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Mávis Dill Kaipper

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1

UNIVERSIDADE DO VALE DO RIO DOS SINOS - UNISINOS


UNIDADE ACADÊMICA DE PESQUISA E PÓS-GRADUAÇÃO
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM HISTÓRIA
DOUTORADO EM HISTÓRIA

MÁVIS DILL KAIPPER

ARAGWAKSÃ: A RETOMADA DA TERRA, A FESTA DE CASAMENTO E


OUTRAS MANIFESTAÇÕES CULTURAIS INDÍGENAS PATAXÓ NA RESERVA
DA JAQUEIRA, PORTO SEGURO, BAHIA

SÃO LEOPOLDO
2018
2

MÁVIS DILL KAIPPER

ARAGWAKSÃ: A RETOMADA DA TERRA, A FESTA DE CASAMENTO E


OUTRAS MANIFESTAÇÕES CULTURAIS INDÍGENAS PATAXÓ NA RESERVA
DA JAQUEIRA, PORTO SEGURO, BAHIA

Tese apresentada como requisito parcial para a


obtenção do título de Doutora, pelo Programa de
Pós-Graduação em História da Universidade do
Vale do Rio dos Sinos – UNISINOS.
Área de concentração: Sociedades indígenas,
Cultura e Memória
Orientador: Prof. Dr. Jairo Henrique Rogge

SÃO LEOPOLDO
2018
3

MÁVIS DILL KAIPPER

ARAGWAKSÃ: A RETOMADA DA TERRA, A FESTA DE CASAMENTO E


OUTRAS MANIFESTAÇÕES CULTURAIS INDÍGENAS PATAXÓ NA RESERVA
DA JAQUEIRA, PORTO SEGURO, BAHIA

Tese apresentada como requisito parcial para a


obtenção do título de Doutora, pelo Programa
de Pós-Graduação em História da Universidade
do Vale do Rio dos Sinos – UNISINOS.
Área de concentração: Sociedades Indígenas,
Cultura e Memória

Aprovado em __________________

BANCA EXAMINADORA

______________________________________________________________
Prof. Dr. HENRIQUE A. GRASSI KESKE

______________________________________________________________
Prof.(a) Dr.(a) NADJA MARIA LIMA MACIEL – UEFS

______________________________________________________________
Prof.(a) Dr.(a)ELOISA HELENA CAPOVILLA DA LUZ RAMOS – UNISINOS

______________________________________________________________
Prof. Dr. MARCUS BEBER – UNISINOS

______________________________________________________________
Prof. Dr. JAIRO HENRIQUE ROGGE – ORIENTADOR – UNISINOS
4

K13a Kaipper, Mávis Dill.

Aragwaksã : a retomada da terra, a festa de casamento e


outras manifestações culturais indígenas Pataxó na Reserva da
Jaqueira, Porto Seguro, Bahia / Mávis Dill Kaipper. – 2018.

191 f. : il. ; 30 cm.

Tese (doutorado) – Universidade do Vale do Rio dos Sinos,


Programa de Pós-Graduação em História, 2018.

"Orientador: Prof. Dr. Jairo Henrique Rogge.”

Dados Internacionais
1. Índios Pataxó de Catalogação
Usos na 2.
e costumes. Publicação (CIP)
Índios Pataxó
História. 3. Índios Pataxó Identidade étnica. I. Título.
(Bibliotecário: Flávio Nunes – CRB 10/1298)

CDU 94(81)
5

Dedico esse trabalho às vítimas do “Fogo de 51” e


aos sobreviventes dessa chacina, atualmente
anciãos das aldeias Pataxó, que se ocupam em ser
índios, fazer o que os antepassados lhes ensinaram
e divulgar os saberes tradicionais aos mais jovens.
6

AGRADECIMENTOS

Agradeço aos meus antepassados, em especial, Dona Maria Fernandes de Moraes,


nascida em 1863, em Caxambú, declarada como “brasileira de origem” em entrevista
sobre a genealogia familiar, pela sua filha, Normélia Moraes Kaipper, minha avó, da
qual herdei pelo ramo familiar paterno, conhecimento em ervas e sensibilidade aos
fenômenos da natureza. Dona Maria teve sua personalidade obscurecida nas
histórias contadas ao pé do fogão à lenha, por ser casada com Abraão Antônio de
Moraes, nascido em 1862, que lutou na guerra do Paraguai e voltou para casa como
herói. Marieta de Oliveira Moraes, irmã de Abraão e vítima de violência no período
da guerra dos Farrapos, criou meu pai Velffe, minha tia Élgide e, posteriormente eu e
meu irmão Max. Nessa tarefa, se ocupou de passar todos os ensinamentos
possíveis sobre as fases da lua, os benefícios de cada planta do jardim e do pomar,
de forma oral, como manda a tradição.Com a mesma ênfase, agradeço aos meus
pais Velffe e Nilza ( ambos in memorian) pelo gosto de estudar.

À Ivone Grassi Keske por ter me adotado como filha desde 2007.

Ao meu filho Eduardo e esposa Suzana Cristine, à minha filha Cristiana pela
compreensão nas ausências.

Aos meus netos, Renato Jorge e Augusto Daniel pelo carinho incondicional.

À Dionê Ferreira Belé, codinome Maria, por me proteger, me aconselhar e cuidar de


mim, minha casa e minha família desde 1990.

Aos amigos Balmukund Niljay Patel, pelas incontáveis fotos e à Hely Dutra Cabral da
Fonseca, pelas viagens e todo o apoio durante as práticas da pesquisa.

Aos colegas Wedeson Ledoux Costa, Fabiana Mariano Morais e Leidivan Lima
(Tchurran) pelo companheirismo.

Aos colegas Deijair, Andréa e Awóy pelo cuidado na correção do texto em português
e Patxohã respectivamente.
7

A cada índio e índia Pataxó que prestou informações pacientemente desde 2004 na
Reserva da Jaqueira: Nitynawã, Kapimbará, Nayara, Jandaya, Syratã, Takwara,
Juari, Muricy, Oity, Haywã, Jaguatiry, Xohã, Damiana, Aricury, Wekanã. Na Escola
Indígena Pataxó de Coroa Vermelha: Jerry Matalawê, Marilene, Vilma, Adriana,
Awói, Ajuru, Pedro (Txihi), Zizélia, Hayô, Kamassari, Gilson, Diana (Mayon),
Tapurumã, Kátia, Cirlaine, Nahima, Rose. Na aldeia urbana de Coroa Vermelha:
Pajé Itambé, Ubiranã, Ubirai, Luzia(Suturyana), Louro, Alzeane(Exna). E muitos
outros que ouvi e assisti, mas não lembraria os nomes, meus sinceros
agradecimentos.

À Reitoria da Universidade Estadual de Feira de Santana e aos colegas do


Departamento de Letras e Artes pelo incentivo.

A todos os professores do Curso de Doutorado de História da Unisinos.

Às bibliotecárias da UEFS, da UNISINOS e do Instituto Histórico e Geográfico da


Bahia.

Ao meu Orientador, Professor Dr. Jairo Henrique Rogge pela sensibilidade e


competência.
8

Los instrumentos y políticas no tienen necessariamente que


tener consecuencias positivas para nuestras tierras y nuestras
vidas. Pueden ser facilmente usados para debilitar nuestros
derechos indígenas y limitar nuestro acceso a nuestros
recursos. Se nos considera irrelevantes o, cuando se nos presta
atención, somos cortejados como exóticos fuentes de
conocimiento para incrementar las ganancias de las grandes
empresas. Nos oponemos energicamente a esta visión y
buscamos um enfoque alternativo a la protección ambiental y
el uso sustenible de los recursos, que respete tanto los bosques
como sus habitantes.

Alianza Internacional de los Pueblos Indígenas-Tribales de los


Bosques Tropicales, Cuzco,1992.
9

RESUMO

A presente pesquisa tem como objetivo apresentar o ARAGWAKSÃ, festa anual em


comemoração ao reconhecimento do território indígena Pataxó, e analisar as
manifestações culturais e históricas no contexto dessa celebração, que se iniciou em
1º de agosto de 1998 e, neste ano de 2018, estará comemorando a sua 20ª edição.
A composição textual descreve o processo histórico da formação e dispersão
territorial do povo Pataxó, provocada por discriminação e perseguição; enquanto o
texto imagético mostra os aspectos artístico-culturais e registra as suas
manifestações tradicionais em sua representação fotográfica, nas quais estão
presentes materiais, cores e significados de profundo simbolismo étnico. Nesta
pesquisa, adotou-se a metodologia qualitativa de princípios etnográficos, sendo que,
para a coleta e a produção de dados, utilizaram-se a observação participante, a
entrevista semiestruturada, os registros iconográficos e sonoros e as imagens em
movimento. Para analisar os dados, foram escolhidos os pressupostos da análise de
conteúdo, a fim de proceder à articulação teórica entre relatos orais, as imagens do
povo Pataxó e seu modo de vida. As considerações destacam os pontos
importantes da Cultura indígena Pataxó, ao tempo em que invocam os direitos
constitucionais para requerer o reconhecimento civil dos casamentos realizados nas
aldeias, dentro das normas e da praxe jurídica brasileira.

Palavras-chave: Cultura Indígena Pataxó. Casamento indígena Pataxó.


Manifestações artístico-culturais Pataxó.
10

RESUMEN

La presente investigación tiene como objetivo presentar el Araguaksán, fiesta anual


en conmemoración al reconocimiento del territorio indígena Pataxó, y analizar las
manifestaciones culturales e históricas en el contexto de esa celebración, que se
inició el 1 de agosto de 1998 y, en este año de 2018, celebrará su 20ª edición. La
composición textual describe el proceso histórico de la formación y dispersión
territorial del pueblo Pataxó, provocada por discriminación y persecución; mientras
que el texto imagético muestra los aspectos artístico-culturales y registra sus
manifestaciones tradicionales, en su representación fotográfica, en las que están
presentes materiales, colores y significados de profundo simbolismo étnico. En esta
investigación, se adoptó la metodología cualitativa de principios etnográficos, siendo
que para la recolección y la producción de datos, se utilizaron la observación
participante, la entrevista semiestructurada, los registros iconográficos y sonoros y
las imágenes en movimiento. Para analizar los datos, fueron escogidos los
presupuestos del análisis de contenido, a fin de proceder a la articulación teórica
entre los relatos orales, las fotos del pueblo Pataxó y su modo de vida. Las
consideraciones finales destácan los puntos importantes de la Cultura indígena
Pataxó, al tiempo que invocan los derechos constitucionales para requerir el
reconocimiento civil de los matrimonios realizados en las aldeas, dentro de las
normas y de la praxis jurídica en Brazil.

Palabras clave: Cultura Indígena Pataxó. Boda indígena Pataxó. Manifestaciones


artístico-culturales Pataxó.
11

ABSTRACT

The present research aims to present ARAGWAKSÃ, an annual celebration to


commemorate the recognition of the Pataxó indigenous territory, and to analyze the
cultural and historical manifestations in the context of this celebration, which began
on August 1, 1998 and in this year of 2018 will be celebrating its 20th edition. The
textual composition describes the historical process of the territorial formation and
dispersion of the Pataxó people, provoked by discrimination and persecution; while
the imagery shows the artistic-cultural aspects and registers their traditional
manifestations, in its photographic representation, in which are presented materials,
colors and meanings of deep symbolism ethnic. In this research, the qualitative
methodology of ethnographic principles was adopted. The participant observation,
the semi-structured interview, the iconographic and sound records and the moving
images were used for the collection and production of data. In order to analyze the
data, the assumptions of the content analysis, were chosen in order to proceed with
the theoretical articulation with the oral reports, photos of the Pataxó people and their
way of life. The conclusion is to highlight the important points of the Pataxó
Indigenous Culture, while invoking the constitutional rights to request the civil
recognition of marriages in the villages, within the norms and legal practice in Brazil.

Keywords: Pataxó Indigenous Culture. Pataxó indigenous marriage.


12

RÉSUMÉ

La présente recherche a comme objectif présenter l’Araguaksã - fête annuelle de la


reconnaissance du territoire indigène Pataxó - et d’analyser les manifestations
culturelles et historiques dans le contexte de cette célébration qui a débuté le 1er
aout 1998 et que cette année de 2018 célébrera sa 20ème édition. La composition
textuelle décrit le processus historique de formation et de dispersion territoriale du
peuple Pataxó provoqué par la discrimination et la persécution, tandis que le texte
d’imagerie montre les aspects artistiques-culturels et enregistre leurs manifestations
traditionnelles, dans sa représentation photographique, dans laquelle sont présents
les matériaux, les couleurs et les significations du profond symbolisme ethnique.
Dans cette étude nous avons adopté une méthodologie de type qualitatif fondée sur
une approche ethnographique. Comme méthodes de recueil de données nous avons
utilisé l’observation participante, l’entretien semi-structuré, des enregistrements
iconographiques, sonores et des images en mouvement. Pour l’analyse de données,
nous avons choisi les principes d’analyse de contenu, afin de procéder à l’articulation
théorique avec les rapports oraux, les photos du peuple Pataxó et leur mode de vie.
La conclusion met en évidence les points importants de la culture autochtone
Pataxó, tout en invoquant les droits constitutionnels de demander la reconnaissance
civile des mariages réalisés dans les tribu dans les normes et la pratique juridique.

Mots-clés: Culture indigène Pataxó. Mariage indigène Pataxó. Manifestations


artistiques et culturelles Pataxó
13

LISTA DE IMAGENS

Imagem 1 - Desembarque de Cabral em Porto Seguro em 1500. Oscar Pereira da


Silva, 1922.
Imagem 2 – Primeira Missa no Brasil. Vitor Meirelles, 1922.

Imagem 3 - Ponte de cipó. Rio De Janeiro. Johann Moritz Rugendas, 1824.


Imagem 4 – Indios da Colônia Brasilis, Jean Baptiste Debret, 1830

Imagem 5 - Mapa de ocupação indígena na costa brasileira.

Imagem 6– Escola Indígena Pataxó de Coroa Vermelha. Santa Cruz Cabrália, Bahia.
Mávis Dill Kaipper, 2005

Imagem 7 – Professores da Escola Indígena Pataxó de Coroa Vermelha em


demonstração do Awê. Santa Cruz Cabrália, Bahia. Mávis Dill Kaipper,
2005.

Imagem 8 – Jaguatiry Pataxó em palestra na Reserva da Jaqueira, Porto Seguro,


Bahia. Mávis Dill Kaipper, 2005.

Imagem 9 – Nitynawã Pataxó e Juary Pataxó, primeira entrevista sobre a História


Indígena. Reserva da Jaqueira, Porto Seguro, Bahia. Mávis Dill Kaipper,
2005.

Imagem 10 – Nitynawã Pataxó, uma das líderes da comunidade protagoniza o ritual


para os alunos da Universidade Estadual de Feira de Santana. Reserva
da Jaqueira, Porto Seguro, Bahia. Mávis Dill Kaipper, 2005.

Imagem 11 – Pai ensinando a filha a fazer fogo. Reserva da Jaqueira, Porto Seguro,
Bahia. Mávis Dill Kaipper, 2005.

Imagem 12 – Juary Pataxó, representante das jovens lideranças do povo Pataxó.


Momento do preparo do incenso de amesca. Reserva da Jaqueira, Porto
Seguro, Bahia. Mávis Dill Kaipper. 2005.
14

Imagem 13 e 14 – Alunos da Escola Indígena Pataxó de Coroa Vermelha em desfile


de participação dos Jogos Indígenas. Coroa Vermelha, Santa Cruz
Cabrália, Bahia. Mávis Dill Kaipper, 2016.

Imagem 15 – Desenho de Anarí Pataxó (retirado do livro Raízes e Vivências, 2005)


sobre a ocupação da aldeia de Barra Velha na década de 1940. Mávis
Dill Kaipper, 2018.

Imagem 16 – Professor Awóy Pataxó em visita à Reserva Indígena Pataxó da


Jaqueira, Porto Seguro, Bahia. Mávis Dill Kaipper, 2016.

Imagem 17 - Desenho à lápis retratando a anciã Taquara Pataxó, mãe das


lideranças fundadoras da retomada do território da Jaqueira e residente
local. Haywã Pataxó, 2018.

Imagem 18 - Ubiranã Pataxó durante os jogos Indígenas em 19/04/2016, Coroa


Vermelha, Santa Cruz Cabrália, Bahia. Mávis Dill Kaipper, 2016.

Imagens 19 e 20 - Pintura corporal tradicional e contemporânea durante os festejos


do Aragwaksã. Reserva Indígena Pataxó da Jaqueira, Porto Seguro,
Bahia. Mávis Dill Kaipper, (1º/08/2016)

Imagem 21 – Modelo de pintura para a mulher Pataxó no rosto e nos braços.


Extraído do Livro Raízes e Vivências, 2005.

Imagem 22 - Modelo de pintura para o homem Pataxó no rosto e nos braços.


Extraído do Livro Raízes e Vivências, 2005.

Imagem 23 - Detalhe da pintura corporal em cores. Casamento Cultural Pataxó.


Reserva Indígena Pataxó da Jaqueira, Porto Seguro, Bahia. Balmukund
Niljay Patel, 2016.

Imagem 24 - Jokana vestida conforme a tradição, com palha, côco, plumas e


sementes. Casamento Cultural Pataxó. Reserva Indígena Pataxó da
Jaqueira, Porto Seguro, Bahia. Balmukund Niljay Patel, 2016.

Imagem 25 - Dhahara pintando Nawí, ornadas com cocares, brincos e pulseiras


durante o Aragwaksã. Casamento Cultural Pataxó. Reserva Indígena
Pataxó da Jaqueira, Porto Seguro, Bahia. Balmukund Niljay Patel, 2016.
15

Imagem 26 - Syratã Pataxó, 20 anos, residente da Reserva Indígena Pataxó da


Jaqueira, Porto Seguro, Bahia. Balmukund Niljay Patel, 2008.

Imagem 27 e 28 – Perneiras e tornozeleiras tradicionais. Reserva Indígena Pataxó


da Jaqueira, Porto Seguro, Bahia. Balmukund Niljay Patel, 2016.

Imagem 29 – Arranjo de cabelo com plumas coloridas e contas. Jogos Indígenas.


Coroa Vermelha, Santa Cruz Cabrália, Bahia. Mávis Dill Kaipper, 2016.

Imagem 30 – As sete finalistas do Concurso de Beleza Indígena. Reserva Indígena


Pataxó da Jaqueira, Porto Seguro, Bahia. Mávis Dill Kaipper, 2016.

Imagem 31 - Cartaz alusivo ao Aragwaksã, 2017, Preservação da Mata Atlântica.


Reserva Indígena da Jaqueira, Porto Seguro, Bahia. Mávis Dill Kaipper,
2018.

Imagem 32 - Pajé Itambé Pataxó. Aldeia Urbana de Coroa Vermelha, Santa Cruz de
Cabrália, Bahia. Mávis Dill Kaipper, 2/11/2017.

Imagem 33 - Cacique Syratã Pataxó. Reserva da Jaqueira, Porto Seguro, Bahia.


Balmukund Niljay Patel, 2016.

Imagem 34 – Casal de noivos. Reserva Indígena Pataxó da Jaqueira. Porto Seguro,


Bahia, Balmukund Niljay Patel 2008.

Imagem 35 - Orquídeas da Reserva Indígena Pataxó da Jaqueira, Porto Seguro,


Bahia. Balmukund Niljay Patel 2008.

Imagem 36 - Moradias na mata da Reserva Indígena Pataxó da Jaqueira, Porto


Seguro, Bahia. Mávis Dill Kaipper, 2010.

Imagem 37 - Animal caçado e morto como prova de habilidade do noivo em caçar e


alimentar sua família. Reserva da Jaqueira, Porto Seguro, Bahia.
Balmukund Niljay Patel, 2008.

Imagem 38 – Noivo carregando a tora, acompanhado de outros guerreiros, na


terceira prova, para firmar compromisso com a pretendida. Reserva
Indígena Pataxó da Jaqueira, Porto Seguro, Bahia. Balmukund Niljay
Patel, 2008.
16

Imagem 39 - O noivo no momento da entrega da tora. Reserva Indígena Pataxó da


Jaqueira, Porto Seguro, Bahia. Balmukund Niljay Patel, 2008.

Imagem 40 - Arissana pintando a noiva para a cerimônia. Reserva Indígena Pataxó


da Jaqueira, Porto Seguro, Bahia. Balmukund Niljay Patel, 2008.

Imagem 41 - A chegada da noiva e seu cortejo no kijemi grande ou Aragwá. Reserva


Indígena Pataxó da Jaqueira, Porto Seguro, Bahia. Balmukund Niljay
Patel, 2008.

Imagem 42 - Centro do Aragwá, altar montado para o casamento, com objetos


sagrados e símbolos. Reserva Indígena Pataxó da Jaqueira, Porto
Seguro, Bahia. Balmukund Niljay Patel, 2008.

Imagem 43 - Kamaywrá incensando o local da cerimônia no Aragwaksã, Reserva


Índígena Pataxó da Jaqueira, Porto Seguro, Bahia. Balmukund Niljay
Patel, 2008.

Imagem 44 - Syratã desenha os sinais sagrados que firmam o compromisso do novo


casal. Reserva Indígena Pataxó da Jaqueira, Porto Seguro, Bahia.
Balmukund Niljay Patel, 2008.

Imagem 45 - Cerimônia da troca de cocares. Reserva Indígena Pataxó da Jaqueira,


Porto Seguro, Bahia. Balmukund Niljay Patel, 2008.

Imagem 46 - Momento da bênção dos guerreiros para a felicidade dos noivos. Kijemi
Grande, Reserva Indígena Pataxó da Jaqueira, Porto Seguro, Bahia.
Balmukund Niljay Patel, 2008.

Imagem 47 - Jaguatiry Pataxó compartilhando kawí com os guerreiros depois da


Bênção. Reserva Indígena Pataxó da Jaqueira, Porto Seguro, Bahia.
Balmukund Niljay Patel, 2008.

Imagem 48 - Casamento duplo realizado durante o Aragwaksã de 2016 por Nayara


Pataxó (com o cocar de papagaio). Reserva Indígena Pataxó da
Jaqueira, Porto Seguro, Bahia. Balmukund Niljay Patel, 2016.

Imagem 49 - Dança que encerra a cerimônia matrimonial. Reserva Indígena Pataxó


da Jaqueira, Porto Seguro, Bahia. Balmukund Niljay Patel, 2008.

Imagem 50 - Beijú com recheio de coco. Reserva Indígena Pataxó da Jaqueira,


Porto Seguro, Bahia. Balmukund Niljay Patel, 2008.
17

LISTA DE TABELAS

TABELA 01 – Cronologia da língua geral na Amazônia

TABELA 02 -Tronco Linguístico Macro-Jê. Fonte: RODRIGUES, Ayron Dall’Igna.


Línguas Brasileiras para o conhecimento das Línguas Indígenas.
São Paulo: Edições Loyola, 1986.

TABELA 03 – Lista de palavras em Patxôhã. Fonte: Nitynawã Pataxó, 2011, p.50.

TABELA 04 – Lista de nomes em Patxôhã e seu correspondente em português.


Fonte: livro Raízes e Vivências , 2005.
18

SUMÁRIO

1.0 INTRODUÇÃO - A PERMISSÃO ICONOGRÁFICA E O MÉTODO 19


1.1 Imagem e História 19
1.2 Trilha metodológica da pesquisa 28

2.0 AMÉRICA, CONTINENTE VAZIO? 48


2.1 Índio, ser ou não ser. É uma questão? 49
2.2 Não índio, mero contraste ou negação retaliante? 53
2.3 Quantos são os índios? 54
2.4 Terra de índio, índio da terra. 59
2.5 O preconceito linguístico como forma de exclusão 71
2.6 Breve histórico das lutas territoriais dos povos indígenas da Bahia 78
2.7 O outro, o estrangeiro de dentro 87
2.8 Extermínio ou mestiçagem 90

3.0 MEMÓRIA E IDENTIDADE NA FORMAÇÃO DA CULTURA PATAXÓ 96


3.1 Historiando o conceito de cultura 103
3.2 A tradição cultural dos antepassados 113
3.3 De onde vem o nome Pataxó? 116
3.4 Patxôhã - a língua Pataxó 116
3.5 Pintura corporal Pataxó 122
3.6 Confecção e uso de adereços tradicionais 129
3.7 A arte indígena – Bioarte 133
3.8 Aragwaksã – aniversário da Reserva Indígena Pataxó da Jaqueira 135
3.9 União conjugal indígena 139

4.0 CASAMENTO CULTURAL PATAXÓ – ANEMÃVÊY 148


4.1 Enamoramento 148
4.2 As provas de proteção, força e sobrevivência 150
4.3 A noiva 154
4.4 Aragwá 157
4.5 O pajé 158
4.6 A cerimônia de casamento 159
4.7 Ritual de Canto e dança – Awê 163
4.8 Mangutxi e Goyá 165

5.0 CONSIDERAÇÕES FINAIS 169

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS 176


BIBLIOGRAFIA CONSULTADA 185
ANEXOS 187
.
19

1.0 INTRODUÇÃO - A PERMISSÃO ICONOGRÁFICA E O MÉTODO

A comunidade indígena Pataxó da Bahia, cuja aldeia-mãe se localiza próximo


ao Monte Pascoal, foi um dos primeiros povos nativos a manter contato com os
europeus e sua cultura. Desde o início do século XVI, esse povo vem sofrendo uma
deculturação1 contínua e progressiva. Ao final do século XX e início do século XXI,
alguns componentes das aldeias Pataxó2 alcançaram estudos universitários e
sentiram a necessidade de resgatar sua identidade indígena e os costumes da sua
gente. Em consonância com essa ideia, o presente texto versa sobre a história e a
cultura do povo Pataxó, apresentando-se como uma proposta ambiciosa, diante da
reduzida bibliografia específica existente e da evidente exogenia da pesquisadora
numa cultura tão diversa da sua.
Diante dos fatos expostos, faz-se mister pedir permissão para que o texto
contenha citações eivadas de palavras de uso corriqueiro na aldeia, com bibliografia
de própria autoria de pessoas de etnia Pataxó, assim como o uso de imagens que
lhes retratem a vida e as circunstâncias.

1.1 Imagem e história

No intuito de relacionar melhor ilustrações, fotos e imagens utilizados no


correr do texto, busca-se uma análise que amplie o entendimento raso que se tem
sobre os registros visuais e se expanda gradativamente a forma de ler as imagens,
em união harmônica ao texto que a acompanha. “A comunhão entre Desenho e
História ainda é pouco analisada no meio técnico científico, o que tem revelado
lacunas nos âmbitos da reconstituição iconográfica e da história das artes.”
(TRINCHÃO; OLIVEIRA,1998, p. 35) Seria por demais banal considerar imagens
com todo um conteúdo explícito como mera ilustração ou simples instrumento para
transmissão fácil de conteúdos, como ocorre em publicações jornalísticas. Destaca-

1 O termo deculturação é usado para designar o processo que opera nas situações especiais em que contingentes humanos
desgarrados de sua sociedade (e, por conseguinte, do seu contexto cultural), por meio do avassalamento e da transladação, e
aliciados como mão de obra de empreendimentos alheios, se veem na contingência de abandonar seu patrimônio cultural
próprio e aprender novos modos de falar, de fazer, de interagir e de pensar (RIBEIRO, 2007, p. 36).
2
Pataxó – designa o coletivo de “um povo indígena de língua da família Maxacali, do tronco Macro-Jê” (ALBUQUERQUE,
2010, p.14). “Esse nome não se usa no plural, viu pró?” (INFORMAÇÃO ORAL DE RAYÔ PATAXÓ, DIRETORA DA ESCOLA
INDÍGENA PATAXÓ DE COROA VERMELHA, 2006).
20

se, antes de prosseguir, informar que as autoras supracitadas serão referenciadas


também mais adiante, uma vez que suas assertivas são importantes e explicativas.
No presente trabalho, o ímpeto vai na direção conectiva entre História e
registro imagético, de forma a transpor antigos paradigmas e evidenciar uma nova
visão interpretativa sobre imagens atuais e/ou registros visuais do passado.
Profissionais de pesquisa em Desenho, Imagens e Registro Visual
argumentam sobre a possibilidade de que artefatos ilustrativos sejam considerados
como “fonte de conhecimento, passível de críticas e aberto a interpretações, tão
importante quanto o texto de valor histórico”. (TRINCHÃO; OLIVEIRA,1998, p.36).
Observa-se que, desde os desenhos rupestres, viajando por toda a produção
pictórica da Idade Medieval, a imensa variedade de imagens produzidas atualmente,
com recursos de programas de computador, independente de ser uma obra histórica
ou ter valor artístico, faz parte do cabedal de registros de uma época e de uma
cultura ou civilização. Resguardados devidamente as proporções entre os recursos
disponíveis a cada época, as individualidades de cada artista, a capacidade de
interpretação de quem a aprecia, na atualidade, é possível dispor de muitos registros
gráficos que podem agir como ativadores da imaginabilidade, evocando o passado e
provocando diversas interpretações da representação da História.
Invoca-se o conceito da exiguidade do tempo presente para lembrar que as
imagens fotográficas registradas na Reserva Indígena da Jaqueira e outros locais de
convívio e visitação, passados apenas dez anos, em 2014, já se tornaram fonte de
interesse e curiosidade entre os moradores locais, visto que as visitações na aldeia
se tornaram constantes a partir de 2004, embora possa ser entendido como tempo
presente, por se tratar basicamente sobre as mesmas pessoas, no mesmo local e
um pequeno intervalo de tempo. E com mais quatro anos, ou seja, passados catorze
anos, as fotografias feitas com as crianças da época, em 2018 são registros
históricos da forma de vida pregressa dos jovens adultos. É evidente que essas
fotos revistas, nos dias atuais, são imagens impregnadas de descrição histórica.
Os registros históricos, independentes de serem escritos ou imagéticos, são
testemunhos que caracterizam uma área do conhecimento que não atinge apenas o
tempo vivido, estendendo-se ao tempo da memória e da experiência,
proporcionando a reconstrução do passado. “O desenho não é um fenômeno isolado
e representa um conjunto variável de habilidades na manipulação de imagens no
espaço mental e plástico, assim como o registro escrito manipula as palavras nos
21

textos.” (TRINCHÃO; OLIVEIRA,1998, p. 39). Entendendo-se esse processo como


uma gramática gráfica, torna-se possível ao leitor ou espectador fazer leituras e
interpretações, conforme sua própria habilidade e conhecimento.
A premissa que aqui se estabelece não aceita definições, nas quais o
desenho seja apenas mera expressão gráfica da forma, sem considerar os vínculos
que possam se estabelecer entre a História e o Desenho, as imagens e outras
representações visuais. Assim, entende-se que são formas de transmissão de
conhecimento intrinsecamente relacionadas, que têm igual função: a de registrar
histórias, individuais e coletivas, grafando no tempo e no espaço a trajetória das
civilizações. Enquanto registro histórico, o desenho incumbe-se de contextualizar e
possibilitar o entendimento dos acontecimentos.
As autoras esclarecem que a arte, como objeto histórico, pode ser analisada a
partir da reflexão que Walter Benjamin oferece por meio de sua concepção de
história, de arte e de memória. O conceito benjaminiano de história não tem como
foco principal a história social, assim como não se detém numa postura de crítica
endereçada à história da arte ou a qualquer outra categoria de história. A sua
análise caracteriza-se por uma revisão crítica da história da literatura que pode ser
vista como uma análise que se expande à compreensão geral da história.
Benjamin (1994) estabelece conceitos nos quais são perceptíveis
manipulações que limitam a referência histórica preexistente, de maneira que o bem
cultural permaneça restrito a resquícios do contexto histórico, restringindo as
conexões entre arte e memória, e limitando a vocação histórica da obra de arte.
Não se deve, portanto, desassociar as obras do passado do contexto histórico
em que se inserem, ignorando a reflexão sobre as nuances históricas e políticas
inoculadas por uma historiografia burguesa, que dominou fatos e registros durante
séculos e requer transparência nos seus reais objetivos.
Ressalte-se a premência em como pensar o tempo histórico, e sua
importância, ao inserir imagens e registros visuais, enquanto testemunho histórico.
Naturalmente, compreende-se que a interpretação sobre o objeto de arte histórica
implica na releitura do passado; dessa forma, tornando-se passível de uma nova
construção. Concebe-se a possibilidade de uma avaliação crítica converter-se numa
experiência de libertação de um passado expressivo, que aguarda ansioso o
momento de transbordar suas verdades anteriormente encobertas pelas curvas
tendenciosas do tempo, que esconde o súdito para enaltecer a majestade, que anula
22

a fêmea reprodutora para sobrepujar seu patrão, que reveste cristãos com pele de
ovelhas para que obedeçam seus pastores...
Justifica-se a análise crítica e a libertação nesse entrelace de relações plurais,
onde o registro histórico baseia-se no conceito de que imagens e meio ambiente
interagem continuamente entre si e com o observador. O meio seleciona, organiza e
dota de sentido aquilo que vê, dessa maneira limita e dá ênfase ao que é visto.
Para captar verdadeiramente uma imagem, é necessária toda uma
desconstrução crítica, um conhecimento amplo da gramática que regula linhas e
cores, assim como uma boa dose de sensibilidade contemplativa. Sabe-se que a
interpretação iconográfica retém uma carga histórica que deve ser
convenientemente assimilada para que se compreenda visualmente a preexistência
de uma imagem em seu contexto.
Muitos trabalhos de reconstituição factual se apoiam em documentos,
fotografias, gravuras, desenhos, pinturas, o que os caracterizariam como recortes
iconográficos da história, porém, inevitavelmente, as lacunas de informações visuais
serão subsidiadas por fragmentos de informações escritas, relatos orais e
interpretação subjetiva. Sobre o desembarque, escreve Caminha:

E dali avistamos homens que andavam pela praia, obra de sete ou


oito, segundo os navios pequenos disseram, por chegarem primeiro
ali... e o Capitão mandou no batel em terra Nicolau Coelho para ver
aquele rio: e tanto que ele começou para lá a ir, acudiram pela praia
homens, quando dois, quando três, de maneira que ,quando o batel
chegou à boca do rio eram ali dezoito ou vinte homens pardos, todos
nus, sem nenhuma coisa que lhe cobrisse suas vergonhas; traziam
arcas nas mãos e suas setas [...](CASTRO, 1968 apud TRINCHÃO;
OLIVEIRA, 1998, p.40).
23

Imagem 1 – Desembarque de Cabral em Porto Seguro em 1500. Oscar Pereira da Silva, 1922.

A compreensão do mundo atual depende da forma como são lidos os


registros visuais e os textos antigos. Segundo Decca (1991), o real torna-se aquilo
que o historiador construiu na sua trama e na sua intriga, num referencial artificial de
tempo.
Existem bons exemplos de historiadores gráficos como Jean Baptiste Debret,
Joann Moritz Rugendas, membros da Missão Francesa que veio ao Brasil em 1816.
Eles atuaram na Academia Imperial de Belas Artes do Rio de Janeiro, que, a partir
de seu imaginário, retrataram cenas memoráveis do descobrimento e de outros
episódios importantes da história brasileira. Enquanto Pero Vaz de Caminha –
escrivão-mor da expedição de Pedro Álvares Cabral - descreve como foram os
contatos com os portugueses e os índios Tupiniquim, três séculos depois, artistas
como Vitor Meirelles e Oscar Pereira da Silva, fizeram sua releitura particular
baseado na Carta de Achamento (ver imagens 1 e 2).

Ao domingo de pascoela, pela manhã, determinou o capitão de ir


ouvir missa e pregação... Mandou naquele ilhéu armar um esparavel,
e dentro dêle alevantar altar mui bem corrigido... Acabada a missa... e
pregou uma solene e proveitosa pregação da história do evangelho; e
em fim dela tratou da nossa vinda e do achamento desta terra [...]
Enquanto estivemos à missa e à pregação, saíram na praia outra
tanta gente, pouco mais ou menos como os de ontem, com seus
arcos e setas, os quais andavam folgando e olhando-nos e
24

assentaram-se (CASTRO, 1968 apud TRINCHÃO e OLIVEIRA, 1998,


p.40).

Imagem 2 - A Primeira Missa no Brasil, quadro pintado por Vitor Meireles, 1861.

Algumas dessas cenas retratadas por esse pintor tornaram-se relatos


históricos que, ultrapassando gerações, foram fontes incontestáveis de história. Ele
procurou também retratar os selvagens brasileiros, deixando claro que o seu objetivo
era mostrar o homem da natureza, com seus meios intelectuais primitivos, em face
ao homem da civilização, armado com todos os recursos da ciência (ver imagem 3).
Os artistas, com seus desenhos, e Caminha com suas cartas, representam o
primeiro registro escrito da história do Brasil, quando retratam a história de um vasto
território que, segundo Debret (1989), achava-se “repartido entre tribos selvagens
cujo caráter variava de conformidade com a influência do solo que habitavam e o
modo de conseguirem os seus meios de subsistência”.
25

Imagem 3 – Índios sobre a ponte de Lianne. Rugendas, 1824.

As pranchas desenhadas, aquareladas, posteriormente litografadas e


apresentadas por Debret em um dos seus livros - Viagem Pitoresca e Histórica ao
Brasil (1989) - foram consideradas como o mais completo documentário social,
histórico e paisagístico que se conhece [...] testemunho fiel de um período da
história brasileira e constituem-se em fonte de conhecimento do passado, em
vestígios da história brasileira. Tais registros fazem de Jean Baptiste Debret, junto a
Johann Moritz Rugendas e muitos outros, historiadores gráficos que tiveram sua
forma singular de pensar os fatos que determinaram a narrativa gráfica da história.
O próprio artista, Debret, concebia-se como um pintor de história, que
trabalha a partir de sua experiência, sua interpretação e formação. De fato, esses
condicionantes incidem sobre sua obra e devem ser revistos no momento em que o
observador se detém numa análise crítica.
26

Imagem 4 - Indios da Colônia Brasilis. Debret, 1830.

Questiona-se a verdadeira imagem do Brasil que foi retratado por seus


desenhos, pois, segundo o próprio Debret (1989), ele foi encorajado por estrangeiros
que o visitaram a “preencher algumas lacunas, a fim de compor uma verdadeira obra
histórica brasileira” (apud TRINCHÃO;OLIVEIRA, 1998, p.40).
Destaque-se aqui o interesse do artista por motivos pictóricos comuns ao
contexto sócio-político brasileiro da época, assim como o desejo de produzir uma
obra histórica verdadeira, que denotasse civilização, progresso e honra e que
principalmente colocasse aquele jovem país numa situação similar a de outras
nações do continente.
De qualquer forma, é dever lembrar que a produção desses artistas tem papel
fundamental na historiografia da arte brasileira, porém são obras de estrangeiros e
carregadas de intencionalidades políticas.
O ponto de partida para inaugurar os fatos e relatos pertencentes à memória
histórica de um grupamento, não pode estar noutro lugar, que não seja seus
antepassados, aqueles parentes antigos que precederam as gerações atuais e que
formam o corpo ancestral de um povo. Os ancestrais habitam o mundo espiritual e
podem se comunicar com seus descendentes de maneira onírica ou pelos sons das
águas, do vento, das árvores, da floresta ou qualquer outro elemento da natureza.
Eles se manifestam de forma a proteger e preservar seu povo, exercendo assim um
papel de verdadeiras divindades anciãs. Como exemplo, na Reserva da Jaqueira,
27

Takwara, atualmente com 98 anos exerce esse papel e nos honra com sua
presença.
Para honrar a importância das imagens anteriormente citadas, fotos e
desenhos que estão inseridos no correr do trabalho, de maneira que serão
respeitados os limites que definem e regem o conceito de texto imagético, que
sugere que a linguagem textual pode ser expressa num texto musical, ou num texto
fotográfico, ou num texto gestual, dado que estas linguagens são interdependentes
isto é, se complementam e se fundem, formando assim, um novo tipo de linguagem
e de texto, que se constituem mutuamente. Celia Abicalil Belmiro, da Faculdade de
Educação da UFMG, esclarece que:

Aceitar que as imagens podem se constituir como textos é poder dizer


que, antes de tudo, elas se estruturam na forma de um texto visual
que pode ser lido. A questão que se coloca é como podemos ler esse
texto imagético. Lembramos que a definição de texto toma por base
as teorias linguísticas atuais que vêm ampliando esse conceito como
uma produção, seja verbal, sonora, gestual, imagética, em qualquer
situação de comunicação humana, estruturada com coerência e
coesão. São necessários minimamente os interlocutores, um contexto
e um texto, que pode apresentar diferentes materialidades.3

Entende-se que tanto o texto visual como o sonoro, o gestual ou outro


obedecerá as especificidades de cada linguagem e suas regras gramaticais de
composição de texto, de forma que uma exposição de arte pictórica, por exemplo,
pode ser considerada “um texto visual, na medida em que os elementos mínimos
necessários para se constituir como texto estão presentes – o expectador, a obra, o
ambiente onde se expõe a obra” (BELMIRO, 20184) e suas intenções
compartilhadas.
Calixto (2018) complementa:

Nas discussões que se desenvolvem sobre a leitura, buscando


determinar quem é o responsável pela construção de sentidos dos
textos, o eixo se desloca ora para o leitor, ora para o autor, ora para o
texto, ora para a interação desses fatores, ou para outros tantos que
os ultrapassam. Dependendo da ótica que se adote, as respostas se
polarizam numa ou noutra dimensão. Não se trata de entrar nessa
polêmica, mas de buscar determinar o papel que a forma
desempenha para a construção do sentido do texto. (2018, p.104)

3 Disponível em: <www.agb.org.br/XENPEG/artigos/GT/GT5/tc5%20(80).pdf.>. Acesso em: 06 fev. 2018.


4 Disponível em: <www.agb.org.br/XENPEG/artigos/GT/GT5/tc5%20(80).pdf.>. Acesso em: 06 fev. 2018.
28

Existe um indício de que as formas falam, expressam-se. Então, mesmo num


estudo demorado, vai-se perceber que o discurso não se faz fora de uma forma
(CALIXTO, 2018), e, pode dizer coisas ao leitor, que poderão estar para além de sua
percepção. Ainda acrescenta o autor que, “No caso do discurso imagético, pode-se
postular que a forma com que ele acaba vindo a público seja fruto da reflexão do
produtor e que as formas sejam definidas a partir de uma forma de concepção
social” (p.104). Tal consideração se refere tanto aos objetos, quanto às pessoas
envolvidas.
No mundo da leitura imagética, a fusão entre verbal e não-verbal toma
conceitos amplos, criando novas formas de interagirmos com o mundo. Um mundo
habitado por imensa diversidade de formas, cores, geografias, histórias e culturas. E
é exatamente nessa amplitude que se espera que a permissão, pedida
anteriormente, seja concedida pelo consenso dos que a lerão e oxalá a riqueza de
detalhes que lhe é implícita, se concretize num bom casamento entre o texto
vocabular, o fotográfico e os desenhos.
Nessa perspectiva, o texto irá seguindo na direção em que permite uma
pessoa de cultura ágrafa “ler” o resultado de uma tese, habilitado por sua
cosmovisão indígena, num exercício de observação de imagens eleitas sobre seu
povo. Seria uma grande honra poder mostrar um resultado cuja comunicação e
propósito se estabelecessem claramente entre uma instituição acadêmica e uma
comunidade que clama por reconhecimento.
O tema abrangente desta pesquisa suscita a ideia de um entendimento mais
amplo sobre o conceito de cultura, cultura indígena e o processo histórico que a
constituiu. Especificamente os conceitos de cultura ou de memória étnica
normalmente nos remetem a aspectos culturais de destaque em relação a outros
grupos indígenas, visto que ainda não existe um registro bibliográfico amplo e
acessível sobre o povo Pataxó, pois eles estão em processo de pesquisa e existem
apenas alguns livros editados de sua própria autoria sobre assuntos e temas
variados, produzidos nas últimas décadas.

1.2 Trilha metodológica da pesquisa

O estudo foca no povo Pataxó do sul da Bahia, que habita a região de Coroa
Vermelha, em Santa Cruz Cabrália e distritos pertencentes a Porto Seguro, como é
29

o caso da Reserva Indígena da Jaqueira. Essa marcação territorial é para distinguir


o povo Pataxó do povo “Pataxó Hã-Hã-Hãe, que vive na região de Pau-Brasil,
Camacã, Itaju e Camamu” (ALBUQUERQUE, 2010, p.118). Conforme o mapa, a
seguir, referente à distribuição dos povos indígenas brasileiros no século XVI, que
ilustra a ocupação territorial da costa brasileira em 1587, o povo Pataxó não é
citado, mas documentos antigos mencionam a possibilidade deles serem
denominados equivocadamente de Aimorés5, como vemos no trecho que segue
“Brasil: 500 anos de povoamento”, de Ronaldo Vainfas (2000, p.42):

Os chamados “tapuias” são de muito mais difícil identificação no


Período Colonial, pertencendo boa parte deles ao tronco linguístico
Jê ou a famílias linguísticas independentes, além de menos
controlados pelos portugueses. Alguns deles se notabilizaram, no
entanto, pela resistência aos portugueses, como foi o caso Aymoré.

Existe uma evidente simpatia nos membros da etnia Pataxó pelos Aymorés,
ou Botocudos, assim como também pelos Maxacali, pois são sempre citados em
conversas, provavelmente demonstrando laços criados no período da redução
jesuítica, em que ficaram todos juntos na aldeia de Monte Pascoal, pré-existente e
reconhecidamente Pataxó.

Imagem 5 - Fonte: Cf. nota de rodapé6.

5
Aimoré, designado eventualmente de ‘botocudo’ devido a uma rodela de madeira introduzida em furos artificiais feitos nas
orelhas e no lábio inferior. Citado como povo destemido e guerreiro, lutaram contra a ocupação de seu território nas capitanias
de Ilhéus e Porto Seguro pelos colonizadores europeus. Foram obrigados a se deslocar do Nordeste para o Sudeste e Centro-
Oeste juntamente com a confederação Maxakali, também chamada Naknenuk (Pataxó, Monoxó, Amixokori, Kumonoxó,
Kutatói, Malalí, Makoní, Kopoxó, Kutaxó, Pañâme) ANDRADE, 2011, p.17
6
https://commons.wikimedia.org/wiki/File:Map_of_indigenous_peoples_of_Brazil_(16th_C.).jpg#/media/
File:Map_of_indigenous_peoples_of_Brazil_(16th_C.).jpg.
30

.De acordo com o General José Couto de Magalhães (1935), baseado em


informações de Gabriel Soares de Souza (1587) e Frei Jaboatão (1761)7, os
seguintes povos habitavam a costa brasileira no século XVI (grafia da época):

v Tapuyas
v Potiguara
v Cayeté
v Tupinambá
v Tupinanki
v Papaná
v Aimoré
v Goaitacá
v Tamoyo
v Goayaná ou Guayaná
v Carijó
v Tapuyas do Sul (Charua e Minuan)

Fausto (2000), discorrendo sobre a cultura Macro-Jê e sua localização, relata


que, inicialmente, “os Tupi-Guarani do litoral chamavam os povos do sertão de
Tapuia e os descreviam como gente bárbara, desprovida de aldeia, agricultura,
canoa, rede, e cerâmica (justamente os traços que iriam definir os marginais)” (p.60).
E acrescenta: “o protótipo dessa categoria eram os grupos de caçadores/coletores,
que, divididos em pequenos bandos estruturados pelo parentesco, levavam uma
vida nômade” (p. 60). Na verdade, esses grupos não se adequavam à imagem de
marginais, mas abrigavam todos os povos que não se encaixavam em classificações
maiores no Guia dos índios sul-americanos, publicado pelo antropólogo norte-
americano Julian Steward (1946 in MELLATI, 2007, p.44), que classificava e criava
quatro grandes tipos de indígenas, numa tentativa de hierarquizar a população
indígena, a partir de graus de complexidade entre a organização sociopolítica, seus
modos de produção e a ecologia.
“Marginal” também é o termo usado por Dantas, Sampaio e Carvalho, (1998
in CUNHA, 1998) ao se referir sobre os povos indígenas do Nordeste, que viviam no

7 Os três autores têm obras de destaque com dados geográficos, históricos, linguísticos e botânicos sobre o Brasil. (Nota da
autora)
31

território americano mais próximo da Europa, em se considerando as distâncias


marítimas. O solo nordestino não oferecia tantas ameaças e desafios como a
floresta tropical fechada que ocupava a zona meridional do território brasileiro, e
ainda contava com a facilidade de acesso por meio da navegabilidade do Rio São
Francisco. Devido às circunstâncias favoráveis, “em pouco menos de duzentos
anos de efetiva presença colonial, devassado quase todo o seu território e, mais que
isso, definidas as bases de toda a sua vida económica ulterior” Dantas, Sampaio e
Carvalho, (1998 in CUNHA, 1998, p.434). A partir do século XVII, marcados
sobretudo pelo processo histórico da sua marginalização, com a descoberta das
minas e consequente deslocamento do pólo económico para Sudeste solidifica-se
uma marginalidade constituída pelo próprio processo histórico regional. Tal aspecto
pode ser esclarecedor ao processo de dispersão ou aglutinação dos povos
indígenas do Nordeste e que, mesmo a partir de uma grande diversidade étnica,
lograram constituir sua sobrevivência etnológica “sob o indelével signo da
marginalidade”. O termo marginal e outros mais desqualificantes são encontrados
com prodigalidade em textos dos séculos XVI, XVII, XVIII e XIX. No presente
contexto, o termo é reiterado por Steward (1946 in CUNHA,1998 p.431) para
nominar “todos os povos sul-americanos não relacionados à floresta tropical, caso
típico de todos os povos do Nordeste se excluídos os Tupi costeiros”. Na visão do
colonizador quinhentista, havia os Tupi com unidade linguística e cultural e os seus
inimigos, com imensa diversidade espalhados pela caatinga, os tapuias.
No bojo das afirmações acima, percebem-se as tentativas de desqualificação
e marginalização, atitude totalmente rechaçada na presente proposta. Não é tarefa
fácil para um pesquisador imergir numa cultura alheia à sua, como é o caso da
cultura Pataxó, sem delimitações firmes e num momento no qual a preocupação
maior é de unir forças para resgatar suas verdades ancestrais.
Diante do exposto, vê-se que é necessário delinear as características da
identidade indígena para que, mesmo os povos que sofreram contínuos massacres
e repressão severa de sua cultura, hoje chamados de aculturados, possam se
entender e se unir a mais povos indígenas, retomando aspectos de sua origem.
Esta proposta de pesquisa busca reconhecer a trajetória histórica vivida pelo
povo Pataxó, de forma que a noção de cultura tenha um sentido antropológico, no
qual possam ser incluídos todos os produtos materiais, espirituais e
comportamentais da vida indígena. Considerando-se Thompsom (apud ALMEIDA,
32

2010, p. 21) que enfatiza a cultura como um produto histórico, dinâmico e flexível,
que pode ser apreendido como um processo no qual homens e mulheres vivem suas
experiências, a variação de aprofundamento, neste trabalho científico, será pautada
nos produtos artísticos, no que se refere ao grafismo, à plumária e ao artesanato
indígena Pataxó, exibido pelos próprios moradores da Aldeia da Jaqueira, durante a
festa do Aragwaksã e no cotidiano da aldeia, por intermédio de sua produção
artesanal.
Considerando-se que nesse cenário as estruturas culturais orientam o
comportamento dos homens, mas não podem ser vistas como malhas de ferro que
não lhes possibilitem agir fora delas, faz-se mister perceber as mudanças culturais,
tanto nas situações de perda e esvaziamento, quanto nas aquisições pelo contato
com outros povos. Dessa maneira, o entendimento sobre aculturação também se
torna flexível, aceitando a possibilidade de ressignificação cultural, nas quais se leva
em conta o interesse e a motivação dos próprios indígenas nos processos de
mudança. Assim, eles deixam de serem vítimas passivas de imposições culturais e
passam a ser vistos como agentes do processo, incorporando novos elementos da
cultura ocidental, quando lhes atribuem significados próprios e os utilizam nas novas
situações que vivenciam.
A seguir, relata-se o interesse por este tema, que iniciou na companhia da
professora Nadja Maciel8, em uma viagem de campo com uma turma de Estágio
Curricular do Curso de Pedagogia da Universidade Estadual de Feira de Santana
(UEFS), em 2005, numa visita, pela primeira vez, à Escola Indígena Pataxó de
Coroa Vermelha, em Santa Cruz Cabrália.
Naquele momento, impressionou-nos as características físicas da escola, sem
muros nem cercas, com salas em formato octogonal e cobertura de piaçava. (ver
imagem 7)
Outro fator de destaque naquela primeira visita foi a tranquilidade entre alunos
e professores devido ao comportamento calmo que predominava entre os
estudantes da escola.

8
Profa. Dra. Nadja Maria Lima Maciel, titular da disciplina Estágio do Departamento de Educação na
Universidade Estadual de Feira de Santana, que costumava levar seus alunos para estagiar na Escola Indígena
Pataxó de Coroa Vermelha entre 2005 e 2014.
33

Imagem 6 – Escola Indígena Pataxó de Coroa Vermelha. Santa Cruz Cabrália,


Bahia. Registro da autora, 2005.

.
A primeira impressão fora muito positiva, visto que, naquela época, alguns
alunos ainda se vestiam com tupsay9, trajes típicos da cultura Pataxó, e usavam
colares de contas e cocares com plumas, nos quais predominava a cor vermelha.
Noutra sala separada, havia uma exposição sobre a língua Patxôhã, os números e
os desenhos corporais masculinos, femininos e seus significados.

Imagem 7 – Professores da Escola Indígena Pataxó de Coroa Vermelha em demonstração do Awê.


Santa Cruz Cabrália, Bahia. Registro da autora, 2005.

9
Tupsay – termo na língua Patxôhã para designar um elemento do traje típico da etnia Pataxó, composto por
longas tiras de palha macia que é amarrada na cintura semelhante a uma tanga. (nota da autora).
34

As professoras da escola incentivaram a visitar à Reserva da Jaqueira, onde


foi possível observar o modo de vida tradicional na mata, presenciar o awê, dança
tradicional, e um jovem chamado Jaguatiry contou a história de seu povo, seus
costumes e detalhes da vida na floresta, na perspectiva do povo Pataxó.

Desde então, estabeleceu-se um


vínculo de apoio e de estudos com os
professores da referida escola e da
Reserva. Nesse período, outros
professores da UEFS passaram a levar
seus alunos até Porto Seguro e Cabrália,
envolvendo-os em projetos, cada um
dentro dos interesses de seu curso,
procurando colaborar com a melhoria da
qualidade de vida dos indígenas Pataxó.
Tais projetos eram traçados conforme os
professores indígenas solicitavam, para
que não houvesse uma interferência
maior do que já houvera historicamente

em seus costumes, bem como para


Imagem 8 – Jaguatiry Pataxó em
procurar interferir, no mínimo possível, em
palestra na Reserva da Jaqueira,
Porto Seguro, Bahia. Registro da suas rotinas.
autora , 2005.

As viagens de Feira de Santana para Porto Seguro


ocorriam 2 a 3 vezes por semestre. Da convivência semestral, porém contínua, com
as comunidades Pataxó, cresceu o interesse em colaborar com o movimento de
resgate da sua cultura e de suas origens, esforço que eles têm feito com recursos
próprios, conforme conversa informal com os moradores da Reserva da Jaqueira.
(ver imagem 9)
35

Imagem 9 – Nitynawã Pataxó e Juari Pataxó, primeira entrevista sobre a História Indígena. Reserva
da Jaqueira, Porto Seguro, Bahia. Registro da autora, 2005.

O lastro deixado na formação da autora pelo Mestrado em Educação


Especial, curso ministrado por professores de uma instituição cubana, conduziu o
pensamento, no qual se considera a educação indígena como Educação Especial,
atualmente denominada de Educação Inclusiva. Ressalte-se, neste momento, que o
alicerce de todos os estudos em Educação Especial é o respeito pelas diferenças.
Ao planejar uma pesquisa científica pautada em estudos históricos e culturais de
uma etnia diferente, a ênfase deverá repousar basicamente sobre o profundo
respeito entre os diferentes. Una-se a isso o senso de preservação pela cultura
alheia que poderá trazer contribuições para o registro escrito e iconográfico, assim
como para o entendimento de especificidades identitárias Pataxó. Durante os 13
anos de convívio com eles e seus modos de enfrentar a vida com paciência e
coragem, surgiu o desejo de retornar para eles com algum produto que colabore na
caminhada que têm feito em direção à reconstrução de sua própria identidade
cultural. (ver imagem 10)
36

Imagem 10 – Nitynawã Pataxó, uma das líderes da comunidade protagoniza o ritual para os alunos
da Universidade Estadual de Feira de Santana. Reserva da Jaqueira, Porto Seguro, Bahia. Registro
da autora, 2005.

Existe uma necessidade do indivíduo de se conhecer, se entender e se


identificar. Essa necessidade permeia a cultura dos indígenas e eles também se
perguntam o que é ser “índio”? Avançando mais nessa ideia, surge a questão do
que o caracteriza, os traços da cultura que o designam e o identificam como
pertencente a determinado povo. O indígena da Bahia não é o mesmo da Amazônia,
de Goiás, do Xingu ou de qualquer outra região brasileira. Questões relevantes que
permeiam este contexto são a da temporalidade e da demarcação de espaço, visto
que o indígena de hoje não é o mesmo de antigamente, assim como o território que
consideram deles, está, hoje, sob outras leis e outros proprietários.
Desse modo, devem ser considerados os critérios de inclusão e exclusão que
legitimam o processo de delimitação das fronteiras identitárias para os povos
indígenas, que propiciam uma reflexão sobre o que tem havido, tanto de adequado
como de nefasto, para a vida das comunidades indígenas em todo o Brasil,
especialmente daquelas que surgiram a partir de sua luta e do fato de se
autodeclararem indígenas. Mota (2008) destaca que:
37

[...] o modo como o resgate cultural indígena está levando o indígena


para fora de sua aldeia, em sentido contrário ao movimento anterior
de estar dentro da aldeia. O que nos chama mais atenção para
esses processos de definição da identidade indígena é a atual
inclusão dos mesmos na sociedade brasileira de uma forma bastante
diferente do que acontecia antigamente, quando ser índio era visto
como algo negativo, pois se lhes atribuíam as piores qualidades
possíveis. (2008, p. 23)

A autora reafirma que, quando uma comunidade se reconhece como


indígena, ela se organiza em torno de seus antigos costumes. Daí surge uma
necessidade de se individualizar, o que leva a comunidade a buscar um
reagrupamento em um novo território definido como indígena, para que possa
apropriar-se da terra, objetos, labores e tradições culturais. Trata-se de um
movimento em direção a um suposto resgate da antiga forma de ser, das tradições
reconhecidas como tribais e legitimadas perante as leis nacionais.

Acima de tudo, sobrevive ainda o mito do “índio legítimo” sem o qual


nã há auto-afirmação possível. Assim, as comunidades recém re-
constituídas vivem a busca e a validação de uma cultura tradicional
como verdadeiro capital cultural, que lhes há de valer na hora de
provar aos órgãos oficiais que têm direito à terra e a apoios
institucionais. (MOTA, 2008, p. 23)

Imagem 11 – Pai ensinando a filha a fazer fogo. Reserva da Jaqueira, Por-


to Seguro, Bahia. Registro da autora, 2005.
38

Neste contexto, a intenção desta pesquisa surgiu por entender que a


Universidade, como instituição acadêmica, pode dar um contributo para que esse
quadro seja modificado, reconhecendo e publicizando as manifestações culturais e
identitárias de cada grupo étnico, estimulando o fortalecimento da cultura indígena
em sua própria comunidade como também nas comunidades que não convivem com
os indígenas e têm uma ideia defasada e estereotipada do que significa ser indígena
no Brasil de antes e de agora.

Imagem 12 – Juari Pataxó, representante das


jovens lideranças do povo Pataxó. Momento do
preparo do incenso de amesca. Reserva da Já-
queira, Porto Seguro, Bahia. Registro da autora,
2005.

Neste estudo, emerge como objetivo geral: investigar os aspectos da


cultura e da história indígena Pataxó que os identificam e os individualizam
como povo.
E, no âmbito desse objetivo, delimitam-se etapas e tarefas, que foram se
estabelecendo na seguinte ordem:
39

1. Aprofundar os estudos bibliográficos sobre a história e a cultura indígena


no Brasil e como o povo Pataxó se insere neste contexto.
2. Definir critérios identitários gerais dos indígenas brasileiros para
possibilitar uma base de dados e seu posterior estudo e categorização.
3. Estabelecer contatos prévios presenciais, pedir permissão oral e escrita
para desenvolver a pesquisa, marcar os encontros vivenciais com os
moradores das Aldeias Pataxós e, só posteriormente, e nessa ordem,
fazer a visita, sem tempo inicialmente pré-determinado.
4. Entrevistar os anciãos das Aldeias Pataxós em seu local de residência,
indagando-os sobre sua história e as características do povo ao qual
pertencem, anotando ou gravando seus relatos, a depender da vontade
de cada entrevistado.
5. Observar aspectos do cotidiano do povo Pataxó, seu trabalho, seus
costumes e seus rituais, participando de todas as atividades que forem
permitidas ao pesquisador.
6. Registrar a produção de objetos de fabricação artesanal indígena Pataxó,
por meio de fotos e filmes, construindo exemplares artesanais, se assim
for solicitado.
7. Categorizar os dados coletados, segundo critérios artísticos e culturais,
organizando textos, imagens, registros sonoros e audiovisuais para
utilização no corpo textual e imagético da tese de Doutorado.
8. Analisar os dados coletados segundo as bases da análise de conteúdo
defendidas por Bardin (1977).
9. Redigir o texto final da tese, que deverá ser editado, publicado e
distribuído ao maior número de escolas e comunidades possível.

Inicialmente, a meta da pesquisa era bem abrangente, pois sendo o âmbito de


uma cultura muito vasto, de início, o pensamento era coletar tudo e publicar tudo.
Com o desenvolvimento da coleta de dados, alguns aspectos vão sendo represados
pela própria cultura, que se resguarda pelas distâncias dos aldeamentos, pelas
datas inapropriadas, pela falta de comunicação. Mesmo assim, muito havia para ser
visto e divulgado, com a concordância dos líderes Pataxó.
Diante das restrições de tempo, conteúdo e forma, que a escrita de uma tese
acadêmica exige e das limitações impostas pelas distâncias linguísticas, culturais e
40

espaço-temporais da pesquisa, a questão norteadora desta pesquisa delineou-se


como: quais os aspectos da cultura indígena estão presentes no Araguaksã
como demarcadores de identidade étnica Pataxó?
Baseada nessa pergunta, o interesse se volta sobre o Araguaksã, que é o
evento comemorativo de demarcação das terras indígenas do povo Pataxó e as
manifestações culturais que acontecem no decorrer desse evento, eivado por
cerimônias de casamento e batizado, jogos esportivos como flecha ao alvo,
concurso da índia mais bonita. Tais manifestações serão descritas detalhadamente
no decorrer do terceiro capítulo. Esses aspectos culturais que envolvem a festa
foram observados entre os anos de 2005 a 2016 e serão descritos com todas as
nuances possíveis de captar. A abordagem levará em conta tanto a forma como se
apresentam nos últimos anos, quanto os relatos com base na memória dos
indígenas mais velhos, dos caciques, dos pajés, dos professores indígenas e demais
pessoas do povo Pataxó que frequentam a aldeia ou estiveram presentes nos
períodos de pesquisa. Foram colhidas muitas falas espontâneas, assim como
entrevistas gravadas, individualmente, sobre a formação do povo, sua união, seus
casamentos, incluindo a visão de cada entrevistado e sua forma peculiar de
responder. Percebe-se que os mais velhos, ao falar sobre os assuntos perguntados,
tendem a contar uma pequena história que envolve a pergunta, visto que alguns
aprenderam português depois de crescidos ou adultos, enquanto os mais jovens
utilizam um discurso corrente, avaliativo e, muitas vezes, comparativo, entre vários
momentos ou locais. Destaque-se a inteligência rápida nas respostas e a grande
fluência numa língua que não é sua língua mãe, pois eles fazem questão de falar e
educar seus filhos na língua nativa, Patxohã.
A pesquisa de campo que, devido à sua natureza antropológica e cultural,
exigiu o contato direto do pesquisador com os sujeitos para proporcionar uma
observação o mais fidedigna possível, permitindo, dessa maneira, a compreensão
dos fatos e a interpretação dos fenômenos, em seu movimento cotidiano.
Num esforço de trazer clareza para a real situação indígena na atualidade,
elegeu-se a pesquisa qualitativa, pois se sabe que neste “paradigma de opção
metodológica o pesquisador estuda o fenômeno interessado em compreender a
conduta humana a partir dos próprios pontos de vista daquele que atua”
(REICHARDT; COOK, 1986, p. 29). Assim, toma uma postura de observador
naturalista e subjetivo.
41

Em abordagem à pesquisa qualitativa, Bogdan e Biklen (1994, p.11) definem


características fundamentais como:
· A primeira premissa relata que “tem no ambiente natural a fonte direta de
recolha de dados e no seu principal instrumento o investigador”, o que
retrata totalmente a situação desta pesquisa, dada a necessidade de
abordar os anciãos das aldeias, em que está implícito o estabelecimento de
uma relação amistosa com os habitantes de outras comunidades,
colocando sobre a investigadora a responsabilidade maior.
· A segunda diz que “os dados recolhidos devem ser preferencialmente
descritivos”, exatamente como deverão ser os relatos.
· “A preocupação com o processo, muito mais do que com o produto”, devido
ao cuidado que será necessário em cada etapa do desenvolvimento da
pesquisa e o respeito aos mais velhos pertencentes a uma cultura
basicamente oral - neste caso, uma importante fonte de dados.
· Outra premissa reporta-se “à importância do significado atribuído aos fatos
pelas pessoas que integram o contexto. Estes fatos deverão ser os focos
de atenção para o pesquisador”. Ressaltem-se o respeito e o cuidado com
o sentido e o significado que cada relato dos anciãos das aldeias irá
requerer diante da preciosidade das informações que irão fornecer.
· Por fim, a última reporta-se à “forma como é feita a análise de dados, esta
deverá seguir um processo indutivo”. Neste caso, o investigador não
deverá se preocupar em procurar evidências que comprovem hipóteses
anteriores, mas estar aberto a perceber as descobertas no decorrer da
pesquisa e saber discernir o real valor de novos dados a seu propósito
final.

Privilegiou-se o estudo qualitativo, neste trabalho, por sua natureza subjetiva,


dinâmica, holística, “fundamentada na realidade, orientado para a descoberta,
exploratório, expansionista, descritivo e indutivo” (REICHARDT; COOK, 1986: 29).
Dessa maneira, a verdade não se comprova numericamente, mas por meio de uma
experimentação empírica, a partir de uma análise detalhada, abrangente,
consistente e coerente.
42

Estudos indicam a intrínseca coerência entre um paradigma qualitativo e a


pesquisa etnográfica, devido ao papel de destaque do pesquisador na condução da
pesquisa e do envolvimento sugerido para que a investigação se conclua da melhor
forma possível.
O método de pesquisa etnográfica escolhida para este trabalho considera
pressupostos relevantes segundo Punch (1998, p.161) nos quais ressalta o papel do
investigador, que deve ser sensível e assumir que “os significados culturais do grupo
são cruciais para compreender as suas ações e buscar descobrir seus significados”,
dedicando-se aos relatos, no sentido de perceber as perspectivas internas do sujeito
pesquisado. Creswell (1998, p.58) complementa observando que o “grupo é
estudado sempre no seu contexto natural, e o pesquisador insere-se naturalmente
nesse mesmo contexto” para participar do cotidiano dos sujeitos observados.
Os estudos etnográficos possibilitaram a flexibilização do plano de
investigação, pois, no contexto de sua implementação, foram se colocando as
questões prévias, de ordem mais geral, em seus verdadeiros lugares de contexto e
foram sendo definidas as prioridades e relevâncias que afligem o povo Pataxó na
atualidade e, somente no decorrer da pesquisa, foi se aclarando e se estabeleceu.
Sobre a coleta de dados, Punch (1998, p.161) afirma que

[...] pode processar-se de múltiplas formas, sem restrições, embora o


trabalho de campo seja sempre uma constante: observações,
entrevistas, relatos de vida, diários, gravações de áudio e vídeo, até
as chamadas “vozes dos nativos”, tudo é importante em etnografia.

Além disso, a coleta de dados pode prolongar-se por muito tempo, devido a
complexidades culturais ocultas, obrigando o pesquisador a fazer registros repetidos
e minuciosos para conhecer os verdadeiros significados implícitos nos dados
colhidos.
Como nos lembra Mattos (2001, p.1),

A etnografia é um processo guiado preponderantemente pelo senso


questionador do etnógrafo. Deste modo, a utilização de técnicas e
procedimentos etnográficos não seguem padrões rígidos ou pré-
determinados, mas sim o senso que o etnógrafo desenvolve a partir
do trabalho de campo no contexto social da pesquisa. Estas técnicas,
muitas vezes, têm que ser formuladas ou criadas para atenderem à
realidade do trabalho de campo. Nesta perspectiva, o processo de
pesquisa será determinado explícita ou implicitamente pelas questões
propostas pelo pesquisador.
43

A pesquisa etnográfica também conhecida como naturalística ou naturalista,


exerce uma importante influência no processo das pesquisas qualitativas,
enfatizando aquelas que se interessam pelos estudos ligados às desigualdades
sociais e de combate aos processos de exclusão. A busca incessante do
pesquisador em descobrir novos conceitos, os múltiplos modos de ver a realidade,
as interações e a formulação de novas hipóteses com um uso de instrumentos e
planos de trabalhos flexíveis, torna esse método o mais coerente e mais próximo do
que o pesquisador viu, ouviu e viveu.
Nesse tipo de pesquisa em especial, a observação participante é uma
modalidade eleita preferencialmente, uma vez que, enquanto processo, a etnografia
envolve a observação prolongada e participante do investigador no dia-a-dia do
grupo que analisa.
Sobre isso André (1995, p. 28) afirma que:

A observação é chamada de participante porque parte do princípio de


que o pesquisador tem sempre um grau de interação com a situação
estudada, afetando-a e sendo por ela afetada. As entrevistas têm a
finalidade de aprofundar as questões e esclarecer os problemas
observados. Os documentos são usados no sentido de contextualizar
o fenômeno, explicitar suas vinculações mais profundas e completar
as informações coletadas através de outras fontes.

A observação participante, como uma metodologia de investigação,


pressupõe que é somente por meio da imersão no cotidiano de outra cultura que o
pesquisador pode chegar a compreendê-la (CALDEIRA apud SANTOS, 2005, p.13).
Dessa forma, essa pesquisa encaminha-se numa perspectiva de que toda a
descrição etnográfica é, sempre, a descrição de quem escreve e não a de quem é
descrito (GEERTZ apud SANTOS, 2005, p.15). André, sobre a discussão da
importância do pesquisador nesse tipo de observação, complementa salientando
que:

Os dados são mediados pelo instrumento humano, o pesquisador. O


fato de ser uma pessoa o põe numa posição bem diferente de outros
tipos de instrumentos, porque permite que ele responda ativamente
às circunstâncias que o cercam, modificando técnicas de coleta, se
necessário, revendo as questões que orientam a pesquisa,
localizando novos sujeitos, revendo toda a metodologia ainda durante
o desenrolar do trabalho. (1995, p.28).
44

A pesquisa se desenvolveu com entrevistas, fotos, gravações e filmagens


prioritariamente com os anciãos das comunidades indígenas Pataxó visitadas, a
exemplo de Taquara Pataxó, atualmente com 98 anos. Mas é preciso esclarecer
que, segundo o entendimento deles, os mais velhos também têm muitas histórias
para contribuir. São considerados “mais velhos”, segundo a líder Nitynawã, “aqueles
índios com mais de trinta anos” (depoimento oral em 07/09/2010).
Paralelamente ao estudo realizado junto aos anciãos, foi possível registrar a
confecção dos trabalhos manuais, artesanatos e adereços produzidos por pessoas
de etnia Pataxó de todas as idades, visto que, na aldeia, todos trabalham em
conjunto, independente da faixa etária. Destaquem-se os “parentes” considerados
pela própria comunidade como artistas, como é o caso de Oiti, que pesquisou as
vestimentas do seu povo e esculpiu figuras em concreto, ou outros artistas que
retratam o dia a dia da aldeia com desenhos históricos e étnicos. Existem muitas
especialidades na arte indígena Pataxó. Os índios que se dedicam, desde
pequenos, a produzir peças em cestaria, plumária, instrumentos musicais, utensílios
de madeira, ou outros artesanatos em conchas do mar e contas industrializadas,
com desenhos característicos daquela comunidade. Independente dos objetos para
seu próprio uso ou para comercialização, muitos deles desenham; e essa habilidade
se expressa nas pinturas corporais, que exigem firmeza no traço e criatividade.
Sabe-se que a pesquisa etnográfica é de longa duração e pode acatar novos
dados e critérios durante seu processo. Partindo-se deste princípio, foram
programados encontros e visitas às aldeias com uma frequência semestral de duas
vezes, com duração que podia variar de dois dias até uma semana, sempre
dependendo do convite dos moradores da comunidade e da permissão do cacique
local (cf. Anexo A). Sob esse aspecto, não houve nenhuma dificuldade, visto que as
comunidades mais frequentadas foram a da Coroa Vermelha, uma aldeia urbana e
aberta à visitação e da Reserva da Jaqueira, local de etnoturismo, onde os
pesquisadores têm acesso livre e consentido para além dos períodos de festas ou
apresentações.
Devido ao tipo de investigação, o trabalho de campo ocorreu em muitos
momentos, priorizando o Araguaksã, em 1º de agosto, quando ocorrem os
casamentos na Reserva da Jaqueira, assim como a semana do índio, na semana de
19 de abril, de modo a aproveitar o momento em que ocorrem os jogos indígenas,
45

pois eram oportunidades para absorver as nuances culturais do povo e conversar


com alguns líderes que estão mais disponíveis nas festas.
Conforme o planejamento de pesquisa, os instrumentos mais utilizados foram
observações participantes, entrevistas, relatos de vida, diários, fotos, gravações de
áudio e vídeo, assim como aquisição de objetos e produtos de fabricação artesanal.
Sabe-se da importância de todos os instrumentos, mas aqui destacam-se as
entrevistas que são abordadas por Minayo (1996, p. 109) como uma interação entre
pesquisador/pesquisado na qual são considerados “critérios de representatividade
da fala”, os quais sugerem a confiança e a interação entre entrevistador e
entrevistado para que a comunicação flua de forma natural e espontânea.
Diante das sutilezas que esse tipo de pesquisa suscita, optou-se pela
entrevista reflexiva, pois “esse instrumento tem sido empregado em pesquisas
qualitativas como uma solução para o estudo de significados subjetivos e de tópicos
complexos demais para serem investigados por instrumentos fechados num formato
padronizado” (SZYMANSKY, 2004, p. 10). Nesse aspecto, os conteúdos levantados
nas entrevistas podem incluir fatos, opinião sobre fatos, sentimentos, planos de
ação, condutas atuais ou do passado, motivos conscientes para opiniões e
sentimentos, quer dizer, dados de uma natureza mais subjetiva do que objetiva.
Os autores consultados evidenciam que, na pesquisa etnográfica, poderão
fazer parte dos instrumentos investigativos informações de cunho espiritual,
provenientes de rituais, tendo em vista os fenômenos que não se restringem às
percepções visíveis, à constância de manifestações, às frequências ou interrupções,
às falas ou silêncios, considerando-se os sujeitos envolvidos, sua natureza e sua
cultura.
Muitas foram as influências recebidas na produção dos aspectos artísticos
culturais, não apenas no que concerne à convivência com o europeu invasor, como
também com outras culturas indígenas irmãs, que devido à facilidade de
comunicação e transporte dos tempos modernos, estão cada vez mais próximas e
influentes, do que em qualquer outro momento histórico anterior. Para citar alguns
exemplos, os índios da Bahia, assim como de outros estados, se comunicam por
celular, pelos aplicativos, pelas redes sociais, se visitam, promovem jogos,
congressos e participam de eventos que os tornam próximos e homogeneízam suas
lutas por reconhecimentos territorial e cultural. Em contrapartida, se fôssemos
46

relacionar os direitos pelos quais os povos indígenas clamam atualmente, a lista


seria bem maior.
O capítulo seguinte ocupa-se em discutir as questões de etnicidade, de terra,
assim como historiar, concisamente, a conquista do reconhecimento das terras
Pataxó, no sul da Bahia. Ainda dentro dos aspectos demarcadores de cultura, esse
capítulo inclui uma discussão sobre as línguas indígenas e os avanços ocorridos no
próprio estudo e resgate dos vocábulos que compõe a língua Patxohã. Esses
elementos foram, inicialmente, apresentados aos professores da UEFS em 2004,
como um glossário, que, a cada visita posterior, foi ampliado. Quando atingir dez mil
vocábulos, poderá formar um dicionário da língua.
Pendendo entre os interesses territoriais, a proibição da língua e a negação
da cultura equilibram-se todos os atos da longa história de discriminação e
extermínio a que os povos indígenas foram submetidos, aqui contados de forma
geral, sem nenhuma pretensão de esgotá-los, visto que se trata de parte vergonhosa
da história do país e está arraigada nas profundezas da ignorância popular sobre os
povos pré-colombianos da América.
O terceiro capítulo, inicialmente irá traçar algumas considerações sobre os
conceitos de memória e identidade, analisando em que medida esses dois fatores
compõem a cultura e podem ser consideradas como patrimônio imaterial. Em
seguida, discorrerá sobre alguns aspectos que envolvem a festa do Araguaksã,
descrevendo as manifestações culturais visíveis e marcantes a quem visita a
Reserva da Jaqueira em dias de festa, como o Tupsay (roupa tradicional de
fabricação própria), a arquitetura dos kijemis (casas), as pinturas corporais do
Kakusú (homem) e da Jokana (mulher), os adornos que eles produzem em arte
plumária e contas secas de frutos silvestres, as tramas da cestaria e o grafismo dos
objetos de madeira. O maior destaque será dado às provas do casamento, à
cerimônia, às pinturas corporais, à indumentária, à arte plumária, às músicas, às
danças e a todo o contexto para que isso ocorra, assim como o batizado dos kitoki
(crianças), as provas e os jogos desportivos indígenas, os desfiles, as comidas e as
bebidas típicas que são servidas durante a festa.
O quarto capítulo discorrerá sobre a análise dos elementos culturais e
identitários colhidos à luz de renomados autores e pesquisadores indigenistas, para
traçar, a seguir no capítulo conclusivo, as propostas de reconhecimento legal da
cerimônia, atualmente registrada nos livros de casamentos da FUNAI (anexos B, C,
47

D, E, F, G e H) como meramente administrativos e sem nenhum efeito civil ou


jurídico.
48

2.0 AMÉRICA, CONTINENTE VAZIO?

No meio das tabas de amenos verdores,


Cercados de troncos- cobertos de flores,
Alteiam-se os tetos da altiva nação;
São muitos seus filhos nos ânimos fortes,
Temíveis na guerra, que em densas coortes
Assombram das matas a imensa extensão.
(GONÇALVES DIAS, 1843).

Ao refletir sobre o momento final do século XV, deduz- se que os europeus,


que vieram se instalar na América, para eles o Novo Mundo, não encontraram um
continente vazio. Há

[...] milhares de anos que estava inteiramente ocupado por uma


população que se apresentava distribuída por inúmeras sociedades,
organizadas das mais diferentes maneiras, fossem pequenos grupos
de caçadores e coletores, aldeias agrícolas autônomas ou
politicamente articuladas ou, ainda, estados sustentados por
técnicas de plantio intensivo (MELATTI, 2007, p. 17).

As pessoas que habitavam a terra recém-descoberta ocupavam ambientes


naturais diversos, como florestas tropicais e temperadas, regiões semiáridas, praias,
planícies, planaltos e montanhas. Esses povos falavam línguas variadas e
orientavam sua existência conforme suas formas de conceber os seres vivos e o
universo. O painel formado por esse complexo e extenso mosaico populacional que
foi se desenhando ao longo do tempo e do espaço geográfico americano,
representava o resultado de um processo histórico e demográfico, que teve início
com os primeiros povoadores da América, sem nenhum indício físico ou cultural que
pudesse ser considerado europeu.
Portanto, quando a América foi encontrada, não era um continente vazio.
Sobrevém a questão da origem dessas pessoas, denominados inicialmente
pelos navegadores e aventureiros de índios, por acreditarem que eles estavam na
Índia. Esse termo acabou por ser largamente aceito, apesar de alguns autores
citarem-nos também como “negros da terra”, como se pode ver no trecho a seguir,
da Carta do Padre Manoel da Nóbrega ao Padre Simão Rodrigues, aos padres e
Irmãos de Coimbra e a D. Martin de Azpilcueta Navarro, datada do dia 9 e 10 de
agosto de 1549 (apud LEITE, 1938 – 1950 (10v.)).
49

Nessa terra há um grande pecado que é terem os homens quase


todas suas negras por mancebas, e outras livres, que pedem aos
negros por mulheres, segundo o costume da terra, que é terem
muitas mulheres. E estas deixam-nos quando lhes apraz, o que é
grande escândalo para a nova Igreja que o Senhor quer fundar.

Nesse trecho, Nóbrega (1549) se refere claramente aos índios como negros,
escolha que somaria ainda mais um aspecto aos melindres históricos desse período
colonial.
O equívoco não findou pelo fato de os descobridores deduzirem
erroneamente que estavam na Índia, pois “mesmo depois de ter percebido o
engano, por não estarem na Ásia, e sim na América, eles continuaram chamando
todos os povos de índios, independente de suas diferenças físicas, políticas ou
culturais” (MELATTI, 2007, p. 31). Assim se forjou a primeira ideia confusa que
permeia as identidades indígenas, mesmo tendo passado mais de quinhentos anos,
para muitos, na atualidade, todos os índios são iguais.
Por comparação, esse tratamento homogêneo se justificava pela
circunstância de os povos americanos não serem europeus. Naquele momento, era
muito fácil identificar quem era índio, pois bastava ser nascido na América.
Obviamente, as vestes, denunciatórias da cultura, e o tom de pele, denunciador das
diferenças étnicas, já haviam definido tal fato apenas pela aparência visual. Por mais
exuberantes que pudessem ser as vestes plumárias, os tecidos das vestes
demarcavam uma diferença da manufatura que os habitantes das Américas
evidentemente não possuíam. Os navios, as armas e a gramática privilegiada da
língua de Camões deram aos portugueses motivos para se sentirem superiores aos
nativos por vários séculos, sem que fosse possível dominá-los ou escravizá-los,
como era seu intento.
Entretanto, de modo prático, mesmo tendo se passado muito tempo, as
pessoas ou entidades que trabalham com a população natural da terra precisavam
de outros critérios para a identificação da população indígena.

2.1 Índio, ser ou não ser. É uma questão?

A primeira dificuldade que se apresenta e que faz emergir muitas dúvidas


situa-se nas resultantes da mestiçagem. Após cinco séculos de convívio, os
50

casamentos entre brancos e índios, que geraram descendentes mamelucos, os


casamentos entre negros e índios, que geraram descendentes cafuzos e,
posteriormente, os casamentos das gerações a seguir, que contemplam todas as
opções anteriores e mais o cruzamento entre mamelucos e cafuzos, dificultaram a
definição de quais elementos têm uma origem indígena que possa ser considerada
pura. Sobre isso, Ribeiro (1995) endossa:

O filho da índia gerado por um estranho, branco ou preto, se


perguntará quem era, se já não era índio, nem tampouco branco ou
preto.[...] O filho do negro escravo nascido na terra, racialmente puro
ou mestiçado, sabia-se não africano como os negros que via
chegando, nem índio e seus mestiços. [...] O brasilíndio, como o afro-
brasileiro, existe numa terra de ninguém, etnicamente falando, e é a
partir dessa carência essencial, para livrar-se da ninguendade de
não-índios, não-europeus e não-negros, que se vêem forçados a criar
sua própria identidade, a brasileira. (RIBEIRO, 1995 apud
CATÁLOGO DE EXPOSIÇÃO... 2005, p. 7).

Ademais, outra dificuldade seria separar os indícios culturais, pois uma etnia
absorveu da outra muitos usos e costumes, como instrumentos, crenças, dinheiro,
vestuário que tornam árdua a tarefa de distinguir o índio do não-índio.
Afloram alguns critérios para auxiliar a definição da pessoa denominada índio,
habitante das Américas, cujo critério racial é mais tradicional e evidente, visto que
define o índio com evidência por caracteres físicos. Esse critério enfraquece na
medida em que os índios não são morfologicamente homogêneos e, no decorrer dos
anos, o processo de miscigenação mesclou os traços originais a ponto deles se
tornarem quase imperceptíveis.
Ao se considerar os critérios legais, há que se levar em conta que “toda a
pessoa que satisfizesse as características definidas por lei como peculiares aos
índios seria classificada como indígena.” (MELATTI, 2007, p.33). Esse critério se
pauta em um modo de vida que pode ter conceitos discutíveis, no entanto, nos
Estados Unidos em 1945, houve uma tentativa de estabelecer um laço sanguíneo,
sob a seguinte definição: “uma pessoa com a quarta parte de sangue indígena, que
esteja legalmente inscrita nas listas do Governo como índio”. (LEWIS; MAES, 1945
apud MELATTI, 2007, p. 33). Dessa forma, embora houvesse estabelecido um
índice numérico, apenas ficava evidente que passados muitos séculos não havia um
consenso sobre os limites étnicos raciais.
51

Outra possibilidade era o critério cultural, o mais complexo de todos, uma vez
que a cultura não pode ser transmitida por herança genética, mas por meio da
convivência com os familiares que transmitirão os usos da língua, o culto das
crenças, a utilização de instrumentos e os costumes do grupo. Esses detalhes
culturais que são absorvidos lentamente durante a vida e em convivência com outros
membros da sociedade podem ocorrer de maneira formal ou não, intencional ou
não.
Esse critério faz emergir um dilema de raízes históricas:

[...] se levarmos em conta apenas os caracteres biológicos, teremos


que incluir entre os índios um grande número de indivíduos que,
embora tenham ascendentes indígenas, vivem como civilizados, no
campo ou na cidade, sem terem mais nenhum contato com os
indígenas filhos de seus antepassados e que vivem nas aldeias. Por
outro lado, não pode deixar-se de considerar como índios, indivíduos
brancos ou negros, que nasceram em aldeias indígenas ou desde
pequenos foram levados para elas, sendo educados como os demais
habitantes da aldeia. (MELATTI, 2007, p. 34)

Tais fatos levaram alguns pesquisadores a crer que seria possível definir
critérios unicamente da tradição étnica de cada grupo como suficientes para
determinar a origem indígena ou não do indivíduo. Contraditoriamente, no nordeste
brasileiro, alguns grupos perderam completamente sua língua, adotaram costumes
de origem europeia, professam religiões cristãs, vivem em pequenas aldeias com
número reduzido de indivíduos, mas consideram-se índios a despeito de qualquer
critério pretendido por entidades acadêmicas.
Ainda pode-se considerar o critério do desenvolvimento econômico. Embora
tal critério chame para si uma identificação de ordem prática, baseia-se nas
condições de vida dos grupos indígenas, em suas deficiências concretas,
demarcadas por dados como renda per capita, produção agrícola, taxa de
mortalidade, número, localização e língua distinta da oficial. Segundo esse critério,
quanto menores os recursos e maiores as deficiências, maior a possibilidade de ser
indígena nativo; o contrário, quanto mais recursos e melhores taxas, maior a
possibilidade de ser mestiço.
Esse critério é de grande valia para as instituições de fomento ao
desenvolvimento humano e que leva recursos às comunidades que vivem em
extrema pobreza, mas, no âmago desse conceito, há a amarga sugestão de que o
52

índio não pode ter acesso a progresso social e econômico, não pode ter serviços de
educação e saúde, sem deixar de ser índio.
O critério não distingue a vida do índio no seu ambiente natural e cultural da
situação de exclusão social. Na realidade, essas duas situações não são
necessariamente coexistentes.
Um observador cuidadoso perceberia que os critérios anteriores são
exógenos às pessoas diretamente interessadas num critério justo e definitivo. Então,
surgiu o critério de identificação étnica, formulado no Congresso Indigenista
Interamericano, em 1949, reunido em Cuzco, no Peru, sob a seguinte definição:

O índio é o descendente dos povos e nações pré-colombianas que


têm a mesma consciência social de sua condição humana, assim
mesmo considerada por eles próprios e por estranhos, em seu
sistema de trabalho, em sua língua e em sua tradição, mesmo que
estas tenham sofrido modificações por contatos estranhos. O índio é
a expressão de uma consciência social vinculada com os sistemas de
trabalho e a economia, com o idioma próprio e com a tradição
nacional respectiva dos povos ou nações aborígenes. (AZEVEDO,
1957, p.128)

Refletindo sobre essa definição, pode-se destacar três critérios como bases
para a identificação étnica, que seriam a descendência pré-colombiana, conhecer e
seguir as tradições de seu povo, inclusive o idioma próprio, e manifestar a
consciência social dessa condição. Mas no caso das populações indígenas que
vivem em solo brasileiro, tais critérios não podem ser exigidos plenamente, visto que
muitos foram obrigados a abandonar sua língua e aprender o português, como
recurso de sobrevivência. Por outro lado, o uso das tradições foi gradativamente
sendo esquecido, ou pelo convívio plural que dilui as marcas mais fortes, ou pela
supressão discriminatória das manifestações mais características e, portanto, mais
estranhas aos que estão de fora do contexto.
Darcy Ribeiro (1957, p. 35) formula um conceito mais amplo onde diz que

[...] índio é todo o indivíduo reconhecido como membro por uma


comunidade pré-colombiana que se identifica como etnicamente
diversa da nacional e é considerada indígena pela população
brasileira com que está em contato.
53

Dessa forma, se o próprio indivíduo se considera índio e os outros com quem


convive também lhe consideram índio, é de bom senso que todos aceitem essa
premissa.

2.2 Não índio, mero contraste ou negação retaliante?

Por outro lado, podem-se citar algumas situações peculiares nesse convívio
de raças, etnias e culturas que se processam há centenas de anos em terras
brasileiras. O termo não índio é bem usual a quem convive nas aldeias e conversa
com os indígenas que falam português. Na região de Porto Seguro e Santa Cruz
Cabrália, é comum os integrantes do povo Pataxó se referirem aos alheios à
comunidade indígena dessa forma. Apenas para lembrar uma curiosidade, quando
se diz não índio, colocam-se, na mesma categoria, os brancos e os negros, fato que
inicialmente é bem aceito, mesmo havendo consenso em relação a categorias
distintas.
Nos estudos da etnicidade, grupos étnicos não se opõem por terem culturas
diferentes. Eles podem lutar por supremacia territorial ou por marcas que funcionam
como “sinais diacríticos” (BARTH, 1969 in POTIGNAT; STREIFF-FENART, 1998,
p.185). Nas fronteiras étnicas, deve-se lembrar que características culturais podem
se modificar ou até serem abandonadas, porém o mesmo critério não é válido
quando se trata de marcas raciais.
Ao lançar um olhar aguçado sobre as mestiçagens e os sincretismos da
realidade sociorracial brasileira, é possível ser tentado a ceder à ideia de que existe
democracia racial plena no território nacional. Quem aqui vive, sabe perfeitamente
que isso não é verdade. Porém, isso não diminui a importância do rico aspecto
cromático do povo brasileiro.
O antropólogo Roberto Cardoso de Oliveira (1976, p. 5-6) contribui com essa
reflexão, destacando o caráter contrastivo dos fenômenos étnicos, visto que não
existe etnia por si mesma, mas apenas quando em contraste com alguma outra. Ou
seja, só se pode falar em índios, se tiver uma categoria de brancos para contrastá-
la. Com o avanço dos estudos, é inegável perceber que as soluções utilizadas para
denominar essa ou aquela etnia vão ganhando um tom indelicado e impróprio.
Certamente, há quem deseje encarar com honestidade e destemor a
complexidade dos fenômenos da mestiçagem e do sincretismo, sublinhando com
54

cores vivas, que esse fenômeno não significa, na prática, igualdade, harmonia e paz.
Deve-se assumir que os antagonismos existem encarnados em hierarquias, conflitos
e diversidade, sem negar o imenso desejo de uma sociedade mais igualitária, na
qual as pessoas sejam livres para cultivar e expor suas maneiras diversas de ser e
estar no mundo.
Esse país mestiço, repleto de assimetrias e desafios continentais, não poderá
resolver seus problemas de desigualdade somente com propaganda contrária, ou
com soluções importadas de outros países com outras histórias e condições
absolutamente estranhas às brasileiras. Os fatos induzem à crença que tais
problemas se resolverão se houver investimento maciço em educação, reforma
agrária séria e contínua, criação de empregos, redistribuição de renda e inclusão
cultural. Num horizonte onde se vislumbra essa realidade com melhores opções,
seria provável sacar, do confinamento à pobreza, uma parcela da população que
não tem acesso aos bens e aos serviços oferecidos pelo Estado. A atual situação da
população indígena envergonha àqueles que trabalham honradamente por seu povo
e não conseguem testemunhar uma mudança significativa para os excluídos.
Evidentemente, o Brasil não vive numa democracia racial, como afirma
Antonio Risério (2004 apud CATÁLOGO DE EXPOSIÇÃO...2005, p.191), mas como
nenhum outro país foi capaz de desenvolver a tolerância e a convivência inter-racial,
que afinal deverá servir para enriquecer a experiência brasileira.

2.3 Quantos são os índios?

Alguns autores se dedicaram a desvendar o número de índios que


provavelmente havia no Brasil na época pré-cabralina. Segundo Melatti (2007), um
dos precursores desses estudos foi Julian Steward, que publicou, entre 1946 e 1959,
Handbook of South American Indians, em sete volumes, nos quais leva em conta os
recursos naturais de cada área, a tecnologia que cada grupo dispunha e o número
de habitantes relatados pelos cronistas em primeiro contato e, dessa forma, elabora
uma tabela com um milhão e cem mil índios no ano de 1500. Visto que até hoje são
descobertas tribos desconhecidas, reconhece-se o mérito do trabalho de Steward
como referência, mas está clara sua inexatidão, bastando comparar os números de
índios aprendidos e mortos nas reduções religiosas do Nordeste, nos séculos XVII e
XVIII, com totais superiores a 480.000 indivíduos.
55

Por outro lado, William Denevan (1976 apud MELATTI, 2007, p.46), usando
método muito semelhante ao de Steward, eleva o número total de índios para
4.277.547, mesmo reconhecendo que não calculou uma área de 1.786.280km² do
território brasileiro.
John Hemming (1978 apud MELATTI, 2007, p.47), por sua vez, prefere fazer
seus cálculos sobre textos antigos até a expulsão dos jesuítas, considerando que
realmente houve “um grande despovoamento devido às moléstias introduzidas no
continente” (p.46) pelos invasores, assim como considera outros fatores limitantes
do crescimento populacional indígena baseado em seus próprios hábitos nômades,
baixa oferta de alimentos, procedimentos de controle populacional endógeno, ou
ainda, zonas que hoje são habitadas, mas à época talvez não fossem ocupadas
devido aos deslocamentos causados pelo avanço dos conquistadores. Em seu livro
Red Gold, Hemming (1978) apresentou um total geral de 2.431.000 habitantes
indígenas, no período da chegada dos europeus.
É fonte de preocupação o número de pessoas de etnia indígena sobre as
quais estamos falando em 2018. Ainda que os povos indígenas estejam presentes
em quase todos os Estados brasileiros - à exceção de Piauí e Rio Grande do Norte -
é possível morar no Brasil e nunca ter encontrado um índio. A concentração maior
das populações indígenas se localiza nas regiões Norte e Centro-Oeste e, de acordo
com informações do Censo 2010, cerca de 0,4% da população brasileira é formada
por índios, um total aproximado de 800 mil vivendo no País.
A Fundação Nacional do Índio (FUNAI) aponta a existência de 225 povos
indígenas, além de referências de 70 tribos vivendo em locais isolados e que ainda
não foram contatadas. Outrossim, a instituição destaca o aumento da proporção de
indígenas urbanizados, revelando, em sua página da internet10:

A atual população indígena brasileira, segundo resultados


preliminares do Censo Demográfico realizado pelo IBGE em 2010, é
de 817.963 indígenas, dos quais 502.783 vivem na zona rural e
315.180 habitam as zonas urbanas brasileiras. Este Censo revelou
que em todos os Estados da Federação, inclusive do Distrito Federal,
há populações indígenas. A Funai também registra 69 referências de
índios ainda não contatados, além de existirem grupos que estão
requerendo o reconhecimento de sua condição indígena junto ao

10 .Disponível em: <http://www.funai.gov.br/index.php/indios-no-brasil>.


56

órgão federal indigenista. Ainda segundo o mesmo censo de 2010,


com relação às 274 línguas faladas, cerca de 17,5% da população
indígena não fala a língua portuguesa.

Na atualidade, os mesmos fatores de crescimento populacional que afetam as


outras etnias, também afetam os índios. Na prática, fatores como a falta de
conhecimento e a falta de hábitos de higiene, que são preventivos de doenças ou de
mortalidade infantil, estão relacionados com o declínio do crescimento da população.
Porém, fatores como a falta de alimentos, são idênticos aos problemas de saúde
relacionados à fome, que atinge muitos outros grupos humanos ao redor do mundo.
Ainda nos tempos atuais, podem atuar como reguladores de grupos isolados ou
afastados dos grandes centros, contando ainda com a falta de acesso aos serviços
de saúde. Esses são fatores que afetam qualquer pessoa, independente de sua
etnia. Porém, ao refletir sobre as circunstâncias específicas dos povos indígenas
sobressai a questão territorial. Aqueles lugares de pertencimento, espaço no seio da
mãe-terra onde faziam seu plantio, rios onde pescavam e se banhavam, praias onde
mariscavam, territórios extensos onde faziam coleta de frutas e raízes, extração de
madeira para seus utensílios ou plantas medicamentosas para suas necessidades, e
todas as questões que envolvem terras indígenas se tornaram alvo de polêmica,
sendo delegados a outros estudos específicos.
Na dança dos números que representam os índios que vivem no Brasil,
Ribeiro (1957) publicou um cálculo baseado na documentação do Serviço de
Proteção ao Índio, estimando a população provável, entre números mínimos e
máximos de cada grupamento. Diante de tantas variantes contextuais, há que se
concordar que a ideia de média, aproxima-se do bom senso e da realidade
duplamente. Entretanto, o que se destaca nesse contexto, já não são os números
exatos dos índios que habitavam o Brasil no momento de sua invasão e posterior
colonização, mas a escala de franca redução com que nos deparamos no início do
século XX. “A população indígena que se distribuía por 230 grupos tribais em 1900,
havia se reduzido a 143 em 1957” (RIBEIRO, 1957, p.18).
Dos 143 grupos tribais elencados por Darcy Ribeiro à época, 33 eram
isolados, apresentando-se arredios ou hostis nas raras tentativas de contatos com
não índios; 23 grupos desfrutavam de contato intermitente, devido à sua localização
pouco acessível; 45 grupos tinham comunicação constante, expressando-se em
57

português, utilizando instrumentos e armas, conforme lhes permitissem as trocas


culturais com a sociedade brasileira; e 38 grupos estavam totalmente integrados,
adaptados à sociedade brasileira. Ao presente estudo interessa especialmente esse
último grupo, ao qual pertencem os integrantes do povo Pataxó e que

[...] seus membros constituíam reserva de mão de obra ou produtores


especializados de certos artigos de comércio na sociedade brasileira,
tendo perdido a maior parte dos seus costumes tribais, às vezes
mesmo a língua original, e vivendo quase da mesma maneira e com o
mesmo aspecto dos sertanejos brasileiros que os cercavam, mas,
mesmo assim, continuavam a se considerar como índios (RIBEIRO,
1957, p. 7-21)

O exercício de apreciação de alguns exemplos de inibidores do crescimento


populacional e analisando os números do povo Pataxó, cuja cultura e forma de união
por meio do casamento são objetos dessa pesquisa, conduz a pensar que a
resposta dessa pergunta – Quantos são os índios? - apenas leva a crer que se trata
de uma minoria. Estudar minorias é moderno e atual, politicamente correto e
sociologicamente recomendável. Mas, como diria Caetano Veloso, em sua música
Cajuína11, “a que será que se destina”?, uma resposta objetiva a essa pergunta diria
que se destina ao levantamento e divulgação de fatores de afirmação identitária do
povo Pataxó do sul da Bahia.
Novos fatores de reconhecimento dos povos indígenas, como matriz genética
do povo brasileiro e de valorização da cultura nativa, apresentaram resultados
surpreendentes no senso do IBGE desde o ano 2000; e uma verdadeira explosão
nos dados de 2010, visto que o momento político de valorização das minorias
sociais permite que os cidadãos se autodefinam como índios. Esse processo levou
muitos descendentes a abandonar a classificação de pardos e assumir com orgulho
o seu pertencimento étnico-indígena.
Assim como outros povos de longa convivência com os invasores europeus, o
povo Pataxó sobreviveu em número reduzido, escondendo-se daqueles que, em
algum momento, desejavam subjugá-los, mas, a partir das novas políticas de
reconhecimento social e de valorização das minorias, viram a possibilidade de se
inserirem na sociedade brasileira e conquistarem o seu próprio espaço,

11
Cf. Referências.
58

anteriormente expropriado. Muitas são as discussões sobre legitimidade cultural dos


povos indígenas, principalmente aqueles que usufruem de longa convivência com
outras etnias brancas, negras e indígenas.
Diante desse impasse, a pesquisa dá ao povo Pataxó o crédito de sua própria
auto declaração, e assume junto a esse povo, os objetivos comuns que unem a sua
cidadania a essa pesquisa. Nessas circunstâncias, cumpre fazer o resgate cultural
de alguns costumes Pataxó e divulgá-los da forma mais fidedigna possível, para que
as pessoas conheçam e valorizem todo o esforço de trazer à tona as tradições.
Reavivar as manifestações culturais já esquecidas com o passar do tempo e
vivenciá-las, torna-se um marco no lugar de memória desse povo e estabelece
contornos reais no campo de sua identidade étnica.
Sobre esse momento atual, Melatti destaca “a recente reivindicação da
identidade indígena por parte de grupos que a haviam abandonado ou a
escamoteavam por serem pressionados ou perseguidos por aqueles que desejavam
ou ocupavam suas terras”. (2007, p.49)
O apoio das autoridades e a possibilidades de reaver seu território fizeram
ressurgir grupos articulados que se manifestam, buscando uma nova forma de ser
índio, na atualidade.
É necessária uma contextualização histórica para o melhor entendimento dos
dramas e circunstâncias que sofre um povo em busca de seu reconhecimento
étnico, num momento auge de misturas, nas quais nem mesmo os próprios povos
indígenas sabem onde começam seus costumes e onde entram hábitos alheios. Não
seria possível discorrer longamente sobre tais circunstâncias, sem correr o risco de
fugir do tema central. Muitas são as peculiaridades e histórias que se ouvem, no
decorrer de anos de convivência pacífica. O texto irá se ater ao povo Pataxó de
início do século XXI, indivíduos que cresceram em meio à uma sociedade mista,
moram em vilas urbanas ou próximas de cidades, estudam numa escola formal
desde pequenos, falam português, moram em casas, assistem televisão, estão
antenados com fatos do mundo todo; mas nada disso lhes afasta da ideia de
permanecerem sendo índios. A abordagem se ocupará de indígenas que se
esforçam para falar sua própria língua, serem registrados com o seu nome em
Patxôhã, terem seu kijemi, vestirem seu tupsay, dançarem o awê e cultuarem sua
divindade Niamisú. Muitos deles ainda vivem em aldeias mais afastadas, como é o
caso de Barra Velha ou Mata Medonha, mas se unem aos “parentes” das
59

comunidades urbanas, quando é necessária a luta pela terra, ou nas festividades e


nos dias comemorativos, como ocorre em qualquer comunidade do mundo.

2.4 Terra de índio, índio da terra

Imagens 13 e 14: Participantes dos Jogos Indígenas de 2016. Aldeia Coroa Vermelha, Santa Cruz
Cabrália, Bahia.Registro da autora, 2016.

A seguir, o texto se ocupará de definir o contexto histórico do lócus da


pesquisa e os conceitos caracterizadores do objeto de estudo.
A Reserva Indígena Pataxó da Jaqueira, no município de Porto Seguro, litoral
sul da Bahia, aqui usada como um exemplo semelhante a muitos outros, simboliza
uma das inúmeras lutas por território implementadas por grupos indígenas, desde a
chegada da expedição de Américo Vespúcio em 1498, cujas terras recém-
encontradas foram batizadas com seu nome, América.
Sobre esse acontecimento, cabe ressaltar que os documentos escritos o
relatam como “descoberta de terras”, nas palavras de Pero Vaz de Caminha,
escrivão da esquadra de Pedro Álvares Cabral, representante da coroa portuguesa
na ocasião do achamento; enquanto que, na visão dos indígenas, que se
consideram donos das terras (nas quais não se fincavam cercas nem se marcavam
fronteiras), foi realmente uma “invasão de terras”.
60

Imagem 15: Anari Pataxó, habitante da Reserva da Jaqueira e estudante da Escola Indígena Pataxó de
Coroa Vermelha, 2005.

A imensa diferença que se estabelece entre o termo “descoberta” e o termo


“invasão” delineia igualmente todas as outras distâncias culturais e conceituais que
irão se estabelecer, desde o momento da chegada dos portugueses na terra
“brasilis” até os dias atuais.
Enquanto os portugueses se aventuravam ao mar em embarcações precárias,
em busca de riquezas, os indígenas aqui se entretinham com sua subsistência e
seus próprios interesses.
Essa distância entre um conceito e outro foi apresentada, numa visita à
escola indígena Pataxó de Coroa Vermelha em 2004, a um grupo de estudantes da
Universidade Estadual de Feira de Santana. A equipe redescobre a pátria mãe,
numa conversa ao pé da fogueira, estabelecida com o Jerry Matalawê. Com a
61

simplicidade e parcimônia que se espera de um líder indígena, Jerry vai


desvendando sua cultura e suas verdades. Entre danças e cantigas, ele mostra que
os povos indígenas viviam em terras americanas há milhares de anos, convivendo
em total harmonia com a natureza. A terra já tinha donos, já era habitada e ocupada.
A ideia equivocada de “descoberta” se pauta na ignorância dos povos de além-mar,
não na inexistência de donos. Isso entendido na visão de quem planta seus pés em
solo brasileiro precisa ser entendido como “invasão” e não “descoberta”.
O argumento de Jerry Matalawê é incontestável. Cada par de pés humanos
que pisa em solo brasileiro deveria considerar que os europeus “invadiram” a terra
americana. Diante disso, cada indivíduo, que tem sua genética envolvida com
sangue oriundo de outros continentes, seria um descendente de invasores. A
verdade pode ter vários vieses, e, nesse caso, tem. Pois não é assim que se sentem
as pessoas que vivem em solo brasileiro com indícios de sangue europeu ou
africano, por exemplo. Cada um que vive aqui, independente de ser descendente
europeu, africano ou oriental, se sente brasileiro. Bem brasileiro, tanto ou quanto
qualquer indígena de antes ou de agora. Brasileiro que luta e trabalha por seu
próprio crescimento e bem estar e, por acréscimo, por seu país.
Como resolver esse impasse? Há mais de 500 anos de cruzamento étnico
para contrapor tal argumento. Nesse meio tempo, muitas outras invasões,
imigrações e guerras mudaram o perfil do povo brasileiro. E depois de tantas
investidas contra o povo original das Américas, como definir quem é índio e quem
não é? Como saber a identidade real do indígena brasileiro? Como vive? Que língua
fala? Onde mora? O que cada povo pretende preservar de sua própria cultura?
Com essas mesmas questões Edinaldo Bezerra de Freitas, da Universidade
Federal de Rondônia pondera:

Parece fácil constatar que este Brasil, todo cheio de índio, que é a
história do Brasil, teima em esconder, abafar, negar “alguma coisa” de
essencial, talvez até mais, de autonegar, procurando em outro lugar,
em outro discurso, um princípio de identidade, que pela lógica, está
na sua raiz. Como num labirinto, num quebra-cabeça, em que não se
sabe aonde se ir, não se sabe aonde se foi, portanto como saber
aonde se está? Sem o passado indígena e sem o presente indígena o
Brasil parece mais um cego, que grita em busca de um caminho, sem
a possibilidade de saber aonde ir. Dilemas de colonização, dilemas
de existência. (2004 p.190)
62

Esse silêncio, esse vazio, esse esquecimento a que se refere o autor, se


justifica numa história que foi escrita pelo colonizador, e faz-se o momento urgente
de contar a história pelo outro lado. O lado do povo indígena silenciado pela falta da
escrita, que agora quer falar e contar sua versão da história, explicar seus motivos,
estabelecer pontos de sua alteridade frente ao invasor.
O presente texto não tem a pretensão de responder a todas essas perguntas,
apenas traçar linhas de raciocínio, como visto anteriormente na apresentação; além
de, baseado em revisão literária sobre o tema da exclusão dos povos indígenas do
reconhecimento social, eleger um evento marcante que seja suficientemente
significativo e permita inferir sobre a identidade cultural do povo Pataxó e sua
reafirmação linguística, cultural e territorial, questões gerais sobre as populações
indígenas atuais.
De início, é dever esclarecer sobre os termos índio e indígena, pois conta a
história que as naus portuguesas saíram em busca de especiarias na Índia e ao
encontrar as primeiras terras, equivocadamente pensaram estar na Índia e por esse
motivo denominaram, os habitantes da América, de índios. Alguns autores preferem
o termo ameríndio ou indígena, mas na aldeia urbana Pataxó de Coroa Vermelha,
onde se concentra um dos focos desta pesquisa, eles utilizam preferencialmente a
palavra índio. (Depoimento oral em palestra intitulada “O que é ser índio?”, proferida
por Adriana Pataxó e Awoi Pataxó em abril de 2014).
Da mesma forma, na Reserva Indígena Pataxó da Jaqueira, o termo índio é
usado por crianças e adultos como forma de autodeclaração e não se percebe
nenhum constrangimento nessa prática.
63

Imagem 16: Awói Pataxó, Professor e pesquisador de


Patxôhã, da Reserva da Jaqueira, Porto Seguro, Bahia,
2016. Registro da autora, 2016.

Para dirimir certas dúvidas Collet e outros (2014, p. 13) afirma que não se
pode

[...] identificar um indígena com base na posse de certos traços físicos


(por exemplo, ter cabelo preto e liso e pouco pêlo no corpo), culturais
(como falar língua indígena, utilizar “roupa de índio” e não utilizar
tecnologia ocidental) ou de habitat (viver na floresta).

Sob esse ponto de vista, seria marcar um estereótipo, atribuindo certas


características exclusivamente à identidade indígena. Essa associação de
características não seria real, pois tal

[...] como as demais sociedades, eles são dinâmicos e criativos.


Embora mantenham práticas e conhecimentos ancestrais, recriam e
64

incorporam saberes e tecnologias de outras tradições e nem por isso


perdem sua identidade indígena. (COLLET e outros, 2014, p. 13)

Os autores reiteram que não se pode reconhecer apenas por traços externos
ou físicos. O mais aceitável hoje seria a autodenominação, marcando, dessa
maneira, seu autorreconhecimento e sua pertença a um determinado grupo étnico.
Segundo o mesmo critério de autodenominação, é sugerido o tratamento a
cada povo, visto que o termo índio, assim como indígena, não pertence a nenhuma
língua do tronco Tupi ou Macro-Jê, que são as mais comuns no Brasil. Eles aceitam,
mas, naturalmente, preferem o nome étnico de seu povo. Segundo Márcio Santilli
(2000, p.12), para os índios “não existe índio, senão como uma referência do
branco. Existem os terenas, os caiapós, os xavantes e outros povos. Existe o povo
de cada índio e os outros povos”. Em respeito às decisões daquilo que lhes dizem
respeito, deve-se lembrar que

O Movimento Indígena, surgido na década de 1970, decidiu que era


importante manter, aceitar e promover as denominações genéricas
como forma de fortalecimento da identidade conjunta e de união na
luta por direitos comuns. (COLLET e outros, 2014, p. 12)

Preocupados com a imagem do índio difundida na prática escolar do ensino


fundamental, autores como Célia Collet, Mariana Paladino, Kelly Russo (2014)
afirmam que a temática indígena vem sendo abordada sem reflexão ou sequer a
devida contextualização, exatamente como vinha sendo feita no século passado,
reforçando, dessa forma, os equívocos12 já conhecidos dos estudiosos.
O primeiro equívoco se baseia na ideia de que os índios viviam no passado,
dando uma noção de um ser extinto ou ligado ao Brasil Colônia. Podem-se ouvir as
pessoas falando sobre os índios com os verbos sempre no passado, “eles
caçavam”, “eles pescavam”, “eles vivam em ocas”, com adição de palavras em tupi
(como oca) para dar a sensação de que esses interlocutores conhecem alguma
coisa sobre o assunto.
O segundo engano relatado pelos estudiosos se refere ainda pela sugestão
discreta de extinção, como se o indígena fizesse parte da formação do povo

12
Disponível em:
<http://www.taquiprati.com.br/arquivos/pdf/cinco_ideias_equivocadas_sobre_indios_palestraCENESCH.pdf.>.
Acesso em: 15/10/2016.
65

brasileiro no início, mas não atualmente. Pode-se perceber, quase num consenso,
que os livros didáticos e históricos mencionam uma participação difusa, como se
houvesse uma diluição da genética e da cultura no casamento com portugueses,
gerando pessoas que a literatura denominará de caboclos, na região nordeste, e de
bugres, no sul do país, sem deixar de registrar a sutil desqualificação desses termos.
Outro erro recorrente se estende sobre a concepção de índio “genérico”,
como se fossem todos iguais, morando em lugares diferentes, como se os detalhes
em comum os colocassem em um grande grupo, de uma característica única, num
uníssono impensável para qualquer grupamento humano. No Brasil de 2015,
existem 305 etnias diferentes (COLLET e outros, 2014, p. 12). É preciso entender o
que esse dado significa na definição de línguas de diferentes troncos, de formas de
vida diversas, de alimentação crua ou cozida, da religiosidade presente ou ausente,
do desejo de contato com outras culturas ou não.
Seguindo o consenso atual dos antropólogos e outros estudiosos das ciências
humanas, a identidade é uma maneira de um indivíduo ou grupo se entender como
tal, passando por um processo de construção, e, portanto, é mutável, devido à
necessidade de adaptações durante o processo. Ela é assumida em confronto com
outros grupos identitários e pode ser compreendida como discurso e como prática, a
partir de seu lugar e de seu tempo. O exemplo mais usual é a língua de um povo,
mas não se atribui àqueles que a perderam no convívio com outras culturas, como é
o caso dos Fulni-ô, no nordeste. Sobre isso, Collet, Palladino e Russo (2014)
complementam:

Continuam, todavia, a ser reconhecidos como índios por outros povos


que falam suas línguas originárias. Atualmente, há também uma
considerável população indígena vivendo em cidades ou áreas rurais,
mas fora dos territórios tradicionais. Na maioria dos casos, não por
opção, mas devido à frentes de expansão econômica. Mesmo assim,
muitos grupos mantêm ligação com seus territórios, retornando
sobretudo para festas e rituais importantes, nos quais renovam e
fortalecem os sentimentos de pertença e identidade. (p. 13)

Ao voltar o olhar em direção a outros povos indígenas sul americanos, como


os da Bolívia, da Venezuela e da Argentina, onde eles preferem ser chamados de
povos originários, é possível perceber a força desse termo. Porém, no Brasil tomou
uma conotação pejorativa associada à pouca civilização e, desse modo, para afastar
66

mais um preconceito, sugere-se acatar a decisão do Movimento Indígena, que dá


preferência a denominações genéricas, como forma de fortalecimento da identidade.
Uma concepção muito difundida, e igualmente equivocada, descreve o nativo
que vive na floresta, isolado e nu, vivendo de caça e pesca, como sendo o indígena
verdadeiro, jogando na ilegalidade étnica todo aquele indivíduo que não se enquadre
dentro de tal padrão. Não se pode negar a naturalidade deste estilo de vida em
comunhão com a natureza como genuíno, entretanto

[...] um índio que aprende português, vive na cidade e trabalha num


emprego formal não deixa de ser índio, suas raízes étnicas e sua
cultura estão representadas nesse único indivíduo, onde ele estiver,
independente da roupa que estiver vestindo.(Paráfrase de
depoimento de Juari Pataxó13, 2009, Aldeia da Jaqueira, Porto
Seguro, Bahia)

Collet, Paladino e Russo (2014) lembram que o Movimento Indígena marca


um período importante de retomada dos itens caracterizadores da cultura e
identidade indígenas, fazendo com que muitos indivíduos voltassem a se assumir
como indígenas novamente. Dentre os caracterizadores, pode-se destacar:

- a língua de cada etnia;


- o vínculo com a terra e a luta por reconhecimento dos territórios
tradicionalmente ocupados por eles;
- a pintura corporal e as vestes de cada etnia;
- a organização social, em forma de cacicado ou não;
- a organização econômica;
- o sistema de crenças, religiosidade, rituais e festas;
- a forma de obtenção do alimento, a feitura e o consumo;
- modos e usos da medicina da selva.

Diante da relevância de cada um dos itens apontados, e considerando-se a


necessidade de discussão mais aprofundada, será preferível que eles sejam
oportunamente abordados no decorrer do texto.

13
Juari Pataxó participa das lutas indígenas desde jovem. Atua junto à Secretaria de Assuntos Indígenas, no
município de Porto Seguro. É fluente em três línguas: Patxôhã, Português e Inglês. Muitas vezes é designado
pelas lideranças para representar o povo Pataxó, fora do estado e do país.
67

Ainda na faina de desvendar as crenças equivocadas que circundam o povo


indígena, outro seria melhor chamado de injustiça, que é o fato de atribuir-lhes a
qualidade de preguiçoso, ideia difundida basicamente a partir do período da
escravidão, na qual muitos grupos lutaram para não serem presos, pois, em sua
cultura, isso simbolizava uma enorme humilhação e, em alguns casos, a
participação como vítima em ritual antropofágico. (Depoimento oral de Txihi/Pedro
Pataxó, artista e professor, em 1º de agosto de 2015, durante o Aragwaksã na aldeia
da Jaqueira, Porto Seguro, Bahia).
Na verdade, é muito complexo explicar a diferença entre duas culturas em
poucas frases, mas é possível entender que um guerreiro, que é louvado por seu
povo por ocupar essa condição de provedor e defensor de seus parentes, não irá se
deixar prender e escravizar facilmente. No caso de suas flechas não o defenderem
de armas de fogo, e ele ser aprisionado, é compreensível que ele irá fazer
resistência passiva ao trabalho forçado.
Não seria possível aos colonizadores a sobrevivência na selva, no período
colonial, nem o trabalho extenso dos Bandeirantes, sem o conhecimento indígena
sobre as rotas terrestres e fluviais, sem a comunicação em línguas nativas, o
reconhecimento de plantas medicinais para as doenças tropicais, a coleta seletiva
de frutas e raízes para alimentação, durante as longas jornadas exploratórias.
Sobre essa questão específica da língua, Magalhães (1875) salienta as
circunstâncias na Amazônia, palco de sua pesquisa.

Estas diferentes formas, ditadas pela política de línguas da Coroa


Portuguesa e mais tarde do Estado brasileiro, ... mesmo porque o
processo não se desenvolveu em forma simultânea em todas as
regiões da Amazônia, ...No entanto, ...podemos distinguir cinco fases
históricas pelas quais passou a ‘Língua Geral’ na Amazônia, assim
denominada pela documentação do período colonial. A partir da
segunda metade do século XIX ficou conhecida como ‘Nheengatu’
(fala boa), termo divulgado por Couto de Magalhães, que a
considerou como “o francês ou o inglês da imensa região amazônica”
por ser entendida “em todas as nações, ainda mesmo nas que não
falam o tupi”. (MAGALHÃES (1875, p. 16 apud FREIRE, 1983, p. 3)

O autor faz um esforço no sentido de estabelecer os períodos aproximados de


cada etapa, como descrito a seguir:
68

CRONOLOGIA DA LÍNGUA GERAL NA AMAZÔNIA

I Fase dos intérpretes século XVI

II Etapa de implantação da Língua Geral (1616-1686)

III Expansão da Língua Geral

a) com apoio oficial (1686-1727)

b) sem apoio oficial (1727-1757) 1686-1757

IV Tentativa de portugalização (1757-1850)

V Processo de hegemonia da língua portuguesa 1850 até os nossos dias


TABELA 01 - FREIRE, 1983, p. 8

Em seu artigo sobre o uso da língua geral na Amazônia, Freire (1983)


demonstra que o papel imprescindível dos intérpretes, nas incursões através da
floresta e junto às populações ribeirinhas, era uma questão de sobrevivência.

Os europeus foram compreendendo que a comunicação com os


índios era uma condição fundamental de sobrevivência, desde os
primeiros contatos; e por esta razão, tanto as entradas localizadas em
áreas limitadas como as expedições mais ambiciosas levavam
sempre “línguas”, intérpretes. No século XVI, nenhuma colônia foi
estabelecida na região, sendo transitório o contato com os índios,
mas nas duas únicas grandes viagens realizadas ao longo do rio
Amazonas – a expedição de Orellana (1541-42) e a de Ursúa-Aguirre
(1560-61) – o papel dos intérpretes foi de extrema importância,
conforme documentam os relatos. (FREIRE, 1983, p. 5)

Abordando a sanha dos espanhóis e jesuítas na Amazônia, que seguiam o rio


Amazonas como se fora uma estrada líquida, o mesmo autor lembra outros
personagens, conforme trecho que a seguir:

O estabelecimento de colônias, fortalezas e missões veio aguçar


ainda mais a necessidade de contar com a experiência dos índios e
com sua força de trabalho, dado o caráter agora permanente da
ocupação. Os padres da Companhia de Jesus perceberam isto com
bastante lucidez: o jesuíta português Antônio Vieira, em Belém do
Pará, viu os índios como “os braços e os pés” da colônia, enquanto o
jesuíta espanhol Manuel Rodríguez, da Província de Quito, a mais de
3.500 km de distância, concluiu que eles eram, além do mais, a
“cabeça”, na medida em que “los índios (...) son precisamente
necesarios para todo, que nada se hace sin ellos. No hay Índias sino
69

hay Índios” (Rodriguez, 1684, p. 393). Ambos se referiam ao uso da


força de trabalho indígena, mas o segundo insistia também na
necessidade dos índios para a leitura da região. (FREIRE,1983, p. 9)

Enquanto os índios hábeis nas flechas, nas línguas indígenas e nas viagens
trabalhavam nessas empreitadas fora das fazendas e povoados, outros trabalhavam
nas roças, nos plantios e na lida com os animais. As índias se dedicavam às
atividades domésticas de lavar, limpar e cozinhar. E acrescenta

Instalada a colônia nos inícios do século XVII, os índios – tanto os


considerados como “livres” quanto os escravos - tinham de realizar
para os colonos algumas tarefas tradicionais – como remar, por
exemplo – que agora, no entanto, passaram a se dar dentro de um
novo contexto, isto é, num sistema de trabalho compulsório que
implicava disciplina, aumento da jornada de trabalho, obediência a
ordens e ritmos até então desconhecidos no quadro das culturas
indígenas. Novas tarefas mais complexas se acrescentaram a
essas. As artes mecânicas previstas na lei que criou o sistema de
capitão-de-aldeias (Malheiros: 1866, p. 50), o trabalho nos
engenhos de açúcar desde a sua construção até o seu
funcionamento, as plantações de tabacos envolvendo atividades
como a derrubada de árvores, limpeza de terreno, plantio, etc. o
transporte fluvial – os índios constituíam a única força motriz da
colônia usada para colocar as canoas em movimento – a fiação de
algodão, as coletas de drogas e outras tarefas ligadas à produção
de bens e à prestação de serviços exigiam que fosse assegurado
um nível básico de comunicação. (FREIRE, 1983, p. 12)

Considerando-se as tarefas acima elencadas, definitivamente não se pode


chamar qualquer etnia indígena de preguiçosa, pois estaríamos correndo o risco de
cometer uma grande injustiça.
Não saberia apontar qual de nós estaria habilitado para julgar se um povo é
preguiçoso ou não. Pesa sobre esse termo o fato dele constar entre os sete pecados
capitais, cuja base são antigos conceitos da filosofia judaico cristã.
Taxar alguém como preguiçoso, nesse caso, significa apontá-lo em falta
grave, como se fôra nascido com um mal próprio da sua natureza e não pessoas
iguais a todos os outros quando despidos. É grave e forte. E assim ficou calcado na
memória de muitos, que leram livros preconceituosos, ou que ficaram à mercê
daqueles que tinham interesse de invisibilizar a existência do povo indígena.
70

O Prof. Dr. Hernán Ramirez14, em aula do dia 5 de janeiro de 2015, refletia


sobre a formação do pensamento único na América Latina e afirmava: “o
pensamento único é excludente, porque não se faz por meio de uma união, mas sim
pelo banimento dos contrários”. Essa reflexão nos remete à ideia de que ninguém
quer ser banido, por vezes torna-se mais fácil negar sua origem e sua identidade do
que sofrer constantes rechaços.
Nessa linha de pensamento, podemos supor que muitos descendentes dos
povos originários passaram a omitir sua origem em busca de igualdade de
oportunidades, principalmente no que diz respeito à escolaridade e vagas no campo
de trabalho.

A legislação e a política da coroa portuguesa em relação aos povos


indígenas do Brasil Colonial distinguiram os índios aldeados e aliados
dos índios bárbaros e inimigos. Essa distinção redundou num
tratamento igualmente distinto. Aos primeiros foi garantida a liberdade
ao longo de toda a colonização. Deles dependiam o sustento
(produção de gêneros de primeira necessidade e trabalho nas
plantações dos colonizadores) e a defesa da colônia (constituição do
grosso dos contingentes das tropas de guerra contra inimigos, tanto
indígenas quanto europeus). Já aos índios inimigos reservou-se a
escravidão, ou seja, àqueles que resistiam aos aldeamentos e não se
submetiam às políticas da colônia. (PERRONE-MOISÉS, 1992 apud
COLLET e outros, 2014, p. 17)

Afortunadamente, os movimentos sociais ganharam força, no final do século


XX e início do XXI, denunciando a discriminação contra vários grupos de pessoas,
que, por suas diferenças, ficavam invisíveis ao público. Tal fato se aplica inclusive
aos dados do IBGE, que faz o levantamento por sorteio e amostragem,
considerando a autodeclaração dos indivíduos. A mídia divulga os dados a que tem
acesso, mas, observando os números relativos aos povos nativos, essa mídia não
se atualizou nas questões indígenas e, por repetidas vezes, emite imagens
estereotipadas, obsoletas e preconceituosas. Dessa maneira, reforça, entre seus
espectadores, uma ideia equivocada do índio, na qual negligencia a complexidade
das diversas etnias, suas culturas, suas línguas, suas histórias e seus saberes.

14
Prof. Dr. Hernán Ramiro Ramirez; Doutor em História; Trabalha na Unisinos(RS); Pesquisa sobre história contemporânea da
América Latina, suas instituições sócio-políticas e ideias políticas econômicas de seus intelectuais; Tem um filho.
71

Caetano Veloso, em sua poesia Um Índio15, anuncia:

[...] Depois de exterminada a última nação indígena


E o espírito dos pássaros, das fontes, de água límpida
[...] Virá
Um índio preservado em pleno corpo físico
Em átomos, palavras, alma, cor, em gesto, em cheiro, em sombra, em
luz, em som, magnífico
[...] Virá
E aquilo que nesse momento se revelará aos povos
Surpreenderá a todos por não ser exótico
Mas pelo fato de poder ter sempre estado oculto quando terá sido o
óbvio

A letra da melodia faz um prenúncio de que haverá um tempo em que a vida


na natureza, da forma como o índio a concebe, irá prevalecer. Existem indícios de
que o alto consumo de bens duráveis da sociedade contemporânea, ou pós-
moderna como querem alguns, irá levar a humanidade a redescobrir “o óbvio”, uma
forma de vida natural, sem a destruição do planeta, a terra-mãe de todos os seres
vivos.

2.5 O preconceito linguístico como forma de exclusão

Pataxó muká, mukaú


muká, mukaú
Pataxó mayô werimehe
mayô werimehe
Jerry Matalawê16

Sobre a língua como patrimônio cultural de um povo, a história tem um


começo preconceituoso e trágico. Trecho em que Freire (1983) destaca a fala do
padre Antonio Vieira, tão lúcido em outros discursos, e tão veementemente defensor
da ideia de língua primitiva e demoníaca nesse tema em específico.

Esta visão preconceituosa do “catolicismo guerreiro” sobre as línguas


indígenas se desenvolveu em dois níveis. De um lado, um bastante
grotesco e primário: se existiam tantas e tão variadas línguas, o
responsável era o “demônio”, que desta forma dificultava a pregação
do evangelho (e de quebra, mas isto não era explicitado, dificultava o

15
Cf. Referências.
16
Letra de música de Jerry Matalawê Pataxó intitulando o povo de “luz do amor” e convidando-o para se reunir.
72

recrutamento da mão-de-obra). De outro lado, uma abordagem mais


sutil: estas línguas eram embrulhadas, imperfeitas, mal elaboradas,
pobres, deselegantes, incapazes de exprimir idéias universais e
faziam parte das “infinitas superstições” indígenas, não podendo,
portanto, servir como instrumento natural de comunicação. (PE.
ANTONIO VIEIRA apud FREIRE, 1983, p. 16)

Todos esses adjetivos colaboravam para construir a base ideológica sobre a


inferioridade das línguas indígenas e, automaticamente, a inferioridade daqueles que
as falavam. Esse preconceito se preservou por séculos e marca presença, no
decorrer do tempo, como uma herança difusa e profundamente arraigada na
moderna sociedade brasileira. Juntamente com as línguas indígenas, o que estava
sendo questionado eram as culturas indígenas como um todo, suas formas de viver
e de se relacionar com a terra.
A comunicação se fazia impossível e tal fato gerou a necessidade de
entendimento para dirimir as dificuldades que impediam que as relações de trabalho
e comércio se estabelecessem. Nesse momento, surge, como proposta do padre
Antonio Vieira, a ideia de que

A catequese iria, em conseqüência, constituir um esforço para apagar


estas diferenças. O padre Vieira, polemizando com os colonos do
Pará, defendeu a possibilidade de transformar o “índio bárbaro”,
eliminando estas diferenças através da catequese, fazendo-os
abandonar suas línguas e suas culturas. (apud FREIRE, 1983, p. 16)

Apesar da oralidade indígena não contribuir para os registros antigos de


fontes históricas, e ser um forte argumento do contexto impreciso em que se
desenvolvem as pesquisas nesta área de conhecimento, há registros, em Cestmir
Loukotka (1968), de 1492 línguas faladas na América do Sul. Desse total, cerca de
718, ou seja, quase a metade, o eram em território que constitui a atual Amazônia
brasileira. Focando a atenção no tronco Macro-Jê, ao qual pertence a língua
Patxôhã, pode-se ter uma noção parcial das línguas indígenas.17

17
Fonte: RODRIGUES, Ayron Dall’Igna. Línguas brasileiras: para o conhecimento das línguas indígenas. São
Paulo: Edições Loyola, 1986.
73

Tabela 2: Tronco Linguístico Macro-Jê.

O destaque feito ao trecho acima se deve ao fato dele abordar, mesmo


superficialmente, o tronco Macro-Jê, ao qual pertencem os Maxacali e os Pataxó,
assim como os Pataxó Hã-hã-hãe.
Fausto (2000), discorrendo sobre a cultura Macro-Jê e sua localização, relata
que, inicialmente, “os Tupi-Guarani do litoral chamavam os povos do sertão de
Tapuia e os descreviam como gente bárbara, desprovida de aldeia, agricultura,
canoa, rede, e cerâmica (justamente os traços que iriam definir os marginais)”. E
acrescenta: “o protótipo dessa categoria eram os grupos de caçadores/coletores,
que, divididos em pequenos bandos estruturados pelo parentesco, levavam uma
vida nômade” (p. 60). Na verdade, esses grupos não se adequavam à imagem de
marginais, mas abrigavam todos os povos que não se encaixavam em classificações
maiores no Guia dos índios sul-americanos, publicado pelo antropólogo norte-
americano Julian Steward (1949 in FAUSTO, 2000 p.62), que classificava e criava
quatro grandes tipos de indígenas, numa tentativa de hierarquizar a população
indígena, a partir de graus de complexidade entre a organização sociopolítica, seus
modos de produção e a ecologia.
Percebe-se, mais uma vez, nesse trecho, que, independente do assunto
abordado pelos estudiosos, o tema extermínio surge e se faz predominante, devido
74

a todas as circunstâncias que envolvem a dominação do território, além do medo


real e imaginário que nutriam os conquistadores sobre os índios, seu canibalismo e
suas pajelanças. Ignorando-se os medos, haviam tarefas importantes a serem feitas
e, para isso, a parceria com a Companhia de Jesus servia aos propósitos das
Coroas Portuguesa e Espanhola.

Os dois níveis para garantir a marcha da conquista deviam ser


garantidos: de uma parte, o aspecto produtivo cobrindo diversas
exigências que deviam ser transmitidas e comunicadas de uma
maneira inequívoca, e por outro lado, todo o aspecto ideológico, que
o justificava. A catequese e a propaganda religiosa – tão caras à
Metrópole – funcionando entre outros como elementos de
“capacitação” e “enquadramento” desta mão-de-obra, necessitava e
também deste mínimo de comunicação. Para o colono mandar e o
índio obedecer, para o missionário ensinar, disciplinar e cristianizar,
colonos e missionários tinham duas alternativas: ou tentar aprender a
infinidade de línguas ou estabelecer uma língua de comunicação
regional. (FREIRE, 1983, p. 12)

A citação de Freire (1938) remete à legislação pombalina, que precisa ser


entendida como uma estratégia de construção da cultura e identidade nacional,
embora o preço pago pela reforma implantada pelo Marquês de Pombal seja pauta
de imenso desagrado aos usuários do Nheengatu.
Oliveira (2010a apud Franco, 2015, p.3) defende que:

Não podemos compreender plenamente a construção de um Brasil


imenso enquanto nação com um território de dimensão continental
unificado a falar uma só língua, sem destacarmos o contributo
decisivo das medidas reformistas da política colonial pombalina na
segunda metade do Século das Luzes.

Franco (2015) esclarece que essas medidas legislativas aplicadas em toda a


extensão do território da América Portuguesa foram redefinidas, a partir da
assinatura do Tratado de Madrid, celebrado em 1750. Dessa forma, pela força de
uma pena, o país consolidou-se, aglutinando povos e nações diversos pelo uso de
uma só língua, comum e obrigatória. O projeto, de inspiração iluminista, ansiava por
afirmação total de poder do Estado e do Rei e previa uma série de leis que:

Visavam reformar a administração colonial: impor uma língua única e


eliminar todos os focos de oposição ou de divergência em relação a
um plano político centralizador e estatizador que visava atingir todos
75

os setores vitais da metrópole e do império ultramarino português.


(FRANCO, 2015, p.3).

O Tratado de Madrid, também conhecido como Tratado de Limites ou


Fronteiras, assinado entre as Coroas Portuguesa e Espanhola, em 13 de janeiro de
1750, além de redefinir indefinições fronteiriças, causas de sucessivos litígios com
territórios espanhóis, era um instrumento jurídico para corrigir algumas
ambiguidades do Tratado de Tordesilhas (1494). O novo tratado, além de expulsar
os jesuítas, impedia a formação de elites fortes, negava a fundação de
universidades e proibia a criação da imprensa periódica.
Noutro trecho o autor destaca:

Sempre foi máxima inalteravelmente praticada em todas as Nações


que conquistaram novos domínios introduzir logo nos povos
conquistados o seu próprio idioma, por ser indisputável que este é um
dos meios mais eficazes para desterrar os Povos rústicos a
barbaridade dos seus antigos costumes; e ter mostrado a experiência
que, ao mesmo passo que se introduz neles o uso da Língua do
Príncipe, observando pois todas as Nações polidas do Mundo este
prudente e sólido sistema, nesta Conquista se praticou tanto pelo
contrário, que só cuidaram os primeiros Conquistadores estabelecer
nela uso, da Língua, que chamaram Geral; invenção verdadeiramente
abominável e diabólica, para que privados os índios de todos aqueles
meios que se podiam civilizar, permanecessem na rústica e bárbara
sujeição, em que até agora se conservavam. (COLEÇÃO, 1830, p.
508-9 apud FRANCO, 2015, p.14).

Os missionários jesuítas foram considerados um obstáculo à política


pombalina, por colocarem-se ao lado de índios rebeldes. Assim, criou-se um clima
tão desfavorável, que culminou pela expulsão definitiva em 1759. O Tratado de
Madrid ajustava o domínio português sobre a região da Amazônia e Pantanal mato-
grossense; e, em contrapartida, cedia à Espanha a tão cobiçada Colônia de
Sacramento e as terras imediatamente a norte do Rio da Prata.
Em meio às decorrências do tratado, estavam os territórios dos Sete Povos
das Missões, reduções jesuítas prósperas que passariam à administração
portuguesa e cujos habitantes índios, num total superior a trinta mil pessoas de 30
reduções uruguaias, seriam deslocadas por longas distâncias.
Franco (2015) avalia que:
76

Sem o braço forte e musculado da política pombalina não teríamos


um Brasil imenso, unido pela fala de um só língua como atualmente
observamos, independentemente do julgamento que possamos fazer
das consequências antropológicas e culturais dessa gigantesca
construção que fazem alguns autores afirmar que o Brasil foi o grande
milagre da colonização portuguesa. (p.4).

No século posterior, considerado como um dos pioneiros na literatura


indigenista brasileira, Gonçalves Dias deve esta inspiração ao fato de ter sido
indicado para fazer um relatório sobre um sistema escolar implantado nos idos de
1860. Seu contrato com o governo da época o obrigou a viajar pelo Rio Solimões, ao
longo do Rio Negro para formular uma avaliação do que havia encontrado nas
aldeias ribeirinhas. Obviamente, seu olhar era o de um estranho ao mundo que
visitava, mas afirma o pesquisador:

[...] uma das conclusões mais importantes de Gonçalves Dias foi a de


que o sistema educativo não funcionava, porque a língua empregada
na escola – o português – não era a língua falada pelas comunidades
locais. O português era a língua oficial, sendo obrigatório seu uso na
escola, mas a maioria da população desconhecia essa língua e falava
apenas a Língua Geral. (APA, 1861, p. 5 apud FREIRE,1983, p. 59)

Gonçalves Dias não se cansava de recomendar ao Governador da Província


que os índios continuassem frequentando as escolas, pois acreditava, ainda
conforme relato de Freire (1983), que isso os desabituaria da Língua Geral, visto que
essa era utilizada “em casa e nas ruas, e em toda parte”.
Ainda usando o estudo da língua geral em Freire (1983), como apoio para
entender as misturas Inter étnicas e os números de aprisionamento e escravidão
num certo período, consta que:

Podemos supor – mesmo sem documento de apoio – que neste


período inicial a Língua Geral deve ter convivido em forma
assimétrica com algumas línguas indígenas, tornando bilingües os
índios que as falavam, ainda que bilingües incipientes. Como os
portugueses, ao usar a Língua Geral, evidentemente não
abandonavam sua língua de origem, criou-se uma situação em que
uma comunidade lingüística detinha os meios de produção enquanto
a força de trabalho era proporcionada por comunidades de línguas
diferentes. (1983, p.59)
77

Não é difícil entender o desencadeamento desse bilinguismo, onde os


colonizadores falavam Português e a Língua Geral e os índios falavam sua língua
nativa e a Língua Geral. O ponto de comunicação se dava na Língua Geral criada
pelos jesuítas, mas o motivo preponderante dessa estratégia era fazer com que os
índios abandonassem suas línguas maternas, que, em alguns casos, surtiu o efeito
desejado, ficando perdidas para sempre. Não se deve esquecer, que, enquanto essa
comunicação funcionou, serviu perfeitamente aos interesses comerciais da Coroa
Portuguesa, que, em 1686, exausta de tentar equalizar a “Torre de Babel” que se
formara com as aldeias de repartição, onde se “acumulavam” diversas etnias,
resolveu criar

[...] o Regimento das Missões (1686) – instrumento pelo qual a Coroa


Portuguesa entregou aos missionários o “governo temporal e
espiritual” sobre os índios – os padres intensificaram os descimentos
de índios de suas aldeias de origem, em proporções enormes, até
então desconhecidas, superlotando as aldeias de repartição.
(FREIRE,1983, p.21)

Não era usual o letramento da população em geral, mas graças aos registros
da Igreja, foi possível saber que os missionários, entre 1687 e 1690,

[...] só de alguns sertões dos rios Tocantins, Amazonas e Negro, no


breve espaço de quatro anos, desceram cento e oitenta e quatro mil e
quarenta selvagens [184.040] reduzidos ao grêmio da Igreja Católica
e obediência de El Rei (BAENA, 1902, p.247 apud FREIRE, 1983, p.
22).

Vale sublinhar também outros dados que seguem.

Em 1720, havia apenas no Pará – não incluindo o Maranhão – 63


aldeias com 54.264 índios aldeados que, dependendo da eficiência
missionária, dominavam em maior ou menor grau a Língua Geral, que
era também usada pela quase totalidade dos 1.000 portugueses e
pelos mestiços e ainda pelos índios “livres” e escravos do Maranhão
(RAIOL, 1900, p. 132 apud FREIRE, 1983, p. 23).

Ao refletir sobre os números e os fatos, percebe-se que a expansão da


Língua Geral havia sido realizada em detrimento das demais línguas indígenas, que,
dessa forma, ficaram condenadas à extinção, “em menor escala porque eram
abandonadas enquanto língua materna pelos índios que as falavam, mas
78

especialmente por causa do extermínio físico de muitos povos”. (FREIRE, 1983, p.


23)
Um exemplo vergonhoso de massacre indígena versa sobre um “movimento
nativista popular armado” chamado Cabanagem. Esse movimento era formado por
índios aldeados, índios autônomos ou destribalizados (conhecidos como tapuias),
caboclos, mestiços, negros e mulatos, todos pertencentes à população da Amazônia
que se revolta contra o sistema implantado pelos brancos. Segundo o General
Soares Andrea, responsável pela repressão ao movimento, os tapuias estavam
“unidos em pacto secreto a dar cabo de tudo o que é branco”. Esse general se
referiu à Cabanagem como uma “guerra racial”. (MOREIRA NETO, 1971, p.14 apud
FREIRE, 1983, p. 52)
Um aspecto que não pode passar despercebido é:

[...] o fato de que os “cabanos” – “esses, índios caboclos e negros


vestidos com um uniforme vermelho tingido com casca de murici”
(Pinto, 1980, p. 3) tinham em comum, além da situação de opressão,
o fato de que falavam a Língua Geral, usada, pelo menos no
Amazonas, como língua de intercomunicação entre eles.
(FREIRE,1983, p. 53)

Essa guerra que durou de 1835 a 1845 manchou de sangue indígena a


História do Brasil, com um índice final de 40.000 mortos, em sua maioria, falantes da
Língua Geral. Conforme Abreu “deixando o Pará e o Amazonas menos povoados
que um século antes” (1899, p. 83 in FREIRE,1983, p. 53). Assim, numa guerra
desigual e violenta, a repressão do movimento cabano contribuiu para a extinção,
em poucos anos, de grande número de falantes da Língua Geral.

2.6 Breve histórico das lutas territoriais dos povos indígenas da Bahia

Articular historicamente o passado não significa conhece-lo “como ele


de fato foi”. Significa apropriar-se de uma reminiscência, tal como ela
relampeja no momento de um . (...) Em cada época, é preciso
arrancar a tradição ao conformismo, que quer apoderar-se dela. (...)
O dom de despertar no passado as centelhas da esperança é
privilégio exclusivo do historiador convencido de também os mortos
não estarão em segurança se o inimigo vencer. E esse inimigo não
tem cessado de vencer. (WALTER BENJAMIN,1994, p.34 Sobre o
conceito de História)
79

Baseada nos estudos do Programa de Pesquisas Povos Indígenas do


Nordeste Brasileiro (PINEB) sobre os povos indígenas do nordeste do Brasil,
focalizando preferencialmente os povos que ocupam o sul da Bahia, onde se
localizam os índios Pataxó, objeto desta pesquisa, far-se-á um breve relato histórico
para permitir um melhor entendimento de fatos políticos e religiosos que marcaram a
existência de muitas comunidades indígenas no estado da Bahia e,
consequentemente, resultaram nas lutas por território e reconhecimento étnico que
são presenciadas até este ano de 2016.
Entre os séculos XVII e XVIII, os missionários das ordens jesuítas e
franciscanas formaram aldeamentos com os sobreviventes indígenas do semiárido
baiano que restaram após as incursões pecuaristas no norte e nordeste da Bahia.
Anterior a esse fato e de forma bem mais lenta, ocorreu a conquista da região da
Mata Atlântica e litoral sul do estado, onde a tomada de terras se iniciou no século
XVI e vem se prolongando até os dias atuais. Os dois últimos grupos, considerados
autônomos Hã-Hã-Hãe e Baenã, foram conduzidos ao Posto indígena Caramuru do
Serviço de Proteção ao Índio (SPI), hoje município de Itaju do Colônia.
Consta que após a expulsão dos holandeses do Brasil, em

[...] meados do século XVII, a população dos aldeamentos litorâneos,


de predominante origem etnolinguística tupi, passou a ser aos poucos
considerada como não mais de "índios", surgindo então com
referência a eles a expressão "caboclos", corruptela do termo tupi
para "retirados da mata". Esta tendência à "desindianização" formal
das comunidades de aldeamentos coloniais se intensificou com a
expulsão do Brasil, no início da segunda metade do século seguinte,
da ordem religiosa dos jesuítas, seguida da saída ou enfraquecimento
também de outras ordens missionárias, cujos aldeamentos passaram
a ser diretamente administrados pelo estado como "vilas", para as
quais foram deliberadamente atraídos contingentes de não índios.
(SAMPAIO, 2010, p. 31)

Ao limiar do século XIX, houve um avanço sobre as matas do sul dirigido pela
própria coroa, que instalou uma geopolítica atlântica de ocupação, consequência da
chegada da corte portuguesa ao Brasil que vinha fugida dos conflitos na Europa e
sequiosa de se instalar em terras vastas e prolíferas.
Segundo Sampaio (2010), toda a população indígena, ainda autônoma no
Extremo Sul, era predominantemente da família linguística maxacali e etnia pataxó,
depois compulsoriamente reunida, junto com remanescentes de aldeamentos
80

coloniais costeiros, em uma única aldeia junto à foz do rio Corumbau, mandada
implantar em 1861 pelo Presidente da Província.
Segue, durante todo o século XIX, a ocupação que foi acelerada pela Lei de
Terras de 1850 nos aldeamentos, locais também chamados "vilas de índios", que, na
prática, eram administrados por diretores nomeados pelo governo provincial. Essa
ideia de que os povos indígenas precisam ser dirigidos, coordenados ou
administrados parece ser consenso ainda em tempos bem recentes, talvez baseada
na premissa equivocada e infantilizadora que se instalou, desde os primeiros
contatos com eles, de que não sabem as coisas, não sabem falar e ingenuamente
enfrentaram armas de fogo a peito aberto.
Os povos indígenas foram sendo extintos, não só por disputa de terras e por
contaminação e doenças trazidas por outras etnias, mas também porque

[...] eram comuns na segunda metade do século XIX documentos


oficiais que declaravam não haver mais índios nesses
estabelecimentos e eles foram sendo um a um extintos, até que, por
um decreto estadual de 1890, a própria Diretoria de Índios na Bahia
foi extinta.(SAMPAIO, 2010, p.33)

Exceção feita aos Hã-Hã-Hãe e Baenã, a maior parte das comunidades


indígenas ingressou no século XX sem reconhecimento, enquanto tal, pelo poder
público. Os poucos bandos, ainda autônomos nas matas do Sul, nas bacias dos rios
Gongoji, Cachoeira, Pardo e Jequitinhonha, foram simplesmente dizimada entre
1910 e 1930, pelas frentes de expansão da lavoura cacaueira.
Nenhuma invasão ou tomada de território foi pacífica. Foram lutas com as
armas que cada lado dispunha. Diante daquelas circunstâncias, as comunidades
indígenas contavam com sua coragem e suas flechas, mas esses artifícios não
foram suficientes para mantê-los em suas terras, vivendo em paz. Seus inimigos
usavam a tinta de suas penas para escrever sua história, reafirmar sua inexistência
e sacramentar sua invisibilidade.
A resistência indígena durou enquanto duraram suas forças físicas, mas
essas também foram sendo dilapidadas pelas doenças e má alimentação. Mesmo
em condições difíceis, os povos indígenas da Bahia escreveram, com sangue, uma
série de lutas e rebeliões que se tornaram célebres ao longo da história, como a da
81

[...] Santidade do Jaguaripe", de índios tupis, no Recôncavo, ainda no


século XVI; e, na fase mais crítica deste processo, a série de revoltas
das aldeias dos Cariri e Sapuiá na Pedra Branca, no médio
Paraguaçu, entre as décadas de 1840 e 1880; e, mais recentemente,
nas décadas de 1920 e 1930, as rebeliões lideradas pelos "caboclos"
Marcelino, entre os Tupinambá de Olivença, município de Ilhéus; e
Sebereba, entre os Aricobé da antiga missão homônima no município
de Angical, Oeste do estado. Em 1926 o governo estadual criou uma
reserva para abrigar os índios no Sul do estado e nela foram
instalados o dito Posto Caramuru, para os recém contatados Hã-Hã-
Hãe, de língua pataxó, e Baenã, de filiação etnolinguística imprecisa,
possivelmente Botocudos; e, mais ao Sul, no atual município de Pau
Brasil, o Posto Indígena Paraguaçu, para o qual foram atraídos
contingentes de caririssapuiás egressos das revoltas da Pedra
Branca; de camacãs dos falidos e invadidos aldeamentos do Pardo e
do Cachoeira; e de alguns tupis de antigos aldeamentos litorâneos
como Olivença, Trancoso, Barcelos e São Fidélis.
Demarcada apenas entre 1936 e 1937, esta reserva, que ficou
conhecida como Caramuru-Paraguaçu, foi imediatamente invadida
por fazendeiros de cacau e gado que se valeram de arrendamentos e
da corrupção de servidores do SPI para desencadear um novo
processo de expulsão dos índios que perdurou – e quase foi
plenamente consumado - com lances de extrema violência, até a
década de 1970. (SAMPAIO, 2010, p. 34)

Na década de 1940, indígenas do sertão da Bahia se mobilizaram em favor


das antigas terras usurpadas dos seus aldeamentos. Reuniram representantes de
vários cacicados e empreenderam longas viagens a pé. Numa delas, chegaram ao
estado do Rio de Janeiro para falar com o Marechal Rondon; naquela época,
fundador e Presidente do SPI. O resultado dessa empreitada hercúlea foi a
implantação de dois postos do órgão: um em 1944, junto aos Tuxá, na cidade de
Rodelas, no submédio do rio São Francisco, liderados, em seu pleito, pelo pajé João
Gomes; e outro em 1949, na vila de Mirandela, atual município de Banzaê, na bacia
do médio rio Itapecuru, única remanescente de quatro notáveis aldeamentos
coloniais jesuíticos que abrigaram, na região, os Quiriri, falantes da língua Quípea.
Ainda na década de 1940, os "caboclos" do extremo sul do estado, que
tinham sido reunidos numa aldeia à foz do Corumbau, agora denominada Barra
Velha, foram alcançados por uma iniciativa do governo federal, que implantou

[...] um "parque" para preservação do monumento natural e histórico


do Monte Pascoal - que fica logo a Oeste da aldeia - e do sítio
do"descobrimento do Brasil", entre os municípios de Porto Seguro e
Prado. Temerosos de perder suas terras, os Pataxó de Barra Velha
também empreenderam, liderados por seu cacique Honório, longa
jornada ao Rio de Janeiro, de onde retornaram na companhia de
indivíduos que os induziram a uma rebelião que foi brutalmente
reprimida, em 1951, por um truculento aparato policial, com incêndios,
82

espancamentos e estupros que provocaram a fuga de muitos pataxós


de sua aldeia. (SAMPAIO, 2010, p.36)

Essa chacina é relatada por Cunha (2010, p. 6)

O Fogo de 51 foi mais uma tentativa de domínio, ou expropriação de


terras, por interesses de não-índios e, ao mesmo tempo, resistência
dos Pataxó de permanecerem em sua área territorial. Um fato que
aconteceu em 1951, na Aldeia Barra Velha – Porto Seguro/BA, em
meio a lutas pela demarcação de terras e pela criação do Parque
Nacional do Monte Pascoal, decreto 12.729 de 19 de abril de 1943;
quando autoridades locais, em desrespeito ao espaço territorial
indígena, contribuíram para a dispersão dessa comunidade. O fato,
também conhecido como a Revolta de Barra Velha, revela que,
embora houvesse relações de amizade e compadrio entre índios e
não-índios, havia uma parte da elite que, dominada pelo desejo de
poder, hostilizava indígenas pela ganância de possuir as terras de
quem ali já se encontrava, bem antes da chegada do branco–
colonizador.

Mesmo com a decretação do Parque, somente dez anos depois da chacina,


em 1961, foi implantado o Parque Nacional do Monte Pascoal, sob gestão do
Instituto Brasileiro de Desenvolvimento Florestal (IBDF). Embora isso parecesse
legal e suficiente, os pataxós que ali permaneceram estavam impedidos de plantar
em seu próprio território, visto que o parque é uma "unidade de conservação", sendo
proibido o plantio e a utilização da terra para coleta de sementes e frutos, ou
qualquer outra atividade que interferisse na preservação do Parque. Novamente, o
povo Pataxó remanescente teve que se dispersar, procurando novos lugares e
espaços de sobrevivência, “retirando do próprio desespero uma renovada coragem
para voltar a buscar a proteção do indigenismo estatal.” (SAMPAIO, 2010, p. 39)
Em 1971, a Fundação Nacional do Índio (FUNAI), que sucedera ao SPI em
1967, implantou um posto em Barra Velha.
Por volta de 1974, com a construção dos trechos locais das rodovias BR-101
e BR-367 em uma região tumultuada pelo avanço demográfico e de uma voraz
frente madeireira, os Pataxó voltaram novamente a se concentrar em pontos do
litoral, onde havia vivido seus antepassados; e, pelo sentido de pertencimento, ainda
era possível encontrar alguns "parentes"18.
Uma destas localidades foi a nova aldeia de Coroa Vermelha, para onde se
dirigiram às praias de Santa Cruz Cabrália e aproveitar a frequência turística e

18
Parentes – termo utilizado pelo povo Pataxó para designar outros índios mesmo que não sejam da mesma
etnia.(Nota da autora)
83

divulgar seu artesanato. Até o presente momento, o público que visita o sítio da
"primeira missa no Brasil" encontra uma comunidade urbana organizada no entorno
do centro comercial e turístico local.
Ao final da década de 1970, já se consolidava, em todo o país, um novo
Indigenismo, composto por pesquisadores de formação acadêmica e religiosa
progressista, pertencentes a organizações não governamentais, capazes de se
contraporem ao modelo indigenista estatal republicano - de inspiração militar e de
embasamento jurídico-legal tutelar.

Este novo movimento social daria suporte à formação de um


movimento indígena minimamente articulado a nível nacional, e, no
plano regional do Nordeste, à retomada do processo designado por
alguns estudiosos de "etnogênese" ou "emergência étnica”, em que
grupos indígenas de há muito envolvidos por processos coloniais e
desautorizados enquanto tais pelos ditames da política indigenista
estatal e das ideologias de mestiçagem dominantes nas concepções
vigentes sobre a formação nacional brasileira, organizam-se na
revitalização de suas identidades, de suas "culturas" próprias e na
reivindicação de direitos territoriais longamente
esbulhados.(SAMPAIO, 2010, p.40)

Com o apoio dos movimentos indigenistas e o exemplo da “retomada” da


fazenda Picos, que estava intrusada dentro do território Kiriri, em 1982, muitos dos
índios expulsos da reserva Caramuru-Paraguaçu se organizaram e, sob a liderança
do cacique Nelson Saracura, retomaram uma das fazendas invasoras do seu
território, a São Lucas.
A heroica resistência do cariri-sapuiá Samado Santos, que jamais deixou a
reserva, e a tranquila permanência, junto às ruínas do posto Caramuru no rio
Colônia, de Barretá, última remanescente do bando Hã-Hã-Hãe contatado na
década de 1930, estimularam, em seguida à retomada, o retorno de muitos outros
índios, agora emblematicamente unificados, sob a designação daquele último bando
autônomo - Pataxó Hã-Hã-Hãe.
Reações violentas à crescente mobilização dos índios na Bahia, pela
recuperação dos seus territórios, causaram muitos outros ataques armados,
assassinatos, envolvendo também o incêndio de casas e roças.
Ainda, segundo Sampaio (2010), a grande luta dos índios, naquele final da
década de 1980 pela garantia de direitos e dos seus territórios tradicionais, se travou
em outro lugar, em Brasília, onde, graças à mobilização do nascente movimento
84

indígena brasileiro, a Assembleia Nacional Constituinte promulgou, em outubro de


1988, uma nova carta constitucional que dispõe que

[...] são reconhecidos aos índios sua organização social, costumes,


línguas, crenças e tradições, e os direitos originários sobre as terras
que tradicionalmente ocupam, competindo à União demarcá-las,
proteger e fazer respeitar todos os seus bens (BRASIL, 1988, ART.
231)19

e que "os índios, suas comunidades e organizações são partes legítimas para
ingressarem juízo em defesa de seus direitos e interesses, intervindo o Ministério
Público em todos os atos do processo" (ART. 232). Com isso, encerraram-se os
quase quinhentos anos de leis que determinavam a assimilação forçada de
indígenas às sociedades colonial ou nacional (ART. 231) e o instituto da tutela
estatal sobre a cidadania indígena (ART. 232), agora livre para organizar suas
próprias instituições representativas.
Além disso, o parágrafo 1 do dito artigo 231 tornou claro - pela primeira vez
desde a introdução dessa figura legal pela Constituição de 1934 - o que são "terras
tradicionalmente ocupadas pelos índios", dotando, enfim, o Estado de parâmetros
legais e técnicos seguros para a definição e proteção destas terras.
Respaldados na lei, cresce a mobilização indígena na Bahia, durante toda a
década de 1990, um período de conquistas para os povos de etnia indígena, como
os Caimbé, Pancararé, devido à homologação da demarcação da Terra Indígena
dos Quiriri, que serviu de exemplo. Logo após, seguiram-se as regularizações
anteriores, as terras Pataxó de Mata Medonha e Coroa Vermelha, hoje com mais de
9 mil habitantes, garantindo-se à maior aldeia indígena no estado, a remoção de
mais de trezentas ocupações comerciais de não índios.
Na segunda metade da década, ganharam destaque as retomadas indígenas,
numa verdadeira guerra judicial, a FUNAI conseguiu negociar a saída de alguns
médios fazendeiros de áreas retomadas pelos Pataxó Hã-Hã-Hãe, de modo que,
mesmo ainda pendentes do julgamento pelo STF da ação de anulação dos títulos
dos invasores, os índios da Reserva Caramuru-Paraguaçu já controlam cerca de um
terço do seu território de 54 mil hectares, rompendo o confinamento em que
estiveram desde 1982.

19 BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília: Senado

Federal/Centro Gráfico, 1988, 292p.


85

Convictos dos seus direitos e imbuídos do seu espírito guerreiro, a partir de


1997, os Pataxó do extremo sul desencadearam uma série de retomadas, a
começar, em outubro, pela principal intrusão na Terra Indígena Coroa Vermelha, em
que ensejou a imediata emissão da declaração de posse indígena dessa Terra pelo
Ministério da Justiça e sua consequente demarcação e extrusão, concluídas
respectivamente em 1998 e 1999. No mesmo ano, retomaram a última área
intrusada na Terra Indígena Águas Belas, que foi também demarcada. Em abril de
1998, ocuparam a Aldeia Velha, junto ao Arraial d'Ajuda, próximo à cidade de Porto
Seguro, obtendo, com apoio do Ministério Público Federal (MPF), o imediato início
dos estudos de identificação dessa Terra pela Funai, o que lhes permitiu a
permanência aí até a garantia de sua posse definitiva, por portaria ministerial, já no
início de 2011.
Em outubro de 1998, ocuparam o território da aldeia Corumbauzinho,
estrategicamente localizado entre a já demarcada Águas Belas e o limite sul do
Parque do Monte Pascoal, o que fez com que o MPF emitisse "recomendação legal"
para que a FUNAI realizasse os estudos de identificação dessa Terra Indígena e,
mais, revisasse os limites da Terra Indígena Barra Velha, oriunda do espúrio "acordo
de partilha" do Parque em 1980.
A 19 de agosto de 1999, um dia após a criação pela FUNAI do Grupo Técnico
para realização desses estudos, os Pataxó ocuparam, enfim, todo o Parque do
Monte Pascoal; daí, removendo a administração do órgão federal encarregado, o
Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (IBAMA).
A isso se seguiram, até os anos iniciais da década seguinte, outra série de
retomadas de áreas do tradicional território Pataxó no entorno do Parque, desde
Guaxuma (ao norte) até Cumuruxatiba (ao sul), incluindo, aí, áreas de outro
"Parque", o "do Descobrimento", sob comando da recém-criada Frente de
Resistência e Luta Pataxó e inspiração do respeitado líder Joel Bráz20.
Apenas em 2008, foram concluídos e aprovados os estudos relativos à parte
norte desse território, que ora se denomina Terra Indígena Barra Velha do Monte
Pascoal. Resta ainda, por se definirem, os estudos e acordos com o Instituto Chico
Mendes (ICMBio) - relativamente ao Parque do Descobrimento - quanto à parte sul
desse território, ora denominado Terra Indígena Comexatiba. Quando, enfim,
20
Joel Braz, da Frente de Luta e Resistência Pataxó é considerado uma das principais lideranças para os povos indígenas no
nordeste, tem lutado para que o território indígena na região do Monte Pascoal e Parque do Descobrimento, extremo sul da
Bahia, seja devolvido aos seus verdadeiros donos.
86

regularizado, o território pataxó, no Monte Pascoal, será a maior Terra Indígena do


estado em extensão contínua. Sua área tem cerca de 70 mil hectares e é a mais
populosa, contando com mais de 5 mil habitantes em 2010 e mais de 9mil em 2016,
conforme relato oral de Juari Pataxó, líder indígena e representante legal de sua
etnia.(1º/08/2016)
Nas duas décadas finais do século XX, estabeleceram-se na Bahia
constituindo pequenas aldeias e respectivos territórios, grupos familiares oriundos de
povos indígenas de Pernambuco e Alagoas de outras etnias, como os Pancaru, os
Aticum, os Trucá, os Xucuru-Cariri e os Cariri-Xocó. Também, nessas décadas,
prosseguiu o processo de emergência étnica que, ao final da década de 1980,
trouxe a conhecimento a pequena etnia dos Cantaruré, um "ramo" dos Pancararu.
Os Cantaruré tiveram o seu território identificado e regularizado já na década
seguinte, assim como a Bahia testemunhou a reorganização dos Tumbalalá que,
junto com os Tuxá e os Trucá, formam o trio de povos da antiga nação Procá
habitante do arco, no extremo norte do curso do São Francisco; e dos Tupinambá de
Olivença, que são, hoje, a segunda maior etnia no estado, com mais de 4 mil
indígenas, nos municípios de Ilhéus, Buerarema e Una.
Os territórios dos Tumbalalá e dos Tupinambá de Olivença, identificados na
primeira década do século XXI, estão também dentre os maiores no estado, com
mais de 40 mil hectares cada. Mais que isso, a Terra Indígena Tupinambá de
Olivença se tornou, ao final dessa primeira década, protagonista em ações de
retomada, principalmente a partir de sua comunidade na Serra do Padeiro, liderada
pelo cacique Babau e também protagonista de um impressionante processo de
organização social.
Também nessa década, vêm se organizando, no extremo sul do estado,
segmentos da tradicional população indígena nessa região, nomeadamente no vale
do rio Jequitinhonha - municípios de Belmonte e Itapebi - que afirmam ascendências
dos Camacã, dos Botocudos e, principalmente, dos Tupi, pelo que se tem
apresentado, como os Tupinambá do Jequitinhonha. No mesmo período, vem
também se organizando o povo indígena Paiaiá - de forte presença histórica em
vastas extensões do semi-árido no estado - a partir de uma sua comunidade, no
município de Utinga, na Chapada Diamantina.
Ao iniciar a segunda década deste século, o movimento dos povos indígenas,
na Bahia, segue crescente e vigoroso. São, hoje, quinze povos indígenas, com
87

população próxima a 40 mil pessoas, vivendo em, pelo menos, 33 territórios, 27


municípios e cerca de 100 comunidades locais.

2.7 O outro – estrangeiro de dentro

O texto privilegiará a memória histórica, dentro de uma seleção de autores


que questionem os estereótipos dos imaginários nacionais sobre os povos
indígenas, como têm sido desde o início, para honrar os compromissos firmados
com os próprios Pataxó, que pedem respeito em todas as oportunidades, como
também, para evitar a visão historicista eurocêntrica que orientou o processo de
constituição dos países americanos, incluindo o Brasil.
Pela própria natureza da temática, haverá um diálogo entre a história, a
antropologia e a arte, num processo que observa o modo de vida, com respaldo na
história escrita e oral e registro das imagens artísticas e culturais, respeitando assim
as fronteiras que cada área de conhecimento impõe.
Há que se considerar a maneira como se estabelece o confronto entre as
culturas indígenas e o modelo cultural do ocidente. Leve-se em conta que a
sociedade pós-moderna convive estupefata com uma imensa variedade de
manifestações culturais, sem poder distinguir sua veracidade ou não.
Segundo Olivieri-Godet (2013), que analisa o personagem ameríndio em
obras literárias, os nativos são tratados como o outro, um “estranho estrangeiro de
dentro” (p.12), mesmo quando são ressaltados aspectos singulares de sua
alteridade. A autora busca uma visão das trocas culturais e de assimilação mútua
nas Américas, articulando o passado e a atualidade, no sentido de clarear a
intolerância “na percepção da alteridade indígena” (p.12) e o lugar que os índios
ocupam na sociedade vigente.
O texto explora as questões da ancestralidade e como outros autores
articulam esse estranhamento no interior das nações, em relação à alteridade
indígena. É preponderante a dimensão histórica ao se proceder uma releitura das
relações interculturais, na medida em que as populações ameríndias são
importantes contributos para as nações e, nesse contexto, faz-se mister refletir sobre
a origem do preconceito que persiste na marginalização das culturas indígenas e
que alimenta os conflitos atuais.
88

Oliviere-Godet (2013) ilustra seus estudos comparativos apontando a


hesitação entre a formação das consciências nacionais e das identidades coletivas
na América e como esses modelos evoluíram em relação ao “Velho Mundo”. E. E.
Burns (apud Bouchard, 2001, p. 203) demonstrou que “a referência europeia e a
rejeição da indianidade constituíram os traços dominantes da historiografia latino-
americana” no século XIX e que tais traços permanecem até os dias atuais.
Diante das premissas expostas nas primeiras seções deste capítulo sobre a
profundidade e a tenacidade das ações de extermínio, torna-se válida uma tentativa
de penetrar no universo imaginário dos povos indígenas e traçar ligações entre
identidade e alteridade.

As culturas ameríndias inscrevem-se na contemporaneidade das


nações americanas, contemporaneidade marcada pela
heterogeneidade de culturas que necessitam de um espaço habitável,
um espaço democrático no qual elas possam coexistir sem estarem
hierarquicamente submetidas ao modelo da cultura majoritária.
(OLIVIERE-GODET, 2013, p.13)

A reafirmação das culturas indígenas sobreviventes, na contemporaneidade,


é evidente e necessária a partir de uma ideia obsoleta e recorrente que as aprisiona
no passado, ou pior, reserva-lhes uma outra condição, a de sujeitos efêmeros no
presente e destinados a desaparecer futuramente. A autora reforça o processo que
ainda vigora de negação identitária lembrando que “a invisibilidade dos índios só
tende a ser rompida nos momentos de crise entre os povos indígenas e o poder
estatal” (p.18), a exemplo do “Fogo de 51” entre os Pataxó de Barra Velha, como foi
relatado anteriormente.
Resta-lhes ainda o papel exótico, que muitas vezes lhes é reservado nas
sociedades atuais, sendo que para sair do lugar oculto que lhes foi delegado, acaba
por ter sua imagem carnavalizada para atingir alguma visualidade, apesar de
desvirtuada.
Assim, investidos em seu instinto natural e guerreiro, os povos indígenas
lutam contra a invisibilidade cristalizada, por meio do isolamento geopolítico, do
obscurantismo cultural, da exclusão econômica e do preconceito.
Talvez inspirados por outras vertentes de movimentos sociais, os povos
indígenas têm se organizado tanto no interior como nas metrópoles, buscando
romper com um imaginário calcado na “síndrome de extinção” (SANTILLI, 2000, p.
21).
89

O mesmo autor lembra que, em termos de articulação internacional, o


principal instrumento de direito internacional, relativo aos povos indígenas e às
populações tribais, é a Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho
(OIT), subscrita pelo governo brasileiro, em tramitação no Senado.
Datas históricas têm sido marcadas pelas reivindicações dos povos
indígenas, como no bicentenário da independência argentina em que o Jornal El
País registrou um trecho de uma manifestação, onde os indígenas declaravam

Y el reclamo, unívoco y contundente, fue el mismo de los últimos dos


siglos: tierra, rechazo a las empresas que los desalojan, respeto a su
cultura ancestral y justicia frente a los atropelos del passado y del
presente (ARANDA, 2010)

Mas, na verdade, era mais uma reafirmação de que estão vivos e resistindo à
denegação da identidade deles.
No Brasil, a Constituição de 1988 trouxe avanços no que tange à superação
de preconceitos em relação aos índios e no estabelecimento de políticas públicas
que contemplam muitas das principais reivindicações desses povos. Segundo
Santilli (2000), em pesquisa feita pelo IBOPE e pelo Instituto Socioambiental, os
entrevistados concordam com a demarcação das terras indígenas, com direitos
especiais assegurados, que as culturas indígenas devem ser respeitadas, assim
como seus integrantes devem ter educação adequada. Oposto a isso,
aproximadamente vinte por cento dos entrevistados consideram os povos indígenas
atrasados e defendem “políticas de extermínio passivo ou de integração forçada”
(SANTILLI, 2000, p. 141).
Parece consenso que uma forma de divulgar a cultura dos povos indígenas
seria por meio da produção literária e artística, mas, como se sabe, a tradição da
cultura tradicional indígena é oral, e o sistema ocidental é de tradição letrada.
Em relação à inserção da produção artística no âmbito das sociedades
modernas ocidentais, o que se constata é que o mercado consumidor absorve as
peças como curiosidades exóticas e primitivas.
O resultado desse projeto de afirmação identitária e cultural no campo social,
em que se somam ações de resistência, superação de preconceitos, luta por
reconhecimento territorial, cultural e artístico, permanece com a marca da
invisibilidade.
90

Olivieri-Godet (2013, p. 13) reforça essa triste constatação no trecho:

O percurso histórico dos contatos entre os dois sistemas é


caracterizado pelo predomínio de uma visão eurocêntrica que tende a
excluir a diferença e, por isso mesmo, a não considerar no mesmo
espaço cultural formas de produção artísticas que não correspondam
ao modelo em vigor.

A exemplo disso, a comunidade bilíngue Pataxó de Coroa Vermelha e de


Porto Seguro tem feito esforços, no sentido de publicar, não só livros didáticos, livros
de histórias, mas outros que retratem sua forma de viver e pensar como ”Raízes e
vivências do povo Pataxó nas escolas” , de produção coletiva “Yêp Xohã Ui Awãkã
Pataxó” (As guerreiras na história Pataxó), de autoria de Nitynawã ou “Mãgute e
Goyá Pataxó” (comida e bebida Pataxó), organizado pelos professores da escola
Pataxó de Barra Velha. Percebe-se uma iniciativa muito positiva, mas que não gera
os frutos adequados ao seu intento, que seria o retorno financeiro da venda e a
divulgação étnico-cultural. Outro exemplo seria a variada gama de produção
artesanal em madeira e palha, que atrai maior demanda nas vendas quando
composto por objetos utilitários. No comércio turístico, o mercado favorece
pequenos objetos decorativos do tipo: colares de contas ou com dentes de animais,
adereços de arte plumária como brincos, colares e cocares, sendo que permanecem
no quesito curiosidade exótica, sem que alcancem qualquer posição na escala de
reconhecimento étnico ou manifestação artístico-cultural, como seria de se esperar.

2.8 Extermínio ou mestiçagem?

Chame-lhe progresso
Quem do extermínio secular se ufana;
Eu modesto cantor do povo extinto
Chorarei nos vastos sepulcros,
Que vão do mar aos Andes, e do Prata
Ao largo e doce mar das Amazonas.
(GONÇALVES DIAS. Os Timbiras, 1857)21

Conforme as leituras sobre a história indígena e suas causas de luta


contemporâneas vão se desenvolvendo, surge uma dúvida que faz o pensamento
oscilar como um pêndulo. Será que a identidade de matriz indígena, muitas vezes
negada por seus descendentes, se pauta no medo da morte e na discriminação

21
Cf. Referências.
91

desmedida através dos séculos ou será que ela se baseia na mestiçagem contínua
que a descaracteriza e a invisibiliza?
Ao analisar a política indigenista no Brasil, a partir da Carta Régia de 1798,
Maria Hilda Paraíso (1992) detectou a pressão exercita pelos latifundiários sobre a
coroa e a forma “amena” como os índios eram tratados, em relação à ocupação de
terras. Mais de dois séculos se passaram e ainda se usa o mesmo tom e a mesma
retórica quando o tema gira em torno da disputa de terras entre indígenas e colonos.
A autora destaca o sentido das leis claramente e os interesses subliminares
de governantes e colonos, deixando explícitas as ações colocadas em prática por
essa política, que construiu quartéis e treinou um plantel para combater os
Botocudos na região sul da Bahia e na fronteira de Espírito Santo e Minas Gerais. O
trecho que segue retrata o comportamento dos latifundiários e o tratamento aos
indígenas.

Esse tipo de raciocínio e de busca de alternativas de ocupação


econômica para a área em apreço redundou numa política e numa
prática militarista violenta e expropriadora das terras indígenas, além
de exploradora das forças de trabalho dos grupos, resultando
praticamente no seu extermínio. (PARAÍSO, 1992, p, 416)

No Brasil, prepondera um discurso que entrou pela modernidade e projeta a


construção de uma identidade nacional de um povo mestiço, não obstante, a
referência evidente seja a do modelo ocidental de pele clara. Oliviere-Godet (2013)
reforça a postura violenta contra os índios, na qual cita Vernaghen (1851 apud
DAVID TREECE, 2008) que

[...] advogou um implacável uso de força, com a reintrodução das


bandeiras coloniais – expedições pioneiras escravistas com o fim de
sujeitar o índio ao controle do branco e liberar suas terras para a
exploração por colonos brasileiros e imigrantes (p. 29).

E, indo mais além, justifica seu pensamento em nome da ameaça que os


índios significam para a civilização, configurando obstáculo para o progresso e
defendendo o direito legítimo de conquista da civilização sobre a barbárie.
Aos poucos, somam-se argumentos que desbancam o consenso da
mestiçagem e afirma que a sociedade brasileira disfarça uma tendência autoritária
de homogeneizar as diferenças. De maneira bem contundente, Treece (2008, p. 11)
questiona o brutal genocídio que vitimou a população indígena, por mais de cinco
92

séculos. O autor considera que o pensamento nacionalista no Brasil criou um ideal


integracionista que invocou a assimilação dos índios pela sociedade, como base de
uma história pacífica de integração social.
Ele ainda afirma que a política colonialista repousava em bases militares e
missionárias, de forma que dividia “a população indígena entre aqueles
determinados a resistir (os assim chamados tapuias) e aqueles que concordavam
em abandonar seus costumes tribais e submeter-se ao regime de povoamentos
jesuítas” (p. 51). A dualidade se balizava entre a assimilação ou o extermínio,
mesmo durante o reinado de D. João VI; e ainda depois da proclamação da
independência. Essa política dual se reflete nas duas imagens que pairam sobre os
índios, que ora sustentam o estereótipo de receptividade e docilidade, ora
simbolizam o selvagem rebelde e canibal.
Refletindo sobre o imaginário fundante da nação brasileira Olivieri-Godet
(1996 a) assevera

A literatura brasileira interroga de maneira sistemática a problemática


da identidade nacional, com projetos literários específicos, em dois
momentos singulares de sua história: a época romântica, sintonizada
com o processo de independência e formação da nação, e o período
modernista, cem anos depois, que instaura uma reflexão sobre a
emancipação intelectual do país. Dois movimentos literários que
possuam quadros de referência distintos quando questionam o papel
da literatura no âmbito da fundação (Romantismo) ou da (re)fundação
(modernismo) de uma consciência nacional, buscando um fundo
mitológico para uma literatura independente. (1996a in OLIVIERI-
GODET, 2013, p. 15)

O nacionalismo romântico mantêm o olhar etnocêntrico pintando de cores


pitorescas e fortalecendo o mito do Brasil como um jardim do Éden. Seus valores
são do branco civilizado e como tal irá idealizar a imagem do índio como
representante da especificidade brasileira. José de Alencar, maior romancista
romântico brasileiro, projeta seus personagens Poti e Iracema, esvaziados de sua
alteridade, figurando um simples ornamento como se fossem um elemento da
própria natureza, uma tonalidade da cor local.
David Treece, em recente trabalho constata que a representação do índio
naquele período estava intimamente ligada à “três fenômenos: a história da política
indigenista oficial, a identidade sociopolítica contraditória do Estado-nação brasileiro
93

e a construção de um índio ficcional no imaginário nacional”(2008, p.14). Todos


esses fatores ligados à preocupação com a integração.
Essa visão idealizada, no romantismo, relega o índio a um passado mítico,
mas reitera a discussão política em torno dos povos indígenas; enquanto, no
Modernismo, há um questionamento identitário que os transforma em anti-herói,
antropófago e rebelde, na qual até o canibalismo ganha cores e tons positivos. A
figura emblemática dessa fase é Macunaíma, de Mário de Andrade, cujo anti-herói
carnavalesco e extravagante aproxima mundos antagônicos, entre os quais circula o
tal herói brasileiro. Assim postula Olivieri-Godet (1996b) sobre Macunaíma:

Consciência da cisão entre heranças culturais diversas e desejo de


ultrapassá-la, assim poderíamos ler a instabilidade de Macunaíma,
simbolizada nas suas metamorfoses. Tentativa de interpretação de
uma nação em cujo espaço se inscreve a tensão entre a selva e a
cidade, o primitivo e o moderno, o lúdico e o racional e que tem diante
de si o desafio de criar uma identidade, tendo perdido sua inocência,
sem ganhar uma consciência. (1996b in OLIVIERI-GODET, 2013, p.
16)

Urge, na literatura de cunho social, a necessidade de fazer o Brasil descobrir


a condição miserável e decadente a que foram condenados os sobreviventes dessa
persistente chacina. O nordeste brasileiro ilustra, em imagens fartas, as populações
indígenas distribalizadas, espalhadas pelo sertão, cujo mestiço sertanejo leva o
nome de caboclo.
Caboclo, palavra originária do Tupi, em que caa significa “floresta” e boc, “que
vem de”, literalmente se referiria aquele que vem da floresta ou que procede do
mato.(GRENAND, 1990 apud CARVALHO, 2012, p. 13). Ou ainda, mestiço de
branco com índio; cariboca, carijó; antiga denominação de indígena; de cor
acobreada e cabelos lisos; caburé, tapuio; encantado. (FERREIRA, 1999 apud
CARVALHO, 2012, p. 13).
Todos os autores da temática indígena no nordeste brasileiro, em certo
momento de seus relatos, sentem a necessidade de estabelecer parâmetros de
distinção entre Índio e Caboclo, no campo semântico. Nesses termos, Maria Rosário
de Carvalho (2012) consolidou o livro que busca entender essas categorias étnicas e
os contextos empíricos em que se apresentam. Enquanto índio designa a autoctonia
da nação brasileira, e a quem o Estado atribui a função de unificar as outras etnias
94

fundantes, o termo caboclo induz à concepção de mistura e resultado de trocas


genéticas.
No século XVIII, os documentos de então, explicam muitas das situações que
se mantiveram através do tempo: por exemplo, o Alvará de 7 de junho de 1755 e de
8 de maio de 1757, com força de lei, que ampliava a liberdade concedida aos índios
do Maranhão e do Pará; e autorizava que tal liberdade fosse estendida a todos os
índios do Brasil.
Outra determinação, instaurada pela Carta Régia de 22 de novembro de
1758, pelo Diretório Pombalino, criava Vilas sobre os povoamentos preexistentes,
como a Vila de Nova Trancoso, onde antes se estabelecia a Aldeia de São João, no
extremo sul da Bahia, hoje pertencente ao Município de Porto Seguro.
Carvalho analisa alguns benefícios que a carta trazia em seu bojo:

[...] o reconhecimento dos índios como os primeiros “naturais”


ocupantes e povoadores das terras; o reconhecimento da existência,
na terra conquistada, de povos diferentes; e o não consentimento da
presença de arrendatários nas terras que fossem demarcadas para
os índios, de acordo com o Alvará de 1700. (2012, p. 14)

Por outro lado, outros documentos incentivavam o esbulho e a crescente


modificação dos costumes indígenas, sinalizando a instrução, a civilização e a
organização em vilas, como a maneira eficaz e compulsória de viver livre.
Em dezembro de 1830, a Câmara de Porto Seguro registra uma ameaça de
paralização das obras públicas com mão de obra indígena, devido ao fato deles se
negarem a finalizar o trabalho.
Vale ressaltar no corpo da Carta o seguinte:

Os índios se sentiam, frequentemente, lesados pelo poder público e


não hesitavam em manifestar o seu sentimento, como o fizeram os de
Vila Verde, no extremo sul baiano, ao representarem mediante
procurador, ao presidente da província, contra o não pagamento dos
seus serviços na abertura da Estrada de Minas Novas Para Santa
Cruz, “mandados por ordem superior”. Eles se queixavam de haver
deixado as famílias quase ao desamparo por mais de seis meses,
“alimentados só na esperança desse pequeno socorro para com ele
saciarem sua fome e cobrirem a nudez de suas carnes, para afinal
acharem-se enganados.” (BAHIA, 1830 in CARVALHO, 2012, p. 14)

No decorrer do século XIX, foi se consolidando a política de deportação e


concentração de grupos indígenas, iniciada na colônia. A Lei de Terras (Lei 601 de
95

18/09/1850) colaborou decisivamente para a política de confisco de terras indígenas,


ao ordenar a incorporação, com a justificativa de que os índios “vivem dispersos e
confundidos na massa da população civilizada” (CUNHA, 1992, p. 18 in
CARVALHO, 2012, p. 15).
Na sutileza das entrelinhas, os povos indígenas foram sendo incorporados às
novas Vilas, às novas famílias e àquelas situações que alguns chamavam de
civilização. E, nesse afã, houve recíproco favorecimento de estranhos dentro das
terras das aldeias, para, a seguir, negar a existência de população indígena e,
intencionalmente, na sequência, despojá-los.
O Diretor Geral dos Índios em 1873, o Visconde de Sergimirim, fez uma
relação das aldeias indígenas na Comarca da Bahia e afirma que muitas já não são
habitadas por “caboclos”, conservando apenas o nome local, devido ao estado de
penúria e abatimento dos últimos residentes. (BAHIA, 1875 in CARVALHO, 2012, p.
15).
É necessária cautela ao sentenciar o sentido da palavra caboclo, concluindo,
apressadamente, que tem um caráter regressivo ou involutivo, pois pode ter ocorrido
algo semelhante ao termo “tapuia”, que englobava todos os indígenas não falantes
do tupi, porém há quem pensasse ser uma etnia. Pode haver um sentido pejorativo,
mas os Pataxó meridionais contemporâneos, por exemplo, utilizam habitualmente
essa categoria para se referir aos troncos velhos, entre os quais se distinguem os
bravos, vindos de Minas Gerais e que os visitavam esporadicamente.
Na década de setenta, Josefa Ferreira e Manuel Santana, integrantes do
tronco Pataxó do sul da Bahia, em entrevista a Carvalho (2012) declararam que
essa “linguagem de índio é recente, pois eles sempre souberam que eram tapuias,
em seguida caboclos e, só mais recentemente, Pataxó: e aí ficou Pataxó toda vida”.
96

3.0 MEMÓRIA E IDENTIDADE NA FORMAÇÃO DA CULTURA PATAXÓ

Pela retrospecção o homem aprende a


suportar a duração: juntando os pedaços do
que foi, numa nova imagem, que poderá
talvez, ajudá-lo a encarar sua vida presente.
JOËL CANDAU (2014, p.15)

Ao raiar do século XX, o pensamento filosófico fixa-se na objetividade,


relegando as relações entre mente e corpo para segundo plano. Destaca-se nessa
tendência cientificista o filósofo francês Henri Bergson e o médico austríaco
Sigmund Freud, que dedicaram seus estudos desse período a discutir a memória
como ciência. Bergson, lançou em 1896, um estudo pioneiro, em sua obra “Matéria e
Memória”, e defende “que a memória não pode ser explicada apenas pelo cérebro,
mas também pelo espírito, sendo a própria memória o fruto dessa relação corporal e
espiritual”(1896 in DA COSTA TORINO, 2013, p.2)
Por seu turno, o sociólogo francês Maurice Halbwachs introduz a noção de
memória nas ciências sociais, proporcionando uma base teórica rica aos
pesquisadores desse tema que estavam interessados em determinar como a
memória se articula com o processo de desenvolvimento da identidade cultural.
Nenhuma das atividades cotidianas da atualidade poderiam ser concebidas
sem uma intrínseca ligação com a memória, e a influência social que os estudos
estabelecem no campo da história, da cultura, da arte, da literatura, ou da
neurociência. Essa grande amplitude de influências e um complexo mecanismo do
armazenamento de fatos, lembranças e circunstâncias, todavia, “permanecem até
hoje como um mistério, segundo o médico e cientista argentino, Ivan Izquierdo (2002
in DA COSTA TORINO, 2013, p.2).
Sem dúvida, o estudo sobre a memória social exerce grande influência em
várias áreas de conhecimento, mas no presente estudo destaca-se o papel que ela
pode exercer na formação e constituição identidade cultural. Segundo Ulpiano
Bezerra de Meneses (1984, p. 33 in DA COSTA TORINO, 2013, p.2), a memória,
como suporte fundamental da identidade, “é mecanismo de retenção de informação,
conhecimento, experiência individual ou social, constituindo-se em um eixo de
97

atribuições que articula, categoriza os aspectos multiformes de realidade, dando-


lhes lógica e inteligibilidade”.
Na prática, o ser humano se conhece e se reconhece por meio de sua
capacidade de reter na memória os registros de fatos passados, de objetos e coisas
que considera importantes, enfim, de percepções que delineia sua identidade social.
A preservação dessas lembranças, tornando-as sempre presentes e disponíveis,
eleva seu nível de uma simples categoria de recordação para ser considerada um
“bem” capaz de ativar a sua memória particular e ancestral e, naturalmente, nutrir a
sua identidade étnica, cultural e social.
Segundo Izquierdo (2002):

O aprendizado e a memória são propriedades básicas do sistema


nervoso. O autor afirma que não existe atividade nervosa que não
inclua ou não seja afetada de alguma forma pelo aprendizado e pela
memória: “aprendemos a caminhar, pensar, amar, imaginar, criar,
fazer atos-motores ou ideativos simples e complexos, etc.; e nossa
vida depende de que nos lembremos de tudo isso” (IZQUIERDO,
2002, p. 90 in DA COSTA TORINO, 2013, p.3).

Dessa forma, a memória do ser humano guarda informações organizadas na


linha de importância de suas sensibilidades, criando uma relação com o tempo que
passa a ser vital ao ser humano. Memória e identidade, juntas, conferem sentido,
organização e unificação de dados, que embasarão o amálgama do indivíduo com
seu grupo, fortalecendo os referenciais simbólicos familiares, que são essenciais ao
seu próprio entendimento e estabelece um sentimento de pertença a um lugar, um
tempo e um povo.
Henri Bergson (1999) propõe em “Matéria e Memória“ uma reflexão de leitura
do mundo a partir das imagens e a percepção desse mundo, pelo corpo. Nesse
sentido, apesar de ser Bergson ser filósofo, sua proposição soma com as trajetórias
de pesquisa social e histórica, pois pauta conceitos onde o tempo não é uma mera
sucessão de instantes, pois são seus significados que irão definir o que guardar ou o
que abandonar ao esquecimento. Ele também trata a memória como um fenômeno
que “prolonga o passado no presente", pois segundo ele, “é do presente que parte o
apelo ao qual a lembrança responde, e é dos elementos sensório-motores da ação
presente que a lembrança retira o calor que lhe confere vida" (Bergson, 1999, p. 179
in DA COSTA TORINO, 2013, p.3).
98

É interessante perceber a forma como o tempo presente intercala a realidade


com lembranças do passado, usando a memória como se fosse uma ferramenta de
preenchimento e significância, que evoca o passado, ao mesmo tempo em que o
conserva vivo no momento atual.
Bergson classifica dois tipos de memória, a primeira seria a memória-hábito,
adquirida pela repetição e ação de comportamentos habituais (por vezes
automáticos) e a segunda, imagem-lembrança, constituída por rememorações
isoladas, vocativas, que ocorrem independentes de qualquer hábito. Essa última, por
ser inconsciente e individualizada, é considerada por ele como a verdadeira
memória, pois o passado estaria aí, vivo para “souvenir”, vir à tona, constituindo-se
em autênticas ressurreições do passado (BOSI, 1987, p. 48).
Outrossim, o sociólogo francês Maurice Halbwachs (2004) discorda do
conceito de memória pura de Bergson(1999), invocando o trabalho da consciência,
no qual a reflexão precede à evocação da lembrança. “Para ele, tudo o que
lembramos e julgamos ser subjetivo não o é, por que, na realidade, é determinado
socialmente”. Sobre isso, Halbwachs argumenta o ser humano não seria capaz de
se lembrar sozinho de muitos fatos relevantes em sua vida, o que também pode ser
entendido como sendo a memória humana resultante de costumes sociais que
permitem a conservação dos fatos e lembranças.
Outro ponto relevante na teoria de Halbwachs é o “caráter construtivo da
memória social” (2004 in DA COSTA TORINO, 2013, p.5), na qual a memória do ser
humano não é uma mera reprodução das experiências passadas, mas uma
“construção que se faz por meio da ancoragem de novas experiências em
conhecimentos preexistentes”, em função da realidade presente e com o apoio de
recursos proporcionados pela sociedade e pela cultura.( HALBWACHS, 2004 in DA
COSTA TORINO, 2013, p.5)
Segundo Halbwachs, os indivíduos não recordam sozinhos, (2004 in DA
COSTA TORINO, 2013, p.5) as lembranças são frutos destes esquemas ou quadros
adquiridos na convivência social (família, grupo profissional, classe social). O autor
insiste que por mais que elas pareçam resultado de sentimentos, pensamentos e
experiências exclusivamente pessoais —, elas só podem existir a partir dos quadros
sociais da memória, tendo como referencial as estruturas simbólicas e culturais do
grupo. Assim, como uma construção social, essa memória é seletiva, pois o
indivíduo pode recordar somente aquilo que considera importante para seu grupo,
99

reivindicando a sua formação identitária a partir dessas experiências coletivas. A


memória coletiva seria, assim, uma memória partilhada por um grupo, um povo, uma
nação, constituindo e modelando a identidade, a particularidade, a inscrição na
história do grupo relacionado. (2004 in DA COSTA TORINO, 2013, p.5)
Joel Candau(2014) complementa a discussão afirmando que a memória é
uma faculdade básica da mente, que sustenta e alimenta a identidade. De certo
modo, aprimora a teoria de Halbwachs, diminuindo o risco de confusão entre
memória individual e memória coletiva.
Candau (2014, p. 44) também diferencia as memórias fortes e as fracas.
Conceituando a memória forte como “massiva, coerente, compacta e profunda”.
Para ele, é aquela que estrutura a identidade, sendo muito facilitada se o grupo
possuir um líder carismático, assim como é regida por uma proporção na qual,
quanto mais forte ela for, maior será o número de membros da sua comunidade.
Enquanto uma memória forte facilita a organização de sentidos, a fraqueza da
memória fará exatamente o contrário, podendo transformar gradativamente um
grupo até a diluição de seus quadros sociais de memória. O autor acrescenta que

[...] a memória, ao mesmo tempo em que nos modela, é, por nós,


modelada. Isso resume perfeitamente a dialética da memória e da
identidade que se conjugam, se nutrem mutuamente, se apoiam uma
na outra para produzir uma trajetória de vida, uma história, uma
narrativa. (CANDAU, 2014, p.16)

Inegavelmente existem laços fortes que ligam a memória e a identidade, visto


que a identidade pode ser considerada a memória agindo. Deve-se entender que a
memória não trará ao seu dono, apenas boas lembranças e, numa certa medida,
pode trazer ameaças, perturbações ou sentimentos que arruínem a identidade,
como, por exemplo, nas situações de guerra, de traumas, tragédias ou qualquer tipo
de abuso ou humilhação. Nessas circunstâncias, não evocar as recordações ou
esquecer os acontecimentos pode ser um grande alívio para as vítimas.
Nota-se então, que o trabalho de limpeza da memória é difícil e delicado, por
conseguinte, percebe-se que o esquecimento é fator tão importante quanto o de
rememoração.
No domínio da identidade étnica, o jogo da memória se faz de memórias e
esquecimentos, dessa maneira, a sociedade assimila os indivíduos na medida em
que “o esquecimento de suas origens não tenha se completado” (idem, p.18).
100

Para exemplificar os danos da perda de memória, pode-se pensar numa


situação em que a pessoa esquece seu nome, ou que seu uso lhe seja negado.
Genericamente toda nominação de um indivíduo ou um conjunto deles, é uma forma
de controle social da alteridade ontológica do sujeito ou de seu grupo. Situações
assim, ocorreram com os judeus depois da guerra, que trocavam seus nomes para
não serem identificados e dessa maneira escapar da perseguição. De modo
semelhante, ocorreu isso com as sociedades indígenas a partir do momento em que
o Marques de Pombal exigiu que a única língua falada no Brasil fosse o português.
Agindo assim, todos os nomes de pessoas que tivessem indicativos de outras
línguas também deveriam ser adaptados. No caso de línguas indígenas com raízes
semânticas muito diversas das línguas latinas, como o português, os nomes foram
simplesmente substituídos.
Pode-se lembrar de muitos exemplos na história, mas o importante é que o
dever de memória passa primeiro pela restituição de nomes próprios e, apagar o
nome de uma pessoa de sua memória é negar sua existência. Ao contrário, resgatar
o nome de uma vítima significa fazer-lhe justiça e arrancá-la do esquecimento,
dessa forma fazendo-a renascer, dando-lhe um rosto, uma imagem simbólica, uma
identidade.
Ainda sobre o esquecimento, Candau (2011, p. 129) cita Halbwachs,
lembrando que o esquecimento também é seletivo: somos dotados da faculdade da
memória e do esquecimento e, como aptidão inata, natural ou adquirida, possuímos
a capacidade de usá-la da forma mais conveniente.
Está claro que a teoria de Halbwachs, permanece atual, principalmente com
relação ao argumento que os grupos sociais produzem uma memória do seu próprio
passado coletivo e que essa memória consiste em manter um sentimento de
identidade que permite identificar os grupos, distinguindo-os dos demais. Isso
significa pertencer a um grupo; integrar-se a ele e, ao mesmo tempo, analisar os
desvios e contrastes, pois como se sabe a identidade cultural é marcada pela
diferença, isto é, só se pode entender uma identidade cultural ao contrastá-la com
outra. É preciso que a diversidade exista e se estabeleça, pois ela é essencial para a
manutenção das culturas.
Depois de quase um século, o filósofo francês Paul Ricoeur, ao partir de uma
análise da memória como fenômeno em sua obra Memória, História e esquecimento
(2007), já no início de seu texto adverte para a necessidade da proposição de uma
101

memória equilibrada, capaz de se contrapor aos “excessos de memória”, ao


“exagero de comemorações” e ao “excesso de esquecimento” que, segundo ele,
fazem parte, atualmente, de um espetáculo inquietante.
Ao problematizar o esforço de recordação e o esquecimento, Ricoeur (2007)
explica que a tentativa de “tudo lembrar” e “nada esquecer” busca o passado para
torná-lo presente. O esforço de memória pode ser doloroso e sacrificante diante do
temor de ter esquecido, de esquecer novamente, de esquecer no futuro de cumprir
este ou aquele compromisso; porque amanhã será preciso não esquecer... de se
lembrar. Aquilo que [...] se chama de dever de memória consiste essencialmente em
dever de não esquecer. (RICOUER, 2007, p.48 in CANDAU, 2014, p.127)
O historiador francês Pierre Nora (1984 in CANDAU, 2011, p. 133) criou a
expressão “lugares de memória”, de largo uso contemporâneo, que segundo o autor

[...] essa expressão tem sido utilizada para referenciar suportes de


memória, locais aos quais vinculamos referências que nos são
importantes; lugares capazes de guardar lembranças e permitir o
acesso a elas sempre que se fizer necessário ou conveniente; são
lugares ou espaços em que a memória pode ser revivida ou recriada
para a construção de uma memória coletiva capaz de identificar
importantes grupos sociais que, por sua vez, podem contribuir
também para uma identidade maior: a da nação. (CANDAU, 2011, p.
132)

Desde o início dos tempos, ouvimos falar da preocupação dos homens com a
guarda de objetos que possuíam alguma importância para eles, seja pela sua
funcionalidade ou mesmo pelo simbolismo que podiam representar. Essa vontade de
guardar estaria relacionada com o desejo de reter, de não perder lembranças que de
alguma maneira pudessem dar algum significado a sua existência. Pensando desta
forma, pode se considerar que esses objetos já eram depositários da história desses
homens; de seus hábitos e informações culturais, e já serviam de suporte para suas
memórias. Da mesma maneira, pode se avaliar que esses objetos guardados e,
portanto, considerados “bens”, já possuíam uma acepção aproximada do que hoje
chamamos de patrimônio.
Nesse sentido, desde a antiguidade até a contemporaneidade, podemos
observar a prática de diferentes processos de representação do passado, que
ocorrem em tentativas de reafirmar, no presente, laços que consideramos caros, ou
seja, com o propósito de resgatar vínculos identitários. Uma destas práticas se
traduz na reivindicação patrimonial, atualmente também em crescente “proliferação”,
102

pela valorização de bens culturais a partir de valores de percepção que lhe são
atribuídos.
O esquecimento, assim como a memória e a identidade, também passou a
ser um assunto recorrente na contemporaneidade. Ao mesmo tempo em que se
questionam os “excessos de memória”, a busca de vestígios do passado e a
necessidade crescente de patrimonialização de bens culturais, se reconhece,
também, o perigo de esquecer; o risco do desaparecimento gradual da nossa
história, das nossas memórias, dos referenciais em nossas vidas. Talvez por esse
medo do esquecimento, que, cada vez mais, a sociedade se solidariza com as
instituições encarregadas de guardar e preservar nosso acervo cultural, o que se
reflete no crescente número de estabelecimentos com esses fins. Em meio a esse
esforço de inventariar e patrimonializar os bens culturais considerados como
detentores de memória e identidade cultural, surge, também, a necessidade de
preservar esses suportes de possíveis alterações prejudiciais.
A discussão sobre os terreiros de candomblé e seus lugares sagrados aqui no
Brasil, reacendeu, de forma contundente, o pensamento dos historiadores,
arqueólogos, antropólogos e sociólogos, profissionais diretamente ligados às
questões de preservação do patrimônio cultural nacional.
Autores como Pierre Nora, que escreveu sobre os “lugares de memória”, e
provocou forte reação na França, fazendo com que as pessoas tomassem um
posicionamento diante do patrimônio nacional francês.
A Unesco, em 2002, valendo-se de sua posição como órgão internacional,
emitiu documentos numa tentativa de conscientizar governos e pessoas a preservar
e guardar as tradições culturais.
O site da UNESCO brinda o público com um conceito inicial sobre patrimônio

cultural, que vem descrito a seguir:

O Patrimônio Cultural Imaterial ou Intangível, compreende as


expressões de vida e tradições que comunidades, grupos e
indivíduos em todas as partes do mundo recebem de seus ancestrais
e passam seus conhecimentos a seus descendentes.(2003)

Logicamente qualquer grupamento poderia estar incluído no conceito acima,


até a comunidade de pescadores de Itapuã aqui vizinha. Mas esse grupo não está
preocupado com sua identidade, sua função social, sua missão, seu legado.
Enquanto que os índios remanescentes dos Pataxó têm todos esses desejos, de
103

não sumirem, não se diluírem nas culturas estrangeiras, não morrerem e não ficarem
esquecidos.

A vulnerabilidade do patrimônio cultural de um povo está diretamente ligada


às constantes mutações e à multiplicidade dos componentes de sua comunidade,
devido a isso, por mais que eles se esforcem para manter sua identidade, a
continuidade fica comprometida caso ocorra qualquer perda nos processos de
produção e transmissão da cultura.

O texto de domínio público ainda esclarece:

É amplamente reconhecida a importância de promover e proteger a


memória e as manifestações culturais representadas, em todo o
mundo, por monumentos, sítios históricos e paisagens culturais. Mas
não só de aspectos físicos se constitui a cultura de um povo. Há
muito mais, contido nas tradições, no folclore, nos saberes, nas
línguas, nas festas e em diversos outros aspectos e manifestações,
transmitidos oral ou gestualmente, recriados coletivamente e
modificados ao longo do tempo. A essa porção imaterial da herança
cultural dos povos, dá-se o nome de patrimônio cultural imaterial.

Concisa e esclarecedora, a definição acima, não apenas delineia as


manifestações culturais, como destaca o papel da memória de um grupo.
“Especialmente as minorias étnicas e os povos indígenas, o patrimônio imaterial é
uma fonte de identidade e carrega a sua própria história”. Assim também suas
crenças e religiões, suas línguas e falares, suas festas e tradições compõem as
diversas formas de manifestações culturais.

Os órgãos internacionais procuram cultivar as diferenças entre grupos étnicos


temendo a massificação que poderá resultar das crescentes interações globais.
Nesse sentido, buscam a revitalização de culturas populares numa tentativa de
preservar as várias culturas existentes, mantendo a possibilidade de pluralidade da
cultura mundial.

3.1 Historiando o conceito de Cultura

Por conta das dimensões continentais de nosso País, a Cultura


brasileira só pode ser compreendida através da expressão, “unidade
na variedade”. É preciso que cada brasileiro, portanto, se preocupe
em conhecer de modo mais profundo o seu chão, a sua aldeia, as
suas tradições, os aspectos locais de sua cultura, para, num
momento de expansão, do local para o nacional (e daí para o
104

universal), empreender o vôo de compreensão do universo maior da


cultura brasileira, para que cada um, na medida de suas forças,
possa valorizá-la e defende-la dos que a querem descaracterizar e
corromper. (ARIANO SUASSUNA, in CADERNO DE CULTURA DE
PERNAMBUCO, 2008, p.3)

A palavra cultura, originariamente, relaciona-se ao ato de cuidar, tratar,


reverenciar. Pode ser compreendida por seu uso mais antigo, que está ligado à
agricultura, e nesse caso, refere-se ao cultivo da terra; pode ter sentido na biologia,
quando se trata do cultivo de células ou tecidos vivos; o culto, na religião, faz
menção a cultuar uma divindade.
Cultura é uma palavra que pode apresentar vários significados: uma atividade
artística ou o resultado de uma criatividade intelectual, assim como as obras e os
trabalhos produzidos por essas atividades. A depender do contexto também se
chamará de cultura um estilo artístico como “cultura pop”, por exemplo.
No campo da Sociologia, tomará para si o sentido educativo, de
desenvolvimento das faculdades sociais, morais e intelectuais. Podendo, em certas
circunstâncias, o termo cultura, ser aplicado para uma expressão social peculiar,
como “cultura do estupro”, o que designa um comportamento social.
Cultura, em seu melhor desempenho, pode ser sinônimo de grande
refinamento ou um gosto muito exigente e apurado, status que exigiria longo treino
intelectual e convivência estreita com outros pares de mesmo gosto ou estilo.

O sentido de cultura que se aplica aqui é o da cultura como herança


social, que se adquire e se transmite de geração para geração.
Aquela que é característica de um povo, de uma região, de uma
sociedade. Cultura é também a totalidade de formas de explicar a
origem da vida e de construir o abrigo, o templo ou a cidade. Envolve
padrões de comportamento de uma comunidade, as artes, as crenças
e valores que aprendemos com nossos pais, familiares e com quem
convivemos e trabalhamos. (CADERNO DE CULTURA DE
PERNAMBUCO, 2008, p.6)

Segundo Ribeiro e Moreira Neto (1992, p. 56) tudo que criamos, todos os
produtos de trabalho e do pensamento das pessoas, característicos de uma
comunidade e de uma população, é cultura. São vivências seculares, atitudes,
gestos, gostos que têm sua origem nas atividades que os povos vêm exercendo no
mundo para garantirem sua sobrevivência e que vão se mantendo pela tradição, ao
tempo em que ainda são repassadas às gerações que se sucedem.
105

Os antropólogos a definem como um conjunto sistemático de


representações, símbolos, ideias e valores, de crenças, de saberes e
de expressões de criatividade. Para eles, cultura é também um
conjunto de normas, de regras, de padrões de conduta, de modos de
adaptação à natureza, e de instituições que ditam as normas e regras
sobre como as pessoas devem se relacionar, se organizar para
conviver, produzir e garantir sua sobrevivência. (CADERNO DE
CULTURA DE PERNAMBUCO, 2008, p.6 e 7)

A cultura se faz de coisas dinâmicas, conectadas a um sistema de relações


entre as pessoas e os grupos sociais. Ela é, portanto, o traço que caracteriza uma
sociedade, um povo, uma região, garantindo, acima de tudo, a sua identidade e a
sua individualidade, em face de um processo mais amplo que se vive no mundo
inteiro.
No capítulo intitulado “gênese social da palavra e da ideia de cultura” de
Denis Cuche (1999, p.15) proporciona uma análise bem ampla da raiz da palavra,
assim como encadeia as mudanças de significados em vários momentos e lugares.
Afim de melhor entender a gênese do conceito de cultura, sua evolução e sua
relação com a história das ideias é importante considerar sua herança semântica,
sem se restringir ao campo linguístico (idem, p.15). O autor privilegiou os conceitos
de cultura mais utilizados nas Ciências Humanas e Sociais: Antropologia, Sociologia,
Psicologia social, Linguística e História.
Sobre as concepções de cultura, sua episteme e história do uso do termo, o
autor colabora com a elaboração de “links” importantes nos estudos sobre a história
da humanidade. Pode-se citar, como exemplo, a transformação do conceito de
“kultur” na Alemanha que incluía a ideia de nação e a caracterizava, enquanto na
França servia para designar os conhecimentos de uma classe ligada à
intelectualidade.
A gênese da expressão Cultura parte da premissa que “[...] a palavra cultura
não tinha equivalente na maior parte das línguas orais [...]” (CUCHE, 1999, p. 18).
Tal situação, porém, não implica que essa sociedade não a tivesse, só não existia
razão para se autodefinir. Independente disso, para melhor entender a gênese do
conceito dessa expressão, sua evolução e sua relação com a história das ideias,
deve-se levar em conta sua herança semântica, sem se restringir ao campo
linguístico.
O termo nasceu na língua francesa, no século XVI, com o sentido de cultivar a
terra. Apenas em 1700, ele ganha um sentido figurado que designa o
106

desenvolvimento de uma faculdade. No século XVIII, ganha o sentido metafórico de


“cultura do espírito”.
Cultura aparece no Dicionário da Academia em 1798, como algo intrínseco ao
ser humano, sendo para os Iluministas “a soma dos saberes acumulados e
transmitidos para a humanidade, considerada como totalidade ao longo de sua
história” (CUCHE, 1999, p. 22). Por outro lado, estigmatiza o conceito com a
expressão “um espírito natural e sem cultura”, estabelecendo uma oposição entre
natureza e cultura.
A palavra carregava associação com evolução, educação e razão, bem ao
gosto dos filósofos da época. Cultura, no singular, se associava ao indivíduo; em
paralelo, o conceito de civilização, também no singular, se associava ao coletivo e
aos anseios dos povos civilizados para que todos os seres humanos evoluíssem e
se tornassem livres da ignorância. Isto incluía o Estado que deveria mergulhar num
processo civilizatório e se “libertar de tudo que fosse irracional em seu
funcionamento” (CUCHE, 1999, p. 22).
O termo vai se expandindo em sentido e utilização. Com isso, em certo ponto,
estabelece sutilmente a distância social entre os intelectuais da segunda metade do
século XVIII com seus valores espirituais, baseados na arte, na ciência e na filosofia.
Era como se a civilização se representasse por príncipes com sua aparência luxuosa
e sua frugalidade, enquanto a cultura se representasse por profundidade e
inteligência.
A influência do Iluminismo foi muito forte e marcou uma tomada de
consciência do povo alemão que se deslocava da posição social (príncipes x
intelectuais) para uma oposição nacional, na qual os “cultos” tomavam para si a
missão de desenvolver e irradiar a cultura alemã para os que não a tinham (o povo e
a aristocracia).
Eagleton (2005) defende que cultura tornou-se um conceito amplo e
complexo, lembrando a questão da transição temporal do termo, mostrando que,
com o passar do tempo, viajou entre línguas e continentes, e incorporou vários
significados, ampliando o sentido original e histórico com todas as suas nuances.

A palavra "cultura" guarda em si os resquícios de uma transição


histórica de grande importância, ela também codifica várias questões
filosóficas fundamentais. Neste único termo, entram indistintamente
em foco questões de liberdade e determinismo, o fazer e o sofrer,
mudança e identidade, o dado e o criado. Se cultura significa cultivo,
107

um cuidar, que é ativo daquilo que cresce naturalmente, o termo


sugere uma dialética entre o artificial e o natural, entre o que fazemos
ao mundo e o que o mundo nos faz. É uma noção "realista", no
sentido epistemológico, já que implica a existência de uma natureza
ou matéria-prima além de nós; mas tem também uma dimensão
"construtivista", já que essa matéria-prima precisa ser elaborada
numa forma humanamente significativa. Assim, trata-se menos de
uma questão de desconstruir a oposição entre cultura e natureza do
que de reconhecer que o termo "cultura" já é uma tal desconstrução.
(p.11).

Em 1774, Dumont (1986 In CUCHE, 1999, p. 22) chamou a atenção para a


possibilidade de haver culturas, no sentido plural e coletivo que sugere o termo.
A cultura aparecia como um conjunto de conquistas artísticas, intelectuais e
morais que constituíam o patrimônio de uma nação, considerado como adquirido
definitivamente e fundador de uma unidade nacional e cultural.
Na França, o termo tomou um sentido coletivo, não somente ao
desenvolvimento intelectual do indivíduo, mas marcado pelo pensamento
universalista e pelo sentido de unidade do gênero humano.
Em seu livro “Cultura Primitiva”, publicado em 1871, Edward Tylor
antropólogo britânico, funda a etnologia enquanto ciência autônoma, na qual
examina as origens e a evolução. Ele abordou sistematicamente os fatos culturais,
assim como estudou todos os tipos de sociedades, sob os aspectos materiais,
simbólicos e até corporais. Para o autor, “a cultura é a expressão da totalidade da
vida social do homem” (in CUCHE, 1999, p. 35). Ela se caracteriza por sua
dimensão coletiva e é adquirida, portanto sua origem e seu caráter são
inconscientes.
O antropólogo defende:

Cultura e civilização, tomadas em seu sentido etnológico mais vasto,


são um conjunto complexo que inclui o conhecimento, as crenças, a
arte, a moral, o direito, os costumes e as outras capacidades ou
hábitos adquiridos pelo homem enquanto membro da sociedade
(TYLOR,1871, p. 1 apud CUCHE, 1999, p. 35).

Ele usou o método comparativo para estudar culturas singulares e tentou


estabelecer, por meio delas, uma trajetória evolutiva entre os estágios mais
primitivos e os mais avançados.
Franz Boas é o primeiro observador in situ das culturas ditas primitivas,
tornando-se assim o inventor da etnografia. Boas era geógrafo por formação e,
108

numa viagem de estudo sobre os efeitos do clima sobre os esquimós, percebeu que
a “organização social era determinada mais pela cultura do que pelo ambiente
físico.” (1940, p.2 apud CUCHE, 1999, p. 35)
Em 1886, vai para a América do Norte estudar os índios da costa noroeste e
passa longas temporadas com os Kwakiutl, os Chinook e os Tsimshian até 1889,
mas já havia decidido se naturalizar, desde 1887. Ele acreditava que a diferença
primordial entre os grupos humanos era cultural e não racial.
O etnógrafo provou que o conjunto de caracteres de uma pretensa “raça” é
plástica, instável e propensa à mestiçagem. Usando um grupo de 17.821 imigrantes
provou, pelo método estatístico, que, em apenas uma geração, havia mutações no
crânio, portanto os traços morfológicos se modificam, sob a pressão de um novo
ambiente.
Boas (1840) se opôs à ideia de raça humana e adotou um conceito de cultura
que não concebe diferenças biológicas entre primitivos e civilizados, somente
diferenças de cultura, adquiridas e que contemplassem a diversidade humana.
A diferença entre Boas (1840) e Tylor (1871) é que o primeiro tinha como
objetivo estudar “as culturas”, sem acreditar em leis gerais ou universais. Assim
também como não acreditava em periodização dos diferentes estágios da evolução
da cultura, mesmo porque não era possível definir uma origem.
Sua contribuição à história da antropologia se deve ao método indutivo e de
observação exaustiva de campo. Segundo seu pensamento “um etnólogo, se ele
quer conhecer e compreender uma cultura, deve aprender a língua em uso.”
(CUCHE,1999, p. 43). Também se mostrava contra as entrevistas formais, por
acreditar que elas modificavam as respostas. Preferia as conversas espontâneas e a
longa permanência junto à cultura estudada. Para escapar a qualquer tendência
etnocentrista, defendia que, para estudar uma cultura em particular, não se deve
compará-la com nenhuma outra. “Tinha consciência da complexidade de cada
sistema cultural e julgava que somente o exame metódico de um sistema cultural em
si mesmo poderia chegar ao fundo de sua complexidade.” (CUCHE, 1999, p. 44).
Para Boas (1840) cada cultura é única, com originalidade própria e o
pesquisador dever esforçar-se para descobrir o elo que faz essa unidade. Trata-se
de compreender como se formou a síntese original que representa cada cultura e
que faz a sua coerência.
109

No fim da vida, o autor acima citado, somou às suas premissas um conceito


ético, diante da dignidade de cada cultura, o necessário respeito e tolerância em
relação às culturas diferentes, assim como propunha que as culturas que estivessem
sob ameaça fossem protegidas. (CUCHE, 1999, p. 46).
Em seu livro Folkways, o sociólogo americano Willian G. Summer, em (1906
s/p. in CUCHE, 1999, p. 46) cria o termo Etnocentrismo apresentando uma visão de
que um grupo é referência para todas as coisas e os outros grupos avaliados em
relação àquele. Cada grupo se considera superior e alimenta suas vaidades,
exaltando suas próprias “divindades” e desprezando qualquer outra referência
estranha a isso.
Lévi-Strauss afirma que os homens sempre têm dificuldade de encarar a
diversidade das culturas como um fenômeno “natural, resultante das relações diretas
ou indiretas entre as sociedades” (1952, s/p. in CUCHE, 1999, p. 47). E
complementa dizendo que a maioria dos grupos humanos se considera a única
verdadeira e que a humanidade finda em suas próprias “fronteiras étnicas ou
linguísticas”. (p. 47).
Para fugir ao evolucionismo do século XIX, que permitia a classificação de
culturas particulares em uma mesma escala de civilização ou do etnocentrismo do
século XX, que pode tomar formas extremas de intolerância cultural, religiosa e
política, a Antropologia Cultural introduz a ideia de relatividade das culturas e sua
impossível hierarquização. Nessas circunstâncias, a recomendação seria o uso do
método de observação participante, pois aproxima o pesquisador da espontaneidade
dos acontecimentos cotidianos estudados.
Durante o século XIX e início do século XX, os pesquisadores das Ciências
Sociais usavam o termo civilização, já consagrado pelos historiadores, no lugar da
palavra cultura. Sempre que havia um sentido coletivo e descritivo, os franceses
usavam a palavra civilização e, quando tivesse um sentido espiritual e pessoal, eles
utilizavam a palavra cultura, relacionada à pessoa culta.
Durkheim (1897) desenvolveu uma concepção de fenômenos como um
holismo metodológico, uma teoria cultural ou uma teoria da “consciência coletiva”.
Essa consciência que existe em todas as sociedades é feita das representações
coletivas, dos ideais, dos valores e dos sentimentos comuns a todos os indivíduos.
Ela precede o indivíduo e impõe-se a ele. A consciência coletiva é superior, por ser
110

mais complexa e indeterminada. É ela que realiza a unidade e a coesão de uma


sociedade.
Lucien Lévy-Bruhl pode ser considerado um dos fundadores da etnologia
francesa, por consagrar seus estudos às culturas primitivas. Em 1910, ele publicou o
livro As funções mentais nas Sociedades Inferiores, no qual focaliza as diferenças
culturais. Para o estudioso, os indivíduos de cultura oral não eram infantis, com
concepções ingênuas da vida, mas indivíduos com atividades mentais “normais nas
condições que eram exercidas, complexas e desenvolvidas de maneira própria”.
(LÉVY-BRUHL,1922, p. 15-16 apud CUCHE,1999, p. 59).
Lévy-Bruhl discordava de Tylor sobre o animismo dos povos primitivos, assim
como discordava de Durkheim por acreditar em sociedades com uma mentalidade
“lógica” que obedeceria às mesmas leis da razão.
Todas essas discordâncias faziam parte de um debate científico animado
sobre a questão da alteridade e da identidade culturais.
Sobre alteridade, para um melhor entendimento das discussões presentes,
considera-se que um dos princípios fundamentais da alteridade é que o homem, na
sua vertente social, tem uma relação de interação e dependência com o outro. Por
esse motivo, o "eu", na sua forma individual, só pode existir em contato com o
"outro". Quando é possível verificar a alteridade, uma cultura não tem como objetivo
a extinção de uma outra. Isto porque a alteridade implica que um indivíduo seja
capaz de se colocar no lugar do outro, em uma relação baseada no diálogo e na
valorização das diferenças existentes. A Antropologia é conhecida como a ciência da
alteridade, porque tem como objetivo o estudo do Homem, na sua plenitude, e dos
fenômenos que o envolvem. Com um objeto de estudo tão vasto e complexo, é
imperativo poder estudar as diferenças entre várias culturas e etnias.
Se a etnologia encontra-se num momento de progresso, não ocorre o mesmo
com o conceito de Cultura, que tem sua melhor acolhida pela Antropologia
americana. A consagração científica foi tanta que o termo adquiriu adesão pela
sociologia e psicologia rapidamente e ganhou o adjetivo de culturalista.
Boas abre caminho para a dimensão histórica dos fenômenos culturais e
atribui-se aos seus seguidores, o conceito de “modelo cultural, que designa o
conjunto estruturado dos mecanismos pelos quais uma cultura se adapta a seu meio
ambiente” (BOAS, 1840, p. 70). Além disso, revelam a complexidade dos fenômenos
de empréstimos culturais, nos quais sofrem transformações e até recriações dos
111

elementos emprestados, pois é necessário que haja adaptação ao modelo cultural


receptor. O conceito de modelo cultural, que implica a ideia de homogeneidade e
que usufrui de um estilo unificado e coerente pode chegar ao extremo de ser
considerado como um modo cultural, no qual todos os indivíduos seguem um
esquema inconsciente que soluciona todas as atividades da vida, não importando se
são atividades práticas ou simbólicas.
No mesmo período, Margaret Mead (1928 s/p. in CUCHE, 1999, p.71) reflete
sobre as formas de transmissão cultural e como isso repercute na socialização da
personalidade do indivíduo. Estudando três grupos diferentes na Nova Guiné,
percebeu que a forma de educar meninos e meninas era muito semelhante entre
eles três, mas absolutamente diferentes da nossa cultura, sendo uma sociedade
educada para ser amável e dócil, enquanto outra estimulava a rivalidade e a
agressão. Desse modo, concluiu que as características de gênero e a personalidade
individual não se explicam por caracteres biológicos, mas por um “modelo cultural”
de uma sociedade e a respectiva educação que dá às suas crianças. É como se o
indivíduo fosse impregnado de um modelo desde os primeiros instantes de vida, por
um sistema de estímulos que o levaria a se conformar inconscientemente com os
princípios fundamentais da cultura. Cria-se, assim, um vínculo estreito entre o
“modelo cultural, o método de educação e o tipo de personalidade” (CUCHE,1999, p.
82) dominante em uma determinada sociedade.
Para os antropólogos que seguiram a linha de cultura e personalidade,

Qualquer indivíduo, pelo simples fato de ser um indivíduo singular,


com traços de caráter singulares (mesmo que a sua psicologia integre
em larga escala a personalidade básica) e com uma aptidão
fundamental para a criação e a inovação, enquanto ser humano, vai
contribuir para modificar sua cultura [...] (CUCHE,1999, p. 85).

Em resumo, cada indivíduo tem seu modo de interiorizar e viver sua cultura,
sendo marcado por ela ou não, modificando-a ou não. Entretanto, em qualquer dos
casos, sempre age de forma muito lenta.
A primeira contribuição da Antropologia Cultural para a ciência pode ser a de
que o termo no singular não designa totalmente a realidade, que deveria ser
designada como culturalismos, já que não se trata de um sistema teórico unificado.
Assim como, um único indivíduo não seria capaz de expressar a totalidade da
112

cultura em que está investido, pois carrega aspectos particulares de sua própria
individualidade.
Outra ideia básica é que a cultura é imaterial, portanto flexível e maleável,
sendo capaz de adaptar-se, de absorver outros traços externos e internalizá-los de
forma coerente e harmonizada.
Deve-se pontuar também a inovação interna que seus indivíduos são capazes
de promover, não se sabe se por uma necessidade ou modismo, mas, certamente,
no afloramento da criatividade de alguém, em certo momento.
A evolução da cultura pode ocorrer pelo jogo das variações individuais na
aquisição da cultura, na qual o indivíduo, em função de sua história pessoal, produz
uma psicologia singular. A soma de todas as reinterpretações individuais faz a
cultura evoluir.
Talvez a principal contribuição da antropologia social americana venha da
clareza que existem outras formas de viver e de pensar e que elas não são
necessariamente antiquadas ou selvagens, visto que têm lógica própria e estão
adaptadas às necessidades de seu grupo. Os culturalistas evidenciaram a
“coerência entre todos os sistemas culturais onde cada um é uma expressão
particular de uma humanidade única, mas tão autêntica quanto todas as suas outras
expressões” (CUCHE, 1999, p. 90).
Elegeu-se como referência e definição de cultura, a ideia que parece mais
ampla e contemporânea. Portanto, conforme Lévi-Strauss:

Toda cultura pode ser considerada como um conjunto de sistemas


simbólicos. No primeiro plano destes sistemas colocam-se a
linguagem, as regras matrimoniais, as relações econômicas, a arte, a
ciência, a religião. Todos esses sistemas buscam exprimir certos
aspectos da realidade física e da realidade social, e mais ainda, as
relações que esses dois tipos de realidade estabelecem entre si e
que os próprios sistemas simbólicos estabelecem uns com os outros.
(1950 p. XIX).

Nessa definição, o autor aborda os aspectos mais gerais e mais relevantes da


cultura, como também aponta uma grande complexidade, que se estabelece entre a
língua e a cultura. Nessa visão, a linguagem pode ser considerada um produto da
cultura, mas, por outro lado, a linguagem é parte da cultura, constituindo-se em um
de seus elementos. Essa condição diacrônica é devido à dependência que a cultura
113

tem da linguagem, pois é por meio desta que se adquire a cultura de um grupo.
Sendo a linguagem um veículo imprescindível à comunicação, difusão e educação
de conhecimentos, será igualmente imprescindível ao estabelecimento dos padrões
culturais de certo grupo humano.

3.2 A tradição cultural dos antepassados

Os antigos faziam isso pela tradição... Os avós conheciam o costume


[...] Assim todas as evocações do passado tomam a forma de coisas
vistas, inscritas na mesma duração, remetidas a um mesmo tempo: o
da comunidade. Um tempo fora da História, fora dos acontecimentos,
que se resume, de fato, na origem da aldeia. (MONDHLER KILANI,
1994, p. 244 in CANDAU, 2014, p. 87)

Cada povo ou comunidade, reconhecida como tal, tem uma memória cultural,
mesmo que todos os seus membros não tenham plena consciência disso. Essa
memória cultural deve ser resguardada e tradicionalmente transmitida de forma oral
ou por intermédio da educação por impregnação22, na qual se faz e se repete as
atividades e os comportamentos observáveis e aprendidos assim. Na prática, o
acervo memorial e histórico da humanidade é constituído pela memória cultural de
seu povo. Para os povos indígenas, o espírito se manifesta pela fala do que é
passado pelo pai, pelo avô, pelo tataravô. É assim que o indígena toma
conhecimento da sua história, ou seja, da história de seu povo.
Segundo Jecupé (1998 apud GOVERNO DE PERNAMBUCO, 2008, p.16):

Há povos que começam a sua história desde quando eram seres do


espírito das águas. Outros trazem a memória animal como início da
história, assim como há aqueles que iniciam a sua história a partir da
árvore que foram. E desse modo entendem-se o seu lugar e o seu
papel em seu ambiente e no mundo. Essa história de um povo firmar
o caráter identitário que é trazido através dos ensinamentos passados
de geração em geração e é fundamental para difundir a tradição de
cada povo indígena.

A convivência próxima com outra cultura permite observar que os


ensinamentos dos antepassados, transmitidos às novas gerações, criam uma base
cultural que estrutura a história grupal, pois são reforçados pela cotidianidade de
seus afazeres, rituais e cerimônias.
22
Educação por impregnação – é a educação que acontece por aprendizagem direta. Aprende-se com o outro
observando o que o outro faz. É o conhecimento elaborado a partir da vivência diária. Aprender a fazer,
fazendo. (ANDRADE, 2011, p.30)
114

Imagem 17: Desenho a lápis retratando a anciã Taquara Pataxó, mãe das lideranças fundadoras da
retomada do território da Jaqueira e residente local. Raywã Pataxó, 2018.

O ponto de partida para inaugurar os fatos e relatos pertencentes à memória


histórica de um grupamento, não pode estar noutro lugar, que não seja seus
antepassados, aqueles parentes antigos que precederam as gerações atuais e que
formam o corpo ancestral de um povo. Os ancestrais habitam o mundo espiritual e
podem se comunicar com seus descendentes de maneira onírica ou pelos sons das
águas, do vento, das árvores, da floresta ou qualquer outro elemento da natureza.
Eles se manifestam de forma a proteger e preservar seu povo, exercendo assim um
papel de verdadeiras divindades anciãs. Como exemplo, na Reserva da Jaqueira,
taquara, atualmente com 98 anos exerce esse papel e nos honra com sua presença.
É natural que essas personalidades sejam respeitadas não apenas por sua
sabedoria, mas por representarem uma parte imprescindível da herança cultural de
115

cada povo. Nos mitos fundacionais, os povos indígenas têm a compreensão de que
seus antepassados nasceram de elementos da mãe natureza como a terra, a água,
um animal ou uma árvore. Alguns também acreditam que ao morrerem tornam-se
estrelas e passam a morar no céu junto a todos os demais parentes já falecidos.
Segundo Jecupé (1998 in ANDRADE, 2011, p.30), como por exemplo:

[...] é da natureza indígena reverenciar os antepassados. Fazem isso


em sinal de gratidão, pois foram eles os modeladores e os moldes do
tecido chamado corpos, feito dos fios perfeitos da terra, água, fogo e
ar, assentando o organismo, os sentimentos e os pensamentos que
comportam um ser, que é parte da Grande Música Divina.

A visão de mundo que deriva dessa crença gerada pelos antepassados é


chamada de cosmovisão, pois considera aspectos mitológicos e cosmológicos de
cada povo e comungam com “os princípios universais que têm norteado a existência
da humanidade”. (ANDRADE, 2011, p.31) Esse conhecimento serve como lastro
para reflexão e análise sobre os problemas, que por ventura, venham acometer a
comunidade no desenvolver de suas vidas e em cada fase. Os mitos podem ter
vários significados e vão sendo apresentados aos mais jovens conforme a vida for
se apresentando com seus mistérios. Ao passo que as pessoas vão amadurecendo,
vão descobrindo novos significados para as mesmas histórias.

Esses princípios cosmogônicos são reavivados por meio de rituais, danças e


cântigos, que variam a depender de cada etnia. Nesse processo se constrói uma
interação entre os seres humanos, as divindades, os mundos animal e vegetal. É
nessa comunicação sutil entre os mundos, que se baseia a existência das pessoas e
da sociedade. “Sem isso a vida perde o sentido e a lógica da criação”. (ANDRADE,
2011, p.31)

Todas as sociedades humanas têm suas hierarquias e conjunto de regras que


regem a humanidade para um viver pacífico que eleve seus membros rumo à
transcendência. As sociedades indígenas compreendem que a vida possui um
ordenamento próprio de forças antagônicas, que ora soltam e ora retêm. Esse
movimento gera o que chama-se tempo, e, é nesse tempo que os seres se
reencontram com o passado, com seus ancestrais, suas origens, seus princípios
universais.
116

3.3 De onde vem o nome Pataxó?

Pataxó muká, mukaú


muká, mukaú
Pataxó mayô werimehe
Mayo werimehe
Hetô, Hetô, Hetô Pataxó
Kotê Kawi Suniatá Heruê
Heruê-Hê-Hê-Heruê, Heruê
(JERRY MATALAWÊ)23

A letra da música acima convida o povo Pataxó a se unir, se reunir e ser a luz
do amor, seguindo suas tradições de dançar suas danças e beber o cauim.
O termo Pataxó, academicamente, designa o coletivo de “um povo indígena
de língua da família Maxacali, do tronco Macro-Jê” (ALBUQUERQUE, 2010, p.24).
Mas, diante da necessidade de se inserir histórias e conceitos embasados na
concepção marcada pela autodeclaração, o presente texto estará permeado pelo
contraponto das próprias declarações orais colhidas pela autora, durante a
convivência e pautado em seus registros de pesquisa.
Rayô Pataxó, Diretora da Escola Indígena Pataxó de Coroa Vermelha, 2006
informa que “Esse nome não se usa no plural, viu pró?”.
Nitinawã Pataxó, frente aos alunos da UEFS, no kijemi 24 grande da Reserva
Indígena da Jaqueira, em 2010, relata que os mais velhos contavam que eles
moravam na mata de Monte Pascoal e, de vez em quando, vinham à beira da praia,
pescavam mariscos, se alimentavam e depois iam dançar. Quando sentavam nas
pedras para descansar, ficavam ouvindo o barulho do mar naquele vai e vém
batendo nas pedras e o som provocado por esse movimento da água do mar...
“Então, preste bem atenção no barulho da água, porque as ondas do mar vêm bater
na pedra e fazem pa-tá e quando voltam fazem xó”.(BAHIA, 2005, p.13)

3.4 Patxôhã – a língua da etnia Pataxó

23
Letra de música do cacique Pataxó Jerry Matalawê intitulando o povo de “luz do amor” e
convidando o povo Pataxó para se reunir.
24
Kijemi – Construção de madeira de contorno arredondado, com cobertura de palha que serve de
abrigo. Pode ser fechado nas laterais quando usado como casa ou aberto quando utilizado para
encontros, rituais e danças. (nota da autora).
117

O livro “Raízes e Vivências do Povo Pataxó nas escolas” (2005) relata a


forma livre de vida dos indígenas, seu nomadismo, sua habilidade com as flechas,
seu povo guerreiro e sua autodefesa. Nessa luta para preservar a lembrança do
passado e continuar existindo como povo, os autores questionam o porquê do
abandono de sua forma de vida:

Por que um povo considerado agressivo foi convencido a deixar pra


lá sua cultura, sua língua e suas tradições? Será que foi vencido
pelas perseguições diversas, calou-se, cansou-se de lutar e
abandonou valores e ideais? (BAHIA, 2005, p. 14)

Há quem afirmasse, inclusive, que a língua-mãe estava morta, que o povo


não a fala mais. Contudo, o Pataxó argumenta ”nossa língua não foi perdida porque
quisemos. A língua Pataxó nos foi tirada, nos foi proibido e negado o direito de
continuar falando nossa língua.” (2005, p. 14).
Após o aldeamento, nem tudo foi perdido, pois algumas palavras sagradas e
cânticos permaneceram na memória dos mais antigos. A partir daí, foi possível fazer
comparações e descobrir que a família linguística era Maxacali, do tronco Macro-jê.
Esse fato ficou confirmado, não apenas pelos sons semelhantes, como também pela
similaridade dos costumes dos dois povos.
Num processo lento de conscientização étnica e resgate cultural, os
educadores e lideranças Pataxó tomaram para si a responsabilidade de reorganizar
a sociedade e, de forma independente, fazer estudos mais aprofundados da língua.
Mesmo sem ter os conhecimentos básicos da linguística, um grupo resolveu
se dedicar ao estudo e sistematização da língua e, em decorrência desse trabalho,
muitas outras descobertas ocorreram. A denominação escolhida foi Patxôhã, cujo
significado segue como descrito: pat é a raiz da palavra pataxó; atxôhã é língua; e
Xôhã é guerreiro, ou seja, linguagem de guerreiro Pataxó.
O incentivo do uso da língua teve início em Barra Velha, por ser considerada
Aldeia-Mãe, desde 1998, os mais velhos contavam histórias e tentavam lembrar
palavras e expressões usadas nos tempos antigos. Depois, ampliou-se para a aldeia
de Coroa Vermelha com incentivo dos habitantes da Reserva da Jaqueira. Em 1999,
foi elaborado um projeto para captar recursos para continuar a pesquisa, com ênfase
na “História, Cultura e Língua Pataxó”. Os dados foram se avolumando e, após
coletar muitos termos e informações com os índios mais velhos das aldeias
118

próximas, somaram-se documentos de pesquisadores e relatos de viajantes, num


montante que precisava ser analisado, e a partir daí, escolhida a melhor forma de
sistematizar tal riqueza de dados.
No capítulo “A História da Língua Pataxó”, sua autora, Nitynawã Pataxó,
relata como se organizaram para buscar o conhecimento junto aos mais velhos.
Muitos deles ainda estavam “vivos e guardavam na sua memória a história, a língua,
as danças, os cânticos e os conhecimentos das ervas medicinais” (2011, p. 46). A
autora relata os motivos atuais dos anciãos não quererem ensinar a língua aos mais
jovens no seguinte trecho:

Como é habitual em nossa cultura, o conhecimento é passado


oralmente, e nós queríamos registrar esse conhecimento pelo fato de
termos perdido muito com a morte dos mais velhos. Eles não tinham
condições de registrar nada, porque não sabiam ler e nem escrever e,
por outro lado, também tinham medo, vergonha e receio de passar
sua sabedoria para os mais jovens, para que não sofressem como
eles sofreram com a discriminação, o preconceito e as humilhações.
(NITYNAWÃ PATAXÓ, 2011, p. 46).

Apesar dos medos e restrições traumáticas, Seu Prejuízo e Seu Benedito se


reuniam, no fim do dia, para contar histórias aos moradores da Reserva da Jaqueira;
e, assim, surgiram as primeiras palavras: Jokana (mulher), jokana baixú (mulher
bonita), kitôk (menino), entre outras.
Nitynawã Pataxó (2011) conta que o grupo dos mais jovens se reunia na casa
de Taquara, fazia um fogo e assava peixe, enquanto os mais velhos contavam
histórias. Os mais novos anotavam as palavras que iam surgindo dessas histórias.
A princípio, houve um levantamento de vocabulário que girava em torno de
200 palavras, algumas bem conhecidas e de uso corriqueiro da população. Com o
avanço dos trabalhos de pesquisa, em 2005 o total de termos colhidos era de 2500
palavras.
O texto relata a grande dificuldade em assegurar a origem da língua, visto que
havia muitos encontros com outros parentes de outras aldeias, assim, ocorreu, ao
longo do tempo, a assimilação de muitos termos que não pertenciam ao mesmo
tronco linguístico. Fato que se explica, pois “de acordo com a história, a aldeia de
Barra Velha foi um lugar de aldeamento forçado, onde, além da maioria pataxó,
acabavam convivendo com outros grupos como maxakali, botocudos, komonaxó [...]
119

(BAHIA, 2005, p.15)” Porém, as dificuldades não abalaram o desejo de revitalização


da língua-mãe e consequentemente da cultura Pataxó. E, assim, se justificam:

Não porque achamos que para alguém ser índio é preciso falar língua
indígena. Acreditamos que a língua é importante, pois ela carrega em
si muitos segredos e valores de um povo. A língua leva o povo a ter
mais resistência às mudanças de costumes. (BAHIA, 2005, p. 16)

Dessa maneira, os primeiros voluntários para a pesquisa da língua foram


Anarí e Conceição, da Aldeia de Barra Velha, juntamente com os professores de lá.
Nayara começou a dar palestras sobre a cultura Pataxó, na Coroa Vermelha e, por
isso, foi escolhida para participar junto com Katão e Matalawê, que tinha avançado
mais nos estudos e poderia coordenar o projeto que contava com a colaboração de
Aruã, Jandaya e a própria Nitynawã.
Para que a língua pudesse retomar sua força e significado, desde 2003, as
escolas das aldeias de Barra Velha e Coroa Vermelha passaram a fazer um trabalho
de reaprendizado da língua. Esse trabalho tende a se ampliar, visto que outras
aldeias estão pedindo apoio para iniciar essa retomada, em suas comunidades.
Nitynawã Pataxó (2011) relata, de forma agradecida, que a professora
América, pesquisadora de linguística da UFBA, ajudou a elaborar o projeto, que foi
levado às lideranças Pataxó do sul e do extremo sul da Bahia e obteve amplo apoio
do Conselho de Caciques.
Na verdade, as primeiras palavras apreendidas serviram de base para
formular músicas e cânticos, para, logo em seguida, passar a fazer parte do
cotidiano do grupo de estudos e, aos poucos, com o trabalho nas escolas,
finalmente ser possível o uso diário do Patxôhã.

Essa pesquisa começou na aldeia Coroa Vermelha através de um


apelo e incentivo vindo da Reserva da Jaqueira, reunidos com
membros da aldeia Coroa Vermelha e da aldeia mãe Barra Velha. Na
aldeia Barra Velha eles já faziam um trabalho de pesquisa e ensino
da língua, só que era um trabalho interno. A partir de 1998 foi quando
começamos a fazer um trabalho de pesquisa mais aprofundado em
conjunto com a aldeia Barra Velha e depois socializado com as
demais comunidades Pataxó. (AWÓY PATAXÓ, 2018 em
esclarecimento ao próprio texto.)

Entre 2003, quando o Patxôhã passou a ser ensinado nas escolas, até 2016,
a pesquisa já havia feito uma longa trajetória e a língua tomou forma, com mais de
120

1.500 verbetes, colhidos com ajuda da FUNAI que proporcionava transporte e


alimentação, durante o deslocamento para coleta de dados em outras aldeias.
Aliados aos professores Awóy e Ajuru, estudiosos da língua e da cultura desde
1998, os outros professores foram percebendo a importância de falar a própria
língua não só entre os colegas, mas também entre os familiares. Com a entrada na
Licenciatura Intercultural Indígena, muitos outros aderiram aos estudos e foram se
empoderando de sua cultura e tomando consciência das consequências de seus
estudos linguísticos. Por outro lado, mesmo sem serem professores,
espontaneamente, outros elementos das aldeias foram se agregando aos estudos e
acrescentando termos que estavam adormecidos na memória.
Seguem algumas palavras em Patxôhã:

Ahnã – eu Miãga – água


Dxê’ê – tu Kijemi – casa
Kepây – ela Kawatá – coração
Topehe – ele Kahtãga – lealdade
Anehô - você Mãgutxi – comida
Kãupetõ – meu Goyá – bebida
Kanã – minha Kayãbá – dinheiro
Kotenokô – seu Jokana – mulher
Hukã – teu Kakusú – homem
Kahrnetú – nosso Anemãvêy – casamento
Napinatõ – nossa Hamikahay– aniversário
Kramiã – agora Ihixú – Nação
Hayô – sol Xôhã – guerreiro
Ãgohó - lua Niamisú – Deus
Hãhãw – terra

Tabela 3: Nitynawã Pataxó, 2011, p.50

Para complementar informações em favor da língua, a Comissão de


Constituição e Justiça do Senado aprovou hoje (12/06/2013) projeto do senador
Cristovam Buarque (PDT-DF) que estabelece a obrigatoriedade de os cartórios
respeitarem os prenomes escolhidos pelos indígenas no momento do registro das
121

crianças. O projeto retira dos oficiais de cartório, neste caso, o direito que eles têm
por lei de se recusarem a registrar uma criança com nome que considere vexatório
ou com risco de expor o portador ao ridículo no futuro. E justifica usando as palavras
do próprio senador:

O tratamento legal dispensado aos índios deve ser diferenciado em


razão de sua cultura, que acentua valores da natureza e os aplica aos
nomes dos filhos. A etnia também conta, pois é honra entre índios
atribuir ao filho o nome de um antepassado. (Senador Cristovam
Buarque, 2013)

Buarque (2013) diz que muitos dos nomes indígenas acabaram sendo
assimilados de maneira definitiva pela cultura brasileira. É o caso dos nomes
femininos de Indiara, Iara, Iracema e Moema, ou dos masculinos de Ubirajara,
Tabajara, Ubiratã ou Irapuã.
O senador alega que, apesar disso, há outros nomes menos conhecidos e
que, por terem pronúncia difícil, podem ser barrados nos cartórios. São os casos de
Kraó, Aaem, Sassanaam, Murusuru entre muitos. “Esses nomes têm valor especial
para os integrantes do grupo ou da etnia, e não deve a lei proibi-los, como faz
relativamente às pessoas de cultura não índia” (idem 2013).
Apesar de uma extensa gama de exemplos de troca de nomes indígenas por
nomes em língua portuguesa, serão citados apenas alguns a título de ilustração:

Ademário Braz Ferreira (Kamassari)


Diana Conceição Bonfim (Mayon)
Edenildo Lopes Santana (Tapurumã)
Givania Pereira Silva (Flytxialha)
Jerry Adriane Santos de Jesus (Matalawê)
Jussimar Guedes de Souza (Kamarutê)
Kelly Cristina Ferreira dos Santos (Taquarina)
Marilene da Conceição Ferreira (Merky)
Maria das Neves Conceição Alves dos Santos (Nitynawã)
Nilcéia Conceição Alves dos Santos (Naiara)
Raimunda de Jesus Matos (Rayô)

Tabela 4: Raízes e Vivências(2005)


122

Dessa forma, resgatando e colocando em uso o nome próprio na língua


tradicional, é mais uma estratégia de retomada da língua original e todos os direitos
concernentes a essa atitude. Resta agora conseguir o direito de usar o nome natural
e indígena na carteira de identidade.

3.5 Pintura corporal Pataxó

O corpo humano pode ser visto como lugar de confrontação entre


humanidade e animalidade, mas não porque carregue uma natureza
animal que deve ser velada e controlada pela cultura. Ele é o
instrumento fundamental de expressão do sujeito e ao mesmo tempo
o objeto por excelência, aquilo que se dá a ver a outrem. Por isso, a
objetivação social máxima dos corpos, sua máxima particularização
expressa na decoração e exibição ritual, é ao mesmo tempo sua
máxima animalização. (Goldman 1975:178; S. Hugh-Jones 1979:141-
142 in Viveiros de Castro, 1979, p.22)

A afirmação acima de Viveiros de Castro, para além do contraste entre o


humano e o animal, ressalta um conceito de corpo como expressão social do sujeito.
Tal expressão pode ser expressa pelo corpo despido, mas isso não é uma exigência
intrínseca, até porque existem populações indígenas, ameríndias que habitam
lugares montanhosos, onde a maior parte do ano as temperaturas são baixas e seria
arriscado uma exposição ao relento. Sobre isso, Roberto Benjamin (2011) denuncia
um equívoco que deixa perceber um preconceito malicioso:

A partir da carta de Pero Vaz de Caminha, vem se repetindo a


afirmação de que os índios brasileiros andavam nus. Trata-se de uma
generalização inadequada, que serviu de motivação sensual aos
pintores do período romântico. A diversidade cultural dos povos e sua
localização em regiões de climas diferentes determinou as
modalidades de vestuários dos indígenas. (p.42)

Outra vertente curiosa de pensamento se dá no relato de como o chefe


Tuiávii25, de uma tribo indígena Tiavéa, dos mares do sul reflete sobre o homem
branco - que ele chama de Papalagui - e sua preocupação em cobrir bem sua carne,
dando a entender que apenas o que está acima do pescoço, sua cabeça e sua

25
Tuiávii, chefe da aldeia de Tiavéa, na ilha de Upolu, que pertence ao arquipélago de Samoa. ( Scheurmann, s/d,
p.9)
123

mente, são o que realmente importa. O autor que o relata, Erich Scheurmann(s/d)
declara sua intenção de levar aos brancos instruídos, a forma como um ser humano,
estreitamente ligado à natureza, observa “o outro” e em sua forma pueril de se
expressar, manifesta seu ponto de vista:

A carne é um pecado, segundo diz o Papalagui, porque seu espírito é


grande, é o que ele pensa. O braço que se ergue à luz do sol, para
atirar, é flecha do pecado; o peito, sobre o qual palpitam as ondas do
respirar, é habitação do pecado; os membros com que a moa convida
para a dança são pecadores. E também os membros que se tocam
para fazer seres humanos, alegrando a vasta terra, são pecaminosos.
Tudo que é carne, é pecado. Um veneno existe em todos os tendões,
malicioso, que salta de um homem para o outro. O espetáculo da
carne, por si só, é suficiente para envenenar quem o contempla,
intoxica-lo, corrompê-lo e torná-lo tão abjeto quanto aquele que se
deixa ver. É o que proclama a moral sagrada do homem branco.[...]
Compreende-se, portanto, que o corpo do Papalagui seja branco e
pálido, sem a cor da alegria.(p.15)

Genericamente, o corpo é compreendido pela Antropologia, a História e a


Teologia não apenas por sua dimensão física, como também como uma construção
social. Nesse sentido, Peter Burke (1992, p. 296) afirma que o corpo não deve ser
encarado como um objeto de carne e osso, mas uma “construção simbólica”.

Os estudos sobre o corpo, em que pese a presença física, que o descrevem e


classificam, que propõe suas funções e significados, deveriam estar nos capítulos da
cultura. Considerando-se que tanto quanto as representações suscitadas por ele,
pertencem à história, as percepções que se tem dele, devem compor a história
social.

Graciela Chamorro (2009) em publicação sobre a história e a etnografia do


corpo entre os Guarani reflete sobre a necessidade de integração dos
conhecimentos:

La historia del cuerpo, por lo tanto, no puede ser una cuestión de


triturar las estadísticas vitales sobre lo físico, ni apenas un conjunto
de métodos para la decodificación de las representaciones. Es antes
un llamado a compreender la acción recíproca entre los dos.
(CHAMORRO, 2009, p.112)

No âmbito Pataxó, o corpo não é um inimigo do espírito religioso, mas uma


parte dele, um conceito psíquico-espiritual do ser humano maduro, no qual a alma
reforça a corporalidade, pois a ela pertence, tem a forma do corpo, que é seu
124

invólucro. Pode-se inferir que no corpo não existe pecado inerente, mas exerce suas
funções para ser o portador de inteligência, sabedoria e alegria.
Para absorver com profundidade os motivos pelos quais os povos indígenas
pintam seu corpo, será necessário sair da ideia simplista de que é algo semelhante a
uma tatuagem, porque não é. Também não é uma forma de adorno temporário,
assim como não é um passatempo ou uma mera preparação para a guerra, pois
seria reduzir demais seus propósitos.
Para um entendimento mais amplo, é preciso levar em consideração a
cosmovisão que permeia as culturas indígenas, nas quais as formas desenhadas
extrapolam a arte e adquirem um significado transcendente que o antropólogo
Viveiros de Castro (1979) denominou de Perspectivismo Ameríndio. Para explicar o
que os não índios veem com total estranheza, ele se refere à concepção indígena,
segundo a qual o mundo é povoado de outros agentes, além dos seres humanos,
que podem ser entidades animais, vegetais, minerais ou etéreas e que veem a
realidade diferentemente dos seres humanos.

“Uma das teses do perspectivismo é que os animais não nos vêem


como humanos, mas sim como animais” (p. 35), aponta Viveiros de
Castro (1979). Por exemplo: para os homens, as onças no mato são
apenas animais, “bestas”, “feras”; mas para as onças no mato, os
homens é que não passam de bichos (e de carne sedutoramente
suculenta).

Viveiros de Castro, com aquilo que aprendeu morando e convivendo com os


nativos da Amazônia, convida-nos a olhar o mundo com outros olhos, num exercício
de outramento através do qual podemos vivenciar o real à maneira do
perspectivismo ameríndio, isto é, concebendo uma multiplicidade de consciências
que se esparramam por toda a paisagem do real, sendo que cada animal teria uma
tendência a fazer de sua perspectiva uma espécie de “centro-do-mundo”, de
conceber-se como “subjetividade” e objetificar o outro.
Em muitos mitos indígenas, deparamos com a noção de que os animais são
criaturas que foram humanas um dia. “Tal humanidade pretérita dos animais nunca é
esquecida, porque ela nunca foi totalmente dissipada, ela permanece lá como um
inquietante potencial – justo como nossa animalidade “passada” permanece
pulsando sob as camadas de verniz civilizador” (p. 36).
125

Donde emergem frases, aparentemente absurdas, altamente


poéticas, inspiradoras de reflexões altamente interessantes,
como “onça também é gente” ou “a oncidade é uma potencialidade
das gentes” (VIVEIROS DE CASTRO, 1979, p. 38).

A pintura corporal Pataxó se divide em


várias regiões do corpo, e cada parte do corpo
traz uma mensagem específica e importante. A
pintura mais aparente é a facial, que distingue se
a pessoa é solteira ou casada. Os solteiros se
esmeram bastante nessa pintura, com traços
finos e delicados, essa tarefa pode demorar
horas. Nas imagens a seguir, vê-se o desenho
tradicional usado nas costas, sendo também uma
forma de identificação da etnia. Ela representa o
desenho das asas de um besouro que vive na
região e inspirou o primeiro desenho. Ao lado, um
desenho mais contemporâneo, assimétrico, sem
sinais do uso da tinta tradicional de jenipapo.

Imagem 18 - Ubiranã Pataxó durante


os jogos Indígenas em 19/04/2016,
Coroa Vermelha, Santa Cruz Cabrália,
Bahia. Mávis Dill Kaipper, 2016.

Com muito senso de humor, Viveiros de Castro aponta: “considerar


que os humanos são animais não nos leva necessariamente a tratar
seu vizinho ou colega como trataríamos um boi, um badejo, um
urubu, um jacaré. Do mesmo modo, achar que as onças são gente
não significa que se um índio encontra uma onça no mato ele vai
necessariamente tratá-la como ele trata seu cunhado humano. Tudo
depende de como a onça o trate… E o cunhado… (p.38 in
SZTUTMAN, 2005, http:pib.socioambiental.org/pt/povo/arawete)
126

Imagens 19 e 20: Pintura corporal tradicional e contemporânea durante os festejos do


Aragwaksã. Reserva Indígena Pataxó da Jaqueira, Porto Seguro, Bahia Pintura corporal tradicional e
contemporânea durante os festejos do Aragwaksã. Reserva Indígena Pataxó da Jaqueira, Porto
Seguro, Bahia. Registro da autora,1º/08/2016.

Para a pintura corporal, o jenipapo é a fruta de pigmento preferencial dos


índios do nordeste. Sua tinta ficará mais escura quanto mais vezes se repassar.
Pode ser acrescida de pigmento de carvão ralado; e permanece na pele entre 15 e
20 dias. Além do pigmento escuro, tem o vermelho, fornecido pela semente de
urucum26, a argila amarela (tawá) ou branca (tubatinga), materiais que fornecem
uma variada gama de combinações com traços finos e grossos ou regiões maiores,
como as costas ou a barriga e o peito, com desenhos geométricos, ou de inspiração
em animais ou plantas.
Por vezes, os braços também são pintados e trazem em si um significado
forte, de vínculo com a aldeia mãe na parte superior. Ao longo do membro superior
os traços lineares caraterísticos do homem e da mulher. Ao final da pintura corporal,
a aparência é impressionante, chegando a ser hipnótica. O resultado é semelhante a
uma veste exótica e requintada.
26 Tinta de urucum é feita com óleo de côco ou água, de preferência com a semente verde e um

socador de sementes (Kapimbará, informação oral em 19/04/2018).


127

As linhas traçadas nas maçãs do rosto podem ser duas linhas paralelas e
retas sob os olhos, que significa o compromisso do casamento. Quando as linhas
são abertas > e < saindo do nariz em direção às orelhas, significam que a pessoa
ainda está solteira, ou sem compromisso. E, estando solteira, pode e deve se
enfeitar bastante, com plumas, braçadeiras, colares e brincos.
Na figura a seguir estão representados os traçados básicos da pintura
corporal indígena Pataxó para as mulheres. No convívio, pode-se perceber que para
as meninas são utilizados os mesmos desenhos, porém em tamanho menor e com
traços mais finos e delicados. Também é patente a discrição dos desenhos para as
mulheres casadas e as mais velhas, estas se enfeitam pouco e são muito
cuidadosas com seu corpo, sem muita exposição. É importante ressaltar que
nenhum padrão de desenho impede a criatividade durante o ato da pintura, pois as
possibilidades são infinitas, na repetição de linhas ou na inserção de outras cores,
que não sejam as tradicionais preto, vermelho, amarelo e branco.

Imagem 21 – Modelo de pintura para a mulher indígena Pataxó no rosto e nos braços. Extraído do
Livro Raízes e Vivências, 2005.
128

Os homens também utilizam a pintura corporal e segue padrões idênticos no


que diz respeito ao fato de ser solteiro ou casado, na utilização da pintura facial e
dos braços.
O convívio nas aldeias indígenas Pataxó tem demonstrado que os rapazes
são muito caprichosos na arte de se pintar, pois criam desenhos com base no
tradicional, que em muito extrapola o original. Eles também convidam amigos e
parentes de outras etnias para se pintarem em dias de festa. Percebe-se o esmero
nos traços e na execução do trabalho. Muitos rapazes pintam seu próprio rosto, mas
existe uma parceria muito importante na pintura das costas, onde os desenhos são
mais complexos, são signos identitários e podem levar em torno de três horas na
execução completa da pintura.

Imagem 22 - Modelo de pintura para o homem indígena Pataxó no rosto e nos braços. Ex-
traído do Livro Raízes e Vivências, 2005.
129

Para os detalhes da pintura, os traços finos são feitos com pequenos galhos
flexíveis que são colhidos na hora; para as regiões mais extensas, são utilizados
pincéis.

Imagem 23: Detalhe da pintura corporal em cores. Casamento Cultural Pataxó. Reserva Indígena
Pataxó da Jaqueira, Porto Seguro, Bahia. Balmukund Niljay Patel, 2008.

3.6 Confecção e uso de adereços tradicionais

A vestimenta dos indígenas é composta por vários itens que vão ser usados
de acordo com a personalidade, a posição social ou religiosa, e a disposição para
confeccionar e usar os adereços conforme a tradição. Os elementos básicos são o
cocar e o tupsay, mas a caracterização é muito variável. Às vezes, numa reunião na
cidade ou uma visita numa escola, alguns kakusú usam apenas o cocar com uma
calça e uma camiseta de algodão. Já as jokanas têm mais possibilidade de variação
com tiaras no cabelo, que podem ser de palha simples ou bordada com lã colorida e
desenhos tradicionais; braçadeiras, brincos e enfeites de cabelo, com plumas
coloridas, colares com sementes variadas e contas coloridas.
Nesse momento, percebe-se que os adjetivos, substantivos e verbos não são
suficientemente exatos e esclarecedores para descrever os detalhes e combinações
de cores. Um visitante não índio, mesmo imerso num ambiente absolutamente
natural, pode permanecer absolutamente inebriado com tanta variedade de arranjos
harmônicos entre plumas, sons, cheiros e paladares que se apresentam numa festa.
As sensações são arrebatadoras e os estímulos visuais hipnotizantes.
130

F
Imagem 24: Jokana vestida conforme a tradição, com palha, côco, plumas e sementes durante os
festejos do Aragwaksã em 1º/08/2016. Reserva indígena Pataxó da Jaqueira, Porto Seguro,Bahia.
Balmukund Niljay Patel, 2016.

Na cabeça, costumam usar o cocar Pataxó, que caracteriza-se por duas tiras,
sendo uma na testa e outra no alto da cabeça que distribui um feixe de plumas
aberto em leque.
131

Imagem 25: Dhahara pintando Nawí, ornadas com cocares, brincos e pulseiras durante o
Aragwaksã em 1º/08/2016. Reserva indígena Pataxó da Jaqueira, Porto Seguro,
Bahia. Balmukund Niljay Patel, 2016.

Só nós, índios, podemos pintar ou usar pinturas Pataxó, porque não é


qualquer pessoa que pode pintar ou ser pintado de qualquer forma,
sem que tenha um significado. Temos que manter o respeito por ela,
pois quem está pintado não deve tirar a pintura até suar bastante. O
suor é sinal de renovação corporal. A pessoa renovada é capaz de
receber mais favores do sagrado.” (BAHIA, 2005, p. 88)

No pescoço, colares de contas, sendo o vermelho a cor de preferência, mas


podem ser feitos com dentes de animais ou até de algum time de futebol que lhes
agradem. Na cintura, alguns levam um cinturão com couro de cobra ou raposa sobre
o Tupsay, mas há os que prefiram contas ou cascas de castanhas, que fazem um
som muito peculiar, semelhante ao de uma chuva torrencial.
Na cabeça, levam o cocar Pataxó com duas tiras e um feixe de plumas aberto
em leque, sendo que uma tira segura a testa e a outra fica elevada, na parte traseira
da cabeça. Essas tiras costumam ter um desenho losangular, no sentido horizontal,
nas cores preto, branco e vermelho. Assim explica Syratã (2018):

Olha professora, em relação aos cocares, a gente temos aqui tem um


padrão Pataxó, que é o que eu uso, que é feito com penas de
papagaio, né, os caciques que utiliza hoje. Mas assim, os cocares
com três penas maiores no meio, eles representam a hierarquia na
aldeia. Como nós temos aqui as lideranças, Nitynawã, Jandaia e
132

Naiara, então essas três guerreiras, são as encarregadas de estar


usando esses cocares com três penas maiores no meio.
Normalmente as duas penas grandes representa quem já é casado,
que já tem sua família. E quem tem uma pena só, representa quem é
solteiro. (depoimento oral, em 21/05/2018, via what’s app).

Imagem 26: Syratã Pataxó, 20 anos, residente da Reserva Indígena Pataxó da Jaqueira, Porto
Seguro, Bahia. Balmukund Niljay Patel, 2008.
133

Imagens 27 e 28: Perneiras e tornozeleiras tradicionais. Reserva Indígena Pataxó da Jaqueira, Porto
Seguro, Bahia. Balmukund Niljay Patel, 2016.

As braçadeiras e perneiras de contas ou plumas são facultativas. De qualquer


forma, mesmo seguindo um padrão, é possível perceber a personalidade de cada
um na variedade de elementos que usam e na forma como se pintam.
Sobre as perneiras, Jean de Léry tem um trecho muito curioso, onde diz:

Para dançar, beber e cauinar27, o que constitui uma ação ordinária,


procuram algo que os anime, além do canto com que em geral
acompanham as danças; para isso colhem certo fruto do tamanho da
castanha-d’água e com ela parecido. Depois de secá-lo, tiram-lhe os
caroços e colocam no lugar algumas pedrinhas; amarram-nos então
aos tornozelos, pois assim dispostos fazem tanto barulho quanto os
guizos dos europeus, dos quais aliás se mostram muito
cobiçosos.(LÉRY, 2007, p.116-117)

3.7 Arte indígena - Bioarte

27
Cauinar – o verbo sugere a epistemologia do termo tupi cauim, que também se aplica em patxôhã, que
assimilou alguns termos mais usados pela convivência nas reduções jesuíticas, como ocorreu na aldeia de Barra
Velha com o povo Pataxó e outros. Entende-se que cauinar dá indicação de beber kauí. (Nota da autora)
134

Assim como na língua, na música, na cestaria, na canoagem, na gastronomia,


a arte plumária, especificidade da cultura indígena, foi delegada ao esquecimento.
Até mesmo as escolas de comunidades indígenas, que deveriam ser espaço de
formação de conhecimento na aldeia, precisam ser lembradas da necessidade da
transmissão dos costumes e das crenças seculares. Mas hoje, os índios Pataxós
não a rejeitam, convivem com essa escola, “pensada pelo branco”, mas resistem ao
seu movimento cultural, para que ela venha a
se adequar à comunidade. O Referencial
Curricular Nacional de Educação -
RCNE/Indígena (2002) incita que a cultura
tradicional seja referência para o sistema
escolar das comunidades indígenas, servindo
para todo o Ensino Fundamental,
independente dos professores serem índios
ou não índios. É consenso que a educação
imposta aos povos indígenas, desde o início
da colonização portuguesa, tinha como
objetivo a dominação, a negação, a
destruição de suas culturas e mais
recentemente sua integração à sociedade
dominante, que no fundo significou o
extermínio e o genocídio (BANIWA, 2004,
p.13).
Imagem 29 - Arranjo de cabelo com plumas
coloridas e contas. Jogos Indígenas. Coroa
Vermelha, Santa Cruz Cabrália, Bahia.
Registro da autora, 2016.

Por outro lado, os estudos de Basil Bernstein (1996) sobre classes, códigos e
controle pedagógicos asseguraram a aspirar um currículo pensado para as
populações indígenas, indicando a rigorosidade ao planejamento na visita à aldeia,
porque a pesquisa etnográfica exige a sistematização da observação do objeto em
estudo. Nesse quadro, tanto a história quanto a antropologia, esforçam-se em
compreender como o fazer artístico e a arte indígena podem se conectar, dentro de
uma proposta de educação brasileira.
135

Já o homem ocidental tende a julgar as artes dos povos indígenas como se


pertencessem à ordem estética de um Éden perdido. Dessa forma, deixa de captar,
usufruir e incluir, no contexto das artes contemporâneas, em pé de igualdade,
manifestações estéticas de grande beleza e profundo significado. “São as
investigações históricas [...] o que convém para descobrir a origem deste ou daquele
traço cultural e para interpretar a maneira pela qual toma lugar num dado conjunto
sociocultural” (BOAS apud LARAIA, 2005, p. 36).
O estudo da arte indígena e seus objetos têm revelado a capacidade
expressiva de significados simbólicos, uma verdadeira experiência sobre o objeto
artístico, capaz de unir o real e o imaginário, tentando articular as emoções mais
intimas, a uma linguagem universal. (LÉVI-STRAUSS apud VIDAL, 2000, p. 289). A
base estrutural que se apresenta com a grande diversidade de materiais e suportes
utilizados, investe-se em algo construído para refletir o caráter simbólico dos
sentimentos. Os significados simbólicos - sociais, cosmológicos e individuais -
revelam a criatividade e o envolvimento expressivo de categorias sociais e
cognitivas, mas anuncia a transcendência para um patamar lúdico e prazeroso dos
artistas indígenas com sua arte. (DALL’IGNA e ALMEIDA, 2013, s/p.)
Com relação à essa forma de produção, no caso das mulheres artesãs, seria
difícil nomeá-las, visto que todas trabalham numa atividade artística coletiva. São
como imagens anônimas, congeladas num passado remoto. Contrário a isso, Price
(apud VIDAL, 2000, p. 290), ajuda a ver toda a ambigüidade da visão ocidental no
que se refere às artes não-ocidentais, e lembra que estas fazem parte das artes do
mundo contemporâneo e devem ser tratadas com honestidade e em pé de igualdade
com as demais que compõe este mesmo mundo.

3.8 Aragwaksã – aniversário da Reserva Indígena Pataxó da Jaqueira

O Aragwaksã tem um profundo significado étnico, visto que é um marco na


luta pela retomada das terras historicamente ocupadas pelos ancestrais indígenas.
Sabe-se, através de relatos dos mais antigos sobreviventes do povo Pataxó, que o
topo da montanha, era um dos locais preferidos pelos Pataxó, devido à floresta no
entorno, que os protegia e fornecia alimento. Sendo um povo de tradição nômade,
passava ali um tempo colhendo frutas e pescando, depois seguiam para outros
locais. Esse local, hoje chamado de Jaqueira, foi assim batizado, devido a um
136

grande pé de jaca ter se deitado e enraizado várias outras mudas da planta. Então,
devido à essa prodigalidade da floresta, onde havia um pé de jaca, hoje tem vários.
Esse é o local central do terreiro, o pátio escolhido para erguer os kijemi em volta.
Tem se tornado costumeiro, pois talvez ainda não possa ser chamado de
tradicional, a realização das cerimônias que integram os festejos do Aragwaksã, em
1º de agosto de cada ano, quando se comemora o aniversário de reconhecimento
das terras do povo Pataxó na Reserva Indígena da Jaqueira. A festa começou a ser
comemorativa em 1998, quando ocorreu o 1º Aragwaksã, e, no decorrer do tempo,
foi se ampliando. Segundo Nitynawã, uma das líderes locais, em 1999 os festejos
foram abertos à visitação de público externo. A partir de 2000, começaram a realizar
os novos casamentos, no sentido de fortalecer os laços familiares e integrar o ritual
da cerimônia matrimonial como uma das formas de resgate cultural da etnia.
Coincidentemente ou não, foram sendo privilegiados os casamentos intraétnicos de
ramos familiares distintos. (NITYNAWÃ, INFORMAÇÃO ORAL EM 21/04/2018).
Dessa forma foram se fortalecendo a genealogia originária da Barra Velha, donde
vieram os primeiros componentes das famílias Ferreira, Alves, Conceição, Brás, e
em menor número, Matos, Bonfim, conforme relatam o Pajé Itambé, Kapimbará e
Wekanã.
Em 2007, foi incorporado o ritual de batismo com a argila, cuja cerimônia
continuou acontecendo nos anos subsequentes. (JANDAIA, INFORMAÇÃO ORAL
EM 21/04/2018). Dentro dos costumes Pataxó, eles tinham um teste de levar para
perto do rio e colocar uma rã em cima do bebê para ver se chorava, se chorasse,
não iria ser corajosa, mas se aguentasse calada o incômodo, iria ser um guerreiro
firme e corajoso.(PAJÉ ITAMBÉ, INFORMAÇÂO ORAL EM 03/11/2017) Segundo
Syratã, jovem cacique da Reserva da Jaqueira, em 2015 eles receberam a visita dos
Maxacali e ensinaram o ritual deles. Conforme a explicação, os seres humanos são
feitos de água e barro porque quando “o primeiro pingo de chuva caiu no chão, se
enamorou do barro” (SYRATÃ, INFORMAÇÃO ORAL EM 2/11/2017) e daí se
formou o ser humano. Por esse motivo, o batizado é feito com o barro e a chuva,
cerimônia na qual o barro fortalece o corpo, sua saúde e vitalidade, e a água
simboliza a pureza da alma que habita cada ser vivo.
Os padrinhos da criança o seguram, o abençoam e o protegem pintando seu
corpo com o barro previamente preparado pelos mais velhos, que o pisam até
misturar bem a água e o barro. Com essa mistura pastosa, os padrinhos pintam seu
137

afilhado, repetindo seu nome e apresentando o novo “guerreirinho” à comunidade


que fica em volta observando a reação da criança. Em seguida, o pajé profere as
palavras sagradas em patxôhã, incensando o kitoki com a fumaça de seu cachimbo.
Todos esses rituais têm também o papel de harmonizar qualquer desavença
que haja entre os habitantes da aldeia e seus parentes, pois a sacralidade dos
rituais eleva o espírito de todos que estejam presentes, sem que seja necessário
nenhum ato explícito sobre isso. Emerge naturalmente um sentimento de alegria e
respeito, que toma conta de todos os presentes e passa ser um consenso.
Em estudo semelhante sobre o povo Deni, Sass( in MARKUS, ALTMANN e
GIERUS, 2014, p.17) relata que

[...] a maioria das festas se liga à fartura que se encontra na natureza:


na mata, na água e no roçado. Há cantos e danças sobre animais,
frutas, caçadas, pescarias e brincadeiras entre mulheres e homens.
Os cantos não são cantados individualmente, mas sempre
coletivamente.[...] Os conflitos e as tensões dos relacionamentos
entre pessoas e diferentes aldeias ficam minimizados.

Com o objetivo de reforçar a contemporaneidade das vestes e as formas de


criatividade possível, sem que se ferissem as tradições étnicas, extraordinariamente,
em 2016, houve em meio ao evento do Aragwasã, o concurso da beleza indígena,
no qual desfilaram indígenas de várias aldeias, exibindo grande variedade nas
vestes e ornamentações criadas pela artista local, Exina/Ludmilla28 Bonfim.
(NAIARA, INFORMAÇÃO ORAL EM 21/04/2018).
Todas as representantes de suas comunidades se esmeraram em exibir da
melhor forma os adereços de confecção local e regional, reunindo-se em grupos
para a pintura e preparação de cada uma. Como nas comunidades de não índios
também ocorre, esses concursos servem para mostrar os novos modelos de enfeites
e vestes desenvolvidos em cada aldeia, assim como o aproveitamento de novos
materiais e desenhos.

28
As pessoas têm um nome em português e outro em patxôhã. (Nota da autora)
138

Imagem 30 - As sete finalistas do Concurso Beleza Indígena durante os festejos


do Aragwaksã Reserva Indígena Pataxó da Jaqueira, Porto Seguro, Bahia, Patel, 2016.

Depois de colhidas as informações, as irmãs Nitynawã, Jandaia e Naiara, se


reuniram e entraram em consenso sobre as datas de cada evento, esclarecendo
que, em 2017, não aconteceram os festejos tradicionais, por mortes e doenças em
pessoas notáveis para o povo Pataxó.
Na imagem abaixo está retratado o cartaz alusivo ao 19º Aragwaksã/2017,
cuja temática aborda a relação do índio com a Mata Atlântica, remetendo ao
equilíbrio do ser humano com a natureza. O tema das homenagens varia de ano
para ano.
139

Imagem 31 - Cartaz alusivo ao Aragwaksã, 2017, Preservação da Mata Atlântica. Reserva Indígena da
Jaqueira, Porto Seguro, Bahia. Registro da autora, 2018.

3.9 União conjugal indígena

Conforme vem sendo argumentado, são muitas as diferenças de combinação


matrimonial entre os grupos indígenas, mas, em todos, existem regras, exatamente
como em todos os costumes. Uma variante, por exemplo, é o número de cônjuges
permitidos em cada cultura. Melatti (2007), no capítulo “Amor e Casamento”,
exemplifica a poliginia entre os Xavantes, na qual um homem pode casar com mais
de uma mulher (WAGLEY; GALVÃO,1961, p. 38 in MELATTI, 2007, p.131), assim
como os Tupinambás (STADEN,1968, p. 250 in MELATTI, 2007, p.131). De outra
maneira, os Timbiras exigem monogamia e os Nambiquaras só aceitam a poligamia
aos chefes de bandos (LEVY-STRAUSS,1957, p. 332 in MELATTI, 2007, p.131). Os
Xoclengues, no entanto, convivem com uniões instáveis, sendo permitido tanto a
monogamia como a poligamia, ou até mesmo a poliandria ou “o casamento grupal,
no qual mais de um homem pode casar com mais de uma mulher”. (HENRY, 1964,
p.19; 35-47 apud MELATTI, 2007, p. 132).
De modo transpessoal e unânime, exatamente igual a qualquer outra
sociedade conhecida, o incesto é veementemente rechaçado. Nenhuma pessoa
pode se casar com quem bem entender. Tal comportamento, nas comunidades
indígenas, não é diferente. Se um homem pretende se casar, não será nem com sua
mãe, nem com sua irmã e nem com sua filha. Qualquer relação de intimidade sexual
140

é considerada crime nessas condições, por se tratar de uma relação incestuosa,


mas a concepção de incesto pode variar de uma sociedade para outra.
Nas linhagens indígenas ou nos grupos onde existem clãs, as uniões entre
pessoas de um mesmo clã são consideradas incestuosas e podem, nessa hipótese,
serem punidas com a morte, devido à grande indignação que causa entre seus
outros parentes. Como em qualquer sociedade, os povos indígenas do Brasil não
aceitam casamentos entre mãe e filho, pai e filha, ou entre irmãos, mas isso não se
aplica à primos entre si ou a tios e sobrinhas, por exemplo. As sociedades
Mundurucus (MURPHY, 1960, p. 89 apud MELATTI, 2007, p. 133) davam
preferência aos casamentos entre primos cruzados, a fim de que as linhagens não
se afastassem demais dos interesses grupais. Para exemplificar, Tanivaldo Santos
da Conceição, Wekanã Pataxó, nascido na Aldeia de Barra Velha, em 02/05/1978,
afirma, em entrevista datada de 24/10/2017, na Reserva da Jaqueira, Porto Seguro,
Bahia, que “não tem proibição de casar entre primos”. Além disso, ele relata ser
casado com sua prima Suryang Pataxó, nascida em 3/06/1988, com a qual teve
cinco filhos: Txaiwã, Watxahary, Wekanã, Txawanahara e Wekanayrã.
Convém observar, que, por mais isolada ou primitiva que uma comunidade
seja, sempre haver interesses no contexto social dos casamentos, que não estarão
ligados apenas aos desejos românticos do casal. Todo casamento envolve
interesses do grupo familiar, que poderá estar ligado à sobrevivência, num sentido
mais rasteiro, como também poderá incluir motivações políticas, territoriais, de
acesso a alimentos, como frutas, caça e pesca. Wekanã lembra que “os Pataxó de
Minas Gerais [...] eles não aceita outras etnias se misturarem com eles, não gosta
nem que more perto” 29. Esse testemunho de Wekanã reafirma a importância de
casar com “parentes” para não perder a tradição e nem perder terras na união com
outras etnias.
Por outro lado, com o pensamento voltado para a atualidade, os interesses
podem residir na facilidade de trabalho formal, proximidade à escola, farmácia,
mercados e serviços ou ainda acesso aos meios de transportes e veículos de
comunicação como telefonia e internet. Enfim, os integrantes das comunidades
indígenas atuais buscam seu direito à cidadania, com todas as implicações inerentes
a essa escolha, sendo o casamento étnico uma forma de preservação da cultura

29
Em entrevista, em 24/10/2017, na Reserva da Jaqueira, Porto Seguro, Bahia.
141

endógena, mas também uma forma de fortalecer a comunidade com mais uma
célula familiar.
Independente dessas questões que são básicas para qualquer comunidade
humana, “o casamento é uma forma de unir grupos sociais: unem-se clãs, unem-se
linhagens, unem-se aldeias” (MELATTI, 2007, p. 136). Por meio do casamento,
grupos se solidarizam e formam alianças. O contrário também é verdadeiro, pois
aqueles grupamentos que têm qualquer tipo de hostilidade, histórica ou não, jamais
se unirão por casamento.
A união conjugal incita muitas outras reflexões, mesmo em se tratando de
uma comunidade indígena, uma vez que as questões de posse da terra podem estar
envolvidas no contexto, exatamente como nos mostra a história nas cortes
europeias, durante muitos séculos. Se a filha de um cacique se casa com o filho de
outro cacique da mesma etnia, eles ficarão em território naturalmente habitado e
cultuado por seu povo. Mas, se o casamento ocorrer entre um Pataxó e um Fulni-ô,
por exemplo, cederá aquele que tiver menos posses (provavelmente a esposa) e irá
morar na aldeia onde houver melhores recursos para a sobrevivência do casal e sua
futura prole. De qualquer maneira, uma proposta de casamento sempre trará, em
seu bojo, um convite à paz, à colaboração e à solidariedade entre os povos.
É comum, entre diferentes grupos ou comunidades, ofertar presentes por
ocasião de uma visita. Essa atitude pode indicar boa disposição para a paz, o
apreço entre as partes envolvidas ou simplesmente um agrado para quem está
sendo presenteado.
A história relata que, no contato entre índios e portugueses, os índios
lisonjeados, com a visita de além-mar, forneceram alimentos, aves raras, pau-brasil
em troca de espelhos, utensílios e ferramentas. Centenas de anos depois das trocas
ocorridas, o bom senso aconselha a não julgar as conveniências que levaram cada
grupo a oferecer tais prendas, visto que os hábitos e costumes eram absolutamente
desconhecidos dos dois lados, assim como a língua falada.
Sabe-se que, para além da troca de presentes, existe, nesse ímpeto de
solidariedade entre povos, como alguns autores abordam, o costume de troca de
mulheres. Mas isso não seria uma troca banal de uma mulher por outra, visto que,
em muitas aldeias, há grande respeito pelas mulheres casadas. Essa troca, na
verdade, ocorre entre comunidades distantes e entre um irmão solteiro que tem
142

irmãs solteiras com outro índio solteiro de outra comunidade que tem irmãs solteiras.
Havendo interesses mútuos, a troca seria exitosa.
Entretanto, essa prática não é usual, em comunidades urbanas, como na
aldeia Pataxó de Coroa Vermelha, na Reserva da Jaqueira, em Porto Seguro, e com
todos os parentes das outras comunidades próximas, pois os interesses ocorrem,
preferencialmente, entre pessoas da etnia Pataxó ou entre pessoas de ascendência
indígena.
Para além dos interesses culturais e étnicos, os integrantes da comunidade
se unirão aos colegas de trabalho, a alguém muito inteligente e atraente que
conheceram, ou à uma personalidade muito intrigante que os apaixonou,
exatamente como qualquer outra pessoa casadoira no resto do mundo. Esquecidos
os interesses econômicos, vale a lei do amor e do apaixonamento. O Pajé Itambé/
Alberto do Espírito Santo Matos gosta de
dizer que “o casamento leva o nome de
segurança, é um compromisso de respeito
ao outro que deseja uma união por amor”30.
E reafirma o valor da confiança nas
relações de casamento dizendo: “há muito
tempo é difícil encontrar alguém para
confiar. O difícil, hoje, é que quando
encontra de um jeito, não encontra de
outro”. (PAJÉ ITAMBÉM, 2017). Ele
insinua, dessa forma, que tanto um
pretendente como o outro pode ter
adquirido maus hábitos pela convivência
fora da aldeia. Assim, pode considerar
equivocadamente que a fidelidade seja uma
coisa banal.
Imagem 32 - Pajé Itambé Pataxó. Aldeia Urbana
de Coroa Vermelha, Santa Cruz de Cabrália, Bahia.
2/11/2017. Registro da autora, 2017.

30
Entrevista, em 23/10/2017, dada pelo Pajé que nasceu em 21 de novembro de 1934. É um dos anciãos
da Aldeia Urbana de Coroa Vermelha, em Santa Cruz Cabrália, na Bahia. E, perto dos seus filhos e
netos, que a toda a hora chegavam para tomar a bênção, ele concedeu essa entrevista.
143

Em conversa informal com uma jovem mulher Pataxó, no Shopping indígena


de Coroa Vermelha, ela relatou que os casamentos indígenas são para sempre, mas
que uma índia não precisa se sujeitar
a viver com um companheiro que a
maltrata. Portanto, se não tiver o
apoio da comunidade para se separar,
ela pega seus filhos e foge, mas não
fica aguentando maltratos.
Sobre tais atitudes o cacique
Syratã Pataxó/ Jucimar da Conceição
Carvalho, 28 anos, casado há 11,
afirma: “casamento de índio é para a
vida toda, até ficar maqueando”.
Rapidamente, ele percebe que a
entrevistadora não conhecia o termo
maqueando, e explica, “até fica
véinho”31.

Imagem 33: Cacique Syratã Pataxó. Reserva da Jaqueira,


Porto Seguro, Bahia. Patel, 2016.

A constituição das famílias ocorre muito cedo, pois, a partir dos 14 anos, um
índio Pataxó já considera que tem conhecimento suficiente para fazer tudo que é
necessário para manter uma família. Tanto ele como ela sabem caçar, pescar,
plantar, construir sua casa, fazer artesanato para vender e proteger sua família.
Depois que se entendem, pedem permissão ao cacique e constroem sua casa para
morarem juntos e seguirem as mesmas tradições dos pais, além de trabalharem
para se sustentar, isto é, fazer artesanato, plantar e fazer farinha.
Sobre isso o Pajé Itambé explicou “Quando os dois se interessa, os pajés e
os caciques percebe e vão logo palestrando com eles para ver se quer o
compromisso do casamento”.32

31
Entrevista em 24/10/2017, na Reserva Indígena da Jaqueira, Porto seguro, Bahia.
32
Entrevista em 3/11/2017, na aldeia urbana de Coroa Vermelha, Santa Cruz Cabrália, Bahia.
144

Atualmente, com o crescimento das aldeias urbanas, muitos índios são


direcionados para o trabalho formal em repartições públicas ou no comércio local.
Dessa maneira, também adquirem o hábito de casar mais tarde, depois que já têm
alguma estabilidade no emprego. Fato esse que deve acontecer a partir dos vinte e
cinco anos ou mais. A constituição da família costuma ser grande, com 10 filhos ou
mais. Os pais costumam se reunir com os filhos para contar histórias e tomar cauim,
bebida típica entre o povo Pataxó.
O Pajé Itambé cita com orgulho o nome dos filhos: Patiguri (Antonio),
Suturyana (Luzia), Pankarawê (José), Ubirajara, Ubiratã, Ubiraci, Ubiranã, Ubiraí,
afirmando que todos falam a língua natal Patxôhã e que só, nos últimos tempos, ele
conseguiu registrar os filhos com nomes indígenas33.
Em se tratando da parte legal e de reconhecimento civil percebe-se a
importância fundamental dessa cerimônia para estreitar o processo de coesão social
e afirmação identitária e considerando a especificidade da tradição cultural Pataxó e
as prováveis perdas que o choque entre as concepções de índios e não índios
podem acarretar, por isso, a seguir faz-se uma análise da união indígena à luz da lei
brasileira.
A história relata que até a década de 1940 era muito comum que os noivos
apresentassem declarações de testemunhas no lugar de certidões ou documentos
de identificação pessoais. De qualquer maneira, a habilitação de casamento é uma
fonte importante para os interessados em obter informações genealógicas de seus
ancestrais. Independente desse valor, a CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA
FEDERATIVA DO BRASIL DE 1988 faz referências aos direitos indígenas NO
TÍTULO III - "DA ORGANIZAÇÃO DO ESTADO", CAPÍTULO II, III e IV onde o seu
Artigo 129 trata sobre as funções institucionais do Ministério Público, entre elas
defender judicialmente os direitos e interesses das populações indígenas.
No Artigo 232 esclarece que “os índios, suas comunidades e organizações
são partes legítimas para ingressar em juízo em defesa de seus direitos e
interesses, intervindo o Ministério Público em todos os atos do processo”(BRASIL,
1988).

33Informações prestadas por entrevista em 23/10/2017, na aldeia urbana de Coroa Vermelha, Santa
Cruz Cabrália, Bahia.
145

Independente de ser índio ou não, existe uma documentação que é exigida


para dar entrada no pedido, assim como restrições legais e impedimentos como, por
exemplo, a idade mínima de 16 anos; ou para menores de 16 anos a lei exige uma
autorização judicial para poderem se casar oficialmente. No caso de maiores de 16 e
menores de 18 anos, os pais de ambos deverão assinar uma autorização permitindo
a realização do ato. Já os maiores de 18 anos são livres para casar sem exigência
de nenhum consentimento formal, que não o próprio desejo dos nubentes em se
unir.

Como vimos nos relatos orais e entrevistas de pessoas que vivem a cultura
Pataxó, os relacionamentos incestuosos são totalmente rechaçados na imensa
maioria das sociedades humanas, e entre eles não é diferente. Segundo a
Constituição Brasileira a proibição atinge parentes colaterais até 3º grau: é vetado o
casamento incestuoso entre irmãos unilaterais ou bilaterais. Chegando o
impedimento até o 3º grau como exemplo, tio casar com a sobrinha, levando-se em
consideração a ligação por laços afetivos inclusive.
As proibições mais graves estão relacionadas à pessoas já casadas, por
caracterizar crime de bigamia (artigo 253 Código Penal); ou também, cônjuge
sobrevivente com o condenado por homicídio, ou mesmo, por tentativa de homicídio:
é vetado o direito a um dos cônjuges casar com o assassino do cônjuge falecido.
Com relação ao local da realização do casamento civil, a lei exige que o
casamento no civil seja realizado em Cartório ou um local autorizado pelo Juiz de
Paz. A cerimônia deverá ser pública e na presença de testemunhas. Por exemplo:
se o casal quer casar em um sítio (ou numa Reserva Indígena), poderá realizar o
casamento no civil no mesmo local do religioso (ou cultural) desde que peça
autorização no Cartório e com a presença do juiz.
Estando tudo acertado entre os noivos, os pais dos dois, (o cacique, o pajé e
os outros parentes, no caso dos índios) as exigências e os documentos necessários
para o casamento no civil são: duas testemunhas maiores de 18 anos (não precisam
ser necessariamente um casal), conhecidas do casal e que estejam portando um
documento de identidade. Os documentos usuais exigidos para os solteiros são: o
documento de identidade com foto, CPF (original), certidão de nascimento (original);
os divorciados deverão acrescentar a certidão de casamento com averbação do
divórcio e lista com o nome e idade dos filhos do casamento anterior, se houver; os
146

viúvos deverão levar também certidão de casamento com averbação do óbito ou


certidão original do óbito, lista com o nome e idade dos filhos do casamento anterior,
se houver, e ainda poderá ser pedido o Formal de partilha.
As circunstâncias, os interesses de uma união matrimonial não se diferenciam
tanto de uma cultura para outra, talvez a maior diferença esteja nas exigências e
implicações legais, principalmente no que tange à heranças e posses de terra. No
presente trabalho será analisada somente a possibilidade de reconhecimento legal
dentro das leis vigentes no Brasil.

Da leitura do texto constitucional assim como do Código Civil em diversos


dispositivos (como os artigos 1514, 1517, 1565) se extrai que o casamento se dá na
união entre homem e mulher. Contudo, como ressalta GONÇALVES (2013), o STJ e
o STF alteraram a interpretação destes dispositivos para reconhecer aos nubentes
em relação homoafetiva a via do casamento civil, seguindo, assim, a interpretação já
sedimentada quanto à união estável.
Analisando ainda uma outra situação especial, que é o casamento
nuncupativo34 é possível que a autoridade celebrante seja suprimida, quando não for
possível obtê-la, nem a de seu substituto. Os próprios contraentes conduzirão o
matrimônio manifestando seu desejo perante 6 testemunhas, que com eles não
tenham parentesco em linha reta ou colateral, em segundo grau (art. 1.540). Essas
testemunhas devem comparecer dentro de 10 dias perante a autoridade judicial
mais próxima, pedindo que lhes sejam tomadas declarações a termo (art. 1.541).
Caso não compareçam, podem ser intimadas por qualquer interessado. Nas
declarações, as testemunhas afirmarão: I- que foram convocadas pelo enfermo; II-
que este parecia em perigo de vida, mas em seu juízo; III- que em sua presença
declararam os contraentes livre e espontaneamente receber-se por marido e mulher.
Por determinação dos parágrafos desse artigo, o juiz, com a oitiva do MP, procederá
às diligências necessárias para verificar se os contraentes poderiam ter-se habilitado
regularmente, ouvirá os interessados que o requereram dentro de 15 dias, para após
acolher ou rejeitar a pretensão. Será verificada a idoneidade dos cônjuges. Havendo
recuperação, o ato deve ser ratificado na presença do juiz e do oficial de registro em
10 dias, sem a necessidade das testemunhas. Caso nem as testemunhas nem os

34
Casamento nuncupativo, o artigo 1.539 dispõe a respeito do chamado casamento em caso de moléstia grave, que tem
por premissa o precário estado de saúde de um dos nubentes, com gravidade que o impeça de se locomover e também de
adiar a celebração. GAVIÃO, Fausto Carpegeani de Moura. Do casamento nuncupativo e do casamento em caso de
moléstia grave. Disponível em http://www.lfg.com.br. 18 de maio de 2009.
147

nubentes comparecerem perante a autoridade nesse prazo, o casamento não se


ratifica, tornando-se inexistente.
Por seu turno, o casamento religioso não gera qualquer efeito civil,
equivalendo ao concubinato. O casamento no Brasil é regido pelas leis civis, mas
admite-se que o casamento religioso tenha efeitos civis. Os raros casos de registro
civil de casamento religioso são os efetuados por autoridades religiosas em situação
de casamento nuncupativo. O art. 1.515 rege que o casamento religioso, que
atender às exigências da lei para a validade do casamento civil, equipara-se a este,
desde que registrado no registro próprio, produzindo efeitos a partir da data de sua
celebração. Os nubentes, devidamente habilitados, pedirão a certidão ao oficial, com
prazo de validade, para se casarem perante a autoridade religiosa (art. 71-Lei
6.015/73). O termo ou assento de casamento religioso, assinado pelos nubentes,
pela autoridade religiosa e por 2 testemunhas, conterá os mesmos requisitos do
assento de matrimônio civil, relacionados no art. 70-Lei 6.015/73. No prazo de 30
dias a contar da celebração, o celebrante ou qualquer interessado poderá requerer o
registro do casamento ao oficial do Registro Civil. Se os nubentes ou alguém por
eles não promover o registro, conclui-se que os desinteressaram dos efeitos civis do
casamento. Depois desse prazo, se os nubentes desejaram os efeitos civis, terão de
se submeter a uma nova habilitação e a uma nova celebração. No entanto, o STF dá
como existente o casamento com efeitos civis, se foi feita a devida habilitação
prévia. Há até quem dispense o registro para dar ao casamento religioso efeitos
civis, aplicando nesses casos o princípio in dúbio pro matrimonio. É permitido que a
habilitação seja feita após a celebração religiosa, contanto que os nubentes
apresentem ao oficial de registro toda a documentação necessária e a prova do
casamento religioso. Com essa documentação, serão publicados os editais. Não
havendo impedimentos, será lavrado o assento. Esse registro produzirá efeitos
retroativos à data da celebração do casamento. Quanto ao regime de bens, não
havendo pacto nupcial e silenciando o registro, prevalecerá o regime da comunhão
parcial.

Para melhorar a compreensão da formação familiar e como forma de registrar


a complexidade da festa tradicional que envolve o casamento em meio ao
Aragwaksã, no próximo capítulo far-se-á uma descrição de cada etapa da cerimônia
e com imagens que ilustram os detalhes.
148

4.0 CASAMENTO CULTURAL PATAXÓ (ANEMÃVÊY)

Imagem 34 - Casal de noivos. Reserva Indígena Pataxó da Jaqueira, Porto Seguro, Bahia, 2008.
Patel, 2008.

Os fatos aqui apresentadas mostram a sequência de atos de um Casamento


Cultural35, da etnia Pataxó, localizada no Município de Porto Seguro, mais
especificamente, na Reserva Indígena Pataxó da Jaqueira.
O Casamento Cultural Indígena Pataxó obedece a várias etapas, desde o
enamoramento, as provas que o noivo deve cumprir, a aprovação do pajé e do
cacique, a comunicação aos pais, até o real enlace, a celebração tradicional com
toda a pompa e circunstância e, finalmente, a festa de comemoração.

4.1 Enamoramento

Como acontece com jovens de qualquer comunidade humana, ao entrarem


na adolescência, começam a andar em grupos e a se interessar por amizades cada
vez mais próximas, até essas relações se transformarem em compromisso.

35 Casamento Cultural é assim denominado por ser aberto à assistência de não indígenas, termo que

deixa evidente a necessidade de um outro tipo de cerimônia, quer seja civil ou religiosa, restrita ou
não à comunidade Pataxó.(Nota da autora)
149

Na comunidade Pataxó, ocorre igualmente esse interesse e os jovens contam


que tudo acontece de forma natural, num cortejo que beira a ingenuidade, pela
sutileza das etapas em que se desenvolve.
Ao se interessar por uma moça, o rapaz esconde-se na mata e joga pedrinhas
no caminho da sua escolhida para chamar sua atenção. Se ela aceitar a corte, irá
retribuir o gesto e se entender com seu pretendente por olhares. Assim contam
Jaguarari (2004), Juari (2005), Nitynawã (2009) e Indiara (2015), nas palestras
organizadas no Kijemi Grande, para os visitantes que vêm conhecê-los na Reserva
Indígena Pataxó da Jaqueira.

Imagem 35 - Orquídeas da Reserva Indígena Pataxó da Jaqueira, Porto Seguro, Bahia. Patel, 2008.

Num outro momento mais adiante, ele irá procurar a flor mais bela que
encontrar para oferecer à sua escolhida Se aceita, estará selado um compromisso
entre eles. Depois que o casal se entende, os dois vão conviver discretamente nas
atividades da comunidade, até chegar o momento de falar com o Pajé. Este será
procurado para conversar com os noivos, aconselhá-los e cumprir seu papel que é o
de comunicar o casamento aos pais deles.
Takwara Pataxó, anciã da aldeia, atualmente com mais de noventa anos,
conta que “de primeiro ninguém se casava, se juntava e ia morar junto”, dando a
entender que não havia necessidade de registro civil para que uma união fosse
reconhecida pela comunidade. Perguntada sobre o ritual, ela esclarece: “era
150

igualzinho ao que a gente vê hoje no Aragwaksã”. E complementa citando sua


própria história: “eu tinha por volta de 15 anos”36.
Tudo isso pode ocorrer muito cedo, visto que, aos catorze anos, um menino
Pataxó já é considerado preparado para formar e prover uma família. Sabe caçar,
pescar, trançar cestos e objetos de palha, esculpir objetos de madeira, conhece os
caminhos dentro da mata, as plantas comestíveis e curativas, domina sua cultura,
sabe construir seu próprio kijemi e deve ter condições de proteger sua mulher e seus
filhos.
Nas fotos da cerimônia registrada em imagens, os noivos passaram dessa
fase adolescente, pois sentiram necessidade de estudar, devido aos compromissos
sociais e intertribais, dos quais fazem parte.

4.2 As provas de proteção, força e sobrevivência

Após todos os consentimentos e acertos para o casamento, o noivo tem que


cumprir três provas e demonstrar que está apto para o casamento. Essas provas
fazem parte integrante do ritual do casamento.
A primeira prova é construir seu próprio kijemi, tarefa que demanda retirar a
madeira da mata, respeitando as árvores sagradas do seu povo, montando e
trançando as paredes de forma que o contorno das paredes fique circular, e
preencher com “supapo” de barro, como é o costume, colher a palha e desfolhá-la
para fazer a cobertura tradicional. Como a cozinha da aldeia é comunitária, a casa
só precisa ter espaços de descanso para guardar material de trabalho e objetos
pessoais. Essa etnia não costuma usar redes. Geralmente, os indígenas preferem
fazer “taipas” com galhos em 3 níveis que são usadas cobertas com colchões e
proporcionam um pouco de conforto para os habitantes. No primeiro nível, dormem
os idosos, mais perto do fogo, que fica num buraco central no chão. No segundo,
ficam os adultos, zelando pela porta e vigiando contra a entrada indesejada de
animais nocivos à saúde. No andar de cima, perto da cobertura, dormem as
crianças, protegidas por um cercado e pela fumaça de “amesca” que afasta os
insetos.

36
As três informações foram dadas pela anciã em entrevista datada de 24/10/2017, Reserva da
Jaqueira, Porto Seguro, Bahia.
151

Imagem 36 - Moradias na mata da Reserva Indígena Pataxó da Jaqueira, Porto Seguro, Bahia, 2010.
Registro da autora, 2010.

A segunda prova que o noivo tem de cumprir para poder casar é caçar um
animal na mata. Essa prova significa que o guerreiro é capaz de sustentar sua
família. É um ritual ancestral e simbólico, mas de qualquer maneira define a
importância do homem suprir as necessidades alimentares de sua família. Nessa
caçada, normalmente o noivo mata um porco (ou outro animal disponível), que é
cercado por outros guerreiros que ajudam na tarefa, na morte e na comemoração ao
final da empreitada, carneando o animal, que fará parte dos petiscos assados na
brasa e ofertados aos convidados. Os jovens guerreiros Pataxó perseguem e
tangem o animal, acompanhando e protegendo o noivo, ajudam-no a carregar o
animal e, depois de morto e apreendido, vêm cantando pelas trilhas da mata,
anunciando a realização de mais uma prova.
Perguntados o que aconteceria se o noivo não conseguisse cumprir a prova,
eles entreolham-se e riem... mas não respondem. Apesar dos anos de convivência,
algumas vezes surge a dúvida se não seria um desrespeito à valentia dos guerreiros
levantar tal hipótese.
152

Imagem 37 - Animal caçado e morto como prova de habilidade do noivo em caçar e alimentar sua
família. Patel, 2008.

A terceira prova do noivo para firmar seu compromisso com sua pretendida é
carregar um tronco de árvore no ombro, pelo menos por duzentos metros.
Normalmente, essa tarefa é desempenhada correndo por espaços que podem ter
ladeiras, vegetação fechada ou córregos. A prova deve simular uma situação de
fuga, em que o guerreiro precise colocar sua mulher no ombro e correr com ela para
colocá-la a salvo de algum perigo. O tronco deve ter o peso semelhante ao da noiva,
e, de forma empírica, o tronco é colocado em equilíbrio sobre outra base e
contrabalançado com a noiva. Depois de pesado e medido, o tronco é pintado e
decorado para a cerimônia. Portanto, cada tronco é específico para cada noiva e
cada casamento.
153

Imagem 38 - Noivo carregando a tora, acompanhado de outros guerreiros, na terceira prova, para
firmar compromisso com a pretendida. Reserva da Jaqueira, Porto Seguro, Bahia. Patel, 2008.

Na imagem, Kakusú37, o noivo, carrega o tronco para o kijemi grande


acompanhado de outros guerreiros38, na Reserva da Jaqueira, Porto Seguro, Bahia.
Essas provas simbolizam a capacidade que o guerreiro (Xohã) 39 Pataxó tem
de abrigar e alimentar sua família, proteger sua “jokana”40, em caso de fuga ou
conflitos, por isso a mulher é representada pelo tronco de árvore. Essas duas
últimas provas são realizadas horas antes do casamento e conta-se aos visitantes
que, caso o noivo não consiga cumpri-las, o casamento não se realiza, mas isso
nunca aconteceu. Nitynawã sempre narra a história desse costume de seu povo, e
sua mãe, Takwara dá seu testemunho:

Eu era gorda quando casei. Ele garantia a mulher se carregasse a


tora para subir e para descer. Catarino, o marido, pescava muito bem
no mar e alimentava a família, trocava (a pesca) por farinha e aipim 41.

37
Kakusú - termo em Patxôhã para designar home, moço, rapaz. (Nota da autora).
38
Nos arquivos da autora constam vídeos com as danças e cânticos que acompanham o momento da vitória do
guerreiro sobre a caça e apresentação da presa para a comunidade que aguarda no terreiro central inquieta
para testemunhar os resultados.
39
Xohã – guerreiro na língua nativa Patxôhã. (Nota da autora).
40
Jokana – termo em Patxôhã para designar mulher, moça ou esposa. (Nota da autora).
41
Entrevista, dia 24/10/17, dada por Taquara/Ana da Conceição, 97 anos, anciã da aldeia.
154

Kapimbará, primo de Nitynawã, nasceu e cresceu em Barra Velha, uma das


aldeias tradicionais do povo Pataxó. Ele observa as diferenças que ocorriam nas
provas antigamente e compara:

O Pataxó era um povo pequeno, mas agora tem a mistura com outros
povos, a alimentação mudou, as mulheres engordaram –a índia era
franzina- o peso maior era de 50 kg. A prova do tronco era muito
importante, era uma prova de resistência (para provar) que você
carregaria a sua esposa nas costas para as situações de fuga. Mas
agora a prova do tronco se tornou uma dificuldade, pois o índio não
aguentaria carregar duas tora nas costas 42.

Imagem 39 - O noivo no momento da entrega da tora. Reserva Indígena Pataxó da Jaqueira, Porto Seguro,
Bahia. Patel, 2008.

A foto acima mostra Kakusú Pataxó, o noivo, que ainda carrega o tronco
pintado e decorado por ele próprio e que serviu como peso simbólico na prova de
resistência, representando sua noiva e sua capacidade de carregá-la em
necessidade de possível fuga de perigos, em prova realizada no dia de seu
casamento em 2008.

4.3 A noiva

42
Kapimbará Pataxó/ Amilton Alves dos Santos, 58 anos, comerciante local, em entrevista dia
3/11/2017.
155

Iniciam-se os preparativos de ornamentação da noiva, que pode ser pintada


de branco, com os desenhos étnicos tradicionais dos Pataxós e, por cobertura, os
traçados com tinta de jenipapo como manda o costume. Durante os festejos, cada
participante do povo Pataxó, parentes e convidados se arrumam e se enfeitam à sua
maneira para as comemorações. Nas imagens a seguir, a noiva está sendo pintada
para a cerimônia nupcial.

Imagem 40 - Arissana pintando a noiva para a cerimô-


nia. Patel, 2008.

A noiva escolhe as cores da plumagem que irá enfeitar seu cocar e outros
enfeites. Os adereços combinam preferencialmente com os das crianças e dos
jovens que irão formar o seu cortejo para a chegada no local da cerimônia. Essas
kytoki 43 e jovens jokanas usam cores iguais ou semelhantes, todas com cocares,

43
Kytoki – termo em Patxôhã para crianças, filhos
156

“tupysay”44 e adornos de colorido semelhante para engrandecer a alegria da noiva.


Nesse caso, a cor escolhida foi o vermelho (cor preferencial do povo Pataxó) para a
noiva e verde (que simboliza a natureza e a floresta) para as jokanas que farão parte
do cortejo que acompanhará a noiva em sua entrada por entre a mata até o kijemi
grande, onde irá se realizar a cerimônia das trocas de cocares, a Bênção do Pajé e
dos guerreiros e a mudança da pintura facial, que irá selar a união matrimonial.

Imagem 41 - A chegada da noiva e seu cortejo no kijemi grande. Patel, 2008.

O noivo também é pintado por seus amigos, que se esmeram em detalhes com
traços finos, cobrindo quase todo o corpo. Aofinal, seguem todos pela mata para o
awê45 no kijemi grande ou Aragwá.

44
Tupysay - Vestimenta Pataxó feita de piaçava com longas franjas no qual o cinturão costuma ser de contas
vermelhas ou pode ter desenhos com linhas que se cruzam formando losangos, bordados em vermelho, preto
e branco ou com franjas. .
45
Awê – combinação de canto e dança, no qual o canto muitas vezes é a duas vozes, com o acompanhamento
do som de chocalho (maracá), tocados para este fim apenas por homens. Normalmente o compasso é binário e
as músicas são cantadas em Patxôhã, o que fortalece a união do povo no uso da língua mãe.
157

4.4 Aragwá

No centro do local do casamento, o kijemi grande, é montado um “altar” com


objetos sagrados e símbolos que abordam as questões do momento e as cores do
povo Pataxó.

Imagem 42 - Centro do Aragwá, altar montado para o casamento, com ob-


jetos sagrados e símbolos. Patel, 2008.

Nesse dia, em 2008, havia as pedras que simbolizavam as terras indígenas;


duas esculturas em madeira, representando os noivos; e o tronco que foi utilizado
para cumprir a prova de capacitação do noivo à subsistência da família. Em torno
desse “altar”, ocorre o incensamento para purificação dos noivos e dos convidados,
a troca de cocares, as bênçãos dos pajés, a oração dos guerreiros. A finalização do
ritual acontece com o Awê (dança) que circula e se desenrola em volta do centro.
158

4.5 O Pajé

]
Imagem 43 - Kamaywrá incensando o local da cerimônia no Aragwaksã. Reserva Indígena Pataxó da
Já-queira, Porto Seguro, Bahia. Balmukund Niljay Patel, 2008.

Seguem-se as bênçãos dos caciques simbolizadas pelo compartilhamento do


cachimbo e as bênçãos do Pajé através do incensamento dos presentes. Os pajés
têm vários papéis na comunidade indígena e isso também vai variar de acordo com
as habilidades manifestadas desde criança.
A esse respeito, referindo-se a um fenômeno mais global, Weber (1971)
esclarece:
O líder carismático ganha e mantém autoridade exclusivamente
provando sua força na vida. Se quer ser profeta, deve realizar
milagres; se quer ser senhor da guerra, deve realizar feitos heroicos.
Acima de tudo, porém, sua missão divina deve ser “provada”, fazendo
que todos os que se entreguem fielmente a ele se saiam bem. Se
isso não acontecer, ele evidentemente não será o mestre enviado
pelos deuses. (apud SENNA, 2014, p. 157).
159

O pajé pode ter uma habilidade nata para conhecer as plantas e saber sobre
o seu poder curativo e forma de utilizar, onde plantar, em que lua colher, qual parte
usar (folhas, raízes, frutos, casca) e também a forma de obter o elixir curativo (chá,
pomada, unguento, incenso etc). Essa mesma entidade pode proferir rezas e
bênçãos em língua sagrada, usando folhas verdes ou incensos para afastar maus
presságios ou energias de pouca vibração.
Sobressai o questionamento sobre o processo de escolha de líderes
religiosos nas aldeias, e, instintivamente, eleva-se o termo mágico, pois remete tanto
à ideia de sagrado como à sabedoria botânica ou aos mistérios das dores que
afligem as almas. São esses mistérios que impõem limites do que um pesquisador
sabe e deve respeitar, e sobre tais assuntos não lhe será permitido perguntar.
Portanto, simplesmente aceita-se que:

As qualidades do mágico – não é o mágico quem quer: há qualidades


cuja posse distingue o mágico do comum dos homens. Umas são
adquiridas, outras são congênitas; há as que lhe são atribuídas e
outras que ele possui efetivamente.(MAUSS,1974, p. 57)

O pajé ainda poderá utilizar seus atributos longamente desenvolvidos de


sabedoria e ciências sagradas para ser uma espécie de juiz ou conselheiro que age
ao lado do cacique em situações difíceis. Será imbuído de todos esses poderes que
o pajé, a pajé ou os pajés formularão as bênçãos do matrimônio.
Seguem-se as bênçãos dos caciques simbolizadas pelo compartilhamento do
cachimbo46 e as bênçãos do Pajé, que faz a purificação dos parentes e convidados
presentes pelo incensamento com as ervas sagradas e aromáticas.

4.6 A cerimônia de casamento

Quando todas as exigências forem cumpridas, acordado com o cacique e o


pajé, a comunidade se reúne com os convidados de outras aldeias e outras etnias

46
Syratã explica que o fumo do cachimbo é composto por sálvia, capim de Aruanda e amesca. Amesca provoca
fumaça suave que não faz chorar. Kanatxio, parente de Minas Gerais, contou em visita, que havia uma linda
índia, branquinha, filha do cacique, e muitos queriam casar com ela. Durante a cerimônia de casamento dela, o
pajé avisou que ela não conseguiria engravidar. Quando ela engravidou, eram duas crianças. Na hora do parto,
ela teve que escolher entre a vida dos filhos ou a dela. Sem hesitar, ela optou pela vida dos filhos. Ela foi
enterrada próximo à aldeia, e, relata-se que no local nasceu uma planta cuja resina queima sem irritar os olhos,
pois ela morreu em prol dos filhos, sem arrependimento. O fruto tem sementes gêmeas e a resina é conhecida
como resina da felicidade, pois não provoca choro. SIRATÃ, relato oral em 03/11/2017.
160

(que são chamados de parentes), incluindo a etnia branca (também chamados de


não índios), e promovem a cerimônia, que, atualmente, é denominada de
Casamento Cultural Pataxó.
O Pajé profere as bênçãos, faz os sinais do casamento, incluindo a troca de
cocares entre o noivo e a noiva, um dos atos simbólicos da cerimônia, acompanhada
de orações na língua mãe, que se chama Patxôhã, na etnia Pataxó.
Os funcionários da FUNAI presenciam todas as cerimônias e registram-nas
em um livro, conforme constam nos anexos B, C, D, E, F, G e H.

Imagem 44 - Syratã desenha os sinais sagrados que firmam o compromisso do novo casal.
Reserva Indígena da Jaqueira, Porto Seguro, Bahia, 2008. Patel, 2008.
161

Imagem 45 - Cerimônia da troca de cocares. Reserva Indígena da Jaqueira, Porto Seguro,


Bahia. Patel, 2008.

Em seguida, haverá as orações em grupo, cuja dinâmica pode variar um


pouco, a depender de quem ministra a cerimônia.

Imagem 46 - Momento da bênção dos guerreiros para a felicidade dos noivos. Kijemi Grande, 2008.
Patel, 2008.
162

Imagem 47 - Jaguatiri Pataxó compartilhando kawí com os guerreiros depois da Bênção. Patel, 2008.

Imagem 48 - Casamento duplo realizado durante o Aragwaksã de 2016 por Naiara Pataxó (com o
cocar de papagaio). Patel, 2016.

Após as juras entre os noivos e as bênçãos de caciques de outras aldeias, o


pajé profere o aconselhamento final. O ritual culmina com os cantos e a dança dos
guerreiros Pataxó. Em seguida, convidam o restante dos componentes da aldeia e
convidados em geral para dançar o Awê, em comemoração ao casamento.
163

Imagem 49 - Dança que encerra a cerimônia matrimonial. Patel, 2008.

4.7 Ritual de canto e dança – Awê

O Awê é feito com muita alegria para trazer sorte aos noivos. A roda do
casamento tem uma formação diferenciada, pois normalmente vão os homens na
frente marcando o compasso com o maracá e, em fila circular, seguem as mulheres
e as crianças. Nesse caso, a formação foi em pares, onde todos cantaram e
dançaram, juntamente com os convidados voluntários que entraram no final da fila.
Pode-se observar que, quando os mais jovens guerreiros dirigem as danças,
elas tomam uma conotação lúdica que acelera o passo para que os outros, que
veem atrás, não possam acompanhar o ritmo, o que provoca muitos risos entre
participantes e os assistentes.
O ritmo vem marcado pela batida do pé na terra e do maracá, num compasso
binário, que pode parecer monótono ao observador, mas o contato do pé descalço
com o solo proporciona aos que dançam uma sensação de organização da vida, de
expulsão de males, de calor e acolhimento, de união grupal e harmonia, nem
sempre percebida, nem sempre experimentada, mas certamente nunca totalmente
explicável.
Escobar (1993 apud Menezes, 2009, p. 230), em abordagem sobre outras
etnias, classifica a dança indígena como arte, e traça um paralelo com as
manifestações dançantes de outras etnias,
164

[...] definindo esse tipo de sociedade com a-moderna. Dessa forma,


essa arte não cumpre os requisitos da genialidade individual, tão
pouco é vista como fruto de uma criação individual absoluta, mas
representa gestos e imagens de uma experiência coletiva, totalmente
entrelaçada na tradição cultural.

Menezes (2009), analisando a dança como elemento de identidade grupal,


situa “a perspectiva da dança indígena como inversa à concepção moderna ou
contemporânea da dança ocidental” (p.230). Obviamente, não é possível
compreender a dança indígena, dentro dos liames das concepções da dança
contemporânea; mesmo que se tratasse de dança de rua, não existiria
aproximações dado ao caráter coletivo da execução, ou pelo contexto cosmológico
que a envolve.
Conhecer a movimentação corporal, a definição de passos, a estrutura da
dança significa conhecer a organização da vida, no modo de ser do povo Pataxó.
Conforme Laban (1978 apud Menezes, 2009, p. 231) “pode-se perceber o quanto o
ritmo de movimentos reflete o ritmo de situações”. Os passos da dança que pode ser
apreciada cotidianamente na Reserva da Jaqueira têm resistido ao tempo e às
variações, sem deixar de receber acréscimos, pois novos cantos permitem novos
passos. Menezes (2009, p. 231) complementa salientando que

[...] os passos da dança são contínuos e rítmicos. Existe uma


concentração de energia que sugere que as pessoas devem dançar e
dançar sem parar. Há uma educação para o equilíbrio e uma
constância no ato de caminhar e na existência coletiva.

Pode-se claramente identificar dois momentos diferentes da dança Pataxó,


um ritualístico, de caráter religioso; e outro, mais profano, de apresentação aos
visitantes e turistas, nos quais eles demonstram a dança para a divulgação de sua
identidade étnica e, automaticamente, para dar visibilidade à sua cultura tradicional.
A dança, da forma como é conhecida, guarda forte ligação com a música.
Mas o que dizer da música indígena? Se houve um triângulo étnico que formou o
povo brasileiro, o branco, o negro e o índio, na música só restaram dois vértices.
Não houve espaço para o índio na mestiçagem que esteve na base da formação da
música brasileira. Menezes de Castro (apud TUGNY; QUEIROZ, 2006, p. 115)
pergunta: “qual o nexo dessa perda ou esquecimento?” se o reconhecimento da
165

influência indígena vai da língua falada à alimentação, à religião, passando pela


genética, outros universos e domínios do conhecimento.
No primeiro contato, pode ser paralisante, pelo ritmo do maracá e da batida
dos pés no chão. Depois se torna hipnótico, com as franjas dos tupsay e as plumas
dos cocares balançando em círculo. A seguir passa a ser terno, pois kitoky bem
pequenos acompanham a roda. E, finalmente, passa a ser surpreendente porque
eles nos chamam a entrar na dança e compartilhar o ritmo binário da Awê. Mas
como descrever o que acontece depois? TUGNY e QUEIROZ (2006, p.19) descreve
assim:

Daí tudo é movimento (acontecimento) e só o compreendemos,


mesmo que de forma efêmera e parcial, se paramos em algum
instante. O que é a música? Ela não é apenas simetria, regularidade,
fundamento, composição, mas também a fluidez das ténuités das
vibrações sonoras que se opõem às perenidades arquiteturais. É
forma e energia (Désesquelles,2000). Mas, ela, a música, ainda é
mais que isso, é ritual. E ritual é a suspensão de um tempo vivido:
performance daquilo que o mito, a arte ou a ciência, cada qual com
seus instrumentos, aspiram a realizar: ordenar, estruturar a matéria e
o pensamento... A música, assim como disse Lévi-Strauss (1967:24),
é um dispositivo de obliterar o tempo... “A audição da obra musical,
em razão de sua organização interna, imobilizou, portanto, o tempo
que passa: como uma toalha fustigada pelo vento, atingiu-o e dobrou-
o. De modo que ao ouvirmos música, e enquanto a escutamos,
atingimos uma espécie de imortalidade.” A música, o ritual, não são
nada mais que movimento e, sabe-se, “cada coisa ao mover-se, num
momento ou outro, aqui e ali, marca um tempo de paragem.

O momento presenciado escapa a todas as tecnologias do mundo moderno,


suas máquinas de captar imagens, áudios e outros registros sonoros, mas elas não
gravam o invisível, o indizível, o inefável vazio que fez o tempo parar, “tão essencial
para o mundo do sensível” (LÜHNING APUD TUGNY; QUEIROZ, 2006, p. 18).

4.8 Mãgutxi e Goyá

Após as comemorações com os parentes e convidados, são servidas iguarias


da alimentação tradicional, que, na sua língua, denomina-se mãgutxi47 e acompanha
o goyá48, que é a bebida, nesse caso a bebida tradicional chama-se kawí49.

47
Mãgutxi- palavra na língua Patxôhã para designar alimentação.
48
Goyá – palavra na língua Patxôhã para designar bebida.
49
Kawí – bebida tradicional indígena feita da fermentação da raiz de mandioca triturada (nota da autora)
166

O almoço de casamento é oferecido dentro das condições financeiras da


família dos noivos. A preferência deles é um churrasco de carne bovina, mas nem
sempre é possível oferecer uma refeição rica e farta para um número de visitantes,
que gira em torno de quinhentas pessoas.
O Aragwaksã é uma festa muito concorrida, não apenas com a visita de
parentes das aldeias próximas, mas convidados não índios e de outras etnias
distantes. Então, para alimentar todos, pode oferecer uma refeição mais corriqueira,
como um feijão bem temperadinho com arroz, ou uns espetinhos, onde cada um
encosta no fogo e assa o seu.
Historicamente, o povo Pataxó sempre esteve próximo ao litoral, devido a isso
desenvolveu um gosto quase unânime por mariscos e peixes. Eles se divertem
comendo caranguejos ou separando as espinhas dos peixes para comer. O peixe é
assado na folha da patioba, que libera uma resina quando vai ao fogo,
proporcionando à carne do peixe um sabor suave e muito apreciável. Normalmente,
para acompanhar o peixe assado, é servida a farinha de mandioca, de textura
grossa. Essa farinha é mais fácil de pegar para aqueles que têm o hábito de
amassar a comida, fazer um bolinho e comer sem o apoio de talheres.
Na imagem, veem-se algumas gamelas de madeira com beijú50 de carimã,
assados nas folhas de bananeira; o sabor lembra a mandioca da qual é feita, mas é
suave e levemente adocicado.

Imagem 50 – Beijú. Patel, 2008.

50
Beijú – iguaria feita com uma das variedades de farinha de carimã, derivada da mandioca e leite de côco,
depois assada no fogão.
167

Tempass (in SILVA, 2009) lembra que “nada mais elementar para o ser
humano do que a alimentação, afinal é através dela que são ingeridos os nutrientes
essenciais à sobrevivência de qualquer ser vivo” (p.133). Some-se a isso o fato de
que “cada ser humano dedica entre quinze a vinte por cento da sua vida para o ato
de comer”. (TEMPASS, 2009 in SILVA 2009, p.133) São necessárias muitas horas
de trabalho para plantar, colher, armazenar, comercializar, sem falar do tempo de
preparação, consumo e limpeza dos utensílios. Dessa forma, um alto percentual dos
salários das pessoas é revertido na compra de alimentos previamente limpos,
preparados ou mesmo prontos e congelados. Embora essas tarefas sejam
corriqueiras, não podem ser consideradas banais, visto que extrapola em muito sua
função nutricional.
“Nós, humanos, exclusivamente possuímos a faculdade de simbolizar. Nós
atribuímos sentido a tudo, inclusive à comida.” (TEMPASS, 2009, p.133). Dessa
forma, é possível afirmar que “não nos alimentamos apenas de nutrientes, mas
também de imaginário” (Fischler,1995 apud TEMPASS, 2009, p.133). Assim, o ser
humano, ao comer, cumpre uma série de regras, das quais nem se dá conta pela
natureza inconsciente que esse costume vai assumindo ao longo do tempo. É a
função simbólica da alimentação que explica o fato de não comermos tudo. Apesar
de sermos onívoros, o ser humano se alimenta apenas com uma restrita parcela dos
alimentos biologicamente possíveis de consumo, porque muitos deles não são
culturalmente aceitáveis.
Nesses termos, essa função nutricional foi sendo eleborada ao ponto de o ser
humano ser o único animal que cozinha. A culinária transforma o alimento cru da
natureza, em comida, culturalmente elaborada. E “como todas as sociedades
humanas desenvolveram formas de preparação dos seus alimentos, pode-se afirmar
que a cozinha é um elemento universal” (MACIEL, 2001 apud TEMPASS, 2009,
p.134).
Baseada nessa ideia, cada cultura, entendida como um sistema simbólico,
apresenta uma culinária específica. Segundo Mauss (1974), ela perpassa todos os
elementos do sistema cultural, estando relacionada à saúde, à cosmologia, à
reprodução e à divisão de tarefas. O autor recomenda o método etnográfico para
assimilar as práticas alimentares de forma holística. (HERNANDEZ E ARNÀIZ, 2005)
apresenta alguns trabalhos, como o da horta, para informar, por exemplo, que
homens e mulheres trabalham juntos, de igual para igual. Com relação à caça e à
168

pesca, são tipicamente masculinos, enquanto que cozinhar normalmente cabem às


mulheres. Donde concluímos que é melhor não alterar qualquer elemento do
sistema alimentar de um grupo, pois é provável que provoque alterações no sistema
como um todo. Semelhante a isso, na culinária, pode-se afirmar que “a mudança de
práticas alimentares modifica a cultura como um todo”. (TEMPASS, 2009, p.135).
Dessa forma, a culinária é utilizada como um ícone de contraste entre uma
cultura e outra. “Ela é um “distintivo” grupal” (p.136). O autor destaca a culinária
Mbyá-Guarani, a qual ele estudou, porém o caráter holístico da alimentação,
naquela comunidade, se assemelha amplamente ao observado entre o povo Pataxó.
As duas culinárias apresentam um caráter holístico, isto é, uma intrínseca
dependência com os demais elementos sutis que constituem a sua cultura.
(TEMPASS, 2009 in SILVA, 2009, p.136) Devido a essa interdependência, que
vários autores consideram “um dos mais importantes traços culturais. E um dos mais
fortes também... Até ser o último a desaparecer”. (p.136)
Observa-se que mesmo os grupos aldeados no entorno de grandes
metrópoles, frequentemente em áreas territoriais reduzidas, têm dificuldades para
produzir seu alimento e conseguir as condições apropriadas de manter seu “modus
vivendi” indígena. Seria necessária uma boa extensão de mata, que proporcionasse
coleta e caça, assim como rios para pescar e terra fértil para plantar. Não é o caso
dos Pataxó do sul da Bahia, que conseguiram o reconhecimento de larga extensão
de terras, mas, nem por isso, há produção de alimento suficiente, que permita
dispensar compras no comércio próximo.
169

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Nos barrancos desse meu rumo


Me aprumo na incompletude
Chorando com as dores do mundo
Sorrindo na graça de sua magnitude
Pelejando com a pomba da paz
E pela nobreza de nossa dignitude.
Miguel Almir, 2017, p.11

A proposta que delineia esta pesquisa foi inicialmente impulsionada por Jerry
Matalawê, nos idos de 2004, quando ele questionava o papel das Universidades,
que estimulavam a pesquisa na área indigenista, mas no decorrer da pesquisa,
unicamente se serviam dos dados coletados, faziam seus trabalhos, obtinham seus
títulos e não se propunham a proporcionar nenhum retorno ou qualquer benefício
para as aldeias ou os índios. Por outro lado, Nitynawã, em setembro de 2006,
questionava a estranheza dos turistas e visitantes pelo fato dos índios quererem
usar calça jeans, andar de carro, morar na cidade e assistir televisão. Sem entender
o posicionamento dos não-índios, ela argumentava, de forma singela, que os índios
também eram gente, que também queriam chuveiro quente e cama macia. Com
base nesses dois testemunhos, a pesquisa tornou-se um desafio válido e compatível
com a linha de pesquisa ofertada pela Unisinos a partir de 2014.

Naquele momento, era preciso estreitar laços com os moradores das aldeias
de Coroa Vermelha, onde ficava a Escola Indígena, que havia sido o primeiro
contato, e, a seguir, a Reserva da Jaqueira, onde seus habitantes ofereciam mostras
de cultura variada a cada visita semestral. A sequência de tarefas da pesquisa
sugerida pela metodologia etnográfica exigiria uma convivência diária, que
possibilitasse muita observação, registros de imagens, entrevistas, assim como sons
e imagens em movimento. Para cumprir essa etapa seria necessário morar próximo
ao campo de pesquisa.

A partir do primeiro seminário de pesquisa em 2015, o roteiro foi posto sob


apreciação acadêmica e delineou-se o recorte temático, com a evidência
preponderante do Araguaksã. Tomada essa decisão, não seria mais necessário
morar em Porto Seguro, visto que a festa só ocorre no dia 1º de agosto de cada ano.
Bastava apenas manter o contato firme, com visitas frequentes e entrevistas
170

dirigidas aos “mais velhos”. As circunstâncias determinaram uma mudança de rota,


embora fosse evidente a permanência da opção etnográfica, que desde o início
mostrou-se como o método mais adequado, por sua flexibilidade na aproximação
entre a pesquisadora e os pesquisados.

Julgou-se apropriado o uso de representações iconográficas como parte do


texto como forma de compor a contextualização de espaços e personalidades que
se destacam na cena da pesquisa, numa tentativa de mostrar a diversidade entre os
indivíduos do próprio grupo e suas representações étnicas particulares, pois na
maior parte do tempo são pulverizados na imagem de um tipo indígena ideal e único.
O trabalho de selecionar as imagens, teve o cuidado de preservar, o máximo
possível, a historicidade dos processos e dos lugares representados, os
protagonistas delas, seus fazeres e construções culturais (tradicionais ou
ressignificadas) e das apropriações que delas se fez ou se faz. Assim, essas se
transformam em subsídios palpáveis de um tempo histórico para que historiadores e
pesquisadores possam levar avante a luta intensa e pacífica de reconhecimento
cultural, visto que tais subsídios podem ser cotejados como qualquer outra fonte
histórica.

A pesquisa etnográfica que funda esse texto registrou o povo Pataxó das
comunidades da região sul da Bahia, especificamente do entorno de Coroa
Vermelha e da Reserva da Jaqueira, atuando como protagonista de sua
historicidade numa conjuntura de relações interétnicas, muitas vezes por força das
atividades de etno-turismo, que pesa na escolha de atividades lucrativas na região e
praticamente os obriga a conviver com pessoas de muitos países diferentes e por
consequência, muitas culturas diferentes. Esse fato os beneficia temporariamente
pela entrada de numerário que os ajuda na manutenção de suas despesas básicas,
mas também os prejudica pela conotação de serviço, que são obrigados a cumprir,
por necessidade de “mostrar” seu modo de vida, reafirmar sua cultura e repetir a
cada novo contato, suas bases culturais e a reafirmação de sua identidade étnica
numa tentativa, nem sempre exitosa, de evitar a discriminação e a curiosidade
invasiva do olhar do “outro”.

O problema moderno da alteridade está creditado à chegada dos portugueses


e espanhóis ao continente americano, onde o outro é o ameríndio. O outro não é o
171

europeu que chega na América, a batiza com seus nomes, em sua língua e a invade
com suas armas, seus costumes e sua prepotência. O outro, na visão do invasor,
passa a ser o habitante nativo, o dono das terras, donde tira sua subsistência, que
preserva com sabedoria milenar e considera sagrada. Os colonizadores usaram toda
a força do etnocentrismo, trataram os povos indígenas do Novo Mundo como seres
inferiores e aculturados. Os termos degradantes, para designar os índios,
encontrados na historiografia clássica brasileira e outros escritos da época,
envergonham qualquer pesquisador atual. Tal imagem negativa se deve ao período
da colonização, e a consequente emergência em ocupar e povoar a terra recém
descoberta, permitindo-se pregar sua própria superioridade racial e cultural.
Destaque-se o espírito de guerra, que se instalou então e como as onças, cobras
venenosas e jacarés, paralelamente aos índios foram tratados da mesma forma,
como forças primitivas da natureza que se apresentavam como desafios à
conquista.

Para enfrentar tal desafio, os colonizadores valeram-se de pactos com as


ordens religiosas e eclesiais para catequizar os povos “selvagens” e angariar novas
almas para a sua fé. Valeram-se de expedições durante séculos para caçar e
escravizar os povos indígenas, ao tempo em que exploravam e mapeavam as novas
terras conquistadas. Esse capítulo triste que compõe a História do Brasil, eivada de
matança, extermínio e submissão foi intensamente relatada por escrivãos
portugueses e religiosos que testemunharam tais fatos. Talvez tenha chegado a
hora, passados mais de cinco séculos, de ser dada a voz àqueles que sobreviveram
às lutas e chacinas, os índios. Ou por fuga, ou por subserviência, esses
remanescentes de culturas indígenas ancestrais clamam por igualdade e justiça.
São homens e mulheres do tempo presente, que querem ser vistos, respeitados e
considerados nos moldes de sua própria cultura.

A partir do século XIX, num ímpeto nacionalista dos escritores e intelectuais


brasileiros, a inegável participação indígena na formação do povo brasileiro ganha
novas cores no cenário etnogênico e é retirado do passado pré-colombiano para
ressurgir timidamente na história ganhando o reconhecimento do seu papel na
agricultura, na culinária, no conhecimento de ervas, inclusive como a “barriga” que
gerou tantos filhos de portugueses.
172

Retomando o espírito que move esse trabalho, no sentido de corrigir injustiças


e dar voz contrária aos autores, que minimamente cuidaram de pintar os índios com
tons exóticos corroborando com os jogos de interesses políticos e religiosos durante
séculos, promovendo discursos que marginalizam e silenciam os povos indígenas.
Em detrimento dessas circunstâncias, para além dos argumentos historiográficos,
colaboram outras linguagens como o cinema, a imprensa, as artes, a literatura e os
recursos didáticos, lamentavelmente, veiculando imagens e concepções
equivocadas, preconceituosas e discriminatórias sobre os índios.

Isso remete a ideia que se deslinda durante todo o capítulo “América,


continente vazio?” onde foram mostrados os períodos, os tempos, os instrumentos e
algumas formas de discriminação e extermínio físico e cultural dos povos indígenas,
sendo que isso se aplica inteiramente aos povos do sul da Bahia, especificamente
aqueles que viviam no litoral, como os Pataxó, que eram alvos fáceis aos invasores
e à conquista de território, devido ao acesso por mar. Naquele trecho se trata sobre
os massacres, as proibições de falar a língua e a consequente dispersão e fuga para
outras regiões, que motivaram a recente retomada de territórios e costumes Pataxó.
Na tentativa de colaborar com essa luta, se elaboram esforços para resgatar
cada uma das características da cultura indígena Pataxó, que até então, só eram
percebidas pelos não-índios através da venda de artesanato nas praias próximas às
aldeias. Várias iniciativas marcavam a presença do povo Pataxó na região de Santa
Cruz Cabrália e Porto Seguro, um centro comercial construído com formato e
materiais tradicionais, a escola indígena, nos mesmos moldes construtivos,
parecendo kijemis distribuídos no pátio, a retomada das terras da Jaqueira, o estudo
da língua mãe Patxohã.
É fácil perceber a indivisibilidade entre o que é de ordem mítico-cosmológica
e o que é de ordem política e ideológica em cada palavra que eles expressam e nos
significados visíveis de seu corpo pintado, seus adornos, suas moradias e tudo
enfim que se pode ver e sentir durante uma estadia na Reserva. O levantamento de
campo permitiu constatar que os Pataxó possuem claramente uma postura crítica
perante os desafios que têm que enfrentar com os representantes não indígenas do
país ondem vivem. Não deixam transparecer nenhuma aceitação dos conceitos
dicotômicos evolucionistas que enclausuram o índio num mundo mitológico ou
cosmogônico. É evidente que os significados atribuídos ao povo Pataxó e seu
173

“modos vivendi” precisam ser revistos, e dessa vez, interpretados como resultado da
própria forma como eles compreendem sua tradição ancestral e como esse
conhecimento se conecta com sua consciência histórica. A sua prática cotidiana de
conviver com a diversidade de povos e culturas, de certa forma, amplia sua
concepção intercultural e os capacita a dialogar com os parâmetros individualistas e
metafísicos da ontologia não índia, estabelecendo um equilíbrio dinâmico entre os
fundamentos de sua cosmologia e os fundamentos ideológicos dos “outros”.
A construção dos significados das manifestações observáveis, pelo
desdobramento de ideias cosmológicas, pelas marcas de identidades expressas em
cada trilha da comunidade, cada indivíduo pintado e adornado, cada “mangute”
experimentado, cada som cantado ou de apito, cada passo de dança Pataxó remete
ao sentido interno e externo dos rituais, fixa bases que estão muito além da fala (ou
da escrita, se houver), e se constituem em instrumento fundamental para interpretar
a lógica dos significados que se podem obter pela análise do discurso nativo. Têm
sido protagonistas nesse papel de ressignificação cultural os anciãos das aldeias,
aqui representados por Takwara Pataxó (Ana da Conceição, nascida em 10 de junho
de 1922) que, valendo-se de sua memória informa, orienta e atualiza os seus
descendentes sobre a língua, os ritos e mitos Pataxó desempenhando uma função
primordial não apenas na identidade da comunidade, mas na sua união.
Esse empenho em retomar as terras e retomar a luta na direção de se auto-
desbravar e se conhecer mais como índio e como índio Pataxó, a língua e as
músicas destacam-se num papel imprescindível. O movimento de reafirmação étnica
e de retomada dos territórios tradicionais do povo Pataxó, gradativamente foi se
fortalecendo e tomando forma, a ponto de ganhar fama e adquirir adeptos. Esse
movimento foi capaz de trazer de volta aqueles parentes, que cansados de tanta
discriminação, tinham abandonado seu povo e negavam sua ascendência.
Dessa forma, a Reserva da Jaqueira, que ocupa um território de 840
hectares, no início contava com pouco mais de vinte habitantes, atualmente se
aproxima dos cem, enquanto que a aldeia urbana de Coroa Vermelha, inaugurou em
seu entorno novas aldeias, a exemplo de “Nova Coroa”, que apesar de recente, já
tem seu centro de artesanato e promove suas próprias festas.
O Aragwaksã, serve de exemplo na luta por retomada de terras e fortalece
outros parentes a se sentirem empoderados e instituírem outras lutas em outros
territórios que permanecem em discussão. Esse um é desafio muito grande, pois é
174

necessário comprovar a utilização permanente da terra, sem que a haja o respaldo


de documentos escritos, devido a população anciã ser ágrafa e inclusive ao costume
nômade, de não esgotar a natureza, permanecendo num local poucos meses, só até
a colheita, para logo em seguida retornar a tradição de se deslocar para outro lugar.
Sendo uma festa de ressignificação étnica, cumpre belissimamente o papel
exuberante de expor suas tradições culturais, por meio de sua música, sua dança,
seus costumes e suas comidas. Essa festa tem por carisma atrair visitantes de
variados países e muitas outras etnias, curiosos por saber como é possível conviver
com as tradições sagradas e a modernidade.
A partir do Aragwaksã, pode-se perceber nitidamente o papel da memória
Pataxó como instrumento e força motora da retomada de suas tradições culturais,
ainda que de alguma maneira permeada pelo longo tempo de contato com
populações não indígenas. É no decorrer da festa que os Pataxó encontram o
instrumento e as estratégias necessárias para afirmarem-se identitariamente, dentro
e fora do grupo.
Na medida em que busca-se fazer, nessa pesquisa, uma articulação entre
diferentes fontes (especialmente orais e iconográficas) e conceitos como o de
memória e história, delineando-se a sua importância na etnicidade de uma
população indígena, acredita-se ter alcançado o objetivo principal da tese, que foi
investigar os aspectos da cultura e da história indígena Pataxó que os identificam e
os individualizam como povo através de sua festa maior, o Aragwasã, na qual
tornam vivas suas memórias no seio do próprio grupo, assim como também os
elementos culturais e simbólicos que os ratificam.
É nesse clima de alegria e vitória que o Aragwaksã ocorre desde 1998 e
desde então ocorre concomitantemente uma festa de casamento. Anemãvéy, que
significa casamento em Patxohã, acontece como propósito legítimo de reafirmação
cultural, de união intra étnica, sem ser restritivo, demonstrando aos parentes e
visitantes todas as etapas do processo: as provas de resistência, proteção e
provimento familiar que o kakussu desempenha, o próprio ritual da cerimônia que é
composto pelas bênçãos do pajé, a troca de cocares, a mudança de pintura corporal
de solteiro para casado, a bênção dos guerreiros e finalizando com o Awê coletivo e
comemorativo.
Interessa a esse trabalho as repercussões práticas que venham melhorar as
condições de vida e de reconhecimento legal de seus costumes expressando real
175

respeito por sua cultura. Como foco de pesquisa, levou-se em consideração que o
casamento é um momento único e muito especial na vida de um casal, quando
resolvem oficializar a relação para formar uma família. Mas, por ser um ato jurídico e
previsto por lei, existem requisitos e obrigações que devem ser cumpridos para que
possa ser formalizado.
Segundo o artigo 1521 do Código Civil Brasileiro não podem realizar o
casamento no civil parentes diretos, entende-se como pais e filhos, avós e netos, a
lei impede o casamento de parentes naturais consanguíneos ou biológicos,
impedindo também o parentesco civil, com filhos adotivos. Só para esclarecer, tal
impedimento se estende aos parentes em linha reta, englobando conjugues ou
companheiros em união estável em relação aos parentes do outro em linha direta,
nesse caso incluiria ainda nora e sogro, sogra e genro, padrasto ou madrasta com
enteados, etc. Nos casos de adoção, fica impedido a união entre o adotante com
quem foi cônjuge do adotado e vice versa.
O casamento é previsto na Constituição em seu art. 226, que estabelece,
primeiramente, ser o mesmo civil, com celebração gratuita, e assegura ainda os
efeitos civis ao casamento religioso, nos termos da lei. No Código Civil, regula-se
pelos artigos 1.511 a 1.590.
Por conceito, o casamento é considerado um ato de celebração da união em
matrimônio de duas pessoas que passam então a manter uma relação jurídica
matrimonial. Assim, ele é um ato jurídico (celebração), que cria entre duas pessoas,
que a ele voluntariamente aderem, uma relação jurídica de efeitos pessoais e
patrimoniais, chamada relação matrimonial.

Dessa forma, após a análise da legislação, o Livro de Casamentos da FUNAI,


atualmente qualificando o matrimônio como “administrativo”, conforme exemplos que
constam nos anexos B, C, D, E, F, G, H, por conceito, preenche todos os requisitos
necessários ao reconhecimento civil do Casamento Indígena, bastando apenas que
se reconheça o ofício do funcionário da FUNAI e se anexe os documentos dos
noivos, visto que a cerimônia e as testemunhas fazem parte tradicionalmente dos
festejos. Isso implica na possibilidade de que tais casamentos, realizados no âmbito
do Aragwaksã, possam ser considerados legítimos, proporcionando enfim um dos
pressupostos identitários do povo Pataxó e lhes assegura, de forma real, sua
continuidade cultural.

Awêri (Obrigada).
176

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fotografia, color..

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Jaqueira, Porto Seguro, 2008. 1 fotografia, color..

______. Beijú. Reserva Indígena Pataxó da Jaqueira, Porto Seguro, 2008. 1


fotografia, color..

______. Cacique Syratã Pataxó. Reserva Indígena Pataxó da Jaqueira. Porto


Seguro, 2016. 1 fotografia, color..

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2008. 1 fotografia, color..

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Porto Seguro, 2008. 1 fotografia, color..

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Jaqueira, Porto Seguro, 2008. 1 fotografia, color..

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Indígena Pataxó da Jaqueira, Porto Seguro, 2008. 1 fotografia, color..

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Indígena Pataxó da Jaqueira. Porto Seguro, 2016. 1 fotografia, color..
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Reserva Indígena Pataxó da Jaqueira. Porto Seguro Reserva Indígena Pataxó da
Jaqueira, Porto Seguro, 2008. 1 fotografia, color..

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Reserva Indígena Pataxó da Jaqueira. Porto Seguro, 2016. 1 fotografia, color..

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Índígena Pataxó da Jaqueira, Porto Seguro, 2008. 1 fotografia, color..

______. Momento da bênção dos guerreiros para a felicidade dos noivos. Kijemi
Grande. Reserva Indígena Pataxó da Jaqueira, Porto Seguro, 2008. 1 fotografia,
color..

______. Noivo, acompanhado de outros guerreiros, na terceira prova, para firmar


compromisso com a pretendida. Reserva Indígena Pataxó da Jaqueira, Porto
Seguro, 2008. 1 fotografia, color..

______. O noivo no momento da entrega da tora. Reserva Indígena Pataxó da


Jaqueira. Porto Seguro, 2008. 1 fotografia, color..

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fotografia, color..

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Porto Seguro, 2008. 1 fotografia, color..

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ANEXOS
188

ANEXO A – AUTORIZAÇÃO DO CACIQUE PARA PESQUISA NA RESERVA


INDÍGENA PATAXÓ DA JAQUEIRA, PORTO SEGURO, BAHIA
189

ANEXO B – CERTIDÃO DE CASAMENTO ENTRE TUINÃ FERREIRA DO


ESPÍRITO SANTO E TUINAR SILVA ALVES RIGAUD
190

ANEXO C – REGISTRO DE CASAMENTO ENTRE DAMIÃO BRAZ (IRAJÁ


PATAXÓ) E ROZIANE LUIZA DOS SANTOS (RADANAN TUXÁ)
191

ANEXO D – REGISTRO ADMINISTRATIVO DE CASAMENTO ENTRE JACKKSON


PEDRO CAMILO DA LUZ E LUZENILDA MATOS FERREIRA
192

ANEXO E – REGISTRO ADMINISTRATIVO DE CASAMENTO ENTRE JOSIMAR


DA CONCEIÃO CARVALHO (SYRATÃ) E NOEMIA ALVES DOS SANTOS
(SUÍDARA)
193

ANEXO F – REGISTRO ADMINISTRATIVO DE CASAMENTO ENTRE PAULO


VINÍCIUS SOUZA DOS SANTOS E ZELIAN FERREIRA DOS SANTOS
194

ANEXO G – CERTIDÃO DE CASAMENTO ENTRE GERLANE SANTOS SEMEÃO E


EDICLEUDES MAIA DOS SANTOS
195

ANEXO H – CERTIDÃO DE CASAMENTO ENTRE TAUNÃ FERREIRA DO


ESPÍRITO SANTO E MAIARA BARBOSA CARMO

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