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SANTANNA, Alice. Rabo de Baleia

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Para meus avós
UM ENORME RABO DE BALEIA
cruzaria a sala neste momento
sem barulho algum o bicho
afundaria nas tábuas corridas
e sumiria sem que percebêssemos
no sofá a falta de assunto
o que eu queria mas não te conto
era abraçar a baleia mergulhar com ela
sinto um tédio pavoroso desses dias
de água parada acumulando mosquito
apesar da agitação dos dias
da exaustão dos dias
o corpo que chega exausto em casa
com a mão esticada em busca
de um copo d’água
a urgência de seguir para uma terça
ou quarta boia, e a vontade
é de abraçar um enorme
rabo de baleia seguir com ela
trem noturno

nós três rimos muito na cabine e nos assustamos quando


o vagão para em uma estação erma, sem gente nos
bancos, sem despedidas, o olhar duro do fiscal que
dorme sozinho toda noite, o fiscal em sua cabine, sem
casa ou mulher, espécie de marinheiro que não embarca
em navio algum, que não fica a sós com horizonte algum,
mas muito pior, esse fiscal que não pode se perder, está
bem firme nos trilhos, em sua rota veneza-budapeste,
que se estende por treze horas sem tirar nem pôr, o
fiscal que nos recomenda trancar as três fechaduras da
cabine, primeiro a de cima e em seguida a do meio, e
nós achamos graça de tudo porque ninguém nos levou à
estação ou nos espera na plataforma, não conhecemos
absolutamente ninguém por estas bandas e por isso
mesmo tudo é tão assustador e leve ao mesmo tempo,
esse papel com frases em húngaro, algum comando
incompreensível que não vamos seguir, as três com os
olhos bem abertos fingindo para as outras que estão em
sono profundo, quando na verdade as ideias dançam e
trocam a ordem dos móveis na cabeça, se bem que
provavelmente o único que dorme em todo o trem deve
ser o fiscal, ou nem ele, duro que é, talvez prefira
fantasiar com ondas gigantes, maremotos
O POSTAL DE CLARA ME ALCANÇOU
quando os helicópteros rondavam o prédio
duas da manhã e todos dormiam
apenas o zumbir das hélices
festejava a chegada
do céu iluminado de hong kong
que numa foto noturna se coloriu
de arranha-céus ansiosos pela vinda do ferry boat
que abarcaria depois de uma passagem
lenta, tranquila
diferentemente da sirene que embala
o sono dos moradores do meu bairro
clara não conseguiria entender
o rumor das hélices, seriam abelhas
de um país tropical?
ou outro inseto, talvez mais robusto?
como explicar o voo para clara?
A NOITE UM BLOCO
de madeira pintado de preto
fecha os olhos e tenta se aproximar
perceber seu tamanho, profundidade
se tem cheiro se é maciço
sem porta para entrar ou sair
o modo como a luz bate
suave, meia-luz, a mínima
necessária para se ver o bloco
se não fosse por ela o bloco
mal existiria, seria tudo um mesmo escuro
sem contorno entre montanha
seus pés e meio-fio, o bloco
cabe no seu quarto em cima da cama
ainda sobra algum espaço nas laterais
uma nesga de lençol, mas não
o suficiente para caber
ela também
os primos

era número 48 a casa amarela


uma escadinha e uma árvore
bem pequena na varanda
que de vez em quando dava jabuticaba
tão mirrada que nem em faz de conta a gente
sentia gosto de fruta
todo dia era dezembro na rua
miguel pereira mesmo quando chovia mesmo
naquele dia do tombo
de patinete o meu grito ecoando
e o seu espanto até quando a gente
discordava da cor de certas tardes ou quando
aprendeu junto a deslizar nas bicicletas
alguma coisa sempre escurecia
de noite uma vontade de ficar um pouco mais
os carros dos pais que chegavam
como besouros lentos e gordos
os carros que não deviam
não podiam
HÁ AQUILO QUE FICA FIRME (UM POSTE)
e não comove e há o que se mexe (uma árvore)
e faz barulho e chega a parecer um polvo com tentáculos
tentando agarrar as nuvens, ao contrário
das montanhas muito firmes
e sérias e certas de onde estão
mas há também o que se movimenta
rápido demais na moldura da janela: um pássaro
sempre pode ser uma andorinha ou uma águia
e um avião nunca sabemos
de onde parte para onde segue
A ÁGUA TRANSBORDAVA DA PIA
para lavar bem lavadas as cerejas
fora de época (caras demais)
com os fones ouvia a respiração alta
na cozinha de uma estranha
nota que os anéis mais parecem
engrenagens que anéis
as engrenagens nos dedos uma máquina
fecha os olhos por alguns minutos
sente a água molhando o aço a fruta
enferrujar as cerejas (tão caras)
a boca um risco que quase sorri
a distração do metal gelado na casca
não sabe se o que ouve é eco
ou sua própria voz distante
a dona da casa pergunta se está cantando
por que está cantando tão cedo?
achava que estivesse muda
a respiração alta
titina

1.
caminhávamos na estrada de terra
o dono da casa apoiado
numa bengala de madeira
parou e apontou para o lago
onde uma árvore seca continua seca
desde que compraram a fazenda
lá se vão trinta anos a árvore
seca no meio do lago

2.
aqui dá muita formiga saúva, s. disse
a verdadeira praga do brasil (quem disse?)
a formiga rainha é maior que as outras
e todas dependem dela de suas ordens
quando ela morre todas as outras morrem
por isso a melhor solução pra acabar com a praga
é matar a rainha
ela já nasce rainha?
como as outras são capazes de reconhecê-la?
s. não soube responder ou se distraiu
esmagando um inseto
com a ponta da bengala

3.
quando m. foi cumprimentar
a dona da casa ela falou surpresa
que ele era a cara do harry potter
vou chamar um mágico, ela gritou
e tomou a agenda o telefone
convidou-o para o dia seguinte
ainda que já fosse tarde da noite
todos sentados na sala de jogos às oito
em ponto à espera do mágico que vinha
de petrópolis

4.
era duro ver aqueles truques tão de perto
d. tentava a qualquer custo desmascará-lo
olhava cheia de olhos, deve haver algo
entre as mangas
jura que a bolinha vermelha
estava escondida no bolso do paletó
mas ninguém acreditava, a bola
surgiu do nada mesmo, o truque da carta
aparecer dentro do limão, como pode?
depois voltamos para a sala de jantar
vovó não estava com força
nas pernas, eu e g. a conduzimos
pelo caminho de pedras cada uma
segurava um braço

5.
o nome do cavalo era mistério
não contei nem a g. nem a l. a aranha
pendurada no teto
em um fio invisível a aranha
sobre nossas cabeças
poderia pôr tudo a perder
se bem que eles já eram craques
corriam na trilha de barro e aos poucos
éramos deixados pra trás: eu e mistério
galopávamos a toda para alcançá-los
o sol era forte e me deixou
a marca da camisa
winnipeg, mon amour

nós sonâmbulos
nos esbarramos em algum
ponto na sibéria
ou na suécia, onde as horas
de sol são preciosas
não acordo nunca
desse mesmo sono, o molho
de chaves nas mãos
sento na cadeira da sua sala
devo beber café ou jogar
dominó (como os olhos dos nenéns
os meus nunca registram
o que está se passando)
te pergunto se quer dançar
esta última música, comento
deve estar quente no rio
A ARANHA SE ESCONDIA
atrás da parede como que
para dar o bote
a projeção da sombra as pernas
contorcidas quase troncos
de uma árvore nascendo do chão e do teto
lúgubre lúgubre mais que lúgubre
o susto me recomendava
a correr tomar um táxi
mas ao mesmo tempo me forçava
a caminhar lentamente em torno da aranha
e olhar bem de perto
do que é feita (aço maciço): material do medo
me aproximar das pontas
das pernas que não são pés
lanças apontadas para o chão
que a qualquer momento se desgarram
e enlaçam a presa, têm vida própria
os tentáculos de aranha
eu sozinha com ela
não espantaria ninguém
se ela sumisse comigo
A SANDÁLIA NOVA BRANCA COM DEDOS
que se refestelam do lado de fora
como crianças que sabem o verão que vem
de repente a chuva míngua os planos
da calça jeans com sandália de dedo
uma combinação entre-estações
para não se sentir nem tão lá nem tão
cá os dedos curvados corcundas feito crianças tristes
as unhas recém-cortadas que planejaram
se mostrar sobre a cadeira de rodinhas
mas que nada a água inundou a sexta
da janela os bambus se movem muito
chegam a parecer desesperados
as folhas penduradas são cabelos colados
que gritam novas rugas onde nada havia
QUE MÁ IDEIA OS LADRILHOS E O VASO E A PIA
de um azul-marinho que não se vê o fundo
espera o bule de chá no salão
com o dedo indicador roça o umbigo, queria
descascar a pele do umbigo na fresta entre
os botões do casaco e da camisa. impossível não
pensar na briga que viu há pouco
no porto de montevidéu: duas mulheres
se engalfinhavam na porta de um táxi, quando olhou
da primeira vez achou que uma estava salvando
a outra de um infarto, uma adolescente
na calçada gritava aos prantos
mas como apartar a briga se talvez não fosse
o caso, se talvez fossem duas desconhecidas
ou por que não duas irmãs
depois de uma revelação catastrófica? o bule
quente demais amarga o chá
a segunda caneca se despeja escura
amarga quase café
sentiu muito frio na passarela diante dos carros
que zuniam na onda verde por baixo dos pés
depois caminhou até a farmácia e procurou
creme para os olhos
um que não desse coceira, se bem que
na dúvida entre rugas ou cegueira
ficaria com as rugas
disso tinha certeza. as bochechas
descascavam no frio, não teria
camisas limpas
até o fim da viagem
OS BRAÇOS, AS PERNAS
doloridos
da primeira semana de balé
já tardia, não tem mais idade
pra começar
por isso mesmo talvez seja hora
de arriscar o pé em ponta
na água fria, a primeira braçada
sem o tutu, o coque
sem a meia-calça
que, diria, pinica
agora já não tem desculpa
ao lado da menina de rosa
que é toda movimentos perfeitos
não receberia nenhuma correção
em sua postura de quem dançou
toda a vida
e ela ali desengonçada
a camisa amarela que leva um touro
vermelho e a palavra españa
uma bermuda de ginástica
que há muito estava guardada
a essa altura
quando armando e ana se
conheceram

passou a usar tênis depois que ela disse


que lhe caíam bem os tênis
com uma pequena argola branca
cobrindo aquele osso do pé como se chama
ela própria sempre em seu par fúcsia
não era bem rosa era mais
cor de morango
esperava na ponte perto do pilotis
vestia sempre cores fortes e cabelos
enquanto as outras naquela época em seus coques
tão polidas
um anel bruto que ela tinha e não tirou dos dedos
perguntou se ele queria ficar com o anel
era grande de prata imagino unissex
que ele gostava de rodar quando se encontravam
rodar o anel no ar
mas não quis ficar com ele ou talvez
não tenha entendido a urgência da pergunta
feita assim como quem
não quer nada
o anel que talvez tivesse ficado guardado
em uma caixa de joias e enferrujasse
esquecido de tão precioso ou pelo contrário se
arranhasse
com o uso diário é possível
que ainda não tenham inventado
uma maneira eficiente de se conservar
anéis ou argolas do tênis
prata de um azul-celeste ou era fúcsia
TRAVELLING –
este papel só serve para ocupar
o banco do lado, poema-carona
em que se resume uma impressão
a um esqueleto, uma frase, uma fórmula
e quando ela brota, igualzinha, na vez seguinte
não precisa mais sentir nenhuma dor
lembra daquele poema
que diz a sereia de papel
e pronto, já aprendi
essa rua que sobe em curva
lá de cima pipocam casas onde você nunca
vai morar, mesmo que more, na lateral
os carros te atravessam em câmera lenta
tudo o que há nesta cidade é um ponto
de ônibus em frente ao supermercado
onde se vendem ovos para bater
suspiro na cintura, a manga arregaçada
pavlova nas datas especiais
ausência

tenho te escrito com calma


cartas em um caderno azul
arranco da espiral e não posto
por preguiça ou nem morta
tenho medo da espera
durante dias ou semanas um animal horrível
(espécie de raposa) vai me perseguir
por dentro, ou serei eu mesma
(um rato?) a me roer
enquanto a resposta não chega
perco muito tempo tentando
dar nomes aos bichos
que sobem a cortina do quarto
COM MEDO DE ANESTESIA E DE AGULHA
e de dor, foi direto para a faca
dois cortes na barriga e um na têmpora
uma porção de pontos internos e externos
curativos com mancha de sangue de pintas que brotam
e se instalam e viram definitivas, mas eis que
são perigosas, ou talvez não sejam
e portanto é preciso escavar, o que já faz
de um mero sinal um corpo estranho no corpo
uma pinta que é profunda e se alonga
e deixa só a ponta da pedra
visível, uma pinta que pode ser qualquer
outra coisa que não uma pinta, e as constelações
se multiplicam, novos planetas ou meteoros
que se alinham sem explicação
já diagramados no tecido como se estivessem lá
desde sempre e para sempre
e eis que quando apagados em questão de minutos
deixam na pele
cicatrizes das órbitas
A ENORME BOLA BRANCA
entrou manchando toda
a sala de branco
de luz do inverno
que não esquenta, mas se não
sentíssemos nada não usaríamos casacos
pois a luz já convenceria do calor

aqui nesta casa a luz entra


por trás de bambus
bambus amarelos, alguns pendem
e as folhas pairam no ar, às vezes
mexem para provar que não são fotografia

tem dias que a arrumadeira


por descuido deixa a porta do banheiro aberta
quando vai tratar de outra coisa
em outro canto, a porta aberta
permite que eu entre no banheiro antigo
a que os visitantes não têm acesso
pois a porta fica sempre fechada

por um minuto posso ver secretamente


a banheira com a torneira dourada em forma de ave
e o espelho com ferrugem no entorno
tudo isso me dá um imenso prazer
a casa à noite, ninguém a habita
caminho sozinha
entre paredes de vidro
IMPOSSÍVEL SENTAR-SE DIANTE DE TANTAS CADEIRAS
que aguardam o momento
em que serão úteis

as costas espalmadas são pacientes


podem ficar para sempre na espera

os pés das cadeiras quando tombam


apontam para cima
são insetos de casca redonda
que não desviram sozinhos
LOGO DE CARA AQUELE MORRO
gigante recortado do céu
nos encarava sem
a habitual superioridade
das montanhas
a sensação de ter
que entortar o pescoço
para avistar lá no alto o topo

por alguma falha na proporção


agora eu também era montanha
sem nenhuma dúvida era montanha
do décimo terceiro andar
debruçada sobre a beira
não me sentia grande mas
pega de surpresa pelo braço
e obrigada a reagir eu podia
a) abraçar a montanha
b) dar as costas pra ela
SE FICAR BEM QUIETA
conto o que nos trouxe aqui
eu e ela
todas as palavras
roubadas da estante de cerâmica
da mais cara são objetos
que se lançam
com o risco de espatifar no chão
passei muito tempo tentando dizer
mas quando abria a boca o que pintava
era uma bailarina de caixa de música
que girava no ar contra a minha vontade
ela não sabe mas eu queria mesmo
era ser franca dizer que o sol batendo
na mesa é meu
os caquis na fruteira
os papéis que o menino do correio
lança por debaixo da porta
todas as coisas que posso
segurar isso é meu
A SOMBRA DO AVIÃO ATRAVESSANDO
a copa das árvores não carrega ninguém
que se despeça ou tome chá
água fervida em bule de ágata
na sombra do avião não há quem acorde
com os pés pendurados pra fora do colchão
não há ninguém que uma vez tenha se assustado
com o sangue do nariz
colorindo de vermelho a cama
em plena madrugada a sombra do avião
não faz sentir saudade nem pena
nem vontade de ir com ele e cruzar
a copa ou o quarto
pode apenas olhar pra baixo
quem vê a sombra do avião
na copa entre as asas
14, dorchester place

subir os degraus
de carpete pela primeira vez
carregada de malas
com todas as roupas, as cartas
fazer daqui minha nova casa
às cinco da manhã me apresento
o voo foi longo, não durmo
faz dois dias
a nova mãe me recebe
de casaco vermelho
e cabelos de ontem
pede que eu não faça barulho
para não acordar julie
a bebê ruiva que conheci
nas fotos. o brasil
ah, o brasil, lá deve ser nice and warm
este aqui é o seu quarto
não abra a janela por causa do frio
as roupas de cama ficam neste
armário, jantamos juntos às seis
você pode ver tevê quando não
estivermos no sofá, você pode
se servir na geladeira
só peço que não tome as nossas
coisas, o leite de julie
minhas frutas, a faca
deve ficar virada para baixo
na máquina de lavar
para não furar o dedo do aaron
depois conversamos melhor
ela com esse sotaque engraçado
fala bem devagar como se eu
fosse uma criança, como se
eu fosse a julie
now go get some sleep
DENTE QUE BATE NA LOUÇA E TRINCA
a língua apalpa por detrás
procurando indício de rachadura
na porcelana
desliza na borda da gengiva
o chá ainda quente na boca
incisivos erguidos como prédios
mas frágeis feito xícara
casca de ovo
a asa não se firma entre os dedos
quer escorregar e se colar à sombra

quando criança chorava ao ver a sombra


jurava que era alguém insistente
que apareceu sem ser convidado
bolo de laranja

aquele dia
você tão distante
preparou um bolo de laranja
mas tropeçou
no ingrediente: a turma toda
que esperou ansiosa
cuspiu na pia
farinha que era sal
açúcar que era fermento
o gosto intragável
e o seu choro em público, mal
conseguia se explicar
nem na própria língua
muito menos praqueles gringos
que não entendem nada
nem abraçar eles sabem
benjamin

tenho um medo terrível de cegar


ela me disse, e desligou
o telefone se abraçando debaixo
das cobertas. fazia frio demais
para levantar agora, lavar as mãos
esfregá-las com álcool
e voltar para a cama. fica na dúvida
se ao acordar será capaz de abrir os olhos
e enxergar o relógio
por saber secretamente
que coçou os olhos com os dedos
depois de ontem, depois de
ter passado a tarde com aquelas crianças
na dúvida se a viam pouco
ou nada, com uma roupa escolhida especialmente
para a ocasião, percebeu
que afinal ninguém poderia ver a tal roupa
até que um menino apontou
olha só a loura
a menina bem novinha usa unhas
roxas metalizadas
e quer ser atriz quando crescer
ela é a que mais vê de todos, poderia
estudar em uma escola qualquer
mas tem uma doença degenerativa
aos poucos vai enxergar cada vez menos
e todos sabem disso, saberá ela também?
decide que não vai sentir pena
ninguém aqui está pedindo pena
amanhã ao acordar
vai ser como eles
DESENHAVA TUDO O QUE VIA
com uma estranha compulsão
passava cinco, seis horas na frente
de um quadro, uma maçaneta, um pastel de nata
completamente absorto
sacava do bolso o lápis
corria para rabiscar, depois anotava
a data ao lado, a rua, nada
se perdia no caderno
enquanto isso eu aflita queria repetir
o gesto, documentar tudo, dizer do gosto
da canela no pastel de nata
do primeiro dia azul de lisboa
mas não escrevia e com pressa para registrar
me tornava burocrática
no diário: hoje fomos de trem, estava quente
O QUE ERA ESTRANHO DAQUILO TUDO
é que eu caminhava com muita pressa
e quanto mais eu corria mais
aquela placa, lá na frente, ficava
parada no mesmo lugar, digo, a mesma
distância. e não era um sonho aquilo, sei
que sonhei com uma pastilha que fazia crescer
um eucalipto dentro do corpo, um tronco
que subia pelas costelas e deixava escapar
uma folha bem verde e bem miúda pelo ouvido
embora com os cabelos tentasse disfarçar
a folha fazendo cócegas, ao subir a ladeira a placa
se mantinha lá longe apesar da minha investida
talvez fosse o gosto ou o cheiro ou só de saber da árvore
que crescia dentro e tomava corpo
era impossível saber como terminaria o sonho
se o eucalipto me sufocaria ou se poria fim
à gripe, se a placa continuaria longe, parada
ou se viria em minha direção rápido demais
CORTOU AS UNHAS DEPOIS DO BANHO
moles pela água quente
as calçadas estarão repletas
de jacas maduras, pensou
caídas tombadas maduras
feito obesos que se soltam
dos prédios as jacas suicidas
mariachis

1.
m. então respondeu
que era possível acessar
a rádios do mundo todo
em seu celular. atravessamos
a ponte num sábado
frio e abobadado de junho
enquanto n. baixava a janela
do carro para fumar
quando alcançávamos
o pedágio todos dançavam
a música dos mariachis
e n. enrolou a língua
para perguntar em espanhol
o preço, dois e setenta
muchas gracias muchacho
ainda faltava um bocado
para chegar
à esquerda depois
do queijão

2.
formamos a quadrilha
numa roda
a perder de vista
no meio da dança joguei
os casacos e o cachecol de lã
na grama, suava. depois c.
apostou que era capaz
de pular a fogueira e pulou mesmo
mas o flash não acionou
no instante. quando
estávamos na mesa de doces
veio um menino perguntar a m.
se tinha dançado, e com quem, e aí
o menino retrucou que dançou com d.
uma menina que acabara de inventar
ele mesmo disse isso
que acabara de inventar
e todos riram sem graça porque ele
engrossou a voz, ficou bravo mesmo
e desamparado m. se sentiu
terrivelmente culpado ou fora
do lugar ou as duas coisas
NÃO SE PODE FICAR À VONTADE
numa cidade com tantos cemitérios
b. nos leva para passear de carro
no banco da frente acho estranho como se pode
viver numa rua chamada luminárias
fico todo o tempo em alerta
nosso encontro inesperado
tanta gente em volta e eu nem me preparei
de repente ela me olha num misto de curiosidade
e passe longe
cabelos longos mechas louras
eu não sou daqui
olho demais
não é bem vontade o que tenho
mas tampouco é falta de vontade
meu assassino

hoje encontrei meu assassino


dispersa, olhei
para a plateia e lá estava ele
os olhos fixos em mim
soube na mesma hora
de quem se tratava
tentei disfarçar a chuva que deixou a franja
bagunçada na frente dos olhos
mas o assassino me olhava
e eu revidava: era um jogo
sabia que a qualquer respiração
se eu me desconcentrasse ou se tropeçasse
ele não perdoaria nunca (isso já aconteceu antes)
a diferença é que agora sei
como ele se chama sei
o formato do maxilar
e como ele me olha com esses olhos de assassino
pensei em chamar a polícia, os jornais
pensei sobretudo
em mudar de cidade
e não contar para ninguém
assim o meu assassino me procuraria
nos mesmos lugares de sempre
mas frustrado voltaria para casa
e me escreveria longas cartas
dizendo fique avisada, seus dias estão no fim
contudo meu assassino jamais seria
capaz de me encontrar
e por isso as longas cartas
que ele levaria ao correio muito bem
dobradas em envelopes com cheiro
de canetinhas coloridas
não chegariam a parte alguma
pois não constaria o meu nome
em nenhuma página amarela
ou conta de luz
meu assassino bateria na porta
da minha antiga casa
eu o convidaria para entrar
ofereceria um café e diria
que pena! que desencontro! que perda!
ela não mora mais aqui
HOJE ACORDAMOS com a cidade toda branca, uma sensação
de que estávamos participando do sonho de outra
pessoa. a neve cobria tudo, as capotas dos carros, as
calçadas, os bancos de rua, as avenidas. o pé não faz
barulho quando pisa no chão, os carros deslizam em
silêncio. a acústica da cidade é a de uma almofada
gigante. caminho sem desgrudar do corrimão, sempre
atenta para não deixar os olhos se fecharem num
deslize. o fog borra a vista do que está para lá da ponte.
aperto a pedra do parapeito com as mãos para ver
melhor.
ABRO O ENVELOPE
e espero praias grandes paisagens
sua letra miúda contando coqueiros
a data à caneta
marcando meses anos
que não nos vemos. mas o envelope
branco e frágil
traz estrela cadente na borda
anéis de saturno onde você talvez esteja
um homem-palito astronauta
boiando num céu estrelado. você talvez
tenha desenhado numa noite de lua
nunca vou saber
onde foi que gravou
esse sofá amarelo, essa porta de geladeira
numa cozinha de pedra são tomé
uma cadeira sobre fundo
de azulejos verdes. me pergunto
se diante de tantas paisagens
por que você só me mostra
os cantos das casas por onde passou
nenhuma janela aberta
nenhuma amostra
se faz sol ou chuva
se aí também amanhece
retrato de ingeborg

1.
veio, mas esqueceu as calças
o micro-vestido que deixa
as coxas quase inteiras nuas, a sueca
entra na sala
mal o professor abre a pasta,
tira os óculos escuros e o ipod
bonjour, ela diz
aquele sorriso às nove e três
por pouco não perde a chamada
senta ao lado do americano
que afasta a cadeira atento às pernas
o professor retribui o sorriso
e começa mais um dia: a chamada
em ordem alfabética
pelo sobrenome
não acerta nunca o nome da chinesa
que virou clara para simplificar
ele diz algo incompreensível
e levanta a cabeça esperando aprovação
no que a chinesa corrige:
pode me chamar de clara

2.
acabado o ritual, entra o mexicano
sempre atrasado com sua garrafa
térmica azul-marinho
abre a porta, desculpe o atraso
se eu chegasse a essa hora
na cidade do méxico
o professor nem por nada
me deixaria entrar, me reprovaria
em três atrasos
na cidade do méxico
nunca mais poderia me matricular
em aula alguma
entrar em estabelecimento algum
ter futuro
na cidade do méxico

3.
o professor responde
que não tem problema
é só não chegar
atrasado amanhã (todo mundo
sabe que vai chegar)
mas por que diabos você chega
tarde todos os dias?
o menino não se envergonha
por nada (eu já afundada na cadeira)
diz que está testando
todas as maneiras de transporte possíveis
para chegar à faculdade
da cidade universitária
o professor explica: basta pegar o rer
linha b, parar em chatelet
em seguida trocar para a linha quatro
não tem erro
em vinte minutos você chega

4.
o mexicano parece muito agradecido
sorri como um japonês
diz que vai tentar isso amanhã
sem falta chega antes das nove
SAIU DE LÁ PARA SEMPRE
sem saber de que serviam os sapatos
pendurados nos cabos de eletricidade
pelos cadarços, agora as pernas
ficam sempre enroladas de um modo que a engenharia
não seria capaz de reproduzir
toma água gelada na mesma caneca
que o chá pelando e se pergunta
se não era uma brincadeira de criança
jogar os sapatos para o alto dos fios
ou se seriam traficantes anunciando o ponto
mas como, numa cidade tão arrastada? as pernas
feito cadarços, a pele eriçada pelo ar-condicionado
quando se esforça para lembrar como era
só consegue pensar nas tardes longas e claras
nem as nuvens tinham pressa
mesmo em território vulcânico
as placas pacatas
ALICE SANT’ANNA nasceu em 24 de maio de 1988, no Rio.
Estreou em 2008 com o livro de poesia Dobradura (7
Letras). Lançou duas publicações independentes:
Bichinhos de luz (2009) e Pingue-Pongue (2012), este em
coautoria com Armando Freitas Filho.
Agradeço imensamente a Heloisa Jahn, Armando Freitas
Filho, Heloisa Buarque de Hollanda, Mariano Marovatto,
Marília Garcia, Ismar Tirelli Neto, Chacal, Patricia Veiga,
Patricia Carvalho, Catarina Flaksman, Carolina Frossard,
Luisa Borja, Winnie Hagemeyer, Miguel Del Castillo,
Emilio Fraia, Cassiano Elek Machado, Bruna Beber, Ana
Guadalupe, meus pais, minha irmã, família e amigos.
© Cosac Naify, 2013
© Alice Sant’Anna, 2013

Este livro foi selecionado pelo


Programa Petrobras Cultural

COORDENAÇÃO EDITORIAL Heloisa Jahn


PROJETO GRÁFICO ORIGINAL Tereza Bettinardi
REVISÃO Fabiano Calixto
CONSULTORIA CULTURAL Sandra Helena Pedroso

ADAPTAÇÃO E COORDENAÇÃO DIGITAL Antonio Hermida


PRODUÇÃO DE EPUB Fabian J. Tonack

Nesta edição, respeitou-se o novo


Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa.
CIP-Brasil. Catalogação na publicação
Sindicato Nacional dos Editores de Livros, RJ

Sant’Anna, Alice [1988- ]


Rabo de baleia: Alice Sant'Anna
São Paulo: Cosac Naify, 2013
ISBN 978-85-405-0627-5

1. Poesia brasileira I. Título.

Índice para catálogo sistemático:


1. Poesia: Literatura brasileira: 869.91
COSAC NAIFY
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Este e-book foi projetado e desenvolvido em
setembro de 2013, com base na 1ª edição
impressa, de 2013.

FONTES Flama e Nyte


SOFTWARES LibreOffice e Writer2ePub de Luca
Calcinai
Índice
UM ENORME RABO DE BALEIA
TREM NOTURNO
O POSTAL DE CLARA ME ALCANÇOU
A NOITE UM BLOCO
OS PRIMOS
HÁ AQUILO QUE FICA FIRME (UM POSTE)
A ÁGUA TRANSBORDAVA DA PIA
TITINA
WINNIPEG, MON AMOUR
A ARANHA SE ESCONDIA
A SANDÁLIA NOVA BRANCA COM DEDOS
QUE MÁ IDEIA OS LADRILHOS E O VASO E A PIA
OS BRAÇOS, AS PERNAS
QUANDO ARMANDO E ANA SE CONHECERAM
TRAVELLING –
AUSÊNCIA
COM MEDO DE ANESTESIA E DE AGULHA
A ENORME BOLA BRANCA
IMPOSSÍVEL SENTAR-SE DIANTE DE TANTAS CADEIRAS
LOGO DE CARA AQUELE MORRO
SE FICAR BEM QUIETA
A SOMBRA DO AVIÃO ATRAVESSANDO
14, DORCHESTER PLACE
DENTE QUE BATE NA LOUÇA E TRINCA
BOLO DE LARANJA
BENJAMIN
DESENHAVA TUDO O QUE VIA
O QUE ERA ESTANHO DAQUILO TUDO
CORTOU AS UNHAS DEPOIS DO BANHO
MARIACHIS
NÃO SE PODE FICAR À VONTADE
MEU ASSASSINO
HOJE ACORDAMOS
ABRO O ENVELOPE
RETRATO DE INGEBORG
SAIU DE LÁ PARA SEMPRE
Sobre a autora
Agradecimentos
Créditos
Redes sociais
Colofão

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