Estados de Violencia
Estados de Violencia
Estados de Violencia
FRÉDÉRIC GROS ll -
,...
ESTADOS DE VIOLENCIA
Ensaio sobre o fim da guerra
EDITORA
IDEIAS&
LETRAS
REVISÃO:
DIRET OR EDJTORJAL:
Ana Lúcia
Marcelo C. Araújo
Eliana Barreto Ferreira
Leila Cristina Dinis Fernandes
EDITORES:
Avelino Grassi
DIAGRAMAÇÃO:
Márcio F. dos Anjos
Juliano de Sousa Cervelin
COORDENAÇÃO EDITORIAL:
CAPA:
Ana Lúcia de Castro Leite
Alfredo Castillo
TRADUÇÃO:
José Augusto da Silva
de la guerre
Título original: États de violence - Essai sur lafin
Éditions Gallimard, 2006
Fréderic Gros ©
Brasil,
Todos os direitos erri língua portuguesa, para o
reservados à Edito ra Ideias & Letras , 2017
2ª impressão
cação (CIP)
Dados Internacionais de atalogação na Publi
(Câmara Brasileira do Lino SP, Brasi l)
Gros, F'rédéric
a/ Frédéric Gros; [tradução José
Estados de violência: ensaio sobre o im da guerr
& Letras, 2009.
Augusto da Silva]. -- Aparecida, SP: EdiLOra Ideias
essai sur la finde la guerre.
Título original: État.s de violence:
ISBN 978-85-769 8-051 -3
fia I. Título.
1. Guerra (Filosofia) 2. Violência política - Filoso
09-11216 CDD-172.42
--
pãi, porque não é possível pensar a paz fora do horizonte da guerra.
Estados de Violência
6
-
muito tempo sua identidade conceitua!.
-- --
Este nó se acha ilustrado pela velha definição proposta por Alberico
Gentilis em seu De jure belli (1597): "a guerra é um conflito armado,
público e justo (armorum pubticorum justa contentio est)" (livro I, cap. II,
Belli Definitio). Ela nos servirá de guia.
Contud o essa ética, essa política, essa justiça da guerra só foram
pretextos retumbantes para as ambições humanas e para sua cobiça? Cabe
aos moralistas responder. Persiste o fato de que essa organização, finalização,
concentração das violências armadas determina o que foi chamado,
reconhecido e constituído como guerra no Ocidente até o século XX.
Esse conjunto, contudo, desfaz-se sob nossos olhos hoje, quando
emergem esses "estados de violênciá' contemr orâneos, cuja definição é
uma tarefa urgente da Filosofia.
- ------ - _____ __ _. .... - ---~----·
Primeira Parte
1
Cf. P. Contamine, La guerre au Moyen Âge, Paris, PUF, 1980.
10 Estados de Violência
Nossa nação dá à valentia o primeiro grau das virtudes, como mostra seu nome,
que vem de valor; e no nosso uso, quando dizemos um homem que vale muito ou um
homem de bem, no estilo de nossa corte ou de nossa nobreza, quer dizer exatamente
um homem valente, de um modo semelhante ao romano, pois a denominação geral
de virtude toma nos romanos a etimologia de força. 3
2
Cf. sobre este ponto W. Jaeger, Paideia. La formation de l'homme grec, ed. cit. p. 29-41
(cap. "Noblesse et areté").
3
Montaigne, Les Essais.
Primeira Parte - FORÇAS MORAIS 11
4
"Pourquoi la guerre?" (1933), trad. J. G. Delarbre & A.Rauzy, in Résu/tats, /dées, Problé-
mes li, Paris, PUF, 1985.
*Nt. De hoplita = soldado armado
12 Estados de Violência
1
Arioste, Roland furieux, cant. IX.
14 Estados de Violência
A narrativa da força
Para poder produzir uma estrela que dança é preciso em si mesmo ainda ter
algum caos. 2
2
F. Nietzsche, Ainsi parlait Zarathoustra, Prólogo, 5, ed. cit. p. 29.
3
Cf. sobre os deveres do cavaleiro Uustiça, proteção e assistência) e a significação moral
das peças de seu traje (escudo, loriga, capacete, lança, espada etc.), o discurso da dama
do Lago a Lancelote, in Lancelot du Lac, ed. cit. p. 399-409, bem como R. Lúlio, Livre de
f'ordre de chevalerie (ed. cit. p. 29-42).
Primeira Parte - FORÇAS MORAIS 15
Eu não entendo morrer sem luta nem sem glória, nem sem algum ato heroico,
cuja narrativa chegue aos homens a vir.5
antes de tudo essa formação da vida como Buxo indiferenciado de forças] 'i
A epopeia neste sentido é a imaginação espontânea e primitiva da ética,
versão colorida dessa escultura da energia do viver.
4
Cf. sobre esse ponto, H. Germa-Roman, Ou "bel mourir" au "bien mourir", ed. cit. p. 121-
171, e de J. P. Vernant, "La belle mort d'Achille", in Mythe et politique, ed. cit.
5
1/iade, XXII, 304-305, trad . P. Mazon, ed . cit. p. 239.
16 Estados de Violência
~
-
moderno. A ação é aquilo com que um indivíduo se celebriza, se ~st~~~J~,<:~
- .
em ó ria dos homens (uma matéria para narrativas). _O comporta!!lento
é anônimo, conformista e morno (um objeto das ciências human.a:,). O
g~erreiro- mítico só conhece as ações. Não para ser outr_o 04_difer nte,
l
mas memorável; porque alguém é exemplar fundamentalment~_-I2QL~
__ini~itáv,~l. Não se quis nunca assemelhar-se a não ser ao úmco, ao extremo
particular. Só se imita o inimitável. O que é comum não é o modelo,
sempre particular, mas a prete_nsão a assemelhar-se a ele. Daí a multidão de
caricaturas de simulacro , de cópias. Mas o universal é particu lar, único e
altivo . E de sua~ ti5 ele se desequilibra, porque precisamente ele desafia.
Como dirá Bérgson em Les deux sources de la morale et de la religi.on *, s6
há o desafio do herói para seduzir, obrigar. Porque a moral aqui não toca
a razão mas a vontade viva. Toma-se pouco moral por demon tração
(adotam-se antes conclusões do que decisões). A moral é quando é preciso
escolher. E se escolhe sentindo-se desafiado.
O guerreiro consente, então, em viver e em morrer segundo a forma
de uma narrativa, ganhando o_ .~ rei to de se fazer um n9me, uma fama.
Então essa guerra mítica, existindo apenas nas narrativas e pelas narrativas,
sempre situada nas brumas da origem, se dá a sonhar como justaposição
simultânea de duelos particulares, os heróis saltando de seu carro com
uma lança na mão, uma espada de lado, e provocando um irmão-inimigo,
procurando um rival à sua altura, sem luta corporal confusa nem opaca:
é a clareza distinta dos corpos, das palavras, dos golpes. Daí essa precisão
admirável em Homero. A guerra é tudo menos anônima, ao contrário, por
excelência, um lugar de distinção. Trata-se de ser o melhor, de brilhar. Não
forçosamente de vencer, pois mais que a sanção final conta a matéria para
narrativas daquilo que um herói realiza.
É bom sentir-se englobado nessa ética europeia pura e dura, que não cessa, para
além das fracas gritarias das massas, de se firmar em ideias sempre mais categóricas [.. .].
Quando caímos em cima de uma cerração de fogo e de fumaça, então nos fazemos
um só, somos duas partes de uma só força, fundidos num só e mesmo corpo. Num
só e mesmo corpo - eis uma metáfora bem singular. Quem a compreende diz um
grande sim a si mesmo, ao inimigo [... ]. Diante dessa onda enorme que corre sem parar
para o combate, todas as obras se aniquilam, todos os conceitos soam ocos quando se
manifesta a elementar, a colossal energia que sempre existiu e sempre existirá. 8
6
"A função focal do coração, thumos, isto é a energia conquistadora, não insaciável, mas
inesgotável. Riqueza e pobreza do thumos, cólera, contrário de medo, vai à frente", Michel
Alexandre, Lecture de Platon, Paris, Bordas/Mouton, 1968, p. 173.
7
E. Jünger, La guerre comme expérience intérieure, trad. F. Poncet, ed. cit. p. 38.
("O animal se apresenta, monstro misterioso ressurgido das profundezas da alma. Ele sai
devorando feixes de labaredas, irresistível embriaguez que embriaga as massas, divin-
dade reinando por cima dos exércitos"). Em sua Part maudite (Parte maldita), G. Bataille
compreenderá ainda a guerra como excesso condenável de energia, figura do excesso, do
desperdício, da liberalidade pura.
ª E. Jünger, op. cit. p. 89-90, 155 e 164.
18 Estados de Violência
Eles devem se pôr num estado nervoso, muscular, mental que multiplica e amplia
seu poder, que os transfigura mas também os desfigura, os torna estranhos no grupo
que eles protegem; e sobretudo, consagrados à Força, eles são as triunfantes vítimas
da lógica interna da Força, que não se prova senão transpondo os limites, mesmo os
seus, mesmo os da sua razão de ser e que se assegura sendo não só forte diante deste ou
daquele adversário nessa ou naquela situação, mas Força em si, a mais forte. 9
É coisa alegre a guerra [... ]. Ama-se tanto reciprocamente na guerra [... ]. Quando
se vê sua boa disputa e seu sangue combater bem, a lágrima vem ao olho [... ]. Nisso
vem uma deleitação cal que, quem não a experimentou, não é homem que saiba
dizer que bem é. Pensais que homem que faça isso tem medo da morte? Não; pois
ele tão reconfortado, é tão encantado que não sabe onde está. Verdadeiramente ele
não tem medo de nada. 10
pública sobretudo neste sentido: não no sentido em que ela opõe dois
Estados, dois "poderes estrangeiros" como se diz, mas porque seu elemento
natural é essa luz, este dia do olhar dos outros, essa visibilidade. Teatro
fundamental da guerra: cena ou tribunal. Escolhe-se para se bater uma
planície desobstruída, uma clareira como se lê em Chrétien de Troyes,
recusam-se as astúcias da sombra. Os cavaleiros são sempre vistos prontos
para se bater, procurando um espaço livre. Manter-se ereto sob essa luz: é
a ética cavalheiresca (a "retitude" é dada como primeira virtude do samurai
no bushidô 11 ). A coragem é coragem de expor sua condição mortal, sua
vulnerabilidade; de experimentar no duplo sentido de "ressentir" e de "pôr-se
à prova". Contudo, até que ponto estes dois sentidos não são idênticos,
pois é a mesma coisa para a vida: é "ressentida" na prova, no sofrimento.
Em todos os casos, não é depois e por uma relação a si mesmo que se
cultiva a coragem, mas nessa exposição e nesse afrontamento real.
A democracia grega clássica nesse sentido sobretudo, como quis
compreendê-la Arendt e Foucault, é pública e não se assemelha a nenhuma
outra: ser cidadão nesse sentido não era ser protegido, mas se expor.
Democracia dos iguais e dos rivais. Não se exerce a cidadania senão com
coragem. O terceiro pilar da democracia grega, dirá Foucault em suas
aulas no Colégio da França de 1983, depois da igualdade de palavra e
igualdade diante da lei, é a liberdade de linguagem (pan·esia), a coragem
~<1-~~u_ncj_<1ç~~-pública,_4a_~~I_!l_.1_4~.4~-e~~:':'~~ p~~l_ic3:,,_Eara dizer o que não
-é ----·
bom de ouvir, ao oposto da bajulação._ Daí a condenação platônica da
··-· . - ··- ···-· - ·-
democracia ateniense. Uma democracia em que a coragem é desqualificada
se torna uma demagogia, um regime dos sedutores e o sedutor não se expõe
jamais. Então, é o pior dos governos.
Só pode mostrar-se quem é corajoso e a única prova de coragem é
se mostrar corajoso, ao passo que ao contrário aquele que multiplica as
demonstrações de generosidade ou de sinceridade, logo se duvida dele.
A coragem é uma virtude exterior e portanto ela não mente. É uma
11
lnazô Nitobe, Buschidô. L'âme du Japon, trad. K. Yamanaka, ed. cit. p. 31-34.
•
20 Estados de Violência
Capaz de promessa
15
Chrétien de Troyes, Érec et Énide, in Romans de la tab/e ronde, trad . J. P. Foucher, ed. cit.
22 Estados de Violência
Este homem libertado que ousa realmente prometer, este senhor da vontade
livre, este soberano, como não saberia qual é nisso sua superioridade sobre tudo o
que não ousa promer r, nem se comportar como fiador de si mesmo, que confiança,
17
que temor, que respeito ele inspira - estas três coisas, ele as "merece" .
16
La généa/ogie de la mora/e, "Deuxiéme traité", ed. cit., p. 60.
17
Jbid. p. 69-70 .
Primeira Parte - FORÇAS MORAIS 23
Servir
18
Chrétien de Troyes, C/igés ou La fausse morte, ed. cit., p. 96-97.
*Nt. em francês os verbos être = ser e suivre = seguir na primeira pessoa do presente do
indicativo têm a mesma grafia: suis é sou e sigo.
24 Estados de Violência
Que vossa distinção seja obedecer! Que vosso próprio comando seja uma
obediência! Ao ouvido do bom guerreiro soa mais agradavelmente "tu deves" do
que "eu quero" . E tudo o que vos é caro, antes de tudo fazei-o do modo como vos é
comandado! 19
19
Ainsi parlait Zarathoustra, cap. "De la guerre et des guerriers", ed. cit. p. 68.
Primeira Parte - FORÇAS MORAIS 25
Para mim vós deveis ser aqueles cujo olhar sempre está à procura de um inimigo
- de vosso inimigo. [... ]. É preciso que sejais orgulhosos de vosso inimigo; então os
21
sucessos de vosso inimigo são também vossos sucessos!
20
"Com que se mede a liberdade, nos indivíduos como nos povos? Com a resistência que é
preciso superar, com a pena que custa para guardar o "de cima", F. Nietzsche, em Crépus-
cu/e des ido/es, par. 38, ed. cit. p. 83 .
F. Nietzsche, Ainsi parlait Zarathoustra, cap. "De la guerre et des guerriers", ed . cit. p. 67-68.
21
26 Estados de Violência
22
Ecce homo, "Pourquoi je suis si sage", ed. cit. p. 108.
23
H. Germa-Roman, op. cit. p. 142.
*N .T. pequenos pássaros de carne saborosa.
24
Citado por A. Jouanna, "Tudo está perdido ... exceto a honra", in L'aventure dês
chevaliers,Les collections de l'Histoire, n. 16, 2002, p. 86.
Primeira Parte - FORÇAS MORAIS 27
25
sou e fui dos vossos. E sou também vosso melhor inimigo", mas não no
sentido evangélico, forçosamente unilateral, pois se trata para Cristo de
amar quem vos odeia enquanto vos odeia, e seu ódio dá mais mérito e
contrassenso transcenden te a vosso amor (Evangelho segundo São Lucas
6, 27-34: "Amai vossos inimigos, fazei o bem aos que vos odeiam [... ] se
amais os que vos amam, que graça alcançais?").
Esse princípio de uma igualdade aristocrática deu em seus belos dias sua
profundidade à democracia grega. Ai só se é igual na rivalidade, no fundo de
reconhecimento agressivo, de luta de prestígio. Este privilégio, porém, tem
um preço: ele supõe escravos e vilões, pois essa igualdade entre pares repugna
à ideia de universal, de humanidad e como o anônimo, o homem a priori.
Reconhecer-se é se reconhecer entre, mas distinguindo-se de uma massa
confusa: separação homérica dos promakoi (combatentes) e dos kakoi (feios,
defeituosos), oposição do cavaleiro e da vil infantaria. Resta um fundo de
desprezo no interior dos melhores sentimentos da nobreza.
E sabe-se que se a democracia grega pôde constituir-se sobre essa base ética
de uma aristocracia estendida a todos os cidadãos livres, é porque ela tinha
relegado às suas margens os escravos, as mulheres, os estrangeiros e os bárbaros.
Para se sentir superior é preciso poder sentir sob si a massa inquieta dos inferiores.
A raridade tem este preço e a ética quase também, se não há ética a não ser da
26
distinção. De outro modo, é a moral das ciências sociais, diráArendt.
Se a guerra pode ser pensada como competição dos melhores, ela
acontece entre adversários antes que inimigos. E este combate tem algo do
esporte e do jogo.27 Entre combatente s, haverá então comunidad e: deuses
que se partilham e se veneram, regras que se respeitam, às vezes mesmo
25 Alnsi par/ait Zarathoustra, cap. "De la guerra et dês guerriers", ed. cít. p. 67 .
211
"Essa ígualdade moderna, fundada sobre o conformism0 inerente à sociedade e que
não é possível senão porque o comportamento substituiu a ação como modo primordial de
relações humanas, difere em todos os pontos de vista da igualdade antiga, notadamente
daquela das cidades gregas. Pertencer ao pequeno número dos Iguais (homo1) er-a poder
viver no meio de seus pares: mas o domínio público mesmo era animado por feroz espírito
de competição: devia-se constantemente distinguir-se de todos os outros, mostrar-se cons-
tantemente por atos, sucessos incomparáveis, o melhor de todos (aein aristein)", Hannah
Arendt, o.e. p. 80.
28 Estados de Violência
uma cultura, uma língua. É por isso que os gregos não opõem a guerra
à paz, mas há dois estilos irredutíveis de oposição: o ódio destrutivo e
tenebroso que não quer senão a morte do outro, a todo preço e por todos
os meios; no oposto, a rivalidade altiva e caminhando para o desafio, que
quer a vitória sobre o outro mas não contra ele, ligada às condições leais,
respeitando o adversário como a si mesmo, como uma imagem de si, seja
Hesíodo separando duas Lutas no início de Trabalhos e os Dias ("Não, não
é verdade que haja uma só espécie de Luta; mas na terra há duas ... "). 28
A provocação da desgraça
27
"Toda luta, submetida a regras restritivas, oferece já, em razão dessa limitação, a carac-
terística formal de um jogo, uma sorte de jogo especialmente intenso, enérgico [ ... ]. A guer-
ra pode ser considerada como uma função de cultura já que ela acontece durante muito
tempo num círculo cujos membros se reconhecem mutuamente como iguais", J. Huizinga,
Homo Ludens (Homem Lúdico), ed. cit. p. 151.
28
"E não é somente Aristóteles, mas toda a Antiguidade que difere de nós em sua con-
cepção do ciúme e da inveja e partilha do pensamento de Hesíodo. Ele tinha julgado má a
primeira Eris (Nt. luta em grego), isto é a que leva os homens a se matarem mutuamente
odiosamente, mas, imediatamente, tinha exaltado como sendo boa uma outra Eris que, sob
as aparências de cobiça, de ciúme e de inveja, incita os homens a agir; ela não os atrai ao
combate até a morte, mas ao torneio", F. Nietzsche, "La joute chez Homére" (Nt. O torneio
em Homero), ed. cit. p. 195.
29
Epicteto, Entretiens, 111, 11, ed. cit. p. 986.
primeira Parte - FORÇAS MORAIS 29
"Não digas jamais a propósito de uma coisa: 'Eu a perdi', mas 'Eu a devolvi'. Teu filho
30
morreu? Ele foi devolvido". Manuel, 11, trad. P. Hadot, ed . cit. p. 170.
30 Estados de Violência
bem enquanto sou provocado a responder a tantos males por uma resistência
altiva. Um bem enquanto sinal de eleição de Deus. Deus, senhor absoluto
das lutas, só encoraja por provas os que ele acha dignos. Os outros ele os
abandona às consolações mesquinhas da prosperidade e da felicidade.
Meu vizinho é mau; para ele mesmo! Mas para mim ele é bom; ele me exercita
na benevolência e na bondade. Meu pai é mau? Para ele; mas para mim ele é bom. É
a varinha de Hermes: "Toca no que quiseres e será ouro". Não? Pois bem! Apresenta-
-me o que queres e disso farei um bem: apresenta-me a doença, a morte, a indigência,
o insulto, a condenação aos suplícios. 31
Com essa ideia - não tão evidente - de que o que me fere sempre me
fortalece, é fazer pouco caso das vitórias à moda de Pirro. É pensar um
pouco depressa que ter combatido e mesmo - e sobretudo - ter vencido
permite encarar a próxima luta com serenidade e distância. Saber o que
custa às vezes também desespera. Há na vitória um gosto de amargor que
impede recomeçar. E depois de onde se tornar senhor do sentido que se
dá aos acontecimentos? Como mudar o sentido do "que me abate e me
desabá' em "que me provoca e me ergue?" Depois que porção de mim
operar essa reviravolta?
E ainda com essa maneira de procurar as raízes da ética no combate
individual, o afrontamento cavalheiresco, não se arrisca no fundo em
caucionar as guerras reais prometendo-se uma imagem colorida, épica,
uma imagem falsa? Assim à sombra do mito poderiam crescer as guerras
anônimas, carniceiras. A menos que este mito não seja também crítico.
31
Epicteto, Entretiens, Ili, XX, 11-12, ed . cit. p. 998-999. Cf. também: "O que é filosofar?
Não é se preparar para os acontecimentos? [ ... ] É como se alguém cessasse de fazer
exercício ginástico porque recebeu socos. No exercício ginástico pode-se interromper para
não ser maltratado; mas se é abandonada a filosofia, para que serve? O que deve dizer o
filósofo a cada uma das violências que sofre? "É para essa prova que treinava, para essa
prova que me preparava". Deus te diz: "Mostra-me se combateste segundo as regras".
Epíctero, Entretiens, 111,X, 6-8, ed . cit. p. 982.
32
Ainsi parlait Zarathoustra, cap. "De la guerre et des guerriers", ed . cit. p. 67.
2
Suportar
Suportar
Se um homem está pronto para rechaçar os inimigos guardando sua fileira e sem
fugir, estejas seguro de que este homem é corajoso. 4
2
Plutarco, Vies parai/eles, trad. A. M. Ozanam , "Lycurgue", 22-23.
3
"Ninguém pode resistir de frente à infantaria enquanto ela conserva a formação e o poder
de choque que lhe são próprios", Pollbio, Histoires, XVIII, 30, 11.
4
Platão, Laches, 190e, trad. L. A. Dorion, e·d. cít. p. 110.
Estados de Violência
34
upor ar é mais difícil que atacar por três razões: 1 Aquele que araca desempen ha,
parece, a fun ção do mais fo rce; aquele que supo rta é cnrão o mais fraco que re isre
ao mais force, o que é sempre mais difícil. 2 Para aquele que ataca o perigo parece
distanciado, ao passo que está presente para aquele que suporta o ataque, e para o
qual, por consegujnce, é mais difícil não ser abalado. 3 uportar não acontece sem
dilação do rempo; atacar, ao contrário, pode ser o efeito de um impulso repentino.
Ora, é mais penoso ficar muiro tempo inabalável do que se entregar de repente a
alglLma coisa difícil. Para suportar, é preciso que o corpo sofra, mas sobretudo que a
5
alma aja para se ligar ao bem com w11a fo(ça ral que 11ão ceda ao ofrimento frsico.
5
Santo Tomás, Somme théologique, ed. cit. Question 123, art. 6.
. eira Parte - FORÇAS MORAIS 35
prirn
Eu queria, com efeito, me informar junto a ti não só sobre homens que são
corajosos na infantaria, mas também sobre os que o são na cavalaria e em toda forma
de corpo militar. E eu me interessava não só pelos que são corajosos na guerra,
mas também pelos que dão prova de coragem diante dos perigos do mar, e bem
entendido por todos os que são corajosos face às doenças, à pobreza, à política; eu
pensava não só nos que são corajosos diante das dores e dos temores, mas também
nos que se sobressaem na luta contra os desejos e os prazeres. 8
6
Apologie de Socrate, 28d-29a, trad . L.Brisson, ed. cit., p. 106-107.
7
Cf. a retomada do tema por Epícteto: "O posto, a fileira que me indicares, morrerei mil
vezes, como diz Sócrates, antes de abandoná-la", Entretiens,111, XXIV, 99. ed. cil. p. 1.031.
8
Laches, 191c-d, ed . cit. p. 112.
Estados de Violência
36
"O homem
9 Cf. A definição por Platão do homem racional como piedoso. justo e corajoso:
ou evita o que é de seu dever e é cheio de força para suportar seu dever
raciona l persegue
quando é preciso", Górgias, 507c. trad. M. Canto, ed . cit. p. 317 .
10 De constanfia , Ili , 3, trad. R. Waltz, ed. cit. p. 317.
11
lbid. IX, 5, p. 325.
1111 37
Primeira Parte - FORÇAS MORAIS
12
lbid., XIX, 4, p. 334.
13
Homero, Odyssée, XX, 17-18.
38 Estados de Violência
14
"Mas que acontece quando alguém pensa sofrer uma injustiça? Não é que nele seu
coração não se afasta , não se irrita e não se liga ao que lhe parece justo? E não é senão
enfrentando (hupomenon) a fome , o frio e todos os sofrimentos deste gênero, que ele os
suporta, os vence e não deixa seus nobres esforços até que tenha vencido ou que não te-
nha terminado seus dias?", Platão, Répubique, 440d-440 em trad, P.Pachet, ed. cit. p. 239 .
15 Somme lhéo/ogiqve, li , li, Question 123, art. 5, trad. J. D. Folghera, ed . cít. p. 26-27.
Primeira Parte - FORÇAS MORAIS 39
O homem de uma verdadeira coragem, como vimos, enfrenta tudo o que pode
ser ou parecer temível para o coração do homem, porque é belo suportar o perigo e
porque seria uma vergonha não suportá-lo. 18
Por um círculo o sábio reflete sua própria imagem e acha nela de que
alimentar sua constância. Ele se sustenta com sua própria projeção ima-
ginária: é preciso manter-se porque é belo. Não que a causa seja bela, é
antes de bem que se trata aqui (bem público, geral ou moral), mas é belo
manter-se firme para uma boa causa. É nele mesmo como figura, que o
sábio encontra seu recurso para se manter.
16
lbid, 11 ,11 , Questlon 123, art. 2, ed. cit. p. 14. Hegel cita em seu Systeme de rétlque, "a
virtude em si, mas a virtude formal" (citado por R. Derathé, ln Hegel, Prlncipes de la philo-
sophie du droit, ed. cit. p. 327).
7
' ."O bem da pátria é o maior dos bens humanos, mas é inferior ao bem divino", Somme
lhéologique, 11,11 , Question 124, art. 5, ed. cit. p. 75.
1
ªf=t'hlque à Nicomaque, Livre-Ili , cap. IX, par. 14, ed. cit. p. 139.
40 Estados de Violência
A morte e as feridas serão para o homem corajoso coisas penosas; e ele não se
exporá a elas a não ser forçado. Ele as afrontará porque é belo fazê-lo e seria um
vergonha não fazer. Contudo, quanto mais sua virtude for perfeita e consequente-
mente sua felicidade completa, mais também lastimará sua morte; é para tal homem
sobretudo que a vida tem todo o seu preço; e ele é privado dos bens mais preciosos,
19
sabendo tudo o que valem; está aí uma viva dor.
Ser senhor de si
manter-se firme e mesmo contra si próprio, não ceder nem ao pavor que
vos corta as pernas ou vos faria pular para trás, nem ceder ao furor ébrio
que vos faria precipitar sobre o inimigo para uma fusão mortal. Com-
pletamente ao contrário, é preciso manter a cabeça, conservar o caminho
reto em plena tempestade, como justo meio, dizia Aristóteles, entre a
audácia cega e o medo pânico (Ética a Nicômaco, 11 la); a coragem, reto-
mará Santo Tomás, é reprimir o medo e moderar a audácia. 20 Dominar
suas cóleras e seus medos. Isto é mais precisamente reduzir suas cóleras e
superar seus medos. E até, precisava Santo Tomás, "a força consiste mais
ainda em reprimir seus medos do que em moderar a audácia". 21 Por que
este desequilíbrio? Sempre a superioridade ética da coragem de suportar
sobre a coragem de atacar, pois "aquele que sustenta o choque não teme,
embora tenha um motivo de temer, mas quem ataca não tem nenhum
motivo de medo presente no espírito". 22
A superioridade moral daquele que se mantém firme é que ele sente
o medo e ao mesmo tempo o supera, ao passo que aquele que ataca não
faz senão afogá-lo num excesso de energia. Ser corajoso não é ignorar o
medo, não conhecê-lo, não ter medo jamais. Aristóteles denuncia quatro
grandes simulacros de coragem, 23 que são precisamente quatro maneiras
de não ter medo. Há primeiramente o homem de experiência, o que sabe
imediatamente quando há verdadeiramente perigo e quando o perigo é
inexistente, quando está longe e quando é iminente. Alguém não tem
medo, mas é porque sabe que em tal situação, em que contudo o perigo
ameaça, de fato o perigo é mínimo. Ele não tem medo porque sabe que
o perigo não é real ou tão real, não tão importante como lhe parece. Há
ainda o colérico que corre na frente dos perigos porque um furor o atrai:
ele não tem em vista a nobreza de uma causa a defender, mas se deixa
somente submergir pela embriaguês da raiva. Depois há o confiante. Ele
20
Somme théo/ogique, 11,11, Question 123, art. 3, ed. cit. p. 118.
21
lbid., 11,11, Question 123, art. 3, ed. cit. p. 29.
22
lbid., p. 27.
23
Éthique à Nicomaque, Livre Ili, 1116b-1117b.
42 Estados de Violência
24
Les Lois, 1, 626e, trad, Des Places, ed. cit. p. 4.
primeira Parte - FORÇAS MORAIS 43
25
Dion Chrysostome, IV Discours "Sur la royauté", in L.Paquet, Les cyniques, ed. cit. p. 202-225.
26
"Manuel du soldat chrétien" (1504), in Guerre et paix dans la pensée d'Érasme, ed. cit. p. 30.
44 Estados de Violência
enfim a série cristã em que este combate nos responsabiliza por todas as
disposições de guerra.
Momento de absorção da origem: o domínio de si volta-se contra a
guerra que havia fornecido sua matriz e se trata de fazer a guerra em si mes-
mo contra qualquer afeto belicoso: "só essa guerra gera a paz verdadeirà' .27
Proteger
27"A guerra é doce para os que não a fizeram" (1515), in Guerre et paix dans la pensée
d'Érasme, ed. cit. p. 135.
·rneira Parte - FORÇAS MORAIS 45
pri
porque o que nos sustenta não é somente o sangue que corre em nossas
veias, a vida que nos percorre, o que nos sustenta e nos anima é também a
nossa imagem no outro. Eis um primeiro cuidado do outro, mas é um cui-
dado negativo: cuidado do olhar do outro, quase alienação. Contudo mais
essencial é o cuidado de proteção, porque neste dispositivo abandonar o
terreno, deixar seu lugar, significava sem dúvida tentar salvar sua vida (com
0
risco da morte má, vergonhosa: uma flecha ou uma azagaia plantada no
dorso), mas sobretudo era ameaçar diretamente a vida de seu companheiro
da esquerda cujo flanco direito se acha então a descoberto. Daí a ideia,
estranha no fundo mas forte, imposta em todo caso pela imaginação dessa
batalha em fileira, de que se está prestes a morrer na guerra e a fazer morrer
por amor. Não por amor da pátria - malgrado o que querem bem dizer
as orações fúnebres de circunstância - mas por essa paixão de proteger seu
companheiro imediato. O que faz verdadeiramente manter-se firme a raiz
da coragem é o cuidado do outro. Há só uma paixão bastante poderosa
para enfrentar o medo: a solicitude.
Se pudesse haver um exército com amantes e seus amados, não poderia haver
para eles melhor organização do que a rejeição de tudo o que é feio e a emulação na
busca da honra. E se homens como estes combatessem lado a lado, por pouco nume-
rosos que fossem, eles poderiam vencer a humanidade inteira por assim dizer, pois
para um amante seria mais intolerável ser visto por seu amado num movimento de
deixar sua fileira ou de jogar fora suas armas do que pelo resto da tropa, ele preferiria
morrer muitas vezes antes que fazer isso. E quanto a abandonar seu amado no campo
de batalha ou não lhe prestar socorro quando está em perigo, ninguém é covarde
ao ponto em que Eros, ele mesmo, não chegue a lhe inspirar uma divina valentia a
ponto de torná-lo tão valente como quem o é por natureza. 28
28
Platão, Le banquet, 178ª-179b, trad. L. Brisson, p. 97-98.
46 Estados de Violência
inimigo. Como obter essa coesão, como preservar essa união e essa ordem?
Amor da pátria, abnegação sacrificial? É precisamente bom para aceitar
heroicamente fazer-se matar, não para se manter juntos. Ordem e discipli-
na? Não existia preparação particular, nada que se assemelha aos exercícios
dos exércitos modernos, nada de aprendizado do automatismo cego. Não,
essa solidariedade viva, essa composição espontânea das forças, é a philia
(amor) que a provoca, a atrai e a alimenta. Nada então de mecânico, nada
que provenha da disciplina ou da opressão, da submissão a uma ordem; o
que faz ligação é o cuidado do outro, a urgência em protegê-lo. A obsessão
do cuidado do outro enquanto se revela mais insistente que a urgência para
preservar sua própria vida. Estranha lição ética da guerra.
Os hom ens, eu o sei hoje, não combatem por uma bandeira, um país, pelo ba-
talhão dos Marines ou pela glória ou por qualquer outra abstração. Eles combatem
um pelo outro.29
29
Citação de William Manchester em seu relato dos combates durante a guerra do pacifico
(Goodbye , Darkness, Nova York, 1979, citado por V. D. Hanson, op. cit. p. 161).
3
Obedecer
Ainda uma vez foi um sonho, uma forma ideal de guerra, uma imaginação con-
ceituai. Ela pode ser lida nas especulações dos teóricos militares do Antigo Regime,
dos grandes estrategistas do século XVIII, dos soldados filósofos das Luzes. É o sonho
de uma guerra perfeita, que se desenrola de maneira totalmente racional, conforme
um plano de batalha decidido de longe e de cima. Grandes movimentos, longas linhas
de soldados de infantaria se alongando, se posicionando em ordem, lançando har-
moniosamente salvas de anilharia regulares. O exército se dispersa e depois se reúne
segundo o gênio tático do general, se rearticula por manobras sábias. Os regimentos
de infantaria totalmente disciplinados dão a impressão de um enorme autômato per-
feitamente untado, forçando o sentido estético. "Nada era tão belo, tão lesto, tão
1
brilhante, tão bem ordenado como os dois exércitos." O exército se assemelha à
máquina em que os soldados seriam as engrenagens articuladas, as peças elementares.
Perfeição racional. Ele é um conjunto geométrico de pomos de força, uma combi-
nação proporcionada e racional de fogo e de choque. Um cérebro puro (o general)
combina as forças, calcula os impactos, centro nervoso deste monstro de fogo dócil.
Gigantesco jogo de xadrez em que os soldados seriam os peões passivos: "Ninguém
2
discute mas todo mundo executá'. O general não está mais na primeira fila com seus
homens, para lhes dar o exemplo. Ele é um puro espírito tático elaborando planos,
inteligência decisiva e preciosa que não é preciso expor ao fogo inimigo. Oposição
entre os soldados da infantaria das primeiras linhas, títeres atordoados e dóceis, recru-
tados na miséria do mundo e os oficiais discutindo na retaguarda. Os fermentos éticos
dessa "revolução militar" não são mais a honra e a coragem, mas o medo do superior
e a disposição automática. Tudo, nessa disciplina implacável, caminha para o terror
e não resta mais que se inebriar de disciplina, cair na hipnose da ordem automática,
mantida pelos rufares regulares do tambor e os sons estridentes das flautas .
*
1
Voltaire, Candide, cap. 3.
2
Frederico li, Testament politique.
48 Estados de Violência
3
Les instítutions militaires, Livre Ili, chap. XI , ed. cit. p. 94 .
---- 50 Estados de Violência
Ora o "bom" strategos será sempre mais para a época moderna um ge-
neral instruído, brilhante, profissional, culto, letrado ... É o saber que se en-
contra requerido, mais que a honestidade, o nascimento ou a riqueza; saber
que toma de resto formas diversas e contraditórias. Para a tradição huma-
nista italiana, trata-se evidentemente da leitura dos Antigos. Da lembrança
aureolada de glória do poder de seus ancestrais, os italianos da Renascença,
abatidos pelas divisões internas e pelas invasões estrangeiras, politicamente
enfraquecidos, retiram a ideia de que os segredos que tinham permitido
tão vastas conquistas e uma supremacia total se perderam e que não se
trataria senão de reencontrá-los nos livros. Porque depois de tudo, aqui e
lá, ontem e hoje, em toda a parte e em todos os tempos, os princípios da
guerra são os mesmos. Durante um tempo ao menos (primeira metade do
século XVI), os progressos técnicos - desenvolvimento das armas de fogo
e de artilharia - pareceram a muitos constituir inovações secundárias, não
chamadas a transformar tão radicalmente a arte da guerra e que os Antigos
não teriam apresentado mais que um interesse anedótico, erudito, históri-
co, que eles teriam sido irredutivelmente ultrapassados. A única mudança
significativa aos olhos de muitos, nas transformações da guerra da época, é
a importância sempre maior - mas é um lento movimento que se desenha
desde o fim do século XIII - e para não dizer agora primordial, dos solda-
dos de infantaria. A experiência nova das batalhas mostrou que um "pelo-
tão" de piqueiros suíços - uma formação cerrada de soldados empunhando
lanças compridas - podia destruir de uma vez um ataque de cavalaria pe-
sada (como tinha acontecido com Carlos o Temerário em 1467). Ora essa
importância nova da infantaria - quando durante séculos, a infantaria não
4
Onosander, Stratêgikos (século primeiro depois de J.C.) citado por G. Chaliand, Antho/o-
gie, ed. cit. p.122.
Primeira Parte - FORÇAS MORAIS 51
5
rando-se em Epaminondas o Tebano nas batalhas de Leuctros e Matina.
Em 1587, Francisco de La Noue (Discurso político e militar) exprime a
necessidade de escolas, de "Academias" para educar, instruir, formar os
jovens nobres chamados a comandar exércitos. Ele pede que eles sejam
alimentados com leitura dos Antigos, exige mais ainda: uma verdadeira
formação científica. Eles deverão aprender estas ciências tão úteis ao sol-
dado: Aritmética, Geometria, Geografia, Arquitetura (isto é geralmente as
"matemáticas" como ciência das medidas e das quantidades) etc. A mas-
sificação dos exércitos supõe conhecimentos aritméticos, quando se trata
de dispor dezenas de milhares de infantes segundo as figuras escolhidas
(quadradas, retangulares ou linhas) , de os enfileirar respeitando boas dis-
tâncias. Os progressos técnicos das armas de fogo e de artilharia se reve-
lam determinantes. Então a batalha deve combinar o mais eficazmente
possível o embate e o fogo - o fogo para manter o respeito, enfraquecer à
distância, o embate para desbaratar o exército inimigo, conseguir a deci-
são. Para isso, é preciso proporcionar resultados, calcular ângulos de tiro,
medir trajetórias, antecipar movimentos, operar manobras ...
O comandante chefe não é mais, como para a falange hoplítica ou a
guerra de cavaleiros, o que dá na primeira fila o exemplo, mas armado de
um plano de batalha, dá ordens e calcula posições. E se a guerra é subme-
tida a leis e a regularidades, deve-se poder induzi-las da experiência das
batalhas. É preciso, segundo Montecuccoli (Memórias, redigidas nos anos
1670), inspirar-se em Galileu, em seu método experimental, para fundar
uma "ciência total" da guerra. O exército é pensado então como uma má-
quina imensa, um autômato desmesurado do qual o general é a alma ou
antes o cérebro. Essa máquina deve, para avançar em coesão e desenvolver
o máximo de força eficaz, ter sido ordenada segundo a ciência do arranjo
melhor possível de suas partes.
5
E, bem mais tarde, dir-se-á de Schlieffen, a propósito de seu plano de invasão da França
pela Bélgica, que ele tinha querido em 1914 reproduzir o movimento envolvente da batalha
de Cannes, golpe de gênio de Aníbal.
primeira Parte - FORÇAS MORAIS 53
6
H. Lloyd, De la composition des différentes armées, 1780, citado por G. Chaliand, Antho-
logie, ed. cit. p. 711 .
7
Art de la guerre par príncipes et par regles, Paris, C. A. Jombert, 1749, 1, p. 2.
ª lbid., li. p. 119. Essa geometrização da guerra permitirá ainda a emergência do conceito
em Lloyd de "linha de operações" - que se reencontrará a seguir em Jomini, herdeiro das
Luzes, quando pensará poder resolver o segredo das vitórias napoleónicas referindo-as a
princípios geométricos puramente racionais (cf. as linhas interiores)- ou em Bülov (tão cri-
ticado por Clausewitz ), que levará mais longe a geometrização dos conflitos em seu Esprit
du systeme de guerre moderne (1799).
9
Cf. a declaração de Vauban em sua Mémoire pour servir d'instructíon dans la conduite des
sieges e dans la défense des places, Leyde, J. & H. Veebeck, 1740, p. 4: "A guerra que se
faz pelos cercos expõe menos um Estado e assegura bem melhor as conquistas; também
é a que é hoje a mais praticada" (citado por B. Colson, L'art de la guerre ... ed. cit. p. 96).
54 Estados de Violência
*Nt. Sébastien Le Prestre, senhor de Vauban, engenheiro militar, 1633-1707, publicou Projeto
de dizimo real- Petit Larousse.
10
"Fazer a guerra é refletir, combinar ideias, prever, raciocinar profundamente, empregar
meios: destes meios, uns são diretos, os outros indiretos; estes últimos são em tão grandes
números que encerram quase todos os conhecimentos humanos", Joly de Maizeroy, Théo-
rie de la guerre, 1777, citado in Dictionnaire de stratégie militaire, ed. cit. p. 385.
11
Les stratagémes, Livre 1, Préface, trad; P.Laederich, ed.cit. p. 49 .
Primeira Parte - FORÇAS MORAIS 55
12
E o general Poirier falará bem mais tarde de "estratégia integral" para designar a lógica
de uma guerra que não se reduz à batalha mas se inscreve num quadro histórico-cultural
amplo, no sentido também em que a guerra serve sempre mais de grade de leitura para
toda lógica da ação (in La guerre totale, ed. cit. p. 119-131 ).
13
Maurice de Saxe, Mes rêveries, Livre li (Oes parties sublimes), cap. 15, ed. cit. p. 223.
56 Estados de Violência
É a grande lição das Luzes: uma guerra sábia é uma guerra racional,
humana e moderada.
14
Não se está mais perto da L ·art de la guerre de Sun Tzu: "o grande capitão submete os
exércitos sem combate", cap.111. ed. cit. p. 59 .
*N.T. A guerra no século XVIII, Dictionnaire Le Petit Robert
15
Marquis de Puységur, L'art de la guerre, li, p. 135, citado por B. Colson, in L'art de la
guerre ... ed. cit. p. 151 .
primeira Parte - FORÇAS MORAIS 57
A fome é mais cruel que o ferro e a penúria arruína mais exércitos do que as ba-
talhas: pode-se encontrar remédio para todos os outros acidentes ; mas não há para a
falta de víveres. Se eles não foram preparados a tempo, já há derrota sem combater. 16
16
Montecuccoli, Mémoires, Paris, d'Espilly, 1746, p. 62-63, citado por B. Colson, in L'art
de la guerre ... ed. cit. p. 108. Cf. também: "Encontram-se na história muito mais exércitos
reduzidos por falta de pão e de polícia(= administração) do que pelo esforço dos exércitos
inimigos", Richelieu, Testament politique (1689), ed. cit. p. 340-341 .
--- Estados de Violência
58
17
Os negócios de guerra , a partir de Luís XIV, dependem de um ministério especializado,
de um secretariado da Guerra, assumido por Michel le Tellíer depois por seu filho , o mar-
quês de Louvais. Este último escrevia em março de 1664: "não basta ter muitos homens,
é preciso que sejam bem formados, bem vestidos, bem armados" (citado in F. Gere, Dic-
tionnaire de la pensée stratégique, ed . cit. p. 165). Ele cria a ordem do quadro (sistema
de avanço que integra o critério da antiguidade), estabelece uma estrita disciplina e uma
uniformização das tropas, institui uma inspeção regular destas últimas, monta "armazéns"
de víveres e de munições abastecidos e controlados, na proximidade das fronteiras.
18
As paróquias, os hospitais, as universidades e as prisões sabem desde sempre manter
registros de suas populações, a burguesia comerciante aprendeu desde muito a fazer o
inventário de seus estoques, avaliar suas necessidades futuras e as cidades sabem como
estabelecer a setorização de seu espaço em caso de epidemia ou de catástrofe.
19
Indivíduos chamados soldados figurantes a quem um sargento pagava uma pequena
quantia de dinheiro, exatamente para figurarem como soldados no momento da revista ,
a fim de poder justificar o soldo inteiro de um soldado de infantaria, prática que introduzia
sempre uma diferença entre os efetivos "no papel" e os "em campo".
primeira Parte - FORÇAS MORAIS 59
20
Essa estilização militar da administração civil é plenamente visível e posta às claras na subs-
tituição de uma administração civil por uma administração militar (em caso de ocupação de
um território ou estado de urgência), seja por ocasião da ocupação pelos militares de uma
administração (países colonizados), seja por reprodução perfeita do modelo militar nas relações
civis (militarização do Estado denunciada por Mirabeau na Prússia de Frederico li, quando ele
escreveu em 1788: "A Prússia não é um Estado que possui um exército, mas um exército que
ocupa um Estado", citado por J.Cornette, "Naissance de l'armée moderne" (Nascimento do
exército moderno), in L'histoire, "Les hommes de la guerre", julho-agosto de 2002 , n. 267, p. 39.
60 Estados de Violência
Os Antigos nos fornecem uma multidão de exemplos que atestam que com uma
boa disciplina fazem-se bons soldados em todo o país; ela supre os defeitos da natu-
reza e é mais forte que suas leis [... ]. A natureza faz poucos valentes: eles são devidos
mais frequentemente à educação e ao exercício. A disciplina vale mais para a guerra
do que a impetuosidade. 21
21
Maquiavel, L ·art de la guerre (1521 ), Livre I e VII, trad.T. Guiraudet, ed. cit. p. 76 e 250.
A penúltima máxima (é o caso para muitos) é inteiramente copiada de Vegécio (Livre 111,
cap. XXVI, "Maximes générales de la guerre", ed. cit. p. 121; estas últimas se encontrarão
repetidas sem referência por toda a idade clássica).
Parte - FORÇAS MORAIS 61
pri·rneira
p. 154.
22
Mes rêves, Livre 1(Oes partias de détai~. cap. 8, "De la discipline militaire", ed. cit
É preciso dizer também que em Roma, sob o mesmo nome de milítía romana , passou-se
2.!l
e um
do exército republicano de cidadãos-camponeses unidos por uma sólida ambição
- ao
mesmo amor da terra - manejando indiferentemente como Calão o arado e a espada
de provincian os e de mercenári os, mais indiferente s
imenso exército imperial , composto
com o destino longinquo das fronteiras mas retidos por treinamentos rigorosos.
62 Estados de Violência
24
"Seus exercícios não têm menos exigências que os combates reais: cada soldado treina
diariamente usando toda a sua energia, como se estivesse na guerra. Também suportam
o combate com a maior facilidade. Nenhuma desordem desvia sua formação habitual, ne-
nhum medo os paralisa, nenhuma fadiga os esgota; resulta uma certeza constante de vitó-
ria contra adversários que não estão nunca em seu nível. Não se enganaria quem dissesse
que suas manobras são combates sem efusão de sangue e seus combates manobras com
efusão de sangue", Flávio Josefa, La guerre des Juifs, cap. V, trad. P. Savinel, citado in G.
Chaliand, Anthologie, ed. cit. p. 119.
25
"A primeira atenção deve ser acostumar os novos soldados ao passo militar; pois nada
é mais importante, numa marcha ou numa ação, do que conservar a igualdade dos movi-
mentos entre os soldados: o que não se pode fazer senão exercitando-os continuamente a
marchar depressa e no mesmo passo", Vegécio, cap.lX, "Que é preciso exercitar os novos
soldados no passo militar", ed. cit.
primeira Parte - FORÇAS MORAIS 63
servia para tornar essa solidariedade familiar, para vencer o medo também por
uma impressão do já vivido. O entusiasmo, certo "vai por si" eram compreen-
26
didos e tinham sua parte no poder do embate.
Em contrapartida, a racionalidade do fogo imposta pela revolução
militar é uma racionalidade exterior, ela não é mais imposta só pela com-
posição de corpos, mas depende de cálculos físicos: cálculos de trajetórias
e de posições, de ângulos de tiros. Ela não é mais o efeito da conjugação
imanente dos braços e das pernas. Desde então, ao soldado não se pedem
senão vigilância cega e mínima dos automatismos e dos hábitos, a obediên-
cia irrefletida: que ele atire quando se lhe pedir, que opere uma manobra à
direita, à esquerda quando se lhe pedir, que se volte etc. Já que a havia sido
pensada como ciência, a batalha como objeto de cálculo físico, o exército
como máquina, então não se podia mais pedir ao soldado senão que fosse
a engrenagem passiva dessa gigantesca equação e que não consagrasse suas
faculdades morais senão à obediência cega, absoluta àquilo que lhe era
ordenado e cuja razão última não podia perceber. E talvez, nessa inércia
mesma, pudesse haver alguma coisa como uma ebriedade difusa, um sen-
timento de abandono a uma necessidade superior, invisível e longínqua, o
espírito influenciado pelos sons estridentes das flautas, a cadência hipnóti-
ca dos tambores, sem falar dos odores sufocantes de pólvora e das fumaças
espessas. Doce excitação da obediência: somente dobrar-se cegamente às
ordens, deixar o corpo executar docilmente movimentos automáticos re-
petidos centenas de vezes. A este soldado de profissão se lhe pedia menos
ser corajoso que dócil. De todas as maneiras, em caso de vitória, é a inteli-
gência do estrategista que se acha consagrada mais que o valor das tropas.
Obediência irrefletida e cega, tanto mais acessível a esses profissionais
dos campos de batalha e dos cercos do que as injunções das guerras de
então (querelas dinásticas, velhos negócios de herança, políticas de glória e
26
É precisamente esse poder ofensivo do choque que o cavaleiro de Folard quererá en-
contrar propondo a "coluna" contra a ordem rarefeita : uma coluna espessa e compacta
que tomaria depressa as salvas de artilharia regulares e iria desbaratar, destruir as linhas
adversárias.
64 Estados de Violência
de ameaça, equilíbrio instável dos poderes, busca de uma bela vitória para
os oficiais superiores) não concerniam jamais a não aos príncipes, tão dis-
tantes para eles quanto o plano geral de batalha do qual não viam nada. De
tudo isto, eles estavam afastados, como se dirá do operário e do produto
de seu trabalho.
O exército moderno, como o de Frederico II da Prússia, deverá então
dispor de regulamentações draconianas. A vida do soldado será feita de
adrestramentos, de exercícios incessantes e de punições. Se a coragem e a
honra tinham constituído os dois núcleos duros da ética antiga da guerra,
são substituídos pelo hábito e pelo medo do superior. Tudo aí funciona com
automatismo e com o terror. Nada há outra coisa que possa fazer avançar: só
a inércia dócil do corpo alquebrado pelos exercícios e o pânico da hierarquia
na base de regulamentos ferozes (as "pauladas" alemãs).
27
Voltaire , Candide, cap. 2.
28
"Ele (o Estado futuro) terá uma milícia vigorosa, superior à de seus vizinhos , cidadãos
felizes interessados na defesa dessa prosperidade. É com salariados, com tropas consti-
tuídas como estão hoje todas as da Europa , que se irá atacar tais homens? Que diferença
os motivos e os preconceitos trarão na coragem dos dois partidos! Se enfim, malgrado sua
moderação, é ofendido em seus súditos, em seu território, em sua felicidade, o Estado fará
a guerra. Contudo, quando a fizer, será com todos os esforços de seu poder", Essai general
de tactique, ed . cit. p. 149.
..,,,eira Parte - FORÇAS MORAIS 65
Píl•"
29
Aristóteles, Politiques, 111, 4, 1277b, ed. cit. p. 46.
3
° Ciropédia , Livro 1, cap. 6, 21, ed. cit. p. 46 .
primeira Parte - FORÇAS MORAIS 67
31
Será encontrada em Arendt sob a forma da oposição entre o político (o público) com seu
sistema igualitário e familiar e o econômico (o privado) com suas hierarquias estritas e suas
necessidades servis.
68 Estados de Violência
32
Ainsi parlait Zarathoustra, Livre li, "Do domínio de si", ed. cit. p. 157.
33
Cf. ainda o conselho de Sólon relatado por Diógenes Laércio em suas Vies et doctrines
des phi/osophes illustres; "Comanda tendo antes aprendido a obedecer", 1, 58, trad. R.
Genaille.
34
Eco aqui da distinção de Foucault entre um modo de subjetivação antigo, como constituição
ativa de um eu forte e instaurando de "si para consigo" uma relação de domínio e um modo
de subjetivação cristão como renúncia a si sobre um fundo de obediência indefinida ao Outro.
primeira Parte - FORÇAS MORAIS 69
militar da sociedade; sua referência fundamental era não ao estado de natureza, mas
às engrenagens cuidadosamente subordinadas de uma máquina, não ao contrato
primitivo, mas às coerções permanentes, não aos direitos fundamentais, mas aos
treinamentos indefinidamente progressivos, não à vontade geral mas à docilidade
automática[ ... ]. O regime napoleônico não está longe e com ele essa forma de Esta-
do que lhe subsistirá e de que não é preciso esquecer que foi preparado por juristas
mas também por soldados, conselheiros de Estado e oficiais inferiores, homens de
lei e homens de campo. A referência romana de que é acompanhada essa formação
traz consigo este duplo indicador: os cidadãos e os legionários, a lei e a manobra.
Enquanto os juristas ou os filósofos procuravam no pacto um modelo primitivo para
a construção ou a reconstrução do corpo social, os militares e com eles os técnicos
da disciplina elaboravam os procedimentos para a coerção individual e coletiva dos
batalhões. 35
35
Michel Foucault, Survei/ler et punir, ed . cit. p . 171 .
36
E. J. Hobsbawn, L'âge des extremes. Histoire du court XXe siec/e,Paris, ed. cit. Complexe, 1994.
70 Estados de Viol ência
37
Mars ou la guerre jugée, ed .cit. p. 194.
primeira Parte - FORÇAS MORAIS 71
dorsos. Alain atribui uma parte também à obediência passiva. Outras vozes
consonantes afrontam este impensável, a de Luiz Mairet, caído no dia 16
de abril de 1917 em Craonne:
Sabem eles por que se batem? Pela Alsácia Lorena? [... ] Quem crê ainda que a
Europa está em fogo por este pedaço de terra? [... ] Pela pátria? Eles não a conhecem.
Tomai cem homens do povo, falai-lhes da pátria: a metade vos rirá de estupor e de
incompreensão. Então por que se bate? [... ] O soldado de 1916 não se bate pela Alsá-
cia, nem para arruinar a Alemanha, nem pela pátria. Ele se bate por honestidade, por
hábito e por força. Ele se bate porque não pode fazer outra coisa. De outro modo ele
se bate em seguida, porque, depois dos primeiros entusiasmos, depois do desânimo
38
do primeiro inverno veio ... a resignação.
38
Carnet d'un combattant, citado por A. Decasse , J. Meyer, G. Perreux in Vie et morl des
Français 1914-1918. Simp/e histoire de la grande guerre, Paris, Hachette, 1962, p. 97.
39
Eichmann à Jérusalem, ed. cit. p. 444.
72 Estados de Violência
40
lbid., p. 448.
41
Ainsi parlait Zarathoustra, Livre li , "Do domínio de si", ed . cit. p. 158.
Primeira Parte - FORÇAS MORAIS 73
42
Michel Alexandre, Lecture de Platon, ed. cit. p. 38 .
4
Sacrificar-se
O que eu queria agora apresentar é no fundo menos uma forma de guerra deter-
minada do que um estilo erans-histórico de morte. A imagem ideal seria a seguinte,
clara, precisa e contudo sem história: vê-se o soldado caminhar para o ataque com
determinação e entusiasmo, gritando com fervor o nome do país que ele defende.
Deve-se imaginá-lo desabar logo morto, ceifado pela espada ou pelo fogo. Símbolo
colorido e puro do heroísmo patriótico, do sacrifício à nação. Nada de mais vibrante,
nada de mais exaltado. Nossa memória histórica está repleta disso. São os Atenienses
de Maratona, carregando a pé, ao passo de corrida, o exército de Dario, três vezes
mais numeroso recentemente desembarcado (primeira guerra médica (dos Medos))
ou os espartanos de Leônidas defendendo até o fim o desfiladeiro de Termópilas para
retardar o avanço do exército persa (segunda guerra médica). É o entusiasmo raivoso
do exército revolucionário, Bonaparte tomando uma bandeira e atraindo atrás dele
uma coluna de granadeiros sobre a ponte de Arcole. São enfim as grandes, as terríveis
ofensivas de Somme onde pelo amor da pátria homens iam oferecer seus corpos às
metralhadoras inimigas. Tantas representações, fixadas pelo sublime da morte sa-
crificial do guerreiro. E a filosofia se encontra bem nessa imaginação fundamental
da guerra. Ela aí penetra na engrenagem, em que se atesta o mistério da moral, da
afirmação de um ideal transcendente e do desprezo soberano pela vida imanente.
*
1
L'invention d'Athenes, Paris, Mouton, 1981 .
·rneira Parte - FORÇAS MORAIS 77
pri
Os Europeus são mais belicosos também pelo efeito das instituições; pois eles
não são, como os Asiáticos, governados por reis; e aos homens que estão sujeitos à
realeza falta necessariamente a coragem. Sua alma está escravizada e eles se preo-
cupam pouco em se expor aos perigos sem necessidade para aumentar o poder de
outrem. Os Europeus, porém, governados por suas próprias leis, sentindo os perigos
que correm, correm em seu próprio interesse e não pelo interesse de um outro, os
2
"Eles devem deliberar a respeito do país em que estão e defendê-lo contra qualquer ata-
que, como se fosse sua mãe e sua nutriz", Platão, La republique, ed. cit. 111, 414e, p. 195.
3
Rousseau, que em toda sua existência ficará sensível a este modelo, denuncia "estes
pretensos cosmopolitas que, justificando seu amor pela pátria por seu amor pelo gênero
humano, se gloriam de amar todo mundo, para ter o direito de não amar ninguém". Ao que
Voltaire retruca: "é triste que muitas vezes, para ser bom patriota, alguém seja o inimigo do
gênero humano" (Dictionnaire philosophique, art. "Patrie").
78 Estados de Violência
aceitam de boa vontade e se lançam com arrojo nos riscos, pois o prêmio da vitória
4
é para eles; é assim que as leis contribuem muito para criar a coragem .
Se os cidadãos tiram dela (a pátria) tudo o que pode dar valor à sua própria
existência - leis sábias, costumes simpl es, o necessário, a paz, a liberdade e a estima
dos outros povos - seu zelo se inflamará por uma tão terna mãe. Eles não conhecerão
verdadeira vida senão a que eles tirarão da pátria, nem verdadeira felicidade senão a
de empregá-la a seu serviço; e eles contarão no número de seus benefícios a honra de
derramar, se necessário, todo seu sangue para sua defesa. 5
Vê-se ainda nessas orações que os mortos na guerra servem para ce-
lebrar sobretudo a história de Atenas, para dar-lhe o rosto de um destino.
Trata-se em toda parte de "substituir o pranto pelo elogio" (N. Loraux):
celebrar a cidade mais que chorar irmãos. Por sua morte com efeito, cada
Ateniense faz viver o que é eterno: o puro nome de Atenas. Seu sacrifício
autentica a representação que a cidade se faz de si mesma: regime perfeito
e história heroica, dom dos deuses. Contudo, é também seu próprio ser
de cidadão que o sacrifício realiza. Por sua pura origem, sua filiação heroi-
4
Hipócrates, "Dos ares, das águas e dos lugares", in De J'art medical, trad . É, Littré, Paris,
LGF, 1994, p. 122. Cf. como exemplo de exaltação: "Nas batalhas tão célebres de Miltía-
des, de Leônidas, de Temístocles que aconteceram há dois mil anos e que ainda estão hoje
tão frescas na memória dos livros e dos homens.como se fosse anteontem , que acontece-
ram na Grécia para o bem dos Gregos e para o exemplo de todo o mundo, o que é, que se
pensa, que deu a tão pequeno número de pessoas, como eram os Gregos, não o poder,
mas a coragem de suportar a força de tantos navios de que o próprio mar estava cheio,
a coragem de destruir tantas nações, que eram em tão grande número que o esquadrão
dos Gregos não tivesse provido, como foi preciso de capitães, contra os exércitos dos ini-
migos? senão que parece que naqueles gloriosos dias não era tanto a batalha dos Gregos
contra os Persas como a vitória da liberdade sobre a dominação, da independência contra
a cobiça", É. de La Boétie, Discours de la servitude volontaire, ed.cit. p. 28.
5
Rousseau, "De la patrie" in Fragments po/itiques, in Ou contrat social, ed . cit. p. 358 .
primeira Parte - FORÇAS MORAIS 79
ca, seu ascendente político sobre os outros, o cidadão merecia morrer por
Atenas. Essa realização tem sua origem num desaparecimento. Morrendo
por sua pátria, o cidadão anônimo se apaga por inscrição numa narrativa
imortal que o supera e o envolve. Ele não é imortalizado como tal, como
indivíduo. É a eternidade da narrativa que o envolve. No fundo, sua morte
estava desde seu nascimento inscrita nessa narrativa ideal e é como se ele
aí tomasse assento, ao passo que é ele que alimenta essa narrativa por seus
aros: no sentido de Marx, fetichismo do puro nome de Atenas.
O segundo modelo é "cristão" e supõe o episódio das cruzadas.
A cruzada é uma guerra agradável a Deus: ela é comandada por Ele ou
por seus representantes; o que quer dizer justificação transcendente dos
combates; a guerra não é apenas justa, mas santa. Ela não é só tolera-
da por Deus, mas querida, comandada por Ele. Daí o tema corolário de
uma transformação espiritual prometida a quem morre nestes combates
muito piedosos. Essa transformação não cessa de resto de se aprofundar:
passa-se do anúncio de uma remissão dos castigos temporais pelos pecados
cometidos a uma remissão destes pecados diante dos céus, até à promessa
de uma vida eterna e das delícias do paraíso. Uma vez fixado este quadro
conceituai, resta ainda confundir a terra santa infestada de infiéis e o reino
6
da França ameaçado pelos hereges: "Se morrerdes sereis santos mártires".
Toda a campanha dirigida por Filipe, o Belo, no início do século XIV gira
em torno destes temas: a França como nova terra santa, país caro a seu
Deus, e o povo da França é Seu eleito. No século XV, sob Carlos VII, uma
nova vaga de propaganda se desenvolve para chamar ao serviço da França,
fazendo-se por ela "mártires de Deus" (Cristina de Pisan, João Gerson ou
ainda Roberto Blondel: "Os que morrem por seu país são considerados
vivendo no paraíso"). Essa confusão do reino da França e da terra santa,
essa santificação do Estado supõe uma elaboração conceituai precisa: a do
"corpo místico". Como o demonstrou o artigo fundamental de Kantoro-
6
Promessa que o arcebispo Turpin faz na Chanson de Ro/and aos valorosos Francos pron-
tos a se bater contra os Sarracenos.
80 Estados de Violência
wicz, o corpo místico, que sob Carlos Magno remetia à Eucaristia, logo
designou a Igreja como comunidade de fé, pois, a partir das releituras por
Santo Tomás das Políticas de Aristóteles, uma comunidade política reu-
nificada, assim elevada à dignidade sagrada de um corpo santo que era
preciso amar: caritas patriae (está-se longe da oposição agostiniana entre a
pátria celeste e a terrestre). O amor da pátria como "corpo místico" supõe
que se comporte com alegria e fervor no socorro ao bem comum. E como
o Cristo era a cabeça do corpo místico da Igreja, o rei é a cabeça do corpo
místico político (conforme a elaboração do jurista João de Terra Roxa, no
século XV). Entrega-se ao socorro da "coroa" com fervor, alegria e carida-
de: ela é o ponto de união da comunidade. O que no modelo grego fazia
viver uma pátria era a liberdade. O que deve ser salvo para um reino é sua
integridade, de tal modo o corpo místico é pensado como agrupamento
solidário. Naquele tempo o sacrifício grego significava a inscrição do cida-
dão na narrativa luminosa e eterna da pátria livre, dessa vez "morrer por
sua pátrià' (pro patria mori) ganha em densidade mística. A morte do guer-
reiro é participação obscura no mistério do Cristo (Henrique de Gand no
século XIII compara a morte do guerreiro com a crucifixão do Cristo). Daí
ainda o "desejo de morte do rei", segundo a expressão de D. Crouzet, que
lançando-se no centro do combate atessa sua super-natureza por sua aber-
tura ao sacrifício.Vê-se, sob a mesma denominação de "morte pela pátrià',
o deslocamento operado: o mártir mais que o herói, o mistério mais que a
lenda, a transcendência sagrada mais que a cidade eterna, a integridade da
coroa mais que a liberdade da pátria.
Um terceiro modelo pode ser pensado: a identidade da Nação. Mui-
to amplamente contudo, o princípio nação se apresenta como a síntese
da pátria livre dos Gregos e do corpo místico cristão, como se vê em
Michelet. Contudo, é possível que uma última coisa ainda se decida em
torno da identidade espiritual do povo. É preciso partir do Estado e do
7
que Hegel chama de "o movimento ético da guerra". O Estado não é
7
Príncipes de la philosophie du droit, par. 324, trad. R. Derathé. ed. cit. p. 324 .
primeira Parte - FORÇAS MORAIS 81
Uma nação é uma alma, um princípio espiritual. Duas coisas que, a bem di-
zer, não fazem senão uma, constituem essa alma, esse princípio espiritual. Uma
está no passado, a outra no presente. Uma é a posse em comum de um rico
legado de lembranças; a outra é o consentimento atual, o desejo de viver juntos,
a vontade de continuar a fazer valer a herança que se recebeu indivisa. [... ]No
passado, uma herança de glória e de desgostos a partilhar, no futuro um mesmo
programa a realizar; ter sofrido, alegrado, esperado juntos, eis o que vale mais
que alfândegas comuns e fronteiras conformes às ideias estratégicas; eis o que se
compreende malgrado as diversidades de raça e de língua. Eu dizia há pouco:
"ter sofrido juntos"; sim, o sofrimento em comum une mais que a alegria. No
que se refere a lembranças nacionais, os lutos valem mais que os triunfos, pois
eles impõem deveres, comandam o esforço em comum. 8
8
Renan , Qu'est-ce qu·une nation? ed . cit.
82 Estados de Violência
como princípio puro depois dessa autonegação voluntária, pela guerra, dos
membros que a compõem. Dialética do todo e da parte. Para afirmar a
superioridade espiritual do todo, é necessária a negação concertada dos
partidos. O indivíduo particular se eleva por aí ao estatuto de membro
autêntico de uma nação.
9
"Para não deixar os sistemas particulares se enraizar e se endurecer neste isolamento,
então para não deixar se desagregar o conjunto e se evaporar o espírito, o governo deve
de tempos em tempos sacudi-los em sua intimidade pela guerra; pela guerra ele deve al-
terar sua ordem que se torna habitual, violar seu direito à Independência , do mesmo modo
que aos individuas que, se submergindo nessa ordem, se desligam do todo e aspiram ao
"ser-para-si" Inviolável e à segurança da pessoa, o governo deve, neste trabalho Imposto,
fazer sentir seu senhor, a morte", Hegel , Phénoménologie de f'esprit, trad. J. Hyppolíte, t.
Ili, ed.cit. p. 23.
10
Prlncipes de la phi/osophie du droít, par. 324, trad . R. Derathé, ed. cit. p. 324.
11
Des manieres de traiter scientifiquemenl du droit naturel, trad.B. Bourgeois, ed. cit. p. 55.
12
Príncipes de la philophie du droit, par. 325, ed . cit. p. 326.
prirneira Parte - FORÇAS MORAIS 83
para poder afirmar estes valores. Eis toda a dialética do sacrifício: a parte
se nega como tal para afirmar o todo, o corpo se aniquila para fazer valer o
espírito, o orgânico se suprime para fazer existir o espiritual.
Essa dialética fascina a Filosofia porque essa vê aí estar de novo em jogo
suas condições de nascimento. Se o processo de Sócrates representa o lugar
de afirmação originária da Filosofia, é que um homem se manifestou mais
ligado a ela do que à própria vida. Entre um exílio silencioso, arranjado e
a morte, Sócrates não hesitou. A que serviria viver sem poder conduzir a
inquirição inquieta, o exame vigilante de si e dos outros, a que serviria viver
sem poder dialogar com outros sobre o sentido mesmo da vida? Mais forte
que a vida, há ainda o próprio sentido da vida. Com Sócrates se ilustra a ideia
de que as razões de viver são sempre ao mesmo tempo razões de morrer. O
que me faz viver é sempre ao mesmo tempo o porquê estou pronto a morrer
se me retiram esse porquê. No coração da Filosofia como obra racional de
vida, havia essa necessidade de que se morra por ela. Assim determina-se pela
Filosofia o absoluto (absoluto dos valores, da liberdade e da humanidade): na
capacidade de morrer pelo absoluto, porque se a vida é tudo, o absoluto é
mais ainda que este todo, um além do qual a morte consentida é o espelho
brilhante. A ideologia guerreira como o pensamento filosófico partilham a
mesma definição do homem: este animal pronto a morrer por valores.
Reversão do sacrifício
Ser livre, o que é com efeito senão não ser dependente de determina-
ções naturais, passivas, dadas, biológicas? Não ser dependente de deter-
minações é poder mostrar-se indiferente a elas, ignorá-las ou até negá-las.
Dizer que só o homem é livre é dizer, para Hegel, que só ele escapa da
necessidade natural, imanente da vida. E a manifestação dessa superiorida-
de a respeito das determinações naturais é a possibilidade de as desprezar,
mostrando-se capaz de afrontar a morte num combate. Em minha capaci-
dade de morrer, eu me afirmo como superior à vida simplesmente animal.
E como a afirmação dessa superioridade não pode valer senão para um
outro homem, afirmar sua humanidade é engajar-se numa luta até à mor-
te, com um outro por quem quero ser reconhecido. Na luta até à morte
para o reconhecimen to, a humanidade se revela como indiferente à vida
biológica. A luta até à morte produz o humano, porque por ela um simples
mamífero comprometido com a vida se revela livre, capaz de desprezar seu
instinto animal de sobrevivência. 14
Contudo, essa morte não é exatamente aqui um sacrifício "em nome
de"; é antes a afirmação plena e vazia da liberdade. Hegel certamente não
ficará aí; mas ele nos permite tomar uma oferta de morte que não está a
serviço de nada mais que da afirmação da liberdade. Essa afirmação plena
e vazia pode ser tomada antes de tudo como descoberta desconcertante,
inebriante. O que Teilhard de Chardin descreve como a experiência da
frente de batalha. Aí, na frente, onde nada mais paira senão a certeza vaga
de morrer, neste desprendimen to de todo cuidado, de toda agitação, o
homem "tem a evidência concreta de que não vive mais para si" - que está
libertado de si. Até o sentido de sua pessoa, de sua individualidade, de sua
história se tornou como uma bagagem que se deixou atrás, na retaguarda.
15
Écrits du temps de guerre, ed. cit. p. 233-235.
86 Estados de Violência
16
"A técnica segundo Husserl e segundo Heidegger'', in Liberté et sacrifice, trad. E. Abrams,
ed. cit. p. 275.
5
Acabar de vez com
O modelo da guerra total como ofensiva "a mais não poder" inspira-se
diretamen te na experiência das guerras napoleônicas. Todos os historia-
dores estão de acordo neste ponto: Napoleão introduzi u na história dos
conflitos uma decisiva ruptura. As duas grandes teorias da guerra no século
XIX (De la guerre de Clausewitz e o Précis de l 'art de la guerre de Jomini) o
1
Nisto se pode sustentar que a primeira guerra total foi a Guerra de Secessão, que conju-
gava estes três caracteres: ofensa com paroxismo, como escolha estratégica dos confede-
rados: caráter de guerra civil, na qual nenhuma negociação nem terreno de compreensão
era possível (tudo ou nada); primeira guerra enfim industrial utilizando largamente as estra-
das de ferro e fuzis de longo alcance.
primeira Parte - FORÇAS MORAIS 89
A arte da guerra não pede manobras complicadas, as mais simples são preferí-
veis; é preciso sobretudo ter bom senso. Não se compreende, depois disso, como os
generais cometem faltas, é porque querem se exibir. 5
2
O sistema de Gribeauval dá à França uma artilharia mais manejável e eficaz, mas não é
mais que uma diferença de grau.
3
Cardini, La culture de la guerre, trad. A. Lévi, Paris, Gallimard, 1992.
4
"Systéme général des opérations militaires de la campagne prochaine" 1794 ), in Révolution et
mathématique, ed. J.P.Charnay, Paris, L'Herne, "Classiques de la stratégie", 2 v. 1984 e 1985.
5
Napoleão, citado in G. Chaliand, Anthologíe, ed . cit. p. 787. Cf. também: "A Guerra sendo
uma profissão de execução, todas as combinações complicadas devem ser afastadas . A
simplicidade é a primeira condição de todas as boas manobras", "Observação n. 5 a res-
peito do plano adotado em Paris para os exé rcitos dos Alpes e da ltália",citado in L.Poirier,
Les voix de la stratégie, Paris Fayard, 1985, p. 210.
90 Estados de Violência
8 "Exposição dos principies gerais sobre os quais a arte da guerra repousa" (1816), in B.
Colson , La cullure stratéglque américa/na, L'influence de Jomini, Paris, Economica, 1993.
7 Sobre este ponto, é preciso perceber uma notável oposição com os tratados de estratégia
ataque deve ser brutal: "É como um combate de murros: quanto mais se dão,
maís valem". 10 A brutalidade é a força sem regras, sustentada só pelo movi-
mento de sua afirmação. Deve-se desprezar os sábios cálculos manobristas
para confiar só na compacidade dos golpes.'1 O segredo da vitória está aí:
"empregar os grandes meios", sem levar em conta custos em homens, em
material. Destruir, massacrar, bater, para que tudo acabe enfim.
Essa brutalidade na guerra é contudo menos primitiva do que se po-
deria pensar, pois não se trata de contar só com o físico , mas também
com o efeito moral. Porque faz impressão, a brutalidade forja reputações
e terroriza o inimigo de antemão. O que compreenderá o coronel Ardant
du Picq: 12 nunca é o embate físico, a superioridade puramente quantitativa
de um dos batalhões projetados que fazem dobrar o inimigo, mas o medo
sempre provoca a derrocada antecipada de um dos dois exércitos. Assim, o
embate nunca existe como tal, mas há antes pânico e deslocação para um
dos dois adversários. A brutalidade é a afirmação sem retenção da força,
sobretudo enquanto ela é própria para abater os espíritos. A brutalidade
é a força que quer fazer impressão, impressionar. O inimigo deve com-
preender, com certeza absoluta, que o outro irá até o fim de sua força: 13 ''A
qualidade essencial de um general é a firmeza de caráter e a resolução de
vencer a todo custo". 14
Pois quem despreza sua vida se torna senhor da dos outros. Quem é
bastante louco para arriscar a própria vida leva vantagem sobre quem é as-
10
lbid.
11
"O aparecimento de Bonaparte introduziu na Guerra um novo elemento de superioridade.
Opondo a força bruta à sábia arte militar e convencional de seu tempo, tendendo sempre
aos resultados extremos pelos meios mais simples, o Corso genial se tornou invencível
para os exércitos de seu tempo", F. von Bernhardi, La guerre d'aujourdhui, chap. 1, trad. M.
Etard , Paris, 1913, citado in G. Chaliand, Anthologie, ed. cit. p. 1.068. Foi a lógica adotada
pelos generais Grant e Sherman durante a Guerra de Secessão.
12
Études sur /e combat, ed.cil.publlcaçã o póstuma de 1880.
13
Cf. no mesmo sentido as declarações de Lenin: "Eis aqui algumas regras principais que
Marx deu dessa arte (a guerra): Jamais jogar com a insurreição e, quando se começa com
ela, estar bem compenetrado da ideia de que é preciso caminhar até o fim [... ]. A defensiva
é a morte da insurreição armada" . (Lettres de /oin 1917, citado por G. Chaliand, in Antho-
logie, ed. cit. p. 1.1 14. )
14
Napoleão, Maximes, citado por G. Chaliand, in Anthologie, ed. cit. p. 787.
92 Estados de Violência
saz sábio para apegar-se a ela. A vitória é menos garantida para quem quer
destruir tudo do outro do que para quem se mostra pronto a perder tudo
de si mesmo. Quando se quer verdadeiramen te ganhar, é preciso verda-
deiramente estar pronto para perder tudo. A chantagem tem seus limites.
Quanto mais se avança, mais o perigo se torna claro, mais o adversário se
aproxima e mais é preciso, se se quer vencê-lo, dar prova de que se assume
perder tudo. 15 Só nessa medida alguém é forte.
Depois do extremismo da ofensiva, o segundo segredo das vitórias na-
poleónicas está na simples superioridade das forças. Basta então ser o mais
forte no ponto preciso em que se ataca.
Com poucas exceções, é à tropa mais numerosa que a vitória está assegurada. A
arte da guerra consiste, então, em se encontrar em número superior no ponto em
que se quer combater. Vosso exército é menos numeroso que o do inimigo, não dei-
xeis ao inimigo o tempo de reunir suas forças; surpreendei-o em seus movimentos; e
vos apoiando com rapidez sobre os diversos pelotões que tiverdes tido a arte de isolar,
combinai vossas manobras de maneira a poder opor em todos os encontros vosso
16
exército inteiro a divisões de exército.
15
Ver ainda o discurso de Péricles durante a Primeira Guerra do Peloponeso: "Nós não
cederemos e não viveremos com medo pelos bens que possuímos" (Histoire de la guerre
du Péloponnese, Livre 1, cap. CXLI. Trad. J. de Romilly, ed. cit. p. 240).
16
Napoleão, citado por G. Chaliand, in Anthologie, ed. cit. p. 788.
17
Essa lição ficará gravada na cultura estratégica americana, implicando uma nova impor-
tância da logística e da preparação.
18
L'a,t de la guerre,cap . Ili, ed. cit. p. 60.
primeira Parte - FORÇAS MORAIS 93
19
no princípio de concentração das forças. É preciso ter uma percepção
analítica do exército adversário (daí a importância da informação) para dis-
tribuir suas forças de tal maneira que em cada ponto em que se ataca seja
0
mais forte. Empregar em grande escala estratégica o que estava dito no
mito dos Horácios: Horácio, tendo perdido seus dois irmãos, se encontra
sozinho diante de três Curiácios feridos em graus diversos e finge fugir. Ele
se deixa perseguir, depois volta a fim de combater cada um dos três irmãos
isoladamente e vencer um de cada vez. Essa distribuição supõe energia e
rapidez (Napoleão deve, como ele diz, suas vitórias à palmilha de seus sol-
dados) e a redução máxima de forças que ficariam à espera para combates
secundários possíveis e outras operações de apoio. Desde que uma vitória é
alcançada por uma secção, ela deverá juntar-se a uma outra para assegurar
20
sua superioridade contra uma outra fração do inimigo. Essa maneira de
combater supõe uma dispersão aparente das divisões, que se faz caminhar
em rotas paralelas, até organizar uma convergência súbita. É preciso poder
com efeito reagrupar as forças de maneira inesperada, de tal sorte que o
adversário se descubra mais fraco num ponto em que ele não esperava: "A
arte da guerra consiste em concentrar um esforço superior de uma massa
contra partes fracas". 2 1 Daí a prática de engodo e do segredo, para jamais
deixar o adversário adivinhar aonde levará o máximo de meu esforço; pois
o ponto fraco do adversário é decidido só por aquele que ataca. O segredo
da prioridade da ofensiva está aí: quem toma a iniciativa decide por onde o
adversário será mais fraco. Sou eu que decido as fraquezas de meu inimigo.
19
Chamado também princípio de economia em Foch: "O princípio da economia das forças
é, ao contrário, a arte de descarregar todos os seus recursos em certo momento sobre um
ponto, de aplicar todas as suas tropas e, para que a coisa seja possível, de fazê-las sempre
se comunícar entre si em vez de compartimentá-las e de submetê-las a uma destinação
fixa e invariável; depois, um resultado obtido, fazê-las de novo concentrar-se e agir contra
um novo alvo único", F. Foch, Des príncipes de la guerre, Paris, 1918.
20
Os exércitos napoleônicos não serão mais como os do Antigo Regime, pesadas e lentas
massas, acompanhadas por "armazéns" e todo um pequeno satélite de parentes, comercian-
tes etc. A intendência é reduzida ao mínimo e é pedido aos soldados "viver no país" . Daí ain-
da as marchas forçadas para atacar sempre mais cedo que o adversário pudesse desconfiar.
21
A.H.Jomini, "Exposição dos principias gerais sobre os quais a arte da guerra se baseia"
(1816) in B. Colson, o.e. p. 298.
94 Estados de Violência
22
De la guerre, trad. D. Naville, ed. cit. p. 51.
. ira Parte - FORÇAS MORAIS 95
pnrne
23
lbid., p. 42.
24
Exemplos: "Hoje, nosso método de guerra alemão se propõe como objetivo uma grande
batalha decisiva e imediata, inseparável, em nosso pensamento, de uma ofensiva abso-
luta" (Colmar von der Goltz, La nation armée, organisation militaire et méthode de guerre
modeme, trad.H. Monet, Paris, 1891 ); "Na guerra moderna, a estratégia e a tática visam a
destruição do adversário: a estratégia pela batalha; a tática pelo ataque decisivo" (F. Foch,
De la conduite de la guerre, Paris, 1904; "Só há uma forma de guerra, a saber, o ataque ao
inimigo [ ... ] a melhor estratégia é sempre a força" (J.F.C. Fuller, Les batail/es décisives du
monde occidental, Paris, Berger-Levrault, 3v. 1981-1983).
25
Cf. por exemplo as grandes ofensivas, inúteis e loucamente mortíferas, da Somme de
junho a novembro de 1916. O estado maior aliado tinha sonhado reintroduzir o movimento,
acabar de uma vez por todas com as guerras de trincheiras lançando uma ofensiva que
seria decisiva e empregando o mais possível de meios, resignando-se com o sacrifício de
centenas de milhares de homens. E esse foi, para nada, um gigantesco massacre (600.000
mortos de cada lado), regimentos inteiros de homens se chocando cada vez com uma bar-
ragem de fogo que os atingia de frente, vitimas da mística da ofensiva absoluta.
96 Estados de Violência
destruição, importa jogar com a duração. Não que se trate, como Fabius
Cunctator diante de Aníbal, na segunda guerra púnica, de temporizar e de
retardar de tal modo a batalha que o adversário acabe por perder o fôlego.
A guerra de corpo a corpo pratica ao contrário uma ofensiva constante,
regular, indefinidamente repetida. 26 Ela abate o adversário por um fogo
contínuo, incansável, em que se tenta obter pela repetição lancinante o que
não se poderia ganhar numa só vez contra o inimigo, apostando em sua
extinção lenta mais que em sua derrocada brutal ("Eu os roo", diziaJoffre).
A brutalidade dessa vez é lancinante, obstinada, teimosa.
Na guerra de deslocação (também chamada "aproximação indireta'' por
Liddell Hart que dela encontra ilustrações ao longo de toda a história), as
grandes vitórias ficam devidas a uma primazia da ofensiva, mas uma ofensiva
que não se apoia sobre a frente do exército adversário. Trata-se de procurar,
por manobras girantes, tirar o inimigo de suas bases, destruir suas linhas de
comunicação, a fim de que ele não se sinta mais sustentado e se desagregue
no local A ofensiva não é mais direta, no sentido em que não se trata de
derrubar uma frente, mas de atingir zonas de segurança do combatente e
destruir nele o sentimento de que ele pode sempre se retirar em boa ordem. A
agressividade ofensiva se liga a um sentimento de confiança: o inimigo na
frente que ameaça, o amigo atrás que apoia: ''A deslocação psicológica pro-
cede essencialmente do sentimento de ser pego na cilada. Ela também teve
por princípio um movimento nas linhas de retaguarda do inimigo [... ]. Ao
contrário, marchar direto sobre um adversário consolida seu equilíbrio físico
27
e psíquico e, consolidando-o, aumenta sua capacidade de resistência''.
26
O aparecimento do fuzil de cano raiado (com um alcance de mais de quinhentos metros)
parecia consagrar, antes da chegada dos tanques e da aviação militar, a superioridade de uma
tática de abatimento ofensivo contínuo caminhando de par com um oportunismo de posição .
27
B. Liddell Hart, Stratégie, trad. L. Poirier, ed . cit. p. 399. Esse movimento de intervenção
ativa e destrutiva sobre as retaguardas de um exército inimigo continua aqui confinado ao
campo de batalha. Giulio Douhet foi, contudo, um dos primeiros (La martrise de /'air, 1921)
a compreender a inflexão estratégica que podia representar o uso de aviões de comba-
te, permitindo bombardear cidades, armazéns, fábricas , estoques. Ele inventa com este
propósito o conceito de "guerra integral". A guerra integral é a procura da destruição, não
mais simplesmente do exército, mas do que o faz viver e o sustenta: recursos econômi-
cos, populações compostas pelas famílias que ficaram na retaguarda, centros energéticos,
primeira Parte - FORÇAS MORAIS
97
O que quer que seja a guerra total neste primeiro sentido de ofensiva
ao excesso e suas variações, é preciso lembrar que Bonaparte não inventou
nern a primazia do ataque, nem o princípio de concentração das forças 28 e
os grandes conquistadores não o esperaram para praticar o massacre total
e a destruição completa. 29 Contudo, em cada ponto Napoleão introduziu
certa radicalização: intensidade da ofensiva apoiada pela artilharia; rapidez
de deslocamento para redistribuir forças massivas de agressão (tomando
para seus exércitos rotas diferentes mas convergentes e pedindo-lhe s que
vivessem no país para reduzir a logística); extremismo da vitória equivalen-
do para o inimigo à destruição completa de seu exército, contra os costu-
mes antenores.
Essa radicalização supõe uma cultura da brutalidade como elemento
ético determinan te. A brutalidade é a força que não conhece outra medida
senão ir até o fim de si mesma, uma violência necessariamente em exces-
so: sua única medida é seu esgotamento. Ela não é mais regulada por um
objetivo. A resistência adversária não é mais compreend ida como resistên-
cia positiva que é preciso equilibrar, depois superar aumentand o a pressão
de seu poder, mas um obstáculo negativo a fazer explodir sob o embate.
Trata-se de bater, bater forte até não poder mais. Nenhuma revista caute-
losa, nada de ameaças longínquas, nenhum efeito de ostentação, nada que
seja feito para impressionar à distância. A brutalidade não economiza na
quant itativ a dá à
quant idade . Lógica de despesa, porqu e a super iorida de
até à saciedade.
agressividade sua segurança. A bruta lidad e conso me força
O inimigo absoluto
ewitz susten-
Depo is da ofensiva ao excesso, o inimigo absoluto. Claus
ha à ascensão aos
tava que o caráter limita do dos objetivos políticos se opun
a. 30 Não se iria
extremos. O objetivo político dá ao alvo milita r sua medid
o de território.
arriscar todos os recursos de um país para ganha r um pedaç
rá total para um
É preciso comp reend er a contrario que a guerra se torna
cionárias ou de li-
objetivo absoluto, como é o caso para as guerras revolu
poder ocupa dor
bertação nacional. Que se trate com efeito de expulsar um
nos dois casos não
ou de instalar à frente do Estad o forças revolucionárias,
vida, para a morte .
há com o inimi go nenh uma negociação possível. Para a
Vencer ou morrer. Tudo ou nada.
r a posição
Num conflito clássico, a vitória milita r só serve para ocupa
sário a um tra-
mais favorável à mesa de negociações, para obrigar o adver
procu ra um acordo
tado de paz desfavorável. A guerrilha ao contr ário não
político a esperar
com o inimigo: este deve desaparecer. Se o objetivo
32
33
Le Míére de Corvey, Des partisans et des co1ps irrêgufíers, Paris, 1823.
34
Cf. as crueldades da guerrilha espanhola contra as forças de ocupação napoleônicas (e
reciprocamente) Ilustradas por Goya, em seus desenhos.
Estados de Violência
100
se sentir
incom odar, impedi r, atrasar, enervar. As forças "regulares" devem
logo.
perpet uamen te atacadas, mas por um inimig o invisível que se esvai
o se
O que supõe a cumpl icidad e da popula ção civil: o revolucionári
(Mao).
quiva e se dissimula, ele deve sentir-se "como um peixe na água"
ta e
Contra um ocupan te estrangeiro, a conver gência de interesses é imedia
, porque
a cumpl icidad e natura l. A repressão se torna terrível, cega, injusta
brutal,
o inimig o é todo mundo e nã é ningué m e não há nada de mais
lhe
incontr olável do que uma força se irritan do por sentis seu alvo sempre
a,
escapar. Se a guerra contra um inimig o claro pode perma necer hLiman
ão
como o face a face leal, a luta contra a guerril ha leva as forças de ocupaç
bater
a uma selvageria em que entra agasta mento e a raiva de não se poder
como é preciso. 35
s
Todos esses ataques dispersos, bruscos, voláteis contra frações isolada
têm por
do poder inimig o, essas sabotagens, essa infiltração na popula ção
seu de-
objetiv o exatam ent desencorajar o inimigo: chegar à exrinç,fo de
da
sejo de comba ter. Neste sentido , a guerril ha é uma guerra total, associa
a uma econom ia de meios. Ela se liga à inspiração da antiqu íssima
Arte da
guerra de Sun Tzu que aconselhava reservar o ataque frontal contra o ini-
falso ·
migo para o mome nto em que ele seria esvaziado de sua corage m por
inter-
alertas e enervá-lo contin uamem e até este ponto. É preciso para isso
r uma
vir em cima: cortar os recursos, interfe rir nas comun icaçõe s, suscita
o, mas a
inquie tação difusa ... Não se visa, então, o corpo armad o do inimig
te,
raiz de sua vontad e, seu sistem a nervoso, atorme ntando -o contin uamen
oo
incans avelme nte - encont rando- se lá onde ele não nos espera, evitand
afront ament o que nos propõe etc.
36
L'a,t de la guerre, trad . J . Lévi, ed. cit. cap. 1, p. 54.
37
Théorie du partisan, ed . cit. p. 234-235.
38
lbid., p. 258.
102
Estados de Violência
pela sua própria crueldade. Desde que se trata de escolher no interior de sua
própria comunid ade quais serão seus aliados ou seus inimigos definitivos, a
pessoa não torna suportável para si mesma essa hostilidade impossível a não
ser transformando-a em ódio. É só a este preço que não se é inumano a seus
próprios olhos: satanizando o inimigo, lançando-o para fora de uma frontei-
39
ra, a que separa o Bem do Mal. Imagem do "inimigo absoluto". É por meu
próprio ódio que não perdoo ao inimigo. É por isso que o destruirei com o
último excesso: ele é culpado de meu ódio a seu respeito, responsável de ter
acendido em meu coração este fogo que me queima e o destrói.
Enfim, a proximi dade das guerras civis exacerba uma estrutura pa-
ranoica. Como é preciso desconfiar de todo mundo, cada um vive num
estado de insegurança constante, de vigilância perpetua mente despertada,
multipli cando os acessos de pânico. A proximi dade das guerras civis exa-
cerba a lógica de antecipação presente no seio de todo combate. Antecip ar
o golpe do adversário, desenvolver uma força superior à que se lhe supõe,
o lanço maior é negócio de cálculo e exige um inimigo tomado a certa dis-
tância. Contudo , quando ele está virtual e absoluta mente próximo e pode
cercar-me a cada instante, a antecipação funciona no primeiro movimento.
Todo mundo em toda parte é um inimigo potencial de todos. É como uma
dilaceração indefinida, em que as populações civis seriam pegas em tenaz:
intimada s por cada um dos partidos a escolher, submetidas dos dois lados
à intimida ção, ao terror e à propaganda.
Na guerra civil, cada um sustenta seu próprio ódio pela imaginação
de um ódio suposto do outro a seu respeito: eu te odeio porque tu me
odeias e reciprocamente. Quando duas imaginações se misturam , se pro-
duz a realidade do ódio. O ódio se torna real, justificado de ser partilhado.
Ele é alimenta do pelo medo, que lhe dá uma dimensão de urgência vital.
Eu te massacro porque tu queres massacrar-me: ''A guerra nasce de uma
aparência enganosa de guerrà'. Quando um tem medo do outro, a amea-
40
39 lbid.
•
0
Erasmo, "A guerra é doce para os que não a fizeram" (1515).
Primeira Parte - FORÇAS MORAIS
103
A mobilização total
que vida é pruden te e sábia, e que ela gosta das reservas. As guerras mo-
dernas terão acarretado requisições esgotantes, extenuantes, mobilizações
suicidas. Há aí uma lógica de jogada extrema que supera a simples tensão
vital e cuja força é preciso encontr ar alhures: a técnica, a máquin a como
processo de consum o indefinido. A guerra modern a é guerra de consumo:
ela consom e cadáveres, consom e recursos, devora as vidas por séries. Jün-
ger, em A mobilização total (1930), já tinha deslocado o acento: mais que a
afirmação vital, é o desencadeamento da Força que a guerra exacerba. Ela
procede menos de um ajuntam ento vital das nações sustent ando sua inte-
gridade do que da vertigem anônim a da técnica arrastando os dois belige-
rantes em sua espiral. Toda técnica é técnica de exploração. Toda coisa nela
se define como disponível, gratuito-obrigatório*: objeto de manipulação,
de transformação, de utilização. O homem da época técnica é um bata-
lhador, relançando por sua atividade a posição generalizada do ser. Toda
coisa, todo indivíd uo é mobilizado, não num objetivo de conservação, mas
para aliment ar o ciclo indefinido de consumo. Produz ir para gastar, gastar
para produzir. Produç ão de massa, uniform e, anônim a. A guerra total é
técnica, não no sentido em que ela utiliza meios técnicos, mas em que ela
é meio da Técnica. Ela entra de novo no processo anônim o de consum o
das forças. Todos os recursos materiais, todas as atividades dos homens ...
"Não há mais uma só atividade, fosse a de uma máquin a de costura, que
não seja uma produç ão destinada, ao menos indireta mente, à econom ia de
guerra" .44 A guerra total não conta mais com soldados que se bateriam pela
vitória, mas com trabalhadores que alimen tam "um processo sangrento de
consumo". Como há um consum o de massa, a guerra total é destruição
de massa, em que os homens não são mais que um "material humano " na
fornalha de uma máquina que não quer senão girar. 45 Uma só humanidade
na guerra a serviço do consumo das forças. A guerra está a serviço da força
desumana, no sentido em que o antagonismo a limita. 46
Essência do século XX. É por essa "prestação de serviço" indefinida
que se caracteriza ainda, para Hannah Arendt, além da guerra total, o
rotalitarismo. A tirania ou o despotismo era o reino criminoso de uma
vontade humana arbitrária, não levando em conta nenhuma lei. O to-
talitarismo ao contrário submete tudo a leis: a lei da Natureza para o
nazismo, exigindo a exterminação ou a sujeição dos povos inferiores para
assegurar o desenvolvimento das raças puras; a lei da História para o
comunismo, exigindo a eliminação dos traidores ou dos covardes que
recuariam diante da marcha inexorável do progresso. Mobilizar, pôr em
movimento os homens para processos anônimos alimentando-se de sua
própria lógica, é a essência do terror. 47
É preciso ainda compreender de que iniciativa o homem alimenta este
sistema que o esmaga. Por detrás das guerras totais, do totalitarismo e tam-
bém do fenômeno do genocídio ou das guerras coloniais exterminadoras,
pode-se sempre denunciar a lógica delirantte da técnica, do produtivismo,
do consumo das forças. Contudo, o que é que sustenta em cada homem
essa lógica, quando ele organiza os massacres, quando planifica a morte em
45
Cf. a caracterização em von der Goltz da guerra moderna pela "consumação ao máximo
feita da matéria humana" (La nation armée, citada in Chaliand, Anthologie, ed. cit., p. 1.016).
46
Cf. Patocka: "(A guerra) representa a vitória definitiva da concepção do ser nascida no
século XVII com a emergência da ciência mecânica da natureza e a eliminação de todas as
"convenções" que faziam obstáculo a essa liberação da força: uma "trans-valorização" de
todos os valores sob o signo da força. Por que a transformação energética do mundo não
pode se fazer senão via guerra? Porque a guerra, a oposição levada a seu paroxismo, é o
meio mais eficaz de liberar rapidamente as forças acumuladas", in "As guerras do século
XX e o século e o século XX enquanto guerra" (Essais hérétiques, ed.cit., p. 135).
47
"O terror é a realização da lei do movimento: seu alvo principal é fazer que a força da
Natureza ou da História possa envolver o gênero humano inteiro em seu desencadea-
mento, sem que nenhuma força de ação humana espontânea venha pôr obstáculo. Como
tal, o terror procura "estabilizar" os homens em vista de liberar as forças da Natureza e da
História", Le systéme totalitaire, ed. cit. p. 21 O. Cf. ainda: "O objetivo prático do movimento
é enquadrar tantas pessoas quanto possível em sua organização e pô-las e mantê-las em
movimento; quanto ao objetivo político que constituiria o fim do movimento, não existiria
simplesmente", ibid. p., 50.
106 Estados de Violência
48
Propósito de 22 de julho de 1922, in Propos, li, Paris, Gallimard, Bibliothéque de la
Pléiade, p. 497.
primeira Parte - FORÇAS MORAIS 107
LANCES POLÍTICOS
Introdução
"A guerra é negócio de importância vital
para o Estado; a província da vida e da morte;
o caminho que leva à sobrevivência
ou ao aniquilamento."
SuNTzu
A arte da guerra
1
J.J. Rousseau, Du contrat social, Livre 1, cap. IV.
112 Estados de Violência
O fato de causar a morre a outros homens que estão no campo inimigo, nada
disso tem valor normativo, trata-se, ao contrário, de valores puramente existenciais,
inseridos na realidade de uma situação de luta efetiva contra um inimigo real, e que
não tem nada a ver com alguns ideais, programas ou abstrações normativas. Não
há finalidade racional, nem norma, por mais justa que seja, nem programa, por tão
exemplar que seja, nem legitimidade nem legalidade que possam justificar o fato de
que seres humanos se matem uns aos outros em seu nome; pois, se na origem deste
aniquilamento físico de vidas humanas não há a necessidade virai de manter sua
própria forma de existência diante de uma negação também tão vital dessa forma,
2
nada mais poderia justificar este aniquilamento.
1
Há todavia dificuldade em compreender como, se o inimigo é o que constitui para um Es-
tado "a negação de sua própria forma de existência" (La notion de politique, ed. cit. p. 65),
então neste grau de radicalidade, a guerra política seria menos aniquiladora que uma guerra
em nome da humanidade, o que Schmitt aliás sustenta. A construção jurídica, em Le nomos
de la ferre, do "inimigo justo" (justus hostis), menos existencial e portanto menos absoluta, se
revelará sobre este ponto menos convincente. Pois como impedir que essa guerra existencial
não seja uma guerra total, como se vê em Ludendorff: "Por sua própria essência, a guerra
total não pode ser feita senão se a existência de todo o povo está ameaçada e se foi decidido
assumir a responsabilidade de fazê-la" (La guerre fota/e, ed. cit. p. 9)?
2
La notion de polifique, ed.cit. p. 90.
segunda Parte - LANCES POLÍTICOS 115
O que faz que eu esteja pronto a morrer e a matar não faz parte de
nenhum programa, não defende nenhuma utopia. Isso toca a própria base
da existência. A guerra é decisão pura. Contudo, essa base da existência, o
que é? Identidade cultural, vitalidade do povo, destino histórico? As decla-
rações de Schmitt hesitam aqui entre vitalismo e providencialismo. 3
Se é o Estado em sua imanência radical que é preciso defender, o conteú-
do vital se impõe mais ao pensamento. Passar da existência à vida, é passar
da mística à biologia. O Estado não é mais um corpo místico (coesão provi-
dencial), mas um ser vivo (solidariedade orgânica). Serão tomadas então as
marcas conceituais do vital no instinto agressivo, a violência predadora. A
vida é um combate. Deve-se até superar o darwinismo: mais ainda que luta
para sua conservação, a vida é vontade de dominar, de deixar marcas. Sentir
sua força é sentir a superioridade de sua força contra um outro.
Viver é essencialmente despojar, ferir, dominar o que é estranho e mais
fraco, oprimi-lo, impor-lhe duramente sua própria forma, englobá-lo e
ao menos, ou melhor, explorá-lo, - mas por que empregar sempre estas
palavras que exprimiram desde sempre uma intenção de caluniar? Todo
corpo [... ] deverá ser uma vontade de poder encarnado, ele quererá crescer,
estender-se, abarcar, dominar, não por moralidade ou imoralidade, mas
porque ele vive e porque a vida é desejo de poder. 4
A vida é desejo de poder: uma superação pela luta. Contudo, dominar
é sempre ao mesmo tempo dar forma. O vitalismo nietzschiano mantém
sua consistência de multiplicar os ecos entre estética e política: toda domi-
nação autêntica é criação; e toda interpretação um ato de domínio. Então,
a grande política é formação do futuro. Nesse nível, as paixões nacionalis-
3
Há um ponto obscuro em que a definição política do inimigo se torna mística: o inimigo,
antes ameaçando uma integridade existencial, se define logo como inimigo providencial ,
aquele que me foi enviado para decidir minha identidade. Cf. a observação de H. Méier,
Carl Schmitt, Leo Strauss et la notion de politique, trad. F. Manent, Paris, Julliard, p. 96-100.
4
Par-de/à bien et mal, trad. C. Heim, Neuviéme Partie, par. 259, ed. cit. p. 182. Cf. ainda:
"Onde se encontra vida, somente ai se encontra também querer, não querer-viver contudo,
mas - é o que ensino - vontade de poder!" (Ainsi parlait Zarathoustra, Livre li, "Do domínio
de si", ed. cit. p. 159).
116 Estados de Violência
5 "Trago a guerra", escreveu Nietzsche (Oeuvres phi/osophiques completes, tome XIV, de-
sombra", par. 187, p. 259: "Poder-se-á aconselhar a guerra como remédio para povos
cujas forças se esgotam lastimosamente, a supor que queiram verdadeiramente eontinuar
a viver; pois há também um tratamento de choque para o enfraquecimento dos povos".
7
Em seu livro s0bre Les doctrines darwiniennes et la guerra de 14 (Paris, Economica,
2001 ), T. lindermann mostrou bem como essa ideologia vitalista deformou a percepção
das relações internacionais (terror do cerco, perigo dos povos eslavos etc.) e constitui um
elemento forte de explicação do desencadeamento da Primeira Guerra Mundial. Estas te-
ses não terminaram com ela. A humilhação da derrota e a duração do tratado de paz antes
reavivam a chama: elas se encontrarão intactas em Hitler (Minha luta , 1925) e no livro já
mencionado de Ludendorff, La guerre fota/e .
segunda Parte - LANCES POLÍTICOS 117
Até que ponto a "vida'' supostamente agressiva e violenta não terá sido pen-
sada como uma anti-Natura? A vida como uma Natureza em delírio.
Voltar a Spinoza, é passar, que se nos perdoe essa fórmula fácil, do
desejo de poder ao poder do desejo. Isto é, a Natureza, como sistema de
necessidades, feixe de finalidades, ordem de razões: organização. Para a
filosofia política clássica o que é propriamente natural, o que faz de todo
vivente um poder, é a paixão que o vincula à sua própria existência, no
duplo sentido sempre de um cuidado com sua conservação, mas também
de uma tendência à afirmação plena de seu poder de viver. Cada homem
assim, naturalmente, "tende sempre a conservar seu ser na medida do es-
forço que lhe é próprio". 8
Essa pura tensão a perseverar faz de cada ser um poder. E este poder é
um direito ("direito natural") já que seu esforço, segundo Spinoza, é sus-
tentado por Deus, absoluta liberdade que goza de um direito perfeito sobre
todas as coisas, produtividade infinita. Todo ser vive por Deus, não sob seu
império ou sua dependência, mas pelo poder continuamente outorgado.
Deus não está aqui como justificação, garantia do desejo (como se fosse
preciso dizer: é Deus que deseja em mim quando eu desejo, o que lhe dá
crédito), mas Ele sustenta a realidade do desejo. Deus não justifica nada
jamais, segundo Spinoza, mas em cada instante realiza tudo.
Ligar-se à sua conservação, procurar seu bem-estar, cultivar seu poder
de afirmação, fazer durar seu desejo, estes movimentos de poder são de
direito natural. Por aí, conclui Spinoza, os homens "são, pelo fato de sua
própria natureza, inimigos uns dos outros" .9
E desejar-se-ia manter aí a lição do realismo político, este pretenso
pessimismo antropológico. O que nos ensinariam os clássicos: o homem é
naturalmente hostil ao homem. Cada homem para o outro seria um inimi-
go natural. O homem é este animal que quer a guerra. A guerra é a mina de
realidade insuperável das relações inter-humanas. Ainda em sociedade, este
8
Traité de rautorité politique, 11, 8, ed. cit. p. 86.
9
lbid., li, 14, ed. cit. p. 89.
,-
Se dois indivíduos, estando de acordo, unem suas forças, o poder e por conse-
guinte o direito, que todos dois desfrutam juntos ativamente no seio da natureza,
ultrapassam o poder e o direito de cada um tomado isoladamente [... ], pois quanto
mais os indivíduos que se põem de acordo são numerosos, tanto mais o direito que
usufruem juntos é considerável.'º
10
lbid., li, 13 e 15, ed. cit. p. 89 e 90.
120 Estados de Violência
11
Sob a condição de pensar como Kant que seria possível considerar a paz como inscrita
nos fins da Natureza e a guerra como o que conduz a eles. Na primeira adjunção ("Da
garantia da paz perpétua") ao Projeto de paz perpétua, encontra-se a ideia de que a guer-
ra introduz na história dos homens princípios próprios para produzir a paz. Princípio de
dispersão, primeiro, a guerra obriga os homens a se dispersar sobre toda a face da terra.
Principio de defesa mútua, em seguida: a guerra obriga os homens a consliluir unidades
polí1icas estáveis, enquanto poderes aptos para se defenderem uns dos outros.Princípio de
reciprocidade: no interior dos Estados, o antagonísmo natural das paixões é favorável à for-
mação de Repúblicas (regras de comportamento comuns permitem às inclinações egoístas
encontrar seu débito na neutralização mútua). Princípio de separação: a diversidade das
culturas e a pluralidade dos Estados, se são fonte de conflitos, evitam ao mesmo tempo
a formação de uma monarquia universal que seria contrária a uma paz autêntica. No final
das contas, a lógica de guerra acaba por produzir na maior parte da superfície do globo
uma pluralidade de Estados republicanos prósperos. Basta, então, um rápido cálculo para
encontrar a paz proveitosa para todos. Neste sentido, é como se a paz fosse a filha longln-
qua, "natural", da guerra e por essa paradoxal linhagem mais solidamente estabelecida do
que se tivesse dependido somente da boa vontade dos homens.
segunda Parte - LANCES POLÍTICOS 121
força que a guerra: é negócio de julgar se algum Estado está bastante forte
para decidir tudo sozinho ou se depende de um outro para assegurar sua
segurança.
Do mesmo modo que a tranquilidad e interna não é a paz externa, a
hostilidade primitiva do estado de natureza não é a guerra. A hostilidade
primitiva entre homens dispersados é insuportável para a n atureza já que
nenhum poder pode aí se desenvolver, ocasionand o então ÍJresiscivelmen-
te a organização dos Estados. A guerra entre Estados depende mais dos
interesses variáveis dos poderes, no jogo extravagante das ambições, das
reviravoltas das situações históricas. A necessidade natural se desfaz e a
compressão das imaginações aumenta. As cidades aí muitas vezes arriscam
menos sua sobrevivência do que seu grau de independên cia. O realismo de
Spinoza está aí: ele não desespera da "natureza humana", mas faz a cons-
tatação de que se a guerra fica no horizonte das relações entre Estados, é
que a Natureza, como poder de composição, aí se faz sentir menos, a inde-
pendência sustentando a ilusão de tirar benefícios. É como o egoísmo dos
ricos: desde que esteja sem dificuldades, um homem logo crê que não há
nenhum proveito a tirar da solidariedade.
De Schmitt a Spinoza, passando por Nietzsche, a mesma lição: a guer-
ra alimenta a imanência das unidades políticas, em graus diversos: ela é
destino que fixa o simples existir das nações, sintoma da vitalidade dos
povos, compressão da imaginação dos poderes independen tes.
7
Manter um Poder
"Eu manterei."
GUILHERME, o TACITURNO
Princípio de exterioridade
Um príncipe não deve, então, ter outro objetivo nem outro pensamento e não
deve nada escolher como arte, a não ser a guerra; pois é a única arte que convém
a quem comanda; e ela tem uma tal virtude que não só mantém os que nasceram
1
príncipes, mas muitas vezes elevou a essa classe homens de condição inferior.
1
O príncipe, cap. XIV, ed. cit. p. 131. Cf. também: "Os exércitos bem compostos são o
apoio mais sólido de todos os Estados e sem eles não pode haver nem leis sábias, nem
nenhum estabelecimento útil" (Discours sur la premiére décade de Tite-Live, Livro Ili, cap.
XXXI, ed. cit. p. 153).
----- 124 Estados de Violência
Todas as vezes em que os homens são privados de se bater por necessidade, eles
se batem por ambição. Essa paixão é tão poderosa que não os abandona jamais,
em qualquer classe a que sejam elevados. Eis a razão: a natureza nos criou com a
faculdade de desejar tudo e com a impotência de tudo obter; de sorte que o desejo
achando-se sempre superior aos nossos meios, dele resultam desgosto por aquilo que
se possui e aborrecimento consigo mesmo. Daí nasce a vontade de mudar. Uns de-
sejam adquirir, outros temem perder o que adquiriram; a pessoa se confunde; vai-se
às armas e da guerra vem a ruína de um país e a exaltação de um outro. 4
2
O príncipe, cap. XVIII, ed. cit. p. 153.
3
Discours ... Livro 1, cap. 1, ed. cit. p. 36.
4
lbid., Livro 1, cap. XXXVII, ed. cit. p.107.
segunda Parte - LANCES POLÍTICOS 125
5
lbid., Livro 1, cap.VI, ed. cit. p. 257.
8
lbid., Livro 1, cap. XL, ed . cit. p. 117.
126 Estados de Violência
7
Cf. O príncipe, cap. XVII e XVIII; Discours ... Livro 1, cap. Ili.
Segunda Parte - LANCES POLÍTICOS 127
que
"Parece que elas [as maiores perturbações] são muitas vezes provocadas por aquele
9
hr,,
128 Estados de Violência
Não se pode satisfazer os grandes com honestidade e sem injustiça para com outros,
mas pode-se muito bem com o povo: de fato, o fim que o povo persegue é mais honesto
que o dos grandes, pois estes querem esmagar e aquele não quer ser esmagado. 10
10
O príncipe ... cap. IX, ed. cit. p. 101.
11
Jbíd.
12
"Está-se obrigado a convir que há no primeiro, um grande desejo de dominar e no se-
gundo, um desejo somente de não sê-lo; por conseguinte mais vontade de viver livre. O
povo anteposto à guarda da liberdade, menos em estado de usurpá-la do que os grandes,
deve ter necessariamente mais cuidado e não podendo dela se apoderar, deve se limitar a
impedir que outros dela se apoderem", Díscours ... Livro 1, cap.V, ed .cit. p. 46.
13 O príncipe,
cap. IX, ed. cit. p. 103.
14
"É da natureza dos homens sentir-se obrigados pelos benefícios que distribuem, como
pelos que recebem", ibíd., cap. X, ed. cit. p. 109.
segunda Parte - LANCES POLÍTICOS 129
serviços prestados. Estes últimos com efeito não podem senão reavivar a
defasagem cruel entre o que se lhe outorga efetivamente e o que lhe deveria
ser outorgado.
É assim que o povo é fácil de ser contentado, mas difícil de ser en-
ganado. Justamente porque ele ignora a arte das astúcias. Ele está muito
habituado a pagar à vista, para ficar livre. É porque os meios importam
pouco para Maquiavel, pois o popular se liga mais ao resultado claro; "O
popular é tomado pelo que aparece e pelo efeito da coisa (el vulgo va preso
con quello che pare e con lo evento delta cosa". 15 Se o povo não se deixa facil-
mente enganar, 16 não se deve por isso esquecer que ele se deixa facilmente
impressionar e fica sensível às aparências, 17 como os grandes lhe ensinaram.
Daí o conselho de Maquiavel: jamais desprezar o povo, aprender a
manejá-lo, compreender que ele é o poder em última instância e que não
se ganha nada em provocá-lo demais, aprender a ter que descer até provar
desse último escalão. No fundo, só há o povo com quem se possa contar
verdadeiramente. O Príncipe deverá apoiar seu poder sobre este fundamen-
to. Mais seguro, mais sólido, mais durável. Ao passo que deverá desconfiar
constantement e de seus semelhantes. Nem que fosse por pragmatismo, é
preciso ser sempre um pouco republicano. 18
Entre o Príncipe e o povo, a paz é então possível. A guerra perpétua
terá lugar entre o Príncipe e seus ministros, entre o Príncipe e outros
Príncipes.
15
lbid,, cap.XVIII , ed. clt. p.153.
16
Discours .. . Livro 1, cap. LVIII ("Mas quanto à prudência e à estabilidade , sustento que um
povo é mais prudente, mais constante e melhor íuiz do que um príncipe. Não é sem razão
que se diz que a voz do povo é a voz de Deus", ed. cit. p. 145), e cap. LIX ("Eu creio ler
provado que o povo sendo menos sujeito a se enganar do que um príncipe, pode-se confiar
com mais segurança no povo do que no principe", ed . cit. p. 149).
11
lbid., Livro 1, cap. UII.
'ª "Também a melhor fortaleza que seja a de não ser odiado pelo povo·•, O príncipe, cap.
XX, ed. cit. p. 179.
9
' lbid. , cap.lX, ed. cil. p. 103.
+,
Estados de Violência
130
-
Para além das paixões correntes (ambição, cupidez etc.), mais profun
tão
damen te, o que faz a fragilidade do poder do Príncipe e que o torna
É a.
sensível aos golpes, é que o poder é sempre o que se tomou de um outro.
a.
única descoberta do Príncipe, mas é uma descoberta pela metade, como
re,
criança que descob re que o rei estava nu no conto. Mais não se descob
ousa-se dizer: o poder sempre foi tomad o de um outro. Aquele que hoje 0
na.
detém tomou o lugar de um outro ontem e um terceiro espera sua hora
é nin-
sombra. Todos usurpadores. Todos, e é nesse ponto mesmo que não
existir
guém, pois falar de usurpação poderi a deixar crer ainda que poderi a
em algum a parte um preten dente legítim o ao poder.
Contu do, não é preciso confun dir: os lugares, as funções, os postos
s, mas
são legítimos e sagrad os ("são não os tículos que honram os homen
dade
os homen s que honram os títulos"); pois depois de tudo, há necessi
20
É pre-
de Príncipes, de ministros, de intend entes e de grandes secretários.
gentes.
ciso que haja coman dantes e subcom andant es, dirigentes e subdiri
em
Dirigidos, sempre haverá bastante. Não gue se reclame em massa, mas
poder
massa se resolve. Uma filosofia partilh ada aí serve de consolação: o
é feito
jamais tornou alguém feliz. Nem infeliz aliás. Contu do, o poder não
para fazer feliz ou infeliz, mas para fazer poderoso.
Para dirigir, ao contrá rio, os lugares são limitados; e aí há pretendentes
-
demais. Quem será Príncipe ou ministro, intend ente ou o grande secretá
, nem
rio? Nesse nível, nenhu ma legitimidade: nem diplom a, nem família
, mas
tradição, nem talento, nem competência. Tudo isso ajuda sem dúvida
táticas.
o essencial se joga alhures: os cálculos e as ciladas, as manob ras
dentes
Nada jamais teve valor em si para aceder ao poder: todos os preten
que foram bem sucedidos o foram porque seus estratagema foram
os me-
idade
lhores. E eles o sabem entre si, mesmo se querem justificar a legitim
. Que
histórica da autorid ade sagrada ou da compe tência em bem comum
o
paixão cada um põe para afirmar que representa melho r que um outro
interesse de todos!
Isso cria apesar de tudo um elo entre eles: estas frases. O que os liga
são estas palavras, nas quais ninguém acredita, ocas, mas que se partilham
não obstante e que permitem que se fale entre grandes, entre os grandes e
0
povo, entre o Príncipe e os grandes; que seguindo umas às outras não se
tornem realidade. A retórica do "bem público" é exatamente a delicadeza
política. Contudo, a delicadeza é de grande poder e muito legítima. Como
"bom dia'', "boa tarde", o "interesse geral" é uma abertura vazia, formal,
que permite às vezes ir mais longe.
Os grandes "sempre em movimento " sabem entre si que nada os desig-
na mais particularm ente para esse posto a não ser o primeiro a chegar, que
de resto seria sempre bastante sábio e capacitado para esses cargos que não
exigem nada mais, depois de tudo, do que tomar uma decisão. Eu não digo
uma boa ou uma má decisão, porque o próprio destas decisões políticas,
estratégicas, é de ser boas ou más pelo seu resultado.
O que faz a bondade de uma decisão é seu efeito. E quem pode conhe-
cer de antemão o efeito de uma decisão, quem pode prevê-la com conhe-
cimento certo? Ninguém. Pode-se imaginar, não se pode prever. Então até
que ponto os grandes estão mais bem colocados que um outro para tomar
decisões? Contudo, o próprio de uma decisão é que é preciso tomá-la e
que é necessário que haja alguém para tomá-la. Qualificado para tomar
decisões, na medida da solenidade da tarefa, pois elas têm um efeito muito
extenso e público. As decisões são graves e é preciso saber exibir-se na me-
dida. Este posto de chefe é então realmente legítimo e sagrado, mas aquele
que o ocupa não se autorizou senão por sua paixão e seus cálculos, fora os
casos, excepcionais e raros, de probidade.
A guerra entre principados, entre Estados, entre poderes é uma fata-
lidade da mesma espécie, pois os Príncipes entre si são irmãos de paixão.
210 •.
pnnc,pe, cap. IX, ed. cit. p. 58.
Estados de Violência
132
ou pela
22 "A segunda espécie de guerra acontece, quando um povo Inteiro coagido pela fome
·guerra , abandona suas terras, suas mulheres, seus filhos e va i procurar novas terras e uma
mas para
nova morada, não para aí dominar como aqueles de quem falamos mais acima,
. Essa
possui-la individualmente, depois de ter vencido e ter expulsado os antigos habitantes
de guerra é a mais terrível e a mais cruel", Oiscours ... Livro li, cap. VIII, ed . cit. p. 175.
espécie
23 Cf. o admirâvel capitulo XII do Discours em que é aconselha do ao general, para obter a
a invencível
melhor coragem de suas tropas, "ocupar-se em colocar os combaten tes sob
lei da necessidade" (ed. cit. p. 283).
24 O príncipe, cap. XIX, ed. cit. p. 55.
2
ª lbid., cap. Ili, ed. cit. p. 57. (Cf. também o conjunto do capítulo X do Discours ... Livro 111).
134 Estados de Violência
Princípio de unidade
Ainda há um outro ponto bem considerável, para mostrar que é preciso manter
a disciplina militar e fazer a guerra, é que sempre houve e sempre haverá aproveirado-
res, assassinos, malandros, vagabundos, sediciosos, ladrões em toda Rep(1blica, que
sujam a simplicidade dos bons súditos e não há leis, nem magistrados, que possam
ter a razão de tudo isso [... ]. Não há, então, meio de limpar as Repúblicas de tal
imundície, a não ser mandando esses elementos para a guerra, que é como um remé-
dio purgativo e muito necessário para expulsar os humores corrompidos do corpo
universal da República. A guerra ao inimigo é um meio para manter as pessoas em
amizade. Há outras considerações particu lares além destas; isto é, que o mais belo
meio de conservar um Estado e preservá-lo de rebeliões, sedições e guerras civis, e
de manter as pessoas em boa amizade, é ter um inimigo, que se possa enfrentar. Isso
pode-se ver pelo exemplo de todas as Repúblicas e até dos Romanos , que nunca en-
conu-aram mais belo antídoto para as guerras civis, nem remédio mais certo do que
28
colocar os súditos diante dos inimigos.
por M.
27
Sécurité, territoire et population, curso no Colégio da França de 1978 estabelecido
Senellart, Paris, Gallimard-Le Seuil-Hau tes Études, 2004, p. 95.
26
Jean Bodin, Les six livres de la Republique, Livro V, cap. V, ed. cit.
segunda Parte - LANCES POLÍTICOS 135
t::,
136 Estados de Violência
29
"Refletindo sobre os meios de remediar este mal, eu creio achar dois. O primeiro seria en-
treter os cidadãos num estado de pobreza tal que eles não pudessem com rlquezas e priva-
dos de virtude corromper os outros e ser eles mesmos corrompidos. O segundo consistiria
em dlrigir de tal modo suas vistas do lado da guerra, que se estivesse sempre em condição
de fazer a guerra", Discours ... Uvro Ili, cap. XVI, ed. cit. p. 292. Cf. também : "As leis mais
úteis num Estado são as que mantêm os cidadãos pobres" (ibid., cap. XXV, p. 307).
segunda Parte - LANCES POLÍTICOS 137
Não se trata mais aqui de dizer que a guerra provoca a união sagrada
contra o inimigo. O teorema de Erasmo sobre o segredo dos Príncipes pa-
rece mesmo ir totalmente ao contrário já que ele diz: é quando a união das
pessoas é muito forte que os Príncipes provocam guerras. Eles vão mesmo
30
Erasmo, La complainte de la paix (1517), ed . cit.
138 Estados de Violência
zer esquecer essa divisão fundamen tal que divide toda a sociedade em duas:
divisão entre governantes e governados, dirigentes e dirigidos, adminis-
32
tradores e administrados, capitalistas e explorados; pois a paz torna essa
divisão mais sensível, a questiona de novo, faz duvidar de sua utilidade.
As pessoas "estreitamente unidas" descobrem que no fundo elas poderiam
entender-se sem os Príncipes. Ora a guerra permite não esquecer como tal
essa divisão, mas esquecer seu caráter arbitrário, ilegítimo. Em vez de fazer
passar essa divisão ao segundo plano, a guerra a justifica como condição da
unidade, como a única coisa que permite salvá-la do perigo. A guerra reúne
em torno dessa divisão, como os soldados, na urgência vital, são reunidos
em torno de seu chefe. O que mantém a guerra é, então, um princípio de
obediênci a ao Estado.
Princípio de obediência
31
''Se o país, ao contrário, está acostumado à guerra e dilacerado pelas facções, só essa
Instituição pode reconduzi-lo à tranquilidade, Em tais regiões, armas e chefes não serviam
senão para lutas internas em vez de servir contra o inimigo de fora: nossa instituição voltará
estas armas contra o estrangeiro e afastará os chefes da guerra civil", L'art de la guerre,
Livro 1, cap. XI, ed. cit.
32 Cf. para recordar, a tese absolutame nte contrária a essa de P. Clastres, em Archéo/ogie
de la viofence, para quem , a função da guerra incessante das sociedades primitivas seria
precisamente evitar a formação de uma instância de poder separada.
segunda Parte - LANCES POLÍTICOS 139
33
"O DIREITO DE NATUREZA, que os escritores polftlcos chamam comumente de jus
natura/e, é a liberdade que cada um tem de usar seu próprio poder, como quiser para a
preservação de sua própria natureza, dito de outro modo de sua própria vida, e, por conse-
guinte, de fazer, segundo seu julgamento e sua razão próprios, tudo o que ele achar ser o
melhor meio adaptado a este fim", Hobbes, Léviathan, cap. XIV, ed. cit. p. 228.
: lbid. , cap. XIII, p. 220.
5
lbid., p. 224.
:m lbid.
140 Estados de Violência
37
E se o que Tocqueville chama "a igualdade das condições" nas democracias modernas
consagra este sentimento fundamental de poder pretender como os outros toda coisa, isso
significaria retorno ao estado de natureza.
38
Cf. Hobbes, Léviathan, cap. XX, sobre "O Estado de aquisição", "aquele em que o poder
soberano é adquirido pela força[ ...] quando os homens[... ], por medo da morte ou das ar-
mas, autorizam todas as ações deste homem ou dessa assembleia, que tem suas vidas e
sua liberdade em seu poder", que Hobbes distingue da "soberania de instituição" em que
"os homens que escolhem seu soberano o fazem por medo uns dos outros, não daquele
que eles instituem" (ed. cit. p. 322),
142 Estados de Violência
39
lbid.
40
"Todo soberano tem o mesmo direito para procurar a segurança para seu povo que um
indivíduo qualquer pode ter para buscar sua própria segurança", ibid., cap. XXX, p. 518.
• lbid., cap. XIII , p. 227.
1
42 "Com efeito, a guerra não consiste somente na batalha ou no ato de combater, mas neste
este estado não ocasiona a miséria, porque é nas suas fronteiras que o Esta-
do mantém a atividade militar, instalando um espaço de segurança interna,
em que a indústria, as artes e as ciências se desenvolvem.
"Mesmo se jamaís tivesse existido algum tempo em que os particulares não
estivessem em estado de guerra uns contra os outros... " O estado de guerra é
fazer medo. Contudo, fazer medo a quem precisamente? Ao inimigo que
me observa sem dúvida, pronto a me destruir desde que eu abaixe a vigi-
lância; mas também às pessoas. Quero dizer que se efetivamente o medo
é componente, 43 é preciso dar-lhe garantias. Só a realidade de um estado
de guerra entre Estados faz tornar-se sensível a ficção pura do estado de
natureza. O estado de guerra entre Estados na materialidade física de sua
presença contínua (fortalezas, guarnições e canhões nas fronteiras) projeta
sobre a clareira da paz civil a sombra de uma guerra primitiva, permitindo
a fundação continuada da autoridade suprema, fazendo-nos entender sem-
pre porque temos motivo para obedecer.
Princípio de equilíbrio
:; Cf. Fo~cault "a soberania se for~a sempre por baixo, pela vontade dos que têm medo",
1faut
dedendre la société ". N.t. "E preciso defender a sociedade", ed . cit. p. 85.
144 Estados de Violência
44
J. Bodin, Livro V de sua République, cap . VI, ed. cit.
45 "E consciente de que, para a república florentina e para ele mesmo, seria muito perigoso
que um dos mais poderosos aumentasse ainda seu poder, ele (Lourenço de Médici) se
empregava com todas as suas forças em manter as coisas da Itália tão bem equilibradas
que a balança não pendesse nem de um lado nem do outro". F. Guichardin , Histoire d 'ftalie,
trad. J. L. Fournet & J.C. Zancarini, Paris, Robert Laffont, coll. "Bouqins", 1996, p. 5.
46
"Sobre a balança do poder", ed . cit. p. 504-505.
nda Parte - LANCES POLÍTICOS 145
5eg U
47
Cf. as declarações famosas de P. de Béthune: "Razão de Estado não é outra coisa senão
razão de Interesse" e do duque de Rohan: "os Príncipes comandam os povos e o interesse
~ornanda os Principes" (citado por É.Thuau , Raison d'État et pensée à /'époque de Riche-
eu, ed . cit. p. 312).
•~E
fil ssa formalização das relações internacionais encontrará sua expressão mais pura na
1
osofia dinâmica de Leibniz.
146 Estados de Violência
49
"Sobre a balança do poder", ed. cit. p. 512.
50
Nessa frase, extraída de Memórias anônimas de política estrangeira (citado por
É. Thuau,
de Richelieu, ed.cit. p. 310), é evidentem ente
Raison d'État et pensée politique à f'époque
ao rei da França que essa função é destinada.
8
Mostrar e sentir sua força
"Por querer aparecer muito poderoso,
vós arruinais vosso poder e enquanto estais fora
do objeto do temor e do ódio de vossos vizinhos,
vos esgotais dentro pelos esforços necessários
para sustentar uma tal guerra."
FÉNÉLON, As aventuras de Telêmaco
Quem não cresce decresce quando os outros crescem. É muito possível que um
particular diga: "eu estou satisfeito e não quero mais nadà'. [... ] Um Estado que fi-
casse sem cessar nessa prática de uma humilde moderação, deveria ou bem ser muito
favorecido por sua situação ou bem ser uma presa pouco atraente, para não perder
bem depressa até aquilo com que se contentava humildemente e para que as pala-
vras: "eu não quero mais nadà' não indiquem ter tido na realidade essa significação:
"eu não quero mais nada e nem quero mesmo existir" . 1
1
Fichte, Sur Machiavel écrivain, Introdução.
148 Estados de Violência
A má consciência da força
Eu quero dar para ler curtos extratos do longo discurso que represen-
tantes de Atenas opõem aos Lacedemônios, quando estes exigem contas da
gestão de seu império e da brutalidade de que os Atenienses dão prova para
impor seu sistema de alianças. 2
Tanto mais que este império mesmo , nós não o devemos à violência: simples-
mente vós não quisestes continuar a lura contra o resto das forças bárbaras e os
aliados, então, vieram nos procurar, a nós, para nos pedir espontaneamente para
nos colocarmos à sua frente. Depois, nada senão agir, nós primeiramente fomos
obrigados a levar o império ao ponto em que está: principalmente por temor, depois
3
também pela honra e mais tarde por interesse.
2
A ocasião é, cerca de 430, o cerco de Potideia, colônia que se tinha retirado da Confe-
deração marítima por causa de uma pressão fiscal muito pesada, o que tinha provocado a
cólera de Atenas e o envio de tropas.
3
Tucídides, Histoire de la guerre du Péloponnése, Livro 1, cap. LXXV, 2-4 , ed. cit. p. 208-209.
4
Cf. no livro Ili, do discurso de Cleon lembrando que não se deve jamais esquecer que toda
submissão, mesmo acompanhada de favores, alimenta o ódio e o desprezo do submetido
e que é sempre de mal grado que se obedece ("vós esqueceis que o poder constitui entre
vossas mãos uma tirania que se exerce sobre povos que, eles, fazem intrigas e suportam
este poder de mal grado" (Livro 111, cap. XXXVII, ed. cit. p.321) .
segunda Parte - LANCES POLÍTICOS 149
A alternativa, para um poder político não está nunca entre deixar livre
ou submeter à sua dominação, ou ainda entre proteger ou subjugar. Isso é
pensar em termos de moral. É preciso, quando um Estado é poderoso, usar
de sua superioridade para respeitar, até garantir a liberdade do outro, ou
5
"O imponderável do futuro comanda muitas vezes, e se nada é mais enganador, nada
também se mostra mais útil: pois, iguais no medo, usamos mais prudência mutuamente
para nos atacar" (discurso de Hermócrates, livro IV, cap. LXII, p. 391 ).
6
lbíd., livro 1, cap. LXV, 2-3 e LXXVII, 3-4, ed. cit. p. 209-210 .
.
150 Estados de Violência
A demonstração de força
Uma lei de natureza faz que sempre se alguém é o mais forte, ele comanda: não
fomos nós que criamos este princípio ou que fomos os primeiros a aplicar o que ele
enunciava: ele existia antes de nós e existirá para sempre depois de nós e é apenas
nossa vez de aplicá-lo, sabendo que também vós ou outros, postos à frente do mesmo
poder que nós, faríeis do mesmo modo. 8
7
lbid., livro V, cap. XXXIV, 2, ed. cit. p. 476.
8
lbid., livro V, cap. CV, 2, ed. cit. p. 480.
152 Estados de Violência
9
lbid., livro V, cap. XCIV-XCV. p. 478.
segunda Parte - LANCES POLÍTICOS 153
'º L 'art de la guerre, cap. 1, ed . cit. p. 54. Cf. em Tao Te King, o sistema completo de oposi-
ções, cap. XLI : "O homem de uma virtude superior é como um vale. O homem de um mérito
imenso parece ferido de incapacidade, O homem de uma virtude sólida parece desprovido
de atividade. O homem simples e verdadeiro parece degradado" (trad. Stanislas Julien) .
154 Estados de Violência
pouco menos forte do que a imagem que eu dou a ver; seja: eu sou mais
forte do que eu deixo ver. Compreende-se logo o ganho estratégico da
aparência: a surpresa. Se a tática da imagem de força é de jogar com a
impressão, contendo a agressão por demonstrações públicas, a tática da
aparência de fraqueza se mantém na surpresa: deixando vir o ataque,
ela o revira por um transbordamento inesperado e brusco. Além deste
topos sobre técnica da surpresa, 11 dir-se-á ainda que nessa construção
oriental da guerra, a energia deve permanecer atrás de sua imagem e
ficar em retenção para conhecer o movimento de seu desdobramento.
A necessidade e a força deste movimento são ilustradas pela metáfora
da água: a água penetra e se intromete em toda parte, abafa as formas
abraçando-as perfeitamente, é sua humildade radical que é soberana-
mente perigosa, contrariamente ao fogo que destrói, devora e devasta.
Sun Tzu contra Heráclito.
A força que se retém na aparência se impõe. A força que se adianta em
sua imagem se esgota.
11
"A guerra repousa sobre a mentira", L'art de la guerre, cap. 1, ed.cit. p. 54.
12
"Que o estado de guerra nasce do ideal social", ed.cit. p. 602 .
segunda Parte - LANCES POLÍTICOS 155
se veem "os homens unidos por uma concórdia artificial se reunir para se
dego 1ar mutuamente" . 13
Reversão aqui de Hobbes: passar do estado de dispersão natural ao
estado de união social é passar da paz (à revelia) para a guerra. Contudo,
essa passagem é um mistério: por que os homens, quando conhecem a se-
gurança do grupo, a possibilidade de trocas regradas, se fazem guerra? São
os Estados que se fazem guerra, a ela atraindo os homens. Então por que os
Estados fazem guerra entre si? No estado social, a guerra é para os Estados
0
que a inveja é para os homens: a fatalidade do espírito de comparação.
Um corpo natural (um organismo vivo) "tem uma baliza de força e de
grandeza fixada pela natureza e que não se poderia ultrapas ar. De qualquer
14
sentido que ele se vê, ele encontra todas as suas faculdades limitadas" .
Tudo neste corpo é demarcado e limitado: sua duração de vida, a capaci-
dade de suas necessidades, a extensão de seus poderes. Se é olhada agora
"a constituição política dos corpos", 15 vê-se que o Estado "ao contrário
sendo um corpo artificial não tem nenhuma medida determinadà'. 16 Mais
extenso, mais rico, mais poderoso ... Quem fixará a medida? Ela pertence
só à Natureza e o Estado não é natural. Que é preciso dizer então? Que as
guerras provêm da falta de medida das paixões (louca cupidez, ambição
sem limites, sonhos de glória infinita)? Isso vai mais longe ainda.
Rousseau, contra a opinião filosófica dominante, considera que os Es-
tados entre si estão numa relação social e daí vem precisamente que eles se
façam guerra. O estado social é este estado no qual cada um não vive senão
de se comparar com o outro. Neste estado, não se é rico senão na proporção
da pobreza dos outros. Ser rico, ser feliz, não é nada: trata-se de aí ser mais
rico e mais feliz que um outro. É por aí somente que em sociedade se chega
a sentir sua fortuna e sua felicidade; o que impede nunca atingir a verdadeira
riqueza, que é possuir o que nos convém e a verdadeira felicidade, como pura
13
lbid., p. 603.
14
lbid., p.604.
15
lbid.
16 lbid., p. 605 .
156 Estados de Violência
Sentir-se rico e feliz (já não se trata mais do ser), será para o homem
em sociedade achar-se mais rico e mais feliz que um outro. Da mesma
maneira para um Estado, quando quiser se sentir forte. Será que ele sabe
somente se é fraco ou forte? É só na guerra, provando sua superioridade
sobre um outro, que ele perceberá que é forte. Dizia-se a todo momento:
trata-se para o Estado não somente de ser forte, mas ainda de demons-
trá-lo sempre: o sentimento de sua força deverá ser acompanhado de sua
demonstração pública. Contudo Rousseau previne: o sentimento de sua
força não é senão o de ser "mais forte". O Estado não pode se sentir senão
dominando um outro. A sensibilidade do Estado é a este preço.
Seja o exemplo de um Estado extenso, desmedido, abrangendo povos
e culturas diversos, pronto a explodir sob seu próprio peso. Como poderá
sentir-se de outro modo senão na guerra?
17
lbid.
segunda Parte - LANCES POlÍTICOS 157
vivacidade de suas paixões supra a de seus movimentos e que sua vontade se anime
18
do m esmo modo que seu poder se alarga.
18
lbid., p. 606.
*N.T. segundo o dicionário Le Petit Robert, "lei de arame" é o nome dado por Lassalle à lei
que reduz, em regime capitalista, o salário do operário ao mínimo vital.
Terceira Parte
QUADR O JURÍDICO
Introdução
"O que não se conhece [... ],éa natureza,
essencialmente jurídica da guerra."
PROUDHON, A guerra e a paz
A força é um poder físico: eu não vejo que moralidade possa resultar de seus efei-
tos. C eder à força é um ato de necessidade, não de vontade [.. .]. Força não faz direito. 1
1
Rousseau , Du contrat social, Livro 1, cap. Ili.
Estado s de Violência
162
mina do de energia,
me, de forças destrutivas. A força como quantum deter
de facticidade bruta . Guer ra = violência.
construção de
E do outro lado baixa-se a noção de direito à de uma
articulação ra-
sentid o por essência reconciliadora e pacificadora, de uma
uila das coisas ,
cional e justa das liberdades. O direito seria a ordem tranq
Direi to = paz.
seu comércio pacífico, a organização fluida das existências.
te idealista,
Daí a oposição entre uma filosofia da guerra, forçosamen
a Maquiavel. E
e uma filosofia da guerra, forçosamente cínica. Kant contr
o ao idealismo,
no fundo o cinismo não está aí senão para servir de cauçã
o idealismo é a
no sentid o exato em que ele o ajuda a viver, ao passo que
mutu amen te.
aparência preferida do cínico. Fantasmas que se ajuda m
sível porque a
Entre a guerra e o direito, a escolha é impossível. Impos
um em detrimento
escolha já está feita. A própria posição dos termos impõe
entre a palavra e
do outro. Que significa escolher entre Sócrates e Calícrates,
preferir o discurso
a violência? Isso nunca quis dizer preferir a guerra à paz,
romissos. Opor
à violência. O que se preferem são sempre arranjos, comp
mento. Então a
como irredutíveis o direito e a guerra é bloquear o pensa
te paz boa.
guerra é forçosamente violência má e o direito forçosamen
6
Tucídides, La guerre du Pé/oponnése, Livro V, cap. CV, 2, ed.cit. p. 480.
PUF, 1999.
7
Spinoza, Traité théo/ogique-po/itique, Livro XVI, trad. J. Lagrée e P. F. Moreau,
8
J. Proudhon, La guerre et la paix, t.l, ed. cit. p. 142.
Terceira Parte - QUADRO JURÍDICO
165
9
Histoire de la Révolution française (184 7), Paris, Robert Laffont, "Bouquins", 1979, p. 51 .
10
Le droit de la guerre et de la paix, Livro 1, cap. 1, 3-9, ed. cit. p. 34-38 .
it
166 Estados de Violência
A força e a justiça
A matéria é uma força, tão bem como o espírito, a ciência, o gênio, a virtu-
de, as paixões, do mesmo modo que os capitais e as máquinas são forças. Nós
chamamos de potência uma nação organizada politicamente; poder, a força polí-
tica, coletiva, dessa nação. De todas as forças, a maior, tanto na ordem espiritual
e moral quanto na ordem material, é a associação, que se pode definir como a
encarnação da justiça.
1
. Cap. li do livro Ido Contrato social.
Estados de Violência
168
vamos,
Aqui nos aparece, em toda a sua evidência, o que nós antes só suspeitá
o primeir o em data, 0
a saber: que o direito da força, tão aviltado, é não somente
de direitos.
mais reconhe cido outrora, mas a origem e o fundam ento de toda espécie
dizer, mais que ramifica ções ou transfor mações
Os outros direitos não são, a bem
r por si mesma à justiça, seria
daquele. De sorte que, bem longe de a força repugna 2
mais exato dizer que a justiça não é ela mesma senão a dignidade da farça.
-
O que Nietzsche encont ra em A genealogia da moral não é tão diferen
a força
te, embor a tomad o de um outro ponto, quand o Nietzsche escreve:
é generosa. A fraqueza é mesqu inha, cheia de ressentimento. Ela
se odeia
ser
muito a si mesma para poder amar. Ela tem muito despeito para poder
ao
justa. Ela é de ponta a ponta espírito de vingança e maldade. A força,
a
contrário, é magnâ nima. Só ela é capaz do olhar em equilíbrio que define
eira
justiça. Só ela pode ditar o direito e pode dele decidir porque a verdad
segu-
força não é violência, desencadeamento cego das paixões, mas calma
ou o
rança. Para poder ditar o direito, não se pode conhecer nem o medo
receio, nem o ressentimento ou a raiva.
como a
Do ponto de vista histórico o direito aparece precisamente no mundo
3
luta contra os sentime ntos reativos.
A força não é mais contrá ria ao direito, desde que seja pensada como
mas
poder de afirmação, energia de realização. Não apenas não contrária,
valer
o direito se inscreve em seu sulco como traço luminoso. O direito faz
um
no seio da existência a qualidade afirmativa da força. Eu faço sempre
como
pouco mais que existir: eu afirmo ao mesmo tempo essa existência
dia
minha (conatus - esforço - de Spinoza). Senão, como poder algum
deri-
pensar o direito de existir como o primei ro do qual todos os outros
a
vam? Como no coração do direito de propri edade há a disposição própri
uma
de seu corpo segund o Locke, no coração íntimo de cada existência há
afirmação de fazer valer e de reconhecer que é seu direito de existir.
É preciso agora pensar mais para frente, mais longe também talvez,
4
substituir a força pela guerra e o direito pelo Estado. Entre a guerra e o
Estado, pode-se estabelecer uma relação interior de proveniência, de atua-
lidade ou ainda de futuro. Problema da guerra na origem mítica do Estado,
na atualidade presente das relações de dominação política e no futuro de
suas formas. Nestas três dimensões temporais, pode-se pensar que a guerra
sustentou, sustenta e sustentará o direito.
A guerra fundadora de um direito estatal é, então, a ideia antes de tudo
de que todo sistema de direito repousa na origem sobre um golpe de força.
Todo Estado de direito começou em e por violência. Pudenda origo (ori-
gem vergonhosa). No começo forçosamente esquecido, e até ocultado, re-
calcado, negado, o Estado é uma tomada de poder e o direito à legitimação
de uma relação de forças inicial, forçosamente desigual, desequilibrada. O
direito requer a violência, como momento de sua fundação.
4
Contudo até que ponto justamente guerra e força se confundem, até que ponto a guerra ,
ou certas guerras, não consagraria precisamente a derrota da força (é a chave da posição
pacifista de Proudhon no final: a forma das guerras modernas é contrária à expressão afir-
mativa das energias humanas)?
5
W. Benjamin, "Critique de la violence", trad . M. de Gandillac, ed. cit. t. 1, p. 236. Cf. a se-
quência da citação: "Lá onde se definem fronteiras, o adversário não é pura e simplesmente
aniquilado; digamos mais: lá mesmo onde o vencedor dispõe da vitória mais arrasadora,
reconhecem-se direitos ao adversário. Mais precisamente, reconhecem-se, num modo de
demonização ambíguo, direitos "iguais"; para os dois contratantes, é a mesma linha que não
é permitido atravessar. Assim aparece, numa terrível primitividade, a ambiguidade mítica das
leis que não se tem o direito de "transgredir", as que Anatole France evoca de modo satírico
quando diz: "Elas proíbem igualmente aos pobres e aos ricos deitar debaixo das pontes" .
Estados de Violência
170
se fosse preciso combat er para preservar sua vida), nem como instrum ento
para manter pela força um quadro legal determ inado (as operações de po-
lícia). A violência não vem sustent ar um poder ou um direito, de fora. Ela
é antes, na imediação sonhad a da origem, ato puro de poder. Ela segue 0
movim ento próprio de sua afirmação. É uma violência "mítica", recuada
à origem do Estado. Na origem, o poder afirma-se, instaurando-se, faz-se
sentir, sem dúvida pisando no direito dos que serão seus governados, e se
6
impõe a todos, vencedores e vencidos.
O direito é sempre o direito que um povo, um clã, na origem tomou de
um outro, primeiro ocupando suas terras, queimando suas aldeias, massacran-
do suas crianças. Todo direito estatal na origem é um direito de conquista.
Direito fundamentalmente dissimétrico, acabando por organizar relações de
dominação mais que de reciprocidade, consagrando privilégios, santificando
hierarquias. O direito nascido da guerra é um direito sobre. sobre terras conquis-
tadas ou sobre um povo subjugado. Pode-se recordar ainda a insistência de Carl
Schmitt em compreender o nomos (lei) numa dimensão terrena ("o direito é
terreno e se refere à terra"). 7 Se o direito se refere à terra, é tão certamente porque ·
ela manifesta um princípio de retribuição (um ganho proporcional ao mérito
do suor), porque ela ilustra um princípio de divisão e de ordem (os limites da
propriedade, os sulcos regulares em sua superfície). Contud o, é também, sobre-
tudo, porque aquém mesmo dessa terra medida, dividida, limitada, trabalhada,
é preciso supor uma "tomada de terras" como "título jurídico original".ª
ade e
No começo da história de todo povo tornado sedentári o, de toda comunid
consti-
de todo império acha-se, então, sob uma forma ou outra, o aconteci mento
também para o começo de toda época his-
tutivo de uma tomada de terras. Isso vale
não somente do ponto
tórica. A tomada de terras precede a ordem que daí decorre
senão as condições
0
A paz é, então, sempre a do vencedor, e o direito não recupera jamais
vencedo r impõe ao vencido. Daí o tema em Benjamin de uma terceira violência
que um
como pura afirmaçã o fazendo ruptura
(depois da instrumental e a mítica): violência "divina",
como em Serei , que faz da greve geral sindical um ato gratuito.u ma vio-
e sinal, um pouco
ção, e contudo não niilista. somente
lência que não seria enfeudada a nenhuma reivindica
a afirmação de seu poder enorme.
7
C. Schmitt, Le nomos de la terre, trad. L. Deroche-Gurcel, ed. cit. p. 48.
6 lbid., p. 51.
Terceira Parte - QUADRO JURÍDICO 171
de vista lógico, mas também histórico. Ela contém a ordem inicial que se desenvolve
9
no espaço, a origem de toda ordem concreta ulterior e de todo direito ulterior.
9
lbid., p. 53.
10
M. Foucault, "li faut défendre la société" (curso de 21 de janeiro de 1976), ed. cit. p. 43.
172 Estados de Violência
pensado, narrado como o teatro de uma luta contínua. A paz civil garanti-
da pelo direito se acha atravessada por uma guerra subterrânea: ela não é a
expressão de um bem público, mas compreen de linhas de forças. É sempre
o direito de um povo contra um outro. O antigo perdedor jamais capitu-
lou e prepara sua desforra. Em oposição às teorias filosóficas do contrato,
essas narrativas fazem ver a concórdia civil como uma cortina de fumaça, a
universalidade da lei como um engodo e o bem comum como uma menti-
ra. No fundo, o direito não é mais que a expressão de uma relação de forças
precária e transformável. E a política é bem a guerra continuad a por outros
11
meios: inversão do preceito de Clausewitz.
O que interessa a Foucault, nessas narrativas lendárias de um afron-
tamento ancestral e permanen te dos povos ou das raças no interior de um
Estado, é o tipo de análise que elas propõem. Contra um discurso filosófico
que teria por tarefa basear em razão a unidade da Nação, a universalidade
da Lei, a indivisibilidade da vontade geral, a igualdade dos cidadãos, e com
isso nos ensinar por que obedecer e aceitar o Estado como expressão do
bem público e fonte da paz, Foucault valoriza um discurso histórico-crítico
que desenha linhas de fratura, descreve o movimen to das lutas e faz ver o
12
sistema de direito como a vista em corte de uma situação de guerra.
lbid., p. 41 .
·1·1
12 0 direito organizand o a ordem intraestatal é então semelhante aos países interestatais
inscritos nos tratados: seja o relatório de uma capitulação , seja um frágil e precário compro-
misso - o tempo para as partes refazerem suas forças -, seja ainda uma cumplicidade de
ocasião, para formar uma força maior contra um terceiro. É um direito que depende de um
estado das forças. Cf. Spinoza: "Este tratado [de paz ou de confederação] subsiste tanto
tempo quanto a causa que determinou seu estabelecimento , isto é, o medo de um mal ou
a esperança de um proveito subsiste; se essa causa deixa de agir sobre uma ou outra das
duas Cidades, ela conserva o direito que lhe pertence, e o elo que unia as cidades uma
à outra é rompido por si mesmo. Cada Cidade tem , então, o direito absoluto de romper
o tratado quando ela quiser, e não se pode dizer que ela age por astúcia e com perfídia,
porque rompe seu compromisso logo que não tem mais razão de temer ou de esperar: a
primeira que for livre do medo se tornará independente e, em consequência, seguirá a opi-
nião que melhor lhe parecer", Traité politique, Ili , 14, ed. eit. p. 31 . Gf. também Nietzsche,
La généalogie de la mora/e, segundo tratado: "Do ponto de vista biológico mais elevado.
o direito não pode ser senão um estado de exceção, uma restrição parcial da vontade de
vida propriamente dita , a qual visa o poder e não pode senão se subordinar ao alvo geral
dessa vontade de vida , como um de seus meios particulares , a saber, como meio de criar
unidades de poder maiores" (ed . cit. p. 83).
Terceira Parte - QUADRO JURÍDICO 173
Não há mais para a Alemanha prussiana outra guerra possível a não ser
uma guerra mundial, e uma guerra mundial de uma amplidão e de uma violên-
cia jamais imaginadas até aqui. Oito a dez milhões de soldados se degolarão.
[... ] Um só resultado absolutamente certo: o esgotamento geral e o estabeleci-
mento das condições da vitória final da classe operária. [... ] Quando tiverdes
desencadeado forças que não puderdes mais dominar, e qualquer que seja o
curso dos acontecimentos, o fim da tragédia verá vossa ruína e a vitória do
proletariado [... ] será inevitável. 13
13
Citado por J. Lefebvre em sua edição de Projet de paix perpétuel/e de Kant (ed. cit. p. 168).
174 Estados de Violência
14
"No curso dessa dialética se produz o Espirita universal, Espírito do mundo, Espírito ilimita-
do que exerce seu direito- e este direito é o direito supremo - sobre estes esp1ritos finitos [id
est (isto é) os Estados] na história mundial, que é também o tribunal mundial",Hegel,Principes
de la philosophie du droit, par. 340, trad. R. Derathé, ed. cit. p. 333.
15
G. Duby, Le dimanche de Bouvines, ed. cit. p. 191 e 220.
Terceira Parte - QUADRO JURÍDICO 175
16
"A batalha principal deve, então, ser considerada como uma guerra concentrada, como
o centro de gravidade de toda guerra e de toda campanha. Como os raios do sol se unem
na fornalha do espelho côncavo numa imagem perfeita e aí produzem o máximo de incan-
descência, as energias e as contingências da guerra se unem na batalha principal para
produzir um efeito supremo e concentrado", C.von Clausewitz, De la guerre, trad. D.Naville,
ed. cit. p. 279-280.
"N.T. Não foram estas as duas letras e sim X e P, que correspondem às letras CHR, em
francês Christ = Cristo, grafia eliminada em português, antes se escrevia Christo, christão,
Por exemplo; X em grego se tornou CH e P é o nosso R).
176 Estados de Violência
17
vitória. Como ainda Clóvis, na narrativa de Gregório de Tours, caindo de
repente de joelhos no campo de batalha, humilde e suplicante ("se tu rne
dás a vitória ... "). E o combate se vira à sua vantagem: batalha decisiva, erni-
nentemen te solene, eminente mente singular. Clausewitz dizia "da batalha
principal": "nós nos encontram os colocados diante do próprio destino"_ is
A guerra é um puro acontecimento que decide do direito e constitui-se sua
fonte, que decide porque nesse combate é pedida a ajuda dos deuses e que
eles façam a balança pender. O direito permanec e um tempo suspenso
dos lábios da batalha, boca dos deuses. O que os deuses dão é exatamente
um suplemen to de forças. Eles aumentam a força de uma parte: augere =
aumentar , em latim (que dá auctoritas = autoridade). A autoridad e é este
suplemen to de força que se desprende, esse suplemen to enquanto é dado e
que legitima a superioridade. Vitória como fonte e manifestação do direi-
to. A guerra é instrumen to de sua revelação. Não é justificar o direito do
mais forte. É considerar que a maior força é dada ao direito mais legítimo:
"Faz-se a guerra para obter dos deuses uma decisão de valor sagrado, pela
prova da vitória ou da derrotà'. Trata-se exatamen te de desempat ar duas
19
17
Histoire des Francs, li, 30.
18
lbid., p. 74.
19 J. Huizinga, Homo /udens, trad. C. Seresia, ed. cit. p. 153.
Terceira Parte - QUADRO JURÍDICO 177
°
2
Cf. os livros exemplares, sobre este ponto, de J.F. Fuller, Les batail/es décisives de
f'histoire (1958), Paris, Berger-Levrault, 1980, 3 v.
10
A guerra legítima
Eu vos digo, não resistais ao mau (ego dico vobis non resistere maio). Se alguém te
bate na face direita, apresenta-lhe a esquerda (Mt 5,39).
Amai vossos inimigos (5,44).
Todos os que pegam a espada, pela espada perecerão(omnes enim qui acceperint
g!adium gládio peribunt) (26,52).
1
Cf. De idolatria, 19, e De carona militis, 11.
Terceira Parte - QUADRO JURÍDICO 181
pada contra alguém, nós não a pegamos mais para fazer a guerrà' ;2 Lactâncio
lembrava a interdição feita aos cristãos de matar alguém3 •••
Bastante depressa contudo, no sulco traçado por Santo Agostinho, que-
rerá demonstrar-se que as sublimes palavras do Cristo só visam a disposição
interior do coração, constituindo uma exortação à paciência, à tolerância e à
doçura (o que Santo Tomás chama uma ''praeparatio animi"* II-II q. 40, a.
1), deixando livre de ação o corpo exterior. 4
Quanto ao amor do inimigo, ele não concerne senão ao inimigo pessoal:
5
0 inimicus e não o hostis. É um apelo a se reconciliar com seus próximos
2
Contra Celsum, citado por P. Batiffol, "Les premiers chrétiens et la guerre", in L 'Ég/ise et
!e droit de guerre, ed. cit. p. 26.
3
"Neque militare justo licebiL. " (nem guerrear será lícito ao justo) citado por P, Batiffol, ibid,
* N.T. preparação da alma.
4
"Os preceitos de Jesus Cristo olham antes a disposição do coração do que aquilo que se
faz por fora e tendem a nos fazer conservar dentro a paciência e a caridade, fazendo fora
o que parecerá o mais útil para aqueles a quem devemos desejar o bem", Santo Agosti-
nho, carta 138 a Marcelino, passagem retomada por Graciano em sua Causa XXII/, trad.
Vanderpol, o.e. p. 293.
5
Cf. o que recorda C. Schmitt in La notion de politique, trad. M. L. Steinhauser, ed. cit. p. 67.
6
"Aquele que, pela autoridade do príncipe ou do juiz, se é uma pessoa privada ou se é uma
pessoa pública, por zelo da justiça, e como pela autoridade de Deus, usa a espada, ele não
a toma por ele mesmo, mas se serve da espada que um outro lhe confiou (non ipse accipit
gladium, sed ab alio sibi commisso utitur), Santo Tomás, Suma Teológica, 11-11, q. 40, art. 1,
trad. V. Vergriete O.P., ed . cit. p, 121. (N .T. os textos latinos dessa nota e da seguinte têm
tradução antecipada nas citações.)
182 Estados de Violência
se toda guerra fosse proibida, como se poderia dar prova dessa caridade
que justamente manda levar socorro aos fracos quando são atacados? Bá
sempre santificação da força desde que ela combata a injustiça. A tal ponto
que recusar este uso e deixar o inocente em perigo é cometer a injustiça. s
A doutrina da guerra justa guarda, contudo, dessa recusa primeira
da violência alguma coisa: um espírito de caridade que deverá reinar até
nos combates. O que não significa que se deva combater indolentement e.
Contudo, a resolução firme substitui a raiva sedenta de sangue. Essas guer-
ras se fazem sem ódio, mas com o que Santo Agostinho denomina uma
"severidade caridosà' (benigna asperitas); pois no fundo é para o bem dos
culpados que eles são combatidos e punidos por caridade, para permitir-
lhes participar também dos benefícios da justiça. 9
Vê-se com isso que se a guerra jamais é permitida, sê-lo-á sob a impe-
riosa urgência da necessidade. O cristão faz a guerra coagido e forçado e
para o bem de seu inimigo. Até o fim ele se obriga a isso, como o diz Vitória
em sua conclusão: (sed coactum invitum venire oportet ad necessitatem belli) é
10
forçado e contra a vontade que é preciso vir à necessidade da guerra. A
condenação pelos Padres cristãos das guerras antigas está neste ponto: os
pagãos no fundo faziam a guerra por decisão livre, porque eles a desejavam,
7
Como se lê em São Lucas 3,14.
ª "Quem não afasta de seu próximo uma injustiça, quando tem capacidade de afastá-la, é
tão culpado quanto aquele que comete a injustiça (qui enim non repeflit a sócio injuriam,
si potest, tam est in vitio,quam ille qui facit), Santo Ambrósio, De officiis, 1, 36, 178, trad.
Regou!, o.e. p. 40.
9
"Contudo isso não impede que se deva impor contra a vontade dos maus muitas coisas
por urna severidade caridosa, que considera o que lhes é útil mais do que lhes é agradável
(agenda sunt autem mu/ta,etlam cum invitis benigna quadam asperitate p/ectendis, quorum
potius utilitati consulendum est quam voluntati). Pois, com alguma severidade que um pai
castiga seu filho, ele não se despoja nunca da afeição paterna; que o filho faça, então, o
que não quer, e que se queixe, ele, contra sua vontade, será curado pela dor. É por isso
que, se estes preceitos de Jesus Crtsto fossem observados na terra na República cristã, a
própria guerra não se faria sem benevolência (ipsa bel/a sine benevolentia non gerentur),
mas somente para proporcionar mais facilmente aos vencidos a participação da piedade
e da justiça. Pois é utilmente vencido, aquele a quem se tira a liberdade de cometer a ini-
quidade, porque não há nada mais deplorável do que a felicidade dos pecadores (nam cui
/icentia iniquitalis er/pitur, ufiliter vincitur. Ouoniam nihil est infelícius felicitate peccantium),
por essa felicldade do pecador a impunidade alimenta-se e a má vontade, este inimigo
interior, fortifica-se", Santo Agostinho, Carta 138 a Marcelino, trad. Vanderpol, o.e. p. 294.
°
1 F. de Vitória, Leçons sur /e droit de guerre, 60, 154, trad. M. Barbier, ed. cit. p. 155.
Terceira Parte - QUADRO JURÍDICO 183
Esse foi o erro dos pagãos crer que os direitos dos Estados se baseavam na força
das armas e que se podia empreender guerras unicamente para adquirir um nome ou
· li
nquezas.
11
F. Suárez, De bel/o (in De caritate, XIII) , 4, trad. Vanderpol, o.e. p.377 . Cf. também Santo
Agostinho (in Contra Faustum, 22:-74, trad. Vanderpol, o. e. p. 86): "O que se critica na guer-
ra?; [ ...] O desejo de prejudicar, a crueldade da vingança.os arroubos de uma animosidade
implacável, o furor da revolta, a paixão de dominar e outras coisas semelhantes, eis o que
se censura com razão nas guerras".
12
Santo Agostinho, A cidade de Deus, XIX ("é a injustiça do partido adversário que obriga
com efeito o sábio a fazer uma guerra justa", trad . L. Jerphgnon , ed . cit. p. 861 ).
13
- F. Suárez, De bel/o, 4, ed. cit. p. 381 .
14
F. de Vitória, Leçons sur /e droit de guerre, 14, 40, trad. Vanderpol, o.e. p. 61 .
.,
184 Estados de Violência
15
"Deste principio Caetano concluiu que, para que a guerra fosse justa, seria necessârio
que o prlncipe se reconhecesse um tal poder que fosse moralmente certo de sua vitória.
[ ... ] Essa condição não me parece absolutamente neeessária , primeiramente porque. falan-
do humanamente, isso é quase impossível; depois porque muitas vezes importa ao bem
comum do Estado não esperar que se tenha uma certeza completa" (Suárez.De bel/o, 4,
ed. cit. p. 384).
16
F. de Vitoria, o.e. p. 120-123. (N.T. Uma única causa justa de fazer guerra, a afronta feita .)
17
Como a denunciada por Christine de Pisan em seu Livre de faits d'armes et de Chevalerie:
"Para conquistar terras e senhorios estranhos sem ter outro título senão de conquistador".
Terceira Parte - QUADRO JURÍDICO 185
(causa haec justa et sujficiens, est gravis injuria illata, quae alia ratione vindi-
cari aut reparari nequit*) ' . 18
Eis-nos colocados no limiar das grandes definições da guerra justa,
uma vez rejeitados os motivos iníquos dos pagãos: ambição vã e insaciável
cupidez. Compreende-s e já neste ponto que o Império romano em seu
antigo brilho, desmedidamen te aumentado à força de triunfos, só podia
encontrar o ceticismo, senão o desprezo de Santo Agostinho: não houve se-
não "vitórias mortais" .19 Quando se veem todas estas conquistas, estas vitó-
rias, é preciso de verdade extasiar-se e admirar o gênio? Como denominar
isso de outro modo senão um imenso latrocínio? ( "Quid aliud quam grande
latrocinium nominandum est?" IV-6). O esplendor romano se transforma
numa operação gigantesca e bem-sucedida de rapina.
São duas das mais antigas definições da guerra justa, sempre repetidas,
às vezes aumentadas, completadas.
São ditas justas as guerras que punem injustiças (justa bel/a solent definiri quae
ulciscuntur injurias); assim deve ser combatido um povo ou um Estado que tivesse
negligenciado punir um delito cometido pelos seus membros ou restituir o que foi
injustamente roubado. 20
Justa é a guerra que, em virtude de um edito, é feita para recuperar bens ou para
expulsar seus inimigos (justum bel/um est quod ex praedicto geritur de rebus repetitis
aut propulsandorum hostium causa). 21
*N.T. essa causa justa e suficiente é uma grave afronta feita.que por outra razão não pode
ser vingada ou reparada .
18
F. Suárez, De bel/o, 4, ed. cit. p. 378.
19
A cidade de Deus.XV, 4.
'° Santo Agostinho, Quaest. in Heptateuchum, IV, 1O.
Santo Isidoro de Sevilha, Étymo/ogíes, XVIII, 1, retomado por Graciano em sua Causa
21
XXII! (trad. Regout, o.e. p. 63). (N.T. é justa a guerra que se faz para recuperar coisas ou
expulsar os inimigos.)
186 Estados de Violência
22
de Grotius: defensio, recuperatio, punitio. A afirmação agressiva da justiça,
diante de uma violação de direito, toma os três aspectos da defesa, da inde-
nização e da punição.
A guerra defensiva não causa nenhum problema de princípio, bem ao
contrário. Ela é conforme o direito natural mais elementar. Por toda parte
é permitido repelir a força pela força (segundo o velho adágio sempre repe-
tido das Decretais: 23 vim vi repellere). Isso vale mesmo para os indivíduos:
a defesa enérgica de sua integridade ou ainda a tentativa de recuperar pela
força um bem que nos foi roubado, tudo isso é lícito e justo de direito na-
tural, contanto que essa defesa seja contemporâne a da injustiça cometida
(in continenti) e se mantenha na estrita defensiva, sem aproveitar dessa
24
autorização de violência para se vingar. É como se as doutrinas da guerra
justa insistissem neste capítulo. 25
O segundo foco de sentido da justa causa é a recuperatio: repetere res.
Por exemplo, restabelecer um direito de circulação ou de comércio con-
testado por um vizinho, recuperar um território perdido que outrora nos
pertencera, recuperar sua honra achincalhada etc. É digno de nota que a
guerra é compreendida no limite aqui como puro instrumento externo:
serve-se da força para restabelecer um direito, mas ela é apenas puro meio.
Os sofrimentos e os males não constituem mais que um acompanhame nto
22
"A maior parte dos autores designam às guerras três causas legítimas: a defesa, a recu-
peração do que nos pertence e a punição" (Le droit de la guerre et de la paix, Livro li, cap.
1,11, 2, trad. Pradier-Fodéré, ed. cit. p. 164).
23
1,V.T. XII, c. 18, par. Vim vi.
24
É preciso repelir a força que nos agride cum moderamine incu/patae tutelae: guardando
o cuidado de uma defesa irrepreensível (Décrétales).
25
Dois pontos podem ser, contudo, precisados . É antes de tudo que a legítima defesa não
vale quando é uma guerra justa que se vos opõe. De outro modo, seria preciso supor uma
guerra justa dos dois lados (causa legítima contra legítima defesa), o que é uma aberração.
Contudo, não é de defesa que é preciso falar para os recalcitrantes, mas de obstinação
no erro. É como um condenado que resistiria a seu juiz e à sua sentença: ele não pode
invocar uma justa resistência ao mal que se lhe inflige. De outra parte, se a legítima defesa
imediata, contemporânea da agressão, é permitida e, mesmo se é recomendada ao Esta-
do e ao indivíduo como essencial, a própria defesa dessa vez afastada do ataque (como
a operação de recuperar um bem depois de certa demora) não é permitida, a não ser à
autoridade pública. O indivíduo com efeito deverá recorrer aos tribunais, para fazer valer
seu direito achincalhado.
Terceira Parte - QUADRO JURÍDICO 187
do uso da força, dos corolários infelizes mas obrigados. Uma vez a vitória
obtida, basta recuperar seus bens e compensar-se de sua pena ("pode-se
apoderar-se dos bens dos inimigos até que se igualem despesas da guerra e
26
prejuízos injustamente causados por eles"). A procura da guerra visa um
dano objetivo que é preciso reparar, mais que uma falta subjetiva que seria
preciso castigar. Este estilo de guerra é acompanhado de imperativos de
prudência e de moderação, a violência devendo ser contida numa função
puramente instrumental e não tendo nenhum valor intrínseco. É como
uma operação de polícia, cujos objetivos são previamente definidos e que
não dá direitos gerais sobre os bens e as pessoas do adversário, mas objeti-
vos forçosamente limitados. A guerra, então, nunca é senão o exercício de
uma justiça comutativa.
Contudo, essa guerra-recuperatio, atendo-se só a reparar um prejuízo
objetivo e atenta a não ultrapassar a medida, não constitui evidentemente
senão um caso limite. Como a guerra cava uma esteira infeliz de destrui-
ções e de sofrimentos, a justiça comutativa é rapidamente acompanhada
por uma justiça vindicativa, permitindo não deixar tantas violências sus-
pensas no céu do sentido. Tanto mais que a um agravo se fará inevitavel-
mente corresponder uma falta, já que o agravo se enraíza numa disposição
subjetiva.
Esse uso da força para recuperar seu direito é devido, nós nos lembra-
mos, à ausência de um tribunal supremo onde regular o litígio, de uma ter-
ceira instância diante da qual apresentar sua demanda. Contudo, essa falta
acarreta uma substituição: a guerra substitui um regulamento judiciário.
Contudo, não se trata para o Estado de se vingar cegamente, na ausência
de autoridade superior, mas de se constituir como juiz, equitativo, embora
juiz e parte, encarregando-se ao mesmo tempo da instrução, da sentença
e da aplicação da pena. Persiste com efeito a questão difícil do momen-
to dessa substituição: ou se dirá que o Estado se assegura por operações
militares uma vitória que dá lugar depois, por neutralização do culpado
26
F. de Vitória, o.e. p. 143.
188 Estados de Violência
2
v "O poder de declarar a guerra é uma espécie de poder de jurisdição, cujo exercício pertence à
justiça vindicativa, justiça totalmente indispensável no Estado para a repressão dos malfeitores;
ora, como o príncipe soberano pode punir seus próprios súditos, quando fazem mal aos outros,
assim também ele pode vingar-se de um outro prlncipe ou de um outro Estado, que lhe está
sujeito em razão da falta que ele cometeu: essa vindita não pode ser pedida a um outro juiz,
porque 0 prlncipe de que falamos não tem superior temporal; se então 0 outro príncipe não está
disposto a dar satisfação, ele pode ser coagido pela guerra", F. Suárez, 2, o.e., p. 368.
23
Sob a condição de considerar como o Hostiensis (em seu De treuga et pace,in Summa
aurea, cf. Regout, o.e. p. 72-73) que existe uma autoridade superior capaz de arbitrar as
desavenças da comunidade cristã - o papa - e então todas as guerras que fazem afrontar-
se príncipes cristãos são injustas, exceto as decretadas pela instância pontiflcia e assumi-
das por um de seus subordinados. Elas se assemelham mais.então, a execuções de uma
sentença da Autoridade.
rerceira Parte - QUADRO JURÍDICO 189
29
rnedida que for necessário para obter dos inimigos a paz e a segurançà'.
Aparecimento aqui de um nível punitivo específico, no sentido em que a
função da pena manteria na defesa social a neutralização dos perigos. Além
da indenização, o suplemento de bens tirado do inimigo e em compensa-
30
ção dos sofrimentos infligidos constitui uma garantia para o futuro. O
sentido da pena incluída na guerra se refere à proteção de todos. É o mes-
mo sentido contra os delinquentes de dentro e os inimigos de fora: defesa
31
absoluta do interesse público. Punir é proteger a sociedade.
Contudo, por um segundo nível, toca-se na função expiatória dos
sofrimentos da guerra. Dever-se-á mesmo distinguir um princípio de ex-
piação particular e um princípio de expiação geral, pois, depois de tudo,
o que é preciso supor no fundamen to do dano objetivo causado, da in-
justiça manifesta cometida (injuria ítlata), é a culpabilidade do fautor:
culpa. "É exigido que os que são atacados mereçam o ataque em razão
29
F. de Vitória, 18.4, o.e. p. 124.
30
"Depois da vitória e da recuperação dos bens, dos inimigos podem ser exigidos reféns,
navios, armas e outras coisas que são honesta e lealmente necessárias para manter os
inimigos no dever e afastar todo perigo de sua parte", F. de Vitória, 18, 50, o.e. p. 125.
31
"Não é da competência de uma pessoa privada empreender uma guerra, pois ela pode
fazer valer seu direito no tribunal de seu superior( ...]. Já que o cuidado do Estado (curam
reipublicae) foi confiado aos príncipes, é a eles que cabe velar pelo bem público (rem pu-
blicam) da cidade, do reino ou da província submetidos à sua autoridade. Do mesmo modo
que eles o defendem com razão pela espada contra os perturbadores de dentro (interiores
perturbatores) quando punem os malfeitores, (... ] assim também lhe cabe defender o bem
Público pela espada da guerra contra os inimigos de fora (exterioribus hostibus)", Santo
Tomás, o.e. p. 118-119.
190 Estados de Violência
de alguma falta (propter aliquam culpam = por causa de alguma culpa) ,32
"Então o sentido dos sofrimentos que se infligem na guerra volta, neste
deslocamento, da injúria para a culpa. Os males da guerra não são mais
a consequência obrigada, mas não procurada, por ela mesma (uma sequ-
ência obrigada, "um prejuízo colateral") do uso da força necessária, para
restaurar um direito, recuperar seu bem, punir um delinquente de fora;
não é mais um sinal forte que se dá para garantir o futuro. Os sofrimen-
tos da guerra dessa vez visam deliberadamente a ferir, a fazer mal.
Quem faz uma guerra justa age como juiz que pune (quia habens justum be!Lum
gerit persona criminaliterprocedentis*). E que ele aja nessa qualidade vem do fato de que
uma guerra justa é um ato de justiça vindicativa (praelium justum est actus vindicativae
justitiae**)que é propriamente a virtude de um príncipe ou de um juiz. De fato a vindi-
ta não é negócio de uma pessoa privada pois está escrito ''A mim a vingança''. E que ele
intervenha como punidor (vero criminaliterpmcedentis), isto o mostra: ele vai matar e
reduzir à escravidão pessoas e danificar bens. [... ] Além disso quem conduz uma guerra
justa não é simplesmente parte dela, mas se torna juiz de seus inimigos (judex hostium
suorum) pela própria causa que torna a guerra necessária, em virtude de sua qualidade
de "Estado perfeito". Porque a título de Estado perfeito ele pode com sua própria au-
toridade usar a espada contra os perturbadores de dentro e de fora. [...] E se quem faz
uma guerra justa não fosse o superior de seus inimigos, todas as guerras - exceto a de-
fensiva - seriam injustas, pois não há dominação entre iguais (par in parem non habeat
imperium**"') [... ]. Quando a guerra é desencadeada é aquele que conduz a guerra justa
que é dono da causa (dominus causae) [... ]. O inimigo tem que se haver consigo mesmo
se é posto numa situação em que a justiça vindicativa pode ser exercida contra ele por
estrangeiros [.. .]. Doravante não lhe cabe mais satisfazer doando-se (satisfacere), mas
satisfazer expiando (satispati = sofrer bastante****), seguindo o julgamento de quem
33
conduz contra ele a guerra justa.
32
Santo Tomás, o.e. p. 119. Cf. também F. de Vitoria "a guerra ofensiva tem por objetivo
punir uma injustiça e castigar os inimigos. Ora, não pode haver punições onde não houve
falta nem injustiça (bel/um offensivum est ad vincicendam injuriam et animadvertendum in
hostes, ut dictum est, sed vindicta esse non potest, ubi non praecessit culpa et injuria)", 13,
37, o.e. p. 122. (N.T. texto latino antecipadamente traduzido .)
* N.T. aquele que faz guerra justa age como alguém que procede criminalmente.
** N.T. combate justo é ato de justiça vindicativa .
*** N.T. o igual não tenha autoridade sobre o igual.
****N.T. satis = bastante em latim, facere = fazer-satisfazer-fazer bastante , pati é infinito de
patior = sofrer, satispati = sofrer bastante.
33
Caetano, Summula Cejetani s.v. Bel/um , trad. Regou!, o.e. p. 127.
Terceira Parte - QUADRO JURÍDICO 191
34
Santo Agostinho, em Cidade de Deus, citado por Vanderpol sem referências precisas, p. 28.
"Ajustiça da guerra, quando é atribuída à justa causa, comporta sempre ao estado latente
35
38 "Se isso é necessário para obter uma plena satisfação, pode-se tirar aos inocentes
seus bens e sua liberdade. A razão é que eles fazem, eles também, parte deste Estado
culpado: por causa do crime de um conjunto, pune-se cada uma de suas partes, embora
elas não tenham todas tomado parte no crime", F. Suárez, 7, o.e. p. 403. Essa culpabili-
dade coletiva explica ainda que o princípio de represálias, não ferindo diretamente os au-
tores do crime mas os colaterais , apareça muitas vezes numa clara evidência e que não
se incomode demais com os efeitos sobre a população civil de um cerco ou de um assalto
particularmente mortíferos: "Por acaso, às vezes é permitido matar inocentes, mesmo
voluntariamente, por exemplo, quando se ataca justamente uma cidadela ou uma cidade
[... ]. Se fosse de outro modo, não se poderia fazer a guerra aos próprios culpados", F. de
Vitória, 37, 109, o.e. p. 140.
39
"Não se deve apoderar de tudo o que a força e o poder das armas permitem ocupar
e conquistar. [ ... ] Não se deve guardar senão o que a justiça pede para compensar
os prejuízos e as despesas da guerra e para punir a injustiça, continuando equitativa
e humana, pois a pena deve ser proporcionada à falta", F. de Vitória , 56 , 145, o.e. p.
152.
40 "Na guerra, é preciso manter a equidade como num julgamento justo: um culpado não
pode ser punido com qualquer pena , nem privado de todos os seus bens, sem medida, mas
somente na proporção de seu crime", F. Suárez, 7, o.e. p. 401 .
íerceira Parte - QUADRO JURÍDICO
193
41
"A guerra de que falamos é especialmente a guerra agressiva; e, na maior parte do tempo,
ela é empreendida contra homens que não são os sujeitos da falta. É, então, indispensável que
tenham cometido uma falta , em razão da qual se tornam sujeitos", F. Suárez, 4, o.e. p. 378.
42
"Não é, então , na qualidade de acusador, mas de juiz, que ele pronunciará uma senten-
ça", F. de Vitória , 60, 156, o.e. p. 156.
◄J As con vicções religiosas não podem , é preciso recordar, constituir motivos de guer-
ra Justa: "[Existem, para os prl ncipes cristãos, justos títulos de guerra diferentes dos
que indica a razão natural?] Um primeiro título invocado é só a infidelidade, isto é, a
recusa de adm itir a verdadeira reli gi ão . Co ntudo, este titulo nã o tem valor algum [ ... ] .
Um seg undo titulo é que é preciso vi ngar a Deus d as injúrias que são feitas pelos
crimes contra natureza e por idolatri a. AI está ainda uma opinião fa lsa", F. Suárez, 5,
o.e. p. 384 .
Estados de Violência
194
Mesmo a guerra causada pela cupidez humana não pode prejudica r em nada,
não só a Deus incorruptível, mas nem mesmo seus santos. Ao contrário, constata-
lhes
se que ela lhes é útil para exercer sua paciência, para humilha r sua alma, para
45
ensinar a suportar a disciplina paternal de Deus.
46
"O deus endurece, prova, persegue os que ele estima e que ama", La providence, IV, 7,
lrad. R. Waltz, in Entretiens, ed. cit. p. 301 .
47
A cidade de Deus, XIX-15, trad. L. Jerphagnon, o.e. p. 59.
196 Estados de Violência
48
"Em caso de ignorância verossímil do fato ou do direito, a guerra pode ser justa em si mes-
ma do lado em que se acha a verdadeira justiça. Ela pode ser justa do outro lado, isto é, ser
escusada pela boa-fé. De fato, a ignorância invencível escusa totalmente", o.e. 32, 96, p. 136.
49
"Acontece de fato que, mesmo que a autoridade daquele que começa a guerra seja legíti-
ma e a causa justa, não obstante a guerra tenha se tornado ilícita pelo fato de uma intenção
má (propter parvam intentionem bel/um reddatur illicitum)", Santo Tomás, o.e. p. 120.
Terceira Parte - QUADRO JURÍDICO
197
50
"É preciso compreender que essa terceira condição é requerida para evitar uma falta (ad
vitandam culpam), mas que ela não impede conservar o que se tomou na guerra; pois a má
intenção não influi na justiça ou na injustiça, das quais depende o direito de reter ou a obri-
gação de restituir o que se tomou", Caetano, Summa, Vº Bel/um, trad. Vanderpol, o.e. p. 87.
51
F. de Vitória, o.e. 60, 156, p. 156.
198 Estados de Violência
52 lbid., 6, p. 399.
53"O objetivo da guerra é a paz e a segurança. Tudo o que é necessário para obter a paz e
a segurança é, então, permitido a quem empreende uma guerra justa. Além disso, a tran-
quilidade e a paz fazem parte dos bens da humanidade. É por isso que, sem a segurança,
até os maiores bens não podem dar uma felicidade estável. Se os inimigos perturbam e
destroem a tranquilidade do Estado, então é permitido defender-se por meios apropriados",
F. de Vitória, 18, 4 7, o.e. p. 124.
Terceira Parte - QUADRO JURÍDICO 199
paz do mundo e força todo Estado a intervir para fazê-la cessar, mesmo que
ele não seja vítima dessa injustiça. É em nome da autoridade do mundo
inteiro (auctoritas orbis, escreve Vitória) 55 que ele, então, intervém. Sem
54
"É preciso também saber que os reis e os que têm um poder igual ao dos reis têm o
direito de infligir penas, não somente pelas injúrias cometidas contra eles ou seus súditos,
mas ainda pelas que não os atingem particularmente e que violam ao excesso o direito de
natureza ou dos povos a respeito de quem quer que seja. Pois a liberdade de prover por
castigos aos interesses da sociedade humana, que, no começo, como dissemos, pertencia
aos particulares, ficou parada, depois do estabelecimento dos Estados e das Jurisdições,
Mo propriamente porque estas comandam os outros, mas porque não obedecem a nin-
guém" (Le droit de la guerre et de la paix, Livro li, cap. XX, 1, ed. cit. p. 490). E mais tarde
em Kant: "uma violação de direitos cometida num lugar é ressentida por toda parte'', ln
Projet de la paíx perpét1.1elle, décima segunda seção, artigo terceiro, trad. anônima revista
por H. Wismann, ed. cit. p. 353.
•o.e. 19,52, p. 125.
200 Estados de Violência
56
dúvida esse direito de intervençã o continua muito discutido. Persiste 0
fato de que ele se inscreve logicamen te numa temática da preservação da
paz como bem comum que interessa ao conjunto dos homens.
Contudo, o essencial está em outro lugar, na distinção entre duas for-
57
mas de paz: pax perversa e pax ordinata, dizia Santo Agostinho .
A verdadeir a paz, para não falar da paz sublime de Deus, é segundo a
expressão de Agostinho "a tranquilid ade da ordem (tranquillitas ordinis)"
ou ao menos a "concordia ordinata", em que cada coisa está em seu lugar,
como deve, conforme o plano divino da criação. A paz não é exatamen te
o contrário da guerra, um tempo sem guerras nem conflitos. É um julga-
mento de valor, uma norma, um ideal. Há pazes detestáveis, pazes que não
são bastante pacíficas: pazes más, como os pagãos podem conhecer, pazes
em que o vício prospera e adorações sacrílegas se multiplica m.
Os bandidos vivem em paz entre si e os lobos se reúnem cada vez que sentem
o cheiro do sangue [... ] não acrediteis, então, que a paz seja boa em toda parte e
sempre. Ela é às vezes má e mais dura do que não importa qual guerra [... ]; manter
a paz entre os homens que combatem a lei divina é desviar-se e afastar-se muito da
58
verdadeira paz.
511Suárez, por exemplo, opõe-se a Isso fortemente: "Aquele que violou um direito não está
submetido a não Importa quem, mas somente àquele que ele ofendeu . Por conseguinte,
os que dizem que os soberanos têm o poder de punir todas as Injustiças da terra estão no
erro mais completo•, o.e. 4, p. 379.
57
Cf. Santo Tomás: "Os que fazem guerras justas se propõem a paz. E, em seguida, eles
não se opõem à paz, senão à paz má que o Senhor "não veio trazer à terra " (o.e. p. 122),
e F. Suárez: "A guerra não é contrária à boa paz, mas à paz má: ela é antes um meio de
chegar a uma paz verdadeira e assegurada" (o.e. 1, p. 365).
58 Santo Isidoro de Pelúsio (Epist. Livro IV, 36), citado por Vanderpol, o.e. p. 89.
11
A guerra leal
A soberania do Estado
1
C. Wolff, Príncipes du droit naturel, por J. H. S. Formey, cap. 3, p. 298.
2
E. De Vattel, o.e. 111, Ili, 29, p. 144.
3
C. Wolff, o.e. cap . VII, 5, p. 299.
• E. De Valtel, Le droit des gens, Ili, 111, 30, ed. cit. p. 144.
5
Cf. por exemplo em Vattel: ''o fundamento ou a causa de toda guerra justa é a injúria, ou já
feita , ou da qual alguém se vé ameaçado" (ibid. Ili, 111, 26, p. 142), "o alvo ou o fim legítimo
de toda guerra é vingar ou prevenir a injúria" (ibid., Ili, Ili, 28, p. 143).
Terceira Parte - QUADRO JURÍDICO 203
6
Ao passo que depois de tudo, em Suárez, havia sempre possibilidade de chegar ao fim da
confusão das causas duvidosas por um estudo mais aprofundado ou pelo recurso a peritos,
e em Vitoria, nos casos de "ignorância invencível", a causa era duvidosa por si, mas não
em si. Cf. a colocação de Vasquez: "Ninguém até hoje ousou sustentar que a guerra possa
ser justa dos dois lados ao mesmo tempo, se não é por acaso, por causa da ignorância
invencível de uma das partes, quando uma ignora com ignorância invencível uma coisa
que a outra conhece: mas não se chamará nunca de ignorância invencível a divergência
de duas opiniões prováveis" (Com. in sec. Part. Summae sei Thomae, Ois. LXIV, cap. 3,
trad . Vanderpol, o.e. p. 49).
204 Estados de Violência
guerra justa que impõe a situação jurídico-política criada por uma plurali-
dade de Estados soberanos reconhecendo-se como tais.
Por comodidade, falar-se-á de duas grandes representações dessa guer-
ra "em formà', cada uma explorando um caráter do Estado soberano: "a
guerra solene e públicà' (Grotius e Pufendorf) e "a guerra justa dos dois
lados" (Wolff e Vattel).
7
"Guerra solene e públicà': a expressão aparece em Burlamaqui. Ela
será retomada, explorada a seguir. Então, a atenção se concentra na capa-
cidade do Estado em pôr em cena, em ritualizar, em exteriorizar espetacu-
larmente suas decisões. Neste caso, a capacidade de guerra é antes de tudo
a capacidade em declará-la. A guerra justa é essa guerra que um Estado
declara publicamente e segundo as formas. É primeiramente o fascínio
pelo modelo arcaico romano, descrito por Tito Lívio num texto famo-
so. 8 Sonho de uma legalidade absolutamente formal, de uma abertura de
direitos a partir do respeito só exterior do ritual sagrado. A transposição
7
Príncipes du droit politique, Quarta parte, cap. V, ed. cit. p. 83. Grotius fala de guerra justa
ou solene segundo o direito dos povos (Le droit de la guerre et de la paix, Livro Ili, cap. Ili,
1-1, ed. cit. p. 62), cf. também Pufendorf (Ou droit de la nature et des gens, trad. J. Bar-
beyrac, Livro VIII, cap. VI, par. 9, ed. cit. p. 452-453).
8
"Contudo, como Numa tinha regulado os princípios religiosos da paz, ele quis [Anco]
instituir os da guerra; fazer a guerra não bastava, ainda faltava declará-la ritualmente. Ele
tomou emprestada da antiga Nação dos Equicolas a regra que seguiam ainda os feciais
(N.T. Antigos sacerdotes que faziam parte de um colégio de vinte que faziam respeitar as
leis, especialmente as de guerra; cf. Dicionário de Caldas Aulete) para apresentar uma
reclamação. Chegando ás frontelras do pais ao qual se dirige uma reclamação, o envia-
'do cobre sua cabeça com o filum (é um véu de lã) e diz: "Escuta, Júpiter; e que o Direito
Sagrado (Fas) me escute também. Eu, eu sou o representante oficial do povo romano;
venho encarregado de uma missão justa e santa; que se tenha fé em minhas palavras".
Ele expõe, então, seus pedidos. Depois toma Júpiter como testemunha: "Se eu falho no
que é justo e santo reclamando que me entreguem, a mim, estes homens e estes objetos
como propriedade do povo romano, não permitas que reencontre jamais minha pátria". Ele
repete essa fórmula atravessando a fronteira; ele a repete ao primeiro homem que encon-
tra; ele a repete entrando na cidade; ele a repete entrando no fórum , com algumas ligeiras
modificações na invocação e na fórmula do Juramento. Se não lhe concedem o que ele
reclama , ele declara a guerra com um prazo de trinta e três dias (é o prazo consagrado)",
Histoire de Rome, Livro 1, XXXII, ed. cit. p. 53-54.
Terceira Parte - QUADRO JURÍDICO 205
A guerra que chamo aqui de solene é mais ordinariamente chamada guerra justa,
no mesmo sentido em que se diz de um testamento justo, de justas núpcias, para
opô-los aos codicilos e à união dos escravos. Isso não quer dizer que não seja per-
mitido a quem o quiser fazer codicilos e a um escravo viver unido a uma mulher;
mas essa denominação lhes vem de que o testamento e as núpcias solenes têm certos
9
efeitos particulares em virtude do direito civil.
9 H. Grotius, Le droit de la guerre et de la paix, trad. P. Pradier-Fodéré, Livro 1, cap. Ili, IV, p. 93.
10 Os antigos doutrinários da guerra de justa causa tinham às vezes reconhecido este sen-
tido e posto, entre outras, essa condição formal de justiça, como Santo Isidoro de Sevilha
em suas Etimologias: "Justa é a guerra que, em virtude de um edito, é feita para recuperar
bens ou para expulsar inimigos (justum bel/um est quod ex praedicto geritur de rebus re-
petitls eu/ propulsandorum hostíum causa)" (Santo Isidoro de Sevilha, Étymologies, XVIII,
1, retomado por Graciano em sua Causa XXII/, trad . Regoul, o.e. p. 63 . Havia ai ainda a
lembrança do texto de Cícero que apresentava como distintas - vel = ou - a guerra reivin-
dicatória de um direito ou ritualmente proclamada: "Uma guerra só é justa se é feita após
ter reivindicado seu direito ou se é anunciada antes ou declarada", Traité des devoirs, 1, XI,
36, trad. É. Bréhier, revista por P. M. Schuhl, ed. cit. p. 508). Essa condição formal jamais
foi posta antes, menos ainda privilegiada na construção teológica da guerra justa. Suárez
contenta-se de menoioná-la, com uma grande circunspeção: "Sobre este ponto as leis civis
são sentidas pela maneira injusta com que se fazia então a guerra. Pois os romanos acre-
ditavam ser justas de parte a parte (justa esse ex utraque parte) as guerras que faziam aos
Inimigos da República; de fato, eles queriam combater contra eles em condições tais que o
vencedor, como em virtude de um pacto tácito (quasi ex tacito pacto), tornasse-se senhor
dos bens do vencido" (De Bello,7 , trad . Vanderpol, ecl .cft. p. 402). É que a condição formal
da guerra Implica a Ideia Inaceitável de uma guerra que não supõe a injustiça do agredido.
A justiça dependeria antes do cumprimento de formalidades de uso. Ajusta causa , depen-
dendo na sua versão mais radical (Santo Tomás), de uma Intenção moral interior, só pode
ficar estranha a esse formalismo exterior.
206 Estados de Violência
O direito dos povos se deixa evidenteme nte fascinar por este mode-
lo, que não só prescreve, mas no fundo exalta o princípio de soberania.
Porque ele consagra a igualdade perfeita entre Estados e, pela necessi-
dade deste ritual, propõe uma guerra baseada no reconhecim ento e na
igualdade. Declarando solenement e a guerra a um outro, o Estado lhe
rende homenagem , e a declaração toma a forma destas saudações que
cavaleiros, de mesmo valor e unidos por um comum respeito, dirigem-se
antes de lançar suas cavalarias um contra o outro, a lança bem segura. Há
algo do código aristocrático nessa proclamação. O Estado aparece ainda
como eminentem ente público: ele põe em cena aos olhos de todos, na
publicidade de uma declaração, a gravidade do momento, a importânci a
de suas decisões capitais para todos.
A guerra em suma é a prerrogativa positiva do Estado. Porque depois
de tudo na doutrina de justa causa, o Estado fazia a guerra essencialmente à
revelia: é porque não existia nenhum tribunal superior, em caso de injustiça
caracterizada, que o Estado se achava forçado à guerra. O modelo da guerra
"pública e solene" dá dessa vez ao Estado um direito à guerra verdadeiramen-
te positivo. Ela está à sua inteira discrição, basta ao Soberano respeitar as for-
mas de declaração. O que implica um risco de banalização certa, no sentido
de que a guerra não é mais um escândalo: ela não tem mais que se justificar
diante do tribunal da consciência universal, mas apenas no de se proclamar
segundo as formas exteriores das práticas reconhecidas.
Esse modelo consagra enfim a substância jurídica dos Estados. Porque
essa declaração deve ser tida como convenção, pacto, contrato que as duas
partes fazem entre si. 11 Convenção estranha de verdade. A simples decla-
ração, solene e pública, autoriza de fato por convenção recíproca o uso de
todas as violências possíveis contra o inimigo. Ela abre direitos para matar
e para raptar. Como que ao abrigo dessa declaração, tudo, em matéria de
destruição e de massacres, é, de comum acordo, permitido a cada um dos
11
Ela pode, contudo também, às vezes, ser compreendida como último recurso totalmente
solene à reparação e ultimato, por exemplo em Vattel, o.e. Ili, IV, 51, p. 153-154.
Terceira Parte - QUADRO JURÍDICO 207
Só porque alguém se declara nosso inimigo, ele nos autoriza a agir contra ele por
atos de hostilidade levados ao infinito [... ]. As guerras declaradas segundo as formas
incluem uma espécie de convenção, que se reduz a isto: Fazei contra mim o que
puderdes; eu farei contra vós de meu lado tudo o que me será possível. 12
12
Le droit de la nature et des gens, Livro VII, cap. VI, par. 7, ed. cit. p. 459.
208 Estados de Violência
É preciso que eu volte atrás e que eu retire dos que fazem a guerra quase todas
pois,
as coisas que pode parecer que lhes concedi e que, contudo, n ão lhes concedi;
a explicaçã o dessa parte do direito dos povos,
quando, pela primeira vez, abordei
as, porque
declarei que havia várias coisas que se diziam ser de direito ou permitid
as apoia com sua
se fazem impunem ente, ou até também porque a justiça coativa
no direito
autoridad e; coisas, porém, que ou saem da regra da justiça, que se coloca
d as outras virtudes; ou ao menos são postas de lado
estritame nte dito, ou no preceito
digno de aprovaçã o entre as pessoas
por um procedim ento mais escrupul oso e mais
14
de bem .
que o massacre
13
"Compreende-se até onde se estende essa permissão, pelo fato de
e de mulheres também acontece u com impunida de e que foi incluído neste
de crianças
ao abrigo dessa permissã o" Le droit de
direito da guerra [ ... ]. Os cativos não estão mesmo
paix, Livro Ili, cap. IV, 9 e 1O, ed. cit. p. 628-629) . "Segund o o direito dos
la guerre et de la
uma causa legítima, mas ainda todo
povos, não somente o que faz a guerra em virtude de
torna-se, sem limites, nem medida, proprietã río das coisas
indivíduo numa guerra solene,
foi a mesma para o
que tomou do inimigo [ ... ]. Ora, seguindo o direito dos povos, a regra
homem e para a coisa" (ibid., cap. VI, 2-1, p. 645).
14
lbid., cap. X, 1-1, p. 695.
ferceira Parte - QUADRO JURÍDICO 209
15
fbid., cap. XI, 17, ed. cit. p. 721 (grifada por nós).
210 Estados de Violência
Aqui e lá, são os mesmos argumentos que voltam: nunca é fácil fazer
a distinção entre soldados e civis, porque civis podem estar em estado de
resistência e assegurar o bom desempenho das tropas. A presença de civis
no meio de soldados não poderia constituir um obstáculo ao ataque, pois
bastaria, para impedir a vitória do adversário, servir-se deles como escu-
do. De outra parte, o efeito terrificante de massacres ou de saques contra
inocentes pode servir para desencorajar o inimigo e prevenir matanças
mais amplas etc. Em tudo, as regras de condução da guerra, dependen-
do então sempre das circunstâncias, não poderiam ser o objeto de leis
coagentes para os Estados. Então as condutas de moderação, devem-se
honrar os Estados que as praticam, serão precisamente porque não lhes
estão sujeitos como a uma injunção exterior, mas porque se obrigam por
uma recomendação interior. Essas "atenuações", para retomar o termo de
Grotius, não poderiam constituir leis dominantes. Porque seria pôr essas
regras acima dos Estados e não entre eles. Para ir depressa, dir-se-á que
o direito dos povos toma como princípio radical a soberania do Estado.
As "leis de Humanidade" (Pufendorf) 16 vêm apenas moderar o rigor de
direitos abertos pela guerra sobre a vida, o corpo e os bens dos inimigos.
Quando o direito internacional humanitário colocar seu centro de gravi-
dade na dignidade e na integridade das pessoas, na proteção das vítimas,
ele poderá exigir que o Estado se submeta a essa lei superior e coagente
de Humanidade.
E, contudo, fica nessas guerras "solenes e públicas" alguma coisa ares-
peitar absolutamente, nos mesmos termos do contrato de guerra: é tudo o
que se refere precisamente à forma jurídica que serve de quadro para o de-
sencadeamento das violências. No direito dos povos, ao passo que o massacre
de populações civis desarmadas, o tratamento dos prisioneiros são objetos de
considerações circunstanciadas, existe uma categoria de atos absolutamente
proibidos: a ruptura das promessas, a traição dos compromissos, a violação
dos acordos, o desprezo da palavra dada. Daí a distinção altamente simbólica
16
S. Pufendorff, o. e. Livro VIII, cap. VI, 7, p. 260.
Terceira Parte - QUADRO JURÍDICO 211
17
"Certamente, não é preciso pensar que, porque já dissemos acima que, na opinião de um
grande número, é permitido ou isento de falta mentir ao inimigo.isso possa por uma razão
igual aplicar-se também à palavra dada", Grotius, Le droit de la guerre et de la paix, Livro
Ili, cap. XIX, 1-3, o.e. p. 773.
18
S. Pufendorff faz sobre este ponto preciso das tréguas uma exceção, mas com argumen-
tos pouco convincentes, (o.e. cap. VII).
19
Cf. por exemplo: "É bem evidente que o terror e a força aberta são o caráter próprio da
guerra, como também a via mais comum de que se serve, mas não é menos permitido
empregar a astúcia e o artifício contra um inimigo, contanto que se faça sem perfídia e sem
faltar ao que se prometeu" (J. J. Burlamaqui, o.e. cap. V, ed. cit. p. 81 ).
20
O.e. Ili, X, 174, p. 255.
21
Primeira seção, cap. 6, de Projet de paix perpétuel/e, trad. anônima revista por Wismann,
ed. cit. p. 337.
22
É a fórmula de Hegel em Príncipes de la phi/osophie du drot, par. 338, ed. cit. p. 332.
212 Estados de Violência
23
São "as disposições dessa lei sagrada que a natureza ou seu autor divino impõe às Na-
ções", Vattel, o.e. 111, 188, p. 271.
24
"Uma guerra é justa quando se propõe obter aquilo a que se tem um verdadeiro direito.
As diferentes operações de uma guerra justa são lícitas, enquanto têm uma proporção
conveniente com o alvo ao qual se quer chegar", C. Wolff, Príncipes du droit naturel, por
J. H. S. Formey, cap. VIII, 2, p. 308.
25
"O fim legítimo não dá um verdadeiro direito senão aos meios necessários para obter
esse fim", E. Vattel, o.e. Ili, VIII, 137, p. 215.
26
lbid., Ili, VIII, 145, p. 224.
27
lbid., III,VIII, 149, p. 227. Cf. também: "Não se está no direito de garantir seus prisioneiros,
e para este efeito de prendê-los, de atá-los, se não há motivo de temer que se revoltem ou
que fujam: mas nada autoriza tratá-los duramente" (ibid., Ili, VIII, 168, p. 228). "Por qualquer
motivo que se devaste um país, devem-se poupar os edifícios que fazem a honra da huma-
Terceira Parte - QUADRO JURÍDICO 213
nidade e que não contribuem a tornar o inimigo mais poderoso, os templos, os túmulos, as
construções públicas, todas as obras respeitáveis por sua beleza" (/bid., Ili, VIII, 168, p. 250).
2
ª Vattel, por exemplo, começa por dizer que não é preciso nunca atentar contra a vida
das populações civis. Contudo, em caso de resistência ativa, é então permitido matar. Do
mesmo modo, é proibido matar prisioneiros, exceto como medida de represálias contra
um inimigo particularmente cruel: "Como um príncipe ou seu General está no direito de
sacrificar a vida de seus inimigos à sua segurança e à de seu povo, parece que, se ele tem
demanda com um inimigo inumano, que se entrega muitas vezes a semelhantes excessos,
ele pode recusar a vida a alguns prisioneiros que capturar" (ibid., 111, VIII, 142, p. 219-220).
29
/bid., Ili, VIII, 188, p. 271.
30
"Gens nu/la judieis partes sibi arrogare potest'' (N.T. Nenhum povo pode arrogar-se as
funções de juiz) C. Wolff, Jus gentium, (Direito dos povos) cap. VII,$ 888, ed . cit. p. 716 .
214 Estados de Violência
Não se vê que uma Nação, sob pretexto de que a justiça está de seu lado,
queixe-se das hostilidades de seu inimigo, se elas permanecem nos termos prescri-
tos pelas leis comuns da guerra. Nós tratamos, nos capítulos precedentes, do que é
permitido numa guerra justa. É isso precisamente, e nada mais, que o direito voluntá-
32
rio autoriza igualmente nas duas partes.
A "guerra justa dos dois lados", ficção que permite este movimento
de reciprocidade das atenuações inerentes à doutrina de guerra de justa
33
causa, distingue-se, então, fortemente da "guerra pública e solene". Ela
faz passar do direito eterno da Natureza que não reconhece senão as exi-
gências da Justiça a um direito voluntário que leva em conta a realidade
histórica da pluralidade de Estados soberanos, e distinto ainda do direito
34
positivo convencional e do direito positivo costumeiro. Esse direito vo-
luntário não remete com efeito só à positividade empírica de tratados de
31
"Fictiones non inutilíter admittuntur in omni scientiarum" (N.T. Ficções não são admitidas
inutilmente em todas as ciências), C. Wolff, Jus gentium, Prolegomena, $ 21, ed. cit. p. 15.
32
E. de Vattel, o.e. 111,XII, 191, p. 274-275 (nós sublinhamos),
33
Isso se vê bem em Wolff que, logo após ter exposto o principio (par. 895 do Jus gentium),
rejeita expressamente os excessos de violência , admitidos por Grotius em nome do "direito
de guerra", do lado de costumes pervertidos das nações beligerantes.
34 Cf. para estas distinções, a introdução de M. Thomann à edição do Jus géntium (ed. cit.
p. xxxiii-xxxiv), bem como a apresentação de Wolff por L. Olive em Les fondateurs du droit
internationnal, ed. cll. p. 458-462 e a de Vattel por A. Mallarmé na mesma obra (p. 504-509).
Terceira Parte - QUADRO JURÍDICO 215
redução das violências que poderia ratificar uma pequena elite de Nações
bem estabelecidas. Do direito natural, o direito voluntário conserva a
seriedade do universal e do racional.
Essa ficção obriga as Nações a partilhar regras de moderação das vio-
lências e permite ainda que a vitória de um dos dois beligerantes tenha
efeitos de direito incontestáveis, como se sua causa tivesse sido justa. De
outro modo, cada Nação, vendo dificuldade na porta de sua justiça, teria
logo considerado toda guerra que lhe é feita como injusta e a derrota
como uma injúria. Matar os inimigos, apoderar-se de seus bens, conquis-
tar territórios, dominar povos, todas estas violências não são autorizadas
nem pela justiça intrínseca de uma causa (indefinível entre Estados sobe-
ranos), nem por um simples ritual de declaração pública. Elas são, para
Vattel e Wolff, dependentes dessa ficção de uma guerra justa dos dois
lados: ficção voluntária, convencional, jurídica e imanente, impedindo
que se compare a guerra a um duelo ou a um julgamento de Deus. Não
é a verdade da justa causa que se exprime na vitória, mas apenas sua
aparência externa, o respeito real dessa aparência que permite só relações
regradas entre Estados soberanos. Essa ficção da guerra igualmente justa
dos dois lados serve ainda para consolidar a paz. Ela assegura de fato
ao vencedor direitos exteriores e reais sobre seu vencido, em termos de
possessões territoriais, de dominações etc., como se sua causa tivesse sido
justa, o como se reconhecido de parte a parte transformando os Estados
em bons jogadores e leais adversários. 35
35
"A guerra em forma, quanto a seus efeitos, deve ser vista como justa de parte a parte.
Isso é absolutamente necessário, como acabamos de mostrar, se se quer pôr alguma or-
dem, alguma regra, num meio tão violento que a guerra produz e deixar uma porta sempre
aberta para o retorno da paz. É mesmo impraticável agir de outro modo de Nação para
Nação, já que elas não reconhecem juiz. Assim os direitos fundados no estado de guerra, a
legitimidade de seus efeitos, a validade das aquisições feitas pelas armas, não dependem,
exteriormente e entre os homens, da justiça da causa, mas da legitimidade dos meios em
si mesmos; isto é, de tudo o que é requerido para constituir uma guerra em forma. Se o
inimigo observa todas as regras da guerra em forma, nós não estamos no direito de nos
queixar dele como de um infrator do direito dos povos: ele tem as mesmas pretensões
que nós ao bom direito; e todo nosso recurso está na vitória ou numa acomodação", E. de
Vattel, o. c. Ili, XII, 190, p. 274.
216 Estados de Violência
'Justus hostis"
A guerra torna-se desde então uma guerra em forma, e isso unicamente porque
se torna uma guerra entre Estados europeus como tais, claramente delimitados
quanto à sua superfície, um conflito entre unidades espaciais representadas como
personae publicae (pessoas públicas) que formam a família europeia no solo euro-
peu comum e que estão por isso em condição de se reconhecer mutuamente como
justi hostes (inimigos justos). A guerra pode tornar-se assim algo de análogo a um
duelo. [... ] As duas partes se reconhecem como Estados. Por isso mesmo se torna
possível distinguir entre o inimigo e o criminoso. A noção de inimigo se torna
suscetível de tomar uma outra forma jurídica. O inimigo deixa de ser alguma
coisa "que é preciso aniquilar". A liud est hostis, aliud rebetlis (um coisa é o inimigo,
outra coisa o rebelde). Por isso mesmo um tratado de paz com o vencido se torna
possível. 37
37
O.e. trad .L. Deroche-Gurcel, p. 143.
38
Cf. sobre este ponto C. Wolff, Jus gentium, cap. VI, par. 722, ed. cit. p. 586 ("differunt
ab hostibus ínímici. lnimicus enim est, qui adio prosequítur alterum, consequenter cujus
animus dispositus est ad voluptatem perpícíendam ex alterius ínfelicitate": a relação do
inimicus é então marcada pelo ódio e pelo prazer de ver o outro sofrer).
39
"O inimigo particular é uma pessoa que procura nosso mal, que nele encontra prazer; o
inimigo público forma pretensões contra nós ou se recusa às nossas e sustenta seus direitos,
verdadeiros ou pretensos, pela força das armas. O primeiro nunca é inocente; ele alimenta
em seu coração a animosidade e o ódio", Vattel, o.e. 111, V, 69, p. 173. Cf. ainda o enunciado
fundamental de Rousseau: "A guerra não é então nenhuma relação de homem a homem,
mas uma relação de Estado a Estado, na qual os indivíduos não são inimigos senão aciden-
talmente, não como homens nem mesmo como cidadãos, mas como soldados; não como
membros da pátria, mas como seus defensores" (Ou contrat social, Livro 1, cap. IV).
218 Estados de Violência
preciso ainda manter para com ele, no momento em que se combate, todos
40
os sentimentos de amor e de caridade.
Aí estaria, nessa determinação de um inimigo público, de um 'Justus
hostis", o segredo dessa "humanização" e "racionalização" da guerra entre
Estados europeus; Schmitt afirma que a humanização e racionalização im-
pediram todo conflito total ("durante duzentos anos, não houve guerra de
aniquilamento no solo europeu" 41). As guerras, contudo, não eram raras,
mas continuavam circunscritas e civilizadas (saudade um pouco retrospec-
tiva e fácil da suposta "guerra de rendas" do tempo das Luzes: "Senhores
ingleses, atirai primeiro"), tudo se baseando na definição jurídica do ini-
migo. Não se tratava então de tornar impossíveis as guerras nem mesmo
de estigmatizá-las (como na noção de "guerra de agressão" que equivale à
condenação), mas de pô-las em forma. Porque querer abolir a guerra, aca-
bar com ela para sempre, é querer preparar a última, agitar o fantasma de
uma exterminação total e definitiva de todos os fautores de guerra, o que
implica conflitos indefinidos e atrozes. 42
É preciso reconhecer uma verdadeira grandeza nessa construção do
'Justus hostis". É como uma imensa homenagem rendida ao direito como
estrutura de reciprocidade e de igualdade. A essa apresentação do inimigo
justo por Schmitt poder-se-iam, contudo, opor duas inquietações. De uma
parte, não é certo que este estatuto de inimigo protege concretamente as
populações de Estados em guerra, limitando os conflitos a escaramuças
regradas entre soldados trocando saudações antes dos tiros, em campos de
batalha circunscritos, e tomando cuidado para jamais atingir as populações
civis. Estas relações de reconhecimen to e de respeito, de igualdade e de
ausência de ódio, no fundo, remetem essencialmente aos Estados como
40
"O dever do amor dos inimigos não é destruído pela estado de guerra; e todos os sen-
timentos de humanidade e todos os atos de caridade, que os homens se devem uns aos
outros, subsistem em toda sua força no meio das guerras as mais violentas", C. Wolff,
Príncipes du droit naturel, por J. H. S. Formey, cap. VII, 27, p. 307 (cf. in Jus gentium, os
parágrafos correspondentes: 743 e 744 do capítulo VI, ed. cit. p. 601-602).
41
C. Schmitt, Le nomos de la ferre, o.e. p. 152.
42
Cf. La notion de pofitique, ed . cit. p. 75 .
Terceira Parte - QUADRO JURÍDICO 219
A qualidade de inimigos ocorre entre as nações como entre seus chefes; cada
indivíduo de ambos os sexos e de qualquer idade está incluído e os bens quaisquer
44
que sejam são também bens do inimigo.
43
Essa necessidade de engajamento moral para cada soldado era uma necessidade no
quadro da guerra de justa causa. É com essa condição somente que se podia ter a cons-
ciência de matar/punir um culpado. Somente este princípio de responsabilidade entrava
em dissonância com o de obediência: podia-se dizer ao soldado que aceitasse bater-se
somente depois de ter interrogado a justiça da causa e de outra parte que se mostrasse
submisso às autoridades como a Deus mesmo? Daí as propostas evasivas de Santo Agos-
tinho: "Um homem justo, se por acaso lhe acontece fazer a guerra sob as ordens de um rei
mesmo sacrílego, pode , sem faltar à justiça, combater se, transgredindo a paz para manter
a ordem, ele está certo de que o que lhe é ordenado não é contrário à lei de Deus, ou ao
menos se ele não está certo de que isto lhe seja contrário (quod sibi jubetur, vel non esse
contra Dei praeceptum, certum est, vel utrum sit, certum non est)", Contra Faustum, Xll-75,
trad. Vanderpol, o.e. p. 132. (N .T. é o texto anterior no original latino.)
44
C. Wolff, Príncipes du droit naturel, por J . H. S. Formey, cap. VII, 23, p. 305. Cf. também :
"Todos os súditos de uma (nação) são inimigos de todos os súditos da outra", E. de Vattel.
o.e. Ili, V, 70, p. 174.
220 Estados de Violência
Nenhuma guerra entre Estados independentes pode ser uma guerra punitiva (bellum
punitivum). De fato, não pode haver punição senão na relação entre um superior (im-
perantis) e um subordinado (subditum), relação que não é a dos Estados entre eles. E a
guerra não poderia tampouco ser uma guerra de extermínio (bellum intemecinum). 47
45
Assim, a violência, dependendo da resistência efetiva do súdito do Estado inimigo mais
que de sua condição, sempre se recusará a matar um soldado desarmado, mas não hesi-
tará, se ele recusa submeter-se, em abater um civil armado.
46
É preciso recordar ainda, a propósito de massacres inúteis ou de verdadeiros massacres,
que o direito voluntário dos povos mantém que eles ficam exteriormente impunes, mesmo
se são absolutamente condenáveis pelo tribunal da consciência. "Os que numa guerra pú-
blica e solene levaram o massacre e os saques além do que a lei natural permite não pas-
sam, de ordinário no mundo, por assassinos ou por ladrões, e não são punidos como tais.
É estabelecido entre as Nações que é preciso deixar isso à consciência dos que fazem a
guerra" (J. J. Burlamaqui, Príncipes du droit politique, quarta parte, cap. V, 14, ed. cit. p. 83),
e Vattel: "Assim, desde que é certo e bem reconhecido que tal meio, tal ato de hostilidade,
é necessário em sua generalidade para vencer a resistência do inimigo e atingir o objetivo
de uma guerra legítima, este meio, tomado assim em geral, passa por legítimo e honesto
na guerra, segundo o direito dos povos, embora aquele que o emprega sem necessidade,
quando meios mais suaves podiam lhe bastar, não seja inocente diante de Deus e em sua
consciência", o.e. Ili, VIII, 137, p. 215-216.
47
Ooctrine du droit, li, par. 57, trad. J . e O. Masson, ed . cit. p. 620.
ira Parte - QUADRO JURÍDICO 221
rerc e
48
C. Schmitt, o.e. p. 125.
222 Estados de Violência
niilismo técnico. Uma religião contra uma outra, é uma verdade contra
uma outra, uma crença contra uma outra. Nenhuma negociação possí-
vel: à negação total da outra corresponde minha própria afirmação.
A guerra civil tem alguma coisa de particularmente atroz. Ela é uma guerra
fratricida, porque é levada ao interior de uma unidade política comum, que inclui
também o inimigo, e ao interior da mesma ordem jurídica; e porque as duas partes
em luta afirmam absolutamente e negam absolutamente e ao mesmo tempo essa
unidade comum. Ambas põem o inimigo em seu erro, de maneira absoluta e em
todos os casos. 49
49
C. Schmitt, Ex captivitate salus (N.T. Do cativeiro a salvação), trad. A. Doremus, Paris,
2003, p. 152.
Terceira Parte - QUADRO JURÍDICO 223
50
adversário igual, leal, que se afronta segundo regras comuns. Neste sen-
tido, a construção jurídica do conceito de inimigo seria um progresso. O
Estado contém um anel de violências na periferia de suas fronteiras, nos
afrontam entos regrados, em que se tratará de vitórias e não de capitulações.
A capitulação é o contrári o do tratado de paz. Para Schmitt no fundo, o
Tratado de Versailles não era um tratado de paz, precisamente como a
51
fórmula que havia sido dada pelo direito dos povos. Numa confront ação
entre inimigos justos, a vitória não serve para acabar com seu adversário,
mas simplesmente para poder impor-lh e suas condições de paz. O tratado
até o fim conserva o aspecto de uma negociação entre iguais mais do que
de uma capitulação sem condições. No fundo, a guerra não é mais que a
busca de vantagem.
Segundo aspecto: o tratado de paz comporta sempre, segundo o direito
dos povos, uma cláusula de anistia. Os Estados se comprometem a não formar
nenhum ressentimento, a esquecer os prejuíws respectivos, a apagar a lem-
brança dos motivos beligerantes ou das hostilidades cruéis. Por essa cláusula, a
primeira do tratado, os Estados instituem uma paz sem rancor, recusando-se a
disputar sem fim sobre a justa causa de uns ou a má-fé de outros.
que cir-
50 "Uma ordem jurldica internacional que se baseia na liquidação da guerra civil e
transforma ndo-a em duelo entre Estados europeus legitimou- se, com
cunscreve a guerra
belige-
efeito, como o reinado de uma razão relativa. A igualdade dos soberanos faz deles
aniquila-
rantes que gozam de direitos iguais e mantém à parte os métodos da guerra de
mento", C. Schmitt, Le nomos de la ferre, ed. cit. p. 143.
dúvida
51
Por trás de toda a obsessão de Schmitt com "guerras de aniquilamento", há sem
o temor apocallptic o da supressão de um Estado do que a Indignação histórica
menos
(cf. sua
diante das condições desonrosas de paz que foram Impostas à Alemanha em 1918
ilização unilateral no desencad eamento da guerra , as exigências exorbitant es
responsab
das reparações, as demandas em justiça promovida s contra Guilherme li etc.).
éa
E. de Vattel, Le droitdes gens, ed . cit. IV, li , 18 e 20, p. 360-361 . Cf. ainda: "A anistia
112
de drolt
abolição e o esquecimento de ludo o que se passou na guerra" (C . Wolff, Principes
nature/, por J. H. S. Formey, cap. XIX, 8, ed. cit. p. 324).
224 Estados de Violência
Tudo isso pode parecer suprema hipocrisia. 53 Contudo, isso serve para
pensar ao menos que não poderia haver estado intermedi ário entre a guerra
e a paz: são dois estados opostos, separados, justapostos, complementares
O ganho prático do direito dos povos está nisto: a facilidade da guerra que
aí se manifesta (é a prerrogativa de um Estado que não tem contas a prestar
a ninguém e decide sozinho da justiça de suas causas) acha-se compensada
pela simplicidade da paz, reconhecida como estado jurídico, escandida,
eminente mente capaz de ser instituída. A paz não é uma promessa de fu_
turo, ela não é um ideal que exige sacrifícios, nem um estado perfeito que
supõe uma nova ordem mundial. Ela é a configuração da relação jurídica
do Estado com um outro quando ele não faz a guerra. Daí ainda a pos-
sibilidade de neutralida de de um terceiro Estado: quando dois Estados se
fazem guerra, é escansão jurídica, e um terceiro não é obrigado a se declarar
a favor de um ou de outro. Não se irá, como para as guerras de justa causa,
denunciar quem fica de fora como cúmplice do Estado criminoso.
De ponta a ponta, então, a guerra "solene e públicà' ou "justa dos dois
lados", o ''justus hostis" como o "tratado de paz", são igualmen te homena-
gens prestadas ao formalismo jurídico. Mesmo que a guerra em forma não
se faça contra a guerra de justa causa, ela acaba lhe escapando. O respeito
pelo outro, a igualdade perfeita entre soberanos, o reconheci mento de sua
liberdade recíproca não podem manter da ideia de justiça senão as regras
formais e nunca a separação moral do justo e do injusto. Fórmulas de
delicadeza, trocas de bons procedim entos, regras de lealdade: eis o que
partilham, e só por isso, prestando homenag em ao outro, prestam-se ho-
menagem a s1 mesmos.
É preciso dizer que a guerra estritamen te leal, indiferente aos conteú-
dos de justiça, é guerra mais humana? Jamais esquecer, contudo, que essas
regras tão delicadamente observadas sempre mais consideraram o proto-
colo ou outros compromissos pontuais concluídos entre nobres generais,
oficiais distintos fantasiando seus afrontame ntos, como torneios sublimes,
53
Quando se lê por exemplo que "todo tratado de paz é por si mesmo perpétuo e, por falar
assim, eterno por sua natureza" (J. J. Burlamaqui, o.e. cap. X, 6, p. 194).
ira Parte - QUADRO JURÍDICO 225
fer (e
54
Voltaire, citado por M. Bélissa, Fraternité universel/e et interêt national, ed . cit. p. 75 .
Conclusão
Estados de violência
Desmoralização?
1
Canto de guerra dos jovens recrutas da SPLA (Sudanese People's Liberation Army -
Exército de Libertação do Povo Sudanês) no Sudão do Sul (citado por J. F. Bayard, Ellis,
Hibou, o.e. p. 23).
234 Estados de Violência
turbulen tas, à medida das violências contemp orâneas, uma sequência in-
definida de milícias paramilitares, de facções ou de bandos armados com
comand os confusos, com alianças precárias, com interesses contraditórios.
Contudo , não se pode ficar com um sentime nto de perda, de desagregação,
de ausência. Seria preciso compree nder o que nos conflitos contemp orâne-
os se configura de novo, e simplesm ente não desaba.
Nos estados de violência, a lógica da relação com a morte se transfor-
ma. Há três exemplos contemp orâneos: o ato terrorista fazendo surgir a
morte no coração do espaço público; a devassidão destruid ora de bandos
armados causand o estragos em países desestruturados; os lançame ntos te-
leguiados de mísseis balísticos "inteligentes", indo atingir alvos precisos
como "incisões cirúrgicas". O escândalo do terrorism o, sob a forma ao
menos do kamikaze transfor mando seu corpo em arma de destruição, é
que um homem que fundame ntalmen te quer morrer fere, atinge pessoas
que fundame ntalmen te não querem morrer. Instrume ntalização unilateral
e tirânica de minha própria morte: minha morte serve para matar os ou-
tros, os que não querem morrer. Desvio da forma sacrificial: eu não dou
minha vida, mas eu a reduzo. A morte, então, não é mais essa hesitação
que oscila entre dois inimigos e os ergue à vertical de sua coragem, ela não
é mais essa ameaça que eles partilham e que os reúne numa comunid ade
dura de violência. O terrorista escolhe para os outros. Profund a dissime-
tria não deixando lugar a nenhum a ética do reconhec imento. Quanto aos
bandos armados chocand o-se em afrontam entos sem fim e dispersados, é
em torno deles sobretud o que eles semeiam a morte. Eles se afrontam em
escaramuças esporádicas e sangrentas, em batalhas de rua sem decisão, em
ataques bruscos seguidos logo de retirada, em golpes de força permitin -
do o controle de uma nova zona ... Contudo , as violências mais graves e
as mais contínua s atingem as populações civis, tomadas como reféns: pi-
lhadas, expulsas, exploradas, massacradas. O aperfeiç oamento tecnológico
enfim exige doravante, nas guerras high-tech, mais competê ncia científica
do que força marcial. A tecnização da guerra tem tido essa consequência
formidável: pode-se provocar a morte de centenas de milhares de inimigos
a partir de uma poltrona , diante de uma tela de computa dor, em todo caso
Terceira Parte - QUADRO JURÍDICO 235
rua, um setor), compart imentar uma cidade, controla r uma zona, levar
assistência a uma populaçã o ... Missões pontuais , limitadas, estritam ente
definidas, para as quais se faz um apelo à sua competê ncia, ao seu profissio-
nalismo, ao seu senso das responsabilidades, à sua confiança. Está-se longe
aqui dos aprendizes matador es compen sando sua inexperiência pela raiva,
pelo barulho e pela embriaguez. Aqueles não matam por matar, mas traba-
lham, cumprem sua missão sem ódio. Certame nte, o mercená rio privado
e o soldado profissional não partilham exatame nte as mesmas expectativas
nem o mesmo ethos. O mercená rio privado valoriza uma experiência prá-
tica mais que uma pura competê ncia técnica. Ele já participo u em outros
conflitos, às vezes em regiões próximas, e no fundo é sobretud o isso que
ele sabe fazer: bater-se, comand ar um esquadrão, ficar à espreita sem tre-
mer, tomar decisões no meio do sibilar das balas e das explosões. Pondo-se
a serviço de uma grande companh ia, ele garante um bom salário, pois
evidente mente seu ofício está sujeito a riscos, e sobretud o ele escapa da
miséria e do desemprego. Este engajam ento fica estritam ente econômi co e
ele atravessa com indiferen ça os lances de poder confuso dos conflitos dos
quais participa. O soldado profissional recebeu uma formação, conhece u
treiname ntos, aprende u as regras do combate e da disciplina. Contudo , é
talvez hoje mais um código de deontolo gia que o estrutura do que um au-
têntico código de honra. Ele não concebe mais sua morte como apoteose e
realização de um destino. Como todo salariado, ele goza de direitos sociais
e sindicais, de planos de aposenta doria e de reciclagem, de seguro de vida,
de assistências médicas e psicológicas. É um funcioná rio cuidados o de suas
prerrogativas, sabendo fazer a separação de suas obrigações estritas. O que
o mercená rio privado e o soldado profissional partilha m é bem essa proxi-
midade da morte como risco racional. Ela não é nunca mais que um am-
biente profissional específico, um risco estatistic amente mensurável. Tudo
os opõe ao imaginár io cavalheiresco, pois o risco não é a aventura. É um
perigo razoável. Objeto de cálculo frio mais que epopeia apaixona nte, ele
é imprevisibilidade estatística a dominar mais que narrativa a conquistar.
A morte para eles não é destino. Nela não se mede mais o cume luminos o
de existência deles, mas antes uma margem especifica de incerteza letal que
rerceira Parte - QUADRO JURÍDICO 237
ológica total que terá pertencido ao século XX. No interior dos Estados
estourados, destruídos, do século XXI, os grandes desníveis perderam sua
pertinência. A oposição entre progressistas e reacionários, revolucionários e
conservadores, comunistas e liberais, esvaziou-se parcialmen te de seu senti-
do, quando afrontamen tos que veem opor-se não "etnias" (é nossa maneira
de ler a volta da natureza), mas grupos de interesse, redes de clientelas,
linhagens. É que se trata, para tal ou tal senhor da guerra, de "tomar o po-
der" ou de fazer parte da clientela de uma facção política, mas mais ainda
de aproveitar dos dividendos do poder (tomadas de lucros cumulativos)
do que de fazer triunfar o interesse geral. Contudo, quanto aos recrutas
dessas milícias ulrraviolentas, como compreend er a selvageria atroz de suas
exações?
E, contudo, para muitos, entrar num bando armado não é desvario da
violência arcaica, mas integração social. Viver de violências não é volta da
natureza, mas traumatism o cultural. Tornar-se um "cão de guerrà', juntar-
se à "matilha", é também sobreviver quando se perdeu tudo, refazer uma
família quando a sua não existe mais, reatar laços, mesmo atrozes. Porque
dessas violências, primeiro se vive. Cobra-se dos civis, vive-se de rapinas,
enriquece-se com saques. De fato, passa-se mais tempo a espoliar do que
a combater, e o fuzil serve tanto para intimidar, para semear o terror, para
obter o que se quer pela força, quanto para afrontar um inimigo. Há mui-
tos combates, reais, assassinos, mas finalmente sobretudo raros: reposicio-
namentos táticos, socos pontuais. E depois, há as solidariedades de bando,
as camaradagens viris em que se tem seu lugar reconhecido. Partilham-se
despojos e ainda lembranças. Nestas histórias de indivíduos, mais que nii-
lismo de existências informes, veem-se processos perturbador es de sociali-
zação pela violência.
De fato, esses garotos alucinados, esses adolescentes inebriando-se com
massacres, não usam de violência, eles são a violência. Ela é sua substância,
sua nova identidade. Descarregar uma cartucheira sobre inocentes tremen-
do, mutilar corpos bramindo, isso se aprende. É preciso ter feito explodir
as barreiras naturais da compaixão e do pesar. Assim, para ser aceito num
bando, é preciso ter sido acostumado às armas e iniciado. Estas iniciações
Terceira Parte - QUADRO JURÍDICO 239
pode deixar-se governar pela morte como imagem que lhe faz encontra r
seus públicos: público fanático de seu adoradores, que passam os vídeos de
suas últimas declarações e de seus adeus, público também de cidadãos tran-
sidos de medo, quando a morte violenta surge no coração de seu cotidiano.
Se o combate individual se inscrevia na ficção de uma narrativa, se a guerra
total exigia para ser conduzi da em toda a sua extensão a abstração de uma
ideologia, a que correspondia o genocídio em massa, o terrorismo convoca
para sua intensidade, pontual mas absoluta, o brilho de uma imagem que
conjuga num único ato a destruição dos outros e seu próprio renascimento
fantasmático num além glorioso.
Quando a guerra fazia da morte o termo regrado de uma troca, pro-
jetando o sujeito na vertical de sua existência segundo modalidades éticas
diferenciadas (honra, coragem, obediência, sacrifício etc.), o estado de vio-
lência a constrói como polaridade ativa de destruição do outro, segundo
parâmetros específicos: o cálculo racional, a raiva ébria, a glória de uma
imagem ... Há menos perda - sem benefício - da substância ética do que
nova configuração da relação com a morte, mas dessa vez como destruição
unilateral do outro permitin do, de volta, ao sujeito se definir: bom profis-
sional, bom cão de guerra, bom terrorista.
Terceira Parte - QUADRO JURÍDICO 241
Despolitização?
cos, eles mesmos irredutíveis à sua pessoa singular: desde que um soldado
perdesse suas armas, escrevia Rousseau, ele se tornava de novo um homem
como eu. Aquele que causa medo hoje não tem armas nem fardas. Ele toma
os transportes como eu, comigo, o avião, o metrô, o ônibus. Nada me se-
para dele e quem o identificará melhor que eu, quem poderia tornar-se
sua vítima? É pedido a cada um que faça um filme.
O estado de violência configura-se assim segundo uma lógica da
imagem de sofrimento, que introduz outros princípios que não são os da
guerra justa, confundindo todas as distinções jurídicas: princípios da in-
dividualização da desgraça, do sofrimento injustificável e da compaixão
igualizante.
O estado de violência, como o conceito que lhe é dado aqui por provi-
são, acaba por tomar um teor conceitua! irredutível ao que a Filosofia havia
podido pensar como guerra "pública e justà'.
A guerra tinha sido considerada como formação da violência, supon-
do, desde a troca combinada de morte e a favor do sujeito que nela se
engaja, uma tensão ética: gosto da honra, tenacidade, sentido do sacrifício,
automatismos incorporados à força de exercícios, raiva de acabar com ela ...
O estado de violência contemporâneo transforma essa relação com a mor-
te, impondo sempre mais a lógica de uma destruição unilateral e abstrata
de civis despojados.
A guerra havia sido também construída como violência militar bri-
lhante e visível, fazendo viver, existir, conservar-se e crescer ou manter aos
olhos dos outros estas "unidades políticas" que foram a cidade, o império,
o Estado. Ao mesmo tempo em que ela lhes dava consistência, a guerra re-
velava a precariedade das comunidades históricas. Os estados de violência
contemporâneos, enquadrados, regulados por dispositivos de segurança,
valorizam sobretudo a fragilidade do indivíduo, deixando-nos de presente
uma nova definição da violência como sentimento de minha vulnerabilida-
de de vivente, acompanhada da ideia de uma causa externa. Unívocidade,
então, da violência: violência das doenças como dos atos terroristas, das
catástrofes naturais como das coações autoritárias, dos conflitos civis como
dos crimes de direito comum.
Estados de Violência
254
ncia usten-
A guerra, enfim, havia sido conscituída como es a violê
rada por uma reivindicação d direito. ura do começo testemunhado
a criação do mund o
na aurora da história pelas mitologias que narravam
a considerar a divisão
como vitória de wn deus sobre oun·o, dando assim
ideal, na especulação
feita pela guerra como abertura da história; como
ação das injúria e
moral dos teólogos de uma "guerra justa", fazendo repar
as de uma guerra leal,
puni ndo o culpados; enfim codificação pelos jurist
s, suas separações de-
com suas regras e seus ricos, suas escansões impecávei
criminoso ou o inimi-
ci ivas, suas convenções claras (a guerra ou a paz, o
o civil). Os estados de
go, a paixão belicosa ou o ódio, o oldado armado ou
da desgraça despido),
violência, na forma de sua midiatiz.ação (e petáculo
a miséria das vítimas
valorizam o escândalo do sofrimento individual e
atordoa a imeligência
com imagens cuja presença, instantânea e brifüance,
justificação.
analítica e desencoraja de antemão toda iniciativa de
arece len-
A guerra como ''confüro armado, público e justo" desap
idades e suas con-
tameme, com suas mentiras e suas fidalguias, uas atroc
por proce sos de se-
solações. O furu.ro dos estados de vioPncia, regulados
e de nós, exigindo
gurança prom etend o dimi nuir seus riscos, abre-se diant
te novas esperanças.
do pensamento que inspire em novas atenções e inven
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Índice Geral
Introdução: O fim da guerra? ................... ..... ..... ...... ....... ..... ................... 5
3. Obedecer .......... .... ...... .. ... ..... .... ......... .. .. .............. ...... ... .... ............... 47
Intelectualização (modelo italiano) ................................................. 49
Burocratização (modelo francês) ..................................................... 56
Disciplinarização (modelo prussiano) ................................. ............ 60
Obrigação e submissão versus consentimento e docilidade .............. 66
4. Sacrificar-se .......................... ...... .... ....... ...... .. ........ ..... .. ............... .... 75
Três figuras do sacrifício ............................... ..... ................ ...... ... .... 7 6
Reversão do sacrifício ................. ..... ............................. ... ............... 83
5. Acabar de vez com .......................................................................... 87
A orens1va
e · · nao
" a mais ~ po der " ..... .... ......... ...... ... ....................... .88
Bibliografia ................... ..... .. ................................. ........ ... ............ ... ... 255