A Escolarização Pública e o Imprevisto Mais Do Que Previsto. Fernando Seffner
A Escolarização Pública e o Imprevisto Mais Do Que Previsto. Fernando Seffner
A Escolarização Pública e o Imprevisto Mais Do Que Previsto. Fernando Seffner
Fernando Seffner
Programa de Pós-Graduação em Educação, Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS)
Porto Alegre, Rio Grande do Sul, Brasil
E-mail: fernandoseffner@gmail.com
ORCID: http://orcid.org/0000-0002-4580-6652
Abstract: The article analyzes some of the impacts of the COVID 19 pandemic in the
Brazilian public educational field, using information extracted from a collection of data
collected by the author over the period March 2020 to March 2021. The collection gathers
both general information about the pandemic and, in particular, news that shows the effects
of the prolonged period of pandemic on the school and the schooling processes, in a timeline
mode daily. Some speeches about the alternative of distance education, hybrid teaching, the
return to face-to-face classes or the maintenance of closed schools are analyzed. The impacts
of the pandemic and the advancement of online education technologies in the context of
inequality in terms of access to quality education in Brazil are discussed.abstract deve estar
em Times New Roman, tamanho 12 (até 250 palavras).
Keywords: Public education. COVID 19. Inequality.
38
RIET– ISSN 2676-0355, Dourados, v. 2, n. 2, p. 38 a 63, jan./jun., 2021.
Esta obra está licenciada com uma Licença Creative Commons Atribuição-NãoComercial-CompartilhaIgual 3.0 Brasil.
A escolarização pública e o imprevisto mais do que previsto
1
Em 2020 tivemos apenas uma semana e meia de aulas presenciais na UFRGS. Através da Portaria nº 2286 de
17/03/2020 da Reitoria as aulas em todos os níveis foram suspensas. Disponível em:
http://www.ufrgs.br/ufrgs/noticias/reitoria-institui-portarias-que-regulam-atividades-durante-periodo-de-
suspensao-de-aulas Numerosas outras portarias foram prolongando a suspensão, enquanto se definia o que
fazer. Em 18 de agosto de 2020 as aulas do primeiro semestre letivo de 2020 foram retomadas, na modalidade
Ensino Remoto Emergencial (ERE). Até a data em que escrevo esse artigo, todas as atividades ocorrem em
regime remoto na UFRGS, sem previsão definida de retorno ao modo presencial.
2
São eles https://g1.globo.com/; https://gauchazh.clicrbs.com.br/; https://www.folha.uol.com.br/;
https://www.correiobraziliense.com.br/. Vale dizer que mesmo para não assinantes os jornais abriram de modo
livre um conjunto de notícias diárias acerca da COVID 19, o que possibilitou a coleta.
3
Trata-se de https://brasil.elpais.com/ e de https://www.bbc.com/portuguese
4
Trata-se de www.nexojornal.com.br e https://www.canalmeio.com.br. Vale dizer que esses dois meios de
comunicação dispõem de canais de YouTube e produção de podcasts, que foram consultados.
5
São elas https://piaui.folha.uol.com.br/ e https://diplomatique.org.br/ Vale lembrar que essas duas mídias, à
semelhança de outras, franquearam acesso gratuito a matérias acerca da COVID 19.
6
Trata-se de https://www.pagina12.com.ar
7
Trata-se de https://www.worldometers.info/coronavirus/ e https://coronavirus.jhu.edu/
39
acerca dos impactos da pandemia na situação educacional mundial 8; um site mantido por
fundação internacional dedicado à divulgação de estatísticas e dados acerca de grande
conjunto de temas em âmbito global, e que publicou matérias estabelecendo conexões entre
seus bancos de dados e o impacto da COVID 19 em várias áreas sociais, econômicas e
populacionais9; três repositórios dedicados especificamente ao acompanhamento da situação
da COVID 19 no Brasil, dois deles mantidos por instituições acadêmicas e o terceiro mantido
por consórcio de secretários de saúde dos estados10; e um canal do YouTube de reconhecido
biólogo brasileiro, que se tornou grande comunicador científico no contexto da pandemia11.
O interesse inicial na recolha de material foi difuso. Deu-se um tanto pelo hábito
colecionista de historiador, que viu ali indícios de uma interrupção no tempo ordinário das
coisas, e resolveu guardar alguns materiais a cada dia. Em seguida, passei a tomar notas e
registrar impressões em um diário de campo, sem uma noção exata do uso futuro que aquilo
poderia ter. O impulso do registro também se deveu ao fato de ser professor, e de História.
Como professor, percebi que o grupo de alunos e alunas da disciplina de estágio docente
tinha que “se manter ocupado” enquanto as aulas estavam interrompidas. Sem saber direito
o que fazer, sem ter ideia do tempo que a interrupção iria durar, e sem querer deixar alunos
e alunas “sem nada para fazer”, lhes dei a tarefa de comentarem alguns dos registros que eu
coletava. Tal foi feito na forma de linha de tempo, usando software gratuito disponível na
web12, e comecei eu a fazer o mesmo. Em menos de três semanas de aulas interrompidas, a
tarefa se estruturou, com o uso do ambiente Moodle13, e com a definição de algumas fontes
de consulta regulares para captar notícias da pandemia, que passou a ser um tema dominante
em todas as mídias.
A coleta diária de dados envolveu notícias, estatísticas, artigos de análise da
progressão da pandemia, editoriais de jornais, informes epidemiológicos assinados por
gestores ou cientistas, atos do poder público, manifestações contrárias ou favoráveis às
8
Trata-se de https://es.unesco.org/fieldoffice/santiago/covid-19-education-alc;
https://es.unesco.org/covid19/educationresponse e https://www.iesalc.unesco.org/
9
Trata-se de https://ourworldindata.org/
10
Trata-se de https://www.ufrgs.br/redecovid19humanidades/index.php/br; https://redecovida.org/ e
https://www.conass.org.br/painelconasscovid19/
11
Trata-se do canal https://www.youtube.com/channel/UCSTlOTcyUmzvhQi6F8lFi5w do pesquisador e
comunicador Atila Iamarino
12
Trata-se de https://www.timetoast.com/timelines/software-gratis-free
13
Para isso, contei com a ajuda do monitor da disciplina, aluno do curso de História Bruno Erbe Constante, a
quem agradeço o empenho, especialmente na organização do conjunto de dados quando este se tornou muito
volumoso.
40
14
A disciplina que eu estava lecionando em 2020/1 era o Estágio Docente em História no Ensino Médio, e os
estágios ocorreram em escolas públicas do Rio Grande do Sul, em regime remoto, com duplas de alunos
trabalhando junto a uma professora ou professor regente em cada escola. O regime remoto possibilitou inserir
estagiários em escolas tanto na região metropolitana de Porto Alegre, como habitualmente se fazia no regime
presencial, quanto pelo interior do Estado, onde professores e professoras estavam mantendo ações
pedagógicas regulares com suas classes de alunos e alunas. Agradeço aqui a disposição desses docentes em
acolher os estagiários e estagiárias em momento tão conturbado e lhes prestar ajuda. Após a modalidade remota
ser autorizada para estágios docentes pelo Conselho Nacional de Educação e pelo Ministério da Educação, ela
foi regulamentada na UFRGS pela Portaria 5774 disponível em https://www.ufrgs.br/prograd/wp-
content/uploads/2020/11/portaria-de-altera%C3%A7%C3%A3o-do-calend%C3%A1rio-acad%C3%AAmico-
2020-5774-Reitor.pdf
15
Entre fevereiro e março de 2021.
41
16
O acompanhamento dos casos faço através de dois repositórios, https://ourworldindata.org/coronavirus-data
e https://www.worldometers.info/coronavirus/ Acesso em 16 de março de 2021
17
A data em que fiz essa contabilidade foi 15 de março de 2021.
18
Como exemplo brasileiro citamos o mais importante repositório de memes do país, o Museu de Memes,
Universidade Federal Fluminense, em https://www.museudememes.com.br/ Acesso em 2 de março de 2021
42
veio ganhando força ao longo do debate que opôs – e ainda opõe no momento em que escrevo
esse artigo – os que desejam manter as escolas fechadas e os que lutam pela sua reabertura,
por vezes funcionando como solução conciliadora entre essas duas posições extremas. Desde
o início arquivei notícias e manifestações sobre esse tópico em conjunto próprio, que conta
com 38 registros, o primeiro deles datado de 29 de julho de 2020. A expressão Educação à
Distância, com a sigla EaD, e suas variações acima assinaladas, era já conhecida no campo
educacional e de ampla circulação na grande mídia e no portfólio de modalidades de cursos,
em particular das instituições privadas de ensino superior. A expressão ensino híbrido, por
vezes grafada como educação híbrida, era pouco conhecida no Brasil. Fez praticamente sua
estreia nas grandes mídias durante a pandemia, e trouxe alguns elementos novos ao debate
educacional. O terceiro conjunto reúne matérias sobre o tema “retorno às aulas” ou “volta às
aulas”. Estas dizem respeito à polêmica em torno da manutenção de escolas fechadas ou de
sua reabertura em um leque de modalidades diversas, e ali temos 104 registros, o mais antigo
deles de 11 de agosto de 2020. São notícias, relatos de pesquisas de opinião, manifestações
de autoridades, de pesquisadores e de instituições, editoriais de jornal, campanhas de
sindicatos de professores, depoimentos de alunos, anotações de lives que debateram o tema,
matérias sobre carreatas e movimentos sociais em torno do tema, notas técnicas de
organismos internacionais, em particular aqueles das Nações Unidas, informes da situação
em outros países, extratos de sentenças proferidas por juízes naquilo que se poderia chamar
de vaivém de decisões judiciais contraditórias, etc.
O quarto conjunto se organiza em torno das conexões entre diversos tópicos que
dialogam entre si: prejuízos ao rendimento escolar, desigualdade de acesso à educação,
precariedade, violência contra crianças e jovens quando restritos ao ambiente doméstico,
sugestões de estratégias para recuperar o que foi perdido no tempo da pandemia em termos
educacionais, aprendizados acerca da importância da escolarização a partir dos desafios da
pandemia. Esse quarto conjunto guarda conexões com os três anteriores, mas se destaca por
agrupar dossiês de revistas acadêmicas científicas, dossiês de jornais e revistas de opinião,
relatórios e estudos de organizações empresariais ou não governamentais em torno do tema
do prejuízo escolar com a pandemia. São estudos de maior alcance teórico, e reportagens
investigativas de maior fôlego, menos preocupadas em exatamente defender o retorno ou
não às aulas presenciais, e mais em analisar efeitos de longo prazo derivados da situação de
interrupção do cotidiano escolar, em particular para as famílias pobres e as minorias. Temos
43
aqui 32 registros, o primeiro deles coletado em 30 de abril de 2020, com anotações a partir
de um seminário web promovido pela UNESCO agência Santiago de Chile, cujo objetivo
era:
44
45
causais e cria uma noção de resolução ilusória, que, afinal, cumpre uma
função de acomodação às reformas. (SILVA & VELOSO, 2012, p. 744).
Nos tópicos a seguir exploro algumas marcas encontradas em cada um dos quatro
conjuntos de dados que articulam a pandemia com questões educacionais, em diálogo
pontual com os excertos de falas e observação de cenas em aulas em sistema remoto. Trata-
se de aproveitamento um tanto lacônico do volume de dados, uma imersão em nível que
reconheço raso, em acervo de águas tão profundas. Mas é o método para ir, aos poucos,
realizando novas incursões. Se há algo que tenho neste momento certeza é que o período
pandêmico está longe de terminar, e suas consequências mais longe ainda de se encerrarem.
Sobre ele será necessário refletir muito. A tarefa aqui inicia, aproveitando pequena parte do
acervo que venho coletando. Busco construir sentidos possíveis em meio a tantos
acontecimentos que por vezes parecem indizíveis. Além desse tópico inicial do artigo,
agrupo as demais reflexões em outros dois tópicos. Não há ao final o tradicional tópico
“conclusões”, pois não julgo ter elementos suficientes para tal. Proliferar questões talvez
seja o ideal nesse momento inicial de exploração do material coletado.
46
refeições – envolve lidar com regras do espaço público, tradições, predomínio da cultura
escrita e da argumentação racional, inserção em longo processo de alfabetização científica,
diretrizes de convívio, aprendizado na forma de conhecimento disciplinar, construção de
normas coletivas de relacionamento, estratégias de avaliação, modos de progressão ano a
ano, estabelecimento de relações de afeto e amizade e, para grande parte de jovens, as
primeiras experiências românticas. O cotidiano escolar é marcado pela interação com
colegas que apresentam diversidade de arranjos familiares, de pertencimentos religiosos, de
jeitos de viver gênero e orientação sexual, de raça, de ideário político, de projetos de futuro.
Tudo isso em meio a um ordenamento das horas de estudo, dos intervalos, dos rituais, das
idas ao banheiro, dos prazos.
Não existe condição de aprendizado escolar na Educação Básica desvinculado do
entorno da cultura escolar e do cotidiano escolar19, e pensar sua condição virtual é um desafio
posto pela pandemia. A exigência de distanciamento social, com fechamento das escolas,
colocou na ordem do dia a opção de ensino remoto. O assunto tomou conta do noticiário
desde meados de março de 2020, puxado inicialmente por instituições privadas 20, e em
seguida por redes públicas. Em final de abril o Conselho Nacional de Educação aprovou o
primeiro dos muitos pareceres visando lidar com a situação de pandemia (BRASIL,
CNE/CP, 2020), e tratando do que se chamou na legislação de “atividades não presenciais”21.
A abordagem do tema pelo conjunto das mídias acompanhadas focou-se majoritariamente
em estratégias didáticas “sem rosto” e até mesmo “sem autoria”, ou seja, pacotes comprados
de plataformas de ensino, sem uma autoria pessoal definida. A noção de “aula” separou-se
da figura do “professor”, e esta última quase desapareceu do noticiário, restando em muitos
casos apenas menções a figura do professor como “facilitador” do acesso às aulas prontas,
ou como alguém que precisava ser “preparado” para “entender as possibilidades dos meios
19
O mesmo pode-se dizer que vale para o ensino superior, analisando a importância da cultura do campus, e
das interações que ali acontecem. Tal afirmação não implica dizer que a EaD seja uma versão degradada do
ensino presencial, como logo adiante se discutirá, e muito menos que com ela não seja possível construir um
entorno de cultura escolar.
20
Este artigo trata exclusivamente da Educação Básica, mas vale salientar que as instituições privadas de ensino
superior foram responsáveis por grande número de declarações e matérias em torno do tema, desde que a
pandemia se instalou. De modo mais ágil do que as escolas particulares de Educação Básica, algumas
universidades privadas retomaram as aulas em modalidade remota com intervalo de apenas dois dias de
interrupção da modalidade presencial, o que se explica pela maior tradição nessa estratégia, bem como pelo
perfil de alunado atendido.
21
O conjunto de pareceres sobre o tema pode ser visualizado na página web oficial do CNE em
http://portal.mec.gov.br/pec-g/33371-cne-conselho-nacional-de-educacao/90771-covid-19 Acesso em 2 de
março de 2021.
47
digitais”. Fica evidente nessas construções que o professor ou a professora são o lado
“atrasado” da equação, frente ao lado “moderno”, que são os meios e plataformas. A aula
passou a ser uma entidade quase autônoma, que aparece sozinha nas frases. Proliferaram
expressões como repositório de aulas, banco de aulas, aulas disponíveis, pacote de aulas,
pacote de dados, kit de atividades, combo de estratégias didáticas, videoaulas prontas.
Apareceram anúncios com títulos como “venda de pacotes com videoaulas e materiais”22. A
ênfase do noticiário e das medidas tomadas foi direcionada para as tecnologias e os meios,
com a proliferação de manchetes como “aulas pela TV”, “aulas pelo celular”, “aulas pela
plataforma X ou Y”, “o whatsapp como instrumento de aulas”. Tecnologias e meios foram
associados a empresas de porte mundial, em expressões como “utilizar o google class”,
“utilizar o google classroom”, “vantagens do aplicativo educativo da Apple”, conferindo a
essas estratégias educacionais um capital simbólico vigoroso, pelo poder das grandes
marcas. O que está narrado acima me parece configurar o volume principal de matérias,
mesmo aquelas de maior densidade, ao longo do primeiro semestre da pandemia. Tal
afirmação não elimina o fato de que há menções e debates que buscaram problematizar as
aulas em modalidade remota sem diminuir a importância da figura do professor ou da
professora, mas estas foram minoritárias. A impressão que tenho, na leitura dos registros
coletados, é que o momento inicial de enfrentamento da situação de fechamento das escolas
foi dominado pelo discurso do ensino privado nas mídias, que buscou apresentar a EaD como
alternativa eleita para atravessar a turbulência da COVID 19 sem prejuízos. As instituições
privadas também buscaram se apresentar como já portadoras da expertise necessária,
passando a imagem de uma transição sem grandes sobressaltos, e cobrando do governo
federal a validação de suas estratégias, o que de fato foi progressivamente sendo concedido
pela legislação.
Grande parte das matérias coletadas neste período inicial trata a EaD como substituto
do ensino presencial, de modo direto, desconhecendo a literatura que enfatiza que EaD é
modalidade específica, regulada em lei (BRASIL, 2017), e não a simples tradução para o
ambiente online do que se faz presencialmente. O problema da forte desigualdade no acesso
aos meios no Brasil marca presença desde o início das abordagens, e vai se acentuando
conforme os números passam a mostrar o que se chamou por vezes de “apagão educacional”
22
Um exemplo dessa estratégia, no meio de muitos outros, pode ser conferido em
https://www.clipescola.com/5-ideias-para-escola-crescer-na-pandemia/ coletado de 31 de agosto de 2020,
acesso em 10 de dezembro de 2020
48
ou “fosso existente no acesso aos meios digitais no Brasil”. A desigualdade também vai
ficando visível quando o noticiário mostra as redes públicas “paralisadas”, enquanto o ensino
privado está “em movimento”. Progressivamente percebo o surgimento de matérias que dão
conta do fato de que o que se está praticando, na urgência sanitária da pandemia, é um ensino
remoto emergencial, ou uma modalidade emergencial de educação online, ou expressões
semelhantes, que assinalam o caráter de excepcionalidade da adoção de ferramentas remotas.
As afirmações iniciais da mídia, e mesmo de muitas autoridades de gestão educacional, em
tom certamente aligeirado, que supunham a EaD como versão automática do ensino
presencial, se tornam mais matizadas. A percepção de que aquilo que vem sendo praticado
é na verdade uma versão de ensino remoto em situação de emergência se torna mais
frequente na mídia. A ênfase nos meios e na tecnologia cede um pouco, e os elementos de
interação social, cultura escolar e cotidiano escolar forçam passagem, e com eles a
importância de professores e professoras. As comparações apressadas entre ensino
presencial e EaD, que situam em geral as entidades de classe de docentes a favor do primeiro,
e os gestores públicos e proprietários de plataformas privadas a favor do segundo, sofrem
críticas:
Percebo que inicialmente o debate na grande mídia se ocupou em mostrar que havia
alternativas prontas para seguir estudando. A EaD foi eleita de modo prioritário. Talvez por
ser categoria e sigla já de amplo conhecimento do grande público. Assegurava uma certa
“segurança” para a travessia. Certamente tal atitude se deu pela suposição de que o período
de exceção seria de pequena duração. Se ele é um período pequeno, um curativo pode ser ali
colocado, a moda de um “band-aid”, sem maiores problemas. Interessava mostrar no início
que havia alternativas, em sintaxe já conhecida. A situação lembra um pouco a afirmação,
que depois se generalizou no discurso presidencial, norte-americano e brasileiro, de que “a
economia não pode parar”, o que implica considerar a situação de emergência como de
pouco potencial de dano, o que hoje em dia sabemos não ser verdadeiro. A EaD era
ferramenta ali à disposição, para que se continuasse a “tocar” a educação sem rupturas
49
Mais ainda, essa interação professores professoras alunos alunas tem função
importante na conquista da autonomia intelectual dos jovens, que implica ampliação de
horizontes em relação aos modos de ser família. Se vai à escola também porque “[...] os
modos de socialização anteriores serão remodelados, abolidos, adaptados ou transformados
em função dos dispositivos próprios do trabalho dos professores na escola” (TARDIF &
LESSARD, 2009, p. 23). Manter crianças e jovens por tempo indefinido em casa, mesmo
com bom acesso a plataformas digitais, passou a ser criticado, e ingressaram no debate vozes
médicas:
23
Fausto Flor Carvalho é chefe do Departamento de Saúde Escolar da Sociedade de Pediatria de São Paulo.
24
Dossiê NEXO EDUCAÇÃO, veiculado em 6 de dezembro de 2020. Disponível em
https://www.nexojornal.com.br/expresso/2020/12/06/Quais-as-press%C3%B5es-pela-volta-%C3%A0s-
aulas-presenciais-no-
Brasil?utm_medium=Email&utm_campaign=NLDurmaComEssa&utm_source=nexoassinantes Acesso em 2
de março de 2021
50
“O único que conseguiu acessar a plataforma foi o meu filho mais velho, de
15 anos. Nunca foi fácil, cheguei a pedir dinheiro emprestado para botar
crédito no celular para ele acessar. Mas ele não entendia as matérias, e os
professores não conseguiam explicar de longe. No fim ele disse que se sentia
fraco, que não aprendia e queria desistir”. O relato é da diarista Genesi
Flores, do Quilombo da Família Flores, em Porto Alegre. Como ela, milhares
de famílias cujas crianças estão matriculadas na rede pública foram
desafiadas um ano atrás a lidar com os filhos fora da escola. Nas periferias
da Capital, somam-se ainda problemas mais urgentes, como a falta de
alimentação e condições básicas de higiene – nessa realidade, acesso à
internet é luxo. (LIMA, 2021).
Sem condições de acesso a conexão web de qualidade, boa parte das intenções de
boa escolaridade se perde. Um outro conjunto de precariedades da escola pública brasileira,
já conhecido de longa data, passa a habitar o noticiário, a indicar velhos e novos problemas
convivendo lado a lado, e são feitos dossiês ou reportagens investigativas. Informações já
sabidas de muito tempo cruzam com decisões de hoje, como mostram os dois excertos
abaixo, de matérias com diferença de dois dias:
51
25
Reportagem investigativa feita a partir dos dados do Censo Escolar 2020, publicada em 21 de março de 2021,
disponível em https://g1.globo.com/educacao/volta-as-aulas/noticia/2021/03/21/cresce-numero-de-escolas-
publicas-sem-banheiro-e-internet-banda-larga-coleta-de-esgoto-nao-chega-a-358-mil-predios-escolares.ghtml
Acesso na mesma data de publicação. Tal reportagem é a mais completa dentre numerosas outras, com dados
do mesmo conjunto estatístico ou de pesquisas menos abrangentes, dando conta da mesma situação.
26
A atitude da presidência da República vem na esteira de outros benefícios que foram cogitados para os
sistemas de ensino, e terminaram cancelados ou consideravelmente diminuídos em volume de recursos.
Reportagem publicada em 19 de março de 2021, disponível em
https://g1.globo.com/politica/noticia/2021/03/19/bolsonaro-veta-integralmente-projeto-que-assegura-internet-
gratis-a-alunos-e-professores-da-rede-publica.ghtml Acesso na mesma data.
52
Eu vejo na televisão que tem escola voltando, tem guri aqui no bairro que
já voltou, e lá no meu colégio não volta, lá não tem condição, nem álcool
gel, tudo quebrado, a minha mãe fica nervosa, eu fico nervoso, fica tudo
mundo nervoso lá em casa. (Aluna autodeclarada branca, escola pública de
Porto Alegre, Ensino Fundamental)
A saudade que eu sinto da sala dos professores não tem tamanho. Nem sei
explicar, eram só 20 minutos no recreio, tudo corrido, conversa, café, pega
material, comenta com colegas, e eu lembro disso todos os dias.
(Professora autodeclarada branca, 38 anos, escola pública da região
metropolitana de Porto Alegre, docência no Ensino Fundamental)27
27
Diário de campo das observações de aula e diálogos com docentes, ano 2020, anotações pessoais.
53
54
maior parte do alunado, a atividades em regime remoto, a imprensa passou a pautar o tema
do retorno aulas presenciais com mais vigor. Dois elementos marcaram o conjunto de
matérias coletadas no período que vai de meados do ano de 2020, quando já havia sinais
claros de que a pandemia seria duradoura, até ao momento em que escrevo esse artigo. O
primeiro é a completa ausência de uma coordenação nacional, a ser feita pelo Ministério da
Educação, em torno da matéria. A Constituição Federal de 1988 prevê expressamente em
seu artigo 211 o princípio do regime de colaboração nas políticas públicas de educação
(BRASIL, 1988). Esse princípio, posteriormente regulado em diversas legislações
específicas, indica que os entes federados devem organizar e gerir os sistemas de ensino em
regime de colaboração, evitando conflitos e competição. A legislação reconhece a autonomia
dos sistemas de ensino, mas a função desse princípio constitucional é estimular a pactuação
entre os entes federados, em um país tão heterogêneo e de dimensões continentais como o
Brasil. O que se viu foi o completo abandono desse princípio, e as matérias da grande
imprensa sequer lembraram a quebra desse compromisso constitucional. Muitos editoriais
criticaram a omissão do MEC, mas não apresentaram alternativas. As pressões políticas em
cada estado e município derrubaram amplamente essa pretensão, e o MEC, seguindo a
orientação praticada pela presidência da República, abriu mão de coordenar qualquer
resposta nacional. Dessa forma, examinando apenas o caso do local onde vivo, a região
metropolitana de Porto Alegre, tivemos todo tipo de situação, com escolas estaduais
voltando a funcionar e distantes poucas quadras de escolas municipais, por vezes na mesma
rua, que permaneciam fechadas. Em uma mesma família, um filho retornou à escola, e uma
filha não.
A ausência de políticas coordenadas e colaborativas estimulou certa atitude de “cada
um faz o que acha melhor”. Isso leva ao segundo elemento que marcou o conjunto de
matérias coletadas, muitas das quais permitindo conhecer a posição dos gestores: a ausência
de uma discussão acerca do que implica, exatamente, reabrir uma escola. O que significa,
exatamente, voltar às aulas? Como se volta? Como se organiza o espaço escolar para receber
alunos e alunas, professores e professoras? Como se orientam as famílias nos procedimentos
em relação a filhos e filhas que agora passam a ir à escola? Tais questões foram tratadas, na
maior parte das vezes, com o uso de expressões que, de tanto citadas, se tornaram
completamente esvaziadas, do tipo “seguindo os protocolos exigidos pela situação
sanitária”, ou então “cumprindo os requisitos do distanciamento social”, ou, no mais das
55
vezes, com a repetição infindável da frase “com o uso de máscaras e álcool gel”. Pouco se
abordou a experiência de outros países, pouco se produziu em termos de protocolos
objetivos, listando ações e equipamentos necessários, não tivemos a produção de cartilhas
ou manuais indicando com clareza o que implicava a volta às aulas. O coroamento desse
vazio de discussão veio na forma de exigência de um documento, assinado pelos pais de
alunos e alunas, indicando que concordavam com o retorno de seus filhos e filhas às escolas,
assumindo com isso a responsabilidade pela decisão. Em resumo, as autoridades não
produziram diretivas claras do que implicava o retorno às aulas, nada informando acerca do
transporte escolar, dos cuidados necessários quando do retorno para casa, do que cada aluno
e aluna deveria fazer, etc. Ao não explicitar quase nada a respeito desse complexo problema
do retorno das crianças e jovens às escolas, coroaram essa atitude com a exigência de um
termo assinado pelas famílias autorizando seus filhos ao retorno. Ou seja, se isentando de
quaisquer possíveis consequências do retorno de crianças e jovens às aulas. Dessa forma, o
que podemos perceber é que a racionalidade neoliberal não opera no Brasil apenas na já
conhecida direção do “estado mínimo”. Entre nós se pratica também a construção de uma
nova modalidade de ação estatal, desacompanhada de qualquer garantia de sua eficácia e
segurança. O estado age, mas não oferece garantias. Não é de admirar que, em meio à
ausência de tais garantias, o Brasil esteja entre os países do mundo que mais tempo
permanecem sem uma definição de retorno às aulas, com evidente prejuízo em termos
educacionais, especialmente para as populações mais empobrecidas28.
O embate entre grupos pela reabertura das escolas e aqueles que defendem que se
mantenham fechadas mostrou contornos políticos que merecem comentário. Examinando os
debates e votações no âmbito da Assembleia Legislativa do Rio Grande do Sul em meados
de março de 2021, em torno de projeto enviado pelo Executivo Estadual que inseria a
educação nas atividades essenciais, e pedia autorização para sua reabertura presencial
imediata, tivemos votações que posicionaram como favoráveis e contrários grupos que
apenas um mês antes estavam em posições opostas. O retorno das aulas presenciais, desejo
do governo estadual, foi defendido e obteve maioria contando com votos de um grande
28
O acompanhamento detalhado da situação mundial, país a país, semana a semana, para saber o contingente
de crianças e jovens na escola, e a situação das escolas (escolas fechadas, abertas parcialmente, abertas
completamente, ensino híbrido, etc) pode ser feito consultando o World Bank Education COVID-19 School
Closures Map em https://www.worldbank.org/en/data/interactive/2020/03/24/world-bank-education-and-
covid-19 Acesso em 20 de março de 2021
56
29
Para saber da articulação em torno do projeto que desde 2019 tramita na Assembleia Legislativa do Rio
Grande do Sul tratando do homeschooling e de seus desdobramentos em fevereiro de 2021, veja notícia oficial
em http://www.al.rs.gov.br/agenciadenoticias/destaque/tabid/855/IDefault.aspx?IdMateria=319647, e para
tomar contato com parte da polêmica em torno de projeto que prevê a aprovação da educação como atividade
essencial e da possibilidade do retorno presencial obrigatório no Rio Grande do Sul votado em março de 2021
veja notícia em https://gauchazh.clicrbs.com.br/coronavirus-servico/noticia/2021/03/aprovado-projeto-que-
torna-ensino-atividade-essencial-no-rs-mas-sem-obrigar-reabertura-de-escolas-
ckmcjt08g008l0198s2b2onut.html Acesso em 22 de março de 2021
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O meu pai já tinha sido despedido bem antes da pandemia. Estava fazendo
Uber, ele que nem gosta muito de dirigir, pois tem dor de coluna. Agora
com a pandemia o movimento diminuiu no Uber. A minha mãe e a minha
tia eram vendedoras em loja ali na Assis Brasil. Foram demitidas, porque
as lojas andam fechadas e com pouca gente que vem comprar. Eu passava
o dia no colégio, agora fico em casa. Não tem como, eu fui atrás de
emprego, já estou fazendo entregas, comecei entregando máscaras que as
vizinhas produziam, agora é comida, rancho do supermercado, vou pagar
conta no banco para quem não pode sair de casa, pego o almoço no bar e
levo para uma vizinha idosa todo meio dia, é o dia todo na rua. A escola
ficou nessas horas de aula remota, mas quase acabou. (Rapaz
autodeclarado branco, 15 anos, aluno do Ensino Médio).
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A apresentação dos dados e o excerto citado acima estão disponíveis em
https://www.bbc.com/portuguese/brasil-
56365723?utm_source=NexoNL&utm_medium=Email&utm_campaign=OQEL Acesso em 23 de março de
2021
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Servir-se do percurso educacional para melhorar de vida não é algo percebido como
muito eficaz por largas parcelas da população, especialmente as mais pobres, embora seja
modelo cultuado pela classe média e largamente divulgado na mídia, com o mantra “estuda
para ser alguém na vida”. Os números das pesquisas e relatórios produzidos pelo Instituto
Mobilidade e Desenvolvimento Social (Imds), uma plataforma que utiliza informações de
repositórios públicos e pesquisas acadêmicas, estabelecendo diálogo entre os dados
nacionais e os indicadores internacionais de mobilidade social, confirmam essa percepção
das classes vulneráveis:
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O excerto é fruto de matéria que comenta dados do Imds, em
https://www1.folha.uol.com.br/mercado/2021/03/no-brasil-chance-de-filho-repetir-baixa-escolaridade-do-
pai-e-o-dobro-dos-eua.shtml Acesso em 20 de março de 2021. O banco de dados com relatórios específicos
por tema, educação entre eles, e suas conexões com mobilidade social, pode ser buscado em
https://imdsbrasil.org/
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vista racional. A função escolar se vê ameaçada, e em parte invalidada, por essa vaga de
manifestações ao tipo “eu acredito que é assim”, ou “essa é a minha opinião, e pronto”. A
produção da ignorância “também está presente na confusão sobre a epidemiologia social da
covid-19 — com destaque para as formas que a pandemia afeta comunidades e populações
distintas com base em classe, raça e etnia, gênero e outros marcadores de diferença social”
(PARKER, 2021). Retomamos o título deste artigo, com a sensação de que fomos colhidos
por um imprevisto mais do que previsto, que mistura necessidade de garantia de acesso a
tecnologias e políticas públicas de enfrentamento da desigualdade educacional. Mas o fato
dele ser mais do que previsto não lhe retirou o impacto de imprevisto, e de consequências
duradouras para o campo educacional.
Referências
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JULIA, Dominique. A Cultura Escolar como Objeto Histórico. Revista Brasileira de História da
Educação, Rio de Janeiro, v. 1, n. 1, p. 9-43, jan./jun. 2001. Disponível em:
http://periodicos.uem.br/ojs/index.php/rbhe/article/view/38749 Acesso em 19 janeiro de 2021
LIMA, Patrícia. Um ano de escolas fechadas: relatos de mães revelam fracasso do EAD na Capital.
Porto Alegre, Matinal Reportagem, 2021 Disponível em
https://www.matinaljornalismo.com.br/matinal/um-ano-ensino-
remoto/?mc_cid=fcfaef8fd8&mc_eid=f6d0e1f891 Acesso em 19 de março de 2021
SILVA, Maria das Graças Martins da & VELOSO, Tereza Christina Mertens Aguiar. Acesso nas
políticas da educação superior: dimensões e indicadores em questão. Avaliação, Campinas;
Sorocaba, SP, v. 18, n. 3, p. 727-747, nov. 2013. Disponível em
https://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1414-40772013000300011 Acesso em 2
de março de 2021
TARDIF, Maurice; LESSARD, Claude. O trabalho docente: Elementos para uma teoria da
docência como profissão das interações humanas. 5. ed. Petrópolis: Vozes, 2009.
VICTORIO FILHO, Aldo. Pesquisar o cotidiano é criar metodologias. Educação & Sociedade,
Campinas, v. 28, n. 98, p. 97-110, abril 2007 Disponível em:
https://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0101-
73302007000100006&lng=en&nrm=iso Acesso em 7 de janeiro de 2021
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