Um Crime No Expresso Do Oriente
Um Crime No Expresso Do Oriente
Um Crime No Expresso Do Oriente
AGATHA CHRISTIE
Um Crime no
Expresso do Oriente
Tradução
Alberto Gomes
Revisão da Tradução
Carolina Vasconcelos
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Título original:
MURDER ON THE ORIENT EXPRESS
AGATHA CHRISTIE® POIROT® Copyright
© 2010 Agatha Christie Limited (a Chorion company).
All rights reserved. Murder on the Orient Express foi
originalmente publicado em 1934
ÍNDICE
PARTE I Os Factos
PARTE II Depoimentos
I O depoimento do revisor . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 69
II O depoimento do secretário . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 75
III O depoimento do criado . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 80
IV O depoimento da senhora americana . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 85
V O depoimento da senhora sueca . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 92
VI O depoimento da princesa russa . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 97
VII O depoimento do conde e da condessa Andrenyi . . . . . . . . . . . . . . . 103
VIII O depoimento do coronel Arbuthnot . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 108
IX O depoimento de Mr. Hardman . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 115
X O depoimento do italiano . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 121
XI O depoimento de Miss Debenham . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 125
XII O depoimento da dama de companhia alemã . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 130
XIII Síntese dos depoimentos dos passageiros . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 136
XIV A prova da arma . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 143
XV A prova das bagagens dos passageiros . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 150
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PARTE I
OS FACTOS
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CAPÍTULO I
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uma resposta oportuna que incluía a frase: «E eu esqueceria por acaso que já
me salvou a vida uma vez?». E o general dera também uma resposta oportu-
na, negando qualquer mérito por esse serviço passado, e, por entre mais
menções à França, à Bélgica, à glória, à honra e coisas afins, tinham-se
abraçado efusivamente e a conversa terminara.
O tenente Dubosc continuava ainda às escuras sobre o que é que se tinha
passado, só sabia que o tinham encarregado de acompanhar M. Poirot ao
Expresso Tauro, tarefa que estava a desempenhar com todo o zelo e entusias-
mo próprios de um oficial jovem com uma auspiciosa carreira diante de si.
— Hoje é domingo — disse o tenente Dubosc. — Amanhã à tarde, já
estará em Istambul.
Não era a primeira vez que fazia aquela observação. As conversações
numa plataforma de embarque, antes de o comboio partir, tendem a ser algo
repetitivas.
— Assim é.
— E, segundo creio, pretende demorar-se por lá alguns dias?
— Mais oui. Istambul, uma cidade que nunca visitei. Seria uma pena
passar apenas por lá, comme ça. — E estalou os dedos de modo expressivo.
— Não há pressas, vou demorar-me por lá uns dias, como turista.
— Santa Sofia, uma maravilha — disse o tenente Dubosc, que nunca vira
esse templo.
Um vento frio silvou pela plataforma. Ambos tiritaram. O tenente Du-
bosc conseguiu deitar um olhar sub-reptício ao relógio. Cinco para as cinco
— só faltavam mais cinco minutos!
Pensando que o outro notara aquele olhar sub-reptício, apressou-se a
entabular conversa novamente.
— Pouca gente viaja nesta época do ano — disse, olhando de relance
para as janelas da carruagem-cama acima deles.
— Assim é — concordou Poirot.
— Esperemos que o Tauro não fique preso na neve!
— Pode acontecer isso?
— Já aconteceu, já. Não este ano, pelo menos até agora.
— Esperemos então que não — disse M. Poirot. — As previsões meteo-
rológicas para a Europa são más.
— Muito más. Nos Balcãs há muita neve.
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mito bastante gasto. Asseguro-o de que os pais é que têm medo de serem
maltratados por mim.
Não disseram mais nada. Arbuthnot sentia-se talvez envergonhado da
sua explosão de sentimentos.
Mas que comediazinha mais estranha observo eu daqui, disse Poirot
para si próprio, pensativo.
Iria lembrar-se posteriormente daquele pensamento.
Chegaram a Konia nessa noite, cerca das onze e meia. Os dois ingleses
saíram para distender as pernas, caminhando para cá e para lá na plataforma
cheia de neve.
M. Poirot sentia-se feliz por estar a observar a actividade fervilhante da
estação através de uma vidraça fechada. No entanto, cerca de dez minutos
depois, resolveu que uma lufada de ar fresco não seria afinal má ideia. Fez
preparativos cuidadosos, embrulhando-se em vários casacos e abafos e en-
fiando as botas impecáveis em galochas. Assim ataviado, desceu cautelosa-
mente para a plataforma e começou a percorrê-la. Caminhou para lá da lo-
comotiva.
Foram as vozes que lhe chamaram a atenção para os dois vultos indistin-
tos na sombra de um vagão de mercadorias. Arbuthnot estava a dizer:
— Mary…
A rapariga interrompeu-o.
— Agora não. Agora não. Quando tudo tiver passado. Quando tivermos
deixado isto para trás… e então…
M. Poirot afastou-se discretamente, pensativo.
Quase não teria reconhecido a voz fria e segura de Miss Debenham.
Curioso, disse para consigo.
No dia seguinte interrogou-se se os dois não teriam talvez discutido.
Falavam pouco um com o outro. A rapariga pareceu-lhe ansiosa. Tinha
olheiras.
Eram cerca das duas e meia da tarde quando o comboio se deteve. As
cabeças espreitaram para fora das janelas. Um pequeno grupo de homens
amontoava-se junto da linha, a olhar e a apontar para algo debaixo da carrua-
gem-restaurante.
Poirot debruçou-se e falou para o revisor que passava todo apressado.
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CAPÍTULO II
O HOTEL TOKATLIAN
No Tokatlian, Hercule Poirot pediu um quarto com casa de banho. De-
pois dirigiu-se para a portaria e perguntou se havia correspondência. À sua
espera havia três cartas e um telegrama. Ficou surpreendido ao ver o telegra-
ma. Não estava à espera.
Abriu-o com os seus modos elegantes e calmos de sempre. As palavras
impressas destacavam-se claramente.
«Evolução que previu para Caso Kassner aconteceu inesperadamente
por favor voltar imediatamente».
— Voilà ce qui est embêtant — murmurou Poirot, contrariado. Olhou de
relance para o relógio.
— Tenho de partir esta noite — disse ao porteiro. — A que horas parte o
Oriente–Simplon?
— Às nove horas, Monsieur.
— Consegue arranjar-me lugar numa carruagem-cama?
— Com certeza, Monsieur. Nesta altura do ano não haverá dificuldade.
Os comboios estão quase vazios. Primeira ou segunda classe?
— Primeira.
— Très bien, Monsieur. Vai viajar para onde?
— Para Londres.
— Bien, Monsieur. Vou arranjar-lhe passagem para Londres e reservar-
-lhe um compartimento na carruagem-cama Istambul–Calais.
Poirot voltou a dar uma olhadela ao relógio. Eram dez para as oito.
— Tenho tempo para jantar?
— Mas com certeza, Monsieur.
O homenzinho belga acenou com a cabeça. Voltou à recepção para can-
celar a reserva do quarto e atravessou o vestíbulo para o restaurante.
Uma mão pousou-lhe no ombro quando fazia o seu pedido ao empregado.
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— Ah!, mon vieux, mas que prazer inesperado! — disse uma voz atrás
de si.
Era um homem de idade, baixo, robusto, de cabelo cortado en brosse.
Sorria com deleite.
Poirot levantou-se de um salto.
— M. Bouc!
— M. Poirot!
M. Bouc era belga, director da Compagnie Internationale des Wagons Lits,
e a sua amizade com a velha celebridade da Força Policial belga datava de há
muitos anos.
— Está longe de casa, mon cher — disse M. Bouc.
— Um pequeno compromisso na Síria.
— Ah! E quando volta para casa?
— Esta noite.
— Esplêndido! Eu também. Isto é, vou até Lausana, onde tenho uns
compromissos. Presumo que viajará no Oriente–Simplon?
— Sim. Acabei de pedir que me arranjassem uma passagem. Era minha
intenção permanecer aqui por uns dias, mas recebi um telegrama solicitan-
do o meu regresso a Inglaterra para um assunto importante.
— Ah! — suspirou M. Bouc. — Les affaires… les affaires! Mas você… você
agora está bem no topo da carreira, mon vieux!
— Algum pequeno êxito que tive, talvez. — Hercule Poirot tentou
parecer modesto mas falhou rotundamente.
M. Bouc riu.
— Encontramo-nos mais tarde — disse.
Hercule Poirot concentrou-se na operação de manter os bigodes fora da
sopa.
Terminada aquela complicada operação, olhou em redor enquanto
aguardava o prato seguinte. Havia apenas cerca de meia dúzia de pessoas no
restaurante, e dessa meia dúzia só dois lhe interessavam.
Esses dois estavam sentados a uma mesa não muito distante. O mais
novo era um homem bem-parecido de trinta anos, assumidamente america-
no. Não foi ele, no entanto, mas o companheiro que atraiu a atenção do de-
tective.
Era um homem entre os sessenta e os setenta anos. Assim àquela
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— Sim, Monsieur. Mas como lhe disse, não há lugares… não há lugares
em nenhum lado
— Mas que se passa afinal? — exigiu M. Bouc irritado. — Há alguma
conferência em algum lugar? Alguma reunião?
— Não, Monsieur. Foi puro acaso. Acontece que muita gente decidiu
viajar esta noite.
M. Bouc deu um pequeno estalido de enfado.
— Em Belgrado — disse — chega a carruagem-cama que vem de
Atenas. E chega também a de Bucareste–Paris… mas só vamos chegar a
Belgrado amanhã à noite. O problema é para hoje à noite. Não há nenhum
compartimento de segunda classe livre?
— Há um compartimento de segunda classe, Monsieur…
— Bem, nesse caso…
— Mas é um compartimento para senhoras. E já está ocupado por uma
alemã… a dama de companhia de uma senhora.
— Là, là, mas que situação! — disse M. Bouc.
— Não se preocupe, meu amigo — disse Poirot. — Vou ter de viajar
numa carruagem comum.
— Nem pense nisso! Nem pense nisso! — Voltou-se novamente para o
revisor. — Já chegaram todos?
— Bem, a verdade — disse o homem — é que um dos passageiros ainda
não chegou.
Falava devagar, com hesitação.
— Mas diga lá então!
— Compartimento número 7… segunda classe. O cavalheiro ainda não
chegou, e faltam quatro minutos para as nove.
— Quem é ele?
— Um inglês. — O revisor consultou a lista. — Um tal M. Harris.
— Um nome de bom agoiro — disse Poirot. — Conheço bem o meu
Dickens. Esse M. Harris não virá.
— Coloque as bagagens de Monsieur no número 7 — disse M. Bouc. —
Se este M. Harris vier, dir-lhe-emos que chegou demasiado tarde… que os
compartimentos não podem ficar retidos por tanto tempo… De uma
maneira ou de outra arranjaremos as coisas. Que me importa a mim um tal
M. Harris?
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CAPÍTULO III
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assim, suponhamos isso por um instante. Então, todos os que estão aqui tal-
vez ficassem unidos… pela morte.
— Mais vinho! — disse M. Bouc, enchendo o copo apressadamente. —
Que mórbido, mon cher. Deve ser da digestão.
— É verdade — concordou Poirot — que a comida na Síria não era talvez
muito apropriada para o meu estômago.
Bebericou o vinho. Depois recostou-se e correu o olhar pensativo pela
carruagem-restaurante. Estavam ali treze pessoas sentadas, de todas as
classes e nacionalidades, como M. Bouc dissera. Começou a observá-las.
A mesa em frente estava ocupada por três homens. Eram, supôs, viajan-
tes solitários, classificados e colocados ali pelo discernimento infalível dos
empregados da carruagem. Um italiano enorme e moreno palitava os dentes
com entusiasmo. Em frente dele, um inglês magro e elegante exibia o rosto
desaprovador do criado bem treinado. Ao lado do inglês estava um enorme
americano com um fato berrante — provavelmente um caixeiro-viajante.
— Há que pensar em grande — dizia ele numa voz alta e nasalada.
O italiano tirou o palito da boca e pôs-se a gesticular espontaneamente
com ele.
— Certo — disse. — É o qu’eu digo sempre.
O inglês olhou pela janela e tossiu.
Poirot afastou o olhar.
Sentada muito direita a uma pequena mesa estava uma das velhotas
mais feias que alguma vez vira. Mas era uma fealdade com distinção —
fascinava mais do que repelia. Estava sentada muito direita. Tinha à volta do
pescoço um colar de grandes pérolas que, por mais improvável que
parecesse, eram verdadeiras. As mãos estavam cobertas de anéis. O casaco de
zibelina estava pousado sobre os ombros. Um diminuto e caro chapéu preto
contrastava horrivelmente com o seu rosto amarelado de sapo.
Estava agora a falar com o criado num tom claro e cortês mas
completamente autocrático.
— Tenha a amabilidade de colocar no meu compartimento uma garrafa
de água mineral e um grande copo de sumo de laranja. Trate de providenciar
para que esta noite me seja servido ao jantar frango sem qualquer molho… e
também um pouco de peixe cozido.
O criado respondeu respeitosamente que assim faria.
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de água mineral, e que água mais esquisita. Não tinham Evian nem Vichy, o
que me parece esquisito.
— É que… eles têm… como dizer… de servir a água de cá — explicou a
senhora com rosto de ovelha.
— Pois a mim parece-me esquisito. — Olhou com desagrado para o
montinho de trocos sobre a mesa. — Vejam só todas estas coisas esquisitas
que ele me deu. Dinares ou como lhes chamam. Parece-me é um monte de
lixo. A minha filha disse…
Mary Debenham afastou a cadeira e despediu-se das duas senhoras com
uma ligeira vénia. O coronel Arbuthnot levantou-se e seguiu-a. A senhora
americana recolheu aquele dinheiro desprezado e saiu também, logo seguida
pela senhora parecida com uma ovelha. Os húngaros já se tinham retirado. A
carruagem-restaurante estava agora vazia, apenas se encontrando Poirot,
Ratchett e MacQueen.
Ratchett disse qualquer coisa ao companheiro e este levantou-se e saiu.
Ele próprio se levantou depois; mas em vez de seguir MacQueen, deixou-se
afundar inesperadamente no lugar em frente de Poirot.
— Tem a bondade de me dar lume, por favor? — disse. A voz era macia,
levemente anasalada. — Chamo-me Ratchett.
Poirot fez um pequeno aceno com a cabeça. Enfiou a mão no bolso e
retirou uma caixa de fósforos que passou ao outro; este pegou neles mas não
acendeu nenhum.
— Creio — prosseguiu ele — que tenho o prazer de falar com M. Hercule
Poirot. Não é assim?
Poirot acenou novamente com a cabeça
— Informaram-no correctamente, Monsieur.
O detective estava ciente daqueles estranhos olhos astutos que o me-
diam antes de o outro voltar a falar.
— No meu país — disse ele —, vamos directamente ao assunto. Mr.
Poirot, gostava que se encarregasse de um trabalho para mim.
— A minha clientèle, Monsieur, é actualmente muito reduzida. Encarre-
go-me de poucos casos.
— Ora, é natural, compreendo perfeitamente. Mas este, Mr. Poirot, sig-
nifica muito dinheiro. — E repetiu com aquela voz macia e persuasiva:
— Muito dinheiro.
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— Eu também… M. Ratchett.
— O que é que a minha proposta tem de errado?
Poirot levantou-se.
— Vai-me desculpar a franqueza… mas o seu rosto não me agrada, M.
Ratchett — disse.
E abandonou então a carruagem-restaurante.
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CAPÍTULO IV
UM GRITO NA NOITE
O Expresso Oriente–Simplon chegou a Belgrado nessa noite, às 08.45. Só
voltaria a partir às 9.15, e portanto Poirot desceu para a plataforma. Mas não
permaneceu aí por muito tempo. Estava um frio cortante e caía uma neve
pesada lá fora apesar de a plataforma estar resguardada. Regressou ao seu
compartimento. O revisor que estava na plataforma a bater com os pés e a
abanar os braços para se manter quente falou com Poirot.
— As suas malas, Monsieur, foram transferidas para o compartimento
número 1, o compartimento de M. Bouc.
— E onde é que M. Bouc fica então?
— Passou para a carruagem de Atenas que acaba de chegar.
Poirot foi à procura do amigo. M. Bouc rejeitou aqueles protestos com
um gesto da mão.
— Não incomoda nada. Não incomoda nada. É mais conveniente assim.
Você vai directamente para Inglaterra e portanto é preferível que viaje na
carruagem que vai até Calais. Quanto a mim, fico muito bem aqui. É mais
sossegado. Esta carruagem vai vazia, exceptuando eu e um médico grego
baixinho. Ah, meu amigo, que noite! Dizem que não nevava assim há anos.
Esperemos que isso não nos atrase. Isto não me agrada lá muito, garanto-lhe.
O comboio saiu pontualmente da estação às 9.15 e pouco depois Poirot
levantou-se, deu as boas-noites ao amigo e percorreu o corredor regressando
à sua carruagem, que ficava a seguir à carruagem-restaurante.
Neste segundo dia da viagem as barreiras estavam a ser quebradas. O
coronel Arbuthnot estava à porta do seu compartimento a falar com
MacQueen.
MacQueen interrompeu o que estava a dizer ao avistar Poirot. Pareceu
ficar muito surpreendido.
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— Ora esta! — exclamou ele. — Pensei que nos tivesse deixado. Disse
que ia sair em Belgrado!
— Entendeu-me mal — disse Poirot, a sorrir. — Recordo-me de que o
comboio acabava de sair de Istambul precisamente quando falávamos disso.
— Mas, as suas bagagens… desapareceram.
— Foram levadas para outro compartimento, é tudo.
— Oh, estou a ver.
Retomou a conversa com Arbuthnot e Poirot atravessou o corredor.
Duas portas antes do seu compartimento, deparou com a senhora ame-
ricana idosa, Mrs. Hubbard, a falar com a senhora parecida com uma ovelha,
que era sueca. Mrs. Hubbard pressionava a outra para que levasse uma re-
vista.
— Não, tem de a levar, minha querida — disse. — Tenho muitas mais
coisas para ler. Céus, o frio é mesmo assustador, não acha? — Acenou amiga-
velmente com a cabeça na direcção de Poirot.
— É muita amabilidade da sua parte — disse a senhora sueca.
— É com todo o prazer. Espero que durma bem e que de manhã já esteja
melhor da dor cabeça.
— É do frio. Vou preparar uma chávena de chá.
— Tem aspirinas? Tem a certeza, mesmo? Eu tenho muitas. Bem, boa
noite, minha querida.
Voltou-se para Poirot com intenções de entabular conversa mal a outra
se foi embora.
— Pobre senhora, é sueca. Tanto quanto apurei, é uma espécie de missio-
nária… que dá aulas. Boa pessoa, mas pouco fala de inglês. Mostrou-se muito
interessada pelo que lhe contei da minha filha.
Por esta altura já Poirot sabia tudo a respeito da filha de Mrs. Hubbard.
Aliás, sabiam todos aqueles que iam no comboio e entendiam inglês! Como
ela e o marido pertenciam ao corpo docente de um grande colégio
americano em Esmirna, e que esta era a primeira viagem de Mrs. Hubbard ao
Oriente, e o que ela achava dos turcos e dos seus modos desleixados e da
condição das estradas.
A porta ao lado abriu-se e saiu o criado magro e pálido. Poirot conseguiu
ter um vislumbre de Mr. Ratchett sentado na cama. Este viu Poirot e o seu
rosto alterou-se, ensombrando-se de cólera. Depois fecharam a porta.
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CAPÍTULO V
O CRIME
Custou-lhe tornar a adormecer. Antes do mais, sentia a falta do movi-
mento do comboio. Se estavam numa estação, esta estava curiosamente si-
lenciosa. Em contrapartida, no comboio os ruídos pareciam inusitadamente
altos. Conseguia ouvir Ratchett a mexer-se no compartimento ao lado — um
clique quando ele baixava o lavatório, o som da torneira a correr, um ruído de
água a cair, e depois outro clique quando o lavatório foi fechado. Soaram
passos no corredor, os passos arrastados de alguém de chinelos.
Hercule Poirot mantinha-se acordado a olhar para o tecto. Por que razão
a estação lá fora estava tão silenciosa? Sentia a garganta seca. Esquecera-se
de pedir a habitual garrafa de água mineral. Olhou novamente para o relógio.
Apenas uma e um quarto. Chamaria o revisor para lhe pedir água mineral. O
dedo dirigiu-se para a campainha, mas deteve-se pois ouvira um tinido
naquele silêncio. O homem não poderia atender todas as chamadas logo de
imediato.
Trrim… trrim… trrim…
A campainha continuava a retinir. Onde estaria o homem? Quem o
chamava já estava a ficar impaciente.
Trrim…
Quem quer que fosse, mantinha o dedo firmemente no botão.
O homem apareceu então subitamente apressado, com passadas que
ecoavam no corredor. Bateu numa porta não muito afastada da de Poirot.
E então ouviram-se vozes — a do revisor, deferente e submissa, e a de
uma mulher, insistente e loquaz.
Mrs. Hubbard.
Poirot sorriu para si próprio.
A altercação — se era mesmo uma altercação — durou algum tempo,
numa proporção em que noventa por cento se devia a Mrs. Hubbard, contra
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— Oh, não. Não, certamente que não. Conheço alguém muito mais forte
do que eu.
— E essa pessoa é…?
Ela pareceu de súbito voltar à realidade, dando-se então conta de que
estava a falar com um estranho, um estrangeiro, com quem apenas trocara
meia dúzia de frases até àquela manhã.
Deu uma risada cortês mas distante.
— Bem… aquela senhora idosa, por exemplo. Provavelmente já reparou
nela. Uma senhora muito feia, mas fascinante. Basta-lhe levantar o dedo e
pedir o que quer que seja com uma voz educada… que põe logo toda a gente
no comboio a mexer-se.
— Acontece o mesmo com o meu amigo, M. Bouc — disse Poirot. —
Mas isso é porque é um dos directores da companhia, e não porque tenha
uma personalidade que se impõe.
Mary Debenham sorriu.
A manhã foi decorrendo. Muitos dos passageiros permaneceram na
carruagem-restaurante, entre eles Poirot. Sentiam que o tempo passaria me-
lhor estando juntos. Ouviu um pouco mais sobre a filha de Mrs. Hubbard e
sobre os hábitos em vida do falecido Mr. Hubbard: desde que se levantava da
cama e começava o pequeno-almoço com cereais, até ir descansar à noite,
com as meias que a própria Mrs. Hubbard costumava tricotar-lhe.
Enquanto escutava um confuso relato dos propósitos missonários da
senhora sueca, um dos revisores entrou na carruagem e aproximou-se de
Poirot.
— Pardon, Monsieur.
— Sim?
— Cumprimentos de M. Bouc, que lhe agradecia a bondade de ir ter com
ele dentro de minutos.
Poirot levantou-se, pediu licença à senhora sueca e seguiu o homem para
fora da carruagem.
Não era o revisor da sua própria carruagem, mas um homem gordo e
aloirado.
Seguiu-o pelo corredor da sua própria carruagem e depois através do
corredor da seguinte. O homem bateu a uma porta e afastou-se para deixar
Poirot entrar.
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inusitadas. Eis-nos aqui, a braços com uma paragem forçada. Podemos ficar
horas… e até mais do que horas… dias! Uma outra circunstância: na maioria
dos países por que passamos, a polícia nacional embarca sempre no com-
boio. Mas na Jugoslávia… não. Compreende?
— É uma situação bem melindrosa — disse Poirot.
— Mas ainda há pior. O Dr. Constantine… Já me esquecia, não o apre-
sentei… Dr. Constantine, M. Poirot.
O homenzinho moreno fez uma pequena vénia com a cabeça e Poirot re-
tribuiu.
— O Dr. Constantine é da opinião de que a morte sucedeu por volta da
uma da madrugada.
— É difícil precisar exactamente nestes casos — disse o médico —, mas
julgo poder afirmar com segurança que a morte ocorreu entre a meia-noite e
as duas da madrugada.
— Quando é que este M. Ratchett foi visto com vida pela última vez?
— Sabe-se que ainda estava vivo cerca das vinte para a uma, quando
falou com o revisor — disse M. Bouc.
— Sim, é verdade — disse Poirot. — Eu próprio ouvi o que se estava a
passar. E isso é a última coisa que se sabe?
— Sim.
Poirot voltou-se para o médico, que prosseguiu:
— A janela do compartimento de M. Ratchett foi encontrada comple-
tamente aberta, o que nos leva a supor que o assassino fugiu por ali. Mas, na
minha opinião, essa janela aberta é para nos tapar os olhos. Quem quer que
tivesse saído por ali, teria deixado rastos bem nítidos na neve. E não havia
nenhuns.
— O crime foi descoberto… quando? — perguntou Poirot.
— Michel!
O revisor levantou-se. O rosto ainda parecia pálido e assustado.
— Conte a este cavalheiro o que aconteceu exactamente — ordenou M.
Bouc.
O homem respondeu com uma voz trémula.
— O criado deste M. Ratchett, ele bateu várias vezes à porta esta manhã.
Não houve resposta. E então, há cerca de uma hora, veio o empregado da
carruagem-restaurante. Queria saber se Monsieur ia tomar o déjeuner. Eram
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onze horas, como deve compreender. Abro-lhe a porta com a minha chave.
Mas há também uma corrente, que está posta. Ninguém responde e está
tudo muito silencioso, e frio… tão frio! Com a janela aberta e a neve a entrar.
Pensei que o cavalheiro talvez tivesse tido um ataque. Fui buscar o chef de
train. Quebrámos a corrente e entrámos. Ele estava… Ah! c’était terrible!
Enterrou novamente o rosto nas mãos.
— A porta estava fechada e com a corrente posta por dentro — disse
Poirot, pensativamente. — Não foi suicídio… hã?
O médico grego deu uma risada sardónica.
— Já viu um homem suicidar-se infligindo a si próprio dez… doze…
quinze punhaladas? — perguntou.
Os olhos de Poirot abriram-se mais.
— Mas que grande ferocidade! — disse.
— É uma mulher — disse o chef de train, falando pela primeira vez. —
Pode ter a certeza, foi uma mulher. Só uma mulher é que apunhalaria assim.
O Dr. Constantine contraiu o rosto pensativo.
— Teria de ser uma mulher mesmo muito forte — disse. — Não é minha
intenção usar termos técnicos, só servem para confundir, mas posso assegu-
rar-lhes que um ou dois golpes foram desferidos com tal força que conse-
guiram penetrar através de duras camadas de osso e músculo.
— Não foi, claramente, um crime científico — disse Poirot.
— Foi mesmo bastante anticientífico — disse o Dr. Constantine. — Os
golpes parecem ter sido desferidos ao acaso e aleatoriamente. Alguns foram
apenas de raspão, quase não causando dano. É como se alguém tivesse
fechado os olhos e golpeasse freneticamente às cegas uma e outra vez.
— C’est une femme — disse o chef de train novamente. — As mulheres
são assim. Quando estão enfurecidas têm uma força incrível. — Abanou a
cabeça com tais ares de entendido que todos suspeitaram que ele passara já
por uma experiência pessoal assim.
— Sei de uma coisa que talvez possa contribuir para o vosso conheci-
mento da situação — disse Poirot. — M. Ratchett falou comigo ontem. Tanto
quanto fui capaz de entender, contou-me que a sua vida corria perigo.
— «Despacharam-no». É esse o termo americano, não é? — disse M.
Bouc. — Então não se trata de uma mulher. Mas de um criminoso ou de um
«atirador profissional».
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O chef de train pareceu ficar desolado por a sua teoria ter dado em nada.
— Sendo assim — disse Poirot —, parece que foi feito por um amador.
O seu tom exprimia desaprovação profissional.
— Há um americano alto no comboio — disse M. Bouc, perseguindo a
sua ideia —, um homem de aspecto normal, com roupas horríveis. Masca
chicletes, o que, creio, não se faz nos bons círculos. Sabe a quem me refiro?
O revisor interpelado anuiu.
— Oui, Monsieur, o número 16. Porém, não pode ter sido ele. Eu tê-lo-ia
visto a entrar ou a sair do compartimento.
— Talvez não tivesse visto. Talvez não tivesse. Mas voltaremos a isso
daqui a pouco. A questão é: que fazer? — Olhou para Poirot.
— Então, meu amigo — disse M. Bouc. — Já deve ter compreendido o
que lhe vou pedir. Conheço as suas capacidades. Assuma esta investigação!
Não, não, não recuse. Sabe, para nós é grave… e estou a falar-lhe em nome da
Compagnie Internationale des Wagons Lits. Na altura em que a polícia jugos-
lava chegar, quão simples seria se pudéssemos apresentar-lhes logo a solução!
De outro modo, atrasos, aborrecimentos, mil e um incómodos. E talvez,
quem sabe, sérios incómodos para pessoas inocentes. Em vez disso… você
resolve o mistério! Nós diremos apenas: «Ocorreu um crime — aqui têm o
assassino!».
— Mas suponhamos que eu não o resolvo?
— Ah! Mon cher. — A voz de M. Bouc tornou-se absolutamente afec-
tuosa. — Conheço a sua reputação. Conheço os seus métodos. Este é o caso
ideal para si. Verificar os antecedentes de toda esta gente, descobrir as suas
bona fides, tudo isso custa tempo e incómodos infindáveis. Mas por acaso
não o ouvi dizer já muitas vezes que para se resolver um caso uma pessoa só
tem de se recostar na cadeira e pensar? Faça isso. Interrogue os passageiros
do comboio, observe o corpo, examine os indícios que há e depois… bem, eu
confio em si! Tenho a certeza de que isso não será indolência da sua parte.
Recoste-se e pense… use (como já o ouvi dizer amiudadamente) as pequenas
celulazinhas cinzentas do cérebro… e então descobrirá!
Inclinou-se para a frente, olhando com afeição para o amigo.
— A sua fé comove-me, meu amigo — disse Poirot, emocionado. —
Como você diz, não será um caso assim tão difícil. Eu mesmo, na noite
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passada… mas não vamos falar disso agora. Na verdade, este problema intri-
ga-me. Estava eu a pensar, ainda não há meia hora, que tínhamos pela frente
muitas horas de tédio enquanto ficássemos aqui parados. E agora… tenho
um problema mesmo à mão.
— Aceita então? — disse M. Bouc, com sofreguidão.
— C’est entendu. Deixe o assunto nas minhas mãos.
— Muito bem, estamos todos ao seu dispor.
— Para começar, gostaria de ter uma planta da carruagem Istambul–
–Calais, com a relação das pessoas que ocuparam os vários compartimentos,
e também gostaria de ver os respectivos passaportes e bilhetes.
— Michel encarregar-se-á disso.
O revisor saiu do compartimento.
— Quais são os outros passageiros do comboio? — perguntou Poirot.
— Nesta carruagem, o Dr. Constantine e eu somos os únicos passageiros.
Na carruagem de Bucareste viaja um velho cavalheiro coxo. O revisor conhe-
ce-o bem. Depois há as carruagens normais, mas estas não nos interessam,
pois foram fechadas depois do jantar de ontem. À frente da carruagem
Istambul–Calais há apenas a carruagem-restaurante.
— Parece-me então — disse Poirot, lentamente — que vamos ter de pro-
curar o nosso assassino na carruagem Istambul–Calais. — Voltou-se para o
médico. — Era o que o senhor estava a sugerir, presumo?
O grego assentiu.
— À meia-noite e meia ficámos detidos na neve. Ninguém pôde sair do
comboio desde então.
M. Bouc disse com solenidade:
— O assassino está entre nós… está no comboio neste momento.
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