, consultoria, contadoria, auditoria,
aconselhamento ou assistência, na forma do §1 do art. 14 da Lei nº
9.613/1998.

A Ordem dos Advogados do Brasil, apoiada em estudo de sua Comissão


Nacional de Estudos Constitucionais entendeu que os profissionais da
advocacia não se encontram sujeitos aos mecanismos de controle
introduzidos pelo inciso XIV do art. 9º da Lei nº 9.613/1998.

Foi proposta, em agosto de 2012, uma das ações diretas de


inconstitucionalidade que questionam dispositivos da nova lei. Na ação
proposta pela Confederação Nacional das Profissões Liberais (CNPL), a

6
ADI é a 4841 e questiona constitucionalidade do inciso XIV do artigo 9º.

A Procuradoria-Geral da República ofereceu parecer nesta ação direta de


inconstitucionalidade, afirmando a constitucionalidade do dispositivo. A
definição desta questão pelo STF é de suma importância, porque o que
se sustenta é que a lei está impondo, aos profissionais, e em especial
aos advogados, a violação do sigilo que existe entre esses profissionais
e seus clientes, e que é fundamental para garantir o pleno direito de
defesa.

Acho interessante examinar como essa questão foi resolvida no plano do


direito internacional e comparado. A recomendação 23 do GAFI - assim
como as Diretivas europeias que abordam a matéria – não impõem aos
advogados o dever de comunicar as operações suspeitas quando
estiverem atuando na condição de defensores, em processo judicial ou
administrativo, ou forem procurados pelos clientes para a ‘definição de
sua situação jurídica’. Ao contrário, a recomendação só se aplica quando
os profissionais estiverem exercendo consultoria nas matérias
anteriormente referidas.

Existem decisões, em matéria de direito comparado, sobre esse tipo de


exigência feita aos profissionais jurídicos. O Tribunal de Justiça da União
Europeia considerou que os deveres impostos aos advogados, de
colaborar com a prevenção à lavagem de dinheiro e de comunicar
operações suspeitas dos clientes, quando prestarem assistência ou
consultoria em operações financeiras ou imobiliárias não violam o direito
a um processo equitativo garantido pelos artigos 6º da Convenção
Europeia de Direitos Humanos e 6º, n.2, da União Europeia.

A Corte Europeia de Direitos Humanos, na mesma linha, reconheceu que


a imposição, aos advogados, dos deveres de informação e colaboração
em matéria de prevenção à lavagem de dinheiro em razão 3ª Diretiva,
bem como das normas de transposição ao direito interno não viola o
direito à privacidade previsto no artigo 8º da Convenção Europeia de
Direitos Humanos.

Nos Estados Unidos da América, questão já foi solucionada, tendo a


Associação Americana dos Advogados (American Bar Association)
elaborado inclusive um Guia de Boas Práticas para o exercício voluntário
dos deveres de prevenção, pelos advogados daquele país.

O terceiro e último aspecto que gostaria de trazer à reflexão é decorrente


da modificação do artigo 1º da lei de lavagem, que eliminou o rol de
crimes antecedentes, substituindo-a pela expressão ‘infração penal’.

4. A expansão da criminalização da lavagem de dinheiro

7
A história da criminalização da lavagem de dinheiro é uma história de
expansão. Em um primeiro aspecto, uma expansão horizontal, que
compreende a multiplicação de legislações similares em vários países do
mundo, criando um regime global de proibição. Em um segundo aspecto,
uma expansão vertical, que aprofundou o âmbito de sua aplicação,
dando origem a legislações de primeira, segunda e terceira gerações.

Em realidade, a repressão à lavagem de dinheiro revela um campo de


harmonização penal. Por que é importante que os países tenham
legislações semelhantes? Para possibilitar a mais ampla cooperação
jurídica internacional, no caso dos crimes transnacionais, em razão da
exigência da dupla incriminação.

Os tratados internacionais firmados no âmbito da ONU (Viena, Palermo e


Mérida) criam direitos e obrigações juridicamente vinculantes (hard law).
A base do regime global de proibição relativo ao crime de lavagem de
dinheiro se encontra aí. Mas o regime não se restringe a esses
instrumentos do direito internacional. Diversas iniciativas que não têm
força jurídica são fundamentais para forçar o cumprimento das
obrigações impostas pelos tratados: é a parte que cabe à soft law no
regime antilavagem. Por meio de pressões políticas e adotando
estratégias de peer review e peer pressure diversos organismos
internacionais conseguem fazer com que os Estados cumpram as
normas e atendam aos padrões internacionais.6 Nesse quadro,
fundamental é o papel do Grupo de Ação Financeira (GAFI, em francês,
ou FATF – Financial Action Task Force, em inglês), que elaborou as 40
Recomendações, as quais representam os standards internacionais em
matéria de lavagem de dinheiro.

O GAFI tem sido o ator mais importante para a promoção da


harmonização das legislações penais dos países, não importando se
pertencem ao sistema da common law , da civil law ou qualquer outro. E
é a regulamentação estrita da hard law, aliada à autorregulação
provocada pela soft law determina a harmonização das legislações
antilavagem de dinheiro.

Na evolução das legislações nacionais, a lavagem de dinheiro “descolou”


do tráfico de drogas – crime antecedente ao qual estava vinculada, na
primeira geração de leis de lavagem de dinheiro - e passou, hoje, a
combater toda a criminalidade que preocupa ao Estado. Esse é o quadro
brasileiro, após as alterações promovidas pela Lei nº 12.683/2012.

Quando qualquer delito pode ser antecedente da lavagem de dinheiro,


aumenta a complexidade do problema: qual a relação que existe entre o
objeto material da lavagem de dinheiro e a infração penal antecedente?

8
5. O que significa ser ‘proveniente, direta ou indiretamente, de
infração penal’?

O modelo de lista taxativa de crimes facilita a interpretação da


proveniência delitiva. Quando se passa a uma legislação de terceira
geração, essa facilidade desaparece, porque a lei não quando haverá (ou
não) lavagem de dinheiro, em razão da infração penal antecedente. Claro
está que não serão todos os delitos dos quais provirão bens, direitos ou
valores aptos a serem lavados. É aqui que a reflexão sobre a estrutura
típica do crime de lavagem de dinheiro e sua relação com o delito
antecedente passa a ser mais importante.

À primeira vista, a questão não parece difícil. A lei brasileira fala em


proveniência delitiva direta ou indireta. Proveniente significa que vem,
que provém; originário, procedente, oriundo. Provir significa ser
proveniente de, vir, proceder, sair, ter origem em, originar-se, derivar, ser
o resultado de, resultar.

Um bem provém diretamente de uma infração penal quando for o produto


desse delito; e indiretamente, quando representar qualquer bem ou valor
que constitua proveito auferido pelo agente, na forma da alínea “b”, inciso
II, do artigo 91 do Código Penal.

A referência da lei à proveniência indireta do bem serve para alcançar os


bens nos quais os produtos da infração penal antecedente são
convertidos ou transferidos, e para os quais se transmite a ilicitude, no
processo típico de lavagem de dinheiro (sucessivas camadas de
operações). Esse processo também pode ser compreendido como a
lavagem de dinheiro em cadeia, ou o riciclaggio indiretto, que significa a
substituição, a transferência ou a realização de outras operações que
incidam sobre o bem objeto de condutas precedentes de lavagem.

Os bens poderão ser indiretamente provenientes de infração penal


quando forem resultado de uma operação de lavagem de dinheiro
(conversão, transferência, movimentação, etc.) tanto no caso em que
houver perda de valor (pelo custo que normalmente tem a lavagem de
dinheiro, as chamadas perdas necessárias) como quando, em virtude
dos investimentos (aplicação no mercado financeiro, venda de imóvel
com ganho de capital) houver um ganho financeiro, ou lucro. Essa
parcela dos ganhos e dos lucros é indiretamente proveniente da infração
penal, e, portanto, objeto material do delito de lavagem de dinheiro,
sujeita a sequestro e perdimento.

Na prática, porém, o problema é mais complexo. Em direito comparado


discute-se, em tema de lavagem de dinheiro, o que se deve entender por

9
ganhos para os fins de confisco (perdimento). Há dois posicionamentos
principais: o princípio dos ganhos líquidos e o princípio dos ganhos
brutos.7 Pelo princípio dos ganhos líquidos, somente poderia ser
considerado objeto material do crime de lavagem de dinheiro aquilo que
foi obtido com a prática da infração penal antecedente, depois de
descontados os valores nela investidos, ou seja, o lucro líquido, aquilo
que foi efetivamente acrescido ao patrimônio do agente. Por outro lado,
de acordo com o princípio dos ganhos brutos, seriam objeto material da
lavagem de dinheiro todos os bens obtidos com a infração penal
antecedente, sem que seja preciso descontar-se o valor nela investido.

Essa questão foi alvo de amplos debates nos EUA, quando a Suprema
Corte americana, no Caso Santos, entendeu que proceeds não era
definido pela lei de lavagem de dinheiro, daí porque a interpretação
deveria ser a mais favorável ao réu, no caso, o princípio dos ganhos
líquidos.8

A discussão é importante, e os dois lados têm argumentos em seu favor.


Em defesa do princípio dos ganhos brutos estão argumentos de justiça
(não é justo que aquele que comete um delito possa beneficiar-se dele;
além disso, deve assumir o risco de perder os bens que investiu em sua
prática); argumentos de ordem prática (seria dificílimo ao Estado imiscuir-
se na contabilidade – nem sempre existente - do agente do delito,
comprovando o que foi investido e o quanto foi efetivamente ganho), e de
política criminal (o caráter dissuasório do perdimento de todos os bens
envolvidos na prática da infração penal, na linha da prevenção geral).

Em defesa do princípio dos ganhos líquidos se alega que o perdimento


de todas as receitas obtidas com a infração penal, incluídos os gastos
realizados pelo agente para sua prática, vão além da ideia de
neutralização do enriquecimento ilícito, atingindo (eventualmente)
patrimônio lícito anteriormente existente; que facilitar a prova do que
sejam os ganhos por tomá-los como ganhos brutos não poderia servir
para limitar garantias e direitos, e, finalmente, que seria igualmente
injusto determinar o perdimento do patrimônio legal que foi investido na
prática da infração penal porque esse patrimônio não teria sido obtido
criminosamente, não representando um enriquecimento ilícito.

Em resposta à decisão da Suprema Corte no Caso Santos e aos efeitos


que ela teve quanto à eficácia da lei de lavagem de dinheiro americana,
no ano seguinte o Congresso norteamericano aprovou uma nova lei,
chamada Fraud Enforcement and Recovery Act of 2009 (ou FERA) - uma
lei geral sobre a fraude, e que se destinava igualmente a disciplinar a
recuperação de ativos de diversos delitos. Na Seção 2 (f) a lei faz uma
emenda ao 18 USC 1956 (c) para definir proceeds of unlawful activity
como qualquer propriedade derivada, obtida ou possuída, direta ou

10
indiretamente, através de alguma forma de atividade ilegal, incluindo os
ganhos brutos de tal atividade. É por isso que Blanco Cordero afirma que
os Estados Unidos foram do princípio dos ganhos brutos ao princípio dos
ganhos líquidos, e depois retornaram ao princípio dos ganhos brutos.

Em estudo anterior, já fiz referência ao julgado do Caso Santos, dizendo


que a questão ali discutida não se colocava no direito brasileiro, em
razão da Lei nº 9.613/1998 definir o objeto material do delito como “os
bens, direitos ou valores provenientes, direta ou indiretamente, de
crime...” Mesmo na redação anterior da Lei nº 9.613/98, contudo,
colocava-se uma questão similar, ainda que não na amplitude da
discussão que gira em torno do princípio dos ganhos brutos ou líquidos:
é a de que o objeto material da lavagem de dinheiro seja representado
pelos valores que tenham sido gerados pelo crime antecedente, de forma
a representar um acréscimo ao patrimônio do agente. Com efeito, a
própria exposição de motivos da lei consignava, como justificativa para
deixar de incluir o crime contra a ordem tributária no rol de crimes
antecedentes:

Observe-se que a lavagem de dinheiro tem como característica a introdução, na


economia, de bens, direitos ou valores oriundos de atividade ilícita e que representaram,
no momento de seu resultado, um aumento no patrimônio do agente. Por isso que o
projeto não inclui, nos crimes antecedentes, aqueles delitos que não representam
agregação, ao patrimônio do agente, de novos bens, direitos ou valores, como é o caso
da sonegação fiscal. Nesta, o núcleo do tipo constitui-se na conduta de deixar de
satisfazer obrigação fiscal. Não há, em decorrência de sua prática, aumento de
patrimônio com a agregação de valores novos. Há, isto sim, manutenção de patrimônio
existente em decorrência do não pagamento de obrigação fiscal. Seria desarrazoado se
o projeto viesse a incluir no novo tipo penal lavagem de dinheiro – a compra, por quem
não cumpriu obrigação fiscal, de títulos no mercado financeiro. É evidente que essa
transação se constitui na utilização de recursos próprios que não têm origem em um
ilícito.

Essa interpretação parece coincidir com o princípio dos ganhos líquidos,


no sentido de que somente seria objeto material da lavagem de dinheiro
o lucro líquido, porque é algo que se acrescenta ao patrimônio anterior
do agente – seja ele lícito ou ilícito. Não farei aqui uma análise do crime
de sonegação fiscal – ou, mais tecnicamente, do crime contra a ordem
tributária – como antecedente do crime de lavagem de dinheiro, porque
isso extrapola os objetivos do presente artigo. Observo, apenas, que,
caso tenha sido essa a intenção do legislador como critério geral (e creio
que não foi, tanto que em relação aos demais crimes anteriormente
incluídos nos incisos do artigo 1º da lei essas considerações não
costumavam importar, como a prática cotidiana dos tribunais revela) ela
foi modificada com a edição da Lei nº 12.683/2012. Em primeiro lugar,
pelo fato de uma das principais alterações ter sido a abertura do âmbito
dos delitos antecedentes a um grau máximo, para abranger quaisquer
crimes ou contravenções penais, o que determina, logicamente, a

11
inclusão dos crimes contra a ordem tributária entre as infrações penais
antecedentes. Em segundo lugar, pela expressa referência, na
justificativa do projeto de lei, aos crimes contra a ordem tributária:

Também era ilógica a ausência no rol do art. 1º dos crimes contra a ordem tributária. Só
a sonegação na área da Previdência está em torno de 40%. Isso significaria, em 2002,
cerca de R$ 28 bilhões. Os latifundiários, que deveriam pagar R$ 2 bilhões de ITR por
ano, não chegam a pagar R$ 300 milhões, dada a falta de estrutura de fiscalização da
Receita Federal. São montantes que, além de acarretarem enriquecimento ilícito, são
9
suficientes para desestabilizar o bem jurídico tutelado pela lei.

Se, antes, o legislador expressara que a utilização dos recursos omitidos


à tributação se dava sobre recursos próprios, que não tinham origem em
um delito, agora ele afirma que os crimes contra a ordem tributária
implicam em enriquecimento ilícito. É claro que a intenção do legislador
não deve ser o único critério para a interpretação da lei, mas o que
observo – e aqui retorno ao princípio da reflexão – é que as modificações
introduzidas pela Lei nº 12.683/2012 se inserem num outro momento da
história da criminalização da lavagem de dinheiro, qual seja, a era das
legislações de terceira geração.

O exame das demais disposições relativas ao perdimento, como


consequência da condenação, reforçam o entendimento de que a lei de
lavagem de dinheiro em vigor contempla o princípio dos ganhos brutos,
relativamente ao objeto material do crime de lavagem de dinheiro. Além
disso, essa interpretação é a que melhor se amolda, em minha opinião,
às finalidades das leis antilavagem de dinheiro: evitar a fruição dos bens
ou valores obtidos ilicitamente, bem como impedir o refinanciamento de
atividades criminosas, além de resguardar a circulação lícita de bens na
economia.

As dificuldades interpretativas sobre o conceito de proveniência ilícita


surgem especialmente depois que as legislações eliminam o rol de
crimes antecedentes, como ocorreu na Itália, após a reforma de 1993.
Castaldo explica que a noção de proveniência ilícita, fundamental para
uma aplicação não excessivamente ampla das leis de lavagem, torna
mais complexo o pressuposto positivo do crime de lavagem de dinheiro,
ao mesmo tempo em que debilita (se não faz desaparecer) o valor da
jurisprudência cronologicamente precedente a essa alteração legislativa.
Uma leitura estritamente causal poderia, segundo o autor, estender a
limites preocupantes a expressão “proveniente de delito”. Depois de
examinar os conceitos de preço, provento e profitto do crime, e afirmar
que também a lavagem indireta (ou em cadeia) é sancionada, afirma que
a preferência deve ser por uma acepção jurídica (e não naturalística) de
proveniência ilícita, o que torna dispensável a relação direta com os bens
ou valores produzidos pelo delito antecedente, para fins de configuração
da lavagem de dinheiro.10

12
Na doutrina italiana, a interpretação de ‘proveniência’ é obtida através de
dois filtros: um, de natureza dinâmica, que exalta as conotações
intrinsecamente coordenadas ao complemento de movimentação de
lugar (introduzido pela preposição da), e outro, de valência estática, que
põe em relevo o nexo de proveniência em sentido econômico,
conferindo-lhe o significado de derivação causal da atividade delituosa,
na qual o enriquecimento (ou também a ausência de empobrecimento)
encontraria sua origem e colocação. Em outros termos, a proveniência
exigiria: a) um fluxo de riqueza ilícita proveniente do exterior e confiscada
pelo reciclador que opera mediante substituição, transferência ou outras
operações, no primeiro caso (o de natureza dinâmica); b) a conservação
ilícita de um quantum já interiorizado na esfera patrimonial do réu por
meio de atividades legítimas, segundo a acepção estática.11

As diversas consequências que decorrem das premissas anteriores


incidem de maneira decisiva sobre a inclusão, ou não, dos delitos
antecedentes que produzem vantagens econômicas sob forma de
economia, ou ausência de empobrecimento, como é o caso dos crimes
fiscais: de acordo com a acepção expressa em a), tais condutas seriam
excluídas da lavagem de dinheiro. Na acepção da hipótese b), essas
mesmas condutas seriam incluídas e sancionadas.12

A doutrina espanhola reconhece as dificuldades que advém das noções


referidas à procedência delitiva: uma interpretação meramente gramatical
poderia indicar que os bens têm origem em um delito antecedente
quando nele nascem ou dele são provenientes. Outros tipos de
interpretação, como a histórica ou teleológica, realizam-se em função da
evolução legislativa de cada Estado e os fins que se pretendem alcançar
com a incriminação da lavagem de dinheiro. Ao analisar a ação típica de
blanqueo de capitales, entretanto, Blanco Cordero afirma não ser
necessário que se produza um incremento patrimonial, porque a
aquisição de um bem também ocorre quando se paga por ele um preço
muito superior ao real, o que produz uma diminuição do patrimônio, em
sentido econômico.13

Um dos estudos mais citados quando o ponto debatido é a interpretação


do que seja a proveniência delitiva é sem dúvida o de Barton, que propõe
critérios para determinar quando um bem procede e quando não procede
de um delito antecedente. Essa delimitação é necessária porque um bem
que possui valor econômico e tem sua origem num delito não deve ser
visto para sempre como inapto para a circulação na economia e, em
consequência, ser excluído definitivamente das transações comerciais.14

Depois de analisar a relação entre o crime antecedente e o objeto


material da lavagem de dinheiro pela ótica dos métodos clássicos de

13
interpretação (gramatical, sistemático e histórico), o autor reflete sobre o
tema à luz da interpretação teleológica (considerando os objetivos da lei
que incrimina a conduta), passando então a questionar a relação de
causalidade: testa a aplicabilidade da teoria da equivalência das
condições, da teoria da adequação e da teoria da imputação objetiva.

Barton rejeita a causalidade determinada pela equivalência das


condições (a conhecida fórmula da conditio sine qua non) porque ela
estende ao infinito a contaminação dos bens que constam numa cadeia
de conversões, transferências e operações típicas da lavagem de
dinheiro, já que todos seriam considerados provenientes do delito inicial.
Acaba por concluir que um bem provém de uma infração antecedente
quando esta for a responsável pela concreta configuração da existência,
composição material, valor ou titularidade econômica dele, e quando a
relação causal não for rompida por considerações normativas (carência
de significação jurídica do antecedente para o objeto material da lavagem
de dinheiro). Correspondendo às finalidades objetivas da lei esse
entendimento conduziria tanto à aplicação da norma a um amplo leque
de bens e valores aptos à lavagem de dinheiro, assim como evitaria uma
interminável derivação do nexo entre infração antecedente e objeto
material.15

Depois de examinar algumas reflexões da doutrina de direito comparado,


penso que o entendimento que considera necessário o incremento
patrimonial, para que se possa falar de proveniência ilícita do objeto
material de lavagem de dinheiro, está ligado a uma concepção
estritamente causalista. Como afirma Blanco Cordero, os detratores
assinalam que a relação causal com a atividade delitiva impõe que o
autor obtenha algo que não tinha antes do delito, e que este produza um
incremento do patrimônio material de seus autores ou partícipes. los
detractrores señalan que la relación causal con la actividad delictiva
precisa que el autor obtenga algo que no tenía antes del delito y que éste
produzca un incremento del patrimonio material de sus autores o
partícipes.16 Porém, o autor logo rejeita essa conclusão, ao analisar a
possibilidade do delito fiscal ser antecedente de lavagem de dinheiro.

Se, de um lado, há quem considere que aquele que, mediante fraude


consistente na omissão de informação quando existente o dever de
declarar sofre um não-empobrecimento pelo não-recolhimento dos
tributos devidos, Blanco Cordero afirma sem hesitação que aplicando as
teorias causais válidas na ciência jurídico-penal o delito fiscal supõe um
aumento do patrimônio do sonegador, com bens ou valores que de outro
modo não estariam nele. O valor do imposto não recolhido é justamente
a medida do incremento do patrimônio.17

14
No Brasil, o exame dos crimes tributários como antecedentes de lavagem
de dinheiro é ainda mais complexo em razão do entendimento do
Supremo Tribunal Federal, expresso na súmula vinculante 24:

Não se tipifica crime material contra a ordem tributária, previsto no art. 1º, incisos I a IV, da Lei nº
8.137/90, antes do lançamento definitivo do tributo.

A jurisprudência nacional tem entendido que, antes da constituição


definitiva do crédito tributário, não poderá haver a propositura de ação
penal, e sequer instauração inquérito policial para investigação.

Como fica o processo e o julgamento da lavagem de dinheiro do produto


da sonegação fiscal? É certo que a autonomia entre os delitos é
tranquilamente reconhecida, mas como se fixará o debate em torno
desse ponto, quando os valores têm origem num crime fiscal, no Brasil?

Há ainda outros delitos que têm comportado discussão, em casos


concretos, como o é a evasão fiscal, onde já se sustentou que os valores
evadidos são lícitos e já integravam o patrimônio do agente, não
importando em crescimento patrimonial, pelo que não poderiam ser
antecedentes de lavagem de dinheiro.

As questões não são simples, e o debate acadêmico é importante.


Pessoalmente, penso que a ilicitude de um bem ou valor se origina com a
prática de uma infração penal (considerada, aqui, somente a ilicitude e
antijuridicidade da conduta18) que possua significação econômica. Não é
necessário que provoque um aumento do patrimônio do agente. Mesmo
um delito que mantenha o quantum do patrimônio, representando
somente uma circulação ilícita de valores, como ocorre com a evasão de
divisas, pode ser antecedente da lavagem de dinheiro, porque macula os
valores que saíram do território nacional em desacordo com as normas
aplicáveis.

Aliás, com frequência se diz que a evasão de divisas e os crimes contra


a ordem tributária não poderiam ser antecedentes do crime de lavagem
de dinheiro porque seu objeto material seria composto por valores lícitos,
que já integravam o patrimônio do agente. Não é sempre esse o caso,
todavia. Muitas vezes são justamente os valores ilicitamente obtidos que
são remetidos para o exterior, a fim de torná-los seguros para fruição. E,
apesar de ser possível a tributação de atos ilícitos, na maior parte das
vezes a renda ilícita é escondida do Fisco.19

A análise que desejo fazer aqui, contudo, supõe a hipótese de que esses
valores tenham sido auferidos licitamente. Assim como a remessa para o
exterior à margem das normas aplicáveis contamina de ilicitude os
valores saídos do território nacional, no caso do crime de evasão de
divisas, a parcela do patrimônio do agente que representa o tributo

15
devido (a cota defraudada, como referem os autores espanhóis) no crime
de sonegação fiscal igualmente macula essa parcela do patrimônio do
agente, o que a torna apta a ser objeto material da lavagem de dinheiro.

A proveniência delitiva é melhor compreendida quando é tomada em sua


acepção jurídica e econômica, e não no sentido naturalístico ou
estritamente causalista.

A noção de contaminação desenvolvida pela doutrina alemã parece-me


perfeitamente adequada para descrever a transmissão da ilicitude que
ocorre pela conversão de um bem em outro, em uma das manifestações
típicas da lavagem de dinheiro. E, por isso mesmo, é correta a ideia da
descontaminação, que evita que a mancha da ilicitude se alastre por toda
a economia.

Por outro lado, se a ilicitude do bem ou valor começa com a prática de


uma infração penal, termina, por exemplo quando for determinado seu
perdimento em razão de decisão condenatória definitiva. Isso porque se
trata de uma recuperação do bem para a reparação do dano causado ou
para adjudicação para a União ou para o Estado-membro (art. 4-A, §§ 10
e 11 da Lei nº 9.613/98). Os bens ou valores perdidos, restituídos ao
lesado ou ao terceiro de boa-fé, leiloados a particulares ou adjudicados
ao Estado não mais portarão a marca da ilicitude, podendo livremente
circular na economia. Rompeu-se o nexo que os ligava à infração penal
antecedente.

Essas são apenas algumas reflexões que quis trazer para o debate,
neste Seminário. Espero que contribuam para o desenvolvimento da
doutrina sobre lavagem de dinheiro.

1
FRIMAN, H. Richard; ANDREAS, Peter. “International Relations and the Illicit Global
Economy”. In: The Illicit Economy & State Power, Edited by H. Richard Friman & Peter Andreas
(orgs.) Lanham; Boulder; New York; Oxford: Rowman & Littlefield Publishers, Inc., 1999, p. 1.
2
DE CARLI, Carla. Lavagem de dinheiro: ideologia da criminalização e análise do discurso.
Porto Alegre: Verbo Jurídico, 2012, p. 71-72.
3
CERVINI, Raúl. “Panorama sobre la evolución de la legislación antilavado en el Uruguay”. RT.
Fasc. Pen. Ano 96, v. 861, julho 2007, p. 393.
4
DE CARLI, Carla. “Dos Crimes: aspectos Objetivos” In: DE CARLI, Carla (org.). Lavagem de
dinheiro: prevenção e controle penal. Porto Alegre: Verbo Jurídico: 2013, p. 231. O GAFI é um

16
grupo de trabalho internacional que elabora os padrões antilavagem de dinheiro, as chamadas
“40 Recomendações”; faz avaliações dos países quanto ao grau de cumprimento dessas
recomendações, e é uma importante referência na elaboração das políticas criminais relativas
ao crime de lavagem de dinheiro. Mais informações em www.fatf-gafi.org.
5
GARCÍA-PABLOS, Antonio. Tratado de Criminologia. Tirant lo Blanch: Valencia, p. 103.
6
Traduzindo-se, na ordem: soft law é o direito flexível, não judiricamente vinculante. Peer
Review é a revisão pelos pares (os demais países), e peer pressure é a pressão política feita
pelos pares.
7
Isidoro Blanco Cordero explica em detalhes esse debate. Para que se compreenda os efeitos
da distinção entre os dois princípios, traz o exemplo de um traficante que compra uma
determinada quantidade de droga por 1.000,00 e quando a vende obtém 3.000,00. Os ganhos
líquidos serão 2.000,00, depois de descontar-se dos 3.000,00 finais o valor de 1.000,00 que
foram o investimento inicial. Se adotarmos o princípio dos ganhos líquidos, somente seriam
objeto da lavagem de dinheiro – e portanto de perdimento – os 2.000,00. Se adotarmos o
princípio dos ganhos brutos, seriam objeto da lavagem de dinheiro e do posterior perdimento
os 3.000,00.(BLANCO CORDERO, Isidoro. El delito de blanqueo de capitales. 3ª ed. Cizur
Menor: Editorial Aranzadi, 2012, p. 251-262)
8
UNITED STATES v. SANTOS (No. 06-1005) 461 F. 3d 886, affirmed.
9
Justificação do PLS 209/2003, publicada no Diário do Senado Federal de 29 de maio de
2003, p. 13339-13340.
10
CASTALDO, Andrea. NADDEO, Marco. Il denaro sporco. Prevenzione e repressione nella
lotta al riciclaggio. Milão: CEDAM, 2010, p.155
11
Idem, ibidem.
12
CASTALDO, Andrea. NADDEO, Marco. Il denaro sporco. Prevenzione e repressione nella
lotta al riciclaggio. Milão: CEDAM, 2010, p.155
13
O tipo espanhol, previsto no art. 301 do Código Penal, inicia a descrição da conduta típica
pelo verbo nuclear ‘adquirir’: “El que adquiera, posea, utilice, convierta, o transmita bienes…”
BLANCO CORDERO, Isidoro. El delito de blanqueo de capitales, p. 339-340 e 451-452
14
BARTON, Stephan. Das Tatobjekt der Geldwäsche: Wann rührt ein Gegenstand aus einer
der im Katalog des § 261 I Nr. 1-3 StGB bezeichneten Straftaten her? (NStZ 1993, 159), p. 160.
15
“Ein Gegenstand rührt dann aus einer Katalogtat des § 261 StGB her, wenn die Vortat kausal
und adäquat für den Vermögensgegenstand in seiner konkreten Gestalt oder dessen
wirtschaftlicher Zuordnung ist und wenn der ursächliche Zusammenhang nicht aus normativen
Erwägungen – wegen fehlender rechtlicher Significanz der Vortat für den Gegenstand –
unterbrochen wird. Dem objetktiven Zweck des Gesetzes entsprechend führt ein solches
Verständnis sowohl zu der principiell gebotenen weiten Erfassung von in Betracht kommenden
geldwäschetauglichen Gegenständen als auch zur Verhinderung eines unendlichen
Ableitungszusammenhanges zwischen Vortat un Gegenstand.” BARTON, Stephan. Das
Tatobjekt der Geldwäsche: Wann rührt ein Gegenstand aus einer der im Katalog des § 261 I Nr.
1-3 StGB bezeichneten Straftaten her?, p.165. Para uma análise profunda da tese de Barton,
ver BLANCO CORDERO, Isidoro. El delito de blanqueo de capitales, p. 343-369.
16
Em tradução livre, Idem, p.414.
17
Idem, ibidem.
18
Em razão da acessoriedade limitada, não é necessário que seja culpável a conduta da
infração penal antecedente para que se possa ter o objeto material da lavagem de dinheiro.
19
Em outros casos, a declaração de valores ilícitos poderá se revelar uma técnica de lavagem
de dinheiro, na tentativa de “legitimar” o que não tem, na realidade, origem legal.

17

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