As Correntes Do Espaco - Isaac Asimov
As Correntes Do Espaco - Isaac Asimov
As Correntes Do Espaco - Isaac Asimov
Folha de rosto
Dedicatória
Prólogo
1. O órfão
2. O citadino
3. A bibliotecária
4. O rebelde
5. O cientista
6. O embaixador
7. O patrulheiro
8. A lady
9. O nobre
10. O fugitivo
11. O capitão
12. O detetive
13. O iatista
14. O renegado
15. O cativo
16. O acusado
17. O acusador
18. Os vitoriosos
Epílogo
Posfácio
Créditos
PARA DAVID,
QUE DEMOROU PARA VIR
MAS VALEU A PENA ESPERAR.
PRÓLOGO
UM ANO ANTES
Fazia um ano que o dr. Selim Junz estava impaciente, mas uma
pessoa não se acostuma, com o tempo, a sentir-se impaciente. Na
verdade, acontece o contrário. Não obstante, aquele ano lhe
ensinara que não se podia apressar o Serviço Público Sarkita, ainda
mais porque os servidores públicos são, na maioria, florinianos
transferidos e, portanto, terrivelmente cuidadosos com a própria
dignidade.
Uma vez ele perguntara ao velho Abel, embaixador trantoriano,
que vivia em Sark havia tanto tempo que as solas das botas tinham
criado raízes, por que os sarkitas permitiam que os departamentos
do governo fossem administrados pelas mesmas pessoas que tanto
desprezavam.
Abel enrugara os olhos por sobre uma taça de vinho verde.
— Política, Junz — respondeu ele. — Política. Uma questão de
genética prática levada a cabo pela lógica sarkita. Esses sarkitas em
si são um mundo pequeno, imprestável, e só são importantes
contanto que controlem aquela eterna mina de ouro, Florina. Então,
todo ano eles vasculham os campos e vilarejos de Florina, trazendo
a nata da juventude para Sark para treinamento. Os medíocres são
colocados para arquivar seus documentos e preencher seus
espaços em branco e assinar seus formulários, e os muito
inteligentes são enviados de volta para Florina para atuar como
governantes nativos das cidades. Citadinos, eles são chamados.
O dr. Junz era espaçoanalista, basicamente. Ele não entendia o
objetivo daquilo tudo. Disse que não entendia.
Abel apontou um velho e rígido dedo indicador para ele, e a luz
verde que refletia através do conteúdo de sua taça tocou-lhe a unha
estriada, sobrepujando seu tom cinza amarelado.
— Você nunca será administrador — disse ele. — Não me peça
recomendação. Olhe, os elementos mais inteligentes de Florina são
incondicionalmente seduzidos em prol da causa sarkita, uma vez
que, enquanto servem Sark, são bem cuidados, ao passo que, se
derem as costas a Sark, o máximo que podem esperar é a volta à
existência floriniana, que não é boa, meu amigo, não é boa.
Ele tomou o vinho com um gole e continuou:
— Além do mais, nem os citadinos nem os funcionários da área
administrativa em Sark podem procriar sem perder seus cargos. Isto
é, nem mesmo as mulheres florinianas. A miscigenação com os
sarkitas, claro, está fora de questão. Dessa forma, os melhores
genes florinianos são sempre retirados de circulação, de modo que,
aos poucos, Florina será composta apenas de talhadores de
madeira e carregadores de água.
— Nesse ritmo, vão ficar sem funcionários, não vão?
— Uma questão para se resolver no futuro.
O dr. Junz estava em uma das antessalas externas do
Departamento de Assuntos Florinianos e esperava com impaciência
que lhe permitissem passar pelas lentas catracas, enquanto
subalternos florinianos percorriam, apressada e interminavelmente,
um labirinto burocrático.
Um idoso floriniano, que enrugara em serviço, postou-se diante
dele.
— Doutor Junz?
— Sim.
— Venha comigo.
Um número piscando em uma tela teria sido igualmente eficaz
para chamá-lo, e um fluorocanal pelo ar, igualmente eficaz para
conduzi-lo; no entanto, onde a mão de obra é barata, nada precisa
ser substituído. Ele jamais vira mulheres em nenhum departamento
do governo em Sark. Deixavam as mulheres florinianas em seu
planeta, à exceção de algumas empregadas domésticas que eram
igualmente proibidas de procriar, e as mulheres sarkitas, como
dissera Abel, estavam fora de questão.
Fizeram-lhe um gesto para se sentar à mesa do assistente do
subsecretário. Ele sabia qual era o título do homem por causa do
brilho canalizado que estava gravado sobre a mesa. Nenhum
floriniano poderia ser mais do que assistente, é claro,
independentemente de quantos fios de comando de fato passassem
por seus dedos brancos. O subsecretário e o secretário de Assuntos
Florinianos seriam sarkitas, mas, embora pudesse encontrá-los
socialmente, o dr. Junz sabia que nunca os encontraria ali no
departamento.
Ele se sentou, ainda impaciente, mas pelo menos mais próximo
do objetivo. O assistente olhava o arquivo com cautela, virando cada
página criteriosamente codificada como se ela guardasse os
segredos do universo. O homem era bastante jovem, um recém-
graduado, talvez, e, como todos os florinianos, tinha pele e cabelo
muito claros.
····
O dr. Junz sentiu uma excitação atávica. Ele próprio vinha do
planeta Libair e, como todos os libairianos, era muito pigmentado, e
sua pele tinha um tom marrom-escuro intenso. Havia poucos
mundos na Galáxia onde a cor da pele era tão extrema quanto em
Libair ou Florina. Em geral, tonalidades intermediárias eram a regra.
Alguns dos jovens antropólogos radicais brincavam com a ideia
de que homens de planetas como Libair, por exemplo, haviam
surgido de uma evolução independente, porém convergente. Os
homens mais velhos condenavam amargamente qualquer ideia de
uma evolução que admitisse que diferentes espécies pudessem
convergir a ponto de permitir o cruzamento, como certamente
acontecia entre todos os mundos da Galáxia. Insistiam que, no
planeta original, fosse qual fosse, a humanidade já se dividira em
subgrupos de pigmentação variada.
Isso apenas deslocava o problema para um passado mais
distante e não respondia a nada, de modo que o dr. Junz não
achava nenhuma das duas explicações satisfatória. No entanto,
mesmo agora se via pensando nessa questão de vez em quando.
Lendas de um passado de conflitos haviam permanecido, por algum
motivo, nos mundos negros. Os mitos libairianos, por exemplo,
falavam de tempos de guerra entre homens de pigmentação
diferente, e considerava-se que a fundação do próprio planeta Libair
se devia à fuga de um grupo de negros de uma derrota em batalha.
Após deixar Libair para entrar no Instituto Arcturiano de
Tecnologia Espacial, e mais tarde ingressar na profissão, o dr. Junz
esqueceu-se das antigas fábulas. Só uma vez pensara de fato no
assunto, quando deparara com um dos antigos mundos do Setor
Centauriano no decorrer de uma atividade profissional; um daqueles
mundos cuja história era milenar e cuja língua era tão arcaica que
seu dialeto quase poderia ser aquela língua mítica e perdida, o
inglês. Eles tinham uma palavra especial para designar homens de
pele negra.
Mas por que deveria haver uma palavra especial para um
homem de pele negra? Não havia nenhuma palavra especial para
homens de olhos azuis, ou orelhas grandes, ou cabelo enrolado.
Não havia…
A voz precisa do assistente interrompeu seu devaneio.
— O senhor já esteve neste gabinete antes, de acordo com o
registro.
— De fato já estive, senhor — respondeu o dr. Junz, com certa
aspereza.
— Mas não recentemente.
— Não, não recentemente.
— O senhor continua procurando um espaçoanalista que
desapareceu — o assistente folheou as páginas — uns onze meses
e treze dias atrás.
— Correto.
— Em todo esse tempo — disse o assistente em seu tom seco e
frágil, do qual parecia que toda a energia fora retirada —, não houve
nenhum sinal do homem e nenhuma evidência de que ele tenha
estado em qualquer parte do território sarkita.
— Sua última localização — falou o cientista — foi no espaço,
perto de Sark.
O assistente levantou a cabeça e seus pálidos olhos azuis se
concentraram por um momento no dr. Junz, depois baixaram
rapidamente.
— Pode ser, mas não é evidência de sua presença em Sark.
Não era evidência! O dr. Junz apertou os lábios. Era o que a
Agência Interestelar de Espaçoanálise vinha lhe dizendo com cada
vez mais rudeza havia meses.
“Não há evidência, dr. Junz. Achamos que seu tempo pode ser
mais bem empregado, dr. Junz. A Agência vai se certificar de que a
busca continue, dr. Junz.”
O que eles queriam dizer na verdade era: “Pare de desperdiçar
nosso dinheiro, Junz”.
Aquilo começara, como o assistente declarara cuidadosamente,
onze meses e treze dias antes pelo Tempo Interestelar Padrão (o
assistente não seria culpado, claro, por usar o horário local em uma
questão dessa natureza). Dois dias antes ele aterrissara em Sark no
que deveria ser uma inspeção rotineira dos escritórios da Agência
naquele planeta, mas que acabou sendo… bem, acabou sendo o
que foi.
Encontrara-se com o representante local da AIE, um jovem magro
que ficou marcado no pensamento do dr. Junz sobretudo pelo fato
de mascar incessantemente algum produto elástico da indústria
química de Sark.
····
Foi quando a inspeção estava quase terminada e resolvida que o
agente local se lembrara de algo, posicionara o mascafumo no
espaço atrás dos dentes molares e dissera:
— Mensagem de um dos homens de campo, dr. Junz.
Provavelmente sem importância. O senhor sabe como eles são.
Era a expressão costumeira de dispensa: o senhor sabe como
eles são. O dr. Junz levantou os olhos com um lampejo
momentâneo de indignação. Estava prestes a dizer que, quinze
anos antes, ele próprio fora um “homem de campo”; então se
lembrou de que, três meses depois, não conseguira mais suportar.
Mas foi essa pitada de raiva que o fez ler a mensagem com zelosa
atenção.
Ela dizia: Por favor, mantenha uma linha codificada direta aberta
para a sede central da AIE para enviar uma mensagem detalhada
sobre uma questão da maior importância. Toda a Galáxia será
afetada. Vou aterrissar por trajetória mínima.
O agente achou graça. Com a mandíbula de volta à mastigação
ritmada, ele falou:
— Imagine, senhor. “Toda a Galáxia afetada.” Essa é muito boa,
mesmo para um trabalhador de campo. Eu o chamei depois que
recebi isso para ver se conseguia entender, mas foi um fiasco. Ele
só continuava dizendo que a vida de todos os seres humanos em
Florina estava em perigo. Sabe, meio bilhão de vidas em jogo. Ele
parecia muito psicopático. Então, francamente, eu não quero tentar
lidar com ele quando aterrissar. O que o senhor sugere?
— Você tem uma transcrição da sua conversa? — perguntara o
dr. Junz.
— Tenho, senhor. — Seguiu-se uma busca de alguns minutos.
Uma lasca de filme foi enfim encontrada.
O dr. Junz reproduziu-a no leitor. Ele franziu o cenho.
— Essa é uma cópia, não é?
— Mandei o original para a Agência de Transporte
Extraplanetário aqui em Sark. Achei que seria melhor se se
encontrassem com ele no campo de aterrissagem com uma
ambulância. Ele provavelmente está em maus lençóis.
O dr. Junz teve o impulso de concordar com o rapaz. Quando os
solitários analistas das profundezas do espaço chegavam a ponto
de perder o controle por causa do trabalho, era provável que suas
psicopatias fossem violentas.
— Mas espere — disse ele então. — Pelo modo como você fala,
ele não aterrissou ainda.
O agente pareceu surpreso.
— Suponho que tenha aterrissado, mas ninguém me ligou para
falar sobre isso.
— Bem, ligue para a Agência de Transporte e descubra os
detalhes. Psicopático ou não, os detalhes precisam estar nos
nossos registros.
O espaçoanalista aparecera outra vez no dia seguinte em uma
checagem de último minuto antes de deixar o planeta. Ele não tinha
nenhum outro assunto a tratar em outros planetas e estava com
uma pressa razoável. Quase à porta, perguntou por sobre o ombro:
— Como está o homem de campo?
— Ah, olhe… eu pretendia contar. A Agência de Transporte não
recebeu nenhuma notícia. Mandei um padrão de energia para os
motores hiperatômicos dele e dizem que sua nave não está em
nenhum lugar no espaço próximo. O cara deve ter mudado de ideia
sobre a aterrissagem.
O dr. Junz decidiu atrasar a partida por vinte e quatro horas. No
dia seguinte, estava na Agência de Transporte Extraplanetário da
Cidade de Sark, a capital do planeta. Encontrou-se com os
burocratas florinianos pela primeira vez, que chacoalharam a
cabeça para ele. Haviam recebido a mensagem sobre a provável
aterrissagem de um analista da AIE. Ah, sim, mas nenhuma nave
aterrissara.
Mas era importante, insistiu o dr. Junz. O homem estava muito
doente. Então não haviam recebido uma cópia da transcrição da
conversa dele com o agente local da AIE? Eles arregalaram os olhos
ao ouvi-lo. Transcrição? Não foi possível encontrar ninguém que se
lembrasse de havê-la recebido. Eles lamentavam que o sujeito
estivesse doente, mas nenhuma nave da AIE aterrissara e não havia
nenhuma nave da AIE em parte alguma no espaço próximo.
O dr. Junz voltou ao seu quarto de hotel e pensou em muitas
coisas. O novo prazo para a sua partida passara. Ele ligou para a
recepção e pediu para ser transferido para outra suíte, mais
adaptada a uma ocupação prolongada. Depois marcou um encontro
com Ludigan Abel, o embaixador trantoriano.
Passou o dia seguinte lendo livros sobre a história sarkita e,
quando chegou a hora do encontro com Abel, seu coração havia
passado a repercutir uma lenta pulsação de raiva. Estava seguro de
que não desistiria facilmente.
O velho embaixador tratou o encontro como uma visita social,
apertara sua mão, acionara o barman mecânico e não permitira
nenhuma discussão de negócios durante os dois primeiros drinques.
Junz aproveitou a oportunidade para um bate-papo útil: perguntou
sobre o Serviço Público Floriniano e recebeu a explicação sobre a
genética prática de Sark. Seu senso de raiva se intensificou.
Junz sempre se lembrava de Abel como ele estava naquele dia.
Olhos fundos fechados sob espantosas sobrancelhas brancas, nariz
pontudo pairando intermitentemente sobre a taça de vinho,
bochechas encovadas acentuando o rosto e o corpo magros e um
dedo nodoso acompanhando lentamente alguma música inaudível.
Junz começou a sua história, contando-a com imperturbável
economia. Abel ouviu com atenção, sem interromper.
Quando Junz terminou, ele tocou com delicadeza os lábios e
perguntou:
— Escute, você conhece esse homem que desapareceu?
— Não.
— Nem se encontrou com ele?
— É difícil nos encontrarmos com nossos analistas de campo.
— Ele teve alucinações antes?
— Essa foi a primeira, de acordo com os registros dos escritórios
centrais da AIE, se for alucinação.
— Se for? — O embaixador não entendeu o comentário. Ele
indagou: — E por que você veio me procurar?
— Para pedir ajuda.
— Claro. Mas de que maneira? O que eu posso fazer?
— Deixe-me explicar. A Agência Sarkita de Transporte
Extraplanetário verificou o espaço próximo em busca do padrão de
energia dos motores da nave do nosso homem, e não há nenhum
sinal dele. Eles não mentiriam sobre isso. Não estou dizendo que os
sarkitas não mentem, mas com certeza não contam mentiras inúteis
e devem saber que eu posso fazer com que a questão seja
verificada no espaço de duas ou três horas.
— Verdade. Mas e aí?
— Existem duas ocasiões em que o traço de um padrão de
energia falha. Uma é quando a nave não está no espaço próximo
porque fez um Salto pelo hiperespaço e está em outra região da
Galáxia, e a outra é quando não está no espaço porque aterrissou
em um planeta. Não acredito que o nosso homem tenha feito um
Salto. Se suas declarações sobre perigo para Florina e importância
galáctica são alucinações megalomaníacas, nada o impediria de vir
até Sark informar sobre o assunto. Ele não teria mudado de ideia e
ido embora. Tenho quinze anos de experiência com essas coisas.
Se, por acaso, suas declarações fossem sensatas e verdadeiras,
então sem dúvida a questão seria grave demais para permitir que
ele mudasse de ideia e deixasse o espaço próximo.
O velho trantoriano levantou um dedo e agitou-o com delicadeza.
— Você conclui então que ele está em Sark.
— Exatamente. Mais uma vez, existem duas alternativas.
Primeiro, se ele estiver sob o efeito de uma psicose, pode ter
aterrissado em qualquer lugar do planeta que não seja um
espaçoporto reconhecido. Pode estar vagando, doente e
semiamnésico. Essas coisas são muito estranhas, mesmo para
homens de campo, mas já aconteceram. Em geral, nesses casos,
os acessos são temporários. Quando passam, a vítima descobre
que os detalhes do trabalho voltam primeiro, antes de qualquer
lembrança pessoal. Afinal, o trabalho de um espaçoanalista é sua
vida. Muitas vezes, o amnésico é encontrado porque entra em uma
biblioteca pública para procurar referências sobre espaçoanálise.
— Entendo. Então você quer que eu o ajude a acertar com o
Conselho de Bibliotecários que o avisem sobre esse tipo de
situação.
— Não, porque não quero contar com nenhum problema lá. Vou
pedir que certos trabalhos-padrão sobre espaçoanálise sejam
reservados e que qualquer homem que pergunte por eles, a não ser
aqueles que possam provar que são sarkitas nativos, sejam detidos
para interrogatório. Eles vão concordar porque saberão, ou certos
superiores seus saberão, que esse plano não vai dar em nada.
— Por quê?
— Porque — Junz falava rapidamente agora, envolto por uma
trêmula nuvem de fúria — tenho certeza de que o nosso homem
aterrissou no espaçoporto da Cidade de Sark exatamente como
tinha planejado e, sadio ou psicótico, foi então possivelmente preso,
mas provavelmente morto pelas autoridades sarkitas. Mas vou
investigar isso também.
Abel pousou na mesa o copo quase vazio.
— Você está brincando? Morto?
— Eu pareço estar brincando? O que o senhor me disse apenas
meia hora atrás sobre Sark? Suas vidas, sua prosperidade e seu
poder dependem de controlar Florina. O que foi que a minha própria
leitura nessas últimas vinte e quatro horas me mostrou? Que os
campos de kyrt em Florina são a riqueza de Sark. E aí vem um
homem, sadio ou psicótico, não interessa, que alega que algo de
importância galáctica colocou a vida de cada homem e mulher em
Florina em perigo. Veja esta transcrição da última conversa
conhecida do nosso homem.
Abel pegou a lasca de filme que fora atirada sobre o seu colo por
Junz e aceitou o leitor que lhe foi oferecido. Examinou-o devagar,
com os olhos esmaecidos piscando e espiando pelo visor.
— Não é muito informativo.
— Claro que não. Diz que existe perigo. Diz que existe extrema
urgência. Só isso. Mas nunca deveria ter sido enviado para os
sarkitas. Mesmo que o sujeito estivesse errado, será que o governo
sarkita poderia permitir que ele divulgasse qualquer loucura,
considerando que fosse loucura, que tivesse em mente e enchesse
a Galáxia com essa história? Sem levar em conta o pânico que
poderia gerar em Florina, a interferência na produção de fios de kyrt,
continua sendo fato que toda a bagunça desonesta das relações
políticas entre Sark e Florina seria exposta para a Galáxia inteira.
Pense que eles só precisam acabar com um homem para impedir
tudo isso, uma vez que eu não posso tomar providências com base
apenas nessa transcrição, e eles sabem. Será que Sark hesitaria
em cometer um assassinato num caso desses? O planeta dos
experimentadores genéticos que você descreveu não hesitaria.
— E o que você gostaria que eu fizesse? Devo dizer que ainda
não sei ao certo. — Abel parecia indiferente.
— Descubra se eles o mataram — respondeu Junz, em um tom
sombrio. — Vocês devem ter uma organização para espionagem
aqui. Ah, vamos ser francos. Eu venho andando pela Galáxia por
tempo suficiente para superar a adolescência política. Descubra a
verdade enquanto eu os distraio com as minhas negociações com
as bibliotecas. E, quando você descobrir que eles são mesmo
assassinos, quero que Trantor garanta que nenhum governo, em
parte alguma da Galáxia, jamais volte a pensar que pode matar um
homem da AIE e ficar impune.
E ali terminou sua primeira conversa com Abel.
Junz estava certo em uma coisa: os oficiais sarkitas foram
cooperativos e até solidários no que se referia ao acordo com as
bibliotecas.
Mas ele parecia não haver acertado mais nada. Meses se
passaram e os agentes de Abel não conseguiram encontrar nenhum
sinal do homem de campo desaparecido, vivo ou morto, em
nenhuma parte de Sark.
Essa pareceu a realidade por mais de onze meses. Junz
começou a se sentir pronto para desistir. Esteve a ponto de optar
por esperar pelo décimo segundo mês para dar tudo por terminado,
e nada mais. Então a oportunidade viera, e não fora por parte de
Abel, mas do quase esquecido espantalho que ele mesmo
preparara. Chegou um relato da biblioteca pública de Sark e,
quando deu por si, Junz estava sentado diante de um funcionário
público floriniano no Departamento de Assuntos Florinianos.
····
O assistente terminou o arranjo mental do caso. Ele virara a última
folha.
Ergueu os olhos.
— Agora, o que podemos fazer pelo senhor?
Junz respondeu com precisão.
— Ontem, às 4h22 da tarde, fui informado de que a filial
floriniana da biblioteca pública de Sark deteve um homem para mim
que tentou consultar dois textos-padrão sobre espaçoanálise e que
não era sarkita nativo. Não ouvi mais notícias da biblioteca desde
então.
Ele continuou, levantando a voz para sobrepor-se a algum
comentário que o assistente começara a fazer.
— Um comunicado de telenotícia que recebi, às 5h05 da tarde
de ontem, por meio de um instrumento público de propriedade do
hotel onde resido, afirmou que um membro da Patrulha Floriniana foi
nocauteado na filial floriniana da biblioteca pública de Sark e que
três florinianos nativos que se acredita serem os responsáveis pelo
ultraje estavam sendo perseguidos. Esse comunicado não se
repetiu nos resumos do noticiário mais tarde.
“Agora não tenho dúvidas de que existe uma relação entre as
duas informações. Não tenho dúvidas de que o homem que eu
quero está sob a custódia da Patrulha. Pedi permissão para viajar a
Florina e foi recusada. Mandei uma mensagem subetérica para
Florina pedindo para mandarem o homem em questão para Sark e
não recebi resposta. Venho ao Departamento de Assuntos
Florinianos para exigir uma ação a esse respeito. Ou eu vou para lá
ou ele vem para cá.”
— O governo de Sark não pode aceitar ultimatos de oficiais da
AIE — declarou o assistente, com sua voz sem vida. — Fui alertado
pelos meus superiores de que o senhor provavelmente me
interrogaria sobre essas questões e instruído sobre os fatos que
devo revelar. O homem que relataram estar consultando os textos
reservados, junto com dois companheiros, um citadino e uma
mulher floriniana, de fato cometeram a agressão que o senhor
mencionou e foram perseguidos pela Patrulha. Porém, eles não
foram capturados.
Uma amarga decepção tomou conta de Junz. Ele não se deu ao
trabalho de tentar esconder.
— Eles escaparam?
— Não exatamente. Foram rastreados até a padaria de um tal de
Matt Khorov.
Junz fez cara feia.
— E permitiram que eles ficassem lá?
— O senhor vem conversando com Sua Excelência Ludigan Abel
ultimamente?
— O que isso tem a ver com…
— Fomos informados de que o senhor tem sido visto com
frequência na embaixada trantoriana.
— Não vejo o embaixador faz uma semana.
— Então sugiro que vá procurá-lo. Nós permitimos que os
criminosos permanecessem ilesos no estabelecimento de Khorov
por respeito às nossas delicadas relações interestelares com
Trantor. Fui instruído a lhe dizer, se parecesse necessário, que
Khorov, como o senhor provavelmente não ficará surpreso em saber
— e aqui o rosto branco deixou transparecer algo notavelmente
semelhante a um sorriso sarcástico —, é bem conhecido pelo nosso
Departamento de Segurança como agente de Trantor.
O EMBAIXADOR
Rik viu o padeiro morto. Viu-o cair em silêncio, com o peito afundado
e carbonizado em farrapos fumegantes sob o disparo mudo do
desintegrador. Tal visão ofuscou em sua mente a maior parte do que
lhe acontecera antes e quase tudo o que viera depois.
Havia a vaga lembrança da aproximação inicial do patrulheiro, do
modo discreto e extremamente atento como sacara a arma. O
padeiro levantara os olhos e movera os lábios para uma última
palavra que não teve tempo de pronunciar. Então o estrago estava
feito; Rik sentiu o sangue correr para as orelhas e foi tomado pela
confusão da gritaria desvairada da multidão rodopiando por todos os
lados, como um rio transbordando.
Por um momento, esses efeitos anularam a melhora que a
mente de Rik obtivera naquelas últimas horas de sono. O patrulheiro
se precipitara na direção deles, avançando em meio a homens e
mulheres que gritavam, como se fossem um mar viscoso de lama
que ele teria de atravessar. Rik e Lona giraram com a corrente e
foram arrastados. Eles eram redemoinhos e subcorrentes, girando e
agitando-se enquanto os carros voadores dos patrulheiros
começavam a pairar lá no alto. Valona impeliu Rik a avançar sempre
para fora, para a periferia da Cidade. Durante algum tempo, ele foi a
criança assustada do dia anterior, não o quase adulto daquela
manhã.
Acordara aquele dia na penumbra de um amanhecer que não
podia ver do cômodo sem janelas onde dormira. Ficou ali por longos
minutos, examinando a própria mente. Algo se curara durante a
noite; algo se alinhavara e se tornara completo. Aquilo vinha se
preparando para acontecer desde o momento em que começara a
“se lembrar”, dois dias antes. O processo vinha se desenvolvendo
durante todo o dia anterior. A ida à Cidade Alta e à biblioteca, o
ataque ao patrulheiro e a fuga que se seguira, o encontro com o
padeiro… Tudo isso agira sobre ele como um fermento. As fibras
murchas de sua mente, dormentes havia tanto tempo, tinham sido
agarradas e esticadas, dolorosamente forçadas a trabalhar, e agora,
depois de um sono, havia uma débil pulsação em torno delas.
Ele pensou sobre o espaço e as estrelas, sobre longas, longas e
desertas dimensões e grandes silêncios.
Por fim, virou a cabeça para um lado e disse:
— Lona?
Ela acordou de imediato, soerguendo-se apoiada no cotovelo,
olhando em sua direção:
— Rik?
— Estou aqui, Lona.
— Você está bem?
— Claro. — Ele não conseguiu conter sua empolgação. — Eu
me sinto bem, Lona. Escute! Me lembrei de mais coisas. Eu estava
em uma nave e sei exatamente…
Mas ela não o ouvia. Pôs o vestido e, de costas para ele, alisou
a costura, fechou a frente e manuseou nervosamente o cinto.
Andou em direção a ele na ponta dos pés.
— Eu não queria dormir, Rik. Tentei ficar acordada.
Rik sentiu o contágio do nervosismo dela.
— Algo errado? — perguntou ele.
— Shh, não fale tão alto. Está tudo bem.
— Onde está o citadino?
— Ele não está aqui. Ele… ele teve que sair. Por que você não
dorme de novo, Rik?
Ele afastou o braço reconfortante da moça.
— Eu estou bem. Não quero dormir. Eu queria contar para o
citadino sobre a minha nave.
Mas o citadino não estava lá e Valona não queria ouvir. Rik se
calou e, pela primeira vez, sentiu-se realmente aborrecido com
Valona. Ela o tratava como se ele fosse criança, e ele estava
começando a se sentir como um homem.
Uma luz adentrou o cômodo, e a figura musculosa do padeiro
adentrou com ela. Rik piscou e, por um instante, ficou apavorado.
Ele não se opôs de todo quando o braço reconfortante de Valona
envolveu seu ombro.
Os lábios grossos do padeiro se estenderam em um sorriso.
— Vocês acordaram cedo.
Nenhum dos dois respondeu.
— Melhor assim — comentou o padeiro. — Vocês vão sair daqui
hoje.
A boca de Valona estava seca.
— Você não vai entregar a gente para os patrulheiros, vai? —
perguntou ela.
— Não, para os patrulheiros, não — respondeu ele. — As
pessoas certas foram informadas e vocês vão ficar a salvo.
Ele saiu e, pouco tempo depois, voltou, trazendo comida, roupas
e duas bacias de água. As roupas eram novas e pareciam
completamente estranhas.
Ele os observou enquanto comiam, dizendo:
— Vou dar novos nomes e novas histórias para vocês. Vocês
devem ouvir e não quero que esqueçam. Vocês não são florinianos,
entendem? Vocês são um casal de irmãos que veio do planeta
Wotex. Vocês estavam visitando Florina…
Ele continuou, fornecendo detalhes, fazendo perguntas, ouvindo
as respostas.
Rik ficou feliz por conseguir demonstrar que sua memória estava
funcionando, que tinha capacidade de aprender facilmente, mas os
olhos de Valona estavam sombrios de preocupação.
Isso não passou despercebido pelo padeiro.
— Se você me causar o mínimo problema, mando o rapaz
sozinho e deixo você para trás — ele falou para a moça.
As mãos fortes de Valona se cerraram como em um espasmo.
— Não vou causar problemas.
A manhã já estava avançada quando o padeiro se pôs de pé e
falou:
— Vamos!
A última coisa que fez foi colocar quadrinhos pretos de couro
sintético nos bolsos de cima da roupa deles.
Uma vez lá fora, Rik parecia surpreso com o que podia ver de si
mesmo. Ele não sabia que as roupas podiam ser tão complicadas.
O padeiro o havia ajudado a colocá-la, mas quem o ajudaria a tirá-
la? Valona não parecia uma camponesa de jeito nenhum. Até suas
pernas estavam recobertas por um material fino, e seus sapatos se
erguiam nos calcanhares, de modo que ela tinha de se equilibrar
com cuidado enquanto andava.
Transeuntes se aglomeraram, encarando boquiabertos,
chamando uns aos outros. A maioria era composta de crianças,
mulheres da feira e preguiçosos maltrapilhos e furtivos. Pareciam
não notar o padeiro. Ele carregava um bastão grosso que às vezes
ia parar, como que por acidente, entre as pernas de qualquer um
que chegasse perto demais.
Então, quando estavam a apenas noventa metros da padaria,
depois de virarem apenas uma esquina, o fundo da multidão ao
redor tumultuou-se agitadamente, e Rik distinguiu o preto e o
prateado de um patrulheiro.
Foi quando aconteceu aquilo. A arma, o disparo, e outra vez uma
fuga alucinada. Teria havido algum dia em que o medo não o
acompanhasse, sem a sombra de um patrulheiro atrás dele?
····
Eles se viram em meio à imundície de um dos distritos afastados da
Cidade. Valona ofegava muito; seu novo vestido tinha marcas
úmidas de transpiração.
— Não consigo mais correr — disse Rik.
— Nós temos que correr.
— Não desse jeito. Escute. — Ele resistiu firmemente à pressão
do aperto da moça. — Me escute.
Ele sentia que o susto e o pânico estavam passando.
— Por que não seguimos em frente e fazemos o que o padeiro
queria que fizéssemos? — perguntou ele.
— Como você sabe o que ele queria que fizéssemos? — ela
retrucou. Estava ansiosa. Queria continuar em movimento.
— Era para nós fingirmos que somos de outro planeta e ele nos
deu isso — explicou ele. Rik estava empolgado. Pegou o pequeno
retângulo de dentro do bolso, olhando dos dois lados e tentando
abrir como se fosse um livreto.
Não conseguiu. Era uma folha única. Apalpou as bordas e,
quando os dedos se encontraram em um canto, ouviu — ou melhor,
sentiu — algo ceder, e o lado voltado para ele assumiu um
surpreendente tom de branco leitoso. O termo usado na nova
superfície era difícil de entender, mas ele começou a decifrar
cautelosamente as sílabas.
— É um passaporte — disse ele enfim.
— O que é isso?
— Uma coisa que vai nos tirar daqui — Ele estava seguro disso.
Aquela ideia lhe viera à mente. Uma única palavra, “passaporte”,
desse jeito. — Você não entende? Ele ia nos ajudar a sair de
Florina. Em uma nave. Vamos seguir em frente.
— Não — discordou ela. — Ele foi contido. Ele foi morto. Nós
não podemos, Rik, nós não podemos.
Ele insistiu no assunto. Estava quase tagarelando.
— Mas seria a melhor coisa a fazer. Eles não iriam esperar que a
gente fizesse isso. E a gente não iria na nave onde ele queria que
fôssemos. Eles estariam de olho. A gente iria em outra nave.
Qualquer outra nave.
Uma nave. Qualquer nave. As palavras ecoavam em seus
ouvidos. Se a ideia era boa ou não, ele não se importava. Queria
estar em uma nave. Queria estar no espaço.
— Por favor, Lona!
— Tudo bem — disse ela. — Se você realmente pensa assim.
Eu sei onde fica o espaçoporto. Quando eu era criança, a gente
costumava ir lá de vez em quando nos dias de folga e ficava
observando de longe para ver as naves decolarem.
Eles voltaram a andar, e apenas uma leve inquietação
comichava o limiar da consciência de Rik. Alguma lembrança não do
passado distante, mas de um passado muito recente, algo de que
ele deveria se lembrar e não conseguia; por muito pouco, não
conseguia.
Ele a abafou pensando na nave que esperava por eles.
O floriniano no portão de entrada estava tendo sua quota de
agitação aquele dia, mas era uma agitação a longa distância.
Espalharam-se histórias insanas sobre a noite anterior, sobre
ataques a patrulheiros e fugas ousadas. Naquela manhã, as
histórias haviam aumentado e havia rumores sobre a morte de
patrulheiros.
Ele não se atreveu a deixar o seu posto, mas esticou o pescoço
e observou os carros aéreos passarem e os patrulheiros
carrancudos saírem à medida que o contingente do espaçoporto foi
se reduzindo cada vez mais até não restar quase nada.
Estavam enchendo a Cidade de patrulheiros, pensou ele, e ficou
ao mesmo tempo assustado e ebriamente empolgado. Por que a
ideia da morte de patrulheiros deveria deixá-lo feliz? Eles nunca o
haviam incomodado. Pelo menos não muito. Ele tinha um bom
emprego. Não era nenhum camponês estúpido.
Mas estava contente.
Mal teve tempo para o casal à sua frente, desconfortáveis e
transpirando em vestimentas estranhas que os distinguia de
imediato como estrangeiros. A mulher estendia um passaporte pela
brecha.
Uma olhada nela, uma olhada no passaporte, uma olhada na
lista de reservas. Ele apertou o botão apropriado e duas faixas
translúcidas de filme saltaram sobre eles.
— Vão em frente — disse ele, com impaciência. — Coloquem a
faixa no pulso e prossigam.
— Que nave é a nossa? — perguntou a mulher em um sussurro
educado.
Isso o agradou. Era raro ter estrangeiros no espaçoporto
floriniano. Nos últimos anos, haviam se tornado cada vez mais
raros. Mas, quando vinham, não eram nem patrulheiros nem nobres.
Não pareciam se dar conta de que você era só um floriniano e
falavam com você educadamente.
Isso o fez sentir-se cinco centímetros mais alto.
— Vocês a encontrarão no Ancoradouro 17 — explicou ele. —
Desejo a vocês uma boa viagem a Wotex — concluiu, em grande
estilo.
Depois voltou à sua tarefa de fazer ligações furtivas para amigos
na Cidade em busca de mais informações e de tentar, de forma
mais discreta ainda, grampear conversas em feixes de energia da
Cidade Alta.
Levou horas para ele descobrir que cometera um erro terrível.
····
— Lona! — exclamou Rik.
Ele deu um puxão na manga da roupa dela, apontou
rapidamente e sussurrou:
— Aquela ali!
Valona olhou para a nave indicada com ar duvidoso. Era muito
menor do que a nave no Ancoradouro 17, para a qual suas
passagens eram válidas. Parecia mais polida. Quatro câmaras de
descompressão estavam abertas e a escotilha principal estava
escancarada, com uma rampa que saía dela como uma língua
estendida até o nível do chão.
— Estão arejando a nave — comentou Rik. — Costumam arejar
as naves de passageiros antes do voo para se livrar do cheiro
acumulado de oxigênio enlatado, usado e reusado.
Valona o encarou.
— Como você sabe?
Rik sentiu uma semente de vaidade crescer dentro de si.
— Eu apenas sei. Sabe, não deve ter ninguém aí dentro agora.
Não é confortável com a corrente de ar ativada.
Ele olhou ao redor, incomodado.
— Mas não sei por que não tem mais gente por perto. Era assim
quando você costumava observar?
Valona achava que não, mas mal conseguia se lembrar. As
recordações da infância estavam muito distantes.
····
Não havia nenhum patrulheiro à vista quando eles subiram a rampa
com as pernas trêmulas. Os vultos que conseguiam ver eram de
funcionários civis atentos ao seu trabalho e pequenos àquela
distância.
O ar em movimento os açoitou quando entraram no porão, e o
vestido de Valona inflou, de modo que ela teve de abaixar as mãos
para manter a bainha dentro dos limites.
— É sempre assim? — ela perguntou. Nunca estivera em uma
nave antes, nunca sonhara em entrar em uma. Seus lábios cerraram
e seu coração disparou.
— Não — respondeu Rik. — Só durante o arejamento.
Ele andou alegremente pelos corredores de metalite duro,
inspecionando os cômodos vazios com ansiedade.
— Aqui — falou ele. Era a galera.
Ele falava rápido.
— Não é tanto pela comida. Podemos nos virar sem comida
durante algum tempo. É a água.
Ele vasculhou os compactos e ordenados compartimentos de
utensílios e surgiu com um recipiente grande e tampado. Procurou à
sua volta pela torneira de água, murmurou uma esperança ofegante
ao dizer que não haviam deixado de encher os reservatórios de
água e sorriu de alívio quando veio o som suave de água bombeada
e o jorro contínuo do líquido.
— Agora pegue algumas latas. Não muitas. Não queremos que
eles percebam.
Rik tentou desesperadamente pensar em maneiras de refutar as
descobertas. Mais uma vez, procurou por algo de que não
conseguia se lembrar. Às vezes, ainda se deparava com essas
lacunas em seu pensamento e, como um covarde, ele as evitava,
negava sua existência.
Encontrou um pequeno cômodo utilizado para equipamentos de
combate a incêndio, materiais médicos e cirúrgicos de emergência e
equipamentos de soldagem.
— Eles não vão vir aqui a não ser em emergências — disse ele,
sem muita confiança. — Você tem medo, Lona?
— Não vou ter medo com você, Rik — respondeu ela com
humildade. Dois dias antes, não, doze horas antes, era o contrário.
Mas a bordo daquela nave, por alguma transmutação de
personalidade que ela não questionava, Rik era o adulto e ela era a
criança.
— Não vamos poder usar as luzes porque perceberiam o
consumo de energia e, para usar o banheiro, vamos ter que esperar
os períodos de descanso e tentar passar pelos funcionários do turno
da noite — falou ele.
A corrente de ar parou de repente. Seu toque gelado no rosto
deles desapareceu, e o zunido suave e constante, que a
acompanhara a distância, cessou, deixando um grande silêncio para
preencher seu espaço.
— Eles vão embarcar logo, e então vamos para o espaço —
comentou Rik.
Valona jamais vira tanta alegria no rosto de Rik. Ele era como um
amante que ia encontrar sua amada.
····
Se Rik se sentira homem quando acordara ao amanhecer; agora era
um gigante, com os braços se estendendo por toda a extensão da
Galáxia. As estrelas eram suas bolinhas de gude, e as nebulosas
eram teias de aranha para tirar do caminho.
Ele estava em uma nave! Lembranças voltavam continuamente
em um longo fluxo e outras saíam para abrir espaço. Estava se
esquecendo dos campos de kyrt e da fábrica e de Valona cantando
baixinho para ele no escuro. Essas eram apenas pausas
momentâneas em um padrão que começava a voltar agora, com
suas pontas emaranhadas aos poucos se unindo.
Era uma nave!
Se o houvessem colocado em uma nave muito tempo antes, ele
não teria tido de esperar tanto para que as células fundidas de seu
cérebro se curassem.
— Agora não se preocupe. Você vai sentir uma vibração e ouvir
um barulho, mas vão ser só os motores. Você vai sentir um grande
peso sobre o seu corpo. É a aceleração — disse ele em voz baixa
para Valona no escuro.
Não havia uma palavra floriniana comum para o conceito e ele
usou outra palavra, uma que lhe veio à mente com facilidade.
Valona não entendeu.
— Vai doer? — perguntou ela.
— Vai ser bem desconfortável, porque não temos equipamentos
antiaceleração para absorver a pressão, mas não vai durar —
respondeu ele. — Apenas encoste na parede e, quando sentir que
está sendo empurrada contra ela, relaxe. Viu? Está começando.
Ele escolhera a parede certa e, quando o assobio do empuxo
dos motores hiperatômicos aumentou, a gravidade aparente mudou
e o que havia sido uma parede vertical pareceu tornar-se cada vez
mais diagonal.
Valona gemeu uma vez, depois caiu em um silêncio ofegante.
Ambos sentiam a garganta raspar, enquanto o tórax, sem a proteção
de correias e absorvedores hidráulicos, esforçava-se para liberar os
pulmões apenas o suficiente para a entrada de um pouco de ar.
Rik conseguiu pronunciar, resfolegando, algumas palavras —
quaisquer palavras que pudessem fazer com que Valona soubesse
que ele estava ali e acalmar o terrível medo do desconhecido que
sabia que devia haver tomado conta dela. Era só uma nave, uma
nave maravilhosa, mas ela nunca estivera em uma nave antes.
— Tem o Salto, claro, quando passamos pelo hiperespaço e
atravessamos a maior parte da distância entre as estrelas tudo de
uma vez — explicou ele. — Isso não vai causar nenhum incômodo.
Você nem vai saber que aconteceu. Não é nada comparado a
agora. Só uma pequena contração nas suas entranhas. — Ele
articulou bem as palavras, sílaba grunhida após sílaba grunhida.
Levou um bom tempo.
Aos poucos, o peso sobre o tórax aliviou, e a corrente invisível
que os prendia à parede estirou-se e caiu. Eles tombaram no chão,
arquejando.
— Você está machucado, Rik? — perguntou Valona enfim.
— Eu, machucado? — Ele conseguiu dar risada. Ainda não
havia recuperado o fôlego, mas riu da ideia de que pudesse se
machucar em uma nave.
— Certa vez, eu vivi em uma nave durante anos. Passava meses
sem aterrissar em um planeta — contou.
— Por quê? — ela indagou. Arrastou-se para mais perto e
colocou uma das mãos na bochecha dele, certificando-se de que ele
estava lá.
Ele passou o braço ao redor do ombro dela e ela repousou
naquele abraço silenciosamente, aceitando a inversão de papéis.
— Por quê? — perguntou ela.
Rik não conseguia lembrar por quê. Fizera aquilo; detestara
aterrissar em um planeta. Por algum motivo, fora necessário
permanecer no espaço, mas não podia lembrar por quê. Outra vez
esquivou-se da lacuna.
— Eu tinha um emprego — respondeu.
— É — concordou ela. — Você analisava o Nada.
— Pois é. — Ele ficou satisfeito. — Era exatamente isso o que
eu fazia. Você sabe o que significa?
— Não.
Ele não esperava que ela entendesse, mas tinha de conversar.
Tinha de regozijar-se com a memória, deleitar-se embriagadamente
com o fato de que podia evocar fatos passados com o estalar de um
dedo mental.
— Sabe, toda a matéria no universo é composta de uma centena
de substâncias diferentes — explicou ele. — Chamamos essas
substâncias de elementos. Ferro e cobre são elementos.
— Achei que fossem metais.
— São metais e são elementos também. Assim como o oxigênio
e o nitrogênio, o carbono e o paládio. Os mais importantes de todos
são o hidrogênio e o hélio. São os mais simples e mais comuns.
— Nunca ouvi falar desses — comentou Valona, melancólica.
— Noventa e cinco por cento do universo é hidrogênio e a maior
parte do resto é hélio. Até o espaço.
— Uma vez me falaram — disse Valona — que o espaço era um
vácuo. Falaram que isso significava que não tinha nada lá. Está
errado?
— Não exatamente. Não existe quase nada lá. Mas, veja bem,
eu era espaçoanalista, o que quer dizer que eu viajava pelo espaço
coletando e analisando quantias extremamente pequenas de
elementos lá. Ou seja, eu concluía quanto era hidrogênio, quanto
era hélio e quanto eram outros elementos.
— Por quê?
— Bem, é complicado. Sabe, a organização dos elementos não
é a mesma em todos os lugares do espaço. Em algumas regiões
existe um pouco mais de hélio do que o normal; em outras, mais
sódio do que o normal, e assim por diante. Essas regiões de
composição analítica especial serpenteiam pelo espaço como
correntes. É assim que são chamadas. As correntes do espaço. É
importante saber como essas correntes estão organizadas, porque
poderiam explicar como o universo foi criado e como se
desenvolveu.
— Por que elas explicariam isso?
Rik hesitou.
— Ninguém sabe com certeza.
Ele se apressou em continuar, constrangido com a ideia de que
essa imensa bagagem de conhecimento em que sua mente por
sorte estava mergulhando pudesse facilmente chegar ao ponto
marcado como “desconhecido” com as interrogações de… de… De
súbito ocorreu-lhe que Valona não passava de uma camponesa
floriniana, afinal.
— Depois descobrimos a densidade, sabe, a espessura desse
gás em todas as regiões da Galáxia — falou ele. — É diferente em
diferentes lugares, e temos que saber exatamente qual é para que
as naves calculem com precisão como fazer Saltos pelo
hiperespaço. É como… — Sua voz sumiu.
Valona ficou tensa e esperou desconfortavelmente que ele
continuasse, mas houve apenas silêncio. Sua voz ressoou
roucamente na completa escuridão.
— Rik? Qual o problema, Rik?
Silêncio ainda. As mãos dela apalparam os ombros dele,
chacoalhando-o.
— Rik! Rik!
E foi, de algum modo, a voz do velho Rik que respondeu. Era
uma voz fraca, assustada; sua alegria e confiança haviam sido
perdidas.
— Lona. Nós fizemos uma coisa errada.
— Qual é o problema? O que fizemos de errado?
A lembrança da cena na qual o patrulheiro atirara no padeiro
estava em sua mente, estampada com intensidade e clareza, como
que evocada por sua exata lembrança de tantas outras coisas.
— Não devíamos ter fugido — respondeu dele. — Não devíamos
estar aqui nesta nave.
Rik tremia incontrolavelmente, e Valona enxugava inutilmente a
umidade da testa dele com a mão.
— Por quê? — perguntou ela. — Por quê?
— Porque nós devíamos saber que, se o padeiro estava disposto
a nos levar para fora durante o dia, ele não esperava ter nenhum
problema com os patrulheiros. Você se lembra do patrulheiro?
Daquele que atirou no padeiro?
— Lembro.
— Lembra o rosto dele?
— Não me atrevi a olhar.
— Eu olhei, e tinha algo estranho, mas não pensei. Não pensei.
Lona, não era um patrulheiro. Era o citadino, Lona. Era o citadino
vestido de patrulheiro.
A LADY
Não era muito comum que lady Samia de Fife se sentisse frustrada.
Agora lhe ocorria algo sem precedentes, inconcebível: havia horas
que se sentia frustrada.
O comandante do espaçoporto era como o capitão Racety.
Educado, quase obsequioso, parecia infeliz, expressava suas
desculpas, negava a mínima disposição de contradizê-la e
continuava firme como o ferro contra seus desejos claramente
expressos.
Por fim, ela foi forçada a deixar de expressar seus desejos e
passar a exigir seus direitos como se fosse uma sarkita comum.
— Presumo que, como cidadã, eu tenha o direito de ir ao
encontro de qualquer embarcação que quiser.
Ela foi venenosa quanto a esse ponto.
O comandante pigarreou, e a expressão de dor em seu rosto
enrugado, para dizer o mínimo, tornou-se mais evidente e definida.
— Na verdade, milady, não queremos excluí-la de forma alguma
— ele falou por fim. — É só que recebemos ordens específicas do
nobre, seu pai, para proibi-la de ir ao encontro da nave.
— Você está me mandando sair do porto, então? — retrucou
Samia friamente.
— Não, milady. — O comandante estava feliz em chegar a um
meio-termo. — Não recebemos ordens para excluí-la do porto. Se a
senhorita quiser ficar aqui, pode ficar. Mas, com todo o respeito,
vamos ter que impedi-la de se aproximar das áreas de pouso.
Ele se foi, e Samia ficou no luxo inútil do seu carro terrestre
particular, uns trinta metros para dentro da entrada mais externa do
porto. Eles a estavam esperando e observando. Provavelmente
continuariam a observá-la. Se virasse uma roda que fosse mais para
dentro, pensou, indignada, provavelmente cortariam sua energia.
Ela cerrou os dentes. Era injusto da parte de seu pai fazer isso.
Eles eram todos iguais. Sempre a tratavam como se não
entendesse nada. No entanto, ela achava que entendia.
Ele se levantara da cadeira para cumprimentá-la, algo que nunca
fazia com mais ninguém agora que a Mãe estava morta. Ele a
abraçara, a apertara bastante, deixara todo o trabalho por ela. Até
mandara o secretário sair da sala porque sabia que ela sentia
repulsa pelo semblante pálido e estático do nativo.
Foi quase como no passado, antes de o Avô morrer, quando o
Pai ainda não se tornara um grande nobre.
— Mia, minha filha, eu contei as horas — disse ele. — Nunca
imaginei que Florina ficasse tão longe. Quando fiquei sabendo que
aqueles nativos tinham se escondido na sua nave, aquela que eu
tinha enviado só para garantir a sua segurança, quase fiquei louco.
— Papai! Não tinha nada com que se preocupar.
— Não tinha? Quase mandei a frota inteira para pegar você e
trazê-la com segurança militar completa.
Eles riram juntos da ideia. Minutos se passaram antes que
Samia trouxesse a conversa de volta ao assunto que a ocupava.
— O que vai fazer com os passageiros clandestinos, Pai? —
perguntou ela casualmente.
— Por que quer saber, Mia?
— Você não acha que eles planejam assassinar o senhor ou
algo do tipo?
Fife deu um sorriso.
— Você não devia pensar em coisas tão mórbidas.
— O senhor não acha, ou acha? — insistiu ela.
— Claro que não.
— Ótimo! Porque eu conversei com eles, Pai, e acredito que não
passam de pobres pessoas inofensivas. Não me importa o que diz o
capitão Racety.
— Eles infringiram um número considerável de leis para “pobres
pessoas inofensivas”, Mia.
— O senhor não pode tratá-los como criminosos comuns, Pai. —
Ela ergueu a voz, alarmada.
— De que outra forma devo tratá-los?
— O homem não é nativo. Ele vem de um planeta chamado
Terra e sofreu uma sondagem psíquica e não é responsável.
— Bem, nesse caso, querida, o Depseg vai perceber. Deixe esse
assunto com eles.
— Não, é importante demais para simplesmente deixar com eles.
Eles não entendem. Ninguém entende. Só eu!
— Só você no mundo inteiro, Mia? — perguntou ele em tom
indulgente, estendendo um dedo para acariciar um cacho que havia
caído sobre a testa da moça.
— Só eu! Só eu! — exclamou Samia com energia. — Todos os
outros vão pensar que ele é louco, mas eu tenho certeza de que não
é. Ele diz que Florina e toda a Galáxia correm um grande perigo. Ele
é espaçoanalista, e o senhor sabe que espaçoanalistas são
especialistas em cosmologia. Ele saberia!
— Como você sabe que ele é espaçoanalista, Mia?
— Ele falou.
— E quais são os detalhes sobre esse perigo?
— Ele não sabe. Aplicaram uma sonda psíquica nele. O senhor
não vê que essa é a melhor evidência de todas? Ele sabia demais.
Alguém estava interessado em manter tudo às escuras. — Seu tom
de voz instintivamente baixou e tornou-se roucamente confidencial.
Ela refreou um impulso de olhar por cima do ombro, então
continuou: — O senhor não vê que, se as teorias dele fossem
falsas, não haveria necessidade para uma sondagem psíquica?
— Por que não o mataram, se é esse o caso? — perguntou Fife,
e instantaneamente se arrependeu da pergunta. Era inútil provocar
a moça.
Samia pensou por um tempo em vão, depois falou:
— Se o senhor mandar o Depseg me deixar conversar com ele,
eu vou descobrir. Ele confia em mim. Sei que confia. Posso tirar
mais coisas dele do que o Depseg. Por favor, fale para o Depseg me
deixar vê-lo, Pai. É muito importante.
Fife apertou os punhos cerrados da moça com delicadeza e
sorriu para ela.
— Ainda não, Mia. Ainda não. Em algumas horas, vamos ter a
terceira pessoa nas nossas mãos. Depois disso, talvez.
— A terceira pessoa? O nativo responsável por todas as mortes?
— Exatamente. A nave que o está transportando vai aterrissar
em mais ou menos uma hora.
— E o senhor não vai fazer nada com a nativa e o
espaçoanalista até lá?
— Nadinha.
— Ótimo! Eu vou ao encontro da nave. — Ela se pôs de pé.
— Aonde você vai, Mia?
— Ao porto, Pai. Tenho muitas coisas para perguntar a esse
outro nativo. — Ela riu. — Vou lhe mostrar que a sua filha pode ser
uma detetive e tanto.
Fife não reagiu à sua risada.
— Prefiro que não vá — disse ele.
— Por que não?
— É essencial que não haja nada fora do comum quanto à
chegada desse homem. Você chamaria atenção demais no porto.
— E daí?
— Não posso explicar política para você, Mia.
— Política, bah! — Ela se inclinou em direção a ele, deu-lhe um
beijo no meio da testa e sumiu.
Agora estava confinada dentro do carro no porto sem poder fazer
nada, enquanto lá no alto havia um pontinho cada vez maior no céu,
um pontinho escuro contra a claridade do final de tarde.
Ela apertou o botão que abria o porta-luvas e apanhou os óculos
de polo. Normalmente, esses dispositivos eram usados para seguir
as estripulias rodopiantes dos veículos individuais rápidos que
faziam parte do polo estratosférico. Eles também podiam ser usados
para coisas mais sérias. Ela os levou aos olhos e o pontinho que
descia tornou-se uma nave em miniatura, deixando o brilho
avermelhado do motor bem visível.
Ela ao menos veria o homem quando saíssem, descobriria
quanto fosse possível com o sentido da visão, conseguiria uma
entrevista de algum modo, de algum modo, depois disso.
····
Sark preencheu a visitela. Um continente e metade de um oceano,
ocultos em parte pelo branco algodão desbotado das nuvens,
estava ali embaixo.
— O espaçoporto não vai estar fortemente vigiado — disse
Genro; suas palavras um pouquinho irregulares eram a única
indicação de que a melhor parte de sua mente estava forçosamente
nos controles diante dele. — Isso foi sugestão minha também. Falei
que qualquer tratamento estranho dispensado à chegada da nave
poderia alertar Trantor de que está acontecendo alguma coisa. Eu
disse que o sucesso dependia de que Trantor não soubesse em
nenhum momento da real situação até que fosse tarde demais.
Bem, não importa.
Terens deu de ombros, desanimado.
— Qual é a diferença?
— Muita, para você. Vou usar a área de pouso mais próxima ao
Portão Leste. Você vai sair pela saída de segurança na parte de trás
assim que eu aterrissar. Ande rápido, mas não rápido demais em
direção ao portão. Tenho alguns documentos que podem ajudar
você a passar sem dificuldade e podem não ajudar. Fica por sua
conta tomar as medidas necessárias se houver algum problema.
Com base no passado, acredito que posso confiar em você a esse
ponto. Do lado de fora do portão, haverá um carro esperando para
levá-lo até a embaixada. Isso é tudo.
— E você?
Aos poucos, Sark estava passando de uma enorme esfera
amorfa de tons marrons e verdes e azuis e brancos-nuvem
ofuscantes para algo mais vivo, para uma superfície cortada por rios
e encrespada por montanhas.
O sorriso de Genro era frio e sem graça.
— Preocupe-se consigo mesmo. Quando descobrirem que você
foi embora, pode ser que me matem como traidor. Se me
encontrarem completamente impossibilitado e fisicamente incapaz
de deter você, pode ser que apenas me rebaixem ao nível de tolo.
Esse último, suponho, é preferível, então lhe peço que, antes de
sair, use o chicote neurônico em mim.
— Você sabe como é um chicote neurônico? — perguntou o
citadino.
— Sei bem. — Havia gotículas de transpiração nas têmporas
dele.
— Como sabe que não vou matá-lo depois? Sou um matador de
nobres, sabe.
— Eu sei. Mas me matar não vai ajudá-lo. Só vai desperdiçar o
seu tempo. Já corri riscos maiores.
A superfície de Sark vista a partir da visitela estava aumentando;
sua extremidade escapava rapidamente ao limite de visibilidade, seu
centro expandia-se e novas extremidades escapavam, por sua vez,
à vista. Era possível ver algo como o colorido de uma cidade sarkita.
— Espero — disse Genro — que você não tenha a ideia de
atacar sozinho. Sark não é lugar para isso. Ou é Trantor ou são os
nobres. Lembre-se.
A vista era definitivamente a de uma cidade agora, e a faixa
marrom esverdeada nos arredores se ampliou e se tornou um
espaçoporto lá embaixo. O lugar flutuava em direção a eles em um
ritmo cada vez mais lento.
— Se Trantor não estiver com você dentro de uma hora, os
nobres vão pegá-lo antes que o dia acabe — falou Genro. — Não
dou garantias sobre o que Trantor vai fazer com você, mas posso
dar garantias sobre o que Sark vai fazer com você.
Terens estivera no Serviço Público. Ele sabia o que Sark faria
com um matador de nobres.
O porto se mantinha estável na visitela, mas Genro não olhava
mais para ele. Passara aos instrumentos, direcionando o feixe de
pulso para baixo. A nave virou-se lentamente no ar, a mil e
seiscentos metros de altura, e posicionou-se com a parte traseira
para baixo.
Noventa metros acima da área de pouso, os motores fizeram um
grande estrondo. Terens pôde sentir seu tremor sobre as molas
hidráulicas. Ele ficou zonzo.
— Pegue o chicote — disse Genro. — Rápido. Cada segundo é
importante. A porta de emergência vai se fechar depois que você
passar. Eles vão demorar cinco minutos para se perguntar por que
não abro a porta principal, outros cinco minutos para arrombar e
outros cinco minutos para encontrar você. Você tem quinze minutos
para sair do porto e entrar no carro.
O tremor parou e, no denso silêncio, Terens sabia que eles
haviam feito contato com Sark.
Os campos diamagnéticos de movimentação assumiram o
controle. O iate inclinou-se e tombou lentamente sobre a lateral.
— Agora! — exclamou Genro. Seu uniforme estava molhado de
suor.
Terens, com a cabeça rodando e olhos que se recusavam a se
concentrar, ergueu o chicote neurônico…
····
Terens sentiu o frio cortante de um outono sarkita. Ele passara anos
em suas rigorosas estações até quase esquecer o suave verão
eterno de Florina. Agora, seus dias no Serviço Público voltavam-lhe
à memória como se nunca houvesse deixado esse planeta de
nobres.
Só que naquele momento era um fugitivo, marcado pelo maior
dos crimes: o assassinato de um nobre.
Ele caminhava no mesmo ritmo que as batidas do seu coração.
Às suas costas estava a nave e dentro dela estava Genro,
paralisado pela agonia do chicote. A porta se fechara suavemente
após a sua passagem, e ele descia uma ampla vereda pavimentada.
Havia trabalhadores e mecânicos aos montes à sua volta. Cada um
tinha o próprio trabalho e os próprios problemas. Eles não paravam
para olhar no rosto de um homem. Não tinham motivo para isso.
Será que alguém o vira, de fato, sair da nave?
Ele disse a si mesmo que não, ou a essa altura haveria algazarra
de perseguição.
Tocou rapidamente a boina. Ela ainda cobria as suas orelhas e o
pequeno medalhão que havia nela agora era macio ao toque. Genro
dissera que ele serviria como identificação. Os homens de Trantor
estariam prestando atenção especificamente àquele medalhão,
cintilando ao sol.
Ele poderia tirá-lo, perambular por conta própria, encontrar o
caminho até outra nave… de alguma maneira. Ele podia fugir de
Sark… de alguma maneira. Ele escaparia… de alguma maneira.
Havia muitos “de alguma maneira”! Em seu coração ele sabia
que chegara ao fim e, como Genro dissera, ou era Trantor ou era
Sark. Ele odiava e temia Trantor, mas sabia que não poderia nem
deveria ser Sark em nenhuma hipótese.
····
— Você! Ei, você!
Terens ficou paralisado. Ergueu os olhos em puro estado de
pânico. O portão estava a trinta metros de distância. Se ele
corresse… Mas não permitiriam que um homem correndo saísse.
Ela algo que ele não ousava fazer. Não devia correr.
A jovem olhava para fora pelo vidro de um carro como Terens
jamais vira, nem durante quinze anos em Sark. O veículo brilhava
com o metal e cintilava com gemmita translúcida.
— Venha aqui — ela falou.
As pernas de Terens o levaram devagar até o carro. Genro
dissera que o carro de Trantor estaria esperando do lado de fora do
porto. Ou será que não fora isso? E será que mandariam uma
mulher em uma missão daquelas? Uma garota, na verdade. Uma
garota negra, de rosto bonito.
— Você chegou na nave que acabou de aterrissar, não chegou?
— perguntou ela.
Ele permaneceu calado.
Ela ficou impaciente.
— Qual é, eu vi você sair da nave! — Ela deu uma batidinha nos
óculos de polo. Ele já vira esses óculos antes.
— Cheguei, cheguei — murmurou Terens. Ele falou: — Você
sabe quem eu sou. — Ele ergueu os dedos momentaneamente até
o medalhão.
Sem nenhum barulho de força motriz, o carro recuou e virou.
No portão, Terens encolheu-se no estofado macio e gelado
revestido de kyrt, mas não havia motivo para cautela. A moça falou
peremptoriamente e eles passaram.
— Este homem está comigo. Sou Samia de Fife — disse ela.
Levou alguns segundos para o cansado Terens ouvir e entender
aquelas palavras. Quando fez um movimento brusco e tenso para a
frente, o carro estava percorrendo as vias expressas a cem por
hora.
····
Um trabalhador dentro do porto alçou os olhos de onde estava e
murmurou breves palavras na lapela. Depois entrou no prédio e
voltou ao trabalho. Seu superintendente franziu o cenho e anotou
mentalmente que devia falar com Tip sobre o hábito de se demorar
lá fora para fumar cigarros durante meia hora de cada vez.
Do lado de fora do porto, um homem em um carro terrestre falou
para o outro com irritação:
— Entrou em um carro com uma garota? Que carro? Que
garota? — Apesar das roupas sarkitas, seu sotaque definitivamente
pertencia aos planetas arcturianos do império trantoriano.
Seu companheiro era sarkita, bastante versado em
visicomunicados à imprensa. Quando o carro em questão passou
pelo portão e pegou velocidade, ao começar a guinar e subir para o
nível da via expressa, ele se soergueu no assento e gritou:
— É o carro de lady Samia de Fife. Não existe outro igual.
Grande Galáxia, o que vamos fazer?
— Segui-los — disse o outro em poucas palavras.
— Mas lady Samia…
— Ela não significa nada para mim. Não deveria significar para
você também. Do contrário, o que você está fazendo aqui?
O carro deles estava fazendo a volta, subindo para as amplas
faixas quase vazias nas quais só eram permitidas as viagens mais
rápidas em carro aéreo.
— Não podemos alcançar aquele carro — resmungou o sarkita.
— Assim que ela nos vir, vai eliminar a resistência. Aquele carro
pode chegar a duzentos e cinquenta.
— Ela está a cem por enquanto — falou o arcturiano.
Depois de um tempo, ele disse:
— Ela não está indo para o Depseg. Isso é certo.
Depois de mais um tempo, acrescentou:
— Ela não está indo para o palácio de Fife.
Houve outro intervalo, então ele comentou:
— Pelo espaço, não faço ideia de para onde ela está indo. Vai
sair da cidade de novo.
— Como sabemos que é o matador de nobres que está lá? —
perguntou o sarkita. — E se for um esquema para nos afastar do
posto? Ela não está tentando se livrar de nós e não usaria um carro
desses se não quisesse ser seguida. Não dá para deixar de ver em
um raio de pouco mais de três quilômetros.
— Eu sei, mas Fife não mandaria a filha para nos tirar do
caminho. Um esquadrão de patrulheiros teria feito o trabalho melhor.
— Talvez não seja a lady de verdade no carro.
— Nós vamos descobrir, colega. Ela está diminuindo a
velocidade. Ultrapasse e pare depois de uma curva!
····
— Quero conversar com você — disse a garota.
Terens concluiu que não era o tipo comum de armadilha que
considerara ser a princípio. Ela era a lady de Fife. Devia ser. Não
pareceu lhe passar pela cabeça que alguém pudesse ou devesse
impedi-la.
Ela jamais olhara para trás para ver se estava sendo seguida.
Por três vezes ele notara o mesmo carro logo atrás quando viraram,
mantendo distância, nem se aproximando nem se afastando.
Não era só um carro. Isso era certo. Poderia ser Trantor, o que
seria bom. Poderia ser Sark e, nesse caso, a lady seria um bom tipo
de refém.
— Estou pronto para falar — disse ele.
— Você estava na nave que trouxe o nativo de Florina? —
perguntou ela. — Aquele procurado por todos aqueles
assassinatos?
— Eu falei que estava.
— Muito bem. Eu trouxe você aqui para que não houvesse
nenhuma interferência. O nativo foi interrogado durante a viagem
para Sark?
Tanta ingenuidade, pensou Terens, não pode ser fingimento. Ela
realmente não sabia quem ele era.
— Foi — respondeu ele com cautela.
— Você estava presente no interrogatório?
— Estava.
— Ótimo. Eu pensei que estivesse. Por que saiu da nave, a
propósito?
Essa, pensou Terens, deveria ter sido a primeira pergunta.
— Eu devia levar — falou — um relatório especial para… — Ele
hesitou.
Ela se agarrou à hesitação com avidez.
— Para o meu pai? Não se preocupe com isso. Vou dar a você
total proteção. Vou dizer que veio comigo porque eu mandei.
— Muito bem, milady.
A expressão “milady” penetrou bem fundo em sua consciência.
Ela era uma lady, a maior daquela terra, e ele um floriniano. Um
homem capaz de matar patrulheiros também poderia aprender
facilmente a matar nobres, e um matador de nobres poderia, do
mesmo modo, olhar no rosto de uma lady.
Ele a fitou, com olhos firmes e perscrutadores. Ergueu a cabeça
e olhou para ela de cima a baixo.
Era muito bonita.
E, sendo a mais importante lady daquela terra, não se deu conta
do seu olhar.
— Quero que me conte tudo o que ouviu no interrogatório —
disse ela. — Quero saber tudo o que o nativo falou para você. É
muito importante.
— Posso saber por que a senhorita está interessada no nativo,
milady?
— Não pode — respondeu ela terminantemente.
— Como quiser, milady.
Ele não sabia o que ia dizer. Com metade da consciência,
esperava que o carro que os seguia os alcançasse. Com a outra
metade, prestava cada vez mais atenção ao rosto e ao corpo da
bela garota sentada ao seu lado.
Os florinianos do Serviço Público e aqueles trabalhando como
citadinos eram, teoricamente, celibatários. Na prática, a maioria
burlava essa restrição quando podia. Terens fizera o que se atrevera
a fazer e o que era conveniente nesse sentido. Na melhor das
hipóteses, suas experiências nunca haviam sido satisfatórias.
Portanto, era mais importante ainda o fato de que ele jamais
estivera tão perto de uma garota bonita em um carro tão luxuoso e
em condições de tamanha privacidade.
Ela estava esperando que ele falasse, com os olhos escuros —
tão escuros — flamejando de interesse, os lábios carnudos e
vermelhos entreabertos em antecipação; uma figura ainda mais bela
por estar usando kyrt. Ela não tinha a menor consciência de que
qualquer um, qualquer um pudesse se atrever a nutrir pensamentos
perigosos a respeito da lady de Fife.
A metade da consciência que esperava os perseguidores
desvaneceu.
De repente, ele descobriu que o assassinato de um nobre não
era o maior dos crimes, afinal.
Ele não estava completamente ciente de ter se mexido. Sabia
apenas que o corpo pequeno da moça estava em seus braços, que
aquele corpo se distendeu, que, por um instante, ela gritou, e então
ele abafou o grito com os lábios…
····
Havia mãos sobre seu ombro e um fluxo de ar frio nas suas costas
que entrara pela porta aberta do carro. Seus dedos tatearam em
busca da arma, tarde demais. Ela fora arrancada de sua mão.
Samia ofegou, sem palavras.
— Você viu o que ele fez? — comentou o sarkita, horrorizado.
— Esqueça isso! — exclamou o arcturiano.
Ele colocou um pequeno objeto preto no bolso e fechou a
abertura, alisando o tecido.
— Pegue-o — ele falou.
O sarkita arrastou Terens para fora do carro com a energia da
fúria.
— E ela deixou — murmurou ele. — Ela deixou.
— Quem são vocês? — gritou Samia com súbito vigor. — Meu
pai mandou vocês?
— Sem perguntas, por favor — disse o arcturiano.
— Você é um estrangeiro — replicou Samia com raiva.
— Por Sark, vou arrebentar a cabeça dele — falou o sarkita. Ele
cerrou o punho.
— Pare! — exclamou o arcturiano. Ele agarrou o punho do
sarkita e o forçou a abaixar o braço.
— Existem limites — resmungou o sarkita em tom taciturno. —
Posso tolerar os assassinatos dos nobres. Eu próprio gostaria de
matar alguns. Mas ficar parado vendo um nativo fazer o que ele fez
é demais para mim.
— Nativo? — disse Samia, com a voz estranhamente aguda.
O sarkita inclinou-se para a frente e arrancou com violência a
boina de Terens. O citadino empalideceu, mas não se mexeu. Não
tirou os olhos da garota e seu cabelo claro agitou-se de leve ao
sabor da brisa.
Impotente, Samia voltou a recostar-se no assento do carro até
onde pôde, e então, com um rápido movimento, cobriu o rosto com
as duas mãos, a pele empalidecendo sob a pressão dos dedos.
— O que vamos fazer com ela? — perguntou o sarkita.
— Nada.
— Ela viu a gente. Vai mandar o planeta inteiro nos procurar
antes de termos percorrido um quilômetro.
— Você vai matar a lady de Fife? — perguntou o arcturiano
sarcasticamente.
— Bom, não. Mas podemos destruir o carro dela. Quando ela
encontrar um radiofone, vamos estar bem.
— Não é necessário. — O arcturiano inclinou-se na direção do
carro. — Milady, só tenho um minuto. A senhorita pode me ouvir?
Ela não se mexeu.
— É melhor me ouvir — continuou o arcturiano. — Lamento tê-la
interrompido em um momento de ternura, mas, por sorte, fiz uso
desse momento. Agi rápido e consegui registrar a cena com uma
tricâmera. Não estou blefando. Vou transferir o negativo para um
lugar seguro minutos depois que eu sair e, portanto, qualquer
interferência da sua parte vai me forçar a ser desagradável. Tenho
certeza de que me entende.
Ele virou as costas.
— Ela não vai dizer nada sobre isso. Nadinha. Venha comigo,
citadino.
Terens o seguiu. Não foi capaz de olhar para o rosto pálido e
aflito no carro.
O que quer que fosse acontecer agora, ele realizara um milagre.
Por um instante, beijara a lady mais orgulhosa de Sark, sentindo o
toque fugaz de seus lábios macios e perfumados.
O ACUSADO
— Vamos acabar com essa farsa — disse Fife, com uma paixão
rigorosamente controlada.
Ele esperara antes de falar, com os olhos firmes e o rosto
inexpressivo, até que, em um absoluto anticlímax, o resto foi forçado
a se sentar de novo. Rik inclinara a cabeça, de olhos dolorosamente
fechados, sondando a própria mente dolorida. Valona puxou-o para
perto de si, tentando com afinco aninhar a cabeça dele em seu
ombro, acariciando-lhe o rosto com delicadeza.
— Por que você diz que é uma farsa? — perguntou Abel,
trêmulo.
— E não é? — retrucou Fife. — Concordei em participar dessa
reunião, em primeiro lugar, só por causa de uma ameaça em
particular que você me fez. Eu teria recusado mesmo assim se
soubesse que o objetivo da reunião era me julgar com renegados e
assassinos agindo tanto como promotores quanto como júri.
Abel franziu o cenho e retorquiu, com uma formalidade fria:
— Isso não é um julgamento, nobre. O dr. Junz está aqui para
resgatar um membro da AIE, como é seu direito e dever. Eu estou
aqui para proteger os interesses de Trantor em um momento
conturbado. Não me restou dúvida de que esse homem, Rik, é o
espaçoanalista desaparecido. Podemos terminar essa parte da
reunião de imediato se você concordar em entregar o homem para o
dr. Junz para exames mais detalhados, inclusive uma verificação de
características físicas. Naturalmente, nós pediríamos uma
assistência adicional para encontrar o culpado pela aplicação da
sonda psíquica e para estabelecer salvaguardas contra uma futura
repetição de tais atos contra aquela que é, afinal, uma agência
interestelar que sempre esteve acima da política regional.
— Um discurso e tanto! — exclamou Fife. — Mas o óbvio
continua sendo óbvio e os seus planos são muito transparentes. O
que aconteceria se eu entregasse este homem? Prefiro pensar que
a AIE vai conseguir descobrir exatamente o que quer descobrir. Ela
afirma ser uma agência interestelar sem ligações regionais, mas o
fato é que Trantor contribui com dois terços do orçamento anual,
não é? Duvido que qualquer observador sensato a consideraria
realmente neutra na Galáxia de hoje. Suas descobertas em relação
a este homem com certeza atenderão aos interesses imperialistas
de Trantor.
“E quais serão essas descobertas? Isso também está claro. A
memória desse homem voltará lentamente. A AIE emitirá boletins
diários. Pouco a pouco, ele se lembrará cada vez mais dos detalhes
necessários. Primeiro o meu nome. Depois a minha aparência. Em
seguida, as exatas palavras que eu disse. Vou ser solenemente
declarado culpado. Vão exigir reparações e Trantor será forçado a
ocupar Sark temporariamente, uma ocupação que de alguma forma
se tornará permanente.
“Existe um limite além do qual qualquer chantagem cai por terra.
A sua, senhor embaixador, termina aqui. Se quiser este homem,
diga a Trantor para enviar uma frota para buscá-lo.”
— Não é uma questão para o uso de força — falou Abel. — No
entanto, percebo que você cuidadosamente evitou negar a
implicação do que o espaçoanalista disse por último.
— Não existe nenhuma implicação que eu precise dignificar com
uma negação. Ele lembra uma palavra, ou diz lembrar. E daí?
— O fato de ele lembrar não significa nada?
— Absolutamente nada. O nome Fife é importante em Sark.
Mesmo se presumirmos que o suposto espaçoanalista seja sincero,
ele teve um ano para ouvir o nome em Florina. Veio para Sark na
nave que transportava a minha filha, uma oportunidade ainda
melhor de ter ouvido o nome Fife. O que é mais natural do que o
nome se embaralhar com os vestígios da memória dele? Claro,
pode ser que não seja sincero. Essas revelações pouco a pouco
podem muito bem ser ensaiadas.
Abel não pensou em nada para dizer. Olhou para os outros. Junz
franzia sombriamente o cenho, enquanto os dedos da mão direita
alisavam devagar o queixo. Steen dava sorrisos afetados e falava
consigo mesmo. O citadino floriniano olhava inexpressivamente para
os joelhos.
Foi Rik quem falou, soltando-se do abraço de Valona e
levantando-se.
— Escutem — ele disse. Seu rosto pálido estava distorcido.
Seus olhos refletiam dor.
— Outra revelação, suponho — comentou Fife.
— Escutem! — exclamou Rik. — Nós estávamos sentados a
uma mesa. O chá estava batizado. Nós estávamos discutindo. Não
lembro por quê. Depois eu não conseguia me mexer. Só conseguia
ficar ali parado. Não conseguia falar. Só conseguia pensar: Grande
Espaço, fui drogado. Eu queria gritar e berrar e correr, mas não
podia. Então veio o outro, Fife. Ele tinha gritado comigo. Só que
agora não estava gritando. Não precisava. Ele contornou a mesa.
Ficou ali, pairando sobre mim. Eu não podia dizer nada. Não podia
fazer nada. Só consegui tentar erguer a cabeça em direção a ele.
Rik permaneceu de pé, calado.
— Esse outro homem era Fife? — perguntou Junz.
— Lembro que o nome dele era Fife.
— Bem, ele era aquele homem?
Rik não se virou para olhar.
— Não consigo me lembrar da aparência dele — respondeu.
— Tem certeza?
— Eu estou tentando. Vocês não sabem como é difícil —
disparou ele. — Dói! É como uma agulha em brasa. Bem fundo!
Aqui! — Ele colocou a mão na cabeça.
— Sei que é difícil — falou Junz, suavemente. — Mas você
precisa tentar. Não vê que precisa continuar tentando? Olhe para
aquele homem! Vire-se e olhe para ele!
Rik voltou-se para o nobre de Fife. Olhou por um momento,
depois virou de costas.
— Consegue se lembrar agora? — indagou Junz.
— Não! Não!
Fife deu um sorriso sinistro.
— O seu homem esqueceu as falas dele ou a história vai parecer
mais crível se ele se lembrar do meu rosto da próxima vez?
— Eu nunca vi esse homem antes e nunca falei com ele —
retrucou Junz, em um tom acalorado. — Não houve nenhum acordo
para incriminar você e estou cansado das suas acusações nesse
sentido. Só quero a verdade.
— Então, posso fazer algumas perguntas para ele?
— Vá em frente.
— Obrigado pela gentileza. Agora você… Rik, ou qualquer que
seja o seu nome verdadeiro…
Ele era um nobre dirigindo-se a um floriniano.
Rik alçou os olhos.
— Sim, senhor.
— Você se lembra de um homem se aproximando de você pelo
outro lado da mesa onde estava sentado, drogado e indefeso.
— Sim, senhor.
— Você olhou para ele, ou tentou olhar.
— Sim, senhor.
— Sente-se.
Rik se sentou.
Por um momento, Fife não fez nada. Talvez tenha cerrado mais a
boca de lábios finíssimos; os músculos do maxilar, sob o brilho azul
enegrecido da barba por fazer que lhe cobria o rosto e o queixo,
moveram-se um pouco. Então ele escorregou cadeira abaixo.
Escorregou abaixo! Era como se tivesse se ajoelhado atrás da
mesa.
Mas ele saiu de trás da mesa e foi possível ver claramente que
estava de pé.
A cabeça de Junz rodou. O homem, tão escultural e formidável
em seu assento, transformara-se sem nenhum aviso em um mísero
anão.
As pernas deformadas de Fife se mexiam debaixo dele com
esforço, levando adiante a desengonçada massa do torso e da
cabeça. Seu rosto enrubesceu, mas seus olhos mantiveram o ar de
arrogância intacto. Steen soltou uma gargalhada e sufocou-a
quando aqueles olhos se voltaram para ele. Os demais ficaram em
um silêncio fascinado.
Rik, com os olhos arregalados, observou-o se aproximar.
— Fui eu o homem que se aproximou de você contornando a
mesa? — perguntou Fife.
— Não consigo me lembrar do rosto dele, senhor.
— Não peço que se lembre do rosto dele. Será possível que
você tenha se esquecido disso? — Ele fez um gesto largo com os
dois braços, enquadrando seu corpo. — Será possível que você
tenha se esquecido da minha aparência, do meu jeito de andar?
— Parece que não deveria, senhor, mas não sei — respondeu
Rik em tom lastimoso.
— Mas você estava sentado, ele estava de pé e você levantou a
cabeça para olhar para ele.
— Sim, senhor.
— Ele abaixou a cabeça para olhar para você, “pairando” sobre
você, na verdade.
— Sim, senhor.
— Você se lembra disso pelo menos? Está seguro desse fato?
— Sim, senhor.
Os dois estavam cara a cara agora.
— Estou abaixando a cabeça para olhar para você?
— Não, senhor — respondeu Rik.
— Você ergueu a cabeça para olhar para mim?
Rik, sentado, e Fife, de pé, olhavam um para o outro no mesmo
nível, olho a olho.
— Não, senhor.
— Eu poderia ter sido esse homem?
— Não, senhor.
— Tem certeza?
— Sim, senhor.
— Você continua dizendo que o nome de que se lembra é Fife?
— Eu me lembro desse nome — insistiu Rik obstinadamente.
— Quem quer que tenha sido, então, usou meu nome como
disfarce?
— Ele… deve ter usado.
Fife virou-se; então, com vagarosa dignidade, voltou com
dificuldade para a mesa e subiu na cadeira.
— Nunca permiti que nenhum homem me visse de pé antes em
toda a minha vida adulta — falou ele. — Existe algum motivo para
essa reunião continuar?
Abel ficou constrangido e irritado ao mesmo tempo. Até o
momento, a reunião fora muito contraproducente. A cada passo, Fife
conseguira se colocar do lado certo e os outros, do lado errado.
Fora bem-sucedido em apresentar-se como mártir. Havia sido
forçado a participar daquela reunião por causa de uma chantagem
trantoriana e se tornara objeto de acusações falsas que haviam
caído por terra de imediato.
Fife trataria de inundar a Galáxia com a sua versão da reunião e
não teria de se afastar muito da verdade para transformá-la em uma
excelente propaganda antitrantoriana.
Abel gostaria de poder diminuir o prejuízo. O espaçoanalista que
sofrera uma sondagem psíquica seria inútil para Trantor agora.
Ririam de qualquer “lembrança” que ele pudesse ter de agora em
diante e a ridicularizariam, por mais verdadeira que fosse. Ele seria
considerado um instrumento do colonialismo trantoriano; um
instrumento quebrado, aliás.
Mas ele hesitou, e foi Junz quem falou.
— Me parece que existe uma razão muito boa para não terminar
a reunião ainda — disse Junz. — Não determinamos exatamente
quem foi o responsável pela sondagem psíquica. O senhor acusou o
nobre de Steen e Steen acusou o senhor. Pressupondo que os dois
estejam enganados e que os dois sejam inocentes, continua sendo
verdade que cada um de vocês acredita que um dos grandes nobres
é culpado. Então, qual?
— Isso importa? — perguntou Fife. — No que se refere a vocês,
tenho certeza de que não. Essa questão estaria resolvida a essa
altura não fosse a interferência de Trantor e da AIE. Vamos acabar
descobrindo o traidor. Lembre-se de que o responsável pela
sondagem psíquica, seja quem for, tinha a intenção original de
conseguir à força que um monopólio de kyrt fosse parar em suas
mãos, então é pouco provável que eu vá deixá-lo escapar. Quando
identificarmos o responsável e cuidarmos dele, o seu homem aqui
será devolvido a vocês ileso. Essa é a única oferta que posso fazer,
e é uma oferta razoável.
— O que você vai fazer com o homem que aplicou a sonda
psíquica?
— Essa é uma questão estritamente interna que não é da sua
conta.
— Ah, é, sim — contestou Junz energicamente. — Não se trata
apenas do espaçoanalista. Existe algo mais importante envolvido e
estou surpreso que ninguém o tenha mencionado ainda. Não
aplicaram a sonda psíquica nesse homem, Rik, só porque ele era
espaçoanalista.
Abel não sabia ao certo quais eram as intenções de Junz
naquele momento, mas colocou seu peso na balança.
— O dr. Junz está se referindo, claro, à mensagem original de
perigo do espaçoanalista — disse em um tom brando.
Fife deu de ombros.
— Até onde sei, ninguém deu importância a isso até agora,
inclusive o dr. Junz nesse último ano. No entanto, o seu homem está
aqui, doutor. Pergunte a ele que história é essa.
— Naturalmente, ele não vai se lembrar — retorquiu Junz,
irritado. — A sonda psíquica é mais eficaz sobre as redes mais
intelectuais de raciocínio armazenadas na mente. Esse homem
pode nunca recuperar os aspectos quantitativos do seu trabalho de
uma vida.
— Então já era — disse Fife. — O que se pode fazer a esse
respeito?
— Algo muito concreto. Essa é a questão. Existe outra pessoa
que sabe, e é o sondador. Ele pode não ser um espaçoanalista,
pode não saber os detalhes exatos. Porém, conversou com o
homem quando sua mente estava intocada. Deve ter descoberto o
bastante para nos colocar na trilha certa. Sem ter descoberto o
suficiente, ele não teria se atrevido a destruir a fonte de informação.
Mas, só para constar, você lembra, Rik?
— Apenas que havia perigo e que envolvia as correntes do
espaço — murmurou Rik.
— Mesmo se você descobrir, o que vai ter? — indagou Fife. —
Até que ponto são confiáveis as teorias alarmantes que esses
espaçoanalistas loucos estão sempre criando? Muitos deles acham
que conhecem os segredos do universo, quando estão tão loucos
que mal conseguem ler seus instrumentos.
— Talvez esteja certo. O senhor está com medo de me deixar
descobrir?
— Sou contra criar rumores, sejam verdadeiros ou falsos, que
possam afetar o comércio de kyrt. Não concorda comigo, Abel?
Abel contorceu-se por dentro. Fife estava se colocando em uma
posição de onde qualquer interrupção nas entregas de kyrt
resultantes de seu próprio golpe pudessem ser imputadas a
manobras trantorianas. Mas Abel era um bom jogador. Ele
aumentou as apostas calma e impassivelmente.
— Não — respondeu. — Sugiro que você ouça o dr. Junz.
— Obrigado — disse Junz. — Agora o senhor falou, nobre Fife,
que quem quer que tenha aplicado a sonda psíquica deve ter
matado o médico que examinou o Rik. Isso implica que o sondador
manteve alguma espécie de vigilância sobre o Rik durante o tempo
que ele ficou em Florina.
— E daí?
— Devem existir sinais dessa vigilância.
— Quer dizer que acha que esses nativos saberiam quem estava
de olho neles?
— Por que não?
— Você não é sarkita, então comete erros — respondeu Fife. —
Eu lhe garanto que os nativos ficam em seus lugares. Não se
aproximam dos nobres e, se os nobres se aproximarem deles, eles
sabem que devem olhar para baixo. Não saberiam nada sobre ser
observados.
Junz visivelmente estremeceu de indignação. Os nobres tinham
o despotismo tão arraigado que não viam nada de errado ou
vergonhoso em falar sobre ele às claras.
— Os nativos comuns, talvez — ponderou ele. — Mas temos um
homem aqui que não é um nativo comum. Acho que ele nos
mostrou exaustivamente que não é um floriniano respeitoso o
bastante. Até agora não contribuiu em nada para a discussão, e
está na hora de fazer algumas perguntas para ele.
— A evidência daquele nativo não vale nada — disse Fife. — Na
verdade, aproveito a oportunidade mais uma vez para exigir que
Trantor o entregue para um julgamento adequado nas cortes de
Sark.
— Deixe-me conversar com ele primeiro.
— Acho que não custa nada fazer algumas perguntas para ele,
Fife — interveio Abel, com um tom ameno. — Se ele não cooperar
ou se mostrar indigno de confiança, podemos considerar o seu
pedido de extradição.
Terens, que até o momento se concentrara imperturbavelmente
nos dedos de suas mãos entrelaçadas, levantou os olhos por um
breve instante.
Junz voltou-se para Terens.
— Rik esteve na sua cidade desde que foi encontrado em
Florina, não esteve? — perguntou ele.
— Esteve.
— E você esteve na cidade o tempo todo? Quero dizer, você não
fez nenhuma viagem de trabalho demorada, fez?
— Citadinos não fazem viagens de trabalho. Seu trabalho é a
sua cidade.
— Certo. Agora relaxe e não se melindre. Faria parte do seu
trabalho saber se algum nobre viesse para a cidade, imagino.
— Claro. Quando eles vêm.
— Eles vieram?
Terens deu de ombros.
— Uma ou duas vezes. Pura rotina, eu lhe garanto. Os nobres
não sujam suas mãos com kyrt. Isto é, kyrt não processado.
— Mais respeito! — bradou Fife.
Terens olhou para ele e retrucou:
— Você pode me obrigar?
— Vamos manter isso entre o homem e o dr. Junz, Fife —
interrompeu Abel suavemente. — Você e eu somos espectadores.
Junz sentiu um brilho de satisfação com a insolência do citadino,
mas disse:
— Responda às minhas perguntas sem comentários extras, por
favor, citadino. Agora, quem eram exatamente os nobres que
visitaram a sua cidade neste último ano?
— Como posso saber? — retorquiu Terens em um tom
impetuoso. — Não sei responder a essa pergunta. Nobres são
nobres e nativos são nativos. Posso ser citadino, mas ainda sou um
nativo para eles. Não vou aos portões da cidade para cumprimentá-
los e perguntar seus nomes.
“Eu recebo uma mensagem, só isso. Ela vem endereçada para o
‘citadino’. Diz que haverá uma inspeção de nobre em tal e tal dia e
que devo tomar as providências necessárias. Então tenho que
garantir que os funcionários das fábricas estejam vestidos com suas
melhores roupas, que a fábrica esteja limpa e funcionando
adequadamente, que o estoque de kyrt seja amplo, que todos
pareçam contentes e satisfeitos, que as casas estejam limpas e as
ruas policiadas, que alguns dançarinos estejam à mão caso os
nobres queiram ver alguma dança nativa divertida, que talvez
algumas belas m…”
— Esse detalhe não importa, citadino — interveio Junz.
— Para você não importa. Para mim, sim.
Após suas experiências com os florinianos do Serviço Público,
Junz achou o citadino tão revigorante como um copo de água
gelada. Decidiu que usaria qualquer influência que a AIE pudesse
exercer para evitar que o citadino fosse entregue aos nobres.
— De qualquer forma, essa é a minha parte — continuou Terens,
em um tom mais calmo. — Quando eles vêm, eu entro na fila junto
com os outros. Não sei quem são. Não falo com eles.
— Houve alguma dessas inspeções na semana anterior à morte
do médico da Cidade? Suponho que você saiba em que semana
isso aconteceu.
— Acho que ouvi nos noticiários. Creio que não houve nenhuma
inspeção de nobres naquele momento. Não posso afirmar com
certeza.
— A quem pertence a sua terra?
Terens deu um meio sorriso.
— Ao nobre de Fife.
Steen pronunciou-se, interrompendo a conversa entre os dois
com uma subitaneidade um tanto surpreendente.
— Ah, olhe aqui. Sinceramente! Você está fazendo o jogo do Fife
com esse tipo de interrogatório, dr. Junz. Você não vê que não vai
chegar a lugar nenhum? Verdade! Você acha que, se Fife tivesse
interesse em vigiar aquela criatura ali, ele se daria o trabalho de
fazer viagens a Florina para olhar para ele? Para que servem os
patrulheiros? Francamente!
Junz pareceu confuso.
— Em um caso desses, com a economia de um planeta e talvez
sua segurança física dependendo do conteúdo da mente de um
homem, seria natural que o sondador não quisesse deixar a guarda
aos cuidados dos patrulheiros.
— Mesmo depois de ter eliminado essa mente, para todos os
efeitos? — interveio Fife.
Abel projetou o lábio inferior e franziu a testa. Viu sua última
aposta cair nas mãos de Fife, com todo o resto.
— Havia algum patrulheiro ou grupo de patrulheiros em particular
que estava sempre em solo? — voltou a tentar Junz, hesitante.
— Eu jamais saberia. Eles são apenas uniformes para mim.
Junz virou-se para Valona com o efeito de um salto repentino.
Um momento antes, ela ficara muito pálida e seus olhos estavam
arregalados e fixos. Junz não deixara de notar isso.
— E você, garota? — indagou ele.
Ela apenas chacoalhou a cabeça, sem dizer nada.
Abel pensava gravemente: Não há mais nada a fazer. Acabou.
Mas Valona se pôs de pé, trêmula.
— Quero dizer uma coisa — falou, em um murmúrio rouco.
— Continue, garota — encorajou Junz. — O que é?
Valona falava de modo ofegante, com um medo nítido em cada
linha de seu semblante e em cada contração nervosa dos dedos.
— Sou só uma moça do campo — disse ela. — Por favor, não
fiquem bravos comigo. Mas parece que as coisas só podem ser de
uma maneira. O meu Rik era tão importante assim? Quero dizer,
como vocês dizem?
— Acho que ele era muito, muito importante. Acho que ainda é
— respondeu Junz gentilmente.
— Então deve ter sido como você falou. Quem quer que tenha
colocado Rik em Florina não teria se atrevido a tirar os olhos dele
nem um minuto sequer, teria? Quero dizer, suponhamos que Rik
apanhasse do superintendente ou fosse apedrejado pelas crianças
ou ficasse doente e morresse. Não deixariam que ele ficasse
desamparado no campo, onde ele poderia morrer antes de ser
encontrado, deixariam? Não iriam pensar que sorte seria suficiente
para mantê-lo a salvo. — Ela falava com intensa fluência agora.
— Continue — disse Junz, observando-a.
— Porque houve uma pessoa que observou Rik desde o
começo. Ele o encontrou no campo, providenciou que eu cuidasse
dele, que o mantivesse longe de problemas e ficava sabendo dele
todos os dias. Sabia até sobre o médico porque eu contei. Foi ele!
Foi ele!
Gritando, apontou o dedo rigidamente para Myrlyn Terens, o
citadino.
E, desta vez, até a calma sobre-humana de Fife desapareceu e
seus braços se estenderam sobre a mesa, soerguendo o corpo
maciço quase três centímetros enquanto girava a cabeça
rapidamente em direção ao citadino.
OS VITORIOSOS