SANTANNA, Alice. Rabo de Baleia
SANTANNA, Alice. Rabo de Baleia
SANTANNA, Alice. Rabo de Baleia
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Para meus avós
UM ENORME RABO DE BALEIA
cruzaria a sala neste momento
sem barulho algum o bicho
afundaria nas tábuas corridas
e sumiria sem que percebêssemos
no sofá a falta de assunto
o que eu queria mas não te conto
era abraçar a baleia mergulhar com ela
sinto um tédio pavoroso desses dias
de água parada acumulando mosquito
apesar da agitação dos dias
da exaustão dos dias
o corpo que chega exausto em casa
com a mão esticada em busca
de um copo d’água
a urgência de seguir para uma terça
ou quarta boia, e a vontade
é de abraçar um enorme
rabo de baleia seguir com ela
trem noturno
1.
caminhávamos na estrada de terra
o dono da casa apoiado
numa bengala de madeira
parou e apontou para o lago
onde uma árvore seca continua seca
desde que compraram a fazenda
lá se vão trinta anos a árvore
seca no meio do lago
2.
aqui dá muita formiga saúva, s. disse
a verdadeira praga do brasil (quem disse?)
a formiga rainha é maior que as outras
e todas dependem dela de suas ordens
quando ela morre todas as outras morrem
por isso a melhor solução pra acabar com a praga
é matar a rainha
ela já nasce rainha?
como as outras são capazes de reconhecê-la?
s. não soube responder ou se distraiu
esmagando um inseto
com a ponta da bengala
3.
quando m. foi cumprimentar
a dona da casa ela falou surpresa
que ele era a cara do harry potter
vou chamar um mágico, ela gritou
e tomou a agenda o telefone
convidou-o para o dia seguinte
ainda que já fosse tarde da noite
todos sentados na sala de jogos às oito
em ponto à espera do mágico que vinha
de petrópolis
4.
era duro ver aqueles truques tão de perto
d. tentava a qualquer custo desmascará-lo
olhava cheia de olhos, deve haver algo
entre as mangas
jura que a bolinha vermelha
estava escondida no bolso do paletó
mas ninguém acreditava, a bola
surgiu do nada mesmo, o truque da carta
aparecer dentro do limão, como pode?
depois voltamos para a sala de jantar
vovó não estava com força
nas pernas, eu e g. a conduzimos
pelo caminho de pedras cada uma
segurava um braço
5.
o nome do cavalo era mistério
não contei nem a g. nem a l. a aranha
pendurada no teto
em um fio invisível a aranha
sobre nossas cabeças
poderia pôr tudo a perder
se bem que eles já eram craques
corriam na trilha de barro e aos poucos
éramos deixados pra trás: eu e mistério
galopávamos a toda para alcançá-los
o sol era forte e me deixou
a marca da camisa
winnipeg, mon amour
nós sonâmbulos
nos esbarramos em algum
ponto na sibéria
ou na suécia, onde as horas
de sol são preciosas
não acordo nunca
desse mesmo sono, o molho
de chaves nas mãos
sento na cadeira da sua sala
devo beber café ou jogar
dominó (como os olhos dos nenéns
os meus nunca registram
o que está se passando)
te pergunto se quer dançar
esta última música, comento
deve estar quente no rio
A ARANHA SE ESCONDIA
atrás da parede como que
para dar o bote
a projeção da sombra as pernas
contorcidas quase troncos
de uma árvore nascendo do chão e do teto
lúgubre lúgubre mais que lúgubre
o susto me recomendava
a correr tomar um táxi
mas ao mesmo tempo me forçava
a caminhar lentamente em torno da aranha
e olhar bem de perto
do que é feita (aço maciço): material do medo
me aproximar das pontas
das pernas que não são pés
lanças apontadas para o chão
que a qualquer momento se desgarram
e enlaçam a presa, têm vida própria
os tentáculos de aranha
eu sozinha com ela
não espantaria ninguém
se ela sumisse comigo
A SANDÁLIA NOVA BRANCA COM DEDOS
que se refestelam do lado de fora
como crianças que sabem o verão que vem
de repente a chuva míngua os planos
da calça jeans com sandália de dedo
uma combinação entre-estações
para não se sentir nem tão lá nem tão
cá os dedos curvados corcundas feito crianças tristes
as unhas recém-cortadas que planejaram
se mostrar sobre a cadeira de rodinhas
mas que nada a água inundou a sexta
da janela os bambus se movem muito
chegam a parecer desesperados
as folhas penduradas são cabelos colados
que gritam novas rugas onde nada havia
QUE MÁ IDEIA OS LADRILHOS E O VASO E A PIA
de um azul-marinho que não se vê o fundo
espera o bule de chá no salão
com o dedo indicador roça o umbigo, queria
descascar a pele do umbigo na fresta entre
os botões do casaco e da camisa. impossível não
pensar na briga que viu há pouco
no porto de montevidéu: duas mulheres
se engalfinhavam na porta de um táxi, quando olhou
da primeira vez achou que uma estava salvando
a outra de um infarto, uma adolescente
na calçada gritava aos prantos
mas como apartar a briga se talvez não fosse
o caso, se talvez fossem duas desconhecidas
ou por que não duas irmãs
depois de uma revelação catastrófica? o bule
quente demais amarga o chá
a segunda caneca se despeja escura
amarga quase café
sentiu muito frio na passarela diante dos carros
que zuniam na onda verde por baixo dos pés
depois caminhou até a farmácia e procurou
creme para os olhos
um que não desse coceira, se bem que
na dúvida entre rugas ou cegueira
ficaria com as rugas
disso tinha certeza. as bochechas
descascavam no frio, não teria
camisas limpas
até o fim da viagem
OS BRAÇOS, AS PERNAS
doloridos
da primeira semana de balé
já tardia, não tem mais idade
pra começar
por isso mesmo talvez seja hora
de arriscar o pé em ponta
na água fria, a primeira braçada
sem o tutu, o coque
sem a meia-calça
que, diria, pinica
agora já não tem desculpa
ao lado da menina de rosa
que é toda movimentos perfeitos
não receberia nenhuma correção
em sua postura de quem dançou
toda a vida
e ela ali desengonçada
a camisa amarela que leva um touro
vermelho e a palavra españa
uma bermuda de ginástica
que há muito estava guardada
a essa altura
quando armando e ana se
conheceram
subir os degraus
de carpete pela primeira vez
carregada de malas
com todas as roupas, as cartas
fazer daqui minha nova casa
às cinco da manhã me apresento
o voo foi longo, não durmo
faz dois dias
a nova mãe me recebe
de casaco vermelho
e cabelos de ontem
pede que eu não faça barulho
para não acordar julie
a bebê ruiva que conheci
nas fotos. o brasil
ah, o brasil, lá deve ser nice and warm
este aqui é o seu quarto
não abra a janela por causa do frio
as roupas de cama ficam neste
armário, jantamos juntos às seis
você pode ver tevê quando não
estivermos no sofá, você pode
se servir na geladeira
só peço que não tome as nossas
coisas, o leite de julie
minhas frutas, a faca
deve ficar virada para baixo
na máquina de lavar
para não furar o dedo do aaron
depois conversamos melhor
ela com esse sotaque engraçado
fala bem devagar como se eu
fosse uma criança, como se
eu fosse a julie
now go get some sleep
DENTE QUE BATE NA LOUÇA E TRINCA
a língua apalpa por detrás
procurando indício de rachadura
na porcelana
desliza na borda da gengiva
o chá ainda quente na boca
incisivos erguidos como prédios
mas frágeis feito xícara
casca de ovo
a asa não se firma entre os dedos
quer escorregar e se colar à sombra
aquele dia
você tão distante
preparou um bolo de laranja
mas tropeçou
no ingrediente: a turma toda
que esperou ansiosa
cuspiu na pia
farinha que era sal
açúcar que era fermento
o gosto intragável
e o seu choro em público, mal
conseguia se explicar
nem na própria língua
muito menos praqueles gringos
que não entendem nada
nem abraçar eles sabem
benjamin
1.
m. então respondeu
que era possível acessar
a rádios do mundo todo
em seu celular. atravessamos
a ponte num sábado
frio e abobadado de junho
enquanto n. baixava a janela
do carro para fumar
quando alcançávamos
o pedágio todos dançavam
a música dos mariachis
e n. enrolou a língua
para perguntar em espanhol
o preço, dois e setenta
muchas gracias muchacho
ainda faltava um bocado
para chegar
à esquerda depois
do queijão
2.
formamos a quadrilha
numa roda
a perder de vista
no meio da dança joguei
os casacos e o cachecol de lã
na grama, suava. depois c.
apostou que era capaz
de pular a fogueira e pulou mesmo
mas o flash não acionou
no instante. quando
estávamos na mesa de doces
veio um menino perguntar a m.
se tinha dançado, e com quem, e aí
o menino retrucou que dançou com d.
uma menina que acabara de inventar
ele mesmo disse isso
que acabara de inventar
e todos riram sem graça porque ele
engrossou a voz, ficou bravo mesmo
e desamparado m. se sentiu
terrivelmente culpado ou fora
do lugar ou as duas coisas
NÃO SE PODE FICAR À VONTADE
numa cidade com tantos cemitérios
b. nos leva para passear de carro
no banco da frente acho estranho como se pode
viver numa rua chamada luminárias
fico todo o tempo em alerta
nosso encontro inesperado
tanta gente em volta e eu nem me preparei
de repente ela me olha num misto de curiosidade
e passe longe
cabelos longos mechas louras
eu não sou daqui
olho demais
não é bem vontade o que tenho
mas tampouco é falta de vontade
meu assassino
1.
veio, mas esqueceu as calças
o micro-vestido que deixa
as coxas quase inteiras nuas, a sueca
entra na sala
mal o professor abre a pasta,
tira os óculos escuros e o ipod
bonjour, ela diz
aquele sorriso às nove e três
por pouco não perde a chamada
senta ao lado do americano
que afasta a cadeira atento às pernas
o professor retribui o sorriso
e começa mais um dia: a chamada
em ordem alfabética
pelo sobrenome
não acerta nunca o nome da chinesa
que virou clara para simplificar
ele diz algo incompreensível
e levanta a cabeça esperando aprovação
no que a chinesa corrige:
pode me chamar de clara
2.
acabado o ritual, entra o mexicano
sempre atrasado com sua garrafa
térmica azul-marinho
abre a porta, desculpe o atraso
se eu chegasse a essa hora
na cidade do méxico
o professor nem por nada
me deixaria entrar, me reprovaria
em três atrasos
na cidade do méxico
nunca mais poderia me matricular
em aula alguma
entrar em estabelecimento algum
ter futuro
na cidade do méxico
3.
o professor responde
que não tem problema
é só não chegar
atrasado amanhã (todo mundo
sabe que vai chegar)
mas por que diabos você chega
tarde todos os dias?
o menino não se envergonha
por nada (eu já afundada na cadeira)
diz que está testando
todas as maneiras de transporte possíveis
para chegar à faculdade
da cidade universitária
o professor explica: basta pegar o rer
linha b, parar em chatelet
em seguida trocar para a linha quatro
não tem erro
em vinte minutos você chega
4.
o mexicano parece muito agradecido
sorri como um japonês
diz que vai tentar isso amanhã
sem falta chega antes das nove
SAIU DE LÁ PARA SEMPRE
sem saber de que serviam os sapatos
pendurados nos cabos de eletricidade
pelos cadarços, agora as pernas
ficam sempre enroladas de um modo que a engenharia
não seria capaz de reproduzir
toma água gelada na mesma caneca
que o chá pelando e se pergunta
se não era uma brincadeira de criança
jogar os sapatos para o alto dos fios
ou se seriam traficantes anunciando o ponto
mas como, numa cidade tão arrastada? as pernas
feito cadarços, a pele eriçada pelo ar-condicionado
quando se esforça para lembrar como era
só consegue pensar nas tardes longas e claras
nem as nuvens tinham pressa
mesmo em território vulcânico
as placas pacatas
ALICE SANT’ANNA nasceu em 24 de maio de 1988, no Rio.
Estreou em 2008 com o livro de poesia Dobradura (7
Letras). Lançou duas publicações independentes:
Bichinhos de luz (2009) e Pingue-Pongue (2012), este em
coautoria com Armando Freitas Filho.
Agradeço imensamente a Heloisa Jahn, Armando Freitas
Filho, Heloisa Buarque de Hollanda, Mariano Marovatto,
Marília Garcia, Ismar Tirelli Neto, Chacal, Patricia Veiga,
Patricia Carvalho, Catarina Flaksman, Carolina Frossard,
Luisa Borja, Winnie Hagemeyer, Miguel Del Castillo,
Emilio Fraia, Cassiano Elek Machado, Bruna Beber, Ana
Guadalupe, meus pais, minha irmã, família e amigos.
© Cosac Naify, 2013
© Alice Sant’Anna, 2013