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Canalopatias

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Rev Port Cardiol.

2018;37(2):179---199

Revista Portuguesa de
Cardiologia
Portuguese Journal of Cardiology
www.revportcardiol.org

ARTIGO DE REVISÃO

Canalopatias cardíacas: o papel das mutações


nos canais de sódio
Diana João Fonseca ∗ , Manuel Joaquim Vaz da Silva

Faculdade de Medicina da Universidade do Porto, Porto, Portugal

Recebido a 9 de abril de 2017; aceite a 3 de novembro de 2017

PALAVRAS-CHAVE Resumo
Mutações; Introdução e objetivos: A importância dos canais de sódio para a normal atividade elétrica
Canais de Sódio; do coração é enfatizada pelo facto de as mutações (hereditárias ou de novo) nos genes que
Doenças cardíacas; codificam esses canais ou as proteínas a esses associadas provocarem síndromes arritmogénicas
Arritmias cardíacas; como a síndrome de Brugada e a síndrome do QT longo. O objetivo deste trabalho é proceder a
Morte súbita cardíaca uma revisão bibliográfica sobre as mutações no complexo dos canais de sódio responsáveis por
doença cardíaca e as implicações da relação estrita entre a genética e a clínica das principais
canalopatias cardíacas, nomeadamente no nível do diagnóstico, da estratificação do risco, do
prognóstico, do rastreio de parentes e terapêutica.
Métodos: Foi usada a base de dados online Pubmed® para pesquisar os artigos publicados
nessa área, em revistas indexadas. Recorreu-se à MeSH Database para definir a seguinte query:
‘‘Mutation [Mesh] AND Sodium Channels [Mesh] AND Heart Diseases [Mesh]’’ e incluíram-se arti-
gos publicados nos últimos 15 anos, escritos em inglês ou português e referentes à investigação
em humanos.
Conclusões: Nos últimos anos, grandes avanços foram feitos no esclarecimento da base genética
e molecular dessas síndromes. A maior compreensão dos mecanismos fisiopatológicos subja-
centes demonstrou a importância da relação entre o genótipo e o fenótipo e permitiu efetuar
progressos na abordagem clínica desses pacientes. Todavia, é ainda necessário melhorar a capa-
cidade de diagnóstico, aprimorar a estratificação do risco e desenvolver novas terapêuticas
específicas de acordo com o binómio genótipo-fenótipo.
© 2017 Sociedade Portuguesa de Cardiologia. Publicado por Elsevier España, S.L.U. Todos os
direitos reservados.

Abreviaturas: Ca2+ , Ião cálcio; CAV3, Caveolina-3; CMD, Cardiomiopatia Dilatada; CNa, Canais de sódio; DCC, Doença Cardíaca da
Condução; ECG, Eletrocardiograma; EVP, Estimulação Ventricular Programada; EEF, Estudo eletrofisiológico; FA, Fibrilhação Auricular; FC,
Frequência cardíaca; FV, Fibrilhação Ventricular; ICa , Corrente de cálcio; IK , Corrente de potássio; INa , Corrente de sódio; INa pico , Pico da
corrente de sódio; INa tardia , Corrente de sódio tardia, persistente ou sustentada; K+ , Ião potássio; MS, Morte Súbita; MSC, Morte Súbita
Cardíaca; ms, Milissegundos; Na+ , Ião sódio; PA, Potencial de ação; QTc, Intervalo QT corrigido para a frequência cardíaca; SBr, Síndrome
de Brugada; SNP, Single nucleotide polymorphism; SNTA1, Sintrofina; SQTL, Síndrome do QT Longo; SQTL1, Síndrome do QT Longo tipo 1;
SQTL2, Síndrome do QT Longo tipo 2; SQTL3, Síndrome do QT Longo tipo 3; SQTC, Síndrome do QT Curto; TdP, Torsade de pointes; TV,
Taquicardia ventricular; TVP, Taquicardia Ventricular Polimórfica; TVPC, Taquicardia Ventricular Polimórfica Catecolaminérgica.
∗ Autor para correspondência.

Correio eletrónico: mimed11120@med.up.pt (D.J. Fonseca).


https://doi.org/10.1016/j.repc.2017.11.007
0870-2551/© 2017 Sociedade Portuguesa de Cardiologia. Publicado por Elsevier España, S.L.U. Todos os direitos reservados.
180 D.J. Fonseca, M.J. Vaz da Silva

KEYWORDS Cardiac channelopathies: The role of sodium channel mutations


Mutations;
Abstract
Sodium channels;
Introduction and objectives: The importance of sodium channels for the normal electrical acti-
Heart diseases;
vity of the heart is emphasized by the fact that mutations (inherited or de novo) in genes that
Cardiac arrhythmias;
encode for these channels or their associated proteins cause arrhythmogenic syndromes such
Cardiac sudden death
as the Brugada syndrome and the long QT syndrome (LQTS). The aim of this study is to con-
duct a review of the literature on the mutations in the sodium channel complex responsible
for heart disease and the implications of a close relationship between genetics and the clinical
aspects of the main cardiac channelopathies, namely at the level of diagnosis, risk stratification,
prognosis, screening of family members and treatment.
Methods: The online Pubmed® database was used to search for articles published in this field
in indexed journals. The MeSH database was used to define the following query: ‘‘Mutation
[Mesh] AND Sodium Channels [Mesh] AND Heart Diseases [Mesh]’’, and articles published in the
last 15 years, written in English or Portuguese and referring to research in human beings were
included.
Conclusions: In the past few years, significant advances have been made to clarify the genetic
and molecular basis of these syndromes. A greater understanding of the underlying pathophy-
siological mechanisms showed the importance of the relationship between genotype and
phenotype and led to progress in the clinical approach to these patients. However, it is still
necessary to improve diagnostic capacity, optimize risk stratification, and develop new specific
treatments according to the genotype-phenotype binomial.
© 2017 Sociedade Portuguesa de Cardiologia. Published by Elsevier España, S.L.U. All rights
reserved.

Introdução QT curto (SQTC) e a taquicardia ventricular polimórfica


catecolaminérgica (TVPC)4,12 . Contudo, a sua prevalência
As canalopatias cardíacas constituem um grupo heterogéneo na população em geral é difícil de estimar11,13---15 . Além das
de doenças cardíacas hereditárias causadas por mutações patologias supracitadas, a síndrome de pré-excitação, a
nos genes que codificam os canais iónicos expressos no fibrilhação ventricular idiopática e casos raros de cardio-
coração (envolvidos nas correntes de Na+ (INa ), K+ (IK ) e Ca2+ miopatias familiares também se associam a mutações nos
(ICa )) e/ou as proteínas que regulam a sua função1---3 . Essas canais iónicos4,12 .
mutações originam diferentes fenótipos de acordo com as Nas últimas duas décadas, o conhecimento sobre os
alterações incitadas nas correntes de sódio e outros iões, mecanismos genéticos e moleculares subjacentes às arrit-
conferem maior suscetibilidade para ocorrência de síncope, mias (mormente as de cariz hereditário --- Tabela 1), foi
convulsões e arritmias, embora, na maioria das vezes, não vastamente alargado e diversas mutações e/ou variantes
existam defeitos cardíacos estruturais subjacentes4 . Tal evi- genéticas têm sido descritas16,17 .
dencia a importância dos canais iónicos, nomeadamente dos Apesar de várias mutações em diversos canais iónicos
canais de sódio (CNa), na génese e propagação do poten- afetarem as correntes elétricas cardíacas, nesta revisão
cial de ação (PA) e, consequentemente, na excitabilidade bibliográfica aborda-se apenas o que concerne às corren-
cardíaca2,3,5---7 . tes de sódio, designadamente: a estrutura dos CNa e o
As arritmias desencadeadas são potencialmente fatais e seu papel na excitabilidade cardíaca, as mutações no com-
a morte súbita cardíaca (MSC) constitui, frequentemente, plexo dos CNa, os fenótipos associados e as implicações da
a primeira manifestação dessas doenças4,8 . A morte súbita relação entre a genética e a clínica no nível do diagnós-
(MS) é uma das causas mais comuns de morte por pato- tico, a estratificação do risco, o prognóstico e a terapêutica,
logia cardiovascular e, na população adulta ocidental, as fundamentalmente da SQTL e da SBr.
canalopatias cardíacas (1-2%) são uma das patologias pre-
disponentes mais frequentemente diagnosticadas, a par das Métodos
cardiomiopatias (10-15%) e da doença coronária (75%)9 . Na
verdade, alguns estudos mostram que as canalopatias car-
Foi feita uma revisão narrativa da literatura acerca do tema
díacas são responsáveis por aproximadamente 1/3 dos casos
Canalopatias cardíacas: o papel das mutações nos canais de
de MS em jovens com autópsia negativa e por até 50% dos
sódio. Para efetuar a pesquisa dos artigos publicados neárea,
casos de MSC arrítmica10,11 .
foi usada a base de dados online Pubmed® e recorreu-se à
As principais arritmias hereditárias causadas por
MeSH Database para selecionar os termos MeSH e definir
disfunção dos canais iónicos são a síndrome de Brugada
a seguinte query: ‘‘Mutation [Mesh] AND Sodium Channels
(SBr), a síndrome do QT longo (SQTL), a síndrome do
[Mesh] AND Heart Diseases [Mesh]’’.
Canalopatias cardíacas: o papel das mutações nos canais de sódio 181

Tabela 1 Principais genes associados às arritmias hereditárias


Patologia Genes (% de envolvimento) Prevalência
Arritmias hereditárias na ausência de anomalias cardíacas estruturais
Síndrome de Brugada SCN5A (20-30%) 1:3.300 a 1:10.000*
Síndrome do QT longo KCNQ1 (30-35%), KCNH2 (25-30%), SCN5A 1:2.500*
(5-10%)
Taquicardia ventricular polimórfica RYR2 (60-65%), CASQ2 (<5%) 1:10.000*
catecolaminérgica
Doença cardíaca da condução SCN5A (5%)
Síndrome do QT curto Nenhum gene dos 3 conhecidos
representa > 5% da doença
Fibrilhação auricular Nenhum gene dos conhecidos
representa > 5% da doença
Arritmias hereditárias na presença de anomalias cardíacas estruturais
Cardiomiopatia arritmogénica PKP2 (25-40%), DSG2 (5-10%), DSP (2-12%),
ventricular direita/displasia DSC2 (2-7%)
ventricular direita arritmogénica
Cardiomiopatia dilatada TTN (≈25%)
Cardiomiopatia hipertrófica MYBPC3 (30-40%), MYH7 (20-30%), TNNT2
(10%), TNNI3 (7%)
Retirado e adaptado de Mizusawa (2016)9 , * Imbrici et al. (2016)12 e Ackerman et al. (2011).53

Com a aplicação dos critérios de inclusão preestabeleci- ainda um terminal C (carboxilo) e um terminal N (amino),
dos, foram incluídos apenas artigos publicados nos últimos ambos citoplasmáticos5,6,21 .
15 anos, escritos em inglês ou português e referentes à O poro central é formado pelos quatro segmentos S5 e
investigação em humanos. Adicionalmente, foi tido em S6 da subunidade ␣, nomeadamente, pelas ansas extracelu-
conta o factor de impacto. lares que os conectam. Apresenta permeabilidade seletiva
Incluíram-se ainda outras referências bibliográficas, algu- para o sódio, que se desloca através desse de acordo com
mas das quais com data de publicação anterior a 2002, com o gradiente eletroquímico. Os segmentos S1 a S4 funcionam
vistas a aprofundar conteúdos relevantes citados nos artigos como sensores de voltagem. Contudo, o último apresenta a
inicialmente pesquisados. particularidade de ter carga positiva2,5,18,21 .
À semelhança dos restantes canais dependentes de vol-
tagem, os CNa exibem alterações da sua conformação, um
Estrutura e função dos canais de sódio processo denominado gating e que permite definir os três
estados funcionais do canal (aberto, inativo ou fechado), de
Os canais de sódio (CNa) são proteínas transmembranares acordo com o potencial de membrana. Essas alterações ocor-
compostas por uma subunidade ␣ em conjunto com uma rem na subunidade ␣, principal responsável pela regulação
ou duas subunidades ␤ (Figura 1)2 . Existem vários tipos de da despolarização da membrana das células excitáveis2,18,22 .
subunidades ␣, diferentemente expressas consoante o tipo As subunidades ␤ são proteínas de aproximadamente
de tecido e codificadas por uma família de 10 genes dis- 30-40 kDa, com um único segmento transmembranar, um
tintos (Tabela 2)18,19 . A principal subunidade ␣ expressa no terminal C intracelular e um terminal N extracelular5 . Essas
coração denomina-se Nav1.5 (tal como o canal de sódio em subunidades associam-se à subunidade ␣ do CNa (Figura 1)
que se integra) e é codificada pelo gene SCN5A (sodium e, assim, não só modulam a sua expressão na superfície celu-
channel, voltage gated, type V alpha subunit), esse último lar e o processo de gating como também permitem a ligação
constituído por 28 exões e que abrange mais de 100 kb no ao citoesqueleto e a outras proteínas de interação. Efetiva-
cromossoma 3p2218,20 . mente, as subunidades ␤ são capazes de aumentar o tráfego
A regulação da transcrição do gene SCN5A é influen- dos canais para a membrana, com consequente aumento
ciada por vários fatores, entre eles: existência de três da INa 5,18 .
promotores, fatores de transcrição e microRNAs com ação Existem quatro tipos de subunidades ␤ (␤1, ␤2, ␤3
pós-transcrição. Já foram descritas mais de 10 isoformas e ␤4), codificadas pelos genes SCN1B, SCN2B, SCN3B e
resultantes do splicing desse gene, a isoforma mais abun- SCN4B, respetivamente. Essas associam-se preferencial-
dante no coração humano é a SCN5A-003 (isoforma do mente a diferentes subunidades ␣, consoante o tipo de
adulto)7,18,20 . tecido no qual se expressam5,18,20,23 .
A subunidade ␣ tem 227 kDa e consiste numa pro- Para além das subunidades ␤, existem outras proteí-
teína transmembranar com quatro domínios homólogos nas com capacidade para interferir e modular a função
(DI-DIV) conetados por ansas citoplasmáticas, cada um dos do Nav1.5 (anquirina-G, calmodulina, caveolina-3, sin-
quais com seis segmentos transmembranares em ␣-hélice trofina ␣1, placofilina-2, Ran guanine nucleotide release
(S1-6) conetados por ansas intra e extracelulares. Apresenta factor (MOG1), desidrogénase do glicerol-3-fosfato 1-
182 D.J. Fonseca, M.J. Vaz da Silva

NH2 NH2
1 2
DI DII DIII DIV
+
NH3

Membrana celuar
Nav1.5
CAV3

Citosol +
NH3
MOG1
-
COO
COOH COOH
Anquirina COO
-
NH2

Sintrofina

Citoesqueleto COOH

B Ciclo de vida do canal de sódio (Nav1.5)


+
Na

Nav1.5 Membrana celular

NaCHIPs NaCHIPs

CAV3

PKC ERO PKA

NADH NAD+

PKA Mitocôndria

Aparelho
de golgi NEDD4

MicroRNAs

Retículo
Proteína PERK
endoplasmático
“unfolded”

FOXO1 Gene SCN5A


NF-KB TBX5 Núcleo
Transcriçäo Pós-transcriçäo e traduçäo Trafficking Degradaçäo
Ativaçäo Inibiçäo

Figura 1 Complexo proteico macromolecular, subunidades ␣ e ciclo de vida dos canais de sódio Nav1.5. (A) O canal Nav1.5 integra
um complexo macromolecular e interatua com diversas proteínas, entre as quais: subunidades ␤, caveolina-3, MOG1, anquirina,
sintrofina e citoesqueleto. Retirado e adaptado de Liu et al. (2014)7 e de Amin et al. (2010).22 (B) O ciclo de vida do Nav1.5 inicia-se
no núcleo, onde ocorre a transcrição do gene SCN5A e respetiva regulação por fatores de transcrição (FOXO1, NF-KB e TBX5).
Contudo, os microRNAs também regulam os níveis de mRNA. No retículo endoplasmático ocorre a tradução proteica e, após ocorrer
folding apropriado e assembly de proteínas, essas são transportadas para a membrana celular (trafficking). Mutações ou variantes
de splicing podem levar à formação de uma proteína Nav1.5 misfolded e pode ser ativada a via PERK com vista ao down regulation
dos seus níveis de mRNA. A PKA, PKC, o stresse oxidativo (ERO) e os estados metabólicos (NADH e NAD+ ) podem modular o trafficking
do canal. O NEDD4 regula a degradação mediada pela ubiquitina. Retirado e adaptado de Liu et al. (2014)7 .
CAV3: caveolina-3; ERO: espécies reativas de oxigénio; FOXO1: forkhead box protein O1; MOG1: Ran guanine nucleotide release
factor; NaChIP: Na + -channel-interacting protein; NEDD4: E3 ubiquitin-protein ligase NEDD4; NF-␬B: factor nuclear NF-␬B; PERK:
factor de iniciação da tradução eucariótica 2␣-cinase 3; PKA: proteína cínase dependente de AMPc (proteína cínase A); PKC: proteína
cínase C; TBX5: fator de transcrição T-box TBX5.
Canalopatias cardíacas: o papel das mutações nos canais de sódio 183

Tabela 2 Subunidades ␣ dos canais de sódio


Proteína Tecido com expressão major Gene Cromossoma
Nav1.1 SNC e SNP SCN1A 2q24
Nav1.2 SNC e SNP SCN2A 2q23-24
Nav1.3 SNC e SNP SCN3A 2q24
Nav1.4 Musculoesquelético SCN4A 17q23-25
Nav1.5 Coração SCN5A 3p21
Nav1.6 SNC e SNP SCN8A 12q13
Nav1.7 SNP SCN9A 2q24
Nav1.8 SNP SCN10A 3p21-24
Nav1.9 SNP SCN11A 3p21-24
Nav2.1 (Nax) Células Glia SCN6/7A 2q21-23
SNC: sistema nervoso central; SNP: sistema nervoso periférico.
Retirado e adaptado de England e Groot (2009).19

like (GPD1L), factor homólogo 1 B do Fibroblast Growth além disso, alguns canais podem reativar durante a fase de
Factor (FHFGF-1B), lígases da ubiquitina Nedd4-like, repolarização (fase 3), quando a inativação ainda não está
entre outras) que integram um complexo macromolecular completa mas o PA permite a sua reativação, o que gera uma
(Figura 1)5,6,18,20,21,24,25 . corrente denominada window current18,22 . Essa última cor-
responde a menos de 1% do pico da corrente de sódio22 . A
essas duas correntes tem sido atribuído um papel importante
O papel dos canais de sódio na excitabilidade na arritmogénese ventricular presente em certas patologias
cardíaca cardíacas, algumas delas abordadas nesta revisão5,18,22,27 .
Em condições fisiológicas, os processos de ativação e
O potencial de ação cardíaco é gerado por correntes ióni- inativação dos CNa são estritamente regulados de forma a
cas despolarizantes (INa ; ICa ) e repolarizantes (IK )22 . Os CNa assegurar a normal atividade elétrica cardíaca. As anomalias
têm um papel determinante na iniciação do PA através da dos CNa provocam alterações importantes na eletrofisiolo-
génese da INa , são expressos na membrana dos cardiomió- gia cardíaca, potenciam a arritmogénese e podem resultar
citos auriculares e ventriculares e no tecido de condução de alterações das propriedades de gating ou da cinética da
especializada21---23 . Contudo, embora a sua expressão seja INa . Essas alterações modificam a disponibilidade dos canais
abundante no feixe de His, nos seus ramos e nas fibras de e a amplitude da INa pico ou impedem a inativação adequada
Purkinje, a sua expressão é baixa ou ausente nos nós sinusal dos canais, com manutenção de uma INa persistente durante
e auriculoventricular6,21 . o plateau do PA. Assim, a importância dos CNa na excita-
No miocárdio ventricular, durante a diástole, o potencial bilidade cardíaca é enfatizada pela ocorrência de arritmias
elétrico transmembranar (de repouso) é aproximadamente - potencialmente fatais (por exemplo: taquicardia ventricular
85 mV e os CNa encontram-se fechados. Quando um estímulo e fibrilhação ventricular) na presença de disfunção de causa
despolariza a membrana, os segmentos S4 dos quatro domí- hereditária ou adquirida desses canais18,21,22 .
nios movimentam-se simultaneamente para o exterior, o
canal abre e há passagem de Na+ para o meio intracelular de
acordo com o gradiente eletroquímico5,6,18,22 . Assim, gera- Mutações nos canais de sódio
-se a INa , principal responsável pela fase de despolarização
rápida do PA (fase 0), que aumenta rapidamente até atingir Mutações na subunidade ␣
o seu pico (INa pico ) e diminui milissegundos depois18,23 .
Na inativação dos CNa, a ansa entre os domínios III e IV Nas últimas décadas, o conhecimento acerca da função
(porta de inativação) funciona como «tampa» e os canais do gene SNC5A no nível molecular e eletrofisiológico foi
fecham gradualmente em cerca de 1 ms18,26 . Note-se que os amplamente alargado e vários estudos genéticos mos-
CNa sofrem várias alterações conformacionais que se tradu- tram que mutações nesse gene estão associadas a várias
zem em diferentes estados de inativação (inativação rápida, doenças cardíacas, nomeadamente arritmias cardíacas
intermédia e lenta), que, por sua vez, têm diferentes tem- hereditárias1,5,16,18,21,22,28 . Na sua maioria, as patologias
pos de recuperação18,22 . Porém, no fim da fase 0 a maioria associadas a mutações nos CNa são causadas por mutações
(≈99%) dos CNa está inativada, o que impede a passagem que alteram a permeabilidade do canal ou o processo de
de iões. Assim permanecem até à repolarização da mem- gating6,21 .
brana celular, momento em que se recuperam da inativação As mutações no gene SCN5A que levam à disfunção do
e ficam novamente disponíveis para ser ativados durante a CNa Nav1.5 podem ser de ganho de função, perda de função
fase 45,18 . ou ambas7,18 .
Contudo, durante a fase 2 do PA, uma pequena fração As mutações de perda de função resultam na diminuição
dos CNa (< 1% do total de CNa disponíveis) pode man- da INa e associam-se a SBr, doença do nó sinusal (DNS),
ter condutibilidade para o Na+ e reabrir, persistindo uma fibrilhação auricular (FA), doença de Lev-Lenégre e car-
pequena INa denominada late current (INa tardia )5,18,27 . Para diomiopatia dilatada (CMD) (Figura 2)7,18 . O mecanismo
184 D.J. Fonseca, M.J. Vaz da Silva

Mutações com perda de função


INa pico
Síndrome de Brugada
Na+ Doença do nó sinusal
Doenças cardíacas da condução
Cardiomiopatia dilatada
Fibrilhação auricular

Síndromes de Overlap

Mutações com ganho de função


INa tardia
Síndrome do QT Longo tipo 3
Fibrilhação auricular

Figura 2 Fenótipos clínicos associados a mutações nos canais de sódio Nav1.5.


Retirado e adaptado de Liu et al. (2014)7 .

mais frequentemente envolvido é a diminuição da INa pico possibilidade de circuitos de reentrada)32 . Além disso, as
(Figura 3)7,18,23 . mutações no SCN3B também se associam à SBr (Tabela 3)8,23 .
As mutações de ganho de função resultam num aumento As mutações na subunidade ␤4 já foram descritas na
da INa e associam-se a SQTL3 (Figura 2). Existem também SQTL10, atribuem ganho de função e o mecanismo mais
algumas mutações de ganho de função associadas à FA e à provável consiste no aumento da INa tardia 23,25,30,33 .
CMD7,18 . O mecanismo mais frequentemente implicado con-
siste no aumento da INa tardia 7,18,23 . Contudo, existem outros
mecanismos, tais como: aumento da INa pico , diminuição
da taxa de inativação ou aumento da corrente de janela
(Figura 3)18,22 . Mutações nas proteínas associadas aos canais de
Raramente, as mutações podem originar simultanea- sódio
mente redução da INa pico e aumento de INa tardia e cursam,
assim, com perda e ganho de função, respetivamente7,23 . Os CNa integram-se num complexo macromolecular ao
qual pertencem várias proteínas que participam na ade-
são celular, vias da transdução de sinal e citoesqueleto
Mutações nas subunidades ␤ (Figura 1)6,7,11 . Essas últimas encontram-se ligadas ao CNa
direta ou indiretamente e apresentam capacidade para
As mutações na subunidade ␤1 foram identificadas em paci- modular a sua expressão, tráfego e função6,19,23 . Assim, a
entes com SBr, FA e doença cardíaca da condução (DCC) disfunção dessas proteínas contribui para a fisiopatologia das
(Tabela 3). Pensa-se que o mecanismo envolvido nesses fenó- canalopatias cardíacas6,22,23,28 .
tipos curse com diminuição da densidade da INa (perda de Mutações em várias dessas proteínas associam-se a SQTL
função). No entanto, dado o número limitado de pacien- ou SBr (Tabela 3)5,22,34---36 . A caveolina-3 (CAV3) é uma pro-
tes portadores dessas mutações, não é possível esclarecer teína importante no tráfego de membrana e posicionamento
cabalmente o mecanismo envolvido ou a relação genótipo- dos canais iónicos na membrana sarcoplasmática, que regula
-fenótipo20,23,25 . várias correntes iónicas no coração como a INa . A sintrofina
A prevalência das variantes potencialmente patogénicas ␣1 (SNTA1) é uma proteína do citoesqueleto que interage
dos genes das subunidades ␤ é semelhante à de outros genes com o CNa (Figura 1). As mutações com ganho de função
minor envolvidos na SBr29,30 . Efetivamente, apesar de nos descritas na CAV3 associam-se a SQTL9, enquanto aquelas
últimos anos o conhecimento dos mecanismos subjacentes à descritas na SNTA1 se associam a um fenótipo semelhante
SBr incidir sobretudo no gene SCN5A, o rastreio das quatro ao da SQTL36,15,22,28,37 . Já as mutações na anquirina-B, cuja
subunidades ␤ pode conduzir a um aumento potencial do função é a ligação de proteínas de membrana às estruturas
diagnóstico genético dessa síndrome até aproximadamente do citoesqueleto (Figura 1), associam-se a SQTL4, FA, entre
5,4%30 . outros15 .
As mutações na subunidade ␤1 e ␤2 estão associa- As mutações no gene GPD1L, que codifica a desidroge-
das à FA e o mecanismo é a alteração do gating e a nase 1-like do glicerol-3-fostato, ou no gene MOG1, que
diminuição da INa 6,31 . Em 2011, Olesen et al.32 descreveram codifica uma molécula que afeta o tráfego de proteínas, já
mutações associadas à FA também na subunidade ␤3. Essas foram descritas na SBr6,15,23,25 . Adicionalmente, mutações na
mutações reduzem a INa , aumentam a suscetibilidade para placofilina-2, uma proteína do desmossoma, podem dar ori-
FA através de um de dois mecanismos: atraso da condução gem à diminuição da INa e, assim, a um fenótipo similar ao
ou diminuição do período de refratariedade (promove a do SBr15,38,39 .
Canalopatias cardíacas: o papel das mutações nos canais de sódio 185

1- Ganho de função 2- Perda de função

A B A
Potencial de ação (miócitos ventriculares)
Potencial de ação (miócitos ventriculares) 0 nA
Potencial de membrana (mV)

Potencial de membrana (mV)


30
30

0
0 Aumento da corrente de
sódio tardia (inativação
incompleta) -30
-30
-60
-60 0 nA
-90
-90
Aumento da corrente de
sódio tardia (lentificação
C da inativação) 0 nA
Fração de canais ativados

Fração de canais inativados


1 1
0 nA Diminuição do pico da
0,8 0,8 corrente sódio
0,6 0,6 Aumento da corrente
janela
0,4 0,4

0,2 0,2

0 0
0 nA
-120 -100 -80 -60 -40 -20 0
Potencial de membrana (mV)
D
Fração de canais inativados
Fração de canais ativados

1 1 Aumento do pico da
corrente de sódio
0,8 0,8

0,6 0,6
0,4 0,4
0,2 0,2

0 0
-120 -100 -80 -60 -40 -20 0
Potencial de membrana (mV)

Figura 3 Alterações do potencial de ação e das correntes de sódio associadas a mutações nos canais Nav1.5 de ganho e perda de
função. (1 A) As mutações de ganho de função associam-se a um aumento a duração do potencial de ação e podem desencadear
eventos arrítmicos. (1 B) Vários mecanismos podem associar-se a ganho de função na corrente de sódio. O mecanismo mais comum
é o aumento da corrente de sódio tardia (aumento anormalmente sustentado da INa durante a fase 2 do PA com prolongamento
da despolarização da membrana e atraso da repolarização) que pode dever-se a inativação incompleta ou lentificada. Outros
mecanismos menos comuns são o aumento da corrente janela e o aumento da INa pico (aumento do influxo de Na+ na fase 0 do PA).
(1 C) O mecanismo de aumento da corrente de sódio mais frequentemente resulta da inativação incompleta dos canais de sódio
(círculos verdes). (1 D) No mecanismo de aumento da corrente da janela (círculos verdes), a inativação ocorre em PA mais positivos,
«atrasa-se» e alarga-se a amplitude de voltagens durante as quais os CNa podem reativar. (2 A) Nas mutações de perda de função
a diminuição do pico da corrente de sódio diminui a velocidade de upstroke da fase 0 do potencial de ação e retarda a condução
elétrica no coração.
Retirado e adaptado de Amin et al. (2010).22

Fenótipos «cardíacos» associados à disfunção dos progressos foram feitos na compreensão da sua fisiopatolo-
canais de sódio e proteínas interatuantes gia e na identificação da sua base genética1,40,41 .
A SBr é uma síndrome rara, hereditária, com uma pre-
Na Tabela 4 descrevem-se os diversos fenótipos «cardíacos» valência estimada de 1/3.300 a 1/10. 000, para a qual já
associados a mutações nos genes que codificam os CNa e as foram descritas diferenças étnicas e geográficas12,14,42 . Afeta
proteínas que integram o seu complexo macromolecular. As adultos relativamente jovens (< 40 anos), mais frequente-
canalopatias cardíacas mais prevalentes são a SQTL (1:2500) mente do sexo masculino, com história familiar de morte
e a SBr (1:3.300 a 1:10.000) e associam-se, em parte, à súbita em 20-50% dos casos21,43,44 . Aliás, estima-se que a SBr
disfunção dos CNa12 . Assim, seguidamente serão abordadas seja responsável por pelo menos 4% de todos os casos de
apenas essas duas entidades. morte súbita e pelo menos 20% dos casos de morte súbita
em indivíduos sem alterações cardíacas estruturais8,45 .
A ausência de anomalias cardíacas estruturais era,
classicamente, uma característica da SBr41 . No entanto,
Síndrome de Brugada anomalias estruturais ligeiras nos ventrículos direito e
esquerdo têm sido descritas em vários estudos46 .
A síndrome de Brugada (SBr) foi descrita pela primeira A apresentação clínica é muito variável. A maioria dos
vez em 1992 como uma síndrome pautada por um padrão indivíduos encontra-se assintomática quando do diagnós-
eletrocardiográfico típico, ausência de anomalias cardíacas tico e esse último é feito na sequência de um ECG de
estruturais e história familiar de morte súbita. Desde então, rotina em 58% dos casos ou ainda na sequência de rastreio
186 D.J. Fonseca, M.J. Vaz da Silva

Tabela 3 Mutações nas proteínas do complexo macromolecular do canal de sódio

Gene Proteína Efeito normal na Mutações Efeito da Fenótipo


INa mutação
SCN1B ␤1 (↓) INa tardia Trp179X (Ø-) Ativação, SBr, DCC
(Ø-) ISS, (Ø↑)
INa pico
(↑)T.Rec E87Q (Ø-) Ativação, SBr, DCC
(Ø↑) INa pico
(↑) INa pico R85H (+) Ativação, FA familiar
ISS, (Ø↑) INa
pico
D153N (Ø↑) INa pico FA familiar
R214Q (Ø↑) INa pico SBr, FA familiar
SCN2B ␤2 Estado de R28Q (+) Ativação, FA familiar (↑) PR,
sialylation (↓) INa pico (↑) PD.ST
(↑) Corrente R28W (+) ISS, (+) FA familiar (↑) PR,
tardia Ativação, (↓) (↑) PD.ST
INa pico
SCN3B ␤3 (↑) INa , (↑)T.Rec R6K, L10P e M161T Misto, (↓) INa FA familiar
pico, (-) SSI, SBr
(↓) T. Rec
(+) ISS, (↑) P.Ref A130V (↓) INa pico FA familiar
ISS, (↑) V54G (↓) INa pico FV idiopática, SMSI
(↓)Trafficking
P.Ref V36M (↓) INa pico SMSI
(↑) INa tardia
SCN4B ␤4 (↑) Velocidade do S206L (↑) INa tardio SMSI
upstroke do PA
(+) ISS L179F (↑) Corrente SQTL10
janela
CAV3 Caveolina Scaffolding F97C, S141R (↑) INa tardia SQTL9
3 (↓) INa tardia V14L,T78M e L79R (↑) INa tardia SMSI
GPD1L GPD1L (↑) INa por fosforilação A280V (↓) INa pico SBr
E83K, I124V, R273C (↓) INa pico SMSI
RANGRF MOG1 (↑) Densidade de E83D (↓) INa pico SBr
superfície (↓) Trafficking
(↑) INa pico
SNTA1 Sintrofina ␣1 Scaffolding A390V (↑) INa pico, (↑) SQTL12
INa tardia
S287R, T372M, G460S (↑) INa pico, (↑) SMSI
INa tardia, (+)
ISS
(-): Shift hiperpolarizante; (+): Shift despolarizante; (↑): aumento; (↓): diminuição; DCC: doença cardíaca da condução; FA: fibrilhação
auricular; FV: fibrilhação ventricular; ISS: Inativação steady-state;Ø: falha; P.Ref: período refratário; PD.ST: segmento ST nas derivações
pré-cordiais direitas; SBr: síndrome de Brugada; SMSI: síndrome de morte súbita da infância; SQTL: síndrome do QT Longo; T.Rec: taxa de
recuperação.
Retirado e adaptado de Adsit et al. (2013).23

familiar em 37% dos casos44 . Porém, a MSC pode ser a da SBr e despoleta arritmias potencialmente fatais em 27%
primeira manifestação da doença, uma vez que aqueles dos casos21,49 .
indivíduos apresentam risco aumentado para desenvolver O diagnóstico faz-se através de critérios clínicos,
taquiarritmias, nomeadamente taquicardia ventricular poli- presença de padrão típico de alterações eletrocardiográfi-
mórfica (TVP) e fibrilhação ventricular (FV)22,47 . cas e exclusão de outras etiologias que podem mimetizar a
Estima-se que a taxa de eventos arrítmicos por ano SBr, nomeadamente por desencadear elevação do segmento
em indivíduos assintomáticos seja de cerca de 0,5%, ocor- ST (Figura 4)45,50,51 . Testes de provocação com fármacos blo-
rendo mais frequentemente em repouso e durante o sono, queadores dos CNa (Tabela 5) podem ser feitos para provocar
mas também na presença de febre ou após refeições as alterações eletrocardiográficas da SBr (Figura 5), o que
abundantes1,44,48 . De facto, a febre é um dos fatores que possibilita o diagnóstico naqueles indivíduos com padrão ele-
podem provocar ou exacerbar o padrão eletrocardiográfico trocardiográfico transitório14,41,45,52 . Nesses casos, pode ser
Canalopatias cardíacas: o papel das mutações nos canais de sódio 187

Tabela 4 Fenótipos «cardíacos» associados a disfunção dos canais de sódio e proteínas relacionadas

Gene Proteína Alterações na INa Fenótipo «cardíaco»


Canal de sódio
SCN5A Nav 1.5 (↓) INa por diferentes mecanismos SBr tipo 1
(↑) INa tardia SQTL tipo 3
(↓) INa por diferentes mecanismos DCC
(↓) INa por diferentes mecanismos Doença de Lev-Lenégre
(↓) INa por diferentes mecanismos Bloqueio AV congénito
(↓) INa DNS
(↓) INa Atrial standstill
Fenótipos moleculares diferentes e FA
discordantes
Fenótipos moleculares diferentes e CMD
discordantes
(↑) INa tardia / (↓) INa SMSI
Combinação de fenótipos moleculares Síndrome de Overlap
presentes noutras entidades clínicas
Proteínas do complexo macromolecular do canal de sódio
SCN1B Subunidade ␤1 (↓) INa pico SBr tipo 5
(↓) INa pico DCC
(↓) INa pico FA
SCN2B Subunidade ␤2 (↓) INa pico FA
SCN3B Subunidade ␤3 (↓) INa pico SBr tipo 7
(↓) INa pico FA
(↓) INa pico DCC
(↓) INa pico / (↑) INa tardia SMSI
(↓) INa pico FV idiopática
SCN4B Subunidade ␤4 (↑) INa tardia SQTL tipo 10
(↑) INa tardia SMSI
SNTA Sintrofina ␣1 (↑) INa tardia / (↑) INa pico SQTL tipo 12
(↑) INa tardia / (↑) INa pico SMSI
RANGRF MOG1 (↓) INa pico SBr tipo 8
CAV3 Caveolina-3 (↑) INa tardia SQTL tipo 9
(↑) INa tardia SMSI
GPD1L Desidrogenase 1-like do (↓) INa pico SBr tipo 2
glicerol-3-fosfato (↓) INa pico SMSI
PTPH1 Tirosina fosfátase H1 -
NEDD4L Nedd4-2/Nedd4-like -
CALM Calmodulina -
CAMK2D Proteína cínase 2 delta -
dependente do
cálcio/calmodulina
SAP97 SAP97 -
YWHAH 14-3-3-a -
FGF13 FGF13 -
ANK3 Anquirina-G -
ACTN2 Actinina ␣2 -
PKP2 Placofilina-2 Cardiomiopatia arritmogénica
DSG2 Desmogleína-2 Cardiomiopatia arritmogénica
TCAP Teletonina -
ZASP Banda Z -
AV: auriculoventricular; CMD: cardiomiopatia dilatada; DCC: doença cardíaca da condução; DNS: doença do nó sinusal; FA: fibrilhação
auricular; SBr: síndrome de Brugada; SMSI: síndrome da morte súbita da infância; SQTL: síndrome de QT longo.
Retirado e adaptado de Wilde e Brugada (2011),5 Remme (2013),6 Abriel (2010)15 e Adsit et al. (2013).23
188 D.J. Fonseca, M.J. Vaz da Silva

• HVE
• Repolarização precoce Suspeita de Síndrome de Brugada
• EAM (especialmente do VD) (clínica, ECG ou rastreio familiar)
• Pericardite aguda/Miopericardite • Fármacos antiarritmicos:
• Hemopericárdio BCS (classe la,lc);BCC;Bloq. beta
• Disseção de aneurisma da aorta • Fármacos antianginosos:
• TEP BCC;Nitratos
Excluir
• C/DVDA • Fármacos psicotrópicos:
diagnósticos
• Doenças do SNC/SNA diferenciais antidepressivos tríciclicos,tetraciclicos,
• Distrofia muscular de Duchenne fenotiazinas,SSRis,Litio
• Ataxia de Friedreich • Anestésicos:
• Hipotermia Bupivacaina,Propofol,Cetamina
Excluir efeito de
• Hipercalemia/Hipercalcemia fármacos ou • Outros:Acetilcolina,álcool,cocaína,
• Cardioversão eléctrica drogas ∗ ergonovina,difenidramina,
• Obstrução mecânica do TSVD indapamida,terfenadina
(....)

ECG com alterações


típicas em > 1 derivação Não
pré-cordial direita (V1-3)?

Sim

Padrão tipo 1 Padrão tipo 2 Padrão tipo 3

• Amplitude da onda J:≥2mm • Amplitude da onda J:≥2mm • Amplitude da onda J:≥2mm


• Onda T:negativa • Onda T: positiva ou bifásica • Onda T: positiva
• Morfologia segmento ST: • Morfologia segmento ST: • Morfologia segmento ST:
“coved type” “saddleback” “saddleback”
• Porção terminal do segmento • Porção terminal do segmento • Porção terminal do segmento
ST:descende gradualmente ST: elevação ≥1mm ST: elevação<1mm

Teste de
provocação com
BCS
• FV documentada
• TVP documentada
• História familiar de
MSC antes dos 45 anos
• ECG tipo ˝coved˝ nos
membros da família Presença de pelo
Conversão para
menos 1 critério clínico de Sim
• Indução de TV por padrão tipo 1?
diagnóstico?
estimulação elétrica
programada
• Síncope
• Respiração agónica
noturna
Sim Não
Não

Padrão de Brugada
Síndrome de Brugada idiopático no ECG Sindrome de Brugada improvável

Figura 4 Algoritmo diagnóstico de síndrome de Brugada. Existem três padrões de alterações eletrocardiográficas nas derivações
pré-cordiais direitas (V1-V3). O tipo 1 é considerado diagnóstico, contrariamente aos tipos 2 e 3 (na presença dos quais se devem
fazer testes de provocação com BCS). Outras alterações eletrocardiográficas que podem estar presentes no SBr são: prolongamento
do intervalo PR e bloqueio de ramo direito. O diagnóstico definitivo faz-se na presença de elevação do segmento ST do tipo 1 em pelo
menos uma derivação de V1-V3 e quando se verifica um dos critérios clínicos apresentados na figura. BCC: bloqueadores dos canais de
cálcio; BCS: bloqueadores dos canais de sódio; Bloq.beta: bloqueadores beta; C/DVDA: cardiomiopatia/displasia ventricular direita
arritmogénica; EAM: enfarte agudo do miocárdio; ECG: eletrocardiograma; FV: fibrilhação ventricular; HVE: hipertrofia ventricular
esquerda; SNA: sistema nervoso autónomo; SNC: sistema nervoso central; SSRIs: inibidores seletivos da recaptação da serotonina;
TEP: tromboembolismo pulmonar; TV: taquicardia ventricular; TSVD: trato de saída do ventrículo direito; VD: ventrículo direito.
*Podem desmascarar susceptibilidade genética para SBr.
Retirado e adaptado de Berne e Brugada (2012).51
Canalopatias cardíacas: o papel das mutações nos canais de sódio 189

Tabela 5 Fármacos usados nos testes de provocação para «desmascarar» a síndrome de Brugada

Fármaco Dose e duração Via de administração


Ajmalina 1mg/kg durante 5 minutos EV
Flecainida 2mg/kg durante 10 minutos EV
400mg VO
Pilsicainida 1mg/kg durante 10 minutos EV
Procainamida 10mg/kg durante 10 minutos EV
EV: endovenosa; VO: via oral.
Retirado e adaptado de Antzelevitch et al. (2005).45

1- Padrões eletrocardiográficos de SBr.

Tipo 1 Tipo 2 Tipo 3

V1

V2

V3

In:http://lifeinthefastlane.com/ecg-library/brugada-syndrome

2 - Teste de provocação com ajmalina.

Baseline Após administração de ajmalina

In:http://www.brugadadrugs.org/druglist_diagnostic/

Figura 5 Padrões eletrocardiográficos de SBr: espontâneos (1) e após teste de provocação com ajmalina (2).

também usado o Holter, que, através de uma monitoração de SBr, está indicado um rastreio genético específico nos
prolongada, pode permitir fazer o diagnóstico de alterações parentes53,54 .
intermitentes.1 A SBr apresenta uma elevada complexidade genética e
Os testes genéticos (abrangentes ou específicos para o existem vários genes que podem estar mutados nessa sín-
gene SCN5A) podem ser úteis para o diagnóstico em qualquer drome, embora apenas alguns se associem a alterações das
paciente alvo de forte suspeita clínica de SBr, de acordo com INa (Tabela 6)43,54,55 . Até a data foram já descritas mais
a história clínica e familiar e o ECG53 . Note-se que, após a de 300 mutações que reduzem a amplitude da INa atra-
identificação de uma mutação patogénica num caso índex vés de mecanismos diversos16,43,54,56 . As mutações ocorrem
190 D.J. Fonseca, M.J. Vaz da Silva

Tabela 6 Genes mutados na síndrome de Brugada


Fenótipo Gene Locus Proteína Efeito na função Hereditariedade Frequência
Canais de sódio e proteínas associadas
SBr1 SCN5A 3p21 Nav1.5 (-) AD 11-28%
SBr18 SCN10A 3p22.2 Nav1.8 (-) AD 5.0-16.7%
SBr5 SCN1B 19q13.12 Subunidade ␤1 (-) AD 1.1%
SBr17 SCN2B 11q23.3 Subunidade ␤2 (-) AD < 1%
SBr7 SCN3B 11q24.1 Subunidade ␤3 (-) AD < 1%
SBr2 GPD1L 3p22.3 Desidrogenase 1-like do (-) AD < 1%
glicerol-3-fosfato
SBr11 RANGRF 17p13.1 MOG1 (-) AD < 1%
SBr15 SLMAP 3p14.3 Proteína associada ao (-) AD < 1%
sarcolema
SBr20 PKP2 12p11 Placofilina 2 Défice da INa # AD < 1%
SBr19 HEY2 6q22 Nav1.5 (-)
Canais de cálcio
SBr3 CACNA1C 12p13.33 Subunidade ␣1c do canal de (-) AD 6.6%
cálcio tipo L dependente de
voltagem (Cav1.2)
SBr4 CACNB2B 10p12.33-p12.31 Subunidade ␤2 do canal de (-) AD 4.8%
cálcio tipo L dependente de
voltagem (Cav ␤2)
SBr10 CACNA2D1 7q21.11 Subunidade ␣2/␦1 do canal de (-) AD 1.8%
cálcio dependente de voltagem
(Cav␣2␦1)
SBr16 TRPM4 19q13.33 Transient receptor potential (-) AD < 1%
cation channel subfamily M
member 4
Canais de potássio
SBr13 KCND3 1p13.2 Canal de potássio dependente (+) AD < 1%
de voltagem subfamília D
membro 3
SBr6 KCNE3 11q13.4 Canal de potássio dependente (+) AD < 1%
de voltagem subfamília E
membro 3
SBr9 KCNJ8 12p12.1 Canal de potássio inward (+) AD 2%
rectifier 8 sensível ao ATP

SBr14 HCN4 15q24.1 Potassium/sodium (+) AD < 1%


hyperpolarization activated
cyclic nucleotide gated
channel 4
SBr12 KCNE5 Xq22.3 Canal de potássio dependente (+) Ligada ao X < 1%
de voltagem subfamília E
regulatory ␤ subunidade 5
SBr8 KCNH2 7q35 Kv11.1, IKr (+) 1-2%
SBr21 ABCC9 12p12.1 SUR2A (subunidade 2 A do (+) 4-5%
recetor da sulfonilureia),
IK-ATP
AD: autossómica dominante. # Placofilina causa défice de INa .
Retirado e adaptado de Sarquella-Brugada et al. (2016),8 Sieira et al. (2016)54 e Juang e Horie (2016).60
Canalopatias cardíacas: o papel das mutações nos canais de sódio 191

mais frequentemente no gene SCN5A, localizam-se pre- que ocorrem em 9% pacientes/ano e que, embora raramente
ferencialmente nos segmentos transmembranares S1-S4 e ameaçadoras da vida, são psicologicamente deletérias9,54 .
nos segmentos envolvidos na formação do poro (S5-S6)16,55 . Assim, a avaliação cuidadosa dos riscos (nomeadamente do
Contudo, apenas uma minoria (10-30%) da totalidade de indi- risco de arritmias) e benefícios é um processo chave nessa
víduos diagnosticados com SBr apresenta positividade para decisão44,54 .
uma mutação nesse gene21,43,56---58 . Outros genes (Tabela 6) Um estudo de 2003 em que foram incluídos 547 indivíduos
estão envolvidos em menos de 5% dos casos55 . diagnosticados com SBr, portadores de padrão eletrocar-
Efetivamente, apenas 30-35% dos indivíduos com diag- diográfico diagnóstico e sem MSC «abortada» prévia, foi
nóstico clínico apresentam também diagnóstico genético feito com vista à avaliação do valor prognóstico das variá-
(genótipo positivo)8 . Assim, a maioria dos indivíduos veis clínicas, eletrocardiográficas e eletrofisiológicas. Os
afetados (aproximadamente 65%) permanece genetica- autores verificaram que o grupo de menor risco (incidência
mente indeterminada (genótipo negativo) e, por esse de eventos: 0,5%) se caracteriza pela ausência de episódios
motivo, é necessário identificar novos genes de susceptibi- de síncope, padrão eletrocardiográfico apenas despoletado
lidade para SBr16,56,59 . por fármacos antiarrítmicos e ausência de arritmias durante
Recentemente, o gene SCN10A foi identificado como gene a estimulação ventricular programada (EVP). Já o grupo de
de suscetibilidade para SBr embora a sua verdadeira preva- maior risco (incidência de eventos: 27,2%) caracteriza-se por
lência permaneça por esclarecer56,60 . O nível de expressão história prévia de episódios de síncope, ECG espontanea-
e a função do CNa Nav1.8 no coração permanecem contro- mente anormal e presença de arritmias induzidas por EVP,
versos. Contudo, um estudo publicado em 2014 mostra que sendo que indivíduos que apresentam indutibilidade de arrit-
as variantes desse gene influenciam a duração do intervalo mias na EVP têm um risco seis vezes superior de MSC ou FV
PR e QRS, a frequência cardíaca (FC) e, ainda, o risco de durante os dois anos subsequentes, relativamente aos que
arritmias56 . não apresentam63 .
Já foram descritas algumas formas recessivas com Embora alguns sejam controversos, os fatores de risco
mutações homozigóticas ou heterozigóticas compostas, para eventos arrítmicos são vários e entre esses os sintomas
porém a maioria das mutações patogénicas conhecidas no são uns dos mais importantes42,46,54,64 . Com efeito, os indi-
gene SCN5A apresenta um padrão de transmissão autossó- víduos diagnosticados após um episódio de MSC «abortada»
mico dominante com penetrância variável, frequentemente apresentam o risco mais elevado e em 60% desses ocorre um
incompleta18,43,45 . novo evento 10 anos após o diagnóstico54 . Os indivíduos com
O mecanismo mais frequentemente implicado é a episódios de síncope têm uma taxa de eventos arrítmicos
diminuição da INa pico por mutações no gene SCN5A (perda de 1,9%/ano e a presença simultânea de padrão eletro-
de função) e consequente lentificação da condução cardíaca cardiográfico tipo 1 está associada a mau prognóstico46,54 .
(Figura 3)7,18,60,61 . Todavia, existem diversas hipóteses para Adicionalmente, existem outros parâmetros eletrocardio-
os mecanismos fisiopatológicos da SBr que envolvem tanto gráficos que se associam a pior prognóstico, como, por
alterações da despolarização como da repolarização, essas exemplo, a presença de fragmentação do intervalo QRS no
últimas não abordadas neste trabalho40,51,54 . ECG, identificada em 30-40% dos doentes54 .
Atualmente, o genótipo dos indivíduos com SBr não
apresenta implicações relevantes para o prognóstico ou a
terapêutica (Tabela 7)9 . Não obstante, a sua influência no Síndrome de QT longo
risco de arritmias e prognóstico permanece em debate54 .
Na verdade, os dados genéticos podem constituir uma fer- A SQTL congénita é uma síndrome arritmogénica de origem
ramenta complementar para a estratificação do risco43,61 . genética/hereditária, com penetrância incompleta, cuja
Mutações nonsense, que originam proteínas truncadas, têm prevalência nos indivíduos brancos é de 1:2500, um valor
sido associadas a pior prognóstico comparativamente a muito superior ao anteriormente expectável12,13,65 . Repre-
outros tipos de mutações com repercussões menos mar- senta um grupo heterogéneo de doenças e, classicamente,
cadas na função dos CNa40,43,59,61 . Um estudo retrospetivo é dividida em duas variantes: síndrome de Romano-Ward e
publicado em 2009 mostra que o fenótipo é mais grave em síndrome de Jervell e Lange-Nielsen (Tabela 8)1,43,65 .
indivíduos com mutações associadas à redução mais signifi- Em 1995 e 1996, identificaram-se os três principais genes
cativa da INa comparativamente a indivíduos com mutações que conferem suscetibilidade para SQTL: KCNQ1, KCNH2 e
associadas a menor redução61 . O mesmo se verifica quando a SCN5A66---68 . Esses genes constituem 75% dos casos de SQTL
mutação se localiza numa região transmembranar do CNa61 . clinicamente definida e os restantes representam, coleti-
Outro estudo publicado em 2013 mostra que diferentes vamente, apenas 5%43,69 . Note-se que a SQTL se associa a
mutações no gene SCN5A têm um impacto distinto na INa , alterações das correntes de sódio unicamente nos tipos 3,
o que reforça o papel da caracterização das mutações na 9, 10 e 1222,69 .
avaliação do risco em parentes não afetados62 . Porém, per- A SQTL caracteriza-se pelo atraso da repolarização
manece pouco claro o grau em que diferentes mutações ventricular, que se traduz eletrocardiograficamente em pro-
conferem risco de eventos arrítmicos ou MSC e, atualmente, longamento do intervalo QT (Figura 6)22,65 . A duração do
a estratificação do risco faz-se somente com parâmetros intervalo QT é dependente da inativação dos CNa, cuja
clínicos53,54 . alteração pode despoletar a ocorrência de arritmias26 .
O único tratamento disponível que provou prevenir a MSC As mutações no gene SCN5A associadas à SQTL3
em pacientes com SBr foi a implantação de um cardioversor (ganho de função) geralmente afetam a inativação dos
desfibrilhador implantável (CDI)1,9,44,46 . Contudo, esse pro- CNa, que fica lentificada, instável ou incompleta6,18,22,26 .
cedimento acarreta um risco considerável de complicações, Consequentemente, há um aumento da INa tardia com
192 D.J. Fonseca, M.J. Vaz da Silva

Tabela 7 Recomendações para o tratamento da síndrome de Brugada

Medidas gerais de alteração do estilo de vida

Evitar fármacos que podem induzir ou agravar a elevação do (Classe I)


segmento ST nas DPCdt
Evitar consumo excessivo de álcool (Classe I)
Na presença de febre medicar prontamente com fármaco antipirético (Classe Ia)

Estratificação do risco e tratamento específico


a
Indivíduos sintomáticos Indivíduos assintomáticos
MSC «abortada» CDI ECG padrão tipo 1 Quinidina
(Classe I) espontâneo (Classe IIb)
TV espontânea CDI ECG padrão tipo 1 CDI
documentada, com ou (Classe I) espontâ- (Classe IIb)
sem síncope neo + TV/FV
Síncope + ECG padrão CDI induzidas por EEF
tipo 1 espontâneo (Classe IIa)
Tempestade Isoprenalinac (Classe ECG padrão tipo 1 CDI
elétrica/arrítmicab IIa) induzido por (Classe III)
Quinidinad fármacos e
(Classe IIa) história familiar
Indivíduos que se qualificam para CDI mas de MSC Quinidina
apresentam uma contraindicação ou que (Classe IIa)
recusam CDI e/ou apresentam história de
arritmias supraventriculares que necessitam
de tratamento
Indivíduos diagnosticados com SBr e história de Ablação por cateter -
tempestades elétricas/arrítmicas ou RF
choques de repetição (apropriados) por CDI (Classe IIb)
CDI: cardioversor desfibrilhador implantável; DPCdt: derivações pré-cordiais direitas; FV: fibrilhação ventricular; MSC: morte súbita
cardíaca; RF: radiofrequência; SBr: síndrome de Brugada; TV: taquicardia ventricular.
a As manifestações clínicas associadas a SBr podem incluir fibrilhação ventricular, morte súbita «abortada», síncope, palpitações,

desconforto torácico e respiração agónica noturna.


b Definida como mais de dois episódios de TV/FV em 24 horas;
c Pode ser útil para suprimir tempestades elétricas/arrítmicas.
d Pode ser útil em indivíduos diagnosticados com SBr e história de tempestades elétricas/arrítmicas.

Adaptado de Priori et al. (2013)46 e Steinfurt et al. (2015).64

prolongamento da despolarização da membrana e atraso estímulo mais lentas, o que sugere que o grau dessa cor-
da repolarização18,26,65,70 . Outros mecanismos possivelmente rente pode ser um determinante forte para a ocorrência de
implicados são: aumento da window current, lentificação da arritmias22 .
inativação e aumento da INa pico (Figura 3)6,18,22 . O primeiro evento cardíaco (mais frequentemente sín-
A primeira mutação associada à SQTL3 encontra-se na cope) ocorre usualmente em adolescentes (16 ± 10 anos na
ansa entre os domínios III e IV, correspondente à porta SQTL3) e mais precocemente no sexo masculino.9,71 Porém,
de inativação26 . Desde então, múltiplas mutações que pro- em 5-10% dos casos a MSC é o evento inicial da doença e,
vocam alterações da inativação foram já identificadas e efetivamente, a SQTL é uma das principais causas de MSC
funcionalmente caracterizadas, localizando-se em variados com autópsia negativa10,72 .
locais da estrutura do CNa, nomeadamente no terminal O diagnóstico baseia-se sobretudo na história clínica e
C, ao qual tem sido atribuída uma função relevante nesse ECG (Figuras 6 e 7)65,70 . No ECG, o parâmetro mais rele-
processo22,26 . vante é o intervalo QT (Tabela 9), medido desde o início
A SQTL congénita ocorre sobretudo em indivíduos jovens, do complexo QRS até o fim da onda T nas derivações DII
saudáveis, sem alterações estruturais cardíacas concomitan- e V5 ou V665,73 . Usa-se o valor mais longo, geralmente
tes e associa-se a um aumento do risco de síncope e arritmias corrigido para a FC (QTc) através da fórmula de Bazett (ape-
cardíacas potencialmente fatais como a Torsade de Pointes sar das suas limitações para FC particularmente rápidas ou
(TdP), que degenera em FV e causa paragem cardíaca6,18,66 . lentas)1,46,65,73 .
Na SQTL3 (diferentemente da SQTL1 e SQTL2 --- Figura 6), Adicionalmente, é necessário excluir a presença de cau-
as arritmias ocorrem usualmente em repouso, particular- sas secundárias de prolongamento do intervalo QT (SQTL
mente durante o sono (frequências cardíacas baixas)6,22,43,70 . adquirida), como, por exemplo, fármacos, isquemia do
Note-se que a INa tardia é maior em frequências de miocárdio, cardiomiopatia, hipocalemia, hipomagnesemia,
Canalopatias cardíacas: o papel das mutações nos canais de sódio 193

Tabela 8 Subtipos de SQTL congénita


Nome Gene Proteína Corrente Efeito na função Frequência
Hereditariedade autossómica dominante (Romano-Ward)
SQTL 1 KCNQ1 KV 7.1 IKs (-) 40-55%
SQTL 2 KCNH2 KV 11.1 IKr (-) 30-45%
SQTL 3 SCN5A NaV 1.5 INa (+) 5-10%
SQTL 4 ANKB Anquirina B Trocador NCX, ATPase Na+ /K+ (-) Raro
SQTL 5 KCNE1# MinK IKs (-) Raro
SQTL 6 KCNE2 MiRP1 IKr (-) Raro
SQTL 7 KCNJ2 Kir2.1 IKl (-) Raro
(SAT)
SQTL 8 CACNA1C CaV 1.2␣1 ICa,L (+) Raro
(ST)
SQTL 9 CAV3 Caveolina-3 INa (+) Raro
SQTL 10 SCN4B Subunidade␤4 INa (+) Muito raro
SQTL 11 AKAP9 Yotiao IKs (-) Muito raro
SQTL 12 SNTA1 Sintrofina-␣1 INa (+) Muito raro
SQTL 13 KCNJ5 Kir 3.4 IK-Ach (-) Muito raro
SQTL 14 CALM1 Calmodulina 1 Redução da afinidade para o Ca2+** Raro
SQTL 15 CALM2 Calmodulina 2 Redução da afinidade para o Ca2+** Raro
Hereditariedade autossómica recessiva (Jervell e Lange-Nielsen)
JLN1 KCNQ1 KV 7.1 IKs (-) Raro
JLN2 KCNE1# MinK IKs (-) Raro
(-): perda de função; (+): ganho de função; ICa,L: correntes de Ca2+ através dos canais de cálcio tipo L dependentes da voltagem; IK-Ach:
corrente de K+ regulada pelos recetores da acetilcolina; IKl: corrente de entrada de K+ , retificadora; IKr: componente rápido (retificação
interna --- canais de K + estão abertos quando um potencial é negativo e fechados quando o potencial é menos negativo ou positivo) da
corrente de K+ delayed rectifier (IKr ); IKs: componente lenta da corrente de K+ delayed rectifier (IKr ); INa: corrente de Na+ dependente
de voltagem; NCX: trocador Na + / Ca2 + ; SAT: síndrome de Andersen-Tawil; ST: síndrome de Timothy.
# As mutações no gene KCNE1 podem causar quer a síndrome de Romano-Ward (autossómica dominante; SQTL5) quer, se em homozigotia

ou heterozigotia composta, a síndrome de Jervell e Lange-Nielsen (autossómica recessiva).


** A disfunção da calmodulina pode alterar a inativação dos canais de Ca2+ tipo L dependente do Ca2+ (aumenta a corrente despolarizante

durante a fase 2 do potencial de ação) mas algumas mutações da calmodulina podem também associar-se a alteração da regulação dos
canais de sódio.
Retirado e adaptado de Nakano e Shimizu (2016),34 ** Makita et al. (2014)36 e Mizusawa (2014).69

e 3 podem cursar com QTc normal no ECG em repouso em


Tabela 9 Avaliação do intervalo QT
36%, 19% e 10% dos casos, respetivamente69 .
1- Método de correção do intervalo QT (fórmulas) Foi criado um sistema de pontuação para diagnóstico
que tem em conta vários parâmetros clínicos e ele-
Bazett QT/RR1/2 trocardiográficos e fornece uma probabilidade de SQTL
Fridericia QT/RR1/3 (Figura 6)43,46,70 . Além disso, a monitoração com Holter
Framingham QT + 0.154 (1 --- RR) e o ECG obtido durante a prova de esforço ou após
Hodges QT + 1.75 (FC --- 60) infusão de adrenalina podem ser úteis em alguns casos
particulares1,46,53,65,69 .
2- Valores normais, borderline e
Uma vez feito o diagnóstico ou mediante a ocorrência
prolongados do QTc calculado pela fórmula
de morte súbita inexplicada num indivíduo jovem, os paren-
de Bazett.
tes de primeiro grau devem ser rastreados para SQTL1,65,72 .
Normal Borderline Prolongado Todavia, nos parentes com ECG normal não pode ser excluída
1-15 anos < 440 ms 440-460 ms > 460 ms SQTL43 . Efetivamente, após a identificação de uma mutação
Adulto (♂) < 430 ms 430-450 ms > 450 ms patogénica num caso índex, recomenda-se que os paren-
Adulto (♀) < 450 ms 450-470 ms > 470 ms tes façam um teste genético específico para a mutação em
causa, com vista a identificar indivíduos portadores com
♂: sexo masculino;♀: sexo feminino; FC: Frequência cardíaca; intervalo QT normal43,53 . Tal é importante devido ao risco de
RR: intervalo RR.
arritmias, que se estima ocorrerem em 10% dos indivíduos
Retirado e adaptado de Goldenberg et al. (2006).73
portadores assintomáticos1 .
Além disso, recomendam-se testes genéticos para
hipotermia, entre outras46,65 . Uma vez excluídas, a presença SQTL (abrangentes ou específicos para os três princi-
num ECG de repetição de um valor de QTc ≥500 ms (ou entre pais genes) em qualquer paciente alvo de forte suspeita
480-499 ms se feito após um episódio de síncope inexplicada) clínica de SQTL (baseada na história clínica, familiar e
é considerada diagnóstica43,46 . Contudo, as SQTL tipos 1, 2
194 D.J. Fonseca, M.J. Vaz da Silva

A Características das SQTL congénitas mais frequentes B Critérios para o diagnóstico da SQTL
(de acordo com o genótipo) congénita (Schwart z score)

Genótipo SQTL1 SQTL2 SQTL3 Achados no ECG Pontos


Frequência 35% 30% 10% 3
≥480 ms
Gene KCNQ1 KCNH2 SCN5A A QTc 2
460-479 ms
Efeito nas 450-459( )ms 1
correntes I I I QTc no 4ºminuto de
Ks Kr Na
iónicas
B recuperação após teste do 1
Efeito no PA Fase 0 exercício ≥ 480 ms
Fase 3>2 Fase 2>3 (mais lenta)
(duração-ms) C T orsade de pointes# 2
Exercício Estímulo D Onda T “ alternans” 1
Principais Sono,
Tónus auditivo e repouso sem Onda T entalhada em 3
“triggers” emoção E 1
simpático estimulação dervações
F FC baixa para a idade 0,5
Eventos
cardíacos
62% 13%∗∗∗ 13%∗∗∗
despoletados Com stress 2
pelo exercício∗ A Síncope#
Sem stress 1
Pacientes com antes da após após B Surdez congénita 0,5
maior risco adolescência adolescência adolescência
Reposta ao A Membros familiares com SQTL 1
Bloqueador +++ ++ +
MSC inexplicável em membros
B da família < 30 anos 0,5

C Relação entre as fases do PA do miócito e as alterações


da função dos canais iónicos (ganho ou perda de função) D SQTL 1 a 3: alterações do intervalo QT no
que levam ao prolongamento da duração do potencial de ECG e clínica associada
ação do intervalo QT no ECG

Potencial de ação ventricular


Fase 1 I − SQTL2, Síncope
+30 mv Kr
Normal
SQTL6
I − SQTL8
Fase 2 CaL
I − SQTL1,
0 mv Kr SQTL1
I − SQTL5, Sintomas
Na Fase 3 SQTL11,JLN1,
SQTL3 JLN2, SQTL2
Fase 0
SQTL9, Morte
SQTL10, I − Convulsões
Fase 4 K1
súbita
SQTL12, SQTL7, SQTL3
-85 mv
I
R KAch −
SQTL13,
T T orsade
P de pointes
ECG
Q

Figura 6 Síndrome do QT longo --- principais características e critérios de diagnóstico. (B) Sistema de pontuação usado no diag-
nóstico da SQTL que se baseia nos achados presentes no ECG, história clínica (sintomas) e história familiar. O QTc é calculado pela
fórmula de Bazett. Pontuação: ≤ 1 --- baixa probabilidade de SQTL; 1,5 a 3 --- probabilidade intermédia de SQTL; ≥ 3,5 --- alta proba-
bilidade de SQTL. O diagnóstico de SQTL faz-se nos indivíduos com pontuação ≥ 3,5 nos quais não se verificam causas secundárias
para o prolongamento do intervalo QT.
♂: indivíduos do sexo masculino; ♀: indivíduos do sexo feminino; FC: frequência cardíaca.
#
Mutualmente exclusivos.

Não podem ser ambos contabilizados na mesma família.
**FC em repouso abaixo do 2 ◦ percentil para a idade.
***O baixo risco apresentado pelo exercício em pacientes SQTL2 e SQTL3 é explicado pelo facto de que ambos têm uma corrente
normal de IKs, que é estimulada pela ativação do sistema nervoso simpático, que assim resulta no encurtamento da repolarização
ventricular sempre que a frequência cardíaca aumenta, evita assim a probabilidade de taquiarritmias ventriculares durante o exer-
cício.
(A) Retirado e adaptado de Furst e Aziz (2016)75 e *Schwartz et al. (2001);74 (B) Retirado e adaptado de Schwartz et al. (2013);43
(C) e (D) Retirado e adaptado de Giudicessi e Ackerman (2013).70
Canalopatias cardíacas: o papel das mutações nos canais de sódio 195

1- Abordagem integrada para o diagnóstico, estratificaçáo de risco e


orientação terapêutica segundo a fenótipo de pacientes com síndrome do QT longo

Suspeita de SQTL
Baixa/intermédia Quadro clínico suspeito
probabilidade de apesar de fenótipo
Não
Avaliar história Cálculo do Schwartz SQTL “borderline”/”concealed”
clínica e familiar; schwar tz score score ≥ 3,5
ECG(QTc, Não
morfologia das Sim
ondas T, etc) Diagnóstico de
Alta probabilidade de SQTL SQTL improvável

Testes genéticos

Genótipo negativo/VSI
Sim Identificação de muração associada a Não Com baixa probabilidade
alta probabilidode de SQTL*? de patogenicidade
Orientação de acordo com
o genótipo
Orientação de
acordo com o
fenótipo
SQTL1 SQTL2 SQTL3
- Evitar emoções e - Evitar exposição a - Bloqueadores
esforços fisicos ruidos sùbitos durante o beta Assintomático, sincope Morte sùbita cardiaca
intensos sono/repousoz (propranolol) ou convulsões abortada ou M-FACT
- Avaliação - Manter estáveis os - Considerar risk score ≥ 4
individual da niveis de K+sérico BSC Bloqueadores beta
possibilidade de - Exercico fisico - Limiar inferior (propranolol ou nadolol) Considerar
prática desportiva cauteloso no periodo para indicação CDI
- Bloqueadores pós-parto de DCSE/CDI Mantém eventos sintomáticos ou
Não
adrenérgicos Bloqueadores beta bloqueadores beta não são tolerados
(propranolol ou nadolol) ou estão contraindicados? Sim
Sim
Mantém eventos
DCSE sintomáticos recorrentes ou
DCSE não é opção viável?
Não
Reavaliação periódica

2- Classificação de risco guiada por genótipos e fenótipos de pacientes com síndrome do QT longo

Estratificação baseada no genótipo:


- SQTL8 (Síndrome de Timothy)
- Síndrome de jervell e Lange-Nielsen
Estratificação baseada no genótipo: Risco muito - SQTL1 (AR)
- Heterozigotia composta
elevado
(≥80%) Estratificação baseada no fenótipo:
Estratificação baseada no fenótipo: - ≥ 10 eventos cardiacos antes dos 18
- QTc ≥ 500ms anos
- 2-9 eventos cardíacos antes dos
18 anos. Risco elevado
(≥50%) Estratificação baseada no fenótipo:
Estratificação baseada em ambos: - QTc 500-549ms
- QTc < 500ms; SQTL1; SQTL2; - < 2 eventos cardíacos antes dos 18
SQTL3 no sexo masculino anos
Risco
intermédio
(≥30-49%) Estratificação baseada em ambos:
- QTc < 500ms; SQTL1 no sexo
Estratificação baseada no fenótipo: feminino; SQTL2 no sexo feminino;
- QTc > 500ms SQTL3 no sexo masculino
- Sem história de eventos cardíacos Risco baixo - QTc ≤ 500ms; SQTL3 no sexo
antes dos 18 anos (≥30%) feminino
Estratificação baseada em ambos:
- QTc < 500ms; SQTL1; SQTL2 no
sexo masculino; genótipo minor

Figura 7 Abordagem diagnóstica, estratificação do risco e orientação terapêutica na síndrome do QT-longo.


Retirado e adaptado de Giudessi e Ackerman (2013).70

eletrocardiograma) ou, em qualquer paciente assintomático do risco, prognóstico e tratamento (de acordo com o
com prolongamento do intervalo QT, na ausência de outras genótipo --- Figura 7)1,43,69,70,72 .
condições clínicas que possam prolongar esse intervalo53 . A estratificação do risco tem em conta o fenótipo e o
Efetivamente, os testes genéticos apresentam um papel genótipo e faz-se em todos os doentes, com avaliações clí-
relevante não só no diagnóstico da SQTL (nomeadamente, nicas periódicas (Figura 7)46,65,70 . O risco difere de acordo
de portadores assintomáticos) e na exclusão de doença nos com o genótipo e, adicionalmente, nos tipos genéticos
parentes de primeiro grau, mas também na estratificação mais comuns é influenciado pelo tipo e local específico das
196 D.J. Fonseca, M.J. Vaz da Silva

Tabela 10 Recomendações para o tratamento da síndrome QT longo

Medidas gerais de alteração do estilo de vida

Evitar fármacos (Classe I)


que prolongam
o intervalo QT
Identificar e (Classe I)
corrigir
distúrbios
hidroeletrolíti-
cos

Estratificação do risco e tratamento específico

Indivíduos sintomáticos Indivíduos assintomáticos


Síncope Bloqueadores ␤ QTc ≥ 470ms Bloqueadores ␤
(Classe I) (Classe I)
TV/FV documentadas Bloqueadores ␤ QTc ≤ 470ms Bloqueadores ␤
(Classe I) (Classe IIa)
MSC «abortada» CDI Não tratados com CDI
(Classe I) bloqueadores ␤* (Classe III)
Episódios recorrentes de síncope durante CDI
terapêutica com bloqueadores ␤ (Classe IIa)
Indivíduos com diagnóstico de SQTL que DSCE
apresentam eventos durante terapêutica com (Classe IIa)
bloqueadores ␤/ CDI
Indivíduos de alto risco com diagnóstico de SQTL que recusam CDI ou nos quais esse está DSCE
contraindicado e/ou quando os bloqueadores ␤ não são eficazes a prevenir síncope/arritmias, (Classe I)
não são tolerados, estão contraindicados ou são recusados
Indivíduos com SQTL tipo 3 e QTc > 500ms que diminui > 40ms após prova oral aguda com um BCS BSC
(Classe IIa)
BCS: bloqueador dos canais de sódio; CDI: cardioversor desfibrilhador implantável; DSCE: desnervação simpática cardíaca esquerda; FV:
fibrilhação ventricular; MSC: morte súbita cardíaca; TV: taquicardia ventricular.
* Exceto em circunstâncias especiais, o CDI não está indicado em indivíduos assintomáticos não submetidos a terapêutica com

bloqueadores beta.
Adaptado de Priori et al. (2013).46

mutações, assim como pelo grau de disfunção que essas O resultado dos testes genéticos é também impor-
implicam43,46 . tante no tratamento e aconselhamento dos indivíduos
Priori et al. (2003)71 seguiram 647 indivíduos com afetados e parentes (Figura 7; Tabela 10)9,43 . Note-
mutações nos genes da SQTL tipos 1, 2 e 3, por um período -se que, por exemplo, a SQTL1 apresenta maior risco
médio de 28 anos. Os autores verificaram que 42% dos durante a atividade física comparativamente à SQTL2 e
indivíduos com SQTL3 desenvolveram um primeiro evento SQTL343,74,75 .
cardíaco (ocorrência de síncope, paragem cardíaca ou MSC) A mexiletina, a flecainida ou a ranolazina consti-
antes de o indivíduo atingir os 40 anos e de iniciar a terapêu- tuem opções terapêuticas «específicas» para a SQTL3
tica. A incidência de paragem cardíaca ou MSC nos pacientes (Tabela 10), na qual os bloqueadores ␤ podem não ser
com SQTL3 foi de 16% e os indivíduos do sexo masculino tão eficazes, pois, nesse tipo, o stress adrenérgico é
apresentaram-se sintomáticos mais precocemente do que um trigger com menor influência1,43,70,76 . A mexiletina
aqueles do sexo feminino. Porém, dada a pequena amostra pode ser usada em adição aos ␤-bloqueadores9,43,46,50 .
do estudo, não foi possível retirar conclusões desse achado. Porém, o seu efeito depende do tipo de mutação e
Adicionalmente, os autores verificaram que o intervalo QTc pode não ser benéfica em todos os indivíduos com
dos pacientes com eventos cardíacos foi significativamente SQTL39,12,70 .
mais longo do que o dos pacientes assintomáticos (sub- Efetivamente, dos três principais tipos de SQTL, o tipo 3
grupo SQTL3: 523 ± 55 ms versus 481 ± 38 ms, p = 0,003). é o que apresenta maior taxa de recorrência de arritmias em
Concluíram ainda que apenas um QTc superior a 498 ms está indivíduos sob tratamento com ␤-bloqueadores (10-15%)70 .
associado a uma probabilidade marcadamente aumentada Tal justifica que indivíduos com SQTL3 necessitem com maior
de eventos cardíacos. Contudo, a percentagem de indivíduos frequência de outros procedimentos mais invasivos, como
no subgrupo SQTL3 com intervalo QT normal, portadores de desnervação simpática cardíaca esquerda e/ou implantação
mutação silenciosa, foi de 10%71 . de CDI (Tabela 10)70 .
Canalopatias cardíacas: o papel das mutações nos canais de sódio 197

SBr
RANGRF ABCC9
PKP2
FGF12
SCN3B TRPM4
KCNE5 SLAMP
CAVD GDP1L RANGRF KCND2
KCNJ8
PKP2 SCN2B KCNE3 HCN4
KCND3 SRP

SCN10A

KCNH2

DNS SCN1B
CACNA2D1

SCN5A
CACNA1C CACNB2

SQTL

SQTC

Figura 8 Diagrama ilustrativo do overlap entre SBr, SQTL, SQTC, DNS, SRP e CAVD. A negrito encontram-se os genes do complexo
macromolecular do canal de sódio.
CAVD: cardiomiopatia arritmogénica do ventrículo direito; DNS: doença do nó sinusal; SQTC: síndrome do QT curto; SQTL: síndrome
do QT longo; SRP: síndrome de repolarização precoce.
Retirado e adaptado de Sarquella-Brugada (2016)8 e Fernandez-Falgueras (2017).35

100 diferentes repercussões na função dos CNa25 . Em alguns


90 casos, uma única mutação no gene SCN5A pode resultar
80 em múltiplos distúrbios do ritmo e, assim, vários fenótipos
Percentagem (%)

70 podem coexistir na mesma família6,25 .


60 Além disso, recentemente, alguns estudos reportam ano-
50 malias cardíacas estruturais secundárias a mutações nesse
40 gene (nomeadamente CMD), embora se desconheça o meca-
30 nismo subjacente.6,18,22,77 .
20 Atualmente, o poder dos testes genéticos para identificar
10 mutações é de 25% na SBr e 80% na SQTL (Figura 9)43,78 . O
0 impacto da genética na abordagem clínica varia considera-
SBr SQTL
velmente de acordo com a canalopatia subjacente e é mais
Figura 9 Canalopatias cardíacas: positividade dos testes marcado na SQTL, na qual se reconhece influência ao nível
genéticos em indivíduos clinicamente diagnosticados com SBr do diagnóstico, prognóstico e terapêutica9,43,78 .
e SQTL. Grandes progressos têm sido feitos na compreensão
Dados retirados de Schwartz e Dagradi (2016).78 da relação genótipo-fenótipo e suas implicações43 . Toda-
via, apesar da evolução do conhecimento científico nessa
área, o genótipo de um número considerável de indivíduos
Conclusão afetados permanece indeterminado, alguns mecanismos
continuam por esclarecer e as opções terapêuticas dispo-
As canalopatias cardíacas são pouco frequentes na prá- níveis são, ainda, limitadas12,18,72 . A melhor compreensão
tica clínica (embora mais comuns do que se pensava), mas dos fundamentos moleculares poderá contribuir não só para
têm um impacto significativo na qualidade de vida e na aprofundar esses últimos aspetos, mas também para o
sobrevida1,13 . A sua abordagem clínica constitui um desa- desenvolvimento de novas abordagens terapêuticas especí-
fio devido à elevada heterogeneidade clínica e genética que ficas para o gene ou a mutação12,43 .
as caracteriza1,76 .
Apesar de inicialmente encaradas como entidades clí-
nicas separadas com fenótipos distintos, essas síndromes
podem apresentar características clínicas e genéticas que se Bibliografia
sobrepõem (Figura 8)21 . Efetivamente, além das mutações
estritamente de perda ou ganho de função, existe um grande 1. Cerrone M, Cummings S, Alansari T, et al. A clinical approach to
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