EXCELENTÍSSIMO
EXCELENTÍSSIMO
EXCELENTÍSSIMO
I. DOS FATOS
João das Couves foi preso em flagrante em dd/mm/aaaa, por ter praticado
atos libidinosos e consistentes com sexo oral e conjunção carnal com sua
namorada, que na época dos fatos tinha 13 anos de idade.
Os policiais civis, cientes de toda a ocorrência, foram até a residência de João
das Couves quando ele estava acompanhado da namorada e bateram à porta,
solicitando a entrada.
O chamado não foi atendido, já que João das Couves estava em um momento
íntimo com a namorada, porém, os policiais invadiram o local sem terem
certeza de que o investigado estaria praticando algum crime.
Sem autorização para a entrada e sem mandado judicial, e na expectativa de
flagrarem o investigado nos atos sexuais, os policiais civis de fato conseguiram
realizar a prisão em flagrante de João das Couves durante a prática da
conjunção carnal.
Após o flagrante, João das Couves foi encaminhado para o Instituto Médico
Legal (IML), para fazer o exame de corpo de delito onde foram mencionadas
lesões sofridas por parte dos policiais civis no momento da prisão.
O Juiz responsável pelos fatos, após receber o auto de prisão em flagrante,
designou audiência de custódia para a oitiva do acusado e ficar a par dos
moldes em que se deu a sua prisão. Após 72 horas preso, foi designada a
audiência de custódia, juntando-se à folha de antecedentes criminais do
acusado, que era primário e de bons antecedentes.
Nessa assentada, foi requerido o relaxamento da prisão ilegal, tendo o
Ministério Público requerido a conversão da prisão em flagrante em prisão
preventiva, uma vez que o fato é considerado hediondo e praticado contra uma
pessoa menor de 14 anos.
Todavia, o magistrado com atuação na audiência de custódia entendeu por
bem decretar a prisão preventiva com base nos seguintes fundamentos:
“Entendo que o prazo legal de 24 horas para a realização da
audiência de custódia é impróprio e não merece ser cumprido à
risca; a invasão de domicílio feita pelos policiais é justificável,
pois estava ali sendo praticado um crime hediondo,
constituindo a ausência de consentimento mera irregularidade;
eventuais abusos cometidos contra o acusado devem ser
resolvidos na via própria”.
Destarte, o réu fora denunciado na forma transcrita acima, sendo que a defesa
pugnou pela rejeição da peça acusatória, uma vez que não fora atestada a
materialidade do crime narrado por ausência de laudo pericial. Além disso, foi
requerido pelo regular enquadramento dos fatos num único crime de estupro do
vulnerável, forte na ideia de ser um tipo misto alternativo.
Não obstante, o magistrado decidiu pelo prosseguimento do feito, uma vez
que concordou integralmente com a peça acusatória do Ministério Público,
entendendo que os fatos seriam apurados por ocasião da instrução processual
em audiência específica.
Na citada audiência, primeiramente, interrogou-se o acusado, não foi ouvido
perito e nem juntado exame de corpo de delito. Ouviram-se as testemunhas de
acusação e as de defesa. As testemunhas, de modo geral, disseram que não
viram nenhum ato sexual, mas ouviram dizer que o acusado e a vítima
mantinham relações sexuais há bastante tempo. A vítima, ouvida ao final, disse
que praticou os atos sexuais narrados na denúncia, mas fez de forma livre e
espontânea, tendo acrescentado que sempre mentira sobre a sua idade real de
13 anos e dizia para o seu namorado, ora acusado, que tinha 17 anos de
idade.
Ao final da audiência, foi aberta vista para a acusação e defesa apresentarem
as suas considerações finais, no prazo de cinco dias. O Ministério Público
ofertou suas considerações, requerendo a condenação na forma proposta pela
denúncia criminal.
Pela análise dos dispositivos acima citados, especialmente o art. 400, CPP,
que regulamenta a audiência de instrução e julgamento, percebe-se que o
interrogatório deve ser feito ao final, em homenagem aos princípios
constitucionais do contraditório, ampla defesa e devido processo legal.
Por se tratar de uma imposição constitucional (devido processo legal), a
inversão do rito processual do interrogatório, sendo feita ao início da audiência
de instrução e julgamento, gerará uma nulidade, ferindo de morte a
possibilidade de contraditório, bem como agride violentamente a ampla defesa.
Acerca desse pensamento que demonstra a nulidade do interrogatório feito no
início do processo, por dilapidar princípios constitucionais, cita-se o presente
julgado do Superior Tribunal de Justiça:
EMENTA AGRAVO REGIMENTAL NO HABEAS
CORPUS. TRÁFICO DE DROGAS E ASSOCIAÇÃO PARA O
TRÁFICO. ALEGAÇÃO DE NULIDADE DECORRENTE DA
INVERSÃO DO MOMENTO DE REALIZAÇÃO DO
INTERROGATÓRIO. ART. 400 DO CPP. INSTRUÇÃO JÁ
FINALIZADA NA DATA DA PUBLICAÇÃO DO ACÓRDÃO
LAVRADO PELO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL SOBRE O
TEMA. SEGURANÇA JURÍDICA. AGRAVO DESPROVIDO.
1. O Supremo Tribunal Federal, no julgamento do HC n.
127.900/AM, firmou o entendimento de que o rito descrito no
art. 400 do CPP devia ser aplicado inclusive aos
procedimentos previstos na legislação penal militar, eleitoral e
nas leis extravagantes, como a Lei n. 11.343/2006.
2. No entanto, no mencionado julgado, ficou ressalvado que o
entendimento acerca da nulidade da inversão das oitivas não
se aplicaria aos processos já sentenciados em 3/8/2016 (data
do julgamento do HC n. 127.900/AM), em obediência ao
princípio da segurança jurídica.
3. A Terceira Seção desta Corte Superior, acompanhando a
orientação firmada pelo Supremo Tribunal Federal, consolidou
o entendimento de que \"o interrogatório do acusado é
instrumento de defesa, o que, em uma perspectiva garantista,
pautada na observância dos direitos fundamentais, proporciona
máxima efetividade se realizado ao final da instrução. De fato,
a concretização do interrogatório antes da oitiva de
testemunhas e da vítima priva o acusado de acesso pleno à
informação, já que se manifestará antes da produção de
parcela importante de provas. Além disso, reflete diretamente
na eficácia de sua reação e na possibilidade de influenciar o
julgamento, não lhe permitindo refutar, ao menos diretamente
(autodefesa), questões apresentadas com a oitiva de
testemunhas e do ofendido. A inversão do interrogatório,
portanto, promove nítido enfraquecimento dos princípios
constitucionais do contraditório e da ampla defesa, indevido, a
meu ver, no âmbito da persecução penal\" (HC XXXXX/MT,
relator Ministro SEBASTIÃO REIS JÚNIOR, TERCEIRA
SEÇÃO, julgado em 9/12/2020, DJe 14/12/2020).
4. No presente caso, consta que a sentença condenatória foi
prolatada em 20/7/2013, data, portanto, anterior à estabelecida
no mencionado HC n. 127.900/AM, devendo-se reconhecer a
higidez do procedimento adotado pelas instâncias ordinárias,
em razão da observância do princípio da segurança jurídica.
5. Agravo regimental desprovido (AgRg no HC XXXXX / MG).
De acordo com a jurisprudência acima, a inversão do interrogatório para o
início da audiência de instrução e julgamento gera uma hipótese de nulidade,
devendo o ato ser anulado desde o início da referida audiência, na forma do
artigo 564, IV, CPP.
III. DO MÉRITO
a) PROVA TESTEMUNHAL
Quanto ao meio de prova consistente na oitiva de testemunhas, na forma dos
artigos 202 e 203, CPP, destaca-se que a pessoa que presenciou os fatos
tem o dever legal de dizer a verdade, podendo qualquer um ser considerado
testemunha, na forma prescrita na lei:
“Art. 202. Toda pessoa poderá ser testemunha."
"Art. 203. A testemunha fará, sob palavra de honra, a
promessa de dizer a verdade do que souber e lhe for
perguntado, devendo declarar seu nome, sua idade, seu
estado e sua residência, sua profissão, lugar onde exerce sua
atividade, se é parente, e em que grau, de alguma das partes,
ou quais suas relações com qualquer delas, e relatar o que
souber, explicando sempre as razões de sua ciência ou as
circunstâncias pelas quais possa avaliar-se de sua
credibilidade. ”
As testemunhas são ouvidas acerca dos fatos e têm o dever de falar a verdade
sobre o que presenciaram, não podendo deixar de comparecer ao referido ato
processual. Pela ordem processual já citada, primeiro são ouvidas as
testemunhas de acusação e, posteriormente, as de defesa, em obediência,
mais uma vez, aos princípios constitucionais do contraditório e da ampla
defesa.
Outro ponto importante a ser destacado nesse meio de prova é a existência
do chamado testemunho indireto ou, em inglês, hearsay testimony. Trata-se de
um mecanismo que não é aceito no ordenamento jurídico brasileiro como meio
de prova hábil a condenar alguém, uma vez que tal pessoa nada presenciou,
mas apenas “ouviu dizer” acerca dos fatos, sendo temerário aceitar tal
testemunho como hábil a instruir o processo pautado no contraditório e na
ampla defesa.
Com essa visão, o Superior Tribunal de Justiça já decidiu que esse
mecanismo não pode ser utilizado como meio de prova para condenar o
acusado, nestes termos:
HABEAS CORPUS. HOMICÍDIOS QUALIFICADOS
TENTADOS. NULIDADE. PRONÚNCIA FUNDAMENTADA
EXCLUSIVAMENTE EM TESTEMUNHOS INDIRETOS,
CONTRADITÓRIOS E ELEMENTOS DE INFORMAÇÃO
COLETADOS NA FASE INQUISITORIAL. OFENSA AO ART.
155 DO CPP. IMPOSSIBILIDADE. CONSTRANGIMENTO
ILEGAL EVIDENCIADO. PACIENTE DESPRONUNCIADO.
1. A sentença de pronúncia configura um juízo de
admissibilidade da acusação, não demandando a certeza
necessária à sentença condenatória. Faz-se necessária,
todavia, a existência de provas suficientes para eventual
condenação ou absolvição, conforme a avaliação do conjunto
probatório pelos jurados do Conselho de Sentença, isto é, a
primeira fase processual do Júri, o jus accusationis, constitui
filtro processual com a função de evitar julgamento pelo
plenário sem a existência de prova de materialidade e indícios
de autoria.
2. É ilegal a sentença de pronúncia baseada, unicamente, em
testemunhos colhidos no inquérito policial, de acordo com o art.
155 do Código de Processo Penal, e indiretos - de ouvir dizer
(hearsay) -, por não se constituírem em fundamentos idôneos
para a submissão da acusação ao Plenário do Tribunal do Júri.
3. No caso em apreço, os únicos elementos indiciários do
paciente são os depoimentos extrajudiciais das vítimas, pois,
por ocasião da fase judicial, uma das vítimas havia falecido
(Emerson) e a outra não foi localizada (Anderson). As demais
testemunhas não souberam afirmar a existência de
desentendimentos anteriores entre as vítimas e o réu, tendo
conhecimento apenas de boatos no sentido de que o crime
havia sido cometido em razão de incorreta divisão de drogas,
pois os envolvidos seriam usuários de entorpecentes.
4. O fato de o testemunho da vítima falecida não poder ser
repetido em Juízo não altera a conclusão de que depoimentos
colhidos apenas na fase extrajudicial não autorizam a
pronúncia.
5. As versões contraditórias de testemunhos prestados na fase
inquisitorial e na judicial também não constituem fundamentos
idôneos para embasarem a pronúncia.
6. Ordem de habeas corpus concedida para despronunciar o
paciente, sem prejuízo de formulação de nova denúncia, nos
termos do art. 414, parágrafo único, do Código de Processo
Penal (HC XXXXX / RS, STJ).
b) PROVA PERICIAL
Quanto à prova pericial, trata-se de meio admitido também no Código de
Processo Penal, devendo ser bem observado que há uma certa taxatividade
para a sua realização nos crimes que deixam vestígios (delitos não
transeuntes), não sendo possível outro meio substitutivo de prova, o que torna
imprescindível a sua realização, nestes termos:
“Art. 158. Quando a infração deixar vestígios, será
indispensável o exame de corpo de delito, direto ou indireto,
não podendo supri-lo a confissão do acusado. Parágrafo único.
Dar-se-á prioridade à realização do exame de corpo de delito
quando se tratar de crime que envolva:
I - violência doméstica e familiar contra mulher;
II - violência contra criança, adolescente, idoso ou pessoa com
deficiência.”
c) DO ERRO DO TIPO
É importante destacar o instituto do erro de tipo sedimentado no artigo 20 do
Código Penal, que permite a excludente do crime em casos de erro invencível,
quando o agente interpreta mal a realidade quanto a um elemento constitutivo
do tipo penal. Esta é a dicção do artigo em comento:
"Art. 20 - O erro sobre elemento constitutivo do tipo legal de
crime exclui o dolo, mas permite a punição por crime culposo,
se previsto em lei. ”
Por esse artigo, caso haja erro sobre a idade da vítima no crime de estupro do
vulnerável, pode ser aplicada a ideia prevista no erro de tipo invencível,
excluindo-se o dolo da conduta do agente, impedindo-se a punição, salvo se
existir a figura típica culposa. Trazendo essa concepção ao tipo penal do artigo
217-A do CP, se o agente acha que a vítima tinha mais de 14 anos, não
haverá punição por esse crime, pois o dolo é necessário para o enquadramento
legal. Além disso, a punição pelo crime culposo também não se faz possível,
uma vez que inexiste a figura culposa no artigo 217- A, CP.
De forma a tornar clara a questão, cita-se a doutrina do professor Fernando
Galvão, que se encaixa perfeitamente na situação epigrafada, nestes termos:
Como exemplo de erro de tipo, Roxin menciona o caso daquele que seduz
uma menor de quatorze anos supondo, erroneamente, que esta possui idade
superior, ou mesmo quando não tenha realizado reflexão alguma sobre sua
idade. O exemplo também se aplica ao Direito Brasileiro, já que a idade da
vítima é elemento objetivo integrante do tipo penal incriminador do art. 217-A,
CP. (GALVAO, 2013. p. 260).
Assim, a sentença que deve ser aplicada no caso em tela é a de absolvição,
com base na excludente de crime (art. 386, VI, CPP) e a ausência de prova
para a condenação (art. 386, VII, CPP), visto que até o presente momento não
foi juntado aos autos o exame de corpo de delito.