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As Correntes Do Espaco - Isaac Asimov

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Sumário

Folha de rosto
Dedicatória

Prólogo
1. O órfão
2. O citadino
3. A bibliotecária
4. O rebelde
5. O cientista
6. O embaixador
7. O patrulheiro
8. A lady
9. O nobre
10. O fugitivo
11. O capitão
12. O detetive
13. O iatista
14. O renegado
15. O cativo
16. O acusado
17. O acusador
18. Os vitoriosos
Epílogo

Posfácio
Créditos
PARA DAVID,
QUE DEMOROU PARA VIR
MAS VALEU A PENA ESPERAR.
PRÓLOGO
UM ANO ANTES

O terráqueo tomou uma decisão. Ela demorara a chegar e tomar


corpo, mas estava lá.
Fazia semanas desde a última vez que sentira o reconfortante
convés de sua nave e o fresco e escuro manto do espaço em torno
dela. A princípio, pretendera passar um breve relatório para o
escritório local da Agência Interestelar de Espaçoanálise e dar uma
volta ainda mais breve no espaço. Em vez disso, fora forçado a
permanecer ali.
Era quase como uma prisão.
Ele tomou o resto do chá e olhou para o homem do outro lado da
mesa.
— Não vou mais ficar aqui — disse.
····
O outro homem tomou uma decisão. Ela demorara a chegar e tomar
corpo, mas estava lá. Ele precisaria de tempo, muito mais tempo. A
resposta às primeiras cartas havia sido nula. Considerando tudo o
que haviam conseguido, era o mesmo que tivessem caído em uma
estrela.
Ele não esperara mais do que isso; ou melhor, não esperara
menos. Mas era apenas a primeira jogada.
Estava claro que, enquanto futuras jogadas se desenrolavam,
não podia permitir que o terráqueo ficasse fora de alcance. Ele
tateava o bastonete preto dentro do bolso.
— Você não está entendendo a delicadeza do problema — falou.
····
— O que há de delicado na destruição de um planeta? — perguntou
o terráqueo. — Quero que você divulgue os detalhes para o planeta
Sark inteiro, para todo mundo.
— Não podemos fazer isso. Você sabe que significaria pânico.
— Antes você disse que divulgaria.
— Eu pensei bem e simplesmente acho que não é prático.
O terráqueo se voltou para uma segunda queixa.
— O representante da AIE ainda não chegou.
— Eu sei. Eles estão ocupados organizando os procedimentos
adequados para esta crise. Mais um ou dois dias.
— Mais um ou dois dias? Sempre é mais um ou dois dias! Estão
tão ocupados assim que não podem me dar um momento de
atenção? Eles não viram os meus cálculos.
— Eu me ofereci para levar seus cálculos para eles. Você não
quis.
— E continuo não querendo. Eles podem vir ao meu encontro ou
eu posso ir ao encontro deles — acrescentou com veemência. —
Acho que você não acredita em mim. Você não acredita que Florina
será destruída.
— Acredito em você.
— Não acredita, não. Sei que não acredita. Vejo que não
acredita. Está dizendo isso só para me animar. Você não consegue
entender os meus dados. Você não é espaçoanalista. Acho que nem
é quem diz ser. Quem é você?
— Você está ficando agitado.
— Estou mesmo. Isso o surpreende? Ou você está apenas
pensando: pobre diabo, o espaço mexeu com a cabeça dele. Você
acha que eu sou louco.
— Bobagem.
— Claro que acha. É por isso que quero ver a AIE. Eles vão saber
se sou louco ou não. Eles vão saber.
O outro homem se lembrou de sua decisão.
— Puxa, você não está se sentindo bem. Vou ajudá-lo — falou.
— Não, não vai — gritou o terráqueo, histérico —, porque eu vou
embora. Se quiser me deter, me mate, só que você não vai se
atrever a fazer isso. Você vai ter nas mãos o sangue de um mundo
inteiro cheio de gente se me matar.
O outro homem começou a gritar também para se fazer ouvido.
— Não vou matar você. Me escute, não vou matar você. Não é
necessário.
— Você vai me amarrar — retrucou o terráqueo. — Vai me
manter aqui. É nisso que está pensando? E o que vai fazer quando
a AIE começar a procurar por mim? Eu deveria mandar relatórios
regulares, sabe?
— A Agência sabe que você está seguro comigo.
— Sabe mesmo? Fico me perguntando se eles sabem que
cheguei ao planeta. Fico me perguntando se receberam minha
mensagem original. — O terráqueo estava tonto. Seus membros
pareciam contraídos.
O outro homem se pôs de pé. Parecia-lhe óbvio que chegara a
uma decisão bem a tempo. Caminhou devagar ao redor da
comprida mesa em direção ao terráqueo.
— Será para o seu próprio bem — disse, em um tom
tranquilizador. Ele tirou o bastonete preto do bolso.
— É uma sonda psíquica. — O terráqueo balbuciou as palavras
de um jeito enrolado e, quando tentou se levantar, seus braços e
pernas mal se mexeram.
— Fui drogado! — exclamou ele por entre dentes que se
cerravam, rígidos.
— Foi drogado! — concordou o outro. — Mas, veja, não vou
machucá-lo. É difícil para você entender o verdadeiro nível de
delicadeza da questão enquanto está tão agitado e ansioso por
conta desse assunto. Vou simplesmente tirar essa ansiedade de
você. Só a ansiedade.
O terráqueo não conseguiu mais falar. Pôde apenas permanecer
ali, sentado. Pôde apenas pensar: Grande Espaço, fui drogado. Ele
queria gritar e berrar e correr, mas não podia.
O outro chegou perto do terráqueo nesse momento. Ficou ali,
parado, olhando para ele. O terráqueo alçou o olhar. Seus globos
oculares ainda podiam se mexer.
A sonda psíquica era uma unidade autossuficiente. Só era
preciso fixar seus fios nas partes apropriadas da cabeça. O
terráqueo observou em estado de pânico até que os músculos de
seus olhos paralisaram. Ele não sentiu a leve picada quando os fios
condutores perfuraram sua pele e sua carne para ficar em contato
com as suturas dos ossos do crânio.
Ele gritou e gritou no silêncio de sua mente. Gritou: Não, você
não entende. É um planeta cheio de gente. Você não vê que não
pode correr riscos com centenas de milhares de seres vivos?.
As palavras do outro homem eram tênues e distantes, ouvidas
da outra extremidade de um comprido túnel batido pelo vento.
— Isso não vai machucar você. Daqui a uma hora vai se sentir
bem, muito bem. Vamos rir de tudo isso juntos.
O terráqueo sentiu a leve vibração contra o seu crânio e depois
desvaneceu também.
A escuridão se intensificou e desabou à sua volta. Parte dela
jamais se dissipou. Levou um ano até mesmo para que parte dela
se dissipasse.
O ÓRFÃO

Rik pousou o alimentador sobre a mesa e levantou-se de um salto.


Tremia tanto que teve de se apoiar na parede, vazia e branca como
leite.
— Eu me lembro! — gritou ele.
Eles olharam para o rapaz, e o murmúrio vigoroso de homens
em horário de almoço diminuiu um pouco. Olhares que vinham de
rostos indiferentemente limpos e indiferentemente barbeados,
brancos e brilhantes sob a iluminação imperfeita da parede,
cruzaram-se com o seu. Os olhos não refletiam grande interesse;
apenas a atenção involuntária provocada pelo grito repentino e
inesperado.
— Eu me lembro do meu emprego. Eu tinha um emprego! —
gritou Rik outra vez.
— Cala a boca! — disse alguém.
— Senta aí! — gritou outro.
As pessoas desviaram o rosto, e o murmúrio voltou a aumentar.
Rik ficou olhando fixamente para a mesa. Ouviu o comentário “Rik
Maluco” e viu alguém dar de ombros. Viu um homem fazer um gesto
em espiral à altura da têmpora. Tudo aquilo não significava nada
para ele. Não havia espaço para nenhuma daquelas coisas em sua
mente.
Ele se sentou devagar. Pegou outra vez o alimentador, um objeto
semelhante a uma colher, com bordas afiadas e pequenos dentes
que se projetavam da curva dianteira da cavidade, que podia,
portanto, com igual torpeza, cortar, acomodar no côncavo e espetar,
o que bastava para um operário. Virou-o e ficou olhando para ele,
sem prestar atenção ao número na parte de trás do cabo. Não
precisava prestar atenção. Sabia de cor. Todos os outros tinham
número de registro, exatamente como ele, mas os outros também
tinham nome. Ele, não. Chamavam-no de Rik porque significava
algo como “idiota” na gíria das fábricas de kyrt. E o chamavam de
“Rik Maluco” com bastante frequência.
Mas talvez estivesse tendo cada vez mais lembranças agora.
Desde que viera à fábrica, essa era a primeira vez que recordara
qualquer coisa de antes do começo. Se ele se esforçasse! Se
usasse a mente inteira!
De repente perdeu a fome; não sentia nem um pouco de fome.
Com um gesto súbito, cravou o alimentador no tijolo gelatinoso de
carne e legumes à sua frente, empurrou a comida para longe e
tampou o rosto com as palmas das mãos. Mergulhou os dedos entre
os cabelos e agarrou-os e tentou seguir sua mente de forma
meticulosa até o breu de onde ela extraíra um único item, um item
turvo e indecifrável.
Então começou a chorar, justamente quando o ressoar de uma
campainha anunciava o fim do horário de almoço.
····
Valona March pôs-se ao seu lado quando ele saiu da fábrica
naquele fim de tarde. Ele mal a notou a princípio, pelo menos como
indivíduo. Ouviu apenas que alguém acompanhava seus passos.
Parou e olhou para ela. Seu cabelo tinha uma tonalidade entre loiro
e castanho. Ela usava duas tranças grossas que prendia com
pequenas presilhas de pedra verde magnetizadas. Eram presilhas
bem baratas e pareciam desbotadas. Usava um vestido simples de
algodão, que era a única coisa necessária naquele clima ameno —
assim como Rik precisava só de uma camiseta aberta, sem mangas,
e uma calça de algodão.
— Ouvi dizer que alguma coisa deu errado na hora do almoço —
disse ela.
Falava com o forte sotaque camponês que seria de se esperar. A
linguagem do próprio Rik era repleta de vogais fracas e tinha uma
pronúncia um tanto nasal. Riam dele por causa do sotaque e
imitavam seu modo de falar, mas Valona lhe dizia que era apenas
ignorância.
— Não tem nada errado, Lona — balbuciou Rik.
Ela insistiu.
— Fiquei sabendo que você disse que teve uma lembrança. É
isso mesmo, Rik?
Ela o chamava de Rik também. Não havia outro nome pelo qual
chamá-lo. Ele não conseguia recordar seu nome verdadeiro. Tentara
com bastante desespero. Valona tentara junto com ele. Um dia, ela
conseguiu de alguma maneira uma lista telefônica rasgada e leu
todos os primeiros nomes para ele. Nenhum parecera mais familiar
do que os outros.
Ele olhou bem no rosto dela e disse:
— Vou ter que sair da fábrica.
Valona fez cara feia. Seu rosto redondo e largo, com bochechas
lisas e salientes, estava preocupado.
— Acho que você não pode. Não seria certo.
— Tenho que descobrir mais coisas sobre mim mesmo.
Valona passou a língua pelos lábios.
— Acho que você não deveria.
Rik desviou o olhar. Sabia que a preocupação dela era sincera.
Para começar, ela lhe conseguira o emprego na fábrica. Ele não
tinha nenhuma experiência com o maquinário da fábrica — ou talvez
tivesse e não se lembrava. De qualquer forma, Lona insistira que ele
era muito pequeno para o trabalho braçal, e concordaram em lhe
dar treinamento técnico de graça. Antes disso, nos tenebrosos dias
em que mal conseguia produzir sons e não sabia para que servia a
comida, ela cuidara dele e o alimentara. Ela o mantivera vivo.
— Eu preciso — falou ele.
— São as dores de cabeça de novo, Rik?
— Não. Eu me lembrei mesmo de uma coisa. Lembro qual era o
meu emprego antes… Antes!
Ele não tinha certeza de que queria contar para ela. Desviou o
olhar. Faltavam pelo menos duas horas para o sol cálido e
agradável se pôr. Era cansativo olhar para as monótonas fileiras
com os cubículos dos trabalhadores que se espalhavam ao redor
das fábricas, mas Rik sabia que, assim que terminassem a subida, o
campo se estenderia diante deles com toda a beleza do carmim e
do dourado.
Ele gostava de olhar para o campo. Desde o primeiro momento
aquela vista lhe agradara, acalmando-o. Mesmo antes de saber que
as cores eram carmim e dourado, antes de saber que existiam
cores, antes que pudesse expressar seu deleite diante de qualquer
coisa com mais do que um murmúrio, as dores de cabeça
desvaneciam mais rapidamente no campo. Naqueles dias, Valona
pegava emprestada uma lambreta magnética e o levava para fora
do vilarejo todo dia de folga. Eles voavam trinta centímetros acima
da estrada, sobre a maciez acolchoada do campo antigravidade, até
estar a quilômetros e quilômetros de distância de qualquer moradia
humana e restar apenas o vento contra o rosto, carregado com o
perfume das flores de kyrt.
Depois se sentavam ao lado da estrada, cercados por flores e
aromas, e partilhavam um bloco de comida enquanto o sol os
banhava, até chegar a hora de voltarem.
Rik ficou mexido com a lembrança.
— Vamos para o campo, Lona — falou ele.
— Está tarde.
— Por favor. Só nos arredores da cidade.
Ela mexeu no fino porta-moedas que guardava entre o corpo e o
macio cinto de couro azul que estava usando — único item luxuoso
que se permitia vestir.
Rik a pegou pelo braço.
— Vamos andando.
····
Eles saíram da rodovia em direção às estradas de areia batida,
ventosas e sem poeira, meia hora depois. Havia um silêncio
profundo entre os dois, e Valona sentia um medo familiar tomando
conta de si. Não tinha palavras para expressar seus sentimentos por
ele; por isso, nunca tentara fazê-lo.
E se ele a deixasse? Era um sujeito pequeno, da mesma altura e
mais magro que ela, na verdade. Ainda era como uma criança
indefesa em muitos aspectos. Mas, antes de apagarem sua
memória, devia ter sido um homem instruído. Um homem instruído e
muito importante.
Valona jamais tivera qualquer estudo além de aprender leitura e
escrita e o suficiente sobre tecnologia na escola técnica para saber
operar maquinário de fábrica, mas sabia o bastante para se dar
conta de que nem todas as pessoas eram tão limitadas. Havia o
citadino, claro, cujo grandioso conhecimento era tão útil para todos
eles. Às vezes vinham nobre[1] em visitas de inspeção. Ela nunca os
vira de perto, mas uma vez, durante um feriado, visitara a Cidade e
vira um grupo de criaturas incrivelmente belas a distância.
Ocasionalmente, era permitido que os operários ouvissem como
soavam as pessoas instruídas. Elas falavam diferente, com mais
fluência, com palavras maiores e tons mais suaves. Rik falava cada
vez mais desse modo à medida que sua memória melhorava.
Valona se assustara ao ouvir suas primeiras palavras. Elas
vieram de repente, após longos gemidos resultantes de uma dor de
cabeça, e foram pronunciadas de um jeito estranho. Quando ela
tentou corrigi-lo, ele não quis mudar.
Desde aquele momento ela temia que ele pudesse se lembrar de
coisas demais e, então, deixá-la. Ela era apenas Valona March.
Chamavam-na de Valona Girafa. Nunca se casara. Nunca se
casaria. Uma moça como ela, alta, de pés grandes e mãos
avermelhadas do trabalho, jamais poderia se casar. Nunca
conseguira fazer mais do que olhar para os rapazes com um
ressentimento tolo quando eles a ignoravam nas festas dos dias de
folga. Ela era grande demais para dar risadinhas ou sorrisos
maliciosos.
Jamais teria um bebê para segurar e acariciar. As outras moças
pariam, uma após a outra, e o máximo que ela podia fazer era
aglomerar ao redor para vislumbrar rapidamente aquelas pequenas
criaturas avermelhadas, sem cabelo e de olhos bem fechados,
punhos impotentemente cerrados e boca viscosa…
— Você é a próxima, Lona.
— Quando você vai ter neném, Lona?
A única coisa que ela podia fazer era afastar-se.
Mas, quando Rik viera, era como um bebê. Tinha de ser
alimentado e cuidado, colocado para tomar sol e tranquilizado até
dormir quando as dores de cabeça o atormentavam.
As crianças corriam atrás dela, rindo. Elas gritavam: “A Lona tem
um namorado. A Lona Girafa tem um namorado maluco. O
namorado da Lona é um idiota”.
Mais tarde, quando Rik já conseguia andar sozinho — ela ficara
tão orgulhosa no dia em que ele dera o primeiro passo, como se o
rapaz tivesse de fato um ano de idade, em vez de provavelmente
trinta e um — e caminhava desacompanhado pelas ruas do vilarejo,
elas corriam em volta dele em círculos, gargalhando e gritando suas
tolas zombarias, só para ver um homem feito cobrir os olhos com
medo e encolher-se, sem nenhuma reação a não ser lamúrias.
Dezenas de vezes ela tivera de sair correndo de casa, gritando com
elas, agitando seus grandes punhos.
Até homens feitos temiam aqueles punhos. Ela derrubara o
chefe de seção com um único golpe violento na primeira vez que
levara Rik para trabalhar na fábrica, após ouvir um comentário
indecente a respeito deles dois, entremeado por risos sarcásticos. O
conselho da fábrica aplicara-lhe uma multa de uma semana de
trabalho por esse incidente, e poderia tê-la mandado para a Cidade,
para outro julgamento na corte dos nobres, não fosse pela
intervenção do citadino e pelo argumento de que houvera
provocação.
Por tudo isso, ela queria deter as lembranças de Rik. Sabia que
não tinha nada a oferecer a ele; era egoísmo da sua parte querer
que ele permanecesse com a mente em branco e indefeso para
sempre. Mas ninguém nunca dependera tanto dela antes. A questão
é que ela temia retornar à solidão.
— Tem certeza de que lembra, Rik? — perguntou ela.
— Tenho.
Eles pararam no campo, com o sol conferindo seu brilho
avermelhado a tudo que os cercava. A suave brisa perfumada do
fim de tarde começaria em breve, e os canais de irrigação em
formato de tabuleiro de xadrez já começavam a assumir um tom
púrpura.
— Posso confiar nas minhas lembranças à medida que elas vão
voltando, Lona — ele falou. — Você sabe que posso. Você não me
ensinou a falar, por exemplo. Eu me lembrei das palavras sozinho.
Não lembrei? Não lembrei?
— Lembrou — concordou ela, relutante.
— Eu me lembro até das vezes que você me trouxe para o
campo antes que eu conseguisse falar. Fico me lembrando de
coisas novas o tempo todo. Ontem lembrei que uma vez você pegou
um bicho de kyrt para mim. Você o prendeu entre as suas mãos
fechadas e me fez olhar pelo espaço no meio dos seus polegares
para eu poder ver o inseto piscando sua luz roxa e alaranjada no
escuro. Eu ri e tentei colocar as minhas mãos entre as suas para
pegá-lo, mas ele voou, e fiquei chorando no final das contas.
Naquele momento eu não sabia que era um bicho de kyrt, nem
sabia nada sobre ele, mas agora está tudo muito claro para mim.
Você nunca me falou sobre isso; falou, Lona?
Ela chacoalhou a cabeça.
— Mas aconteceu, não aconteceu? O que lembro é verdade, não
é?
— É, Rik.
— E agora me lembro de uma coisa de antes sobre mim mesmo.
Deve ter existido um antes, Lona.
Devia ter existido. Ela sentiu um peso no coração ao pensar no
assunto. Era um antes diferente, nada parecido com o agora que
eles viviam. Fora em um mundo diferente. Ela sabia disso porque
uma palavra de que ele nunca se lembrara era kyrt. Tivera de
ensinar-lhe a palavra, porque correspondia ao produto mais
importante de todo o planeta Florina.
— De que você se lembra? — perguntou ela.
Ao ouvir a pergunta, o entusiasmo de Rik de repente pareceu
desvanecer. Ele parou de andar.
— Não faz muito sentido, Lona. É só que eu tive um emprego
antes e sei o que era. Pelo menos de certo modo.
— O que era?
— Eu analisava o Nada.
Ela se virou bruscamente para ele, perscrutando seus olhos. Por
um momento, pôs a palma da mão na testa de Rik até ele se
afastar, irritado.
— Você não está com dor de cabeça de novo, está, Rik? —
indagou ela. — Faz semanas que você não tem.
— Eu estou bem. Não me perturbe.
Ela baixou o olhar, e ele acrescentou de imediato:
— Não quis dizer que você me perturba, Lona. É só que eu
estou me sentindo bem e não quero que você se preocupe.
Ela se animou.
— O que significa “analisar”?
Ele conhecia palavras que ela não conhecia. Sentia-se diminuída
ao pensar no nível de instrução que ele devia ter tido um dia.
Ele pensou um pouco.
— Significa… significa “desmontar”. Sabe, como a gente
desmontaria um separador para descobrir por que o raio sensor está
desalinhado?
— Ah. Mas, Rik, como pode uma pessoa ter como emprego não
analisar coisa nenhuma? Isso não é um trabalho.
— Eu não disse que não analisava coisa nenhuma. Disse que
analisava o Nada. Com N maiúsculo.
— Não é a mesma coisa? — Estava acontecendo, ela pensou.
Estava começando a soar burra aos ouvidos dele. Logo ele se
livraria dela, indignado.
— Não, claro que não. — Ele respirou fundo. — Acho que não
consigo explicar. É a única coisa que lembro sobre esse emprego.
Mas devia ser um emprego importante. É a sensação que tenho.
Não posso ter sido um criminoso.
Valona estremeceu. Jamais deveria ter dito isso a ele. Dissera a
si mesma que o alertara apenas para protegê-lo, mas agora sentia
que, na verdade, fizera-o para mantê-lo mais ligado a ela.
····
Foi quando ele começara a falar. Fora tão repentino que a
assustara. Ela nem sequer se atrevera a conversar com o citadino
sobre o assunto. No dia de folga seguinte, ela retirara cinco créditos
da sua reserva de vida (jamais haveria um homem para exigi-los
como dote, então não tinha importância) e levara Rik a um médico
da Cidade. Levara o nome e o endereço em um pedaço de papel,
mas mesmo assim demorou duas assustadoras horas para
encontrar o caminho até o prédio certo em meio às enormes colunas
que sustentavam a Cidade Alta ao alcance da luz do sol.
Insistira em ficar observando, e o médico fizera todo tipo de
coisa pavorosa com instrumentos estranhos. Quando ele colocou a
cabeça de Rik entre dois objetos de metal e a fez brilhar como um
bicho de kyrt à noite, ela se levantou de um salto e tentou fazê-lo
parar. Então ele chamou dois homens que a arrastaram para fora,
enquanto ela lutava freneticamente para se soltar.
Meia hora depois o médico foi falar com ela, alto e carrancudo.
Valona se sentia desconfortável perto dele, porque ele era um
nobre, apesar de manter um consultório na Cidade Baixa; mas seu
olhar estava brando, até gentil. Enxugava as mãos em uma
toalhinha, que jogou em um cesto de lixo, embora parecesse
perfeitamente limpa aos olhos dela.
— Onde você encontrou esse homem? — perguntou ele.
Ela lhe contara as circunstâncias com cautela, reduzindo-as aos
detalhes indispensáveis e deixando de fora qualquer menção ao
citadino e aos patrulheiros.
— Então não sabe nada sobre ele?
Ela chacoalhou a cabeça.
— Nada antes disso.
— Aplicaram uma sonda psíquica nesse homem — informou ele.
— Você sabe o que é?
De início, ela chacoalhara a cabeça de novo; então falou, em um
sussurro seco:
— É aquilo que fazem com os loucos, doutor?
— E com os criminosos. Fazem isso para mudar a mente deles,
para o seu próprio bem. A sonda psíquica torna a mente deles
saudável ou modifica as partes que fazem essas pessoas quererem
roubar ou matar. Você entende?
Ela entendia. Ficou vermelha como um tijolo e falou:
— Rik nunca roubou nada nem machucou ninguém.
— Você o chama de Rik? — Ele pareceu achar graça. — Agora
escute, como sabe o que ele fazia antes de encontrá-lo? É difícil
dizer com base na condição da mente dele agora. A aplicação da
sonda foi completa e brutal. Não posso dizer quanto da mente dele
foi removido permanentemente e quanto foi perdido
temporariamente por causa do choque. O que estou querendo dizer
é que parte dela vai voltar, como a fala, com o passar do tempo,
mas não tudo. Ele deveria ficar em observação.
— Não, não. Ele tem que ficar comigo. Eu venho cuidando muito
bem dele, doutor.
Ele franziu o cenho e depois abrandou a voz.
— Bem, estou pensando em você, moça. Pode não ter saído
toda a maldade da mente dele. Você não ia querer que ele a
machucasse um dia.
Nesse momento, a enfermeira trouxe Rik. Ela tentava acalmá-lo
como se faz com uma criança. Rik pôs uma das mãos na cabeça e
seus olhos ficaram vagando até se concentrarem em Valona, então
estendeu as mãos e choramingou com uma voz fraca:
— Lona…
Ela correu até ele e colocou a cabeça dele em seu ombro,
abraçando-o apertado.
— Ele não me machucaria, não importa o que acontecesse —
disse ao médico.
— O caso dele vai ter que ser comunicado, claro — comentou o
médico, pensativo. — Não sei como ele fugiu das autoridades na
condição em que devia estar.
— Isso significa que vão levá-lo embora, doutor?
— Receio que sim.
— Por favor, doutor, não faça isso. — Ela pegou o lenço onde
estavam as cinco peças brilhantes de metal de crédito. Depois falou:
— Pode ficar com tudo, doutor. Vou cuidar bem dele. Ele não vai
machucar ninguém.
O médico olhou para as peças que tinha na mão.
— Você é operária, não é?
Ela concordou com a cabeça.
— Quanto pagam a você por semana?
— Dois vírgula oito créditos.
Ele jogou delicadamente as peças para o alto, juntou-as na
palma da mão fechada, produzindo um tinido metálico, e as
estendeu na direção dela.
— Leve, moça. Não vou cobrar.
Ela as aceitou, admirada.
— O senhor não vai contar a ninguém, doutor?
Ele respondeu:
— Receio que vou ter que contar. É a lei.
Ela dirigira às cegas, pesadamente, de volta para o vilarejo,
agarrando Rik desesperadamente.
Na semana seguinte, o noticiário do hipervídeo informou a morte
de um médico em um acidente com um giro-táxi durante uma breve
falha em um dos feixes de energia de trânsito locais. O nome lhe
pareceu familiar e, naquela noite, ela o comparou com o nome do
pedaço de papel. Era o mesmo.
Valona ficou triste, porque ele fora um homem bom. Ela recebera
sua indicação havia muito tempo, por intermédio de outro operário,
que o descreveu como um médico nobre, bom para com os
operários, e guardara o nome para emergências. E, quando a
emergência veio, ele fora bom com ela também. No entanto, a
alegria abafou o pesar. Ele não tivera tempo de denunciar Rik. Pelo
menos jamais aparecera alguém no vilarejo para perguntar.
Mais tarde, quando a compreensão de Rik aumentara, ela lhe
contou o que o médico dissera para que ele ficasse no vilarejo e em
segurança.
····
Rik a estava chacoalhando, e ela despertou do devaneio.
— Você não está me ouvindo? Eu não posso ter sido um
criminoso se tinha um emprego importante — falou ele.
— Você não pode ter feito alguma coisa errada? — ela começou
a dizer, hesitante. — Se você era um homem importante, pode ter
feito. Até mesmo os nobres…
— Tenho certeza de que não fiz. Mas você não entende que
preciso descobrir para os outros terem certeza? Não existe outro
jeito. Tenho que sair da fábrica e do vilarejo e descobrir mais sobre
mim mesmo.
Ela sentiu o pânico aumentar.
— Rik! Seria perigoso. Por que você precisa fazer isso? Mesmo
que analisasse o Nada, por que é tão importante saber mais sobre
esse assunto?
— Por causa da outra coisa que lembrei.
— Que outra coisa?
— Não quero contar para você — sussurrou ele.
— Você precisa contar para alguém. Pode esquecer de novo.
Ele tocou no braço dela.
— É verdade. Você não vai contar para mais ninguém, vai,
Lona? Você vai ser só a minha memória sobressalente caso eu
esqueça.
— Claro, Rik.
Rik olhou ao redor. O planeta era muito bonito. Valona lhe
contara que havia um enorme letreiro brilhante na Cidade Alta, até
mesmo quilômetros acima dela, que dizia: “De todos os planetas da
Galáxia, Florina é o mais belo”.
E, olhando ao redor, ele acreditou.
— É uma coisa horrível de se lembrar, mas minhas lembranças
sempre estão corretas, quando me lembro. A lembrança me ocorreu
hoje à tarde — disse ele.
— E?…
Ele estava olhando para ela, aterrorizado.
— Todo mundo vai morrer. Todo mundo em Florina.
O CITADINO

Myrlyn Terens estava a ponto de retirar um livro-filme do lugar na


prateleira quando soou a campainha. Os contornos um tanto
rechonchudos de seu rosto tinham um aspecto pensativo, mas
desvaneceram e deram lugar à expressão mais comum de branda
cautela. Ele passou uma das mãos pelo ralo cabelo rubro e gritou:
— Um minuto.
Voltou a guardar o filme e pressionou o contato que fazia a
tampa se fechar e se tornar indistinguível do resto da parede. Para
os simples operários e lavradores com os quais ele tratava, havia
um vago orgulho no fato de um deles, de nascimento pelo menos,
possuir filmes. Abrandava, por meio de uma tênue reflexão, o
crepúsculo ininterrupto de suas próprias mentes. E, no entanto, não
seria bom mostrar os filmes abertamente.
Vê-los estragaria as coisas. Paralisaria suas línguas não muito
articuladas. Eles poderiam se gabar dos livros do seu citadino, mas
a presença real desses objetos diante dos seus olhos teria feito
Terens assemelhar-se demais a um nobre.
Havia também os nobres, claro. Era extremamente improvável
que algum deles lhe fizesse uma visita social em casa, mas, se um
deles entrasse ali, uma fileira de filmes seria imprudente. Ele era um
citadino, e a tradição lhe dava certos privilégios, mas jamais seria
boa ideia exibi-los.
— Já vou! — ele voltou a gritar.
Desta vez postou-se diante da porta, fechando a abertura da
túnica enquanto andava. Até sua vestimenta se parecia com a dos
nobres. Às vezes ele quase se esquecia de que nascera em Florina.
Valona March estava à porta. Ela dobrou os joelhos e inclinou a
cabeça, em uma saudação respeitosa.
Terens abriu a porta completamente.
— Entre, Valona. Sente-se. Já deve ter passado do toque de
recolher. Espero que os patrulheiros não a tenham visto.
— Acho que não, citadino.
— Bem, vamos esperar que não a tenham visto, mesmo. Você
tem maus antecedentes.
— Tenho, citadino. Sou muito grata pelo que o senhor fez por
mim no passado.
— Deixe para lá. Venha, sente-se. Quer alguma coisa para
comer ou beber?
Ela se sentou, com as costas retas na beirada da cadeira, e
chacoalhou a cabeça.
— Não, obrigada, citadino. Já comi.
Era de bom tom entre os moradores do vilarejo oferecer um
lanche. Era de mau tom aceitar. Terens sabia disso. Não insistiu.
— Qual o problema, Valona? — perguntou ele. — É o Rik outra
vez?
Valona aquiesceu, mas parecia perdida, sem saber como dar
maiores explicações.
— Ele está com problemas na fábrica? — indagou Terens.
— Não, citadino.
— Dores de cabeça de novo?
— Não, citadino.
Terens esperou, com os olhos claros estreitando-se e aguçando-
se.
— Bem, Valona, você não espera que eu adivinhe qual é o seu
problema, não é? Vamos lá, fale, senão não consigo ajudá-la. Você
quer ajuda, eu suponho.
— Quero, citadino — ela disse; então soltou: — Como vou
contar, citadino? Parece quase loucura.
Terens sentiu o impulso de dar uma batidinha no ombro dela,
mas sabia que o toque a faria recuar. Ela estava sentada, como de
costume, com as mãos grandes enterradas até onde era possível
nos bolsos do vestido. Ele notou que os seus dedos fortes e
arredondados estavam entrelaçados e se contorciam lentamente.
— Seja o que for, eu vou ouvir — declarou ele.
— O senhor se lembra, citadino, quando vim lhe contar sobre o
médico da Cidade e sobre o que ele disse?
— Lembro, Valona. E lembro que lhe falei especialmente para
nunca mais fazer nada desse tipo outra vez sem me consultar. Você
se lembra disso?
Ela arregalou os olhos. Não precisava de nenhum estímulo para
recordar a raiva dele.
— Eu nunca faria uma coisa dessas de novo, citadino. Só quero
lembrá-lo que o senhor falou que faria qualquer coisa para me
ajudar a ficar com o Rik.
— E assim farei. Então os patrulheiros andaram perguntando por
ele?
— Não. Ah, citadino, o senhor acha que eles podem perguntar?
— Tenho certeza de que não vão perguntar. — Ele estava
perdendo a paciência. — Agora, Valona, me diga o que há de
errado.
Os olhos dela se anuviaram.
— Citadino, ele disse que vai me deixar. Quero que o senhor o
impeça.
— Por que ele quer deixar você?
— Ele disse que está se lembrando das coisas.
Um ar de interesse tomou conta do rosto de Terens. Ele se
inclinou para a frente e quase estendeu o braço para pegar a mão
dela.
— Lembrando-se das coisas? Que coisas?
····
Terens recordava-se do dia em que Rik fora encontrado. Vira os
jovens aglomerados ao redor de uma das valas de irrigação nos
arredores do vilarejo. Eles haviam erguido as vozes esganiçadas
para chamá-lo.
— Citadino! Citadino!
Ele correra.
— Qual é o problema, Rasie? — Tivera o trabalho de aprender
os nomes dos jovens quando se mudara para aquela cidade.
Pegava bem com as mães e tornava os primeiros um ou dois meses
mais fáceis.
Rasie parecia estar sentindo-se mal.
— Veja, citadino — disse ele.
Estava apontando para algo branco que se contorcia — e era
Rik. Os outros garotos gritavam ao mesmo tempo, dando uma
confusa explicação. Terens conseguiu entender que eles estavam
brincando de alguma coisa que envolvia correr, esconder-se e
procurar. Estavam determinados a lhe contar o nome do jogo, o seu
desenvolvimento, o momento em que haviam sido interrompidos,
com uma ligeira discussão secundária sobre que indivíduo ou lado
estava “ganhando”. Evidentemente, nada disso importava.
Rasie, o garoto de doze anos que tinha cabelo preto, ouvira o
choro e se aproximara com cautela. Esperara encontrar um animal,
talvez um rato do campo que proporcionasse uma boa caçada.
Encontrara Rik.
Todos os garotos foram tomados por um óbvio mal-estar e uma
igualmente óbvia fascinação com aquela estranha cena. Era um ser
humano adulto, quase nu, com o queixo úmido por conta da baba,
lamuriando-se e chorando fracamente, mexendo os braços e as
pernas ao acaso. Olhos de um azul apagado moviam-se
aleatoriamente em um rosto coberto de barba por fazer. Por um
momento, aqueles olhos cruzaram com os de Terens e pareceram
concentrar-se. Aos poucos o homem foi erguendo o polegar e o
colocou na boca.
Uma das crianças riu.
— Olha para ele, citadino. Está chupando o dedo.
O grito repentino sacudiu a figura inclinada. O rosto enrubesceu
e contorceu-se. Ouviu-se um choro fraco, sem lágrimas, mas o
polegar permaneceu onde estava. O dedo estava úmido e rosado,
em contraste com o resto da mão, suja de terra.
Terens interrompeu seu torpor ao ver aquilo.
— Tudo bem, garotada, vocês não deviam estar correndo por
aqui, no campo de kyrt — disse ele. — Estão estragando a safra e
sabem o que vai acontecer se os lavradores pegarem vocês. Vão
embora e não falem nada sobre isso. E escute, Rasie, vá correndo
procurar o sr. Jencus e faça-o vir para cá.
Ull Jencus era a coisa mais próxima de um médico que o vilarejo
tinha. Passara algum tempo como aprendiz no consultório de um
médico de verdade na Cidade e, por isso, fora dispensado do
serviço no campo ou na fábrica. Não tinha sido uma ideia tão ruim
assim. Ele podia medir a temperatura, administrar remédios, dar
injeções e, o mais importante, sabia dizer quando uma doença era
séria o bastante para justificar uma ida ao hospital da Cidade. Sem
esse respaldo semiprofissional, os desafortunados acometidos por
meningite espinhal ou apendicite aguda poderiam sofrer
intensamente, mas, em geral, não por muito tempo. Não obstante,
depois os capatazes resmungavam e acusavam Jencus de todas as
formas, menos com palavras, de ser cúmplice de uma conspiração
dos trabalhadores para fingir doença.
Jencus ajudou Terens a colocar o homem no carrinho de uma
lambreta e, tão discretamente quanto possível, levaram-no para o
vilarejo.
Juntos lavaram a sujeira e a fuligem acumuladas e endurecidas.
Não havia nada que pudesse ser feito quanto ao cabelo. Jencus
depilou o corpo todo do homem e fez o que pôde em termos de
exame físico.
— Nenhuma infecção que eu possa identificar, citadino — falou
Jencus. — Ele foi alimentado. As costelas não estão aparecendo
muito. Eu não sei o que pensar. Como o senhor acha que ele foi
parar lá no campo, citadino?
Ele fez a pergunta em um tom pessimista, como se ninguém
pudesse esperar que Terens tivesse a resposta para qualquer coisa.
Terens aceitou isso filosoficamente. Quando um vilarejo perde o
citadino com o qual estava acostumado havia quase cinquenta
anos, um recém-chegado de pouca idade deve esperar um período
de suspeita e desconfiança. Não era nada pessoal.
— Receio não saber — respondeu Terens.
— Ele não consegue andar, sabe? Não consegue dar um passo.
Deve ter sido colocado ali. É o máximo que consigo deduzir, porque
ele parece mais um bebê. Todo o resto desapareceu.
— Existe alguma doença que tenha esse efeito?
— Não que eu saiba. Problema de cabeça poderia explicar, mas
não sei nada sobre esse assunto. Problema de cabeça eu mandaria
para a Cidade. O senhor já viu esse sujeito, citadino?
Terens sorriu e disse, em um tom gentil:
— Faz apenas um mês que estou aqui.
Jencus suspirou e pegou o lenço.
— É. O antigo citadino era um homem bom. Ele cuidava bem da
gente. Faz quase sessenta anos que eu tô aqui e nunca vi esse
sujeito antes. Deve ser de outra cidade.
Jencus era gorducho. Parecia ter nascido gorducho e, se a essa
tendência natural se agrega o efeito de uma vida em grande parte
sedentária, não é de surpreender que ele tendesse a marcar até as
falas curtas com uma arfada e uma passada um tanto inútil do
grande lenço vermelho pela testa brilhante.
— Não sei muito bem o que dizer aos patrulheiros — comentou
ele.
Os patrulheiros vieram, com certeza. Era impossível evitar. Os
garotos contaram aos pais; os pais contaram uns para os outros. A
vida no vilarejo era bem tranquila. Mesmo isso seria estranho o
suficiente para valer a pena ser contado, quaisquer que fossem o
informante e o informado. E, com todo aquele falatório, os
patrulheiros não puderam deixar de ouvir.
Os assim chamados patrulheiros eram membros da Patrulha
Floriniana. Não eram nativos de Florina, tampouco conterrâneos dos
nobres do planeta Sark. Eram simplesmente mercenários com os
quais se podia contar para manter a ordem, por causa do
pagamento que recebiam e porque jamais se deixariam levar pelo
comportamento equivocado de nutrir simpatia pelos florinianos em
virtude de laços de sangue ou nascimento.
Havia dois deles, e junto veio um dos capatazes da fábrica, com
toda a plenitude de sua própria autoridade minúscula.
Os patrulheiros estavam entediados e indiferentes. Um idiota
dementado poderia tomar parte do dia de trabalho, mas dificilmente
seria uma parte empolgante.
— Bem, quanto tempo você demora para identificá-lo? Quem é
esse homem? — perguntou um deles ao capataz.
O capataz chacoalhou a cabeça com força.
— Nunca vi esse homem, oficial! Não é ninguém daqui!
O patrulheiro se virou para Jencus.
— Algum documento com ele?
— Não, senhor. Só tinha um trapo enrolado nele. Eu queimei
para evitar infecção.
— O que há de errado com ele?
— Está sem mente, até onde consigo deduzir.
A essa altura, Terens puxou os patrulheiros de lado. Como
estavam entediados, eram maleáveis. O patrulheiro que estivera
fazendo as perguntas ergueu o caderno e falou:
— Tudo bem, nem vale a pena registrar isso. Não tem nenhuma
relação conosco. Deem um jeito de resolver essa questão.
Depois foram embora.
O capataz ficou. Ele tinha sardas, cabelo ruivo e um grande
bigode eriçado. Fora um capataz de rígidos princípios por cinco
anos, e isso significava que a responsabilidade de atingir a cota em
sua fábrica recaía muito sobre ele.
— Olha só — disse ele, em um tom impetuoso. — O que devo
fazer com tudo isso? Esses desgraçados se ocupam tanto falando
que acabam por não trabalhar!
— Manda pro hospital da Cidade, é o máximo que consigo
deduzir — falou Jencus, empunhando o lenço diligentemente. —
Não há nada que eu possa fazer.
— Para a Cidade? — O capataz ficou consternado. — Quem vai
pagar? Quem vai bancar as taxas? Ele não é nenhum de nós, é?
— Não que eu saiba — admitiu Jencus.
— Então por que nós deveríamos pagar? Descubra de onde ele
é. Deixe a cidade dele pagar.
— Como a gente vai descobrir? Me fala.
O capataz ficou pensando. Ficou passando a língua pela moita
avermelhada sobre o lábio superior.
— Então vamos ter que nos livrar dele. Como o patrulheiro disse
— falou ele.
Terens interrompeu.
— Escute, o que você quer dizer com isso?
— Que seria melhor que ele estivesse morto — respondeu ele.
— Seria misericórdia.
— Você não pode matar uma pessoa — declarou Terens.
— Me fale você o que fazer então.
— Nenhum dos moradores do vilarejo pode cuidar dele?
— Quem iria querer? Você iria querer?
Terens ignorou a atitude abertamente insolente.
— Eu tenho outro trabalho a fazer.
— Todas as pessoas têm também. Não posso deixar ninguém se
descuidar do trabalho na fábrica para tomar conta dessa maluquice.
Terens suspirou e disse sem rancor:
— Capataz, sejamos sensatos. Se vocês não atingirem a cota
este trimestre, poderei supor que terá sido porque um dos seus
funcionários está cuidando desse pobre coitado e vou defender
vocês diante dos nobres. Caso contrário, vou falar que não conheço
nenhum motivo para vocês não terem atingido a cota, se não
atingirem.
O capataz olhou feio. Fazia apenas um mês que o citadino
estava ali e já estava mexendo com homens que haviam vivido a
vida inteira no vilarejo. No entanto, ele tinha um cartão marcado
pelos nobres. Não seria bom enfrentá-lo muito abertamente por
muito tempo.
— Mas quem o aceitaria? — indagou ele. Uma suspeita terrível o
afligiu. — Eu não posso. Tenho três filhos e a minha mulher não está
bem.
— Não sugeri que deveria ser você.
Terens olhou pela janela. Agora que os patrulheiros haviam ido
embora, a multidão que se contorcia e cochichava aproximou-se
mais da casa do citadino. A maioria eram jovens, novos demais para
estar trabalhando; outros eram lavradores das fazendas mais
próximas. Alguns eram operários fora de turno.
Terens viu a moça alta bem atrás na multidão. Ele a observara
com frequência no último mês. Forte, competente e trabalhadora.
Boa inteligência natural escondida sob aquela expressão de
infelicidade. Se ela fosse homem, poderia ter sido escolhida para
fazer o treinamento para citadino. Mas era mulher; os pais haviam
morrido e era simples demais, a ponto de impossibilitar interesses
românticos. Em outras palavras, uma mulher solitária e que
provavelmente continuaria assim.
— E ela? — perguntou ele.
O capataz olhou, depois vociferou:
— Droga. Ela devia estar trabalhando.
— Tudo bem — suavizou Terens. — Qual é o nome dela?
— Valona March.
— Certo. Eu me lembro agora. Mande-a entrar.
A partir daquele momento, Terens se tornara um guardião não
oficial dos dois. Fizera o possível para conseguir rações adicionais
para ela, cupons extras para vestuário e o que mais fosse
necessário para permitir que dois adultos (um sem registro)
vivessem com a renda de um. Ele fora essencial para ajudá-la a
conseguir treinamento para Rik nas fábricas de kyrt. Interviera para
evitar uma punição maior na ocasião da briga de Valona com o
chefe de seção. A morte do médico da Cidade tornara-lhe
desnecessário tentar qualquer medida além das que já tomara, mas
ele havia se preparado para isso.
Era natural Valona vir procurá-lo toda vez que tinha problemas, e
ele estava agora esperando que ela respondesse a sua pergunta.
····
Valona continuava hesitante.
— Ele disse que todas as pessoas do planeta vão morrer —
disse ela, por fim.
Terens pareceu perplexo.
— Ele disse como?
— Disse que não sabe como. Só falou que se lembra disso de
antes de ficar, o senhor sabe, como está. E falou que se lembra de
ter um emprego importante, mas eu não entendo o que é.
— Como ele descreve esse emprego?
— Ele disse que an… analisava o Nada com N maiúsculo.
Valona esperou algum comentário, depois apressou-se em
explicar:
— Analisar significa desmontar uma coisa, como…
— Eu sei o que significa, garota.
Valona o observou com ansiedade.
— O senhor sabe o que significa, citadino?
— Talvez, Valona.
— Mas, citadino, como é que alguém pode fazer alguma coisa
com o Nada?
Terens se pôs de pé. Deu um breve sorriso.
— Bem, Valona, você não sabe que tudo no universo inteiro é
composto em grande parte pelo Nada?
Nenhuma luz clareou o entendimento de Valona, mas ela aceitou
a explicação. O citadino era um homem muito culto. Com uma
inesperada ponta de orgulho, de repente ela teve a certeza de que
seu Rik era ainda mais culto.
— Venha. — Terens estendeu a mão para ela.
— Para onde vamos? — perguntou ela.
— Bem, onde está Rik?
— Em casa — respondeu ela. — Dormindo.
— Ótimo. Vou levá-la para casa. Você quer ser encontrada pelos
patrulheiros sozinha na rua?
····
O vilarejo parecia sem vida de noite. As luzes ao longo da única rua
que dividia a área das cabines dos trabalhadores em duas tinham
um brilho fraco. Havia um indício de chuva no ar, mas só daquela
leve chuva morna que caía quase toda noite. Não havia
necessidade de tomar nenhuma precaução especial contra ela.
Valona nunca estivera fora até tão tarde em uma noite de
trabalho, e aquilo era assustador. Ela tentou evitar o som dos
próprios passos ao mesmo tempo que prestava atenção ao possível
passo distante dos patrulheiros.
— Pare de tentar andar na ponta dos pés, Valona — pediu
Terens. — Estou com você.
Sua voz reverberou no silêncio, e Valona sobressaltou-se. Ela
apressou o passo em resposta ao pedido dele.
····
A cabana de Valona estava tão escura como as outras, e eles
entraram com cautela. Terens nascera e crescera em uma cabana
dessas e, embora houvesse vivido desde então em Sark e agora
ocupasse uma casa com três cômodos e encanamento, ainda havia
um quê de nostalgia na escassez de seu interior. Era preciso
apenas um aposento, uma cama, uma cômoda, duas cadeiras, um
chão liso de cimento, um armário em um canto.
Não era necessário ter uma cozinha, já que todas as refeições
eram feitas na fábrica, nem um banheiro, já que havia uma fileira de
banheiros e cabines de banho no espaço atrás das casas. Naquele
clima ameno e constante, as janelas não eram adaptadas para
proteger contra o frio e a chuva. Todas as quatro paredes eram
perfuradas por aberturas protegidas por telas, e os beirais lá no alto
forneciam proteção suficiente contra os chuviscos noturnos sem
vento.
Sob a luz de uma lanterninha de bolso que ele segurava na
palma de uma das mãos, Terens reparou que um canto do cômodo
tinha uma tela surrada. Lembrava-se de tê-la conseguido para
Valona recentemente, quando Rik se tornara menos criança ou mais
homem. Ele podia ouvir uma respiração regular de sono que vinha
ali de trás.
Apontou com a cabeça para aquela direção.
— Acorde-o, Valona.
Valona deu uma batidinha na tela.
— Rik! Rik, bebê!
Ouviu-se um gritinho.
— É só a Lona — disse Valona. Eles circundaram a tela e Terens
focou a lanterninha no rosto de ambos, depois em Rik.
Rik colocou o braço diante do rosto para tapar o brilho.
— O que aconteceu?
Terens sentou-se na beirada da cama. Rik dormia na cama de
cabana padrão, ele notou. Conseguira um catre velho e um tanto
bambo para Valona logo de início, mas ela o reservara para si
mesma.
— Rik — disse ele —, Valona contou que você está começando
a se lembrar das coisas.
— Estou, citadino. — Rik sempre se comportava com muita
humildade diante do citadino, que era o homem mais importante que
ele já vira. Até o superintendente da fábrica era educado com o
citadino. Rik repetiu os fragmentos que sua mente recordara durante
o dia.
— Você se lembrou de mais alguma coisa desde que contou isso
para Valona? — perguntou Terens.
— Mais nada, citadino.
Terens pressionou os dedos de uma mão contra os da outra.
— Tudo bem, Rik. Volte a dormir.
Valona o seguiu para fora da casa. Estava se esforçando muito
para não contorcer o rosto e passou as costas de uma das mãos
ásperas pelos olhos.
— Ele vai ter que me deixar, citadino?
Terens pegou as mãos dela e disse:
— Você precisa ser sensata, Valona. Ele vai ter que vir comigo
só por um tempinho, mas vou trazê-lo de volta.
— E depois disso?
— Não sei. Você tem que entender, Valona. Neste exato
momento, a coisa mais importante do mundo é descobrirmos mais
sobre as lembranças do Rik.
— O senhor quer dizer que todas as pessoas de Florina podem
morrer, como ele falou? — perguntou Valona de súbito.
Terens apertou suas mãos com mais intensidade.
— Jamais diga isso a ninguém, Valona, ou os patrulheiros
podem levar Rik embora para sempre. Estou falando sério.
Ele se virou e voltou caminhando lenta e pensativamente para
casa, sem se dar conta de que suas mãos tremiam. Em vão tentou
dormir e, depois de uma hora, ajustou o narcocampo. Era um dos
poucos objetos de Sark que levara consigo quando retornou a
Florina para se tornar citadino. Encaixava-se ao redor da cabeça
como um gorro fino de feltro. Ajustou os controles para cinco horas
e fechou o contato.
Teve tempo de se ajeitar confortavelmente na cama antes que a
resposta tardia provocasse um curto-circuito nos centros
conscientes do seu cérebro e o colocasse em um sono instantâneo
e sem sonhos.
A BIBLIOTECÁRIA

Eles deixaram a lambreta diamagnética em um compartimento para


lambretas fora dos limites da Cidade. As lambretas eram raras na
Cidade, e Terens não tinha nenhuma intenção de atrair atenção
desnecessária. Pensou, por um instante de desvario, nas pessoas
da Cidade Alta, com seus carros terrestres diamagnéticos e giros
antigravitacionais. Mas isso era na Cidade Alta. Era diferente.
Rik esperou Terens fechar o compartimento e lacrá-lo com a
digital. Ele vestia um macacão novo e estava se sentindo um pouco
desconfortável. Um tanto relutante, seguiu o citadino para baixo da
primeira das altas estruturas semelhantes a pontes que
sustentavam a Cidade Alta.
Em Florina, todas as outras cidades tinham nome, mas esta era
simplesmente a “Cidade”. Os trabalhadores e camponeses que
viviam nela ou ao redor eram considerados sortudos pelo resto do
planeta. Na Cidade havia médicos e hospitais melhores, mais
fábricas e mais lojas de bebidas, mesmo alguns pingos de luxo bem
moderado. Os moradores em si eram menos entusiastas. Viviam à
sombra da Cidade Alta.
A Cidade Alta era exatamente o que o nome sugeria, pois era
uma cidade dupla, rigidamente dividida por uma camada horizontal
de oitenta quilômetros quadrados de ligacimento apoiada sobre
umas vinte mil colunas de vigas mestras de aço. Abaixo, na sombra,
ficavam os “nativos”. Em cima, ao sol, ficavam os nobres. Quando
se estava na Cidade Alta, era difícil acreditar que se localizasse no
planeta Florina. A população era de natureza quase exclusivamente
sarkita, além de uns poucos patrulheiros. Eles eram literalmente a
classe mais alta.
Terens conhecia o caminho. Andava rápido, evitando os olhares
dos transeuntes, que examinavam as roupas do citadino com uma
mescla de inveja e ressentimento. As pernas mais curtas de Rik
tornavam seu passo menos nobre à medida que tentava
acompanhar o ritmo. Parecia tão diferente agora. Antes estava
nublado. Agora o sol havia saído, penetrando pelas espaçadas
aberturas do ligacimento acima para formar feixes de luz que
deixavam o espaço intermediário ainda mais escuro. Eles
mergulhavam nos feixes de luz de um modo ritmado, quase
hipnótico.
Idosos em cadeiras de rodas se posicionavam nos feixes,
absorvendo o calor e movendo-se quando o feixe se movia. Às
vezes adormeciam e ficavam para trás, na sombra, balançando nas
cadeiras até que o rangido das rodas os acordasse quando
mudavam de posição. Ocasionalmente, as mães quase bloqueavam
os feixes com sua prole em carrinhos.
— Agora, Rik, endireite-se. Nós vamos subir — disse Terens.
Ele estava diante de uma estrutura que ocupava o espaço entre
quatro colunas que formavam um quadrado e que ia desde o chão
até a Cidade Alta.
— Estou com medo — falou Rik.
Rik podia imaginar o que era aquela estrutura. Era um elevador
que conduzia ao andar de cima.
Eles eram necessários, evidentemente. A produção acontecia lá
embaixo, mas o consumo acontecia lá em cima. Produtos químicos
básicos e alimentos crus de primeira necessidade eram
despachados para a Cidade Baixa, mas embalagens e refeições
refinadas ficavam a cargo da Cidade Alta. O excesso da população
multiplicava-se lá embaixo; domésticas, jardineiros, motoristas e
operários da construção civil eram usados lá em cima.
Terens ignorou a expressão de medo de Rik. Ficou
impressionado com o fato de seu próprio coração bater com tanta
violência. Não era medo, claro, mas uma intensa satisfação de estar
subindo. Pisaria por toda parte naquele ligacimento, bateria os pés
nele, rasparia a sujeira nele. Como citadino, podia fazer isso. Óbvio
que continuava sendo apenas um floriniano nativo para os nobres,
mas era um citadino e podia pôr os pés no ligacimento sempre que
quisesse.
Pela Galáxia, como ele os detestava!
Ele se deteve, respirou fundo e chamou o elevador. Era inútil
pensar em ódio. Estivera em Sark por muitos anos, no próprio
planeta Sark, o centro e criadouro dos nobres. Aprendera a suportar
em silêncio. Não devia esquecer agora o que aprendera. De todas
as circunstâncias, não agora.
Ouviu o zumbido do elevador chegando ao andar inferior e a
parede inteira à sua frente abriu-se, encaixando-se em sua ranhura.
O nativo que operava o elevador pareceu indignado.
— Só dois?
— Só dois — respondeu Terens, entrando. Rik o seguiu.
O operador não fez nenhum movimento para que a parede
voltasse à sua posição original.
— Acho que vocês podiam ter esperado a carga das duas horas
e subido com ela — disse ele. — Eu não devia subir e descer essa
coisa só para dois caras. — Ele cuspiu com cuidado, certificando-se
de que seu cuspe caísse no concreto do andar inferior, não no piso
do seu elevador.
— Onde estão os seus passes de emprego? — continuou ele.
— Eu sou citadino — declarou Terens. — Não está vendo pelas
minhas roupas?
— As roupas não significam nada. Escuta, você acha que vou
arriscar o meu emprego por você, que pode ter pegado um uniforme
em algum lugar? Onde está o seu cartão?
Terens, sem dizer mais uma palavra, apresentou a pasta de
documentos padrão que todos os nativos tinham de portar o tempo
todo: número de registro, certificado de emprego, recibos de
impostos. Estava aberta na página cor de carmim de sua licença de
citadino. O operador deu uma rápida passada de olhos.
— Bem, talvez você tenha pegado o documento também, mas
isso não é da minha conta. Você está com ele e eu o deixo passar,
embora citadino seja só um nome chique para um nativo, no meu
modo de entender. E o outro cara?
— Ele está sob os meus cuidados — falou Terens. — Ele pode
vir comigo ou vamos ter que chamar um patrulheiro para verificar as
regras?
Era a última coisa que Terens queria, mas sugerira a ideia com a
arrogância adequada.
— Tudo bem! Não precisa se zangar. — A parede do elevador se
fechou e, com um movimento brusco, o aparelho subiu.
Terens deu um sorriso breve. Era quase inevitável. Os que
trabalhavam diretamente para os nobres ficavam demasiado felizes
em se identificar com os soberanos e compensar sua verdadeira
inferioridade aderindo com mais afinco às regras de segregação,
tendo uma atitude hostil e arrogante para com seus companheiros.
Eles eram os “homens do alto”, a quem os outros florinianos
reservavam seu ódio em particular, sem ligação com o fascínio
cuidadosamente ensinado que nutriam pelos nobres.
A distância vertical percorrida era de nove metros, mas a porta
voltou a se abrir para um mundo novo. Como as cidades nativas de
Sark, a Cidade Alta fora traçada com especial atenção às cores.
Estruturas individuais, fossem residências ou prédios públicos, eram
elaboradas em um intrincado mosaico multicolorido que, de perto,
era um emaranhado sem sentido, mas, à distância de uns noventa
metros, formava um suave aglomerado de matizes que se fundiam e
mudavam com o ângulo de visão.
— Venha, Rik — disse Terens.
Rik estava de olhos arregalados. Não havia nada vivo e em
crescimento; apenas enormes massas de pedra e cor. Jamais
soubera que as casas poderiam ser tão grandes. Algo se agitou por
um momento em sua mente. Por um segundo, aquela imensidão
não pareceu tão estranha… E então a memória voltou a se fechar.
Um carro terrestre passou a toda velocidade.
— Aqueles são nobres? — sussurrou Rik.
Houvera tempo somente para uma olhada. Cabelo curtíssimo,
amplas mangas mais largas na boca, de cores brilhantes e
uniformes que iam do azul ao violeta, calças curtas de aspecto
veludoso e compridas meias finas que reluziam como se houvessem
sido tecidas com delicados fios de cobre. Nem sequer olharam para
Rik e Terens.
— Nobres jovens — respondeu Terens. Ele não os via tão de
perto desde que deixara Sark. Em Sark, eles eram ruins o bastante,
mas pelo menos estavam no lugar adequado. Aqui, nove metros
acima do Inferno, não era lugar para anjos. Outra vez ele se
contorceu para reprimir um estremecimento inútil de ódio.
Um carroplano para duas pessoas passou assoviando atrás
deles. Era um modelo novo, com controles aéreos acoplados.
Naquele momento, o veículo deslizava suavemente cinco
centímetros acima da superfície, com sua base plana e reluzente
curvando-se para cima em todas as bordas para reduzir a
resistência do ar. Ainda assim, o deslocamento de ar contra sua
superfície inferior bastava para produzir o chiado característico que
significava “patrulheiros”.
Eles eram grandalhões, como todos os patrulheiros; tinham rosto
largo, bochechas achatadas, cabelo comprido, preto e liso, e tez
morena clara. Para os nativos, todos os patrulheiros tinham a
mesma aparência. O preto lustroso de seus uniformes, acentuado
pelo espantoso prateado de fivelas e botões ornamentais
estrategicamente distribuídos, diminuía a importância do rosto e
intensificava ainda mais a impressão da semelhança.
Um dos patrulheiros estava nos controles. O outro saltou
gentilmente sobre a borda rasa do carro.
— A pasta! — ele exclamou, olhou mecânica e
momentaneamente e devolveu-a para Terens. — O que veio fazer
aqui?
— Pretendo consultar a biblioteca, oficial. É um privilégio meu.
O patrulheiro virou-se para Rik.
— E você?
— Ele é meu assistente — interpôs Terens.
— Ele não tem privilégios de citadino — disse o patrulheiro.
— Eu me responsabilizo por ele.
O patrulheiro deu de ombros.
— É problema seu. Os citadinos têm privilégios, mas não são
nobres. Lembre-se disso, rapaz.
— Sim, oficial. A propósito, poderia me indicar onde fica a
biblioteca?
O patrulheiro usou o cano fino e mortal de uma pistola-agulha
para indicar a direção. Do ângulo onde estavam, a biblioteca era
uma mancha de tom avermelhado brilhante que se tornava carmim
nos andares mais altos. À medida que se aproximavam, o matiz
carmim ia se alastrando para os andares mais baixos.
— Eu acho feio — falou Rik com súbita veemência.
Terens lançou-lhe um olhar repentino e surpreso. Ele se
acostumara a tudo isso em Sark, mas também achava a pompa da
Cidade Alta um tanto vulgar. Mas a Cidade Alta era mais Sark do
que o próprio planeta Sark. Em Sark, nem todos os homens eram
nobres. Havia até mesmo sarkitas pobres, alguns não muito
melhores do que o floriniano médio. Ali existia apenas o topo da
pirâmide, e a biblioteca mostrava isso.
Era maior do que a maioria das bibliotecas em Sark, muito maior
do que a Cidade Alta precisava, o que mostrava a vantagem do
trabalho barato. Terens parou na rampa curva que conduzia à
entrada principal. O esquema de cores da rampa dava a ilusão de
degraus, um pouco desconcertante para Rik, que tropeçava, mas
que dava à biblioteca o aspecto apropriado de arcaísmo que
tradicionalmente acompanhava as estruturas acadêmicas.
O saguão principal era grande, gelado e qualquer coisa, menos
vazio. A bibliotecária atrás da única mesa que havia nele parecia
uma ervilha pequena e um tanto enrugada em uma vagem inchada.
Ela levantou os olhos e soergueu-se.
— Sou citadino — disse Terens sem demora. — Privilégios
especiais. Sou responsável por este nativo. — Ele estava com os
documentos de prontidão e os estendeu.
A bibliotecária sentou-se e pareceu rígida. Ela tirou uma lasca de
metal de uma ranhura e estendeu-a para Terens. O citadino pôs o
dedo direito sobre ela com firmeza. A bibliotecária recolheu a lasca
e colocou-a em outra ranhura onde uma suave luz violeta se
acendeu brevemente.
— Sala 242 — falou ela.
— Obrigado.
····
Os cubículos no segundo andar tinham aquela gélida falta de
personalidade que qualquer elo em uma corrente infinita teria.
Alguns estavam ocupados; as portas de vidrito foscas e opacas. A
maioria não estava.
— Duzentos e quarenta e dois — repetiu Rik. Sua voz estava
estridente.
— Qual é o problema, Rik?
— Não sei. Me sinto muito empolgado.
— Já esteve em uma biblioteca antes?
— Não sei.
Terens pôs o polegar no disco de alumínio que, cinco minutos
antes, tornara-se sensível à sua digital. A porta de vidro clara abriu-
se e, quando eles entraram, fechou-se silenciosamente e se tornou
opaca, como se alguém tivesse puxado uma persiana.
A sala tinha quase dois metros quadrados, sem janelas nem
adornos. Era iluminada pelo brilho difuso do teto, e o ar era
renovado por ventilação forçada. Os únicos móveis eram uma mesa
que se estendia de parede a parede e um banco preto estofado que
ficava entre a mesa e a parede. Na mesa havia três “leitores”. A
frente de vidro fosco se inclinava para trás em um ângulo de trinta
graus. Diante de cada um havia vários botões.
— Você sabe o que é isso? — Terens sentou-se e pousou a mão
macia e rechonchuda sobre um dos leitores.
Rik sentou-se também.
— Livros? — sugeriu ele, ansioso.
— Bem — Terens pareceu inseguro. — Isto é uma biblioteca,
então a sua suposição não quer dizer muita coisa. Você sabe usar o
leitor?
— Acho que não, citadino.
— Tem certeza? Pense um pouco.
Rik tentou bravamente.
— Sinto muito, citadino.
— Então vou mostrar a você. Olhe. Primeiro, veja bem, há este
botão onde está escrito “catálogo”, que tem o alfabeto impresso em
volta. Como queremos começar pela enciclopédia, vamos girar o
botão até o E e pressioná-lo.
Ele fez isso, e várias coisas aconteceram ao mesmo tempo. O
vidro fosco começou a brilhar e apareceram alguns textos. O preto
se destacou sobre o fundo amarelo à medida que a luz do teto
esmaeceu. Três painéis lisos se projetaram como línguas, uma
diante de cada leitor, e cada um estava centralizado por meio de um
firme feixe de luz.
Terens apertou um interruptor e os painéis voltaram às suas
reentrâncias.
— Não vamos fazer anotações — disse ele.
Depois continuou:
— Agora podemos percorrer a lista dos Es girando este botão.
A longa linha de materiais, de títulos e autores em ordem
alfabética e de números no catálogo foi subindo, depois parou na
coluna abarrotada de informações que listava os numerosos
volumes da enciclopédia.
— Você digita os números e as letras do livro que quer nesses
botõezinhos e ele aparece na tela — disse Rik de repente.
Terens virou-se para ele.
— Como sabe? Você se lembra?
— Talvez. Não tenho certeza. Só parece a coisa certa.
— Bem, chame isso de uma suposição inteligente.
Ele digitou uma combinação de letras e números. A luz do vidro
esmaeceu, depois reacendeu. Dizia: “Enciclopédia de Sark, volume
54, En.-Espec.”.
— Agora ouça, Rik, não quero colocar nenhuma ideia na sua
cabeça, então não vou contar em que estou pensando — disse
Terens. — Só quero que você dê uma olhada nesse volume e pare
em qualquer coisa que pareça familiar. Entendeu?
— Entendi.
— Ótimo. Não tenha pressa.
Os minutos se passaram. De súbito, Rik arquejou e girou os
botões para trás.
Quando parou, Terens leu o título e pareceu satisfeito.
— Você se lembra agora? Não é suposição? Você se lembra?
Rik aquiesceu veementemente.
— Surgiu em minha mente, citadino. De forma muito repentina.
Era o artigo sobre espaçoanálise.
— Eu sei o que o texto diz — falou Rik. — O senhor vai ver, o
senhor vai ver. — Ele estava com dificuldade para respirar
normalmente, e Terens, por sua vez, estava quase igualmente
empolgado.
— Veja — disse Rik —, eles sempre têm essa parte.
Ele leu em voz alta, hesitante, mas de maneira muito mais
proficiente do que poderia ser justificada pelas aulas superficiais de
leitura que recebera de Valona. O artigo dizia:
Não é de surpreender que o espaçoanalista seja
introvertido de temperamento e, muitas vezes, inadaptado.
Dedicar boa parte da vida adulta ao registro solitário do
terrível vazio entre as estrelas é mais do que pode ser exigido
de uma pessoa totalmente normal. Talvez seja com alguma
percepção disso que o Instituto de Espaçoanálise adotou
como slogan oficial a declaração um tanto sarcástica: “Nós
analisamos o Nada”.
Rik terminou a leitura com o que soou quase como um grito.
— Você entende o que acabou de ler? — perguntou Terens.
O homem mais baixo ergueu a cabeça com um olhar brilhante.
— Dizia: “Nós analisamos o Nada”. Foi disso que me lembrei. Eu
era um deles.
— Você era espaçoanalista?
— Era — gritou Rik. Depois prosseguiu, em um tom mais baixo:
— Minha cabeça está doendo.
— Por estar se lembrando?
— Acho que sim. — Ele levantou os olhos, franzindo a testa. —
Tenho que me lembrar de mais. Há perigo. Um grande perigo! Não
sei o que fazer.
— A biblioteca está à nossa disposição, Rik — Terens observava
cuidadosamente, pesando as palavras. — Use o catálogo você
mesmo e dê uma olhada em alguns textos sobre espaçoanálise.
Veja aonde isso o leva.
Rik lançou-se sobre o leitor. Ele tremia visivelmente. Terens
afastou-se para lhe dar espaço.
— Que tal o Tratado de instrumentação espaçoanalítica, de
Wrijt? — indagou Rik. — Não parece bom?
— Tudo depende de você, Rik.
Rik digitou o número do catálogo, e a tela brilhou intensa e
continuamente. Ela dizia: “Por favor, consulte o bibliotecário a
respeito do livro em questão”.
Terens estendeu a mão depressa e neutralizou a tela.
— Melhor tentar outro livro, Rik.
— Mas… — Rik hesitou, depois seguiu a ordem. Fez outra
busca pelo catálogo e então escolheu Composição do espaço, de
Enning.
A tela mostrou mais uma vez o pedido para consultar o
bibliotecário. Terens exclamou: “Droga!”, depois apagou a tela de
novo.
— Qual é o problema? — perguntou Rik.
— Nada. Nada — respondeu Terens. — Não entre em pânico,
Rik. Eu só não entendo muito bem…
Havia um pequeno alto-falante atrás da grade decorativa ao lado
do mecanismo de leitura. A voz fina e seca da bibliotecária ecoou
dali e deixou os dois paralisados.
— Sala 242? Há alguém na sala 242?
— O que você quer? — retrucou Terens, asperamente.
— Que livro vocês querem? — indagou a voz.
— Nenhum. Obrigado. Estamos apenas testando o leitor.
Seguiu-se uma pausa, como se estivesse acontecendo alguma
consulta invisível. Depois a voz disse, com um tom ainda mais
agudo:
— O registro indica um pedido de leitura do Tratado de
instrumentação espaçoanalítica, de Wrijt, e da Composição do
espaço, de Enning. Está correto?
— Nós estávamos digitando os números do catálogo
aleatoriamente — respondeu Terens.
— Posso perguntar por que o interesse nesses livros? — A voz
era inexorável.
— Estou lhe dizendo que não queremos esses livros… — Terens
voltou-se irritado para Rik, que começara a choramingar: — Agora,
por favor, pare com isso.
Outra pausa. Então a voz disse:
— Se descerem até a mesa, terão acesso aos livros. Eles estão
em uma lista reservada e vocês terão que preencher um formulário.
Terens estendeu uma das mãos para Rik.
— Vamos.
— Talvez a gente tenha quebrado alguma regra — falou Rik,
com a voz trêmula.
— Bobagem, Rik. Nós vamos embora.
— Não vamos preencher o formulário?
— Não, vamos pegar os livros algum outro dia.
Terens estava com pressa, forçando Rik a acompanhá-lo.
Desceu o saguão principal. A bibliotecária levantou os olhos.
— Ei — gritou ela, levantando-se e dando a volta em torno da
mesa. — Um momento. Um momento!
Eles não pretendiam parar para falar com ela — até que um
patrulheiro os deteve.
— Vocês estão com muita pressa, garotos.
A bibliotecária, um tanto ofegante, alcançou-os.
— Vocês estavam na sala 242, não estavam?
— Escute — disse Terens com firmeza —, por que estão nos
parando?
— Vocês não perguntaram por certos livros? Nós gostaríamos de
pegá-los para vocês.
— Está muito tarde. Outra hora. Você não entende que não
queremos os livros? Eu volto amanhã.
— A biblioteca — disse a mulher, em um tom empertigado — se
empenha o tempo todo em proporcionar satisfação. Os livros serão
colocados à sua disposição em um instante. — Dois pontos
vermelhos queimavam em suas bochechas. Ela se afastou e entrou
depressa por uma portinha que se abriu quando ela se aproximou.
Terens começou a dizer:
— Oficial, se o senhor não se importa…
Mas o patrulheiro estendeu o chicote neurônico pesado e de
tamanho razoável. Poderia servir como um excelente cassetete ou
como uma arma de alcance maior e de potencialidades paralisantes.
— Agora, garoto, por que você não se senta quietinho e espera a
moça voltar? — sugeriu ele. — Seria a coisa educada a se fazer.
O patrulheiro já não era jovem, já não era magro. Parecia estar
perto de se aposentar e provavelmente estava cumprindo o seu
tempo vegetando sossegadamente como guarda da biblioteca, mas
estava armado, e a jovialidade em seu rosto trigueiro tinha um ar de
falsa.
A testa de Terens estava úmida, e ele podia sentir a transpiração
se acumulando na base da espinha. De algum modo, subestimara a
situação. Sentira-se seguro de sua própria análise sobre a questão,
de tudo. No entanto, ali estava ele. Não deveria ter sido tão
imprudente. Era aquele maldito desejo de invadir a Cidade Alta,
percorrer os corredores da biblioteca como se fosse sarkita…
Durante um momento de desespero, quis agredir o patrulheiro;
então, inesperadamente, não precisou fazê-lo.
A princípio, foi apenas um lampejo de movimento. O patrulheiro
começou a se virar um pouco tarde demais. As reações mais lentas
da idade o traíram. O chicote neurônico foi arrancado de sua mão e,
antes que pudesse fazer mais do que emitir o começo de um grito
rouco, a arma tocou sua têmpora. Ele desmaiou.
Rik soltou um grito agudo de satisfação, e Terens exclamou:
— Valona! Por todos os demônios de Sark, Valona!
O REBELDE

Terens se recompôs quase de imediato.


— Para fora — disse ele. — Rápido! — E começou a andar.
Por um instante, teve o impulso de arrastar o corpo inconsciente
do patrulheiro para a sombra atrás das colunas que bordejavam o
saguão principal, mas obviamente não havia tempo.
Eles despontaram na rampa com o sol da tarde despejando luz e
calor no mundo à sua volta. As cores da Cidade Alta haviam
mudado para um padrão de alaranjado.
— Venham! — exclamou Valona, ansiosa, quando Terens a
pegou pelo cotovelo.
Ele sorria, mas sua voz soou rígida e baixa.
— Não corra — disse ele. — Ande naturalmente e me siga.
Fique com o Rik. Não o deixe correr.
Deram alguns passos. Pareciam estar andando em meio a uma
cola. Os sons que vinham de trás seriam da biblioteca? Ou seriam
só imaginação? Terens não se atreveu a olhar.
— Aqui — indicou ele. O letreiro em cima da entrada da garagem
piscava um pouco sob a luz da tarde, mas não competia muito bem
com o sol de Florina. Ele dizia: “Entrada de ambulância”.
Dentro da garagem, passando por uma entrada lateral e por
entre paredes incrivelmente brancas, havia borrões de material
estranho contra o asséptico aspecto vítreo do corredor.
Uma mulher de uniforme olhava para eles a certa distância. Ela
hesitou, franziu a testa e começou a se aproximar. Terens não
esperou por ela. Virou-se bruscamente, seguiu uma bifurcação do
corredor, depois outra. Eles passaram por outras pessoas de
uniforme, e Terens podia imaginar a incerteza que estavam
levantando. Era inédito ter nativos perambulando sem guardas nos
andares mais altos de um hospital. O que é que se podia fazer?
Mais cedo ou mais tarde, claro, alguém os deteria.
Terens sentiu as batidas do coração acelerarem quando viu uma
porta discreta com a inscrição: aos andares nativos. O elevador
estava no mesmo andar que eles. Ele levou Rik e Valona para
dentro, e o suave movimento do elevador enquanto baixava foi a
sensação mais agradável do dia.
Havia três tipos de edificações na Cidade. A maioria se
compunha de Edificações Baixas, inteiramente construídas no nível
baixo. Casas de trabalhadores, variando até a três andares de
altura. Fábricas, padarias, instalações para a eliminação de
resíduos. As outras eram Edificações Altas: residências sarkitas,
teatros, a biblioteca, ginásios de esporte. Mas alguns poucos eram
duplos, com níveis e entradas tanto embaixo como em cima, como
as centrais de patrulheiros, por exemplo, e os hospitais.
Era possível, portanto, usar um hospital para ir da Cidade Alta
para a Cidade Baixa e, assim, evitar o uso dos grandes elevadores
de carga com seu deslocamento lento e seus ascensoristas
excessivamente atentos. Para um nativo, fazer isso era totalmente
ilegal, evidentemente; mas o crime adicional era só mais um
pequeno aborrecimento para quem já agredira patrulheiros.
Eles saíram no nível de baixo. As austeras e assépticas paredes
brancas continuavam lá, mas tinham uma aparência ligeiramente
degradada, como se fossem limpas com menos frequência. Os
bancos estofados que se enfileiravam nos corredores no nível de
cima haviam sumido. Sobretudo, havia o burburinho incômodo de
uma sala de espera cheia de homens desconfiados e mulheres
assustadas. Uma única atendente tentava organizar aquela
confusão, sem muito êxito.
Ela falava rispidamente com um idoso de barba por fazer, o qual
puxava e alisava o joelho enrugado de sua calça desfiada e
respondia a todas as perguntas em um tom monótono de desculpas.
— Qual exatamente é a sua queixa?… Quanto tempo faz que
sente essas dores?… Já esteve no hospital antes?… Olhe, vocês
não podem nos incomodar por cada coisinha. Sente-se; o médico
vai dar uma olhada no senhor e passar mais remédio.
— Próximo! — ela chamou com um grito agudo, depois
murmurou algo para si mesma enquanto olhava para o grande
relógio na parede.
Terens, Valona e Rik esgueiravam-se cautelosamente pela
multidão. Valona, como se a presença de conterrâneos florinianos
houvesse libertado sua língua da paralisia, sussurrava
intensamente.
— Eu tive que vir, citadino. Fiquei tão preocupada com Rik. Achei
que o senhor não o levaria de volta e…
— Como você subiu até a Cidade Alta, afinal? — indagou Terens
por sobre o ombro, enquanto empurrava de ambos os lados nativos
que não ofereciam resistência.
— Eu segui o senhor e vi que subiu pelo elevador de carga.
Quando ele desceu, falei que estava com o senhor e ele me levou lá
para cima.
— Simples assim?
— Eu chacoalhei o sujeito um pouco.
— Demônios de Sark — resmungou Terens.
— Eu tive que fazer isso — explicou Valona com tristeza. —
Então vi os patrulheiros mostrando um edifício para o senhor.
Esperei até eles irem embora e fui para lá também. Só que não me
atrevi a entrar. Eu não sabia o que fazer, então meio que me
escondi até ver vocês saindo e o patrulheiro detendo…
— Ei, vocês aí! — Era a voz aguda e impaciente da
recepcionista. Ela estava de pé agora, e a batida forte de sua caneta
de metal no tampo de ligacimento da mesa prevaleceu sobre o
falatório e reduziu-o a um silêncio de respirações ofegantes.
— Essas pessoas que estão tentando sair. Venham aqui. Vocês
não podem sair sem ser examinados. Ninguém vai escapar da
jornada de trabalho fingindo estar doente. Voltem aqui!
Mas os três já estavam na penumbra da Cidade Baixa. Havia ao
redor os cheiros e o barulho do que os sarkitas chamavam de Bairro
Nativo, e o nível de cima era mais uma vez apenas um teto sobre
eles. Mas, por maior que fosse o alívio de Valona e Rik estando
longe da opressiva riqueza do ambiente sarkita, a ansiedade de
Terens não arrefecera. Eles haviam ido longe demais e, de agora
em diante, poderiam não encontrar segurança em lugar nenhum.
Esse pensamento ainda passava por sua mente turbulenta
quando Rik gritou:
— Olhe!
Terens sentiu um aperto na garganta.
Aquela talvez fosse a visão mais assustadora que os nativos da
Cidade Baixa poderiam ter. Como um pássaro gigantesco que
descia flutuando de uma das aberturas da Cidade Alta, tampou o sol
e intensificou a escuridão agourenta daquela parte da Cidade. Mas
não era um pássaro. Era um dos carros terrestres armados dos
patrulheiros.
Nativos gritaram e começaram a correr. Podiam não ter nenhum
motivo específico para temer, mas se espalharam mesmo assim.
Um homem, quase no trajeto do carro, afastou-se, relutante. Estava
com pressa, determinado a cuidar de algum assunto pessoal
quando a sombra o alcançou. Ele olhou ao redor, uma rocha de
tranquilidade em meio à loucura. Tinha estatura mediana, mas seus
ombros eram quase grotescamente largos. Uma das mangas tinha
um racho de cima a baixo, revelando um braço da grossura da coxa
de um homem.
Terens hesitou, e Rik e Valona não podiam fazer nada sem ele. A
incerteza interior do citadino transformara-se em uma febre. Se
corressem, para onde poderiam ir? Se permanecessem onde
estavam, o que fariam? Havia uma chance de que os patrulheiros
estivessem atrás de outras pessoas, mas, com um patrulheiro
inconsciente no chão da biblioteca por culpa deles, essas chances
eram insignificantes.
O homem de ombros largos se aproximava a passos rápidos e
pesados. Por um momento, parou ao passar por eles, como que
inseguro.
— A padaria de Khorov fica na segunda rua à direita, depois da
lavanderia — disse ele, em tom de conversa.
Ele voltou para trás.
— Venham — falou Terens.
Ele transpirava profusamente enquanto corria. Em meio ao
tumulto, ouviu as ordens dadas aos berros que saíam das gargantas
dos patrulheiros com naturalidade. Deu uma olhada por cima do
ombro. Meia dúzia deles estava descendo do carro terrestre,
espalhando-se. Eles não teriam problemas, ele sabia. Com aquele
maldito uniforme de citadino, ele era tão discreto quanto uma das
colunas que sustentavam a Cidade Alta.
Dois dos patrulheiros estavam correndo na direção certa. Ele
não sabia se o haviam visto ou não, mas não importava. Ambos se
chocaram com o homem de ombros largos que acabara de falar
com Terens. Todos os três estavam perto o bastante para Terens
ouvir o grito rouco do homem de ombros largos e os xingamentos
severos dos patrulheiros. Terens fez Valona e Rik virarem a esquina.
O nome da padaria de Khorov estava escrito em uma “minhoca”
quase desfigurada de plástico luminoso, quebrado em meia dúzia de
lugares, e o maravilhoso cheiro que saía pela porta aberta a tornava
inconfundível. Não havia nada a fazer exceto entrar, e eles
entraram.
De dentro de um cômodo interior, onde podiam ver o brilho das
fornalhas de radar apagadas pela farinha, um velho olhou para fora.
Não teve a chance de perguntar o que eles queriam.
— Um homem de ombros largos… — Terens começou a dizer.
Ele estendeu os braços para demonstrar, e passaram-se a ouvir os
gritos de “Patrulheiros! Patrulheiros!” do lado de fora.
— Por aqui! Rápido! — exclamou o velho com voz rouca.
Terens se conteve.
— Aí?
— Esse é burro — falou o velho.
Primeiro Rik, depois Valona, depois Terens entraram
engatinhando pela porta da fornalha. Ouviu-se um leve clique, e a
parede do fundo da fornalha moveu-se ligeiramente e soltou-se das
dobradiças de cima. Eles passaram por ela e entraram em um
cômodo pequeno e mal iluminado.
····
E esperaram. A ventilação era ruim e o cheiro de assado aumentava
a fome sem satisfazê-la. Valona ficava sorrindo para Rik, dando
palmadinhas na mão dele de tempos em tempos. Rik olhava de
volta para ela, sem expressão. De vez em quando ele colocava uma
das mãos no rosto corado.
— Citadino — começou Valona.
— Agora não, Lona, por favor! — retorquiu ele, com um sussurro
firme.
Ele passou as costas da mão pela testa, então observou a
umidade dos nós dos dedos.
Ouviu-se um clique, amplificado pelo confinamento apertado do
esconderijo deles. Terens ficou tenso. Sem perceber muito bem,
ergueu os punhos fechados.
Era o homem de ombros imensos, enfiando-os pela abertura.
Seus ombros mal cabiam ali.
Ele olhou para Terens e achou graça.
— Que é isso, cara? Não vamos lutar.
Terens olhou para os punhos e deixou-os cair.
O homem de ombros largos estava em condições marcadamente
mais precárias agora do que quando eles o viram pela primeira vez.
Estava sem camisa, e um vergão recente, que aos poucos adquiria
uma coloração vermelha e roxa, marcava uma de suas bochechas.
Seus olhos eram pequenos, e as pálpebras os apertavam em cima e
embaixo.
— Eles pararam de procurar — falou ele. — Se estiverem com
fome, a comida aqui não é sofisticada, mas é suficiente. O que me
dizem?
····
Era noite na Cidade. Havia luzes na Cidade Alta que iluminavam o
céu em um raio de quilômetros; mas, na Cidade Baixa, a escuridão
era sufocante. As sombras se cerravam densamente sobre a
fachada da padaria para esconder as luzes ilegais após o toque de
recolher.
Rik sentiu-se melhor depois de ter forrado o estômago com
comida quente. A dor de cabeça começou a ceder. Ele fixou o olhar
na bochecha do homem de ombros largos.
— O senhor se machucou? — perguntou ele, timidamente.
— Um pouco — respondeu o grandalhão. — Não importa.
Acontece todos os dias no meu ramo de trabalho. — Ele riu,
mostrando dentes grandes. — Tiveram de admitir que não fiz nada,
mas eu estava no caminho deles enquanto procuravam outra
pessoa. O jeito mais fácil de tirar um nativo do caminho… — Ele
levantou a mão e abaixou-a com tudo, segurando uma arma
invisível pelo cabo.
Rik encolheu-se, e Valona instintivamente ergueu um braço para
protegê-lo.
O homem de ombros largos se recostou, passando a língua
pelos dentes para tirar as partículas de comida.
— Eu sou Matt Khorov, mas as pessoas me chamam de padeiro
— disse ele. — Quem são vocês?
Terens encolheu os ombros.
— Bem…
— Entendo — falou o padeiro. — O que eu não ficar sabendo
não vai prejudicar ninguém. Talvez. Talvez. Mas nesse ponto vocês
podem confiar em mim. Salvei vocês dos patrulheiros, não salvei?
— Salvou. Obrigado. — Terens não conseguiu exprimir
cordialidade em sua voz. Ele perguntou: — Como sabia que
estavam atrás de nós? Havia um bocado de gente correndo.
O outro sorriu.
— Nenhuma delas estava com a cara que vocês três estavam.
Tão pálidos que daria para triturar o rosto de vocês e usar como giz.
Terens tentou sorrir como resposta. Não se saiu muito bem.
— Não sei ao certo por que você arriscou a sua vida. De
qualquer forma, obrigado. Não é grande coisa dizer apenas
“obrigado”, mas não há mais nada que eu possa fazer neste exato
momento.
— Você não tem que fazer nada. — Os amplos ombros do
padeiro se recostaram contra a parede. — Faço isso sempre que
posso. Não é nada pessoal. Se os patrulheiros estão atrás de
alguém, faço o melhor que posso por essa pessoa. Odeio os
patrulheiros.
Valona arquejou.
— Você não se mete em confusão?
— Claro. Olhe para isso. — Ele pôs um dedo suavemente sobre
a bochecha machucada. — Mas você não acha que eu devo deixar
esse tipo de coisa me atrapalhar, assim espero. Foi por isso que
construí o forno falso. Para os patrulheiros não me pegarem e não
dificultarem muito para mim.
Valona arregalara os olhos com uma mescla de medo e fascínio.
— Por que não? — perguntou o padeiro. — Você sabe quantos
nobres existem em Florina? Dez mil. Sabe quantos patrulheiros?
Talvez vinte mil. E existem quinhentos milhões de nativos. Se nós
nos juntássemos contra eles… — Ele estalou os dedos.
— Estaríamos nos juntando contra pistolas-agulha e canhões
desintegradores, padeiro — falou Terens.
— É — retrucou o padeiro. — Precisaríamos arranjar algumas
armas. Vocês, citadinos, têm vivido perto demais dos nobres. Vocês
têm medo deles.
O mundo de Valona estava sendo virado de cabeça para baixo
naquele dia. À sua frente havia um homem que lutava com
patrulheiros e falava com o citadino com autoconfiança. Quando Rik
puxou a manga da sua roupa, ela o fez soltar os dedos com
delicadeza e lhe disse para dormir. Mal olhou para ele, tamanho o
fascínio que sentia ao ouvir as palavras daquele homem.
— Mesmo com pistolas-agulha e canhões desintegradores, o
único jeito de os nobres manterem Florina é com a ajuda de cem mil
citadinos — dizia o homem de ombros largos.
Terens parecia ofendido, mas o padeiro continuou.
— Por exemplo, olhe para você. Roupas muito bonitas.
Arrumado. Bonito. Tem uma cabaninha legal. Aposto que tem livros-
filmes, um vagão particular e não precisa seguir o toque de recolher.
Pode ir para a Cidade Alta se quiser. Os nobres não fariam isso por
você a troco de nada.
Terens não se sentiu em posição de perder a cabeça.
— Tudo bem — disse ele. — O que você quer que os citadinos
façam? Que briguem com os patrulheiros? De que isso serviria?
Admito que mantenho minha cidade quieta e cumprindo a cota, mas
também a mantenho longe de problemas. Tento ajudar a todos, até
onde a lei permite. Já não é alguma coisa? Um dia…
— Ah, um dia. Quem é que pode esperar por um dia? Quando
você e eu estivermos mortos, que diferença vai fazer quem governa
Florina? Para nós, quero dizer.
— Em primeiro lugar, eu odeio os nobres mais do que você —
disse Terens. — Porém… — Ele parou, corando.
O padeiro riu.
— Continue. Fale de novo. Não vou entregá-lo por odiar os
nobres. O que fizeram para os patrulheiros estarem atrás de vocês?
Terens ficou calado.
— Eu posso adivinhar — falou o padeiro. — Quando vieram para
cima de mim, os patrulheiros estavam muito zangados. Zangados
mesmo, e não apenas porque algum nobre disse para se zangarem.
Eu conheço esses caras e posso dizer. Então penso que só poderia
ter acontecido uma coisa. Vocês devem ter dado uma pancada num
patrulheiro. Ou matado, talvez.
Terens continuou calado.
O padeiro não perdeu nem um pouco do seu tom agradável.
— Tudo bem manter silêncio, mas existe uma coisa que é ser
cauteloso demais, citadino. Vocês vão precisar de ajuda. Eles
sabem quem vocês são.
— Não, não sabem — replicou Terens, rapidamente.
— Eles devem ter olhado os seus cartões na Cidade Alta.
— Quem disse que eu estava na Cidade Alta?
— Uma suposição. Aposto que estavam.
— Eles olharam o meu cartão, mas não por tempo suficiente
para ler o meu nome.
— Por tempo suficiente para saber que você é um citadino. A
única coisa que eles precisam fazer é achar o citadino que está
ausente de sua cidade ou um que não consiga explicar por onde
andou hoje. As linhas telefônicas de toda a Florina provavelmente
estão pegando fogo neste exato momento. Acho que vocês estão
em apuros.
— Talvez.
— Você sabe que não existe talvez. Quer ajuda?
Eles conversavam aos sussurros. Rik se encolhera no canto e
dormira. Os olhos de Valona passavam de um interlocutor para o
outro.
Terens chacoalhou a cabeça.
— Não, obrigado. Eu… eu vou sair dessa.
O riso fácil do padeiro ecoou.
— Vai ser interessante de ver. Não me despreze porque não
tenho instrução. Eu tenho outras coisas. Olhe, passe a noite
pensando no assunto. Talvez você decida que precisa de ajuda.
····
Os olhos de Valona estavam abertos na escuridão. Sua cama era
apenas um cobertor sobre o chão, mas era quase tão boa quanto as
camas com as quais estava acostumada. Rik dormia profundamente
em outro cobertor no canto oposto. Ele sempre dormia
profundamente em dias agitados, depois que suas dores de cabeça
passavam.
O citadino recusara uma cama e o padeiro rira (ele ria de tudo,
ao que parecia), apagara a luz e dissera-lhe que se sentisse à
vontade para ficar sentado no escuro.
Os olhos de Valona continuavam abertos. O sono passava longe.
Será que voltaria a dormir algum dia? Ela derrubara um patrulheiro
com uma pancada!
Inexplicavelmente, estava pensando no pai e na mãe.
Eles eram lembranças nebulosas em sua mente. Ela quase se
forçara a esquecê-los nos anos que se estenderam entre eles e ela
mesma. Mas agora se lembrava do som das conversas sussurradas
durante a noite, quando achavam que ela estava dormindo. Ela se
lembrava de pessoas que vieram à noite.
Os patrulheiros haviam-na acordado uma noite e feito perguntas
que ela não conseguia entender, mas às quais tentava responder.
Nunca mais viu os pais depois disso. Eles haviam ido embora,
disseram-lhe, e no dia seguinte colocaram-na para trabalhar
enquanto outras crianças da idade dela ainda tinham dois anos para
brincar. As pessoas ficavam olhando para ela quando passava, e as
outras crianças não tinham permissão para brincar com ela, mesmo
quando o horário de trabalho terminava. Aprendera a evitar contato
com os outros. Aprendera a não falar. Então chamavam-na “Lona
Girafa” e riam dela e diziam que era débil mental.
Por que a conversa desta noite a fizera lembrar-se dos pais?
— Valona.
A voz estava tão próxima que a leve respiração fez seu cabelo
se mexer e tão baixa que ela mal pôde ouvir. Ficou tensa, em parte
por medo, em parte por constrangimento. Havia apenas um lençol
sobre seu corpo nu.
Era o citadino.
— Não diga nada — falou ele. — Apenas ouça. Eu vou embora.
A porta não está trancada. Mas vou voltar. Está me ouvindo?
Entendeu?
Ela estendeu o braço na escuridão, pegou a mão dele,
pressionou-a com os dedos. Ele ficou satisfeito.
— E cuide do Rik. Não deixe que ele saia de perto. E Valona…
— Seguiu-se uma longa pausa. Então continuou: — Não confie
demais nesse padeiro. Não sei nada sobre ele. Entendeu?
Ouviu-se um tênue barulho de movimentação, um rangido
distante ainda mais tênue, e ele se foi. Ela se ergueu sobre um
cotovelo e, a não ser pela respiração de Rik e a dela própria, havia
somente silêncio.
Ela fechou os olhos na escuridão, apertando-os, tentando
pensar. Por que o citadino, que sabia de tudo, dissera aquilo sobre o
padeiro, que odiava os patrulheiros e os havia salvado? Por quê?
Ela só conseguiu pensar em uma coisa: ele estivera lá. No exato
momento em que as coisas pareciam tão sombrias quanto poderiam
estar, o padeiro viera e agira rapidamente. Era quase como se
houvesse sido arranjado ou como se o padeiro estivesse esperando
tudo aquilo acontecer.
Ela chacoalhou a cabeça. Parecia estranho. Se não fosse pelo
que o citadino falara, ela jamais pensaria nisso.
O silêncio foi quebrado em pedaços palpitantes por um
comentário alto e indiferente.
— Olá? Ainda estão aí?
Ela ficou paralisada quando um feixe de luz recaiu em cheio
sobre ela. Aos poucos relaxou e amontoou o lençol ao redor do
pescoço. O feixe se desviou.
Ela não precisou se perguntar sobre a identidade do novo
interlocutor. Seu amplo vulto agachado avolumava-se à meia-luz
refletida pela lanterna.
— Sabe, eu achei que você iria com ele — falou o padeiro.
— Quem, senhor? — respondeu Valona, com voz fraca.
— O citadino. Você sabe que ele foi embora, garota. Não
desperdice o meu tempo fingindo.
— Ele vai voltar, senhor.
— Ele falou que vai voltar? Se falou, está errado. Os patrulheiros
vão pegá-lo. Ele não é muito esperto, o citadino, ou saberia quando
deixam uma porta aberta por um motivo. Você está pensando em ir
embora também?
— Eu vou esperar o citadino — respondeu Valona.
— Fique à vontade. Vai ser uma longa espera. Vá quando quiser.
De repente, o feixe de luz dele deixou de iluminá-la de vez e
deslizou pelo chão, recaindo sobre o rosto pálido e magro de Rik. As
pálpebras de Rik se contraíram automaticamente com o impacto da
luz, mas ele continuou dormindo.
A voz do padeiro assumiu um tom pensativo.
— Mas eu preferiria que você deixasse esse aí para trás. Você
entende isso, eu suponho. Se decidir ir embora, a porta está aberta,
mas não está aberta para ele.
— Ele é só um pobre rapaz doente… — Valona começou a dizer,
em uma voz alta e assustada.
— É? Bem, eu coleciono pobres rapazes doentes, e esse aí fica.
Lembre-se!
O feixe de luz não desviou do rosto adormecido de Rik.
O CIENTISTA

Fazia um ano que o dr. Selim Junz estava impaciente, mas uma
pessoa não se acostuma, com o tempo, a sentir-se impaciente. Na
verdade, acontece o contrário. Não obstante, aquele ano lhe
ensinara que não se podia apressar o Serviço Público Sarkita, ainda
mais porque os servidores públicos são, na maioria, florinianos
transferidos e, portanto, terrivelmente cuidadosos com a própria
dignidade.
Uma vez ele perguntara ao velho Abel, embaixador trantoriano,
que vivia em Sark havia tanto tempo que as solas das botas tinham
criado raízes, por que os sarkitas permitiam que os departamentos
do governo fossem administrados pelas mesmas pessoas que tanto
desprezavam.
Abel enrugara os olhos por sobre uma taça de vinho verde.
— Política, Junz — respondeu ele. — Política. Uma questão de
genética prática levada a cabo pela lógica sarkita. Esses sarkitas em
si são um mundo pequeno, imprestável, e só são importantes
contanto que controlem aquela eterna mina de ouro, Florina. Então,
todo ano eles vasculham os campos e vilarejos de Florina, trazendo
a nata da juventude para Sark para treinamento. Os medíocres são
colocados para arquivar seus documentos e preencher seus
espaços em branco e assinar seus formulários, e os muito
inteligentes são enviados de volta para Florina para atuar como
governantes nativos das cidades. Citadinos, eles são chamados.
O dr. Junz era espaçoanalista, basicamente. Ele não entendia o
objetivo daquilo tudo. Disse que não entendia.
Abel apontou um velho e rígido dedo indicador para ele, e a luz
verde que refletia através do conteúdo de sua taça tocou-lhe a unha
estriada, sobrepujando seu tom cinza amarelado.
— Você nunca será administrador — disse ele. — Não me peça
recomendação. Olhe, os elementos mais inteligentes de Florina são
incondicionalmente seduzidos em prol da causa sarkita, uma vez
que, enquanto servem Sark, são bem cuidados, ao passo que, se
derem as costas a Sark, o máximo que podem esperar é a volta à
existência floriniana, que não é boa, meu amigo, não é boa.
Ele tomou o vinho com um gole e continuou:
— Além do mais, nem os citadinos nem os funcionários da área
administrativa em Sark podem procriar sem perder seus cargos. Isto
é, nem mesmo as mulheres florinianas. A miscigenação com os
sarkitas, claro, está fora de questão. Dessa forma, os melhores
genes florinianos são sempre retirados de circulação, de modo que,
aos poucos, Florina será composta apenas de talhadores de
madeira e carregadores de água.
— Nesse ritmo, vão ficar sem funcionários, não vão?
— Uma questão para se resolver no futuro.
O dr. Junz estava em uma das antessalas externas do
Departamento de Assuntos Florinianos e esperava com impaciência
que lhe permitissem passar pelas lentas catracas, enquanto
subalternos florinianos percorriam, apressada e interminavelmente,
um labirinto burocrático.
Um idoso floriniano, que enrugara em serviço, postou-se diante
dele.
— Doutor Junz?
— Sim.
— Venha comigo.
Um número piscando em uma tela teria sido igualmente eficaz
para chamá-lo, e um fluorocanal pelo ar, igualmente eficaz para
conduzi-lo; no entanto, onde a mão de obra é barata, nada precisa
ser substituído. Ele jamais vira mulheres em nenhum departamento
do governo em Sark. Deixavam as mulheres florinianas em seu
planeta, à exceção de algumas empregadas domésticas que eram
igualmente proibidas de procriar, e as mulheres sarkitas, como
dissera Abel, estavam fora de questão.
Fizeram-lhe um gesto para se sentar à mesa do assistente do
subsecretário. Ele sabia qual era o título do homem por causa do
brilho canalizado que estava gravado sobre a mesa. Nenhum
floriniano poderia ser mais do que assistente, é claro,
independentemente de quantos fios de comando de fato passassem
por seus dedos brancos. O subsecretário e o secretário de Assuntos
Florinianos seriam sarkitas, mas, embora pudesse encontrá-los
socialmente, o dr. Junz sabia que nunca os encontraria ali no
departamento.
Ele se sentou, ainda impaciente, mas pelo menos mais próximo
do objetivo. O assistente olhava o arquivo com cautela, virando cada
página criteriosamente codificada como se ela guardasse os
segredos do universo. O homem era bastante jovem, um recém-
graduado, talvez, e, como todos os florinianos, tinha pele e cabelo
muito claros.
····
O dr. Junz sentiu uma excitação atávica. Ele próprio vinha do
planeta Libair e, como todos os libairianos, era muito pigmentado, e
sua pele tinha um tom marrom-escuro intenso. Havia poucos
mundos na Galáxia onde a cor da pele era tão extrema quanto em
Libair ou Florina. Em geral, tonalidades intermediárias eram a regra.
Alguns dos jovens antropólogos radicais brincavam com a ideia
de que homens de planetas como Libair, por exemplo, haviam
surgido de uma evolução independente, porém convergente. Os
homens mais velhos condenavam amargamente qualquer ideia de
uma evolução que admitisse que diferentes espécies pudessem
convergir a ponto de permitir o cruzamento, como certamente
acontecia entre todos os mundos da Galáxia. Insistiam que, no
planeta original, fosse qual fosse, a humanidade já se dividira em
subgrupos de pigmentação variada.
Isso apenas deslocava o problema para um passado mais
distante e não respondia a nada, de modo que o dr. Junz não
achava nenhuma das duas explicações satisfatória. No entanto,
mesmo agora se via pensando nessa questão de vez em quando.
Lendas de um passado de conflitos haviam permanecido, por algum
motivo, nos mundos negros. Os mitos libairianos, por exemplo,
falavam de tempos de guerra entre homens de pigmentação
diferente, e considerava-se que a fundação do próprio planeta Libair
se devia à fuga de um grupo de negros de uma derrota em batalha.
Após deixar Libair para entrar no Instituto Arcturiano de
Tecnologia Espacial, e mais tarde ingressar na profissão, o dr. Junz
esqueceu-se das antigas fábulas. Só uma vez pensara de fato no
assunto, quando deparara com um dos antigos mundos do Setor
Centauriano no decorrer de uma atividade profissional; um daqueles
mundos cuja história era milenar e cuja língua era tão arcaica que
seu dialeto quase poderia ser aquela língua mítica e perdida, o
inglês. Eles tinham uma palavra especial para designar homens de
pele negra.
Mas por que deveria haver uma palavra especial para um
homem de pele negra? Não havia nenhuma palavra especial para
homens de olhos azuis, ou orelhas grandes, ou cabelo enrolado.
Não havia…
A voz precisa do assistente interrompeu seu devaneio.
— O senhor já esteve neste gabinete antes, de acordo com o
registro.
— De fato já estive, senhor — respondeu o dr. Junz, com certa
aspereza.
— Mas não recentemente.
— Não, não recentemente.
— O senhor continua procurando um espaçoanalista que
desapareceu — o assistente folheou as páginas — uns onze meses
e treze dias atrás.
— Correto.
— Em todo esse tempo — disse o assistente em seu tom seco e
frágil, do qual parecia que toda a energia fora retirada —, não houve
nenhum sinal do homem e nenhuma evidência de que ele tenha
estado em qualquer parte do território sarkita.
— Sua última localização — falou o cientista — foi no espaço,
perto de Sark.
O assistente levantou a cabeça e seus pálidos olhos azuis se
concentraram por um momento no dr. Junz, depois baixaram
rapidamente.
— Pode ser, mas não é evidência de sua presença em Sark.
Não era evidência! O dr. Junz apertou os lábios. Era o que a
Agência Interestelar de Espaçoanálise vinha lhe dizendo com cada
vez mais rudeza havia meses.
“Não há evidência, dr. Junz. Achamos que seu tempo pode ser
mais bem empregado, dr. Junz. A Agência vai se certificar de que a
busca continue, dr. Junz.”
O que eles queriam dizer na verdade era: “Pare de desperdiçar
nosso dinheiro, Junz”.
Aquilo começara, como o assistente declarara cuidadosamente,
onze meses e treze dias antes pelo Tempo Interestelar Padrão (o
assistente não seria culpado, claro, por usar o horário local em uma
questão dessa natureza). Dois dias antes ele aterrissara em Sark no
que deveria ser uma inspeção rotineira dos escritórios da Agência
naquele planeta, mas que acabou sendo… bem, acabou sendo o
que foi.
Encontrara-se com o representante local da AIE, um jovem magro
que ficou marcado no pensamento do dr. Junz sobretudo pelo fato
de mascar incessantemente algum produto elástico da indústria
química de Sark.
····
Foi quando a inspeção estava quase terminada e resolvida que o
agente local se lembrara de algo, posicionara o mascafumo no
espaço atrás dos dentes molares e dissera:
— Mensagem de um dos homens de campo, dr. Junz.
Provavelmente sem importância. O senhor sabe como eles são.
Era a expressão costumeira de dispensa: o senhor sabe como
eles são. O dr. Junz levantou os olhos com um lampejo
momentâneo de indignação. Estava prestes a dizer que, quinze
anos antes, ele próprio fora um “homem de campo”; então se
lembrou de que, três meses depois, não conseguira mais suportar.
Mas foi essa pitada de raiva que o fez ler a mensagem com zelosa
atenção.
Ela dizia: Por favor, mantenha uma linha codificada direta aberta
para a sede central da AIE para enviar uma mensagem detalhada
sobre uma questão da maior importância. Toda a Galáxia será
afetada. Vou aterrissar por trajetória mínima.
O agente achou graça. Com a mandíbula de volta à mastigação
ritmada, ele falou:
— Imagine, senhor. “Toda a Galáxia afetada.” Essa é muito boa,
mesmo para um trabalhador de campo. Eu o chamei depois que
recebi isso para ver se conseguia entender, mas foi um fiasco. Ele
só continuava dizendo que a vida de todos os seres humanos em
Florina estava em perigo. Sabe, meio bilhão de vidas em jogo. Ele
parecia muito psicopático. Então, francamente, eu não quero tentar
lidar com ele quando aterrissar. O que o senhor sugere?
— Você tem uma transcrição da sua conversa? — perguntara o
dr. Junz.
— Tenho, senhor. — Seguiu-se uma busca de alguns minutos.
Uma lasca de filme foi enfim encontrada.
O dr. Junz reproduziu-a no leitor. Ele franziu o cenho.
— Essa é uma cópia, não é?
— Mandei o original para a Agência de Transporte
Extraplanetário aqui em Sark. Achei que seria melhor se se
encontrassem com ele no campo de aterrissagem com uma
ambulância. Ele provavelmente está em maus lençóis.
O dr. Junz teve o impulso de concordar com o rapaz. Quando os
solitários analistas das profundezas do espaço chegavam a ponto
de perder o controle por causa do trabalho, era provável que suas
psicopatias fossem violentas.
— Mas espere — disse ele então. — Pelo modo como você fala,
ele não aterrissou ainda.
O agente pareceu surpreso.
— Suponho que tenha aterrissado, mas ninguém me ligou para
falar sobre isso.
— Bem, ligue para a Agência de Transporte e descubra os
detalhes. Psicopático ou não, os detalhes precisam estar nos
nossos registros.
O espaçoanalista aparecera outra vez no dia seguinte em uma
checagem de último minuto antes de deixar o planeta. Ele não tinha
nenhum outro assunto a tratar em outros planetas e estava com
uma pressa razoável. Quase à porta, perguntou por sobre o ombro:
— Como está o homem de campo?
— Ah, olhe… eu pretendia contar. A Agência de Transporte não
recebeu nenhuma notícia. Mandei um padrão de energia para os
motores hiperatômicos dele e dizem que sua nave não está em
nenhum lugar no espaço próximo. O cara deve ter mudado de ideia
sobre a aterrissagem.
O dr. Junz decidiu atrasar a partida por vinte e quatro horas. No
dia seguinte, estava na Agência de Transporte Extraplanetário da
Cidade de Sark, a capital do planeta. Encontrou-se com os
burocratas florinianos pela primeira vez, que chacoalharam a
cabeça para ele. Haviam recebido a mensagem sobre a provável
aterrissagem de um analista da AIE. Ah, sim, mas nenhuma nave
aterrissara.
Mas era importante, insistiu o dr. Junz. O homem estava muito
doente. Então não haviam recebido uma cópia da transcrição da
conversa dele com o agente local da AIE? Eles arregalaram os olhos
ao ouvi-lo. Transcrição? Não foi possível encontrar ninguém que se
lembrasse de havê-la recebido. Eles lamentavam que o sujeito
estivesse doente, mas nenhuma nave da AIE aterrissara e não havia
nenhuma nave da AIE em parte alguma no espaço próximo.
O dr. Junz voltou ao seu quarto de hotel e pensou em muitas
coisas. O novo prazo para a sua partida passara. Ele ligou para a
recepção e pediu para ser transferido para outra suíte, mais
adaptada a uma ocupação prolongada. Depois marcou um encontro
com Ludigan Abel, o embaixador trantoriano.
Passou o dia seguinte lendo livros sobre a história sarkita e,
quando chegou a hora do encontro com Abel, seu coração havia
passado a repercutir uma lenta pulsação de raiva. Estava seguro de
que não desistiria facilmente.
O velho embaixador tratou o encontro como uma visita social,
apertara sua mão, acionara o barman mecânico e não permitira
nenhuma discussão de negócios durante os dois primeiros drinques.
Junz aproveitou a oportunidade para um bate-papo útil: perguntou
sobre o Serviço Público Floriniano e recebeu a explicação sobre a
genética prática de Sark. Seu senso de raiva se intensificou.
Junz sempre se lembrava de Abel como ele estava naquele dia.
Olhos fundos fechados sob espantosas sobrancelhas brancas, nariz
pontudo pairando intermitentemente sobre a taça de vinho,
bochechas encovadas acentuando o rosto e o corpo magros e um
dedo nodoso acompanhando lentamente alguma música inaudível.
Junz começou a sua história, contando-a com imperturbável
economia. Abel ouviu com atenção, sem interromper.
Quando Junz terminou, ele tocou com delicadeza os lábios e
perguntou:
— Escute, você conhece esse homem que desapareceu?
— Não.
— Nem se encontrou com ele?
— É difícil nos encontrarmos com nossos analistas de campo.
— Ele teve alucinações antes?
— Essa foi a primeira, de acordo com os registros dos escritórios
centrais da AIE, se for alucinação.
— Se for? — O embaixador não entendeu o comentário. Ele
indagou: — E por que você veio me procurar?
— Para pedir ajuda.
— Claro. Mas de que maneira? O que eu posso fazer?
— Deixe-me explicar. A Agência Sarkita de Transporte
Extraplanetário verificou o espaço próximo em busca do padrão de
energia dos motores da nave do nosso homem, e não há nenhum
sinal dele. Eles não mentiriam sobre isso. Não estou dizendo que os
sarkitas não mentem, mas com certeza não contam mentiras inúteis
e devem saber que eu posso fazer com que a questão seja
verificada no espaço de duas ou três horas.
— Verdade. Mas e aí?
— Existem duas ocasiões em que o traço de um padrão de
energia falha. Uma é quando a nave não está no espaço próximo
porque fez um Salto pelo hiperespaço e está em outra região da
Galáxia, e a outra é quando não está no espaço porque aterrissou
em um planeta. Não acredito que o nosso homem tenha feito um
Salto. Se suas declarações sobre perigo para Florina e importância
galáctica são alucinações megalomaníacas, nada o impediria de vir
até Sark informar sobre o assunto. Ele não teria mudado de ideia e
ido embora. Tenho quinze anos de experiência com essas coisas.
Se, por acaso, suas declarações fossem sensatas e verdadeiras,
então sem dúvida a questão seria grave demais para permitir que
ele mudasse de ideia e deixasse o espaço próximo.
O velho trantoriano levantou um dedo e agitou-o com delicadeza.
— Você conclui então que ele está em Sark.
— Exatamente. Mais uma vez, existem duas alternativas.
Primeiro, se ele estiver sob o efeito de uma psicose, pode ter
aterrissado em qualquer lugar do planeta que não seja um
espaçoporto reconhecido. Pode estar vagando, doente e
semiamnésico. Essas coisas são muito estranhas, mesmo para
homens de campo, mas já aconteceram. Em geral, nesses casos,
os acessos são temporários. Quando passam, a vítima descobre
que os detalhes do trabalho voltam primeiro, antes de qualquer
lembrança pessoal. Afinal, o trabalho de um espaçoanalista é sua
vida. Muitas vezes, o amnésico é encontrado porque entra em uma
biblioteca pública para procurar referências sobre espaçoanálise.
— Entendo. Então você quer que eu o ajude a acertar com o
Conselho de Bibliotecários que o avisem sobre esse tipo de
situação.
— Não, porque não quero contar com nenhum problema lá. Vou
pedir que certos trabalhos-padrão sobre espaçoanálise sejam
reservados e que qualquer homem que pergunte por eles, a não ser
aqueles que possam provar que são sarkitas nativos, sejam detidos
para interrogatório. Eles vão concordar porque saberão, ou certos
superiores seus saberão, que esse plano não vai dar em nada.
— Por quê?
— Porque — Junz falava rapidamente agora, envolto por uma
trêmula nuvem de fúria — tenho certeza de que o nosso homem
aterrissou no espaçoporto da Cidade de Sark exatamente como
tinha planejado e, sadio ou psicótico, foi então possivelmente preso,
mas provavelmente morto pelas autoridades sarkitas. Mas vou
investigar isso também.
Abel pousou na mesa o copo quase vazio.
— Você está brincando? Morto?
— Eu pareço estar brincando? O que o senhor me disse apenas
meia hora atrás sobre Sark? Suas vidas, sua prosperidade e seu
poder dependem de controlar Florina. O que foi que a minha própria
leitura nessas últimas vinte e quatro horas me mostrou? Que os
campos de kyrt em Florina são a riqueza de Sark. E aí vem um
homem, sadio ou psicótico, não interessa, que alega que algo de
importância galáctica colocou a vida de cada homem e mulher em
Florina em perigo. Veja esta transcrição da última conversa
conhecida do nosso homem.
Abel pegou a lasca de filme que fora atirada sobre o seu colo por
Junz e aceitou o leitor que lhe foi oferecido. Examinou-o devagar,
com os olhos esmaecidos piscando e espiando pelo visor.
— Não é muito informativo.
— Claro que não. Diz que existe perigo. Diz que existe extrema
urgência. Só isso. Mas nunca deveria ter sido enviado para os
sarkitas. Mesmo que o sujeito estivesse errado, será que o governo
sarkita poderia permitir que ele divulgasse qualquer loucura,
considerando que fosse loucura, que tivesse em mente e enchesse
a Galáxia com essa história? Sem levar em conta o pânico que
poderia gerar em Florina, a interferência na produção de fios de kyrt,
continua sendo fato que toda a bagunça desonesta das relações
políticas entre Sark e Florina seria exposta para a Galáxia inteira.
Pense que eles só precisam acabar com um homem para impedir
tudo isso, uma vez que eu não posso tomar providências com base
apenas nessa transcrição, e eles sabem. Será que Sark hesitaria
em cometer um assassinato num caso desses? O planeta dos
experimentadores genéticos que você descreveu não hesitaria.
— E o que você gostaria que eu fizesse? Devo dizer que ainda
não sei ao certo. — Abel parecia indiferente.
— Descubra se eles o mataram — respondeu Junz, em um tom
sombrio. — Vocês devem ter uma organização para espionagem
aqui. Ah, vamos ser francos. Eu venho andando pela Galáxia por
tempo suficiente para superar a adolescência política. Descubra a
verdade enquanto eu os distraio com as minhas negociações com
as bibliotecas. E, quando você descobrir que eles são mesmo
assassinos, quero que Trantor garanta que nenhum governo, em
parte alguma da Galáxia, jamais volte a pensar que pode matar um
homem da AIE e ficar impune.
E ali terminou sua primeira conversa com Abel.
Junz estava certo em uma coisa: os oficiais sarkitas foram
cooperativos e até solidários no que se referia ao acordo com as
bibliotecas.
Mas ele parecia não haver acertado mais nada. Meses se
passaram e os agentes de Abel não conseguiram encontrar nenhum
sinal do homem de campo desaparecido, vivo ou morto, em
nenhuma parte de Sark.
Essa pareceu a realidade por mais de onze meses. Junz
começou a se sentir pronto para desistir. Esteve a ponto de optar
por esperar pelo décimo segundo mês para dar tudo por terminado,
e nada mais. Então a oportunidade viera, e não fora por parte de
Abel, mas do quase esquecido espantalho que ele mesmo
preparara. Chegou um relato da biblioteca pública de Sark e,
quando deu por si, Junz estava sentado diante de um funcionário
público floriniano no Departamento de Assuntos Florinianos.
····
O assistente terminou o arranjo mental do caso. Ele virara a última
folha.
Ergueu os olhos.
— Agora, o que podemos fazer pelo senhor?
Junz respondeu com precisão.
— Ontem, às 4h22 da tarde, fui informado de que a filial
floriniana da biblioteca pública de Sark deteve um homem para mim
que tentou consultar dois textos-padrão sobre espaçoanálise e que
não era sarkita nativo. Não ouvi mais notícias da biblioteca desde
então.
Ele continuou, levantando a voz para sobrepor-se a algum
comentário que o assistente começara a fazer.
— Um comunicado de telenotícia que recebi, às 5h05 da tarde
de ontem, por meio de um instrumento público de propriedade do
hotel onde resido, afirmou que um membro da Patrulha Floriniana foi
nocauteado na filial floriniana da biblioteca pública de Sark e que
três florinianos nativos que se acredita serem os responsáveis pelo
ultraje estavam sendo perseguidos. Esse comunicado não se
repetiu nos resumos do noticiário mais tarde.
“Agora não tenho dúvidas de que existe uma relação entre as
duas informações. Não tenho dúvidas de que o homem que eu
quero está sob a custódia da Patrulha. Pedi permissão para viajar a
Florina e foi recusada. Mandei uma mensagem subetérica para
Florina pedindo para mandarem o homem em questão para Sark e
não recebi resposta. Venho ao Departamento de Assuntos
Florinianos para exigir uma ação a esse respeito. Ou eu vou para lá
ou ele vem para cá.”
— O governo de Sark não pode aceitar ultimatos de oficiais da
AIE — declarou o assistente, com sua voz sem vida. — Fui alertado
pelos meus superiores de que o senhor provavelmente me
interrogaria sobre essas questões e instruído sobre os fatos que
devo revelar. O homem que relataram estar consultando os textos
reservados, junto com dois companheiros, um citadino e uma
mulher floriniana, de fato cometeram a agressão que o senhor
mencionou e foram perseguidos pela Patrulha. Porém, eles não
foram capturados.
Uma amarga decepção tomou conta de Junz. Ele não se deu ao
trabalho de tentar esconder.
— Eles escaparam?
— Não exatamente. Foram rastreados até a padaria de um tal de
Matt Khorov.
Junz fez cara feia.
— E permitiram que eles ficassem lá?
— O senhor vem conversando com Sua Excelência Ludigan Abel
ultimamente?
— O que isso tem a ver com…
— Fomos informados de que o senhor tem sido visto com
frequência na embaixada trantoriana.
— Não vejo o embaixador faz uma semana.
— Então sugiro que vá procurá-lo. Nós permitimos que os
criminosos permanecessem ilesos no estabelecimento de Khorov
por respeito às nossas delicadas relações interestelares com
Trantor. Fui instruído a lhe dizer, se parecesse necessário, que
Khorov, como o senhor provavelmente não ficará surpreso em saber
— e aqui o rosto branco deixou transparecer algo notavelmente
semelhante a um sorriso sarcástico —, é bem conhecido pelo nosso
Departamento de Segurança como agente de Trantor.
O EMBAIXADOR

Terens saiu da padaria de Khorov dez horas antes da conversa que


Junz teve com o assistente.
Terens mantinha uma das mãos na superfície áspera das
cabanas dos trabalhadores pelas quais passava enquanto
atravessava cautelosamente as vielas da Cidade. A não ser pela
pálida luz que recaía em um brilho intermitente da Cidade Alta, ele
estava na total escuridão. O que poderia existir de luz na Cidade
Baixa eram os clarões perolados dos patrulheiros, andando em dois
ou em três.
A Cidade Baixa era como um monstro nocivo cochilando, suas
bobinas ensebadas escondidas pela cobertura cintilante da Cidade
Alta. Partes dela provavelmente mantinham uma vida nas sombras,
uma vez que produtos eram trazidos e armazenados para o dia
seguinte, mas não ali, não nos bairros pobres.
Terens esgueirava-se por uma viela empoeirada — mesmo as
chuvas de Florina mal conseguiam penetrar nas regiões sombrias
embaixo do ligacimento — quando o tinido de passos chegou até
ele. Luzes apareceram, passaram e desapareceram a noventa
metros de distância.
A noite inteira, patrulheiros andavam de um lado para o outro.
Eles só precisavam andar. O medo que inspiravam era forte o
bastante para manter a ordem com quase nenhuma demonstração
de força. Sem as luzes da Cidade, a escuridão podia muito bem ser
abrigo de incontáveis humanos rastejantes; mas, mesmo sem os
patrulheiros como uma ameaça distante, esse perigo poderia ser
desconsiderado. As lojas de mantimentos e as oficinas eram bem
protegidas, o luxo da Cidade Alta era incansável e roubar uns dos
outros, parasitar na miséria uns dos outros, era obviamente inútil.
O que seria considerado crime em outros mundos quase não
existia ali, no escuro. Os pobres estavam por perto, mas haviam
sido espoliados, e os ricos estavam totalmente fora de alcance.
Terens apertou o passo, com a luz revelando-lhe o rosto
incrivelmente branco ao passar por debaixo de uma das aberturas
do ligacimento lá no alto, e não pôde deixar de olhar para cima.
Fora de alcance!
Será que eles estavam mesmo fora de alcance? Quantas
mudanças de atitude em relação aos nobres de Sark ele enfrentara
na vida? Durante a infância, era apenas uma criança. Os
patrulheiros eram monstros vestidos de preto e prateado, de quem
era natural fugir, tendo ou não feito algo errado. Os nobres eram
super-homens indistintos e místicos, imensamente bons, que viviam
em um paraíso conhecido como Sark e meditavam cautelosa e
pacientemente sobre o bem-estar dos homens e mulheres tolos de
Florina.
Ele repetia todos os dias na escola: Que o Espírito da Galáxia
proteja os nobres como eles nos protegem.
Sim, ele pensava agora, exatamente. Exatamente! Que o
Espírito da Galáxia seja para eles o que eles são para nós. Nada
mais e nada menos. Seus punhos se cerraram e arderam nas
sombras.
Quando tinha dez anos, escreveu uma redação para a escola
sobre como imaginava ser a vida em Sark. Fora um trabalho de pura
imaginação criativa, planejado para exibir a caligrafia. Lembrava-se
muito pouco; só de uma passagem, na verdade. Nela descrevia os
nobres reunindo-se a cada manhã em um grande saguão com cores
como aquelas das flores de kyrt, solenemente sérios, um esplendor
de seis metros de altura, discutindo sobre os pecados dos
florinianos e pesarosamente melancólicos quanto à necessidade de
trazê-los de volta à virtude.
O professor ficara muito satisfeito e, ao final daquele ano,
quando os outros meninos e meninas continuaram com suas
pequenas sessões de leitura, escrita e moral, ele fora promovido
para uma aula especial em que aprendia aritmética, galactografia e
história sarkita. Aos dezesseis anos, fora levado para Sark.
Ainda podia se lembrar da grandiosidade daquele dia, mas
afastou a lembrança com um arrepio. Pensar nisso o envergonhava.
Terens se aproximava dos limites da cidade agora. Uma brisa
ocasional lhe trazia o forte aroma noturno das flores de kyrt. Em
alguns minutos ele estaria na relativa segurança dos campos
abertos, onde não havia rondas regulares de patrulheiros e onde,
por entre nuvens esparsas, veria as estrelas de novo. Até mesmo a
estrela de um amarelo vivo e intenso que era o sol de Sark.
Ele fora seu durante metade de sua vida. Quando o viu pela
primeira vez pela escotilha da nave como algo mais que uma
estrela, como uma bolinha de gude insuportavelmente brilhante,
quis ajoelhar-se. A ideia de que estava se aproximando do paraíso
afastara até o medo paralisante do primeiro voo espacial.
Ele aterrissara em seu paraíso e fora entregue a um velho
floriniano que garantiu que tomasse banho e se vestisse
adequadamente. Foi levado para um edifício grande e, no caminho,
seu guia idoso curvara-se para uma pessoa que passava.
— Curve-se! — o velho murmurou irritado ao jovem Terens.
Terens se curvou e ficou confuso.
— Quem era?
— Um nobre, seu camponês ignorante.
— Ele? Um nobre?
Ele ficou imóvel e teve de ser instado a continuar andando. Era a
primeira vez que via um nobre. De modo algum teria seis metros de
altura; era um homem como os outros. Outros jovens florinianos
poderiam ter se recuperado do choque dessa desilusão, mas não
Terens. Algo mudou dentro dele — e mudou para sempre.
Durante todo o treinamento que recebeu, ao longo de todos os
estudos nos quais se saiu tão bem, nunca se esqueceu de que os
nobres eram homens.
Estudou por dez anos e, quando não estava estudando nem
comendo nem dormindo, ensinaram-lhe a ser útil de várias
pequenas formas. Ensinaram-lhe a entregar mensagens e esvaziar
cestos de lixo, a curvar-se quando um nobre passava e a virar a
cabeça respeitosamente para a parede quando a esposa de um
nobre passava.
Por mais cinco anos trabalhou no Serviço Público, mudando de
cargo em cargo para que suas habilidades pudessem ser mais bem
testadas sob uma variedade de condições.
Certa vez, um floriniano gorducho e cortês o visitou, oferecendo
sua amizade com um sorriso, apertando de leve seu ombro, e
perguntou o que ele achava dos nobres.
Terens reprimiu um desejo de virar as costas e correr.
Perguntava-se se seus pensamentos poderiam ter ficado marcados
em algum código obscuro sobre as linhas do seu rosto. Chacoalhou
a cabeça e murmurou uma série de banalidades sobre a bondade
dos nobres.
Mas o gorducho espraiou os lábios e disse:
— Você não está falando sério. Venha a este lugar hoje à noite.
— Ele lhe entregou um cartãozinho que carbonizou e se desintegrou
em poucos minutos.
Terens foi. Estava com medo, mas muito curioso. Lá encontrou
amigos seus, que olharam para ele com segredo nos olhos e que o
encontraram no trabalho mais tarde com insossos olhares de
indiferença. Ouviu o que eles diziam e descobriu que muitos
pareciam acreditar no que ele vinha guardando na própria mente,
mas que achava ser criação sua e de mais ninguém.
Descobriu que pelo menos alguns florinianos pensavam que os
nobres eram brutamontes repugnantes que exploravam as riquezas
de Florina para o seu próprio e inútil bem, enquanto deixavam os
nativos esforçados chafurdando na ignorância e na pobreza. Soube
que estava chegando o momento em que haveria uma gigantesca
insurreição contra Sark, e todo o luxo e a riqueza de Florina seriam
apropriados pelos seus legítimos donos.
Como?, perguntou Terens. Perguntou repetidas vezes. Afinal, os
nobres e os patrulheiros tinham as armas.
E lhe falaram de Trantor, do gigantesco império que crescera nos
últimos séculos até que metade dos planetas habitados da Galáxia
fizessem parte dele. Trantor, diziam, destruiria Sark com a ajuda dos
florinianos.
Mas, disse Terens, primeiro para si mesmo, depois para os
outros, se Trantor era tão grande e Florina tão pequena, será que
Trantor simplesmente não substituiria Sark como um senhor ainda
maior e mais tirânico? Se essa fosse a única saída, seria preferível
tolerar Sark. Melhor o senhor que eles já conheciam do que o
senhor que não conheciam.
Ele foi ridicularizado e expulso sob ameaças contra a sua vida
caso algum dia contasse o que ouvira.
Contudo, algum tempo depois, notou que, um a um, aqueles
membros da conspiração desapareceram, até restar apenas o
gorducho original.
De vez em quando o via sussurrando para algum recém-
chegado aqui e ali, mas não seria seguro alertar a jovem vítima de
que lhe estavam apresentando uma tentação e um teste. Ela teria
de encontrar seu próprio caminho, assim como Terens.
Terens até passou algum tempo no Departamento de Segurança,
o que apenas alguns florinianos poderiam algum dia ter a esperança
de conseguir. Foi uma permanência curta, pois o poder ligado a um
oficial da Segurança era tal que o tempo que qualquer indivíduo
passava lá era ainda menor do que em outros lugares.
Mas aqui Terens descobriu, um pouco para sua surpresa, que
havia conspirações verdadeiras a serem combatidas. De algum
modo, homens e mulheres se encontravam em Florina e
conspiravam uma rebelião. Em geral, eles eram sustentados
clandestinamente com dinheiro trantoriano. Às vezes, os supostos
rebeldes de fato pensavam que Florina triunfaria sem ajuda.
Terens refletiu sobre o assunto. Suas palavras eram poucas, seu
comportamento estava correto, mas seus pensamentos variavam,
desenfreados. Detestava os nobres, em parte porque não tinham
seis metros de altura, em parte porque não podia olhar para suas
mulheres e em parte porque servira alguns, de cabeça curvada,
ainda que, apesar de toda a arrogância, fossem criaturas tolas, tão
instruídas quanto ele mesmo e, normalmente, muito menos
inteligentes.
No entanto, que alternativa existia a essa escravidão pessoal?
Trocar o nobre sarkita estúpido pelo imperial trantoriano estúpido
era inútil. Esperar que os camponeses florinianos fizessem algo por
conta própria era uma grande tolice. Não havia escapatória.
Esse era o problema que ocupava sua mente havia anos, como
estudante, como reles funcionário e como citadino.
Então surgira a peculiar série de circunstâncias que colocou em
suas mãos uma resposta inimaginável, personificada na figura
daquele homem de aparência insignificante que um dia fora
espaçoanalista e que, agora, balbuciava algo capaz de pôr em
perigo a vida de cada homem e mulher de Florina.
Terens chegara ao campo, onde a chuva da noite começava a
cessar e as estrelas irradiavam um brilho úmido entre as nuvens.
Ele aspirou profundamente o cheiro de kyrt, que era o tesouro e a
maldição de Florina.
Não tinha nenhuma ilusão. Não era mais citadino. Não era nem
sequer um camponês floriniano livre. Era um criminoso em fuga, um
fugitivo que tinha de se esconder.
No entanto, algo consumia sua mente. Pelas últimas vinte e
quatro horas, tivera em suas mãos a maior arma contra Sark que
alguém poderia haver sonhado. Não havia dúvida. Sabia que a
lembrança de Rik estava correta, que ele fora espaçoanalista um
dia, que ele fora alvo de uma sonda psíquica até quase ficar burro e
que aquilo de que ele se lembrava era verdadeiro e terrível e…
poderoso.
Tinha certeza disso.
E agora esse Rik estava nas mãos enormes de um homem que
fingia ser um patriota floriniano, mas na verdade era um agente
trantoriano.
Terens sentia o amargor de sua raiva no fundo da garganta.
Claro que aquele padeiro era um agente trantoriano. Não tivera
nenhuma dúvida desde o primeiro momento. Quem mais, entre os
moradores da Cidade Baixa, teria recursos para construir um forno
de radar falso?
Não podia permitir que Rik caísse nas mãos de Trantor. Não
permitiria que Rik caísse nas mãos de Trantor. Não havia limites
para os riscos que estava preparado para correr. Que importavam
os riscos? Ele já incorrera em pena de morte.
Havia um fraco brilho no canto do céu. Ele esperaria pelo
amanhecer. As várias estações de patrulheiros já tinham,
evidentemente, sua descrição, mas talvez seu aparecimento levasse
vários minutos até ser registrado.
E, durante esses vários minutos, ele seria citadino. Isso lhe daria
tempo para fazer algo em que, mesmo agora, ele não ousava deixar
que sua mente ficasse pensando.
····
Já fazia dez horas que Junz tivera uma conversa com o assistente
quando se encontrou com Ludigan Abel outra vez.
O embaixador cumprimentou Junz com sua cordialidade
superficial de costume, mas também com uma definitiva e
perturbadora sensação de culpa. Em seu primeiro encontro (muito
tempo atrás, quase um ano-padrão), ele não prestara atenção à
história do homem em si. Seu único pensamento fora: Será que isso
vai ajudar, ou pode ajudar, Trantor?
Trantor! Era sempre esse o seu primeiro pensamento, embora
ele não fosse o tipo de tolo que veneraria um punhado de estrelas
ou o emblema amarelo da Nave-e-Sol que as forças armadas
trantorianas usavam. Em resumo, não era um patriota no sentido
comum da palavra, e Trantor, enquanto Trantor, não significava
nada para ele.
Mas venerava a paz, tanto mais porque estava ficando velho e
gostava de sua taça de vinho, sua atmosfera saturada de música
suave e perfume, sua soneca da tarde e sua quieta espera pela
morte. Assim imaginava que todos os homens deviam se sentir; no
entanto, todos os homens vivenciavam guerra e destruição. Eles
morriam congelados no vácuo do espaço, vaporizados na rajada da
explosão de átomos, famintos em um planeta sitiado e
bombardeado.
Como então impor a paz? Não pela razão, com certeza, nem
pela educação. Se um homem não conseguia olhar para a paz e
para a guerra e escolher o primeiro em detrimento do segundo, que
outro argumento poderia persuadi-lo? O que poderia ser mais
eloquente como condenação da guerra do que a própria guerra?
Que façanha extraordinária da dialética poderia conter em si um
décimo da potência de uma única nave estripada com seu pavoroso
carregamento?
Então, para acabar com o mau uso da força, só restava uma
única solução: a própria força.
Abel tinha um mapa de Trantor em seu estúdio, desenhado de
forma a mostrar a aplicação dessa força. Tratava-se de um ovoide
claro e cristalino no qual as lentes galácticas estavam dispostas
tridimensionalmente. Suas estrelas eram partículas de poeira de
diamante branco; suas nebulosas, faixas de luz ou de névoa escura;
e, próximo às suas profundezas centrais, havia as poucas partículas
vermelhas que haviam sido a república trantoriana.
Não “eram”, mas “haviam sido”. A república trantoriana consistira
em meros cinco planetas quinhentos anos antes.
Todavia era um mapa histórico, que mostrava a República
naquele estágio apenas quando o mostrador marcava zero.
Avançando-se um grau no mostrador, a Galáxia seria retratada
como haveria de ser cinquenta anos depois, e um feixe de estrelas
se tornaria vermelho na borda de Trantor.
Em dez estágios, meio milênio se passaria, e o tom carmim se
espalharia como uma mancha de sangue, avolumando-se até que
metade da Galáxia houvesse caído na poça vermelha.
Aquele vermelho era o vermelho de sangue não apenas em um
sentido extravagante. Quando a república trantoriana se tornou a
confederação trantoriana e depois o império trantoriano, seu avanço
passara por uma floresta emaranhada de homens estripados, naves
estripadas e planetas estripados. Entretanto, através de tudo isso
Trantor se tornara forte e, em meio à vermelhidão, havia paz.
Agora Trantor estava na iminência de uma nova conversão: de
império trantoriano para império galáctico, e então o vermelho
tragaria todas as estrelas e haveria paz universal… pax trantorica.
Abel queria isso. Quinhentos anos atrás, quatrocentos anos
atrás, até mesmo duzentos anos atrás, ele teria se oposto a Trantor
por ser um ninho desagradável de pessoas maldosas, materialistas
e agressivas, indiferentes aos direitos dos outros, de democracia
imperfeita em casa, mas ágil em notar as pequenas escravidões dos
outros e de uma ambição sem fim. No entanto, o tempo passara
para todas essas coisas.
Ele não estava a favor de Trantor, e sim da finalidade abrangente
que Trantor representava. Portanto, eis que a questão “de que
maneira isso ajudará a paz galáctica?” naturalmente se transformou
em “de que maneira isso ajudará Trantor?”.
O problema era que, nesse caso particular, ele não tinha como
saber ao certo. Para Junz, a solução era obviamente simples.
Trantor deveria apoiar a AIE e punir Sark.
Possivelmente seria uma coisa boa, se fosse definitivamente
possível comprovar algo contra Sark. Possivelmente não, mesmo
assim. Com certeza não, se não fosse possível provar nada. Mas,
em todo caso, Trantor não podia se precipitar. A Galáxia inteira
podia ver que Trantor estava às portas do domínio galáctico e ainda
havia uma chance de os planetas não trantorianos restantes se
unirem contra isso. Trantor venceria até uma guerra dessas, mas
talvez não sem pagar um preço que transformaria a vitória em
apenas um nome mais agradável para a derrota.
Trantor jamais deveria fazer uma jogada imprudente nesta etapa
final do jogo. Abel, portanto, procedera devagar, tecendo sua
delicada rede sobre o labirinto do Serviço Público e o resplendor da
posição dos nobres sarkitas, sondando com um sorriso e
interrogando sem parecer fazê-lo. Tampouco se esqueceu de
manter os dedos do serviço secreto trantoriano sobre o próprio
Junz, para que o libairiano zangado não causasse, em algum
momento, um dano que Abel não pudesse reparar em um ano.
Abel ficou espantado com a raiva persistente do libairiano. Ele
lhe perguntara certa vez:
— Por que se preocupa tanto com um agente?
Ele esperara um discurso sobre a integridade da AIE e o dever de
defender a Agência como um instrumento não deste ou daquele
planeta, mas de toda a humanidade. Não ouviu discurso algum.
Em vez disso, Junz franziu o cenho e respondeu:
— Porque por trás de tudo isso está a relação entre Sark e
Florina. Eu quero expor essa relação e destruí-la.
Abel sentiu nada menos que náusea. Sempre, em toda parte,
havia essa preocupação com planetas isolados que impedia,
repetidas vezes, qualquer atenção inteligente ao problema da
unidade galáctica. Era certo que existiam injustiças sociais aqui e
ali. Era certo que elas pareciam, por vezes, impossíveis de digerir.
Mas quem poderia imaginar que tais injustiças pudessem ser
resolvidas em qualquer escala menor do que a galáctica? Primeiro,
era preciso pôr fim à guerra e à rivalidade nacional, e só então seria
possível voltar-se para as misérias internas que, afinal, tinham o
conflito externo como causa principal.
E Junz nem sequer era de Florina. Nem ao menos tinha essa
causa para justificar a miopia emocional.
— O que Florina significa para você? — perguntou Abel.
Junz hesitou.
— Sinto afinidade — respondeu.
— Mas você é libairiano. Ou pelo menos foi essa a minha
impressão.
— Eu sou, mas é aí que está a familiaridade. Nós dois somos
extremos em uma Galáxia marcada pelo mediano.
— Extremos? Não entendi.
— Quanto à pigmentação da pele — explicou Junz. — Eles são
estranhamente pálidos. Nós somos estranhamente escuros. Isso
significa alguma coisa. Isso nos conecta. Nos dá algo em comum.
Me parece que os nossos ancestrais devem ter tido um longo
histórico de diferenças e mesmo de exclusão pela maioria social.
Somos brancos e negros desafortunados, irmãos na diferença.
A essa altura, sob o olhar espantado de Abel, Junz parou. O
assunto jamais voltara a ser comentado.
····
Agora, depois de um ano, sem aviso, sem nenhuma insinuação
prévia, justo no momento em que talvez se pudesse esperar um
final tranquilo para todo aquele problema infeliz e bem quando Junz
mostrava sinais de entusiasmo enfraquecido, tudo foi pelos ares.
Ele encarava um Junz diferente agora, cuja raiva não estava
reservada para Sark, mas transbordara e derramara em Abel
também.
— Não que eu esteja ressentido — disse o libairiano — pelo fato
de os seus agentes estarem no meu encalço. Presumivelmente, o
senhor é cauteloso e não deve confiar em nada nem ninguém.
Ótimo, no que se refere a esse ponto. Mas por que não fui
informado assim que o nosso homem foi localizado?
A mão de Abel alisou o tecido do braço da poltrona.
— Essas questões são complicadas. Sempre complicadas.
Tomei providências para que qualquer relato de pessoa não
autorizada procurando informações sobre espaçoanálise fosse
comunicado a alguns dos meus agentes e também a você. Pensei
até que você poderia precisar de proteção. Mas em Florina…
— É — concordou Junz com amargura. — Fomos tolos de não
pensar nisso. Passamos quase um ano provando que ele não podia
ser encontrado em lugar nenhum em Sark. Ele tinha que estar em
Florina, e não conseguimos enxergar essa possibilidade. Em todo
caso, nós estamos com ele agora. Ou o senhor está e
presumivelmente será organizado um encontro para que eu fale
com ele?
Abel não respondeu diretamente.
— Você falou que lhe disseram que esse tal de Khorov era um
agente trantoriano?
— E ele não é? Por que eles mentiriam? Ou estão mal-
informados?
— Eles não mentiram nem estão mal-informados. Ele é nosso
agente faz dez anos e me parece perturbador que eles soubessem.
Isso me faz pensar em que outras coisas eles sabem e em como
nossa estrutura pode estar insegura. Mas você não fica se
perguntando por que contaram a você sem rodeios que ele era um
dos nossos homens?
— Porque era verdade, imagino, e para evitar de uma vez por
todas que eu os constrangesse com mais exigências que só
poderiam causar problemas entre eles e Trantor.
— A verdade é algo já desacreditado entre os diplomatas. E
como poderiam criar para si mesmos um problema maior do que
nos deixar descobrir quanto sabem sobre nós, dando-nos a
oportunidade de recolher a nossa rede danificada, remendá-la e
estendê-la novamente, antes que seja tarde demais?
— Então responda a sua própria pergunta.
— Digo que eles contaram a você que sabem sobre a verdadeira
identidade de Khorov como um gesto de triunfo. Eles sabiam que o
fato de terem essa informação não podia mais ajudá-los nem os
prejudicar, já que faz doze horas que fui informado de que eles
tinham conhecimento de que Khorov era um dos nossos homens.
— Mas como?
— Pelo indício mais evidente possível. Escute! Doze horas atrás,
Matt Khorov, agente de Trantor, foi morto por um membro da
Patrulha Floriniana. Os dois florinianos que ele estava ajudando,
uma mulher e o homem que muito provavelmente é o homem de
campo que você está procurando, se foram, desapareceram. É de
se presumir que estejam nas mãos dos nobres.
Junz soltou um grito e soergueu-se da poltrona.
Abel levou a taça de vinho aos lábios em um movimento calmo e
disse:
— Não há nada que eu possa fazer oficialmente. O homem
morto era floriniano e os que desapareceram, a não ser que
possamos provar o contrário, são florinianos também. Então, veja
bem, eles jogaram melhor e agora, além do mais, estão zombando
de nós.
O PATRULHEIRO

Rik viu o padeiro morto. Viu-o cair em silêncio, com o peito afundado
e carbonizado em farrapos fumegantes sob o disparo mudo do
desintegrador. Tal visão ofuscou em sua mente a maior parte do que
lhe acontecera antes e quase tudo o que viera depois.
Havia a vaga lembrança da aproximação inicial do patrulheiro, do
modo discreto e extremamente atento como sacara a arma. O
padeiro levantara os olhos e movera os lábios para uma última
palavra que não teve tempo de pronunciar. Então o estrago estava
feito; Rik sentiu o sangue correr para as orelhas e foi tomado pela
confusão da gritaria desvairada da multidão rodopiando por todos os
lados, como um rio transbordando.
Por um momento, esses efeitos anularam a melhora que a
mente de Rik obtivera naquelas últimas horas de sono. O patrulheiro
se precipitara na direção deles, avançando em meio a homens e
mulheres que gritavam, como se fossem um mar viscoso de lama
que ele teria de atravessar. Rik e Lona giraram com a corrente e
foram arrastados. Eles eram redemoinhos e subcorrentes, girando e
agitando-se enquanto os carros voadores dos patrulheiros
começavam a pairar lá no alto. Valona impeliu Rik a avançar sempre
para fora, para a periferia da Cidade. Durante algum tempo, ele foi a
criança assustada do dia anterior, não o quase adulto daquela
manhã.
Acordara aquele dia na penumbra de um amanhecer que não
podia ver do cômodo sem janelas onde dormira. Ficou ali por longos
minutos, examinando a própria mente. Algo se curara durante a
noite; algo se alinhavara e se tornara completo. Aquilo vinha se
preparando para acontecer desde o momento em que começara a
“se lembrar”, dois dias antes. O processo vinha se desenvolvendo
durante todo o dia anterior. A ida à Cidade Alta e à biblioteca, o
ataque ao patrulheiro e a fuga que se seguira, o encontro com o
padeiro… Tudo isso agira sobre ele como um fermento. As fibras
murchas de sua mente, dormentes havia tanto tempo, tinham sido
agarradas e esticadas, dolorosamente forçadas a trabalhar, e agora,
depois de um sono, havia uma débil pulsação em torno delas.
Ele pensou sobre o espaço e as estrelas, sobre longas, longas e
desertas dimensões e grandes silêncios.
Por fim, virou a cabeça para um lado e disse:
— Lona?
Ela acordou de imediato, soerguendo-se apoiada no cotovelo,
olhando em sua direção:
— Rik?
— Estou aqui, Lona.
— Você está bem?
— Claro. — Ele não conseguiu conter sua empolgação. — Eu
me sinto bem, Lona. Escute! Me lembrei de mais coisas. Eu estava
em uma nave e sei exatamente…
Mas ela não o ouvia. Pôs o vestido e, de costas para ele, alisou
a costura, fechou a frente e manuseou nervosamente o cinto.
Andou em direção a ele na ponta dos pés.
— Eu não queria dormir, Rik. Tentei ficar acordada.
Rik sentiu o contágio do nervosismo dela.
— Algo errado? — perguntou ele.
— Shh, não fale tão alto. Está tudo bem.
— Onde está o citadino?
— Ele não está aqui. Ele… ele teve que sair. Por que você não
dorme de novo, Rik?
Ele afastou o braço reconfortante da moça.
— Eu estou bem. Não quero dormir. Eu queria contar para o
citadino sobre a minha nave.
Mas o citadino não estava lá e Valona não queria ouvir. Rik se
calou e, pela primeira vez, sentiu-se realmente aborrecido com
Valona. Ela o tratava como se ele fosse criança, e ele estava
começando a se sentir como um homem.
Uma luz adentrou o cômodo, e a figura musculosa do padeiro
adentrou com ela. Rik piscou e, por um instante, ficou apavorado.
Ele não se opôs de todo quando o braço reconfortante de Valona
envolveu seu ombro.
Os lábios grossos do padeiro se estenderam em um sorriso.
— Vocês acordaram cedo.
Nenhum dos dois respondeu.
— Melhor assim — comentou o padeiro. — Vocês vão sair daqui
hoje.
A boca de Valona estava seca.
— Você não vai entregar a gente para os patrulheiros, vai? —
perguntou ela.
— Não, para os patrulheiros, não — respondeu ele. — As
pessoas certas foram informadas e vocês vão ficar a salvo.
Ele saiu e, pouco tempo depois, voltou, trazendo comida, roupas
e duas bacias de água. As roupas eram novas e pareciam
completamente estranhas.
Ele os observou enquanto comiam, dizendo:
— Vou dar novos nomes e novas histórias para vocês. Vocês
devem ouvir e não quero que esqueçam. Vocês não são florinianos,
entendem? Vocês são um casal de irmãos que veio do planeta
Wotex. Vocês estavam visitando Florina…
Ele continuou, fornecendo detalhes, fazendo perguntas, ouvindo
as respostas.
Rik ficou feliz por conseguir demonstrar que sua memória estava
funcionando, que tinha capacidade de aprender facilmente, mas os
olhos de Valona estavam sombrios de preocupação.
Isso não passou despercebido pelo padeiro.
— Se você me causar o mínimo problema, mando o rapaz
sozinho e deixo você para trás — ele falou para a moça.
As mãos fortes de Valona se cerraram como em um espasmo.
— Não vou causar problemas.
A manhã já estava avançada quando o padeiro se pôs de pé e
falou:
— Vamos!
A última coisa que fez foi colocar quadrinhos pretos de couro
sintético nos bolsos de cima da roupa deles.
Uma vez lá fora, Rik parecia surpreso com o que podia ver de si
mesmo. Ele não sabia que as roupas podiam ser tão complicadas.
O padeiro o havia ajudado a colocá-la, mas quem o ajudaria a tirá-
la? Valona não parecia uma camponesa de jeito nenhum. Até suas
pernas estavam recobertas por um material fino, e seus sapatos se
erguiam nos calcanhares, de modo que ela tinha de se equilibrar
com cuidado enquanto andava.
Transeuntes se aglomeraram, encarando boquiabertos,
chamando uns aos outros. A maioria era composta de crianças,
mulheres da feira e preguiçosos maltrapilhos e furtivos. Pareciam
não notar o padeiro. Ele carregava um bastão grosso que às vezes
ia parar, como que por acidente, entre as pernas de qualquer um
que chegasse perto demais.
Então, quando estavam a apenas noventa metros da padaria,
depois de virarem apenas uma esquina, o fundo da multidão ao
redor tumultuou-se agitadamente, e Rik distinguiu o preto e o
prateado de um patrulheiro.
Foi quando aconteceu aquilo. A arma, o disparo, e outra vez uma
fuga alucinada. Teria havido algum dia em que o medo não o
acompanhasse, sem a sombra de um patrulheiro atrás dele?
····
Eles se viram em meio à imundície de um dos distritos afastados da
Cidade. Valona ofegava muito; seu novo vestido tinha marcas
úmidas de transpiração.
— Não consigo mais correr — disse Rik.
— Nós temos que correr.
— Não desse jeito. Escute. — Ele resistiu firmemente à pressão
do aperto da moça. — Me escute.
Ele sentia que o susto e o pânico estavam passando.
— Por que não seguimos em frente e fazemos o que o padeiro
queria que fizéssemos? — perguntou ele.
— Como você sabe o que ele queria que fizéssemos? — ela
retrucou. Estava ansiosa. Queria continuar em movimento.
— Era para nós fingirmos que somos de outro planeta e ele nos
deu isso — explicou ele. Rik estava empolgado. Pegou o pequeno
retângulo de dentro do bolso, olhando dos dois lados e tentando
abrir como se fosse um livreto.
Não conseguiu. Era uma folha única. Apalpou as bordas e,
quando os dedos se encontraram em um canto, ouviu — ou melhor,
sentiu — algo ceder, e o lado voltado para ele assumiu um
surpreendente tom de branco leitoso. O termo usado na nova
superfície era difícil de entender, mas ele começou a decifrar
cautelosamente as sílabas.
— É um passaporte — disse ele enfim.
— O que é isso?
— Uma coisa que vai nos tirar daqui — Ele estava seguro disso.
Aquela ideia lhe viera à mente. Uma única palavra, “passaporte”,
desse jeito. — Você não entende? Ele ia nos ajudar a sair de
Florina. Em uma nave. Vamos seguir em frente.
— Não — discordou ela. — Ele foi contido. Ele foi morto. Nós
não podemos, Rik, nós não podemos.
Ele insistiu no assunto. Estava quase tagarelando.
— Mas seria a melhor coisa a fazer. Eles não iriam esperar que a
gente fizesse isso. E a gente não iria na nave onde ele queria que
fôssemos. Eles estariam de olho. A gente iria em outra nave.
Qualquer outra nave.
Uma nave. Qualquer nave. As palavras ecoavam em seus
ouvidos. Se a ideia era boa ou não, ele não se importava. Queria
estar em uma nave. Queria estar no espaço.
— Por favor, Lona!
— Tudo bem — disse ela. — Se você realmente pensa assim.
Eu sei onde fica o espaçoporto. Quando eu era criança, a gente
costumava ir lá de vez em quando nos dias de folga e ficava
observando de longe para ver as naves decolarem.
Eles voltaram a andar, e apenas uma leve inquietação
comichava o limiar da consciência de Rik. Alguma lembrança não do
passado distante, mas de um passado muito recente, algo de que
ele deveria se lembrar e não conseguia; por muito pouco, não
conseguia.
Ele a abafou pensando na nave que esperava por eles.
O floriniano no portão de entrada estava tendo sua quota de
agitação aquele dia, mas era uma agitação a longa distância.
Espalharam-se histórias insanas sobre a noite anterior, sobre
ataques a patrulheiros e fugas ousadas. Naquela manhã, as
histórias haviam aumentado e havia rumores sobre a morte de
patrulheiros.
Ele não se atreveu a deixar o seu posto, mas esticou o pescoço
e observou os carros aéreos passarem e os patrulheiros
carrancudos saírem à medida que o contingente do espaçoporto foi
se reduzindo cada vez mais até não restar quase nada.
Estavam enchendo a Cidade de patrulheiros, pensou ele, e ficou
ao mesmo tempo assustado e ebriamente empolgado. Por que a
ideia da morte de patrulheiros deveria deixá-lo feliz? Eles nunca o
haviam incomodado. Pelo menos não muito. Ele tinha um bom
emprego. Não era nenhum camponês estúpido.
Mas estava contente.
Mal teve tempo para o casal à sua frente, desconfortáveis e
transpirando em vestimentas estranhas que os distinguia de
imediato como estrangeiros. A mulher estendia um passaporte pela
brecha.
Uma olhada nela, uma olhada no passaporte, uma olhada na
lista de reservas. Ele apertou o botão apropriado e duas faixas
translúcidas de filme saltaram sobre eles.
— Vão em frente — disse ele, com impaciência. — Coloquem a
faixa no pulso e prossigam.
— Que nave é a nossa? — perguntou a mulher em um sussurro
educado.
Isso o agradou. Era raro ter estrangeiros no espaçoporto
floriniano. Nos últimos anos, haviam se tornado cada vez mais
raros. Mas, quando vinham, não eram nem patrulheiros nem nobres.
Não pareciam se dar conta de que você era só um floriniano e
falavam com você educadamente.
Isso o fez sentir-se cinco centímetros mais alto.
— Vocês a encontrarão no Ancoradouro 17 — explicou ele. —
Desejo a vocês uma boa viagem a Wotex — concluiu, em grande
estilo.
Depois voltou à sua tarefa de fazer ligações furtivas para amigos
na Cidade em busca de mais informações e de tentar, de forma
mais discreta ainda, grampear conversas em feixes de energia da
Cidade Alta.
Levou horas para ele descobrir que cometera um erro terrível.
····
— Lona! — exclamou Rik.
Ele deu um puxão na manga da roupa dela, apontou
rapidamente e sussurrou:
— Aquela ali!
Valona olhou para a nave indicada com ar duvidoso. Era muito
menor do que a nave no Ancoradouro 17, para a qual suas
passagens eram válidas. Parecia mais polida. Quatro câmaras de
descompressão estavam abertas e a escotilha principal estava
escancarada, com uma rampa que saía dela como uma língua
estendida até o nível do chão.
— Estão arejando a nave — comentou Rik. — Costumam arejar
as naves de passageiros antes do voo para se livrar do cheiro
acumulado de oxigênio enlatado, usado e reusado.
Valona o encarou.
— Como você sabe?
Rik sentiu uma semente de vaidade crescer dentro de si.
— Eu apenas sei. Sabe, não deve ter ninguém aí dentro agora.
Não é confortável com a corrente de ar ativada.
Ele olhou ao redor, incomodado.
— Mas não sei por que não tem mais gente por perto. Era assim
quando você costumava observar?
Valona achava que não, mas mal conseguia se lembrar. As
recordações da infância estavam muito distantes.
····
Não havia nenhum patrulheiro à vista quando eles subiram a rampa
com as pernas trêmulas. Os vultos que conseguiam ver eram de
funcionários civis atentos ao seu trabalho e pequenos àquela
distância.
O ar em movimento os açoitou quando entraram no porão, e o
vestido de Valona inflou, de modo que ela teve de abaixar as mãos
para manter a bainha dentro dos limites.
— É sempre assim? — ela perguntou. Nunca estivera em uma
nave antes, nunca sonhara em entrar em uma. Seus lábios cerraram
e seu coração disparou.
— Não — respondeu Rik. — Só durante o arejamento.
Ele andou alegremente pelos corredores de metalite duro,
inspecionando os cômodos vazios com ansiedade.
— Aqui — falou ele. Era a galera.
Ele falava rápido.
— Não é tanto pela comida. Podemos nos virar sem comida
durante algum tempo. É a água.
Ele vasculhou os compactos e ordenados compartimentos de
utensílios e surgiu com um recipiente grande e tampado. Procurou à
sua volta pela torneira de água, murmurou uma esperança ofegante
ao dizer que não haviam deixado de encher os reservatórios de
água e sorriu de alívio quando veio o som suave de água bombeada
e o jorro contínuo do líquido.
— Agora pegue algumas latas. Não muitas. Não queremos que
eles percebam.
Rik tentou desesperadamente pensar em maneiras de refutar as
descobertas. Mais uma vez, procurou por algo de que não
conseguia se lembrar. Às vezes, ainda se deparava com essas
lacunas em seu pensamento e, como um covarde, ele as evitava,
negava sua existência.
Encontrou um pequeno cômodo utilizado para equipamentos de
combate a incêndio, materiais médicos e cirúrgicos de emergência e
equipamentos de soldagem.
— Eles não vão vir aqui a não ser em emergências — disse ele,
sem muita confiança. — Você tem medo, Lona?
— Não vou ter medo com você, Rik — respondeu ela com
humildade. Dois dias antes, não, doze horas antes, era o contrário.
Mas a bordo daquela nave, por alguma transmutação de
personalidade que ela não questionava, Rik era o adulto e ela era a
criança.
— Não vamos poder usar as luzes porque perceberiam o
consumo de energia e, para usar o banheiro, vamos ter que esperar
os períodos de descanso e tentar passar pelos funcionários do turno
da noite — falou ele.
A corrente de ar parou de repente. Seu toque gelado no rosto
deles desapareceu, e o zunido suave e constante, que a
acompanhara a distância, cessou, deixando um grande silêncio para
preencher seu espaço.
— Eles vão embarcar logo, e então vamos para o espaço —
comentou Rik.
Valona jamais vira tanta alegria no rosto de Rik. Ele era como um
amante que ia encontrar sua amada.
····
Se Rik se sentira homem quando acordara ao amanhecer; agora era
um gigante, com os braços se estendendo por toda a extensão da
Galáxia. As estrelas eram suas bolinhas de gude, e as nebulosas
eram teias de aranha para tirar do caminho.
Ele estava em uma nave! Lembranças voltavam continuamente
em um longo fluxo e outras saíam para abrir espaço. Estava se
esquecendo dos campos de kyrt e da fábrica e de Valona cantando
baixinho para ele no escuro. Essas eram apenas pausas
momentâneas em um padrão que começava a voltar agora, com
suas pontas emaranhadas aos poucos se unindo.
Era uma nave!
Se o houvessem colocado em uma nave muito tempo antes, ele
não teria tido de esperar tanto para que as células fundidas de seu
cérebro se curassem.
— Agora não se preocupe. Você vai sentir uma vibração e ouvir
um barulho, mas vão ser só os motores. Você vai sentir um grande
peso sobre o seu corpo. É a aceleração — disse ele em voz baixa
para Valona no escuro.
Não havia uma palavra floriniana comum para o conceito e ele
usou outra palavra, uma que lhe veio à mente com facilidade.
Valona não entendeu.
— Vai doer? — perguntou ela.
— Vai ser bem desconfortável, porque não temos equipamentos
antiaceleração para absorver a pressão, mas não vai durar —
respondeu ele. — Apenas encoste na parede e, quando sentir que
está sendo empurrada contra ela, relaxe. Viu? Está começando.
Ele escolhera a parede certa e, quando o assobio do empuxo
dos motores hiperatômicos aumentou, a gravidade aparente mudou
e o que havia sido uma parede vertical pareceu tornar-se cada vez
mais diagonal.
Valona gemeu uma vez, depois caiu em um silêncio ofegante.
Ambos sentiam a garganta raspar, enquanto o tórax, sem a proteção
de correias e absorvedores hidráulicos, esforçava-se para liberar os
pulmões apenas o suficiente para a entrada de um pouco de ar.
Rik conseguiu pronunciar, resfolegando, algumas palavras —
quaisquer palavras que pudessem fazer com que Valona soubesse
que ele estava ali e acalmar o terrível medo do desconhecido que
sabia que devia haver tomado conta dela. Era só uma nave, uma
nave maravilhosa, mas ela nunca estivera em uma nave antes.
— Tem o Salto, claro, quando passamos pelo hiperespaço e
atravessamos a maior parte da distância entre as estrelas tudo de
uma vez — explicou ele. — Isso não vai causar nenhum incômodo.
Você nem vai saber que aconteceu. Não é nada comparado a
agora. Só uma pequena contração nas suas entranhas. — Ele
articulou bem as palavras, sílaba grunhida após sílaba grunhida.
Levou um bom tempo.
Aos poucos, o peso sobre o tórax aliviou, e a corrente invisível
que os prendia à parede estirou-se e caiu. Eles tombaram no chão,
arquejando.
— Você está machucado, Rik? — perguntou Valona enfim.
— Eu, machucado? — Ele conseguiu dar risada. Ainda não
havia recuperado o fôlego, mas riu da ideia de que pudesse se
machucar em uma nave.
— Certa vez, eu vivi em uma nave durante anos. Passava meses
sem aterrissar em um planeta — contou.
— Por quê? — ela indagou. Arrastou-se para mais perto e
colocou uma das mãos na bochecha dele, certificando-se de que ele
estava lá.
Ele passou o braço ao redor do ombro dela e ela repousou
naquele abraço silenciosamente, aceitando a inversão de papéis.
— Por quê? — perguntou ela.
Rik não conseguia lembrar por quê. Fizera aquilo; detestara
aterrissar em um planeta. Por algum motivo, fora necessário
permanecer no espaço, mas não podia lembrar por quê. Outra vez
esquivou-se da lacuna.
— Eu tinha um emprego — respondeu.
— É — concordou ela. — Você analisava o Nada.
— Pois é. — Ele ficou satisfeito. — Era exatamente isso o que
eu fazia. Você sabe o que significa?
— Não.
Ele não esperava que ela entendesse, mas tinha de conversar.
Tinha de regozijar-se com a memória, deleitar-se embriagadamente
com o fato de que podia evocar fatos passados com o estalar de um
dedo mental.
— Sabe, toda a matéria no universo é composta de uma centena
de substâncias diferentes — explicou ele. — Chamamos essas
substâncias de elementos. Ferro e cobre são elementos.
— Achei que fossem metais.
— São metais e são elementos também. Assim como o oxigênio
e o nitrogênio, o carbono e o paládio. Os mais importantes de todos
são o hidrogênio e o hélio. São os mais simples e mais comuns.
— Nunca ouvi falar desses — comentou Valona, melancólica.
— Noventa e cinco por cento do universo é hidrogênio e a maior
parte do resto é hélio. Até o espaço.
— Uma vez me falaram — disse Valona — que o espaço era um
vácuo. Falaram que isso significava que não tinha nada lá. Está
errado?
— Não exatamente. Não existe quase nada lá. Mas, veja bem,
eu era espaçoanalista, o que quer dizer que eu viajava pelo espaço
coletando e analisando quantias extremamente pequenas de
elementos lá. Ou seja, eu concluía quanto era hidrogênio, quanto
era hélio e quanto eram outros elementos.
— Por quê?
— Bem, é complicado. Sabe, a organização dos elementos não
é a mesma em todos os lugares do espaço. Em algumas regiões
existe um pouco mais de hélio do que o normal; em outras, mais
sódio do que o normal, e assim por diante. Essas regiões de
composição analítica especial serpenteiam pelo espaço como
correntes. É assim que são chamadas. As correntes do espaço. É
importante saber como essas correntes estão organizadas, porque
poderiam explicar como o universo foi criado e como se
desenvolveu.
— Por que elas explicariam isso?
Rik hesitou.
— Ninguém sabe com certeza.
Ele se apressou em continuar, constrangido com a ideia de que
essa imensa bagagem de conhecimento em que sua mente por
sorte estava mergulhando pudesse facilmente chegar ao ponto
marcado como “desconhecido” com as interrogações de… de… De
súbito ocorreu-lhe que Valona não passava de uma camponesa
floriniana, afinal.
— Depois descobrimos a densidade, sabe, a espessura desse
gás em todas as regiões da Galáxia — falou ele. — É diferente em
diferentes lugares, e temos que saber exatamente qual é para que
as naves calculem com precisão como fazer Saltos pelo
hiperespaço. É como… — Sua voz sumiu.
Valona ficou tensa e esperou desconfortavelmente que ele
continuasse, mas houve apenas silêncio. Sua voz ressoou
roucamente na completa escuridão.
— Rik? Qual o problema, Rik?
Silêncio ainda. As mãos dela apalparam os ombros dele,
chacoalhando-o.
— Rik! Rik!
E foi, de algum modo, a voz do velho Rik que respondeu. Era
uma voz fraca, assustada; sua alegria e confiança haviam sido
perdidas.
— Lona. Nós fizemos uma coisa errada.
— Qual é o problema? O que fizemos de errado?
A lembrança da cena na qual o patrulheiro atirara no padeiro
estava em sua mente, estampada com intensidade e clareza, como
que evocada por sua exata lembrança de tantas outras coisas.
— Não devíamos ter fugido — respondeu dele. — Não devíamos
estar aqui nesta nave.
Rik tremia incontrolavelmente, e Valona enxugava inutilmente a
umidade da testa dele com a mão.
— Por quê? — perguntou ela. — Por quê?
— Porque nós devíamos saber que, se o padeiro estava disposto
a nos levar para fora durante o dia, ele não esperava ter nenhum
problema com os patrulheiros. Você se lembra do patrulheiro?
Daquele que atirou no padeiro?
— Lembro.
— Lembra o rosto dele?
— Não me atrevi a olhar.
— Eu olhei, e tinha algo estranho, mas não pensei. Não pensei.
Lona, não era um patrulheiro. Era o citadino, Lona. Era o citadino
vestido de patrulheiro.
A LADY

Samia de Fife tinha exatamente um metro e cinquenta e dois


centímetros de altura, e todos os seus cento e cinquenta e dois
centímetros estavam em estado de trêmula exasperação. Ela
pesava mais ou menos duzentos e sessenta e três gramas por
centímetro no momento, e cada um de seus quarenta quilos
representava quarenta mil gramas de pura raiva.
Ela atravessou rapidamente o cômodo de ponta a ponta, o
cabelo escuro amontoado em grandes volumes, seus saltos-agulha
emprestando-lhe uma falsa altura e seu queixo fino, com a covinha
pronunciada, trêmulo.
— Ah, não — disse ela. — Ele não faria isso comigo. Ele não
poderia fazer isso comigo. Capitão!
Sua voz era aguda e carregava o peso da autoridade. O capitão
Racety fez uma mesura em vista daquela tormenta.
— Milady?
Para qualquer floriniano, claro, o capitão Racety seria um
“nobre”. Simplesmente isso. Para qualquer floriniano, todos os
sarkitas eram nobres. Mas, para os sarkitas, havia nobres e nobres
de verdade. O capitão era apenas um nobre. Samia de Fife era uma
nobre de verdade, ou o equivalente feminino, o que dava na mesma.
— Milady? — falou ele.
— Não aceito que me deem ordens — começou ela. — Sou
maior de idade. Sou senhora de mim mesma. Eu escolho ficar aqui.
— Por favor, entenda, milady, que nenhuma ordem partiu de mim
— explicou o capitão, cautelosamente. — Não me pediram
conselho. Me disseram de forma clara e categórica o que eu devia
fazer.
Ele procurou sem entusiasmo a cópia de suas ordens. Já tentara
lhe apresentar a evidência duas vezes, mas ela se recusara a levá-
la em consideração — como se, não olhando, pudesse continuar,
com a consciência limpa, a negar qual era o dever dele.
— Não estou interessada nas suas ordens — repetiu ela mais
uma vez, exatamente como antes.
Ela virou as costas com um tinido dos saltos e afastou-se dele,
apressada.
Ele a seguiu e falou, em um tom suave:
— As ordens incluem instruções no sentido de que, se a
senhorita não quiser vir, devo, se me permite dizer, carregá-la para
dentro da nave.
Ela se virou.
— Você não se atreveria a fazer uma coisa dessas.
— Quando penso — retorquiu o capitão — em quem foi que deu
essas ordens, eu me atreveria a qualquer coisa.
Ela tentou persuadi-lo falando manso.
— Não deve existir nenhum perigo real, capitão. Isso é ridículo,
uma completa loucura. A Cidade é pacífica. A única coisa que
aconteceu foi que nocautearam um patrulheiro ontem à tarde na
biblioteca. Verdade!
— Outro patrulheiro foi morto hoje ao amanhecer, outra vez em
um ataque floriniano.
Isso a abalou, mas sua pele morena tornou-se sombria e seus
olhos pretos faiscaram.
— O que isso tem a ver comigo? Não sou patrulheira.
— Milady, a nave está sendo preparada neste exato momento.
Ela partirá em breve. A senhorita terá que estar nela.
— E o meu trabalho? A minha pesquisa? Você percebe… não,
você não percebe.
O capitão não disse nada. Ela virara as costas para ele. Seu
vestido brilhante de kyrt em tom cobre com fios de prata pálida
realçavam a extraordinária maciez cálida de seus ombros e da parte
superior dos braços. O capitão Racety olhou para ela com algo mais
que a simples cortesia e humilde objetividade que um mero sarkita
devia a uma grande lady. Ele se perguntava por que uma mulher tão
delicada e desejável escolheria passar o tempo imitando as
atividades acadêmicas de um professor universitário.
Samia sabia muito bem que sua erudição fervorosa a tornava
objeto de uma discreta chacota para pessoas acostumadas a
pensar nas senhoras aristocráticas de Sark como totalmente
dedicadas ao brilho da alta sociedade e, por fim, atuando como
incubadoras de pelo menos, mas não mais que dois futuros nobres
de Sark. Ela não se importava.
····
Vinham falar com ela e perguntavam: “Você vai mesmo escrever um
livro, Samia?”, e pediam para ver, e riam.
Quem fazia isso eram as mulheres. Os homens eram ainda
piores, com sua educada condescendência e óbvia convicção de
que bastaria um olhar deles ou o braço de um homem ao redor de
sua cintura para curá-la dessa bobagem e voltar sua mente para
coisas verdadeiramente importantes.
Começara quase desde quando ela podia se lembrar, porque
sempre adorara o kyrt, enquanto a maior parte das pessoas o
menosprezava. Kyrt! O rei, o imperador, o deus dos tecidos. Não
havia metáfora forte o suficiente.
Quimicamente, não passava de uma variedade de celulose.
Assim juravam os químicos. No entanto, com todos os seus
instrumentos e teorias, ainda não haviam explicado por que em
Florina, e de toda a Galáxia apenas em Florina, a celulose se
transformava em kyrt. Era uma questão do estado físico, diziam.
Contudo, se lhes perguntassem exatamente de que maneira o
estado físico variava em relação ao da celulose comum, ficavam
mudos.
Ela descobrira a ignorância pela primeira vez com sua babá.
— Por que ele brilha, Babá?
— Porque é kyrt, Miakins.
— Por que as outras coisas não brilham igual, Babá?
— As outras coisas não são kyrt, Miakins.
Ali estava. Uma monografia em dois volumes sobre o assunto
fora escrita apenas três anos antes. Ela a lera com atenção e tudo
poderia ser reduzido à explicação de sua babá. O kyrt era kyrt
porque era kyrt. As coisas que não eram kyrt não eram kyrt porque
não eram kyrt.
Era evidente que o kyrt não brilhava por conta própria, mas,
quando adequadamente urdido, apresentava uma cintilação
metálica à luz do sol em uma variedade de cores ou de todas as
cores de uma vez. Outra forma de tratamento podia dar um brilho de
diamante ao fio. Com pouco esforço, podia se tornar completamente
resistente ao calor de até seiscentos graus Celsius e neutro a quase
todos os elementos químicos. Suas fibras podiam ser urdidas com
espessura mais fina do que os tecidos sintéticos mais delicados, e
essas mesmas fibras tinham uma força tênsil que nenhuma liga de
aço conhecida conseguia reproduzir.
Ele tinha mais usos, mais versatilidade do que qualquer
substância conhecida pelo homem. Se não fosse tão caro, poderia
ser usado para substituir o vidro, o metal ou o plástico em qualquer
uma entre infinitas aplicações industriais. Do modo como eram as
coisas, ele era o único material usado para fabricar miras em
equipamentos óticos, como molde na fundição dos hidrocronos
utilizados em motores hiperatômicos e como tela leve e de longa
duração quando o metal era muito quebradiço, ou muito pesado, ou
ambos.
Mas esse era, como já foi dito, um uso em pequena escala, uma
vez que o uso em quantidade era proibitivo. Na verdade, a colheita
do kyrt de Florina ia para a manufatura de tecido, que era usado
para a produção das roupas mais fabulosas da história da Galáxia.
Florina vestia a aristocracia de um milhão de planetas, e a colheita
de kyrt de um único planeta, Florina, tinha de ser distribuída por
rateio em razão disso. Vinte mulheres em um planeta podiam ter
uma vestimenta de kyrt, e outras duas mil podiam ter um casaco
casual, ou talvez luvas, desse material. Enquanto isso, vinte milhões
observavam a distância, desejando a mesma coisa.
O milhão de mundos da Galáxia tinha uma gíria em comum para
os esnobes. Tratava-se da única expressão da língua que era
entendida com facilidade e exatidão em toda parte. Dizia o seguinte:
“Parece que ela assoou o nariz em kyrt!”.
Quando Samia era maior, foi até o pai.
— O que é kyrt, papai?
— É o seu pão com manteiga, Mia.
— Meu?
— Não só seu, Mia. É o pão com manteiga de Sark.
Claro! Ela descobriu o motivo disso com bastante facilidade. Não
havia nenhum planeta na Galáxia que não tivesse tentado cultivar
kyrt em seu solo. De início, Sark aplicara pena de morte para
qualquer um, nativo ou estrangeiro, que fosse pego
contrabandeando semente de kyrt para fora do planeta. Isso não
evitou que o contrabando fosse realizado e, à medida que se
passaram os séculos e a verdade veio à tona para Sark, a lei foi
abolida. Homens de qualquer parte eram bem-vindos para comprar
sementes de kyrt — evidentemente, peso a peso — no mesmo
preço do tecido de kyrt finalizado.
Eram livres para levá-las porque se descobriu que o kyrt
cultivado em qualquer outro lugar da Galáxia que não fosse Florina
era apenas celulose. Branca, lisa, fraca e inútil. Não servia nem
mesmo como um algodão decente.
Seria algo no solo? Algo nas características da radiação do sol
floriniano? Algo na composição bacteriana da vida de Florina?
Haviam tentado tudo. Haviam levado amostras do solo floriniano.
Haviam construído arcos de luz artificial que reproduziam o espectro
conhecido do sol de Florina. Haviam infectado solo estrangeiro com
as bactérias florinianas. E o kyrt sempre crescia branco, liso, fraco e
inútil.
Havia tanto a dizer sobre o kyrt que nunca fora dito; materiais
diferentes daqueles dos relatórios técnicos, de artigos de pesquisa
ou mesmo de livros de viagem. Fazia cinco anos que Samia vinha
sonhando em escrever um livro de verdade sobre a história do kyrt,
a terra onde ele crescia e as pessoas que o cultivavam.
Era um sonho cercado de risadas zombeteiras, mas ela se
agarrou a ele. Hesitara em viajar para Florina. Ia passar uma
estação nos campos e alguns meses nas fábricas. Ia…
Mas que importava o que ela ia fazer? Recebera ordens para
voltar.
Com a súbita impulsividade que marcava cada um de seus atos,
tomou sua decisão. Seria capaz de enfrentar isso em Sark.
Sombriamente, prometeu a si mesma que estaria de volta a Florina
em uma semana.
Voltou-se para o capitão e disse com frieza:
— Quando partimos, senhor?
····
Samia permaneceu na escotilha de observação enquanto Florina
era um globo visível. Era um mundo verde, primaveril, com um clima
muito mais agradável do que Sark. Ela esperava estudar os nativos.
Não gostava dos florinianos que estavam em Sark, homens
insípidos que não ousavam olhar para ela, e sim viravam as costas
quando passava, de acordo com a lei. Em seu próprio planeta,
contudo, os nativos, segundo relatos unânimes, eram felizes e
despreocupados. Irresponsáveis, claro, e parecidos com crianças,
mas tinham charme.
O capitão Racety interrompeu seus pensamentos.
— Milady, poderia se recolher ao seu aposento? — pediu ele.
Ela levantou a cabeça, e uma minúscula ruga se formou entre os
olhos.
— Que ordens novas o senhor recebeu, capitão? Eu sou
prisioneira?
— Claro que não. Apenas uma precaução. O campo espacial
estava estranhamente vazio antes da decolagem. Parece que
aconteceu outro assassinato, de novo cometido por um floriniano, e
o contingente de patrulheiros do campo se juntou ao resto em uma
perseguição pela Cidade.
— E qual a ligação desse fato comigo?
— É só que, nessas circunstâncias, às quais eu deveria ter
reagido estabelecendo minha própria guarda (não minimizo a minha
própria falha), pessoas não autorizadas podem ter embarcado nesta
nave.
— Por que motivo?
— Eu não saberia dizer, mas dificilmente para a nossa
satisfação.
— O senhor está exagerando, capitão.
— Receio que não, milady. Nossos ergonomedidores eram
inúteis dentro da distância planetária do sol de Florina, claro, mas
não é esse o caso agora, e receio que haja excesso de radiação
térmica nos Estoques de Emergência.
— Está falando sério?
O rosto magro e inexpressivo do capitão a fitaram
desinteressadamente por um momento.
— A radiação é equivalente àquela que seria emanada por duas
pessoas comuns — falou ele.
— Ou uma unidade de aquecimento que alguém se esqueceu de
desligar.
— Nosso suprimento de energia não está sendo drenado,
milady. Estamos prontos para investigar, milady, e pedimos apenas
que se recolha aos seus aposentos.
Ela aquiesceu silenciosamente e saiu da sala. Dois minutos
depois, a calma voz dele falou sem pressa pelo comunitubo.
— Entrem nos Estoques de Emergência.
····
Myrlyn Terens, se houvesse relaxado os nervos tensos o mínimo
que fosse, poderia facilmente, até felizmente, ter ficado histérico.
Demorara um pouco demais para voltar à padaria. Eles já haviam
saído dali e só por sorte os encontrara na rua. Sua ação seguinte
fora determinada; não fora, de modo algum, uma questão de livre
escolha, e o padeiro jazia horrivelmente morto à sua frente.
Depois, com a multidão agitada, Rik e Valona fundindo-se nela, e
os carros aéreos dos patrulheiros, os patrulheiros de verdade,
começando a aparecer como abutres, o que ele podia fazer?
Lutou contra seu primeiro impulso de correr atrás de Rik. Jamais
os encontraria, e havia uma probabilidade muito alta de que ele
próprio não passasse despercebido pelos patrulheiros. Correu para
outro lado, em direção à padaria.
Sua única chance estava na própria organização dos
patrulheiros. Tinha havido gerações de uma vida tranquila. Fazia
pelo menos dois séculos que não se falava em revoltas florinianas.
A instituição do citadino (ele deu um sorriso feroz ao pensar nisso)
fizera maravilhas, e os patrulheiros tinham apenas deveres
superficiais de polícia desde então. Faltava-lhes o trabalho em
equipe afiado que teria se desenvolvido em condições mais árduas.
Fora fácil para ele entrar em um posto de patrulheiros, para onde
sua descrição já devia ter sido enviada, embora provavelmente não
houvesse sido olhada com muita atenção. O patrulheiro solitário em
serviço era uma mescla de indiferença e mau humor. Pedira a
Terens que dissesse o que queria — mas o que queria incluía o uso
de uma grossa barra de madeira plástica que arrancara da lateral de
uma cabana desgrenhada nas cercanias da cidade.
Terens golpeou com a barra o crânio do patrulheiro, depois
trocou de roupa e de armas. Sua lista de crimes já estava tão
formidável que não o incomodou nem um pouco saber que não
atordoara o patrulheiro, e sim o matara.
No entanto, continuava foragido, e a máquina enferrujada da
justiça dos patrulheiros até agora rangera atrás dele em vão.
Ele estava na padaria. O ajudante idoso do padeiro, de pé à
porta em um esforço inútil de descobrir alguma coisa sobre o
tumulto, soltou um gritinho fraco ao ver o pavoroso tom preto e
prateado que identificava os patrulheiros e esgueirou-se para dentro
do estabelecimento.
O citadino lançou-se sobre ele, amarrotando e virando o
colarinho solto e enfarinhado do homem com seu punho roliço.
— Para onde o padeiro ia?
O homem abriu a boca, mas não pronunciou nenhum som.
— Matei um homem dois minutos atrás — disse o citadino. —
Não me importo de matar mais um.
— Por favor. Por favor. Não sei, senhor.
— Você vai morrer por não saber.
— Mas ele não me contou. Ele fez algum tipo de reserva.
— Ah, você acabou escutando isso, não foi? O que mais ouviu?
— Ele mencionou Wotex uma vez. Acho que as reservas eram
para uma espaçonave.
Terens largou o homem.
Ele teria de esperar. Teria de deixar o pior da agitação lá fora se
acalmar. Teria de correr o risco de os patrulheiros de verdade
chegarem à padaria.
Mas não por muito tempo. Podia imaginar o que seus antigos
companheiros fariam. Rik era imprevisível, claro, mas Valona era
uma moça inteligente. Considerando o modo como correram,
deviam ter pensado que ele era um patrulheiro de fato, e Valona
com certeza concluiria que a única chance de ficarem em segurança
seria continuar o voo a que o padeiro dera início para eles.
O padeiro fizera reservas para eles. Uma espaçonave estaria
esperando. Eles estariam lá.
E ele teria de chegar antes.
Havia esse detalhe sobre o desespero da situação. Nada mais
importava. Se perdesse Rik, se perdesse aquela arma potencial
contra os tiranos de Sark, sua vida seria somente uma pequena
perda a mais.
Por isso, partiu sem receio — embora fosse dia, embora os
patrulheiros devessem saber, a essa altura, que era um homem com
uniforme de patrulheiro que procuravam e embora houvesse dois
carros aéreos bem à vista.
····
Terens conhecia o espaçoporto em questão. Havia somente um
desse tipo no planeta. Na Cidade Alta, havia uma dúzia de
pequeninos espaçoportos para uso particular de iates espaciais,
além de centenas por todo o planeta para uso exclusivo dos
deselegantes cargueiros que transportavam gigantescos rolos de
tecido de kyrt para Sark e traziam maquinário e bens de consumo
simples de volta. Mas, entre todos esses, havia apenas um
espaçoporto para uso de viajantes comuns, para os sarkitas mais
pobres, para os funcionários públicos florinianos e para os poucos
estrangeiros que conseguiam obter permissão para visitar Florina.
O floriniano no portão de entrada do porto observou a
aproximação de Terens com todos os sintomas de vivo interesse. O
vazio que o cercava se tornara insuportável.
— Saudações, senhor — falou ele. Havia um tom
dissimuladamente ávido em sua voz. Afinal, patrulheiros estavam
sendo assassinados. — Uma agitação considerável na Cidade, não
é?
Terens não mordeu a isca. Ele baixara o visor arqueado do
capacete e fechara até o último botão da túnica.
— Entraram recentemente no porto duas pessoas, um homem e
uma mulher, a caminho de Wotex? — perguntou asperamente.
O porteiro pareceu perplexo. Por um instante, engoliu em seco;
então, em um tom consideravelmente desanimado, respondeu:
— Sim, oficial. Mais ou menos meia hora atrás. Talvez menos. —
Ele enrubesceu de repente. — Existe alguma ligação entre eles e…
Oficial, estava tudo em ordem com as reservas deles. Eu não
deixaria estrangeiros passarem sem a devida autorização.
Terens ignorou essa parte. Devida autorização! O padeiro
conseguira arranjar isso no decorrer de uma noite. Pela Galáxia,
pensava ele, até que ponto a organização de espionagem
trantoriana se infiltrou na administração sarkita?
— Que nomes eles deram?
— Gareth e Hansa Barne.
— A nave deles já saiu? Rápido!
— N-não, senhor.
— Em que ancoradouro?
— Dezessete.
Terens obrigou-se a não correr, mas seus passos ficaram pouco
aquém disso. Se houvesse um patrulheiro de verdade à vista,
aquela apressada meia corrida teria sido sua última caminhada em
liberdade.
Um espaçonauta com uniforme de oficial estava à entrada da
principal câmara de descompressão da nave.
Terens estava um pouco ofegante.
— Gareth e Hansa Barne já embarcaram na nave? — perguntou.
— Não, não embarcaram, não — respondeu o espaçonauta,
fleumaticamente. Era sarkita e, para ele, um patrulheiro era apenas
outro homem de uniforme. — Você trouxe uma mensagem deles?
— Eles não embarcaram! — exclamou Terens, com uma
paciência impressionante.
— Foi o que eu disse. E não vamos esperar por eles. Partimos
no horário, com ou sem eles.
Terens afastou-se.
Estava na cabine do porteiro de novo.
— Eles saíram?
— Saíram? Quem, senhor?
— Os Barnes. Aqueles que iam para Wotex. Não estão a bordo
da nave. Eles foram embora?
— Não, senhor. Não que eu saiba.
— E os outros portões?
— Não são saídas, senhor. Esta é a única saída.
— Verifique as outras, seu idiota miserável.
O porteiro pegou o comunitubo em estado de pânico. Nenhum
patrulheiro jamais lhe falara com tanta raiva, e ele temia os
resultados. Dois minutos depois, desligou o aparelho.
— Ninguém saiu, senhor — disse ele.
Terens fitou-o. Sob o quepe preto, o cabelo claro do porteiro
colara no couro cabeludo por causa da umidade, e em cada
bochecha havia uma marca brilhante de transpiração.
— Alguma nave saiu do porto desde que eles entraram? —
perguntou ele.
O porteiro consultou o horário.
— Uma — respondeu —, o cruzeiro espacial Endeavour.
Ele continuou de forma eloquente, ávido por cair nas graças do
patrulheiro irritado oferecendo informações.
— O Endeavour está fazendo uma viagem especial a Sark para
levar lady Samia de Fife de Florina para lá.
Ele não se deu ao trabalho de descrever com exatidão com que
refinado modo de escuta conseguira tomar conhecimento do
“relatório confidencial”.
Mas, para Terens, agora nada importava.
Ele se afastou devagar. Seria preciso eliminar o impossível e o
que quer que restasse, por mais improvável que fosse, era a
verdade. Rik e Valona haviam entrado no espaçoporto. Não haviam
sido capturados, ou o porteiro com certeza saberia. Não estavam
simplesmente perambulando pelo porto, do contrário a essa altura
teriam sido capturados. Não estavam na nave para a qual tinham
passagens. Não haviam saído do local. O único objeto que partira
do local fora o Endeavour. Portanto, era nele, possivelmente como
cativos, possivelmente como passageiros clandestinos, que
estavam Rik e Valona.
E as duas coisas eram equivalentes. Se fossem passageiros
clandestinos, logo se tornariam cativos. Só uma camponesa
floriniana e uma criatura meio devastada não perceberiam que é
impossível viajar clandestinamente em uma nave moderna.
E, de todas as espaçonaves que havia para escolher, eles
escolheram aquela que levava a filha do nobre de Fife.
O nobre de Fife!
O NOBRE

O nobre de Fife era o indivíduo mais importante de Sark e, por esse


motivo, não gostava de ser visto de pé. Como a filha, ele era baixo,
mas, diferentemente dela, não tinha proporções perfeitas, já que
boa parte de sua baixa estatura se concentrava nas pernas. Seu
torso era até musculoso e a cabeça sem dúvida era majestosa, mas
o corpo estava fixado sobre pernas atarracadas, que eram
obrigadas a bambolear pesadamente para carregar o peso.
Então ele se sentou atrás de uma mesa e, a não ser pela filha,
pelos empregados pessoais e, quando viva, pela esposa, ninguém o
via em outra posição.
Lá parecia o homem que era. A cabeça grande, com boca
ampla, quase sem lábios, nariz largo de narinas grandes e queixo
pontudo com covinha, podia parecer benévola e inflexível ao mesmo
tempo com igual facilidade. O cabelo, rigidamente penteado para
trás e em negligente descaso com a moda, chegando quase à altura
dos ombros, era preto-azulado, sem nenhum fio grisalho. Um vago
tom azul marcava a região das bochechas, dos lábios e do queixo,
onde seu barbeiro floriniano combatia o obstinado crescimento de
pelo facial duas vezes ao dia.
O nobre estava representando e sabia disso. Ele se disciplinara
a manter o rosto inexpressivo e permitia que as mãos, grandes,
fortes e de dedos pequenos, permanecessem frouxamente
entrelaçadas sobre uma mesa cuja superfície lisa e polida estava
completamente vazia. Não havia um papel sequer sobre ela,
nenhum comunitubo, nenhum adorno. Sua própria simplicidade
enfatizava a presença do nobre.
— Presumo que todos tenham aceitado — disse ele a seu
secretário pálido, branco como um peixe, no tom sem vida especial
que reservava para os aparelhos mecânicos e para os funcionários
florinianos.
Ele não tinha nenhuma dúvida real quanto à resposta.
— O nobre de Bort afirmou que a urgência de acordos
comerciais anteriores o impediu de chegar antes de três horas —
respondeu o secretário, em um tom igualmente sem vida.
— E você disse a ele?
— Eu mencionei que a natureza da negociação atual tornava
qualquer atraso desaconselhável.
— E o resultado?
— Ele virá, senhor. Os demais concordaram sem hesitar.
Fife sorriu. Meia hora a menos ou a mais não faria diferença.
Havia um novo princípio envolvido, isso era tudo. Os grandes
nobres eram melindrosos demais no que se referia à própria
independência, e esse melindre teria de ser deixado de lado.
Ele estava esperando agora. A sala era ampla, os lugares para
os outros estavam preparados. O grande cronômetro, cuja
minúscula faísca de energia radioativa não cessara nem falhara em
mil anos, marcava 2h21.
Que turbulência nos últimos dois dias! O velho cronômetro ainda
poderia testemunhar eventos iguais a quaisquer outros do passado.
Contudo, aquele cronômetro vira muitos no decorrer dos seus mil
anos. Quando marcou seus primeiros minutos, Sark era um mundo
novo de cidades escavadas com contatos duvidosos entre os outros
mundos mais antigos. O instrumento estava na parede de um velho
prédio de tijolos naquela época, tijolos que já haviam virado pó.
Marcara seu ritmo tranquilo ao longo de três “impérios” sarkitas de
curta duração quando os indisciplinados soldados de Sark
conseguiram governar, durante um intervalo mais longo ou mais
curto, uma meia dúzia de planetas circunvizinhos. Seus átomos
radioativos haviam explodido em uma rigorosa sequência estatística
no decorrer de dois períodos em que frotas de planetas vizinhos
ditavam a política em Sark.
Quinhentos anos antes, marcara o tempo indiferente em que
Sark descobriu que o planeta mais próximo, Florina, tinha no solo
um tesouro inimaginável. Passara calmamente por duas guerras
vitoriosas e marcara solenemente o estabelecimento da paz de um
conquistador. Sark abandonara seu império, tomara conta de Florina
por completo e tornara-se poderoso de um modo que nem Trantor
podia fazer igual.
Trantor queria Florina, assim como outras potências a tinham
cobiçado. Os séculos marcavam Florina como um planeta disputado
por mãos que se estendiam pelo espaço, apalpando e tentando
alcançá-la com avidez. Mas foi a mão de Sark que agarrou aquele
mundo, e era mais fácil Sark entrar em uma guerra galáctica do que
abrir essa mão.
Trantor sabia disso! Trantor sabia disso!
Era como se o ritmo silencioso do cronômetro desencadeasse a
pequena cantilena no cérebro do nobre.
Eram 2h23.
····
Quase um ano antes, os cinco grandes nobres de Sark haviam se
reunido. Naquele momento, como agora, a reunião fora ali, em seu
próprio salão. Naquele momento, como agora, os nobres,
espalhados pela superfície do planeta, cada um em seu próprio
continente, haviam se reunido por meio de personificação
tridimensional.
Em um sentido simples, equivalia a uma televisão tridimensional
em tamanho real com som e cor. A mesma estrutura podia ser
encontrada em qualquer residência particular moderadamente
abastada em Sark. O que tinha além do comum era a falta de
qualquer receptor visível. A não ser por Fife, os nobres presentes
estavam presentes de todas as formas possíveis, menos na
realidade. Não dava para ver a parede atrás deles; não
bruxuleavam, mas uma mão poderia passar por seus corpos.
O verdadeiro corpo do nobre de Rune estava nos antípodas; seu
continente era o único onde no momento predominava a noite. A
área cúbica imediatamente ao redor de sua imagem no escritório de
Fife tinha o brilho frio e branco da luz artificial, que era ofuscado
pelo brilho ainda maior da luz do dia.
Reunidos em uma sala, em corpo e em imagem, estava o próprio
planeta Sark. Era uma personificação estranha e não de todo
heroica daquele mundo. Rune era calvo, rosado e gordo, enquanto
Balle era cinzento, ressequido e enrugado. Steen, empoado e
vermelho, exibia o sorriso desesperado de um homem extenuado
fingindo ter uma força vital que já não tinha, e Bort levava a
indiferença pelos bons hábitos de higiene ao desagradável ponto de
apresentar unhas sujas e barba há dois dias por fazer.
Entretanto, eles eram os cinco grandes nobres.
Eram o mais alto de três degraus de governo em Sark. O degrau
mais baixo era, claro, o Serviço Público Floriniano, que permaneceu
estável ao longo de todas as vicissitudes que marcaram a ascensão
e a queda de casas nobres individuais de Sark. Eram eles que
realmente engraxavam os eixos e giravam as rodas do governo.
Acima deles estavam os ministros e os chefes de departamento
designados pelo chefe de Estado hereditário (e inofensivo). Os
nomes deles e o do próprio chefe eram necessários em documentos
de Estado para torná-los juridicamente vinculativos, mas sua única
tarefa consistia em fazer assinaturas.
O degrau mais alto era ocupado por esses cinco, a cada um dos
quais fora tacitamente concedido um continente pelos outros quatro.
Eles eram os chefes das famílias que controlavam grande parte do
comércio de kyrt e os faturamentos que dele provinham. Era o
dinheiro que dava poder e, por fim, ditava a política em Sark, e eles
tinham dinheiro. E, dos cinco, era Fife quem tinha mais.
O nobre de Fife ficara frente a frente com eles aquele dia, quase
um ano antes, e dissera aos outros senhores do segundo planeta
individualmente mais rico da Galáxia (depois de Trantor, que, afinal
de contas, tinha meio milhão de planetas dos quais tirar proveito em
vez de dois):
— Recebi uma mensagem curiosa.
Eles não falaram nada. Esperaram.
Fife entregou uma tira de filme metálico ao seu secretário, que
passou de uma figura sentada para a outra, segurando-a bem alto
para que cada um visse, demorando-se apenas por tempo suficiente
para cada um ler.
Para cada um dos quatro que participava da reunião no escritório
de Fife, ele próprio era real e os outros, inclusive Fife, eram somente
sombras. O filme metálico também era uma sombra. Eles só podiam
recostar-se e observar os raios claros que se concentravam através
de vastos setores do planeta, partindo do continente de Fife até os
de Balle, Bort, Steen e a ilha continente de Rune. As palavras que
liam eram sombra sobre sombra.
Apenas Bort, direto e não dado a sutilezas, esqueceu-se do fato
e estendeu o braço para pegar a mensagem.
Sua mão estendeu-se até a beirada do receptor de imagem
retangular e foi cortada. O braço terminava em um cotoco amorfo.
Em seu próprio escritório, Fife sabia, o máximo que o braço de Bort
conseguira foi aproximar-se do nada e atravessar o filme com a
mensagem. Ele sorriu, assim como os outros. Steen deu uma
risadinha.
Bort enrubesceu. Recolheu o braço e sua mão reapareceu.
— Bem, cada um de vocês viu a mensagem — disse ele. — Se
não se importarem, vou ler agora em voz alta para que possam
considerar sua significância.
Ele estendeu o braço para cima e o secretário, apressando os
passos, conseguiu segurar o filme na posição certa para que a mão
de Fife se fechasse sobre ele sem ficar procurando nem por um
instante.
Fife leu de modo melodioso, imprimindo drama às palavras como
se a mensagem fosse sua e gostasse de transmiti-la.
— A mensagem é esta: “O senhor é um grande nobre de Sark e
não existe ninguém que possa competir com o senhor em poder e
riqueza. Porém, esse poder e essa riqueza se apoiam em um
alicerce frágil. O senhor pode pensar que um suprimento planetário
de kyrt, tal como existe em Florina, não é de forma alguma um
alicerce frágil, mas pergunte a si mesmo por quanto tempo Florina
vai existir. Para sempre?
“Não! Florina pode ser destruída amanhã. Pode existir por mil
anos. Dos dois, é mais provável que seja destruída amanhã. Não
por mim, claro, mas de uma maneira que o senhor não pode prever
ou pressentir. Pense nessa destruição. Pense também que o seu
poder e a sua riqueza já se foram, pois eu exijo a maior parte deles.
O senhor terá tempo para pensar, mas não muito.
“Se demorar muito, vou anunciar para a Galáxia inteira, e em
particular para Florina, a verdade sobre a destruição que a espera.
Depois disso não haverá mais kyrt, não haverá mais riqueza, não
haverá mais poder. Nada para mim, mas estou acostumado. Nada
para o senhor, e isso seria extremamente grave, já que o senhor
nasceu com uma grande riqueza.
“Entregue a maioria das suas propriedades para mim na quantia
e do modo que vou estipular em um futuro próximo e o senhor
permanecerá de posse do que restar. Não vai sobrar muito pelos
seus padrões atuais, com certeza, mas será mais do que o nada
que lhe restará se não entregar. Tampouco zombe do bocado que
conservará. Florina pode perdurar o tempo da sua vida e o senhor
viverá, se não com luxo, pelo menos com conforto.”
Fife terminara. Virou o filme na mão repetidas vezes, depois
dobrou-o delicadamente e colocou-o em um cilindro translúcido
prateado através do qual as letras estampadas se fundiam em um
borrão avermelhado.
— É uma carta engraçada — comentou ele em sua voz natural.
— Não tem assinatura e o tom da carta, como vocês ouviram, é
afetado e pomposo. O que acham dela, nobres?
O rosto corado de Rune assumira um ar de desaprovação.
— É obviamente o trabalho de um homem à beira da psicopatia
— falou ele. — Escreve como um autor de romance histórico.
Francamente, Fife, não acredito que um lixo desses seja uma
desculpa decente para interromper as nossas tradições de
autonomia continental nos convocando para uma reunião. E não
gosto que tudo isso esteja acontecendo na presença do seu
secretário.
— Do meu secretário? Porque ele é floriniano? Você receia que
a mente dele vá ficar perturbada por causa de uma carta?
Bobagem. — Ele mudou do tom de leve divertimento para as sílabas
invariáveis de comando. — Vire-se para o nobre de Rune.
O secretário virou-se. Seus olhos estavam discretamente
abaixados e seu rosto branco não estava marcado por nenhuma
linha nem maculado por nenhuma expressão. Parecia quase sem
vida.
— Este floriniano — disse Fife, sem se importar com a presença
do homem — é meu empregado pessoal. Ele nunca fica longe de
mim, nunca fica com outros da sua espécie. Mas não é por esse
motivo que ele é absolutamente confiável. Olhem para ele. Vejam os
olhos dele. Não parece óbvio para vocês que está sob o efeito de
uma sonda psíquica? Ele é incapaz de ter um pensamento
minimamente desleal a mim. Sem querer ofender, posso dizer que
confio mais nele do que em qualquer um de vocês.
Bort soltou uma risadinha.
— Não culpo você. Nenhum de nós lhe deve a lealdade de um
empregado floriniano sob o efeito de uma sonda psíquica.
Steen voltou a rir e se contorceu, como se o assento tivesse se
aquecido ligeiramente.
Nenhum deles fez um único comentário sobre o fato de Fife usar
sonda psíquica em seus empregados pessoais. Fife teria ficado
extremamente atônito se algum deles houvesse comentado. O uso
de sonda psíquica por qualquer motivo que não a correção de
transtornos mentais ou eliminação de impulsos criminosos era
proibido. A rigor, era proibido até mesmo para os grandes nobres.
No entanto, Fife a usava sempre que achava necessário,
particularmente quando o alvo era um floriniano. A sondagem
psíquica em um sarkita era uma questão muito mais delicada. O
nobre de Steen, cujos estremecimentos ao ouvir falar da sonda Fife
não deixou de ver, tinha reputação de fazer uso de florinianos que
haviam passado por sondagem psíquica de ambos os sexos para
propósitos muito diferentes do secretariado.
— Pois bem. — Fife juntou os dedos roliços. — Não reuni todos
vocês para a leitura de uma carta excêntrica. Isso espero que esteja
entendido. Na verdade, receio que tenhamos um problema
importante em mãos. Em primeiro lugar, eu me pergunto, por que se
incomodar apenas comigo? De fato, sou o mais rico dos nobres,
mas, sozinho, controlo apenas um terço da comercialização de kyrt.
Juntos, nós cinco controlamos tudo. É fácil fazer cinco celocópias de
uma carta; tão fácil quanto fazer uma.
— Você fala demais — resmungou Bort. — O que você quer?
Os lábios murchos e descorados de Balle se mexeram em meio
a um rosto cinzento e sem graça.
— Ele quer saber, milorde de Bort, se recebemos cópias dessa
carta.
— Então deixe que ele diga isso.
— Achei que estivesse dizendo — retorquiu Fife em tom calmo.
— E então?
Eles se entreolharam, com ar de dúvida ou de desafio, segundo
ditava a personalidade de cada um.
Rune falou primeiro. Sua testa rosada estava marcada por
discretas gotas de transpiração, e ele ergueu um quadrado macio de
tecido de kyrt para absorver a umidade dos sulcos entre as dobras
de gordura que formavam semicírculos de orelha a orelha.
— Não sei dizer, Fife — disse ele. — Posso perguntar aos meus
secretários, que são todos sarkitas, a propósito. Afinal, mesmo que
uma carta dessas houvesse chegado ao meu escritório, teria sido
considerada uma… como é que se diz?… uma carta hostil. Nunca
teria chegado até mim. Isso é certo. Só o seu sistema de
secretariado peculiar que não poupou você desse lixo.
Ele olhou ao redor, com as gengivas brilhando de umidade entre
lábios que cobriam dentes artificiais de aço cromado. Cada dente
individual estava cravado bem fundo, amarrado à mandíbula, e era
mais forte do que qualquer dente de simples esmalte poderia ser.
Balle deu de ombros.
— Imagino que o que Rune acabou de falar é válido para todos
nós.
Steen riu entredentes.
— Eu nunca leio as correspondências. Não leio mesmo. São tão
chatas e chegam tantas que eu não teria nem um pouco de tempo.
— Ele olhou em volta, ansioso, como se fosse realmente preciso
convencer os companheiros desse fato importante.
— Malucos — falou Bort. — O que há de errado com todos
vocês? Estão com medo de Fife? Escute aqui, Fife, eu não tenho
nenhum secretário porque não preciso de ninguém entre mim e os
meus negócios. Recebi uma cópia dessa carta e tenho certeza de
que esses três também receberam. Quer saber o que fiz com a
minha? Joguei no conduto de descarte. Eu aconselharia vocês a
fazerem o mesmo. Vamos parar com isso. Estou cansado.
Ele estendeu a mão em direção ao interruptor que encerraria o
contato e apagaria a imagem da presença de Fife.
— Espere, Bort — a voz de Fife ressoou asperamente. — Não
faça isso. Ainda não terminei. Você não iria querer que nós
tomássemos providências e decisões na sua ausência. Você com
certeza não iria querer isso.
— Vamos nos delongar, nobre Bort — instou Rune em seu tom
mais suave, embora seus olhinhos enterrados em meio à gordura
não estivessem particularmente afáveis. — Eu me pergunto por que
o nobre Fife parece se preocupar tanto por uma insignificância.
— Bem — disse Balle, com a voz seca raspando nos ouvidos
dos demais —, talvez Fife ache que o nosso amigo escritor de
cartas tenha informações sobre um ataque trantoriano contra
Florina.
— Bah — retrucou Fife com desdém. — Como saberia, seja ele
quem for? O nosso serviço secreto é adequado. Eu garanto. E como
ele impediria o ataque se recebesse as nossas propriedades como
propina? Não, não. Ele fala da destruição de Florina como se
quisesse dizer destruição física, não política.
— É absurdo demais — objetou Steen.
— É? — retorquiu Fife. — Então você não entende a importância
dos acontecimentos das duas últimas semanas?
— Quais acontecimentos em particular? — perguntou Bort.
— Parece que um espaçoanalista sumiu. Você deve ter ouvido
falar.
Bort parecia irritado e nem um pouco tranquilizado.
— Abel de Trantor me contou sobre isso. E daí? Não sei nada
sobre espaçoanalistas.
— Pelo menos você leu uma cópia da última mensagem que ele
mandou para a base dele em Sark antes de desaparecer.
— Abel me mostrou. Não prestei atenção.
— E os demais? — Os olhos de Fife desafiaram-nos um a um.
— A sua memória consegue voltar uma semana atrás?
— Eu li — falou Rune. — E também lembro. Claro! Ela também
falava de destruição. É aí que você está tentando chegar?
— Escute aqui — disse Steen em um tom estridente —, a carta
estava cheia de insinuações maldosas que não faziam sentido.
Espero realmente que não nos metamos a discutir isso agora.
Quase não consegui me livrar do Abel e foi logo antes do jantar.
Muito estressante. De verdade.
— Não tem jeito, Steen — retorquiu Fife, com uma impaciência
perceptível. (O que se podia fazer com uma coisa como Steen?) —
Precisamos falar sobre esse assunto de novo. O espaçoanalista
mencionou a destruição de Florina. Coincidindo com o
desaparecimento dele, nós recebemos mensagens também com a
ameaça de destruição de Florina. Será coincidência?
— Está dizendo que o espaçoanalista mandou a mensagem
chantagista? — sussurrou o velho Balle.
— Pouco provável. Por que dizer isso abertamente e, depois, de
forma anônima?
— Quando falou sobre isso a primeira vez — comentou Balle —,
ele estava se comunicando com o escritório distrital, não conosco.
— Mesmo assim. Um chantagista não conversa com ninguém a
não ser sua vítima, se for possível.
— E então?
— Ele desapareceu. Digamos que o espaçoanalista seja
honesto, mas divulgou uma informação perigosa. Ele está agora nas
mãos de outros que não são honestos e que são, de fato, os
chantagistas.
— Que outros?
Fife sentou-se sombriamente de volta na poltrona; os lábios mal
se mexiam.
— Você está falando sério? Trantor.
Steen estremeceu.
— Trantor! — ressoou sua voz aguda.
— Por que não? Haveria maneira melhor de conseguir o controle
de Florina? É um dos objetivos principais da política externa deles.
E, se puderem fazer isso sem guerra, melhor ainda. Olhem aqui, se
nós concordarmos com esse ultimato impossível, Florina é deles. O
que eles nos oferecem é pouco — Fife fez um gesto diante do rosto,
aproximando dois dedos —, mas por quanto tempo vamos
conseguir manter até mesmo esse pouco?
“Por outro lado, suponham que nós ignoremos o assunto (e, na
verdade, não temos escolha). O que Trantor faria nesse caso? Bem,
eles vão espalhar boatos de um fim do mundo iminente entre os
camponeses florinianos. À medida que esses boatos se espalharem,
os camponeses vão entrar em pânico, e qual pode ser a
consequência, a não ser um desastre? Que força pode fazer um
homem trabalhar se ele acha que o fim do mundo vai ser amanhã?
A safra vai apodrecer. Os armazéns vão ficar vazios.”
Steen ergueu um dedo para suavizar a vermelhidão de uma das
bochechas enquanto olhava para um espelho em seus próprios
aposentos, fora do alcance do cubo-receptor.
— Não acredito que isso possa nos prejudicar muito — disse ele.
— Se o suprimento diminuir, o preço não subiria? Então, depois de
algum tempo, todos veriam que Florina ainda está lá, e os
camponeses voltariam ao trabalho. Além do mais, nós sempre
poderíamos ameaçar suprimir as exportações. Não vejo como se
poderia esperar que algum planeta culto vivesse sem kyrt. Ah, o kyrt
é mesmo um rei. Acho que é muita confusão por nada.
Ele adotou uma atitude de tédio, com um dedo delicadamente
pousado sobre a bochecha.
Balle mantivera os velhos olhos fechados ao longo de toda essa
última parte.
— Não pode haver aumento de preço agora — objetou ele. —
Os preços já estão nas alturas.
— Exatamente — concordou Fife. — De qualquer forma, as
coisas não iam chegar a uma interrupção grave. Trantor espera
qualquer sinal de desordem em Florina. Se pudessem apresentar à
Galáxia a perspectiva de um Sark que não fosse capaz de garantir
carregamentos de kyrt, seria a coisa mais natural do universo para
eles se intrometerem para manter o que chamam de ordem e fazer
o kyrt continuar sendo entregue. E o perigo seria que os mundos
livres da Galáxia provavelmente cooperariam com eles por causa do
kyrt, sobretudo se Trantor concordasse em romper o monopólio,
aumentar a produção e baixar os preços. Depois seria outra história,
mas, nesse meio-tempo, eles conseguiriam apoio.
“É a única maneira lógica de Trantor conseguir controlar Florina.
Se fosse apenas força, os planetas livres da Galáxia fora da esfera
de influência trantoriana se juntariam a nós por uma absoluta
questão de autoproteção.”
— Como o espaçoanalista se encaixa nessa história? —
perguntou Rune. — Ele é necessário? Se a sua teoria estiver certa,
ela explicaria a participação do espaçoanalista.
— Acho que sim. A maioria desses espaçoanalistas é
desequilibrada, e esse aí desenvolveu — os dedos de Fife se
moveram, como que construindo uma vaga estrutura — uma teoria
maluca. Não importa qual. Trantor não pode deixar que venha à
tona, ou a Agência de Espaçoanálise a anularia. Mas pegar esse
homem e descobrir os detalhes daria a eles algo que provavelmente
teria uma validade superficial aos olhos de quem não é especialista.
Eles poderiam usar isso, fazer parecer real. A Agência é uma
marionete trantoriana, e suas negações, depois que a história tiver
se espalhado por meio de uma fofoca científica, nunca seriam
convincentes o bastante para superar a mentira.
— Parece complicado demais — opinou Bort. — Loucura. Eles
não podem deixar que venha à tona, mas vão deixar.
— Eles não podem deixar que venha à tona como um anúncio
científico sério ou mesmo que chegue à Agência dessa forma —
explicou Fife, pacientemente. — Eles podem deixar vazar como
boato. Você não entende?
— O que o velho Abel está fazendo, então, desperdiçando o
tempo dele à procura do espaçoanalista?
— Você espera que ele anuncie que está com o espaçoanalista?
O que Abel faz e o que parece estar fazendo são duas coisas
diferentes.
— Bem — disse Rune —, se você estiver certo, o que vamos
fazer?
— Nós descobrimos o perigo, e isso é o que importa —
respondeu Fife. — Vamos achar o espaçoanalista se pudermos.
Precisamos manter todos os agentes conhecidos de Trantor sob
vigilância rigorosa sem interferir em suas atividades. Com base em
suas ações, podemos descobrir o rumo dos próximos
acontecimentos. Precisamos reprimir totalmente qualquer tipo de
publicidade em Florina sobre a destruição do planeta. O primeiro
murmúrio leve tem que ser neutralizado da forma mais violenta.
“Acima de tudo, precisamos permanecer unidos. Esse é o
objetivo desta reunião aos meus olhos: a formação de uma frente
comum. Todos nós sabemos sobre a autonomia continental e tenho
certeza de que ninguém insiste mais nesse ponto do que eu. Isto é,
em circunstâncias comuns. Essas não são circunstâncias comuns.
Vocês entendem isso?”
De modo mais ou menos relutante, pois a autonomia continental
não era algo a ser deixado de lado facilmente, eles entenderam.
— Então — disse Fife — vamos esperar pela segunda jogada.
····
Já fazia um ano desde que a reunião ocorrera. Todos foram embora,
e se seguiu o mais estranho e completo fiasco que jamais recaíra
sobre todas as coisas do nobre de Fife em uma carreira
moderadamente longa e mais do que moderadamente audaciosa.
Não houve nenhuma segunda jogada, não houve outras cartas
para nenhum deles. O espaçoanalista continuou desaparecido,
enquanto Trantor manteve uma busca esporádica. Não houve
nenhum sinal de boatos apocalípticos em Florina, e a colheita e o
processamento do kyrt seguiram seu ritmo tranquilo.
O nobre de Rune começou a ligar para Fife semanalmente.
— Fife? — indagava ele. — Alguma novidade? — Sua gordura
tremia de satisfação e gargalhadas saíam rasgando de sua
garganta.
Fife ouvia fria e impassivelmente. O que ele podia fazer?
Examinava os fatos repetidas vezes. Era inútil. Estava faltando
alguma coisa. Estava faltando algum fator vital.
Então, tudo começou a explodir de uma vez, e ele teve a
resposta. Sabia que tinha a resposta, e era algo pelo qual não
esperara.
Convocou uma reunião outra vez. O cronômetro marcava agora
2h29.
Os outros estavam começando a aparecer. Primeiro Bort, os
lábios apertados e um dedo rugoso com espigas raspando a
superfície da bochecha coberta por uma barba branca e espetada.
Depois Steen, cuja pele do rosto fora recém-lavada para retirar a
maquiagem, com uma aparência pálida e enferma. Balle, indiferente
e cansado, com as bochechas murchas, acomodado na poltrona
bem acolchoada e um copo de leite morno ao lado. Por último Rune,
dois minutos atrasado, rabugento, os lábios úmidos, de novo envolto
pela noite. Desta vez, as luzes estavam fracas a ponto de torná-lo
um vulto obscuro sentado em um cubo de sombra que as luzes de
Fife não poderiam ter iluminado, embora contassem com a potência
do sol de Sark.
— Nobres! — começou Fife. — Ano passado, fiz especulações
sobre um perigo distante e complicado. Com isso, caí em uma
armadilha. O perigo existe, mas não está distante. Está próximo de
nós, muito próximo. Um de vocês já sabe o que quero dizer. Os
demais vão descobrir logo.
— O que você quer dizer? — retrucou Bort, em um tom ríspido.
— Alta traição! — disparou Fife.
O FUGITIVO

Myrlyn Terens não era um homem de ação. Disse isso a si mesmo


como desculpa, já que agora, deixando o espaçoporto, viu sua
mente paralisada.
Teve de escolher o ritmo com cautela. Não lento demais, ou
pareceria estar enrolando. Não rápido demais, ou pareceria estar
correndo. Apenas apressado, como andaria um patrulheiro que
estivesse fazendo seu trabalho e pronto para entrar em seu carro
terrestre.
Se ao menos pudesse entrar em um carro terrestre! Dirigir um
desses infelizmente não fazia parte da educação de um floriniano,
nem mesmo de um citadino floriniano, então tentou pensar enquanto
caminhava, em vão. Precisava de silêncio e tranquilidade.
Sentia-se quase fraco demais para andar. Podia não ser um
homem de ação, mas agira rápido agora durante um dia e uma noite
e parte de outro dia. Isso gastara a reserva de energia de uma vida
inteira.
Todavia, não ousava parar.
Se fosse noite, poderia ter tido algumas horas para pensar. Mas
era começo de tarde.
Se pudesse dirigir um carro terrestre, poderia interpor os
quilômetros entre si e a Cidade. Apenas por tempo suficiente para
pensar um pouco antes de decidir quanto ao próximo passo. Mas só
tinha as pernas.
Se ao menos pudesse pensar. Era isso. Se pudesse pensar. Se
pudesse suspender todo movimento, toda ação. Se pudesse pegar
o universo entre instantes de tempo, ordenar que parasse enquanto
avaliava as coisas. Devia haver alguma maneira.
Entrou na sombra acolhedora da Cidade Baixa. Andava ereto,
como vira os patrulheiros andarem. Segurava a arma de choque
com firmeza. As ruas estavam desertas. Os nativos estavam
amontoados em suas cabanas. Melhor assim.
O citadino escolheu a casa com cuidado. Seria melhor escolher
uma das melhores, uma com partes de briquetes de plástico
colorido e vidro polarizado nas janelas. As classes mais baixas eram
mais insociáveis. Tinham menos a perder. Um “homem de cima” se
esforçaria ao máximo para ajudar.
Caminhou por uma pequena trilha para chegar até uma dessas
casas. Era afastada da rua, outro sinal de opulência. Ele sabia que
não precisaria bater à porta ou arrombá-la. Houvera uma
movimentação perceptível em uma janela enquanto ele subia a
rampa. (Como gerações de necessidade permitiam a um floriniano
sentir o cheiro de um patrulheiro se aproximando!) A porta se abriria.
Ela se abriu.
Uma garota a abriu, com olhos arregalados que formavam dois
círculos brancos. Estava desajeitada em um vestido cujos babados
mostravam um esforço determinado da parte de seus pais em
sustentar um status de algo mais do que o tipo comum do “lixo
floriniano”. Ela ficou de lado para deixá-lo passar, ofegando
boquiaberta.
O citadino fez um gesto para que ela fechasse a porta.
— Onde está o seu pai, garota?
— Papai! — gritou ela, depois arquejou: — Sim, senhor!
O “papai” veio de outro cômodo, com uma postura humilde. Não
era novidade para ele que um patrulheiro estivesse à porta. Era
simplesmente mais seguro deixar que uma adolescente o
recebesse. Se acaso o patrulheiro estivesse irritado, seria menos
provável que ela apanhasse.
— O seu nome? — perguntou o citadino.
— Jacof, se for do seu agrado, senhor.
O uniforme do citadino tinha um caderninho de folhas finas em
um dos bolsos. O citadino o abriu, examinou-o rapidamente, fez
uma nítida marca de verificação e falou:
— Jacof! Isso! Quero ver todos os membros da família. Rápido!
Se houvesse encontrado espaço para qualquer emoção que não
fosse a de opressão irremediável, Terens quase teria se divertido.
Ele não era imune aos prazeres sedutores da autoridade.
Eles se enfileiraram: primeiro uma mulher magra, preocupada,
com uma criança de mais ou menos dois anos contorcendo-se nos
braços; depois a garota que o deixou entrar e um irmão mais novo.
— Estão todos aqui?
— Todos, senhor — respondeu Jacof humildemente.
— Posso ir cuidar da bebê? — pediu a mulher, ansiosa. — É
hora da soneca. Eu estava colocando a neném na cama. — Ela
estendeu a criança como se a imagem da inocência infantil pudesse
derreter o coração de um patrulheiro.
O citadino não olhou para ela. Um patrulheiro, imaginou ele, não
teria olhado, e aquele era um patrulheiro.
— Coloque-a no chão e dê um pirulito para ela ficar quieta —
disse ele. — Agora você, Jacof!
— Sim, senhor!
— Você é um bom garoto, não é? — Um nativo de qualquer
idade era, claro, um “garoto”.
— Sim, senhor. — Os olhos de Jacof brilharam e seus ombros se
ergueram um pouquinho. — Sou funcionário do centro de
processamento de alimentos. Estudei matemática, divisão de
números grandes. Sei calcular logaritmos.
Sabe, pensou o citadino; eles mostraram a você como usar uma
tabela de logaritmos e ensinaram como pronunciar a palavra.
Conhecia o tipo. O homem tinha mais orgulho de seus logaritmos
do que um jovem nobre do seu iate. A polaroide em suas janelas era
consequência dos seus logaritmos, e os briquetes coloridos
anunciavam suas divisões de números grandes. Seu desdém pelo
nativo não instruído era igual ao do nobre comum por todos os
nativos e seu ódio era mais intenso, uma vez que tinha de viver
entre eles e era considerado um deles por seus superiores.
— Você acredita na lei, não acredita, garoto, e nos bons nobres?
— O citadino manteve o impressionante fingimento de estar
consultando o caderno.
— Meu marido é um bom homem — disparou a mulher
loquazmente. — Nunca se meteu em confusão. Ele não se envolve
com lixo. Nem eu. Nem as crianças. Nós sempre…
Terens fez um gesto para ela se calar.
— Sei. Sei. Agora escute, garoto, quero que você se sente bem
aqui e faça o que eu disser. Quero uma lista de todo mundo que
você conhece neste quarteirão. Nomes, endereços, o que eles
fazem e que tipo de garotos são. Especialmente esse último. Se
tiver algum encrenqueiro, eu quero saber. Vamos fazer uma
limpeza. Entendeu?
— Sim, senhor. Sim, senhor. Para começar, tem o Husting. É no
fim da rua. Ele…
— Não desse jeito, garoto. Ei, você, dê um pedaço de papel para
ele. Agora sente-se aí e escreva tudo. Cada parte. Escreva devagar,
porque não consigo ler garranchos nativos.
— Minha mão é treinada para escrever, senhor.
— Vejamos então.
Jacof entregou-se à tarefa, movendo lentamente a mão. A
mulher olhava por cima do ombro dele.
— Vá até a janela e me avise se qualquer outro patrulheiro
estiver vindo nesta direção — Terens disse à garota que abrira a
porta para ele. — Quero falar com eles. Não é para você chamá-los.
É só para me avisar.
Então, enfim pôde relaxar. Criara um nicho momentaneamente
seguro para si mesmo em meio ao perigo.
A não ser pelo barulho do bebê chupando o pirulito, havia um
silêncio razoável. Seria avisado sobre a aproximação do inimigo a
tempo de ter chance de escapar.
Agora podia pensar.
Em primeiro lugar, seu papel como patrulheiro já chegara ao fim.
Sem dúvida havia bloqueios nas estradas em todas as saídas
possíveis da cidade, e sabiam que ele não podia usar nenhum meio
de transporte mais complicado do que uma lambreta diamagnética.
Não demoraria muito para que os patrulheiros sem a prática de
vasculhar percebessem que apenas com um esquadrinhamento
sistemático da cidade, quarteirão a quarteirão e casa a casa, teriam
a garantia de encontrar o homem que procuravam.
Quando enfim chegassem a essa conclusão, decerto poderiam
começar na periferia da cidade e fechar o cerco em direção ao
centro. Se fosse esse o caso, aquela casa estaria entre as primeiras
onde entrariam — ou seja, seu tempo era particularmente limitado.
Até agora, apesar de sua conspicuidade preta e prateada, o
uniforme de patrulheiro fora útil. Os próprios nativos não haviam
questionado a vestimenta. Não haviam parado para ver seu pálido
rosto floriniano, não haviam examinado sua aparência. O uniforme
fora suficiente.
Não tardaria muito para que esse fato se tornasse evidente aos
olhos dos cães de caça em ação. Concluiriam que seria preciso
divulgar a todos os nativos instruções para deter qualquer
patrulheiro incapaz de mostrar a identificação apropriada, em
especial alguém com pele branca e cabelo claro. Identificações
temporárias seriam entregues a todos os patrulheiros legítimos.
Recompensas seriam oferecidas. Talvez apenas um nativo em cem
fosse corajoso o suficiente para derrubar o uniforme, não importava
quão claramente falso fosse o seu ocupante. Um em cem seria o
bastante.
Então ele teria de deixar de ser um patrulheiro.
Essa era uma das coisas. E havia outra: ele não estaria seguro
em nenhum lugar de Florina a partir daquele momento. Matar um
patrulheiro era o maior dos crimes, e em cinquenta anos, se
conseguisse escapar à captura por tanto tempo, a perseguição
continuaria intensa. Então, teria de deixar Florina.
Como?
Bem, ele dava a si mesmo mais um dia de vida. Era uma
estimativa generosa. Pressupunha máxima estupidez por parte dos
patrulheiros e máxima sorte para si próprio.
De certo modo, era uma vantagem. Afinal, vinte e quatro horas
de vida não eram lá grande coisa. Não tendo nada além disso a
perder, podia correr riscos como nenhum homem são ousaria fazer.
Ele se levantou.
Jacof tirou os olhos do papel.
— Não terminei ainda, senhor. Estou escrevendo com muita
atenção.
— Deixe-me ver o que você escreveu.
Ele olhou para o papel que lhe entregaram e disse:
— É suficiente. Se outros patrulheiros vierem, não desperdice o
tempo deles falando que já fez uma lista. Estão com pressa e
podem ter outras tarefas para você. Apenas faça o que pedirem.
Algum deles está vindo para cá agora?
— Não, senhor — respondeu a garota na janela. — Devo ir até a
rua para olhar?
— Não é necessário. Vejamos. Onde fica o elevador mais
próximo?
— Está a quatrocentos metros à esquerda, senhor, daqui de
casa. O senhor pode…
— Sei, sei. Abra a porta.
Um esquadrão de patrulheiros entrou na rua assim que a porta
do elevador se fechou atrás do citadino. Podia sentir o coração
disparado. A busca sistemática provavelmente estava começando, e
eles estavam em seu encalço.
Um minuto mais tarde, com o coração ainda batendo forte, saiu
do elevador e entrou na Cidade Alta. Não haveria nenhum abrigo
aqui. Nenhuma coluna. Nenhum ligacimento escondendo-o do que
estava acima.
Ele se sentia como um pontinho preto se movendo em meio ao
brilho dos edifícios espalhafatosos. Sentia-se visível em um raio de
mais de três quilômetros à sua volta e de oito quilômetros pelo céu.
Parecia haver grandes flechas apontando para ele.
Não havia patrulheiros à vista. Os nobres que passavam o
ignoravam. Se um patrulheiro era objeto de medo para um
floriniano, era um objeto de absolutamente nada para um nobre. Se
algo o salvaria, era isso.
Ele tinha uma vaga noção da geografia da Cidade Alta. Em
algum lugar deste setor estava o parque da cidade. O passo mais
lógico teria sido pedir informações; o próximo passo mais lógico
teria sido entrar em qualquer prédio moderadamente alto e dar uma
olhada a partir dos terraços dos pisos superiores. A primeira
alternativa era impossível. Nenhum patrulheiro poderia precisar de
informações. A segunda, arriscada demais. Dentro de um prédio,
um patrulheiro chamaria mais atenção. Chamaria muita atenção.
Ele simplesmente seguiu na direção indicada pela lembrança
dos mapas da Cidade Alta que vira algumas vezes. E serviu muito
bem. Foi indubitavelmente o parque da cidade que ele encontrou
cinco minutos depois.
O parque da cidade era um espaço artificial de vegetação com
uma área de mais ou menos cem acres. No próprio planeta Sark, o
parque da cidade tinha uma reputação exagerada de muitas coisas,
desde paz bucólica até orgias noturnas. Em Florina, aqueles que
haviam ouvido falar vagamente sobre ele o imaginavam de dez a
cem vezes maior e de cem a mil vezes mais luxuoso do que era de
fato.
A realidade era agradável o bastante. No clima ameno de
Florina, ele ficava verde o ano todo. Tinha suas áreas de gramado,
de bosque e de grutas pedregosas. Tinha um pequeno lago com
peixes ornamentais e um lago maior para as crianças andarem de
barquinho. De noite, ficava radiante com iluminação colorida até
começar a garoa. Era entre o crepúsculo e a chuva que o parque
ficava mais animado. Havia danças, shows tridimensionais e casais
se perdendo pelas alamedas sinuosas.
Terens nunca chegara a entrar nele. Achou sua artificialidade
repulsiva ao adentrá-lo. Sabia que o solo e as pedras onde pisava, a
água e as árvores à sua volta, tudo repousava sobre um fundo de
ligacimento plano. Pensou nos campos de kyrt, compridos e
nivelados, e nas cadeias de montanhas do sul. Desprezava os
forasteiros que tinham de construir brinquedos para si mesmos em
meio àquele esplendor.
Durante meia hora, Terens vagou pelas alamedas sem rumo. O
que tinha de fazer teria de ser feito no parque da cidade. Até mesmo
ali talvez fosse impossível. Em todas as outras partes era
impossível.
Ninguém o viu. Ninguém estava prestando atenção nele. Tinha
certeza disso. Que perguntassem aos nobres e às nobres que
passaram por ele: “Você viu um patrulheiro no parque ontem?”.
Eles ficariam apenas olhando. Daria no mesmo se perguntassem
se haviam visto um mosquitinho esvoaçando pela alameda.
O parque era monótono demais. Ele sentiu o pânico começar a
aumentar. Subiu uma escada entre rochedos e começou a
descender até um círculo em forma de xícara rodeado por pequenas
cavernas projetadas para abrigar casais que fossem pegos de
surpresa pela chuva noturna. (Mais casais eram pegos de surpresa
do que o acaso por si só poderia explicar.)
Então ele viu o que estava procurando.
Um homem! Ou melhor, um nobre. Andava de um lado para o
outro a passos rápidos. Fumava, a curtas tragadas, uma bituca de
cigarro, que depois foi amassada em um cinzeiro, onde continuou a
queimar por um momento e então desvaneceu com um último
lampejo. Consultou o relógio de bolso.
Não havia mais ninguém na cavidade. Era um lugar feito para o
fim de tarde e a noite.
O nobre estava esperando alguém. Isso estava claro. Terens
olhou ao redor. Ninguém o seguia escada acima.
Poderia haver outras escadas. Com certeza havia. Não
importava. Ele não podia deixar a chance passar.
Avançou em direção ao nobre. O nobre não o viu, claro, até
Terens falar:
— Com licença…
Era suficientemente respeitoso, mas um nobre não está
acostumado a que um patrulheiro toque seu cotovelo, por mais que
seja de um modo respeitoso.
— Que diabos? — perguntou ele.
Terens não abandonou nem o respeito nem a urgência em seu
tom de voz. (Faça-o falar. Faça-o olhar nos seus olhos só por meio
minuto!).
— Por aqui, senhor — disse ele. — Tem a ver com a busca por
toda a Cidade pelo assassino nativo.
— Do que você está falando?
— Vai demorar só um momento.
Discretamente, Terens pegou o chicote neurônico. O nobre nem
chegou a vê-lo. O aparelho zuniu um pouco, e então o nobre
enrijeceu e caiu.
O citadino nunca erguera a mão contra um nobre antes. Ficou
surpreso ao notar como se sentiu mal e culpado.
Ainda não havia ninguém à vista. Ele arrastou o corpo inerte,
com os olhos vidrados e fixos, para a caverna mais próxima.
Despiu o nobre, arrancando com dificuldade as roupas dos
braços e pernas retesados. Tirou o próprio uniforme empoeirado e
manchado de suor e vestiu a roupa interior do nobre. Pela primeira
vez, sentiu o toque do tecido do kyrt com alguma parte do corpo que
não os dedos.
Depois vestiu o resto da roupa e a boina do nobre. Essa última
era necessária. As boinas não estavam muito em voga entre os
mais jovens, mas alguns a usavam, entre eles aquele nobre,
felizmente. Para Terens, era uma necessidade, já que, de outra
forma, seu cabelo claro tornaria o disfarce impossível. Puxou a
boina bem para baixo, cobrindo as orelhas.
Então fez o que tinha de ser feito. O assassinato de um
patrulheiro não era, percebeu ele de repente, o maior dos crimes,
afinal.
Ajustou o desintegrador para máxima dispersão e apontou-o
para o nobre inconsciente. Em dez segundos, restara apenas uma
massa carbonizada. Isso retardaria a identificação e confundiria os
perseguidores.
Reduziu o uniforme de patrulheiro a uma fina cinza branca com o
desintegrador e tirou do montículo botões e fivelas prateados,
escurecidos pela ação da arma. Isso também tornaria a perseguição
mais difícil. Talvez estivesse ganhando apenas mais uma hora, mas
isso também valia a pena.
Agora tinha de partir sem demora. Parou um momento perto da
boca da caverna para dar uma fungada. O desintegrador não
deixava cheiro. Havia só um ligeiro odor de carne queimada, que a
brisa dissiparia em alguns instantes.
Terens estava descendo os degraus quando uma jovem que
subia a escada passou por ele. Por um momento, desviou os olhos
por uma questão de hábito. Era uma lady. Ergueu-os a tempo de ver
que ela era jovem, bastante bonita, e estava com pressa.
Ele cerrou os dentes. A garota não encontraria o nobre, claro,
mas estava atrasada, ou ele não teria olhado tanto para o relógio.
Ela poderia pensar que ele se cansara de esperar e fora embora.
Terens apertou o passo. Não queria que ela voltasse e o
perseguisse, ofegante, perguntando-lhe se vira um rapaz.
Saiu do parque, andando sem rumo. Mais meia hora se passou.
E agora? Ele não era mais um patrulheiro, era um nobre.
Mas e agora?
Parou em uma pracinha onde havia uma fonte no centro de um
gramado. Haviam adicionado uma pequena quantidade de
detergente à água, de modo que produzisse espuma em uma
iridescência cafona.
Recostou-se contra a grade, de costas para o sol a oeste, e
pouco a pouco, lentamente, deixou cair na fonte a prata enegrecida.
Pensou na moça que passara por ele na escada enquanto fazia
isso. Ela era bem jovem. Depois pensou na Cidade Baixa, e o
espasmo momentâneo de remorso o abandonou.
Os restos prateados se foram e suas mãos estavam vazias.
Devagar, começou a vasculhar os bolsos, dando o melhor de si para
que parecesse casual.
O conteúdo dos bolsos não era particularmente fora do comum.
Um bloco de cartões-chave, algumas moedas, um cartão de
identificação. (Bendito Sark! Até os nobres os levavam, embora não
tivessem de mostrá-los a todos os patrulheiros que aparecessem.)
Seu novo nome aparentemente era Alstare Deamone. Esperava
não ter de usá-lo. Havia apenas dez mil homens, mulheres e
crianças na Cidade Alta. A chance de encontrar entre eles alguém
que conhecia Deamone pessoalmente não era grande, mas
tampouco era insignificante.
Ele tinha vinte e nove anos. Mais uma vez sentiu-se tomado pela
náusea ao pensar no que deixara na caverna e lutou contra aquela
sensação. Um nobre era um nobre. Quantos florinianos de vinte e
nove anos haviam sido mortos nas mãos deles ou seguindo suas
instruções? Quantos florinianos de nove anos?
Tinha um endereço também, mas isso não significava nada para
ele. Seu conhecimento da geografia da Cidade Alta era rudimentar.
Opa!
Um retrato em cores de um menininho de talvez três anos no
pseudotridimensional. As cores brilharam quando ele o tirou do
invólucro e esmaeceram quando o colocou de volta. Um filhinho?
Um sobrinho? Havia aquela jovem do parque, então não podia ser
um filho, podia?
Será que ele era casado? Será que era um daqueles encontros
chamados de “clandestinos”? Por que um encontro do tipo
aconteceria em plena luz do dia? Por que não, em certas
circunstâncias?
Terens esperava que sim. Se ia encontrar-se com um homem
casado, a moça não comunicaria prontamente a ausência dele. Ela
presumiria que ele não conseguira se esquivar da mulher. Isso lhe
daria tempo.
Não, não daria. Uma depressão instantânea tomou conta dele.
Crianças brincando de esconde-esconde se deparariam com os
restos e correriam gritando. Estava fadado a acontecer dentro de
vinte e quatro horas.
Ele voltou a atenção ao conteúdo do bolso mais uma vez.
Encontrou uma cópia da habilitação de piloto de iate. Ele a ignorou.
Todos os sarkitas mais ricos tinham iates e os pilotavam. Era a
moda deste século. Por fim, viu alguns vouchers de crédito sarkita.
Esses poderiam ser temporariamente úteis.
Ocorreu-lhe que não comia desde a noite anterior na casa do
padeiro. Como uma pessoa podia se dar conta da fome rápido!
De repente, voltou a atenção para a habilitação de piloto de iate.
Espere, pensou, o iate não estava em uso agora, não com o dono
morto. E era o seu iate. O número do hangar era vinte e seis, no
porto nove. Bem…
Onde ficava o porto nove? Não fazia ideia.
Encostou a cabeça contra a superfície fria e lisa da grade em
volta da fonte. E agora? E agora?
A voz o assustou.
— Olá — disse a voz. — Não está passando mal, está?
Terens alçou o olhar. Era um nobre mais velho. Estava fumando
um cigarro comprido que continha alguma folha aromática, enquanto
uma espécie de pedra verde lhe pendia de uma pulseira de ouro.
Sua expressão era de amável interesse, o que deixou Terens
perplexo a ponto de emudecê-lo por um momento, até que ele se
lembrou. Fazia parte do clã agora. Entre eles, os nobres podiam
muito bem ser seres humanos decentes.
— Só descansando — respondeu o citadino. — Decidi fazer uma
caminhada e perdi a noção da hora. Acho que estou atrasado para
um compromisso agora.
Ele fez um gesto irônico. Por causa da longa convivência,
conseguiu imitar o sotaque sarkita bastante bem, mas não cometeu
o erro de tentar exagerá-lo. O exagero era mais fácil de detectar do
que a insuficiência.
— Preso sem uma skeeter, hein? — retorquiu o outro. Ele era o
homem mais velho achando graça da loucura da juventude.
— Sem skeeter — admitiu Terens.
— Use a minha — veio a oferta instantânea. — Está estacionada
lá fora. Você pode ajustar os controles e mandá-la de volta para cá
quando tiver terminado. Só vou precisar dela daqui a uma hora mais
ou menos.
Para Terens, era quase ideal. As skeeters eram rápidas e
deslizavam como um relâmpago, podendo ultrapassar e despistar
qualquer carro terrestre de patrulheiro. Só não era ideal porque
Terens não tinha condições de dirigir a skeeter, assim como não
tinha condições de sair voando sem ela.
— Daqui até Sark — ele respondeu. Conhecia essa gíria nobre
para “obrigado” e usou-a. — Acho que vou caminhar. Não é longe
até o porto nove.
— Não, não é longe — concordou o outro.
Isso deixou Terens na mesma. Ele tentou de novo.
— Claro, eu gostaria de estar mais perto. A caminhada até a
Estrada do Kyrt em si é bastante saudável.
— Estrada do Kyrt? O que tem a ver?
Será que ele estava olhando de um jeito estranho para Terens?
De súbito, ocorreu ao citadino que sua vestimenta provavelmente
não lhe caía de forma adequada.
— Espere! — exclamou ele rápido. — Estou enganado. Fiz
confusão. Vejamos. — Ele olhou vagamente ao redor.
— Veja bem. Você está na rua Recket. A única coisa que tem
que fazer é descer até a Triffis e virar à esquerda, depois vá reto até
o porto. — Ele apontara o caminho automaticamente.
Terens sorriu.
— O senhor tem razão. Preciso parar de sonhar e começar a
pensar. Daqui até Sark, senhor.
— Você ainda pode usar a minha skeeter.
— É muita gentileza, mas…
Terens estava indo embora, um pouco rápido demais, acenando.
O nobre ficou olhando.
Talvez no dia seguinte, quando achassem o cadáver nas rochas
e começassem a procurar, o nobre voltasse a pensar nessa
conversa. Ele provavelmente diria: “Havia algo estranho nele, se é
que me entende. Tinha um modo de se expressar esquisito e
parecia não saber onde estava. Eu poderia jurar que ele nunca
havia ouvido falar da avenida Triffis”.
Mas isso seria no dia seguinte.
Andou na direção que o nobre lhe indicara. Chegou à placa em
que a inscrição “Avenida Triffis” brilhava quase pálida contra a
estrutura alaranjada iridescente que lhe servia de fundo. Virou à
esquerda.
····
O porto nove estava cheio de jovens com trajes apropriados para
viajar de iate, os quais pareciam incluir chapéus de copa alta e
calças bojudas nos quadris. Terens se sentia chamativo, mas
ninguém prestou atenção nele. O ar estava cheio de conversas
temperadas com termos que ele não entendia.
Encontrou a cabine vinte e seis, mas esperou alguns minutos
antes de se aproximar. Não queria nenhum nobre permanecendo
persistentemente nas proximidades, nenhum nobre que possuísse
um iate em uma cabine próxima e que conhecesse o verdadeiro
Alstare Deamone de vista e se perguntasse o que um estranho
estaria fazendo perto da nave dele.
Por fim, com as proximidades da cabine aparentemente seguras,
foi até lá. A ponta do iate projetava-se para fora do hangar em
direção ao espaço aberto em torno do qual estavam as cabines. Ele
esticou o pescoço para olhar.
E agora?
Havia matado três homens nas últimas doze horas. Ascendera
de citadino floriniano a patrulheiro, de patrulheiro a nobre. Viera da
Cidade Baixa para a Cidade Alta e da Cidade Alta para um
espaçoporto. Para todos os efeitos, possuía um iate, uma
embarcação suficientemente adequada para viagens espaciais a
ponto de levá-lo à segurança em qualquer planeta desabitado deste
setor da Galáxia.
Só havia um problema.
Ele não sabia pilotar um iate.
Estava morto de cansaço e fome. Chegara até ali e agora não
podia mais avançar. Estava à beira do espaço, mas não podia
atravessá-la.
A essa altura, os patrulheiros deviam ter concluído que ele não
estava em parte alguma da Cidade Baixa. A perseguição se voltaria
para a Cidade Alta assim que entrasse em suas cabeças duras que
um floriniano ousaria. Então encontrariam o corpo e seguiriam uma
nova direção. Procurariam por um nobre impostor.
E ali estava ele. Subira ao nicho mais distante do beco sem
saída e, de costas para a extremidade fechada, podia apenas
esperar que os fracos ruídos da perseguição ficassem cada vez
mais intensos até os cães de caça chegarem até ele.
Trinta e seis horas antes, a maior oportunidade de sua vida
estivera em suas mãos. Agora, a oportunidade se fora, e sua vida se
iria em breve.
O CAPITÃO

Era a primeira vez, na verdade, que o capitão Racety se vira


incapaz de impor sua vontade a um passageiro. Se aquele
passageiro fosse um dos grandes nobres, Racety ainda poderia
esperar cooperação. Um grande nobre podia ser poderoso em seu
próprio continente, mas em uma nave reconheceria que só é
possível haver um mestre: o capitão.
Com uma mulher era diferente. Qualquer mulher. E com uma
mulher que era filha de um grande nobre era completamente
impossível.
— Milady, como posso permitir que a senhorita os interrogue em
particular? — perguntou ele.
Samia de Fife, com os olhos escuros dardejando, retrucou:
— Por que não? Eles estão armados, capitão?
— Claro que não. Não é essa a questão.
— Qualquer um pode ver que eles são só duas criaturas muito
assustadas. Estão meio apavorados.
— Pessoas assustadas podem ser muito perigosas, milady. Não
se pode contar que ajam com sensatez.
— Então por que os mantém assustados? — Ela gaguejava de
leve quando ficava nervosa. — O senhor colocou três navegantes
enormes de olho neles com desintegradores, coitados. Capitão, não
vou me esquecer disso.
Não, ela não vai, pensou o capitão. Ele podia sentir que estava
começando a ceder.
— Se Vossa Senhoria não se importar, poderia me dizer
exatamente o que quer?
— É simples. Eu lhe disse. Quero conversar com eles. Se são
florinianos, como o senhor diz que são, posso conseguir
informações extremamente valiosas para o meu livro. Mas não
posso fazer isso se estiverem assustados demais para falar. Se eu
pudesse ficar sozinha com eles, seria ótimo. Sozinha, capitão!
Consegue entender uma palavra simples? Sozinha!
— E o que vou dizer para o seu pai, milady, se ele ficar sabendo
que eu permiti que a senhorita ficasse desprotegida na presença de
dois criminosos desesperados?
— Criminosos desesperados! Ah, Grande Espaço! Dois pobres
tolos que tentaram escapar do planeta deles e tiveram a má ideia de
embarcar em uma nave que ia para Sark! Além do mais, como o
meu pai saberia?
— Se eles machucarem a senhorita, ele vai saber.
— Por que me machucariam? — Ela ergueu e agitou o pequeno
punho enquanto colocava na voz cada átomo de força que pôde
encontrar: — Eu exijo, capitão.
— Que tal a seguinte proposta, milady: eu vou estar presente —
sugeriu o capitão Racety. — Não vai haver três navegantes com
desintegradores. Serei apenas eu, um homem, sem nenhum
desintegrador à vista. Caso contrário — e, por sua vez, colocou
também toda a sua determinação na voz —, terei que rejeitar a sua
exigência.
— Muito bem, então. — Ela estava sem fôlego. — Muito bem.
Mas, se eu não conseguir conversar por sua causa, vou me
certificar pessoalmente de que o senhor não seja capitão de mais
nenhuma nave.
····
Valona cobriu rapidamente os olhos de Rik com a mão quando
Samia entrou na cela.
— Qual é o problema, garota? — perguntou Samia de forma
ríspida, antes de lembrar que ia conversar com eles
confortavelmente.
Valona falou com dificuldade.
— Ele não é esperto, lady — explicou ela. — Não saberia que a
senhorita é uma lady. Ele poderia ter olhado para a senhorita. Quero
dizer, sem querer fazer nenhum mal, lady.
— Ah, puxa vida — falou Samia. — Deixe-o olhar. — Ela
continuou. — Eles têm que continuar aqui, capitão?
— A senhorita prefere uma cabine, milady?
— O senhor com certeza consegue encontrar uma cela que não
seja tão deprimente — respondeu Samia.
— É deprimente para a senhorita, milady. Para eles, tenho
certeza de que é um luxo. Tem água corrente aqui. Pergunte a eles
se tinham isso em sua cabana em Florina.
— Bem, peça àqueles homens para sair.
O capitão fez um gesto para eles. Eles se viraram, saindo
agilmente.
O capitão colocou no chão a leve cadeira dobrável de alumínio
que trouxera consigo. Samia pegou-a.
— Levantem-se! — disse ele bruscamente para Rik e Valona.
Samia interrompeu de maneira instantânea.
— Não! Deixe-os sentados. O senhor não deve interferir, capitão.
Ela se virou para eles.
— Então você é floriniana, garota.
Valona chacoalhou a cabeça.
— Somos de Wotex.
— Não precisa ficar com medo. Não importa que sejam de
Florina. Ninguém vai machucar vocês.
— Nós somos de Wotex.
— Mas você não entende que praticamente admitiu que é de
Florina, garota? Por que cobriu os olhos do rapaz?
— Ele não tem permissão para olhar para uma lady.
— Mesmo se ele for de Wotex?
Valona calou-se.
Samia deixou-a pensar no assunto. Tentou sorrir de um modo
amistoso. Depois disse:
— Só os florinianos não têm permissão para olhar para uma
lady. Então você entende que admitiu que é floriniana.
— Ele não é — disparou ela.
— Você é?
— Sou, sim. Mas ele não é. Não façam nada com ele. Ele
realmente não é floriniano. Só foi encontrado lá certo dia. Não sei de
onde ele é, mas não é de Florina. — De repente, ela estava quase
loquaz.
Samia olhou para ela um tanto surpresa.
— Bem, vou conversar com ele. Qual é o seu nome, garoto?
Rik ficou olhando. Então eram assim as nobres, tão pequenas e
de aparência tão amigável? E ela tinha um cheiro tão bom. Ele
estava muito feliz por ela lhe permitir que a olhasse.
— Qual é o seu nome, garoto? — repetiu Samia.
Rik despertou, mas tropeçou feio na tentativa de formar um
monossílabo.
— Rik — respondeu. Depois pensou: ora, esse não é o meu
nome. Ele emendou: — Acho que é Rik.
— Você não sabe?
Valona, parecendo desolada, tentou falar, mas Samia ergueu
uma mão em um gesto brusco para contê-la.
Rik chacoalhou a cabeça.
— Não sei.
— Você é floriniano?
Rik estava seguro quanto a esse ponto.
— Não. Eu estava em uma nave. Vim de algum outro lugar para
cá. — Ele não conseguia desviar os olhos de Samia, mas parecia
ver a nave coexistindo com ela; uma nave pequena e muito
amigável, semelhante a um lar.
— Foi em uma nave que veio para Florina, e antes disso eu vivia
em um planeta — explicou ele.
— Que planeta?
Era como se o pensamento estivesse abrindo caminho à força e
dolorosamente através de canais mentais demasiado pequenos
para ele. Então Rik se lembrou e ficou encantado com o som que
sua voz produziu — um som esquecido havia tanto tempo.
— Terra! Eu sou da Terra!
— Terra?
Rik aquiesceu.
Samia virou-se para o capitão.
— Onde fica esse planeta Terra?
O capitão Racety deu um sorriso breve.
— Nunca ouvi falar. Não leve o garoto a sério, milady. Os nativos
mentem da mesma forma como respiram. É natural para ele. Diz a
primeira coisa que lhe passa pela cabeça.
— Ele não fala como um nativo. — Ela se voltou para Rik de
novo. — Onde fica a Terra, Rik?
— Eu… — Ele colocou uma mão trêmula na testa. Depois
acrescentou: — Fica no Setor de Sirius. — A entonação da
afirmação tornou-a meio que uma pergunta.
— Existe um Setor de Sirius, não existe? — Samia perguntou ao
capitão.
— Sim, existe. Estou impressionado que ele tenha acertado
essa. Porém, isso não torna a Terra mais real.
— Mas ela é — contestou Rik, veementemente. — Eu me
lembro, estou dizendo. Faz tanto tempo desde a época em que me
lembrava. Não posso estar errado agora, não posso.
Ele se virou, pegando os cotovelos de Valona e agarrando a
manga da roupa dela.
— Lona, fale para eles que eu sou da Terra. Eu sou. Eu sou.
Os olhos de Valona estavam arregalados de ansiedade.
— Nós o encontramos um dia, lady, e ele não tinha nenhuma
memória. Não conseguia se vestir ou falar ou andar. Não era nada.
Desde então, vem se lembrando pouco a pouco. Até agora, tudo o
que lembrou estava certo. — Ela lançou um olhar rápido e temeroso
para o rosto entediado do capitão. — Ele pode ser mesmo da Terra,
nobre. Sem nenhuma intenção de contradizer.
A última frase era uma expressão convencional de longa data
que se usava junto de qualquer afirmação que parecesse
contradizer a declaração prévia de um superior.
— Essa história não prova nada. Ele poderia muito bem ter vindo
do centro de Sark, milady — resmungou o capitão Racety.
— Talvez, mas tem uma coisa estranha em tudo isso — insistiu
Samia, decidindo-se categoricamente pelo romance, como era típico
das mulheres. — Eu tenho certeza… O que o deixou tão
incapacitado quando você o encontrou, garota? Ele estava ferido?
Valona não respondeu nada a princípio. Seus olhos dardejavam
de um lado para o outro, desamparadamente. Primeiro para Rik,
cujos dedos estavam agarrados aos cabelos, depois para o capitão,
que sorria sem achar graça, e por fim para Samia, que esperava.
— Responda, garota.
Foi uma decisão difícil para Valona, mas nenhuma mentira
concebível podia substituir a verdade naquele lugar e naquele
momento.
— Ele foi examinado por um médico uma vez — contou ela. —
Ele disse que aplicaram uma sonda psíquica no m-meu Rik.
— Uma sonda psíquica! — Samia sentiu uma leve onda de
repugnância recair sobre si. Empurrou a cadeira. O objeto rangeu
contra o chão de metal. — Quer dizer que ele estava psicótico?
— Não sei o que isso quer dizer, lady — respondeu Valona com
humildade.
— Não do modo como a senhorita está pensando, milady —
interveio o capitão, quase ao mesmo tempo. — Os nativos não são
psicóticos. Suas necessidades e desejos são simples demais.
Nunca na minha vida ouvi falar em um nativo psicótico.
— Mas então…
— É simples, milady. Se admitirmos essa história fantástica que
a garota está contando, só podemos concluir que o rapaz foi um
criminoso, que é uma maneira de ser psicótico, suponho. Se for
esse o caso, deve ter sido tratado por um daqueles charlatães que
atendem os nativos, que provavelmente quase o matou e depois o
abandonou em um setor deserto para evitar ser descoberto e
processado.
— Mas tudo isso teria que ser feito por alguém com acesso a
uma sonda psíquica — contestou Samia. — Com certeza você não
esperaria que os nativos conseguissem usar uma.
— Talvez não. Mas não seria de se esperar que um médico
autorizado usasse uma de forma tão amadora. O fato de chegarmos
a uma contradição prova que a história é mentira. Se me permite
uma sugestão, milady, deixe que nós cuidemos dessas criaturas. A
senhorita viu que é inútil esperar qualquer coisa deles.
Samia hesitou.
— Talvez esteja certo.
Ela se levantou e olhou para Rik, insegura. O capitão postou-se
atrás dela, ergueu a cadeirinha e fechou-a com um estalido.
Rik ergueu-se de um salto.
— Espere!
— Por favor, milady — disse o capitão, segurando a porta aberta
para ela. — Meus homens vão calar a boca dele.
Samia parou no limiar da porta.
— Eles não vão machucá-lo, vão?
— Duvido que ele nos faça chegar a extremos. Vai ser fácil lidar
com ele.
— Lady! Lady! — gritou Rik. — Eu posso provar. Sou da Terra.
Samia parou, momentaneamente irresoluta.
— Vamos ouvir o que ele tem a dizer.
— Como quiser, milady — disse o capitão com frieza.
Ela voltou, mas não adentrou muito a cela. Ficou a um passo da
porta.
Rik enrubesceu. Com o esforço para se lembrar, seus lábios se
mexeram, formando a caricatura de um sorriso.
— Eu me lembro da Terra — falou ele. — Era radioativa. Me
lembro das Áreas Proibidas e do horizonte azul à noite. O solo
brilhava e nada crescia nele. Existiam somente alguns pontos onde
era possível viver. Foi por isso que me tornei espaçoanalista. Era
por isso que eu não me importava de ficar no espaço. Meu mundo
era um planeta morto.
Samia deu de ombros.
— Venha, capitão. Ele está apenas delirando.
Mas, desta vez, foi o capitão Racety que ficou ali, boquiaberto.
— Um planeta radioativo! — murmurou ele.
— Quer dizer que existe alguma coisa desse tipo? — indagou
ela.
— Existe. — Voltou-se para ela, seus olhos maravilhados. —
Onde mais ele poderia ter ouvido isso?
— Como poderia um planeta ser radioativo e habitado?
— Mas existe um. E ele fica no Setor de Sirius. Não lembro o
nome. Talvez até seja Terra.
— É Terra — afirmou Rik, com orgulho e confiança. — É o
planeta mais antigo da Galáxia. É o planeta onde se originou toda a
raça humana.
— Isso mesmo! — exclamou o capitão em um tom suave.
— Quer dizer que a raça humana se originou nesse planeta
Terra? — perguntou Samia, sentindo a cabeça rodar.
— Não, não — respondeu o capitão, distraído. — Isso é
superstição. É só que foi dessa maneira que ouvi falar sobre o
planeta radioativo. Ele alega ser o planeta natal da humanidade.
— Eu não sabia que devíamos ter um planeta natal.
— Imagino que tenhamos surgido em algum lugar, milady, mas
duvido que alguém possa saber em que planeta foi.
Com uma súbita determinação, ele se aproximou de Rik.
— Do que mais se lembra?
Ele quase acrescentou “garoto”, mas se conteve.
— Na maioria das vezes, da nave — respondeu Rik — e da
espaçoanálise.
Samia juntou-se ao capitão. Eles ficaram ali, diretamente de
frente para Rik, e Samia sentiu a empolgação voltar.
— Então é tudo verdade? Mas então como foi que aplicaram a
sonda psíquica nele?
— A sonda psíquica! — exclamou o capitão Racety, pensativo.
— Acho que devemos perguntar para ele. Ei, você, nativo ou
forasteiro ou o que quer que seja. Como foi que acabaram aplicando
a sonda psíquica em você?
Rik pareceu em dúvida.
— Vocês todos dizem isso. Até a Lona. Mas eu não sei o que
significa essa palavra.
— Quando você parou de se lembrar então?
— Não tenho certeza. — Ele começou de novo, desesperado. —
Eu estava em uma nave.
— Nós sabemos. Continue.
— É inútil gritar, capitão. Vai espantar o que lhe sobrou de
inteligência.
Rik estava totalmente envolvido em uma batalha na escuridão
que havia dentro de sua mente. O esforço não deixava espaço para
nenhuma emoção. Foi para a própria surpresa que ele disse:
— Não tenho medo dele, lady. Estou tentando lembrar. Havia
perigo. Tenho certeza. Um grande perigo para Florina, mas não
consigo lembrar os detalhes.
— Perigo para o planeta todo? — Samia lançou um rápido olhar
para o capitão.
— É. Está nas correntes.
— Que correntes? — perguntou o capitão.
— As correntes do espaço.
O capitão fez um gesto largo com as mãos e deixou-as cair.
— Isto é loucura.
— Não, não. Deixe-o continuar. — A maré de crença estava com
Samia outra vez. Sua boca estava semiaberta, os olhos escuros
brilhavam e surgiram covinhas nas bochechas e no queixo quando
ela sorriu. — O que são as correntes do espaço?
— Os diferentes elementos — respondeu Rik vagamente. — Já
expliquei isso antes. Não queria tratar desse assunto de novo.
— Mandei uma mensagem para o escritório local em Sark —
continuou ele rapidamente, quase sem coerência, falando à medida
que os pensamentos lhe ocorriam, levado por eles. — Me lembro
disso claramente. Eu tinha que ter cuidado. Era um perigo que ia
além de Florina. Isso. Além de Florina. Era tão amplo como a Via
Láctea. Tinha que ser tratado com cuidado.
Ele parecia haver perdido todo contato real com aqueles que o
ouviam, parecia estar vivendo em um mundo do passado diante do
qual uma cortina se rasgava em alguns lugares. Valona pôs uma
mão tranquilizadora sobre o ombro dele e disse “não!”, mas ele não
reagiu nem a isso.
— De alguma forma — continuou ele, ofegante —, minha
mensagem foi interceptada por algum oficial de Sark. Foi um erro.
Não sei como aconteceu.
Ele franziu o cenho.
— Tenho certeza de que mandei para o escritório local no próprio
comprimento de onda da Agência. Vocês acham que o subéter pode
ter sido grampeado? — Ele nem se admirou de que a palavra
“subéter” lhe houvesse ocorrido com tanta facilidade.
Poderia até estar esperando uma resposta, mas seus olhos
ainda não viam.
— De qualquer modo, quando aterrissei em Sark, estavam me
esperando.
Outra vez houve uma pausa, desta vez longa e meditativa. O
capitão não fez nada para interrompê-la; ele próprio parecia estar
meditando.
Samia, porém, perguntou:
— Quem estava esperando você? Quem?
— N-não sei. Não consigo lembrar. Não era o escritório. Era
alguém de Sark. Me lembro de conversar com ele. Ele sabia sobre o
perigo. Falou sobre o assunto. Nós nos sentamos a uma mesa
juntos. Me lembro da mesa. Ele se sentou de frente para mim. Está
tão claro como o espaço. Conversamos algum tempo. Me parece
que eu não queria dar detalhes. Estou seguro disso. Eu teria que
falar com o escritório antes. E então ele…
— Sim? — incentivou Samia.
— Ele fez alguma coisa. Ele… Não, não vem mais nada. Não
vem mais nada!
Rik gritou as palavras, e depois fez-se silêncio, um silêncio
quebrado desapontadoramente pelo zunido prosaico do comuno de
pulso do capitão.
— O que é? — indagou ele.
A voz que respondeu era aguda e respeitosa na medida exata.
— Uma mensagem de Sark para o capitão. Foi solicitado que a
atenda pessoalmente.
— Muito bem. Vou já para o subetérico.
Ele se virou para Samia.
— Milady, devo lembrar que, de qualquer forma, é hora do jantar.
Ele viu que a moça se preparava para declarar que estava sem
fome, para insistir que ele saísse e não se preocupasse com ela.
— Também é hora de alimentar essas criaturas — continuou ele,
de modo mais diplomático. — Provavelmente estão cansados e
famintos.
Samia não pôde contra-argumentar.
— Preciso vê-los de novo, capitão.
O capitão fez uma mesura silenciosa. Talvez fosse anuência.
Talvez não.
Samia de Fife ficou entusiasmada. Seus estudos sobre Florina
satisfaziam certa aspiração ao intelecto em seu interior. Mas o
Misterioso Caso do Terráqueo que Sofreu Sondagem Psíquica (ela
pensava na questão com maiúsculas) apelava para algo muito mais
primitivo e muito mais complicado. Despertava a pura curiosidade
animal dentro dela.
Era um mistério!
Havia três pontos que a fascinavam. Entre eles não estava a
questão sensata (nessas circunstâncias) sobre se a história do
homem era um delírio ou uma mentira deliberada, e não a verdade.
Acreditar que fosse qualquer outra coisa que não a verdade
estragaria o mistério, o que Samia não podia permitir.
Estes eram, portanto, os três pontos: 1) que perigo ameaçava
Florina, ou melhor, a Galáxia inteira?; 2) quem era a pessoa que
aplicara a sonda psíquica no terráqueo?; 3) por que essa pessoa
usara a sonda psíquica?
Ela estava determinada a examinar a questão para a sua
completa satisfação. Ninguém era tão modesto a ponto de não se
acreditar um detetive amador competente, e Samia estava longe de
ser modesta.
Após o jantar, tão rapidamente quanto as regras da boa
educação lhe permitiam, ela correu até a cela.
— Abra a porta! — ordenou ao guarda.
O navegante permaneceu perfeitamente reto, olhando
inexpressiva e respeitosamente adiante.
— Se Vossa Senhoria não se importar, a porta deve ficar
fechada.
Samia arquejou.
— Como ousa? Se não abrir a porta instantaneamente, o capitão
será informado.
— Se Vossa Senhoria não se importar, a porta deve ficar
fechada por ordem estrita do capitão.
Ela subiu furiosa os andares outra vez, entrando na cabine do
capitão como um tornado comprimido em um metro e cinquenta e
dois centímetros de altura.
— Capitão!
— Milady!
— O senhor ordenou que mantivessem o terráqueo e a mulher
nativa longe de mim?
— Acredito, milady, que ficou acordado que a senhorita só
conversaria com eles na minha presença.
— Antes do jantar, sim. Mas o senhor não viu que eles são
inofensivos?
— Vi que eles pareciam inofensivos.
Samia encolerizou-se.
— Nesse caso, eu ordeno que venha comigo agora.
— Não posso, milady. A situação mudou.
— De que maneira?
— Eles precisam ser interrogados pelas autoridades apropriadas
em Sark e, até lá, acho que devem ficar sozinhos.
Samia ficou boquiaberta, mas resgatou sua boca dessa posição
indigna quase de imediato.
— Com certeza o senhor não vai entregá-los ao Departamento
de Assuntos Florinianos, não é?
— Bem — contemporizou o capitão —, essa era sem dúvida a
intenção original. Eles deixaram o vilarejo deles sem permissão. Na
verdade, saíram do planeta deles sem permissão. Além do mais,
entraram secretamente em uma embarcação sarkita.
— Esse último foi um equívoco.
— Foi mesmo?
— Em todo caso, o senhor sabia de todos os crimes deles antes
da nossa última conversa.
— Mas foi apenas na conversa que ouvi o que o suposto
terráqueo tinha a dizer.
— Suposto. O senhor mesmo disse que o planeta Terra existia.
— Eu falei que poderia existir. Mas, milady, posso me atrever a
perguntar o que a senhorita gostaria que fosse feito com essas
pessoas?
— Acho que a história do terráqueo deveria ser investigada. Ele
fala de um perigo para Florina e de alguém em Sark que tentou
deliberadamente esconder esse perigo das autoridades apropriadas.
Acho até que é um caso para o meu pai. Na verdade, eu o levaria
para o meu pai quando chegasse o momento certo.
— Quanta astúcia! — exclamou o capitão.
— O senhor está sendo sarcástico, capitão?
O capitão enrubesceu.
— Perdão, milady. Eu estava me referindo aos nossos
prisioneiros. A senhorita permite que eu me prolongue um pouco
mais?
— Não sei o que quer dizer com “um pouco mais” — retorquiu
ela, irritada —, mas acho que pode começar.
— Obrigado. Em primeiro lugar, milady, espero que a senhorita
não minimize a importância dos tumultos em Florina.
— Que tumultos?
— A senhorita não pode ter esquecido do incidente na
biblioteca?
— Um patrulheiro morto! Francamente, capitão!
— E um segundo patrulheiro morto esta manhã, milady, e um
nativo também. Não é muito comum nativos matarem patrulheiros, e
aqui temos um que matou duas vezes e, no entanto, continua
foragido. Será que ele trabalha sozinho? Será um acidente? Ou será
que tudo isso faz parte de um esquema cuidadosamente planejado?
— Ao que parece, o senhor acredita nessa última hipótese.
— Acredito, sim. O nativo assassino tinha dois cúmplices. A
descrição deles é bem parecida com a dos nossos dois passageiros
clandestinos.
— O senhor nunca falou isso!
— Não quis alarmá-la. Vossa Senhoria deve se lembrar, porém,
que eu lhe disse várias vezes que eles podiam ser perigosos.
— Muito bem. Aonde o senhor está tentando chegar?
— E se os assassinatos em Florina fossem apenas uma atração
secundária com o intuito de distrair a atenção dos esquadrões de
patrulheiros enquanto esses dois entravam furtivamente em nossa
nave?
— Isso soa tão ridículo.
— Soa mesmo? Por que estão fugindo de Florina? Nós não
perguntamos a eles. Suponhamos que estejam fugindo dos
patrulheiros, já que essa é com certeza a suposição mais sensata.
De todos os lugares, estariam indo justamente para Sark? E em
uma nave que transporta Vossa Senhoria? E então ele alega ser um
espaçoanalista.
Samia franziu a testa.
— O que tem isso?
— Um ano atrás, um espaçoanalista foi dado como
desaparecido. A história nunca teve ampla divulgação. Eu sabia,
claro, porque a minha nave foi uma das que buscaram por sinais da
nave dele no espaço próximo. Quem quer que esteja por trás
desses tumultos florinianos sem dúvida aproveitou esse
acontecimento, e o fato de conhecerem a questão do
espaçoanalista desaparecido mostra que organização unida e
inesperadamente eficiente eles têm.
— Pode ser que o terráqueo e o espaçoanalista desaparecido
não tenham nenhuma ligação.
— Nenhuma ligação real, milady, sem dúvida. Mas não esperar
ligação nenhuma é esperar coincidência demais. Estamos lidando
com um impostor. É por isso que ele alega ter sofrido uma
sondagem psíquica.
— Ahn?
— Como podemos provar que ele não é espaçoanalista? Ele não
sabe nenhum detalhe sobre o planeta Terra além do simples fato de
que é radioativo. Não sabe pilotar uma nave. Não sabe nada sobre
espaçoanálise. E disfarça insistindo que lhe aplicaram uma sonda
psíquica. Entende, milady?
Samia não pôde dar uma resposta direta.
— Mas com que objetivo? — indagou ela.
— Para que a senhorita fizesse exatamente o que disse que
pretendia fazer, milady.
— Investigar o mistério?
— Não, milady. Levar o homem até seu pai.
— Ainda não vejo sentido.
— Existem várias possibilidades. Na melhor delas, ele poderia
espionar o seu pai ou para Florina ou possivelmente para Trantor.
Imagino que o velho Abel de Trantor com certeza se colocaria à
disposição para identificá-lo como terráqueo, mesmo que fosse só
para constranger Sark exigindo a verdade sobre essa sondagem
psíquica fictícia. Na pior, ele seria o assassino do seu pai.
— Capitão!
— Milady?
— Isso é ridículo.
— Talvez, milady. Mas, se for, o Departamento de Segurança
também é ridículo. A senhorita deve lembrar que pouco antes do
jantar fui chamado para receber uma mensagem de Sark.
— Lembro.
— Esta é a mensagem.
Samia recebeu a película translúcida com letras vermelhas.
Dizia: “Há uma denúncia de que dois florinianos embarcaram
secreta e ilegalmente em sua nave. Prenda-os de imediato. Um
deles pode alegar que é espaçoanalista, e não um floriniano nativo.
Não tomem nenhuma medida nesse sentido. Vocês serão
rigorosamente responsáveis pela segurança dessas pessoas. Eles
devem ser mandados de volta para o Depseg. Sigilo absoluto.
Urgência extrema”.
Samia sentiu-se atônita.
— Depseg — disse ela. — O Departamento de Segurança.
— Sigilo absoluto — falou o capitão. — Estou abrindo uma
exceção para lhe contar isso, mas a senhorita não me deixou
escolha, milady.
— O que vão fazer com ele? — perguntou ela.
— Não sei dizer ao certo — respondeu o capitão. — Com
certeza um suposto espião e assassino não pode esperar um
tratamento gentil. Provavelmente sua farsa se tornará em parte
realidade e ele descobrirá como é, de verdade, uma sonda psíquica.
O DETETIVE

Os quatro grandes nobres olhavam para o nobre de Fife cada um à


sua maneira. Bort estava irritado, Rune estava achando graça, Balle
estava aborrecido e Steen estava assustado.
Rune falou primeiro.
— Alta traição? — indagou ele. — Está tentando nos assustar
com palavras? O que significa? Traição contra você? Contra Bort?
Contra mim? Por parte de quem e como? E pelo amor de Sark, Fife,
essas reuniões interferem nas minhas horas de sono normais.
— Os resultados — respondeu Fife — podem interferir nas horas
de sono de muitos dias. Não estou falando de traição contra
qualquer um de nós, Rune. Estou falando de traição contra Sark.
— Sark? — retorquiu Bort. — O que é Sark, afinal, senão nós?
— Chame de mito. Chame de algo em que os sarkitas comuns
acreditam.
— Eu não entendo — resmungou Steen. — Vocês sempre
parecem tão interessados em conversar uns com os outros de forma
condescendente. Francamente! Eu queria que vocês acabassem
logo com isso.
— Concordo com Steen — falou Balle. Steen pareceu satisfeito.
— Estou perfeitamente disposto a explicar agora mesmo —
disse Fife. — Vocês ouviram falar, imagino, sobre os recentes
tumultos em Florina.
— Relatórios do Depseg mencionam vários patrulheiros mortos
— comentou Rune. — É disso que você está falando?
— Por Sark, se temos que fazer uma reunião, vamos discutir
isso — interrompeu Bort, zangado. — Patrulheiros mortos! Eles
merecem ser mortos! Você está querendo dizer que um nativo pode
simplesmente se aproximar de um patrulheiro e golpeá-lo na cabeça
com uma ripa de madeira plástica? Por que algum patrulheiro
deveria deixar um nativo com uma barra de madeira nas mãos
chegar perto o suficiente para usá-la? Por que o nativo não foi
carbonizado a vinte passos?
“Por Sark, eu sacudiria a Corporação dos Patrulheiros, do
capitão ao recruta, e mandaria todos esses desmiolados prestarem
serviço em naves. A Corporação inteira não passa de um acúmulo
de gordura. A vida deles aqui embaixo é muito fácil. Eu digo que
deveríamos colocar Florina sob lei marcial a cada cinco anos e
eliminar os encrenqueiros. Isso manteria os nativos quietos e os
nossos próprios homens em alerta.”
— Já terminou? — perguntou Fife.
— Por enquanto, sim. Mas vou retomar o assunto. É o meu
investimento lá embaixo também, sabe? Pode não ser tão grande
quanto o seu, Fife, mas é grande o suficiente para eu me preocupar
com ele.
Fife deu de ombros. Virou-se de repente para Steen.
— E você, ouviu falar dos tumultos?
Steen sobressaltou-se.
— Ouvi, quero dizer, ouvi você acabar de dizer…
— Você não leu os comunicados do Depseg?
— É sério? — Steen demonstrava intenso interesse em suas
compridas unhas pontudas, cobertas por um esmalte vermelho-
cobre aplicado com primor. — Eu nem sempre tenho tempo para ler
todos os comunicados. Não sabia que eu tinha que fazer isso. Na
verdade — ele reuniu toda a coragem nas duas mãos e olhou em
cheio para Fife —, não sabia que você estava ditando regras para
mim. Francamente!
— Não ditei — contestou Fife. — Mesmo assim, já que pelo
menos você não sabe nada dos detalhes, deixe-me fazer um
resumo. Os demais podem achar interessante também.
Era surpreendente como os acontecimentos de quarenta e oito
horas podiam caber em tão poucas palavras e como podiam soar
monótonos. Primeiro, houvera uma menção inesperada aos textos
do espaçoanalista. Então, um golpe na cabeça de um patrulheiro
aposentado que morreu de fratura no crânio duas horas mais tarde.
Depois, uma perseguição que terminou com o esconderijo do
agente trantoriano intocado. Em seguida, um segundo patrulheiro
morto ao amanhecer com o assassino munido do uniforme de
patrulheiro e o agente trantoriano morto, por sua vez, algumas horas
mais tarde.
— Se quiser saber das últimas notícias — concluiu Fife —, pode
acrescentar esta a esse catálogo de aparentes banalidades:
algumas horas atrás, acharam um corpo, ou melhor, os restos
ossudos de um corpo, no parque da cidade em Florina.
— O corpo de quem? — perguntou Rune.
— Um momentinho, por favor. Ao lado do cadáver havia uma
pilha de cinzas do que pareciam ser restos de roupa carbonizados.
Qualquer parte de metal tinha sido cuidadosamente tirada da roupa,
mas a análise da cinza mostrou que era o que sobrara de um
uniforme de patrulheiro.
— Nosso amigo impostor? — indagou Balle.
— Pouco provável — respondeu Fife. — Quem o mataria em
segredo?
— Suicídio — comentou Bort em um tom maldoso. — Quanto
tempo esse maldito esperava continuar livre? Imagino que ele tenha
tido uma morte melhor dessa forma. Pessoalmente, eu descobriria
quem na corporação foi responsável por deixar a situação chegar a
ponto de suicídio e colocaria um desintegrador com carga única na
mão dele.
— Pouco provável — retorquiu Fife mais uma vez. — Se o
sujeito cometeu suicídio, ou ele se matou primeiro e então tirou o
uniforme, desintegrou-o até virar cinzas, tirou as fivelas e galões e
depois se livrou deles, ou tirou o uniforme, desintegrou-o, tirou as
fivelas e galões, saiu da caverna nu, ou talvez de roupa íntima,
jogou-os fora e se matou.
— O corpo estava em uma caverna? — perguntou Bort.
— Em uma das cavernas ornamentais do parque. Estava.
— Então ele teve bastante tempo e bastante privacidade — falou
Bort em tom agressivo. Ele odiava desistir de uma teoria. — Pode
ter tirado as fivelas e os galões primeiro, depois…
— Você já tentou tirar um galão do uniforme de um patrulheiro
sem desintegrá-lo primeiro? — perguntou Fife sarcasticamente. — E
você pode sugerir um motivo, se o corpo fosse o do impostor após o
suicídio? Além do mais, recebi um relatório dos médicos-legistas
que examinaram a estrutura óssea. O esqueleto não é nem de um
patrulheiro nem de um floriniano. É de um sarkita.
— Verdade? — gritou Steen.
Os velhos olhos de Balle ficaram arregalados; os dentes de
metal de Rune, que, ao refletirem um raio de luz vez por outra,
davam um pouco de vida ao cubo de penumbra onde ele estava,
desapareceram quando ele fechou a boca. Até mesmo Bort ficou
estupefato.
— Vocês compreendem? — perguntou Fife. — Agora estão
entendendo por que o metal foi tirado do uniforme. Quem quer que
tenha matado o sarkita queria que pensassem que a cinza era da
roupa do próprio sarkita, retirada e desintegrada antes da morte,
que nós poderíamos tomar como suicídio ou como o resultado de
uma briga particular que não tivesse ligação nenhuma com o nosso
amigo patrulheiro impostor. O que ele não sabia era que uma
análise da cinza poderia distinguir entre o kyrt das vestimentas
sarkitas e o celulano de um uniforme de patrulheiro mesmo sem as
fivelas e os galões.
“Agora, considerando que temos um sarkita morto e a cinza de
um uniforme de patrulheiro, só podemos supor que em algum lugar
da Cidade Alta existe um citadino com vestimentas sarkitas. O
nosso floriniano, tendo se passado por patrulheiro por muito tempo e
achando o perigo grande demais, cada vez maior, decidiu se tornar
um nobre. E fez isso da única maneira que conseguiu.”
— Ele foi pego? — indagou Bort em um tom intenso.
— Não, não foi.
— Por que não? Por Sark, por que não?
— Ele vai ser pego — comentou Fife, indiferente. — De
momento, temos coisas mais importantes com que nos preocupar.
Essa última atrocidade é bobagem em comparação.
— Vá direto ao ponto! — exigiu Rune instantaneamente.
— Paciência! Primeiro, deixe-me perguntar se vocês se lembram
do espaçoanalista que desapareceu ano passado.
Steen riu.
— De novo essa história? — retorquiu Bort, com infinito desdém.
— Existe alguma ligação? — perguntou Steen. — Ou só
estamos conversando sobre aquela situação horrível do ano
passado outra vez? Estou cansado.
Fife permaneceu impassível.
— A explosão de ontem e a de anteontem começaram com um
pedido na biblioteca floriniana por livros de referência sobre
espaçoanálise — revelou. — Isso é ligação suficiente para mim.
Vejamos se consigo deixar clara a ligação para o resto de vocês
também. Vou começar descrevendo as três pessoas envolvidas no
incidente da biblioteca e, por favor, parem de me interromper por
alguns minutos.
“Primeiro, há um citadino. Dos três, ele é quem oferece perigo.
Em Sark, tinha um excelente registro como uma peça inteligente e
fiel. Infelizmente, agora voltou suas habilidades contra nós. Ele é,
sem dúvida, responsável por quatro mortes a essa altura. É um
recorde para qualquer um. Considerando que essas quatro incluem
dois patrulheiros e um sarkita, é incrivelmente extraordinário para
um nativo. E ele continua livre.
“A segunda pessoa envolvida é uma mulher nativa. Ela não tem
instrução e é totalmente insignificante. No entanto, os dois últimos
dias viram uma extensa investigação sobre cada faceta dessa
questão e sabemos qual é a história dela. Seus pais eram membros
da ‘Alma de Kyrt’, se é que algum de vocês se lembra daquela
conspiração camponesa ridícula que foi eliminada sem nenhuma
dificuldade vinte anos atrás.
“Isso nos leva à terceira pessoa, o mais fora do comum entre os
três. Essa terceira pessoa era um funcionário de fábrica comum e
um idiota.”
Bort fungou com força e Steen soltou outra risada aguda. Balle
permaneceu de olhos fechados e Rune ficou imóvel no escuro.
— A palavra “idiota” não foi usada em sentido figurado —
informou Fife. — O Depseg foi implacável, mas não conseguiu
rastrear a história dele mais do que dez meses e meio atrás.
Naquela época, ele foi encontrado em um vilarejo fora da principal
metrópole de Florina, em estado de total idiotia. Não conseguia
andar nem falar. Não conseguia nem se alimentar.
“Agora, notem que ele surgiu pela primeira vez algumas
semanas após o desaparecimento do espaçoanalista. Notem
também que, em questão de meses, ele aprendeu a falar e até
mesmo a preencher uma vaga de trabalho em uma fábrica de kyrt.
Que tipo de idiota poderia aprender tão rápido?”
Steen começou a falar quase com avidez:
— Ah, na realidade, se aplicaram a sonda psíquica nele de forma
apropriada, isso poderia ser feito… — A voz dele emudeceu.
— Não consigo pensar em uma autoridade maior nesse assunto
— comentou Fife sardonicamente. — Mas, mesmo sem a opinião
especializada de Steen, passou a mesma coisa pela minha cabeça.
Era a única explicação possível.
“Bem, a sondagem psíquica só poderia ter acontecido em Sark
ou na Cidade Alta, em Florina. Por uma questão de simples
minuciosidade, as clínicas médicas da Cidade Alta foram checadas.
Não havia nenhum sinal de sondagem psíquica não autorizada. Foi
então que um dos nossos agentes teve a ideia de verificar os
registros de médicos que tinham morrido desde que o idiota
apareceu. Vou me certificar de que ele seja promovido por essa
ideia.
“Nós encontramos um registro do nosso idiota em apenas uma
dessas clínicas. Ele tinha sido levado para um check-up completo
uns seis meses atrás pela camponesa que é a segunda pessoa do
nosso trio. Ao que parece, isso foi feito em segredo, já que ela faltou
ao trabalho nesse dia com um pretexto diferente. O médico
examinou o idiota e registrou evidências definitivas de manipulação
por sondagem psíquica.
“Agora vem o ponto interessante. Esse médico era um dos que
tinham clínicas em dois níveis, na Cidade Alta e na Cidade Baixa.
Era um daqueles idealistas que achavam que os nativos mereciam
assistência médica de primeira. Era um homem metódico e
mantinha fichas integralmente duplicadas nas duas clínicas para
evitar deslocamentos desnecessários pelo elevador. Também
satisfazia o seu idealismo, imagino eu, o fato de não segregar
sarkitas e florinianos nesses registros. Mas a ficha do idiota em
questão não tinha cópia e era o único registro não duplicado.
“Por quê? Se, por algum motivo, ele tivesse decidido por vontade
própria não copiar essa ficha em especial, por que ela teria
aparecido apenas nos arquivos da Cidade Alta, que foi onde
apareceu? Por que não apenas nos registros da Cidade Baixa, que
é onde não estava? Afinal de contas, o homem era floriniano. Foi
levado por uma floriniana. Foi examinado na clínica da Cidade
Baixa. Tudo isso estava nitidamente registrado na cópia que
encontramos.
“Existe só uma resposta para esse enigma. A ficha foi
devidamente incluída nos dois arquivos, mas destruída no da
Cidade Baixa por alguém que não se deu conta de que restaria
outra cópia na clínica da Cidade Alta. Agora, vamos seguir adiante.
“Na ficha de exame do idiota constava uma anotação concreta
para anexar essas descobertas no próximo relatório de rotina do
médico para o Depseg. Isso era totalmente apropriado. Qualquer
caso de sondagem psíquica poderia envolver um criminoso ou
mesmo um subversivo. Mas esse relatório nunca foi feito. Naquela
mesma semana ele morreu em um acidente de trânsito.
“As coincidências se acumulam além da conta, não?”
Balle abriu os olhos.
— É um suspense policial que você está nos contando.
— É — gritou Fife com satisfação —, um suspense policial. E, de
momento, eu sou o detetive.
— E quem são os acusados? — perguntou Balle, em um
sussurro cansado.
— Ainda não. Deixe-me bancar o detetive por mais um minuto.
Em meio ao que considerava ser a crise mais perigosa que Sark
já enfrentara, Fife de repente descobriu que estava se divertindo
muitíssimo.
— Vamos abordar a história de um outro lado — sugeriu ele. —
Vamos esquecer por enquanto o idiota e lembrar o espaçoanalista.
A primeira coisa que ouvimos falar dele foi uma notificação para a
Agência de Transporte de que ele iria aterrissar em breve. Uma
mensagem anterior enviada por ele acompanha a notificação.
“O espaçoanalista nunca chega. Ele não está em nenhum lugar
no espaço próximo. Além disso, a mensagem enviada pelo
espaçoanalista, que tinha sido encaminhada para a AgeTrans,
desapareceu. A AIE afirmou que nós estávamos escondendo a
mensagem de propósito. O Depseg acreditou que eles estivessem
inventando uma mensagem fictícia para fins de propaganda. Agora
está me passando pela cabeça que os dois estavam errados. A
mensagem foi entregue, mas não foi escondida pelo governo de
Sark.
“Vamos inventar alguém e, de momento, chamá-lo de X. X tem
acesso aos registros da AgeTrans. Ele fica sabendo sobre esse
espaçoanalista e sobre a mensagem e tem inteligência e habilidade
para agir rápido. Ele dá um jeito para que um subetergrama secreto
seja enviado para a nave do espaçoanalista, direcionando a
aterrissagem do sujeito para um campo pequeno e isolado. O
espaçoanalista aterrissa lá e X se encontra com ele.
“X levou a mensagem sobre a destruição do espaçoanalista com
ele. Pode haver duas razões para isso. Em primeiro lugar,
confundiria possíveis tentativas de detecção, eliminando uma
evidência. Em segundo, serviria talvez para ganhar a confiança do
espaçoanalista louco. Se o espaçoanalista sentisse que só podia
conversar com seus próprios superiores, e é possível que se
sentisse assim, X poderia convencê-lo a fazer confidências,
provando que já estava de posse das partes essenciais da história.
“Com certeza, o espaçoanalista falou. Por mais incoerente, louca
e impossível, em termos gerais, que essa conversa possa ter sido, X
a reconheceu como um excelente recurso para propaganda. Ele
mandou suas cartas chantageadoras para os grandes nobres, para
nós. Seu procedimento, como foi planejado naquele momento,
talvez tenha sido exatamente aquele que eu atribuí a Trantor
naquela época. Se não chegássemos a um acordo com ele,
provavelmente interromperia a produção floriniana com rumores de
destruição até forçar a rendição.
“Mas então ele cometeu o primeiro erro de cálculo. Alguma coisa
o assustou. Vamos refletir sobre o que exatamente mais adiante.
Em todo caso, ele decidiu que teria que esperar antes de continuar.
Esperar, porém, envolvia uma complicação. X não acreditava na
história do espaçoanalista, mas não havia dúvida de que o próprio
espaçoanalista estava sendo completamente sincero. X teria que
dar um jeito nas coisas para que o espaçoanalista se dispusesse a
deixar essa ‘destruição’ esperar.
“O espaçoanalista não podia fazer isso a não ser que
inutilizassem sua mente deturpada. X poderia tê-lo matado, mas, na
minha opinião, ele precisava daquele espaçoanalista como fonte de
maiores informações (afinal, ele próprio não sabia nada de
espaçoanálise e não podia fazer uma chantagem bem-sucedida
com base em um blefe total) e, talvez, como refém em caso de
completo fracasso. De qualquer forma, ele usou a sonda psíquica.
Depois do tratamento, tinha em mãos não um espaçoanalista, mas
um idiota sem mente que lhe causaria problemas durante um
período. E, depois de um tempo, recobraria os sentidos.
“O próximo passo? Certificar-se de que, durante esse ano de
espera, o espaçoanalista não fosse localizado e de que ninguém
importante o visse, mesmo em seu papel como idiota. Então ele
procedeu com uma simplicidade magistral: levou esse homem para
Florina e, por quase um ano, o espaçoanalista foi apenas um nativo
retardado trabalhando nas fábricas de kyrt.
“Imagino que, durante esse ano, ele, ou algum subordinado de
confiança, visitava o vilarejo onde ‘plantou’ a criatura para ver se
estava a salvo e em estado razoável de saúde. Em uma dessas
visitas ele descobriu, de alguma maneira, que tinham levado a
criatura para ver um médico que sabia reconhecer uma sondagem
psíquica quando via uma. O médico morreu e o registro
desapareceu, pelo menos da clínica dele na Cidade Baixa. Esse foi
o primeiro erro de cálculo de X. Ele nunca pensou que pudesse
haver uma cópia na clínica de cima.
“E então veio seu segundo erro de cálculo. O idiota começou a
recuperar seus sentidos um pouco rápido demais, e o citadino do
vilarejo teve inteligência suficiente para entender que aquilo era
mais do que um simples desvario. Talvez a garota que cuidava do
idiota tenha contado sobre a sondagem psíquica para o citadino. É
uma suposição.
“Eis aí a história.”
Fife entrelaçou as mãos fortes e esperou pela reação.
Rune respondeu primeiro. A luz se acendera no cubículo dele
alguns instantes mais cedo e ele ficou ali, piscando e sorrindo.
— E foi uma história um tanto monótona, Fife — disse ele. —
Mais um momento no escuro e eu teria caído no sono.
— Até onde posso ver — falou Balle lentamente —, você criou
uma estrutura tão sem substância quanto a do ano passado.
Noventa por cento é suposição.
— Besteira! — exclamou Bort.
— Quem é X, afinal? — perguntou Steen. — Se você não sabe
quem é X, simplesmente não faz sentido nenhum. — Ele bocejou
com delicadeza, cobrindo os pequenos dentes brancos com o dedo
indicador curvado.
— Pelo menos um de vocês enxerga o ponto essencial —
replicou Fife. — A identidade de X é o ponto fulcral dessa questão.
Pensem nas características que X precisa ter, se a minha análise
estiver correta.
“Em primeiro lugar, X é um homem com contatos no Serviço
Público. É um homem que pode solicitar uma sondagem psíquica. É
um homem que acha que pode organizar uma forte ofensiva de
chantagem. É um homem que pode levar o espaçoanalista de Sark
para Florina sem dificuldades. É um homem que pode providenciar
a morte de um médico em Florina. Ele com certeza não é um zé-
ninguém.
“Na verdade, é um alguém muito definido. Deve ser um grande
nobre. Vocês não acham?”
Bort levantou-se da cadeira. Sua cabeça desapareceu e ele
voltou a se sentar. Steen deu uma gargalhada alta e histérica. Os
olhos de Rune, meio enterrados na gordura polpuda que os
rodeava, brilharam febrilmente. Balle chacoalhou a cabeça devagar.
— Pelo Espaço, quem é o acusado, Fife? — gritou Bort.
— Ninguém ainda. — Fife manteve o equilíbrio. — Ninguém
especificamente. Veja da seguinte maneira. Existem cinco de nós.
Nenhum outro homem em Sark poderia ter feito o que X fez. Só nós
cinco. Isso pode ser dado como certo. Agora, qual dos cinco? Para
começar, não fui eu.
— E nós podemos confiar na sua palavra, por acaso? —
retrucou Rune com sarcasmo.
— Vocês não têm que confiar na minha palavra — retorquiu Fife.
— Sou o único que não tem motivo. O motivo de X é conseguir o
controle da indústria do kyrt. Eu tenho esse controle. Sou dono de
um terço das propriedades de Florina. As minhas fábricas, o meu
maquinário e a minha frota mercantil são suficientemente
predominantes para forçar qualquer um de vocês, ou todos, a sair
do mercado se eu quiser. Eu não precisaria recorrer a uma
chantagem complicada.
Ele gritava, sobrepondo-se às vozes dos demais em conjunto.
— Me escutem! Vocês têm todos os motivos. Rune tem o menor
continente e as menores propriedades. Sei que ele não gosta disso.
Não consegue fingir que gosta. Balle tem a linhagem mais antiga.
Houve um tempo em que a sua família governava Sark inteira. Ele
provavelmente não se esqueceu disso. Bort se ressente do fato de
sempre ser voto vencido no conselho e, portanto, não conseguir
fazer negócios em seu território à moda chicote-e-desintegrador que
gostaria. Steen tem gostos caros e suas finanças vão mal. A
necessidade de recuperação é avassaladora. Nós temos essa
necessidade aí. Todos os motivos possíveis. Inveja. Cobiça pelo
poder. Cobiça pelo dinheiro. Questões de prestígio. Agora, qual de
vocês?
Surgiu um brilho de súbita malícia nos velhos olhos de Balle.
— Você não sabe?
— Não importa. Agora escutem. Eu disse que alguma coisa
assustou X (vamos continuar chamando-o de X) depois da primeira
carta que nos enviou. Vocês sabem o que foi? Foi a nossa primeira
reunião, quando falei da necessidade de uma ação conjunta. X
estava aqui. X era e é um de nós. Ele sabia que uma ação conjunta
significava fracasso. Contava que ganharia de nós, porque sabia
que o nosso velho e rígido ideal de autonomia continental nos
manteria em desacordo até o último instante e mesmo depois. Ele
viu que estava errado e decidiu esperar até o senso de urgência
desaparecer e ele poder prosseguir.
“Mas ele continua equivocado. Nós ainda vamos realizar uma
ação conjunta e só existe uma forma de fazer isso com segurança,
considerando que X é um de nós. A autonomia continental acaba
aqui. É um luxo que não podemos mais sustentar, pois os esquemas
de X só vão terminar com a derrota econômica do resto de nós ou
com a intervenção de Trantor. Eu mesmo sou o único em que posso
confiar, então, de agora em diante, eu comando o Sark unido. Vocês
estão comigo?”
Eles estavam todos de pé, gritando. Bort agitava o punho. Havia
um tênue fio de espuma no canto de seus lábios.
Fisicamente, não havia nada que pudessem fazer. Fife sorriu.
Cada um estava a um continente de distância. Ele podia só ficar
sentado atrás da mesa, vendo-os espumar.
— Vocês não têm escolha — falou ele. — Nesse ano que se
passou desde a nossa primeira reunião, também fiz os meus
preparativos. Enquanto vocês quatro ficaram quietos me ouvindo,
oficiais fiéis a mim tomaram o comando da Marinha.
— Traição! — eles gritaram.
— Traição contra a autonomia continental — retorquiu Fife. —
Lealdade a Sark.
Steen entrelaçava nervosamente os dedos, cujas unhas pintadas
de vermelho-cobre conferiam o único toque de cor à sua pele.
— Mas é o X. Mesmo que X seja um de nós, há três inocentes.
Eu não sou X. — Ele lançou um olhar venenoso ao redor. — É um
dos outros.
— Aqueles de vocês que forem inocentes farão parte do meu
governo se quiserem. Vocês não têm nada a perder.
— Mas você não diz quem é inocente — berrou Bort. — Você
nos deixa todos de fora com essa história de X, nessa… nessa… —
A falta de fôlego o fez parar.
— Não vou dizer. Em vinte e quatro horas vou saber quem é X.
Não contei para vocês. O espaçoanalista de quem estávamos
falando está nas minhas mãos.
Eles se calaram. Olharam uns para os outros com reservas e
desconfiança.
Fife deu risada.
— Vocês estão se perguntando quem pode ser X. Um de vocês
sabe, tenham certeza disso. E em vinte e quatro horas todos nós
vamos saber. Agora tenham em mente, cavalheiros, que todos
vocês estão indefesos. Os navios de guerra são meus. Tenham um
bom dia!
O gesto dele foi de quem havia terminado.
Um a um eles se apagaram, como estrelas nas profundezas do
vácuo sendo encobertas na visitela pelo volume invisível e errante
de uma espaçonave destroçada.
Steen foi o último a ir embora.
— Fife — disse ele com a voz trêmula.
Fife levantou os olhos.
— Pois não? Você quer confessar agora que nós dois estamos
sozinhos? Você é X?
O rosto de Steen se contorceu, extremamente alarmado.
— Não, não. Não, mesmo. Eu só queria perguntar se você está
realmente falando sério. Quero dizer, sobre a autonomia continental
e todas essas coisas. É verdade?
Fife olhou para o velho cronômetro na parede.
— Tenha um bom dia.
Steen resmungou. Sua mão foi até o botão e ele também
desapareceu.
····
Fife ficou ali, inflexível e estático. Terminada a reunião, passado o
calor da crise, ele foi tomado pela depressão. Sua boca de lábios
finíssimos era um talho acentuado no rosto grande.
Todos os cálculos começaram com este fato: o espaçoanalista
era louco e não havia nenhuma destruição. Mas tanta coisa havia
acontecido por causa de um maluco! Será que Junz da AIE passaria
mesmo um ano procurando por um lunático? Seria ele tão obstinado
em sua busca por contos de fadas?
Fife não contara a ninguém sobre isso. Ele mal se atrevia a
compartilhá-lo com a própria alma. E se o espaçoanalista nunca
tivesse estado louco? E se a destruição pairasse sobre o planeta do
kyrt?
O secretário floriniano surgiu diante do grande nobre, com a voz
insípida e seca.
— Senhor!
— O que é?
— A nave com a sua filha aterrissou.
— O espaçoanalista e a mulher nativa estão em segurança?
— Sim, senhor.
— Não deixe que aconteça nenhum interrogatório na minha
ausência. Eles devem permanecer incomunicáveis até eu chegar…
Alguma notícia de Florina?
— Sim, senhor. O citadino está sob custódia e sendo trazido
para Sark.
O IATISTA

As luzes do porto se acendiam por igual à medida que o crepúsculo


se acentuava. Em nenhum momento a iluminação geral variou
daquela esperada para um fim de tarde um tanto apagado. No porto
nove, como nos outros portos para iates na Cidade Alta, era dia
durante todo o período de rotação de Florina. O brilho podia ser
estranhamente acentuado sob o sol do meio-dia, mas essa era a
única variação.
Markis Genro sabia dizer que o dia passara só porque, ao entrar
no porto, deixara as coloridas luzes noturnas da cidade para trás.
Essas brilhavam contra o céu que escurecia, mas não fingiam
substituir o dia.
Genro parou logo após a entrada principal e não parecia nem um
pouco impressionado pela gigantesca ferradura com suas três
dúzias de andares e cinco dutos de decolagem. Fazia parte dele,
assim como fazia parte de qualquer iatista experiente.
Ele pegou um cigarro comprido de cor violeta em cuja ponta
havia o mais fino toque de kyrt e colocou-o nos lábios. Protegeu a
ponta exposta com as palmas das mãos e viu-a acender-se com um
brilho verde enquanto tragava. O cigarro queimava devagar e não
deixava cinzas. Uma fumaça esmeralda saiu por suas narinas.
— Negócios, como sempre! — murmurou ele.
Um membro do comitê de iates, vestindo traje de iatista, com
apenas uma inscrição discreta e de bom gosto acima de um botão
da túnica para indicar que era membro do comitê, andara rápido
para encontrar Genro, evitando cuidadosamente aparentar que
estivesse com pressa.
— Ah, Genro! E por que não negócios, como sempre?
— Oi, Doty. Só achei que, com todo esse furor e frenesi
acontecendo, poderia passar pela cabeça de algum rapaz brilhante
fechar os portos. Graças a Sark que não passou.
O membro do comitê ficou sério.
— Sabe, pode chegar a esse ponto. Você já soube da última?
Genro sorriu.
— Como você consegue distinguir entre a última e a depois-da-
última?
— Bem, você ouviu falar que é certeza agora sobre o nativo? O
assassino?
— Você quer dizer que ele foi pego? Eu não tinha ouvido essa.
— Não, ele não foi pego. Mas sabem que ele não está na Cidade
Baixa!
— Não? Onde ele está, então?
— Oras, na Cidade Alta. Aqui.
— Continue. — Genro arregalou os olhos, depois estreitou-os,
incrédulo.
— Não, sério — falou o membro do comitê, um pouco magoado.
— Sei de fonte segura. Os patrulheiros estão percorrendo a Estrada
do Kyrt. Eles cercaram o parque da cidade e estão usando a arena
central como ponto de coordenação. É tudo verdade.
— Bem, talvez. — Os olhos de Genro vagaram desatentos pelas
naves nos hangares. — Faz dois meses que não venho aqui no
Nove, eu acho. Tem alguma nave nova no porto?
— Não. Bem, tem sim, tem o Flecha Flamejante do Hjordesse.
Genro chacoalhou a cabeça.
— Esse eu já vi. É todo feito de cromo e mais nada. Odeio
pensar que vou acabar projetando a minha própria nave.
— Você vai vender o Cometa V?
— Vender ou jogar fora. Estou cansado desses últimos modelos.
São tão automáticos. Com seus relês automáticos e seus
computadores que medem a trajetória, estão acabando com o
esporte.
— Sabe, já ouvi outras pessoas falarem a mesma coisa —
concordou o membro do comitê. — Vou fazer o seguinte. Se eu ficar
sabendo de um modelo antigo em boas condições no mercado,
aviso você.
— Obrigado. Você se importa se eu der uma andada por aqui?
— Claro que não. Vá em frente. — O membro do comitê sorriu,
acenou e afastou-se.
Genro caminhava devagar, com o cigarro pela metade pendendo
de um lado da boca. Ele parava em cada um dos hangares
ocupados, avaliando astutamente seu conteúdo.
No hangar vinte e seis, demonstrou maior interesse. Olhou por
cima da barreira mais baixa e disse:
— Nobre?
O chamado foi o de uma indagação cortês, mas, após uma
pausa de vários instantes, teve de chamar de novo, de forma um
pouco mais decisiva, um pouco menos cortês.
O nobre que apareceu não era impressionante de se ver. Para
começar, não estava usando traje de iatismo. Em segundo lugar,
precisava fazer a barba, e sua boina de aparência repugnante
estava enfiada na cabeça de um jeito cafona. Parecia cobrir metade
do rosto. Por fim, sua atitude era a de um excesso de cautela
particularmente suspeito.
— Sou Markis Genro — apresentou-se. — Esta é a sua nave,
senhor?
— É, é sim. — As palavras foram expressas de forma lenta e
tensa.
Genro desconsiderou isso. Inclinou a cabeça para trás e
examinou as linhas do iate com atenção. Tirou dos lábios o que
restara do cigarro e arremessou-o bem alto no ar. O cigarro ainda
não chegara ao ponto alto do arco que formava quando, com uma
pequena faísca, desapareceu.
— Se importa se eu entrar? — indagou Genro. O outro hesitou,
depois deu um passo para o lado. Genro entrou.
— Que tipo de motor tem essa nave, senhor? — perguntou.
— Por que pergunta?
Genro era alto, de pele negra e olhos escuros, cabelo
encaracolado e curto. Era um palmo mais alto do que o outro, e seu
sorriso mostrava dentes brancos e uniformemente espaçados.
— Para ser bem franco, ando à procura de uma nave nova —
falou ele.
— Quer dizer que está interessado nesta nave?
— Não sei. Algo do tipo, talvez, se o preço for bom. Mas, em
todo caso, se importa se eu der uma olhada nos controles e nos
motores?
O nobre ficou ali, calado.
A voz de Genro tornou-se um pouco mais fria.
— Como preferir, claro. — Ele se virou.
— Talvez eu venda — falou o nobre. Ele mexeu nos bolsos. —
Aqui está a habilitação!
Genro deu uma olhada rápida e experiente dos dois lados.
Devolveu-a.
— Você é Deamone?
O nobre aquiesceu.
— Pode entrar, se quiser.
Genro olhou brevemente para o grande cronômetro do porto, os
ponteiros luminescentes brilhando forte mesmo com a iluminação do
dia, indicando o início da segunda hora após o pôr do sol.
— Obrigado. Não vai me mostrar o caminho?
O nobre vasculhou os bolsos outra vez e tirou um bloco de
cartões-chave.
— O senhor primeiro.
Genro pegou o bloco de chaves. Folheou os cartões procurando
o pequeno código do “selo de navio”. O outro homem nem sequer
tentou ajudá-lo.
— Esta, suponho? — indagou ele, enfim.
Subiu a pequena rampa até o nível da escotilha e examinou o
fino encaixe à direita da fechadura com atenção.
— Não estou vendo… Ah, aqui está — e passou para o outro
lado da escotilha.
Devagar, sem fazer barulho, a fechadura se abriu e Genro entrou
na escuridão. A escotilha vermelha acendeu-se automaticamente
quando a porta se fechou atrás deles. A porta interna se abriu e,
quando entraram na embarcação, as luzes corretas foram se
acendendo por toda a extensão da nave.
····
Myrlyn Terens não tinha escolha. Ele não se lembrava mais da
época em que existia uma “escolha”. Durante três longas e infelizes
horas, ficara perto da nave de Deamone, esperando e sem poder
fazer mais nada. A espera não levara a nada até agora. Ele via que
aquilo não poderia levar a outra coisa que não à captura.
E então chegou esse sujeito de olho na nave. Lidar com ele era
loucura. Não dava para manter a farsa em um espaço tão restrito.
Mas também não podia continuar onde estava.
Pelo menos dentro da nave podia haver comida. Estranho que
isso não tivesse lhe ocorrido antes.
Havia.
— É quase hora do jantar — falou Terens. — Você gostaria de
comer alguma coisa?
O outro mal olhou por cima do ombro.
— Bem, mais tarde, talvez. Obrigado.
Terens não o apressou. Deixou-o perambular pela nave e
ocupou-se agradecidamente com a carne enlatada e a fruta
embalada em celulano. Matou a sede sequiosamente. Havia um
banheiro de frente para a cozinha, do outro lado do corredor. Ele
trancou a porta e tomou banho. Era um prazer poder tirar aquela
boina apertada, pelo menos por algum tempo. Encontrou até mesmo
um pequeno closet onde pôde escolher uma muda de roupa.
Estava muito mais senhor de si quando Genro voltou.
— Escute, você se importaria se eu experimentasse pilotar esta
nave? — perguntou Genro.
— Não tenho nenhuma objeção. Você consegue pilotar este
modelo? — perguntou Terens, com uma excelente imitação de
indiferença.
— Acho que sim — respondeu o outro com um sorrisinho. — Eu
me gabo de poder pilotar qualquer um dos modelos comuns. Em
todo caso, tomei a liberdade de contatar a torre de controle e existe
um duto de decolagem disponível. Aqui está a minha habilitação de
iatista, se quiser ver antes de eu assumir o controle.
Terens deu uma olhada tão superficial quanto Genro dera em
sua habilitação.
— Os controles são todos seus — disse.
····
A nave saiu do hangar como uma baleia aérea, movendo-se
devagar, com sua fuselagem diamagnetizada quase oito centímetros
acima do barro compactado e liso do campo.
Terens observava Genro manuseando os controles com
minuciosa precisão. A nave era algo vivo sob o toque dele. A
pequena réplica do campo que aparecia na visitela deslocava-se e
mudava a cada minúsculo movimento de cada contato.
A nave parou na ponta de um duto de decolagem. O campo
diamagnético intensificou-se em direção à proa da nave e ela
começou a virar para cima. Terens felizmente não percebeu isso,
uma vez que a sala do piloto girava sobre os seus eixos cardans
universais para manter-se em conformidade com a gravidade em
alteração. Majestosamente, as saliências da parte traseira da nave
se encaixaram nas ranhuras apropriadas do duto. Ela estava na
vertical, apontando para o céu.
A cobertura de duralite do duto de decolagem deslizou para
dentro da sua reentrância, revelando o revestimento neutralizado, a
noventa metros de profundidade, que recebeu os primeiros impulsos
energéticos dos motores hiperatômicos.
Genro mantinha uma troca codificada de informação com a torre
de controle.
— Dez segundos para a decolagem — disse ele enfim.
Um fio vermelho que subia por um tubo de quartzo marcava a
passagem dos segundos. O fio fez contato e a primeira onda de
energia os empurrou para trás.
Terens sentiu-se mais pesado, pressionado contra o assento. O
pânico tomou conta dele.
— Como vão as coisas? — gemeu ele.
Genro parecia insensível à aceleração. Sua voz tinha quase o
timbre natural quando respondeu:
— Moderadamente bem.
Terens recostou-se contra a poltrona, tentando parar de lutar
contra a pressão, vendo as estrelas na visitela tornarem-se rígidas e
brilhantes à medida que a atmosfera entre ele e elas desaparecia. O
kyrt em contato com a sua pele parecia frio e úmido.
····
Estavam no espaço agora. Genro colocava a nave em seu ritmo
normal. Terens não tinha como saber disso em primeira mão, mas
podia ver as estrelas passando continuamente pela visitela
enquanto os compridos dedos delgados do iatista brincavam com os
controles como se fossem teclas de um instrumento musical. Enfim,
o segmento volumoso e alaranjado de um planeta preencheu a
superfície clara da visitela.
— Nada mau — comentou Genro. — Você mantém a sua nave
em boas condições, Deamone. É pequena, mas tem as suas
qualidades.
— Suponho que gostaria de testar a velocidade e a capacidade
de Salto — sugeriu Terens com cautela. — Pode testar, se quiser.
Não tenho nenhuma objeção.
Genro aquiesceu.
— Muito bem. Para onde sugere que viajemos? Que tal… — Ele
hesitou, depois continuou: — Bem, por que não Sark?
A respiração de Terens ficou um pouco mais acelerada. Ele
esperava isso. Estava a ponto de acreditar que vivia em um mundo
mágico. Pensava em como as coisas forçavam seus movimentos,
mesmo sem a sua conivência. Não teria sido difícil convencê-lo de
que não eram “coisas”, mas a intencionalidade que provocava as
jogadas. Sua infância fora repleta das superstições que os nobres
nutriam entre os nativos e é difícil se libertar dessas coisas. Em Sark
estava Rik, com suas lembranças que pouco a pouco retornavam. O
jogo não estava terminado.
— Por que não, Genro? — retorquiu ele, em tom impetuoso.
— Vamos para Sark, então — disse Genro.
A uma velocidade cada vez maior, o globo de Florina saiu do
campo de visão da visitela e as estrelas voltaram.
— Qual é o seu melhor tempo de percurso entre Sark e Florina?
— perguntou Genro.
— Nada de quebrar recordes — respondeu Terens. — Mais ou
menos a média.
— Então você fez em menos de seis horas, suponho.
— De vez em quando, sim.
— Você se importa se eu tentar fazer em cinco?
— De modo algum — replicou Terens.
····
Levou horas para chegar a um ponto distante o suficiente da
distorção da massa estelar do tecido espacial a fim de tornar o Salto
possível.
A vigília era uma tortura para Terens. Era sua terceira noite de
pouco ou nenhum sono, e a tensão dos dias exacerbara essa
privação.
Genro olhou para ele de soslaio.
— Por que não vai se deitar?
Terens forçou os flácidos músculos faciais a assumirem uma
expressão de vivacidade.
— Não é nada. Não é nada — respondeu.
Ele bocejou longamente e sorriu, como que pedindo desculpas.
O iatista voltou-se para os instrumentos e os olhos de Terens
ficaram vidrados outra vez.
Os assentos de um iate espacial eram confortáveis por uma
questão de necessidade. Precisavam proteger as pessoas da
aceleração. Um homem que não está particularmente cansado pode
cair no sono fácil e tranquilamente acomodado neles. Terens, que
poderia, nesse momento, ter dormido sobre vidro quebrado, nem
sequer viu quando passaram pela linha divisória.
Ele dormiu durante horas; dormiu de forma tão profunda e tão
livre de sonhos como jamais dormira na vida.
Não se mexia. Não mostrava um único sinal de vida além da
respiração regular quando tiraram a boina de sua cabeça.
····
Terens acordou aos poucos, sonolento. Durante longos minutos, não
teve a menor noção do seu paradeiro. Pensou que havia retornado
a sua casinha de citadino. A verdadeira situação foi voltando à sua
mente de forma gradativa. Por fim, conseguiu sorrir para Genro, que
continuava nos controles, e disse:
— Acho que peguei no sono.
— Acho que sim. Ali está Sark. — Genro apontou com a cabeça
para a grande crescente branca na visitela.
— Quando aterrissamos?
— Daqui a mais ou menos uma hora.
Terens estava acordado o bastante agora para sentir uma
mudança sutil na atitude do outro. Foi com grande choque que ele
percebeu que o objeto cinza cor de aço na mão de Genro era o
gracioso cano de uma pistola-agulha.
— O que, pelo Espaço… — Terens começou a dizer, levantando-
se.
— Sente-se — ordenou Genro com cautela. Havia uma boina na
outra mão dele.
Terens levou uma das mãos à cabeça e notou que seus dedos
tocavam o cabelo claro.
— É — comentou Genro —, é bastante óbvio. Você é nativo.
Terens fitou-o e não disse nada.
— Eu sabia que você era nativo antes de entrar na nave do
pobre Deamone — revelou Genro.
A boca de Terens estava seca como o algodão e seus olhos
ardiam. Ele observou o minúsculo cano mortal da arma e esperou
por um clarão repentino e silencioso. Chegara tão longe, tão longe,
e perdera a aposta no final das contas.
Genro parecia não ter pressa. Ele segurava a pistola-agulha com
firmeza, e suas palavras eram uniformes e lentas.
— O seu erro básico, citadino, foi a ideia de que poderia mesmo
despistar uma força policial organizada indefinidamente. Mesmo
assim, teria se saído melhor se não tivesse feito a escolha infeliz de
tornar Deamone uma vítima sua.
— Eu não escolhi — resmungou Terens.
— Então chame de sorte. Umas doze horas atrás, Alstare
Deamone estava no parque da cidade esperando pela mulher. Não
havia nenhum motivo a não ser sentimentalismo para encontrá-la
justo naquele lugar. Tinham se encontrado naquele exato local pela
primeira vez e se encontravam ali de novo em cada aniversário do
primeiro encontro. Não há nada de particularmente original nesse
tipo de cerimônia entre maridos e mulheres jovens, mas parece
importante para eles. Claro que Deamone não percebeu que o
relativo isolamento do lugar o tornava uma vítima adequada para um
assassino. Quem na Cidade Alta teria pensado nisso?
“No decurso normal dos acontecimentos, o assassinato poderia
passar dias sem ser descoberto. Porém, a mulher de Deamone
esteve no local meia hora depois do crime. O fato de o marido não
estar lá a surpreendeu. Ele não era do tipo, ela explicou, de sair
furioso por um pequeno atraso dela. Ela costumava se atrasar. Ele
meio que teria contado com isso. A mulher pensou que Deamone
poderia estar esperando por ela dentro da caverna “deles”.
“Deamone estava esperando do lado de fora da caverna ‘deles’,
naturalmente. Como consequência, era a caverna mais próxima ao
local da agressão e aquela para onde ele foi arrastado. A mulher
entrou na gruta e encontrou… Bem, você sabe o quê. Ela conseguiu
transmitir a notícia para a Corporação dos Patrulheiros através dos
nossos próprios escritórios do Depseg, embora sua fala fosse quase
desconexa por causa do choque e da histeria.
“Qual é a sensação, citadino, de matar um homem a sangue frio,
deixando-o para ser encontrado pela mulher no lugar mais marcado
por boas lembranças para os dois?”
Terens estava engasgando.
— Vocês, sarkitas, mataram milhões de florinianos. Mulheres.
Crianças — disparou, em meio a uma névoa de raiva e frustração.
— Vocês enriqueceram à nossa custa. Este iate…
— Deamone não era responsável pela situação que encontrou
ao nascer — ponderou Genro. — Se você tivesse nascido sarkita, o
que teria feito? Renunciado às suas propriedades, se tivesse
alguma, e ido trabalhar nos campos de kyrt?
— Bem, então atire em mim — gritou Terens, contorcendo-se. —
O que está esperando?
— Não há pressa. Há bastante tempo para eu terminar a minha
história. Nós não tínhamos certeza sobre a identidade do cadáver
ou do assassino, mas tínhamos um bom palpite de que fossem
Deamone e você, respectivamente. Pareceu óbvio para nós, pelo
fato de as cinzas perto do corpo serem de um uniforme de
patrulheiro, que você estava disfarçado de sarkita. Pareceu também
provável que você fosse para o iate de Deamone. Não superestime
a nossa estupidez, citadino.
“As coisas ainda estavam bastante complexas. Você era um
homem desesperado. Encontrá-lo não era suficiente. Você estava
armado e com certeza cometeria suicídio se fosse encurralado.
Suicídio era algo que não queríamos. Queriam você em Sark e
queriam você em boas condições.
“Era uma questão particularmente delicada para mim, e foi
necessário convencer o Depseg de que eu podia dar conta sozinho,
de que conseguiria levar você até Sark sem barulho ou dificuldade.
Você tem de admitir que é exatamente o que estou fazendo.
“Para falar a verdade, no começo me perguntei se você era
mesmo o nosso homem. Você estava usando uma roupa comum de
negócios no porto. Foi uma coisa de incrível mau gosto. Me pareceu
que ninguém sonharia em se fazer passar por um iatista sem a
vestimenta apropriada. Achei que tinha sido mandado de propósito
como isca, que estava tentando ser preso enquanto o homem que
queríamos fugia em outra direção.
“Eu hesitei e testei você de outras formas. Me atrapalhei
colocando a chave no lugar errado. Nenhuma nave jamais inventada
abria do lado direito da escotilha. Ela abre sempre e invariavelmente
do lado esquerdo. Você nunca mostrou nenhuma surpresa com o
meu equívoco. Nenhuma. Então perguntei a você se a sua nave já
tinha feito o percurso entre Sark e Florina em menos de seis horas.
Você respondeu que sim… de vez em quando. Isso é bem
impressionante. O tempo recorde para o percurso é de mais de
nove horas.
“Concluí que você não podia ser uma isca. A ignorância era
grande demais. Você tinha que ser naturalmente ignorante e
provavelmente o homem certo. Bastava apenas esperar que
adormecesse (e estava estampado na sua cara que precisava
desesperadamente dormir), desarmá-lo e mantê-lo na mira com
uma arma adequada. Tirei o seu chapéu mais por curiosidade do
que qualquer coisa. Queria ver como ficava uma roupa sarkita com
uma cabeça ruiva saindo dela.”
Terens mantinha os olhos no chicote. Talvez Genro estivesse
vendo-o cerrar a mandíbula. Talvez apenas houvesse adivinhado o
que Terens estava pensando.
— Claro que não posso matá-lo, nem se você me atacar — disse
ele. — Não posso matá-lo nem em legítima defesa. Não pense que
isso lhe dá vantagem. Se começar a se mexer, eu atiro em sua
perna.
O impulso de lutar se esvaiu de Terens. Ele colocou as palmas
das mãos na testa e ficou inflexível.
— Sabe por que contei tudo isso? — indagou Genro em tom
baixo.
Terens não respondeu.
— Em primeiro lugar — falou Genro —, eu gosto de ver você
sofrer. Não gosto de assassinos e, principalmente, não gosto de
nativos que matam sarkitas. Recebi ordens para entregá-lo vivo,
mas nada nessas ordens diz que eu tenho que tornar essa viagem
agradável para você. Em segundo lugar, é preciso que tenha plena
consciência da situação, já que, depois que aterrissarmos em Sark,
os passos seguintes vão depender de você.
Terens ergueu os olhos.
— O quê?
— O Depseg sabe que você está chegando. O escritório regional
floriniano enviou uma notificação assim que esta embarcação
transpôs a atmosfera de Florina. Você pode ter certeza. Mas eu
disse que tive que convencer o Depseg de que podia cuidar disso
sozinho, e o fato de ter conseguido faz toda a diferença.
— Não estou entendendo — falou Terens em desespero.
— Eu disse que “eles” queriam você em Sark, “eles” queriam
você em boas condições. Quando digo “eles”, não estou falando do
Depseg, estou falando de Trantor! — respondeu Genro com
serenidade.
O RENEGADO

Selim Junz nunca fora do tipo fleumático. Um ano de frustração não


fizera nada para melhorar isso. Ele não conseguia beber vinho
detidamente enquanto sua orientação mental se assentava sobre
alicerces que de repente estremeciam. Em resumo, ele não era
Ludigan Abel.
E, quando Junz terminara de gritar raivosamente que em
nenhuma circunstância Sark deveria ter liberdade para sequestrar e
aprisionar um membro da AIE, independentemente da condição da
rede de espionagem de Trantor, Abel apenas disse:
— Acho melhor você passar a noite aqui, doutor.
— Tenho coisa melhor para fazer — retrucou Junz com frieza.
— Sem dúvida, colega, sem dúvida — concordou Abel. —
Mesmo assim, se os meus homens estão sendo desintegrados,
Sark deve ter muita ousadia mesmo. Existe uma grande
possibilidade de que algum acidente possa acontecer com você
antes que a noite termine. Vamos esperar a noite, então, e ver o que
o novo dia traz.
Os protestos de Junz contra a falta de ação não deram em nada.
Abel, sem jamais perder seu ar frio, quase negligente, de
indiferença, de repente ficou difícil de ouvir. Junz foi acompanhado
com firme cortesia a um aposento.
Na cama, olhou para o teto ligeiramente luminoso, pintado com
afrescos (onde brilhava uma cópia razoavelmente bem-feita da
“Batalha das Luas Arcturianas”, de Lenhaden), e soube que não
dormiria. Então deu uma borrifada de leve no gás somnin e dormiu
antes de conseguir dar outra borrifada. Cinco minutos depois,
quando uma corrente de ar forçada limpou o quarto do anestésico,
já havia sido administrada uma quantidade suficiente para garantir
saudáveis oito horas de sono.
····
Ele foi acordado na fria meia-luz da alvorada. Piscou para Abel.
— Que horas são? — perguntou ele.
— Seis.
— Grande Espaço. — Ele olhou ao redor e tirou as pernas
ossudas de baixo do lençol. — O senhor acorda cedo.
— Eu não dormi.
— O quê?
— Sinto falta, acredite. Não reajo à antisomnina como eu reagia
quando era mais jovem.
— Pode me dar licença um momento? — murmurou Junz.
Desta vez, seus preparativos da manhã para o dia não
demoraram mais do que isso. Ele voltou para o quarto, colocando o
cinto em volta da túnica e ajustando o magneto-fecho.
— Bem, e então? — indagou ele. — O senhor certamente não
passaria a noite acordado e me despertaria às seis a menos que
tivesse algo para me contar.
— Você está certo. Você está certo. — Abel sentou-se na cama
desocupada por Junz e jogou a cabeça para trás com uma risada.
Era uma risada tênue e estridente. Dava para ver seus dentes, o
forte e levemente amarelado plástico dos dentes incompatível com
sua gengiva murcha.
— Me desculpe, Junz — disse ele. — Não estou no meu normal.
Essa vigília à base de drogas me deixa um pouco zonzo. Chego a
achar que vou aconselhar Trantor a me substituir por um homem
mais jovem.
— Você descobriu que eles não estão com o espaçoanalista no
final das contas? — perguntou Junz com um quê de sarcasmo, não
inteiramente desprovido de uma repentina esperança.
— Não, eles estão, sim. Lamento, mas estão. Receio que a
graça se deva totalmente ao fato de que as nossas redes estão
intactas.
Junz gostaria de ter dito “danem-se as suas redes”, mas se
conteve.
— Não há dúvidas de que eles sabiam que Khorov era um dos
nossos agentes — continuou Abel. — Pode ser que saibam de
outros em Florina. Esses são peixe pequeno. Os sarkitas sabiam
disso e nunca acharam que valia a pena fazer mais do que mantê-
los em observação.
— Eles mataram um — salientou Junz.
— Não mataram — retorquiu Abel. — Foi um dos companheiros
do espaçoanalista disfarçado de patrulheiro que usou o
desintegrador.
Junz ficou olhando.
— Não entendo.
— É uma história um tanto complicada. Você não vem tomar
café da manhã comigo? Preciso muito de comida.
····
Enquanto tomava café, Abel contou a história das últimas trinta e
seis horas.
Junz ficou atônito. Pousou a xícara de café meio cheia e não
voltou a pegá-la.
— Mesmo considerando que tivessem viajado escondidos justo
nessa nave, continua sendo fato que eles podem não ter sido
detectados. Se você mandar os seus homens ao encontro daquela
nave quando ela aterrissar…
— Bah. Você já devia saber. Nenhuma nave moderna poderia
deixar de detectar a presença de excesso de calor corporal.
— Poderia ter passado despercebido. Os instrumentos podem
ser infalíveis, mas os homens não são.
— Doce ilusão. Escute. Neste exato momento, quando a nave
com o espaçoanalista a bordo está se aproximando de Sark, há
relatos de excelente confiabilidade de que o nobre de Fife está em
reunião com os outros grandes nobres. Essas reuniões
intercontinentais são tão espaçadas quanto as estrelas da Galáxia.
Coincidência?
— Uma reunião intercontinental por causa de um
espaçoanalista?
— Um assunto por si só sem importância, é. Mas nós o tornamos
importante. A AIE vem procurando por ele faz quase um ano com
uma persistência extraordinária.
— Não a AIE — insistiu Junz. — Eu. Estou trabalhando quase
extraoficialmente.
— Os nobres não sabem disso e não acreditariam se você lhes
dissesse. Além disso, Trantor também tem interesse.
— A meu pedido.
— Mais uma vez, eles não sabem disso e não acreditariam.
Junz levantou-se e sua cadeira afastou-se automaticamente da
mesa. Com as mãos firmemente entrelaçadas atrás das costas, ele
andou sobre o tapete. De um lado a outro. De um lado a outro. De
vez em quando, lançava um olhar duro para Abel.
Abel virou-se impassivelmente para uma segunda xícara de café.
— Como sabe de tudo isso? — perguntou Junz.
— Tudo o quê?
— Tudo. Como e quando o espaçoanalista viajou
clandestinamente. Como e de que maneira o citadino vem
escapando da captura. Seu objetivo é me enganar?
— Meu caro dr. Junz…
— O senhor admitiu que havia homens de olho no
espaçoanalista independentemente de mim. Garantiu que eu
estivesse seguramente fora do caminho ontem à noite, não
deixando nada por conta do acaso. — Junz lembrou-se de súbito
daquela dose de somnin.
— Passei uma noite, doutor, em constante comunicação com
alguns dos meus agentes. O que eu fiz e o que descobri se chama,
digamos, informação confidencial. Você tinha que estar fora do
caminho e, no entanto, a salvo. O que acabei de lhe contar fiquei
sabendo pelos meus agentes ontem à noite.
— Para descobrir o que descobriu, precisaria de espiões no
próprio governo sarkita.
— Bom, naturalmente.
Junz virou-se para o embaixador.
— Ah, por favor!
— Você acha surpreendente? Sem dúvida, Sark é conhecido
pela estabilidade do seu governo e pela lealdade do seu povo. O
motivo é bastante simples, já que o sarkita mais pobre é um nobre
em comparação com os florinianos e pode se considerar, por mais
falacioso que seja, membro de uma classe dominante.
“Pense, contudo, que Sark não é o mundo de bilionários que a
maioria da Galáxia acha que é. Um ano de residência lá deve ter
convencido você muito bem disso. Oitenta por cento da população
tem um padrão de vida em pé de igualdade com o de outros
mundos e não muito mais alto do que o padrão da própria Florina.
Sempre vai existir certo número de sarkitas que, em sua ganância,
vão estar suficientemente irritados com a pequena fração da
população claramente mergulhada em luxo para se prestar ao meu
uso.
“Ter associado a rebelião durante séculos apenas a Florina é a
maior fraqueza do governo sarkita. Eles se esqueceram de vigiar a
si mesmos.”
— Esses sarkitas menores, supondo que eles existem, não
podem fazer muito por você — opinou Junz.
— Individualmente, não. Coletivamente, eles formam
ferramentas úteis para os nossos homens mais importantes.
Existem até membros da verdadeira classe dominante que levaram
a sério as lições dos últimos dois séculos. Eles estão convencidos
de que, no final das contas, Trantor vai estabelecer seu domínio
sobre toda a Galáxia e, acredito eu, estão corretos. Até desconfiam
que o domínio final pode acontecer enquanto estiverem vivos e
preferem estabelecer por conta própria, com antecedência, um lado
vitorioso.
Junz fez uma careta.
— O senhor faz a política interestelar parecer um jogo muito
sujo.
— Ela é, mas reprovar a sujeira não a elimina. Tampouco todas
as suas facetas são uma completa sujeira. Pense no idealista.
Pense nos poucos homens no governo de Sark que servem Trantor
não por dinheiro nem por promessas de poder, mas só porque
acreditam sinceramente que um governo galáctico unificado é
melhor para a humanidade e que apenas Trantor pode concretizar
um governo assim. Eu tenho um desses homens, o meu melhor, no
Departamento de Segurança de Sark e, neste momento, ele está
trazendo o citadino.
— Você disse que ele tinha sido capturado — falou Junz.
— Pelo Depseg, foi. Mas o meu homem é o Depseg e meu
homem. — Por um momento, Abel franziu o cenho e ficou irritadiço.
— A utilidade dele vai ser drasticamente reduzida depois disso.
Depois que ele deixar o citadino escapar, vai ser rebaixado na
melhor das hipóteses e preso na pior. Ah, bem!
— O que está planejando agora?
— Não sei. Em primeiro lugar, precisamos pegar o nosso
citadino. Tenho certeza apenas de que ele vai estar no ponto de
chegada no espaçoporto. O que vai acontecer a partir daí… — Abel
encolheu os ombros, e sua pele envelhecida e amarelada esticou
como um pergaminho sobre as maçãs do rosto.
— Os nobres vão estar esperando o citadino também —
acrescentou ele, então. — Estão com a impressão de tê-lo nas
mãos e, até que um de nós o pegue, mais nada pode acontecer.
Mas essa afirmação estava errada.
····
Estritamente falando, todas as embaixadas estrangeiras de toda a
Galáxia mantinham direitos extraterritoriais sobre a área imediata de
sua localização. Em geral, isso significava nada mais do que um
desejo pio, exceto onde a força do planeta natal impunha respeito.
Na prática, significava que apenas Trantor conseguia de fato manter
a independência de seus embaixadores.
O terreno da embaixada trantoriana cobria mais ou menos um
quilômetro quadrado e meio, e, dentro dele, homens armados
usando vestimentas trantorianas e insígnia faziam a patrulha.
Nenhum sarkita podia entrar a menos que fosse convidado, e
nenhum sarkita armado em hipótese alguma. Evidentemente, o total
de homens e armas trantorianos podia resistir ao ataque
determinado de um único regimento sarkita blindado por não mais
do que duas ou três horas, mas atrás do pequeno grupo havia o
poder de retaliação da força organizada de um milhão de planetas.
A embaixada permanecia inviolável.
Podia até manter comunicação material direta com Trantor sem a
necessidade de passar pelos portos sarkitas de entrada ou
desembarque. Do porão de uma nave-mãe trantoriana pairando nos
arredores do limite de cento e sessenta quilômetros, que marcava a
fronteira entre o “espaço planetário” e o “espaço livre”, pequenas
gironaves, equipadas com palhetas para viagens atmosféricas com
o mínimo de gasto de energia, podiam surgir e mergulhar (meio em
ponto morto, meio guiado) até o pequeno porto dentro do terreno da
embaixada.
A gironave que aparecia agora sobre o porto da embaixada,
porém, não estava programada nem era trantoriana. A força-
mosquito da embaixada entrou em ação de forma rápida e
truculenta. Um canhão-agulha ergueu seu cano enrugado no ar.
Campos de força foram erguidos.
Mensagens de rádio corriam de um lado para o outro. Palavras
inflexíveis eram levadas pelos impulsos; palavras agitadas eram
enviadas de volta.
O tenente Camrum afastou-se do instrumento e disse:
— Não sei. Ele alega que vão atirar nele em dois minutos se não
deixarmos que aterrisse. Ele pede asilo.
O capitão Elyut acabara de entrar.
— Claro. Aí Sark vai alegar que estamos interferindo na política
e, se Trantor decidir deixar as coisas seguirem seu curso, você e eu
seremos esmagados com um gesto. Quem é ele?
— Não quer falar — respondeu o tenente, um tanto exasperado.
— Ele diz que quer conversar com o embaixador. Me diga o que
fazer, capitão.
O receptor de ondas curtas chiou e uma voz meio histérica disse:
— Tem alguém aí? Eu simplesmente vou descer, só isso. Sério!
Não posso esperar outro instante, estou dizendo. — A comunicação
terminou com um rangido.
— Grande Espaço, eu conheço essa voz — comentou o capitão.
— Deixe-o descer! É por minha responsabilidade!
As ordens foram dadas. A gironave desceu na vertical, mais
rápido do que deveria, resultado de haver uma mão inexperiente e
em pânico nos controles. O canhão-agulha manteve a mira.
O capitão estabeleceu uma conexão com Abel e a embaixada
entrou em estado de total emergência. A esquadrilha de naves
sarkitas que pairou lá no alto menos de dez minutos após a
aterrissagem da primeira embarcação manteve uma ameaçadora
vigília por duas horas, depois foi embora.
····
Eles se sentaram para jantar, Abel, Junz e o recém-chegado. Com
admirável desembaraço, considerando as circunstâncias, Abel
fingia-se de anfitrião despreocupado. Durante horas, abstivera-se de
perguntar por que um grande nobre precisava de asilo.
Junz estava com bem menos paciência.
— Pelo Espaço! O que vai fazer com ele? — chiou para Abel.
E Abel respondeu com um sorriso.
— Nada. Pelo menos até eu descobrir se tenho o meu citadino
ou não. Gosto de saber que cartas tenho na mão antes de colocar
fichas na mesa. E, já que ele veio até mim, a espera vai perturbá-lo
mais do que a nós.
Ele estava certo. Duas vezes o nobre começou um monólogo
rápido e duas vezes Abel interveio:
— Meu caro nobre! Ter uma conversa séria de estômago vazio é
desagradável. — Ele deu um sorriso gentil e pediu o jantar.
Enquanto tomava vinho, o nobre tentou de novo.
— Você deve querer saber por que deixei o continente de Steen
— ele começou.
— Não consigo imaginar nenhuma razão — admitiu Abel — para
o nobre de Steen ter fugido de embarcações sarkitas.
Steen os observava com cautela. Sua figura pequena e o rosto
fino e pálido revelavam a tensão provocada pelos cálculos mentais
que fazia. Seu cabelo comprido estava penteado em tufos
cuidadosamente presos por minúsculas presilhas que raspavam
umas contra as outras, produzindo um som farfalhante sempre que
ele mexia a cabeça, como que para chamar a atenção para o seu
desprezo pela atual moda sarkita de penteados com presilhas. Um
leve cheiro emanava de sua pele e de suas roupas.
Abel, que não deixou de notar Junz apertando de leve os lábios
e o modo breve como o espaçoanalista tocou o próprio cabelo curto
e lanoso, pensou como poderia ter sido engraçada a reação de Junz
se Steen tivesse surgido com a aparência típica: as bochechas
maquiadas com blush e as unhas pintadas de vermelho-cobre.
— Aconteceu uma reunião intercontinental hoje — contou Steen.
— É mesmo? — replicou Abel.
Abel ouviu a história da reunião sem a mínima mudança no
semblante.
— E nós temos vinte e quatro horas — falou Steen, indignado. —
São quatro da tarde agora. Francamente!
— E você é X — gritou Junz, que fora ficando cada vez mais
agitado durante a ladainha. — Você é X. Você veio para cá porque
ele o pegou. Bom, tudo bem. Abel, aqui está a prova da identidade
do espaçoanalista. Podemos usá-lo para forçá-los a entregar o
homem.
A voz fina de Steen teve dificuldade de se fazer ouvir diante do
firme tom barítono de Junz.
— Francamente. Estou dizendo, francamente. Você está louco.
Pare com isso! Me deixe falar, estou dizendo… Vossa Excelência,
não consigo lembrar o nome desse homem.
— Doutor Selim Junz, nobre.
— Muito bem, sr. Selim Junz, nunca vi esse idiota ou
espaçoanalista ou o que quer que ele seja na vida. Verdade! Nunca
ouvi uma bobagem dessas. Eu certamente não sou X. É sério! Vou
agradecer a vocês por nem sequer usar aquela carta estúpida.
Imagine acreditar no melodrama ridículo de Fife! Sinceramente!
Junz não arredou pé de sua opinião.
— Por que fugiu, então?
— Meu bom Sark, não ficou claro? Ah, eu poderia sufocar.
Francamente! Escute aqui, você não vê o que Fife está fazendo?
— Se puder explicar, nobre, não haverá interrupções — interveio
Abel em voz baixa.
— Bem, sou grato a você, pelo menos. — Ele continuou, com um
ar de dignidade ferida. — Os outros não me dão muita importância,
porque não vejo razão para me incomodar com documentos e
estatísticas e todos esses detalhes chatos. Com toda a sinceridade,
eu gostaria de saber para que serve o Serviço Público se um grande
nobre não pode ser um grande nobre?
“No entanto, isso não significa que eu seja um pateta, sabe, só
porque gosto do meu conforto. Sério! Talvez os outros estejam
cegos, mas eu consigo ver que Fife não liga a mínima para o
espaçoanalista. Acho que ele nem existe. Fife simplesmente teve a
ideia um ano atrás e vem forjando-a desde então.
“Ele está nos fazendo de bobos e idiotas. Verdade! E os outros
também. Tolos asquerosos! Ele organizou todo esse absurdo
perfeitamente horrível sobre idiotas e espaçoanalistas. Não me
surpreenderia se o nativo que supostamente está matando
patrulheiros às dúzias fosse apenas um dos espiões de Fife com
uma peruca ruiva. Ou, se for um nativo de fato, suponho que tenha
sido contratado por Fife.
“Fife seria bem capaz. Sério! Ele usaria nativos contra a sua
própria espécie. Ele é vil assim.
“De qualquer forma, é óbvio que ele está usando isso só como
desculpa para arruinar o resto de nós e se tornar ditador de Sark.
Não está claro para vocês?
“Não existe nenhum X, mas amanhã, a menos que tenha parado,
ele vai espalhar mensagens subetéricas cheias de conspirações e
declarações de emergência e vai se declarar Líder. Faz quinhentos
anos que não temos um líder em Sark, mas isso não impedirá Fife.
Para ele, a constituição que se dane. De verdade!
“Só eu pretendo detê-lo. Foi por isso que tive que partir. Se eu
ainda estivesse em Steen, estaria em prisão domiciliar.
“Assim que a reunião terminou, mandei verificarem o meu
próprio porto e, sabe, ele tinha tomado o controle. Foi um claro
desrespeito à autonomia continental. Foi o ato de um canalha. Sério!
Mas, por mais sórdido que seja, ele não é muito esperto. Achou que
alguns de nós poderiam tentar sair do planeta, então mandou
vigiarem os espaçoportos, mas — ele deu um sorriso raposino e
soltou o espectro de uma risada — não passou pela cabeça dele
vigiar os giroportos.
“Ele provavelmente pensou que não existia nenhum lugar seguro
no planeta para nós. Mas eu pensei na embaixada trantoriana. Fiz
mais do que os outros. Eles me cansam. Sobretudo o Bort. Você
conhece o Bort? Ele é terrivelmente bronco. Sujo de verdade. Fala
comigo como se tivesse algo de errado em ser limpo e cheirar bem.”
Ele encostou as pontas dos dedos no nariz e respirou com
delicadeza.
Abel pousou de leve a mão no pulso de Junz, já que ele se
remexia inquieto na cadeira.
— Você deixou uma família para trás — lembrou Abel. — Você
parou para pensar que Fife ainda pode usar uma arma contra você?
— Não dava para colocar todos os meus lindinhos na gironave.
— Ele corou um pouco. — Fife não se atreveria a tocar neles. Além
do mais, vou voltar para Steen amanhã.
— Como? — perguntou Abel.
Steen olhou para ele, atônito. O nobre entreabriu os lábios.
— Estou oferecendo uma aliança, Vossa Excelência. Você não
pode fingir que Trantor não tem interesse em Sark. Com certeza,
você vai dizer a Fife que qualquer tentativa de mudar a constituição
de Sark precisaria da intervenção de Trantor.
— Não vejo como isso possa ser feito, mesmo que eu achasse
que meu governo me apoiaria — falou Abel.
— Como não pode ser feito? — perguntou Steen, indignado. —
Se ele controlar todo o comércio de kyrt, vai elevar o preço, pedir
concessões para entrega rápida e todo tipo de coisa.
— Vocês cinco não controlam o preço dessa maneira?
Steen se jogou para trás na cadeira.
— Bom, é sério! Não sei todos os detalhes. Daqui a pouco você
vai me pedir números. Caramba, você é tão terrível quanto Bort. —
Então se restabeleceu e riu. — Estou só brincando, claro. O que
quero dizer é que, com Fife fora do caminho, Trantor poderia fazer
um acordo com o resto de nós. Em troca da sua ajuda, seria certo
que Trantor recebesse tratamento especial, ou talvez até uma
pequena participação no negócio.
— E como impediríamos que a intervenção se transformasse em
uma guerra galáctica?
— Ah, mas, realmente, você não vê? Está claro como o dia.
Vocês não seriam os agressores. Vocês estariam apenas evitando
que uma guerra civil interrompesse o comércio de kyrt. Eu
anunciaria que apelei para você em busca de ajuda, o que estaria a
mundos de distância de uma agressão. A Galáxia inteira ficaria do
seu lado. Claro, se Trantor se beneficiar depois, bom, não é da
conta de ninguém. De verdade!
Abel juntou os dedos nodosos e ficou olhando para eles.
— Não acredito que você queira mesmo unir forças com Trantor.
Um intenso olhar de ódio passou momentaneamente pelo rosto
de Steen, que exibia um sorriso débil.
— Antes Trantor do que Fife — disse ele.
— Não gosto do uso de uma força ameaçadora — falou Abel. —
Não podemos esperar e deixar as coisas se desenrolarem um
pouco…
— Não, não — gritou Steen. — Nem um dia. É sério! Se você
não for firme agora, neste exato momento, será tarde demais.
Depois que passar o prazo, ele já terá ido longe demais para recuar
sem sofrer uma humilhação. Se me ajudar agora, as pessoas de
Steen vão me apoiar, os outros grandes nobres vão se juntar a mim.
Se esperar um dia que seja, a máquina de propaganda de Fife vai
começar a funcionar. Vou ficar com fama de renegado. De verdade!
Eu! Eu! Um renegado! Ele vai usar todo o preconceito anti-Trantor
que conseguir angariar, e você sabe, sem querer ofender, que é
considerável.
— E se pedirmos que ele nos permita interrogar o
espaçoanalista?
— De que isso vai servir? Ele vai jogar uma parte contra a outra.
Vai nos dizer que o idiota floriniano é um espaçoanalista, mas vai
dizer a vocês que o espaçoanalista é um idiota floriniano. Você não
conhece esse homem. Ele é terrível!
Abel refletiu sobre o assunto. Murmurou de si para si, com o
dedo indicador contando delicadamente o tempo.
— Nós temos o citadino, sabe — disse ele então.
— Qual citadino?
— Aquele que matou os patrulheiros e o sarkita.
— Ah! Pois bem! Você acha que Fife vai se importar com isso,
quando se trata de tomar o planeta Sark inteiro?
— Acho que sim. Sabe, não é que temos o citadino. São as
circunstâncias da captura dele. Eu acho, nobre, que Fife vai me
ouvir, e que o fará com muita humildade.
Pela primeira vez desde que conhecera Abel, Junz sentiu
diminuir a frieza na voz do velho, sendo substituída por satisfação,
quase triunfo.
O CATIVO

Não era muito comum que lady Samia de Fife se sentisse frustrada.
Agora lhe ocorria algo sem precedentes, inconcebível: havia horas
que se sentia frustrada.
O comandante do espaçoporto era como o capitão Racety.
Educado, quase obsequioso, parecia infeliz, expressava suas
desculpas, negava a mínima disposição de contradizê-la e
continuava firme como o ferro contra seus desejos claramente
expressos.
Por fim, ela foi forçada a deixar de expressar seus desejos e
passar a exigir seus direitos como se fosse uma sarkita comum.
— Presumo que, como cidadã, eu tenha o direito de ir ao
encontro de qualquer embarcação que quiser.
Ela foi venenosa quanto a esse ponto.
O comandante pigarreou, e a expressão de dor em seu rosto
enrugado, para dizer o mínimo, tornou-se mais evidente e definida.
— Na verdade, milady, não queremos excluí-la de forma alguma
— ele falou por fim. — É só que recebemos ordens específicas do
nobre, seu pai, para proibi-la de ir ao encontro da nave.
— Você está me mandando sair do porto, então? — retrucou
Samia friamente.
— Não, milady. — O comandante estava feliz em chegar a um
meio-termo. — Não recebemos ordens para excluí-la do porto. Se a
senhorita quiser ficar aqui, pode ficar. Mas, com todo o respeito,
vamos ter que impedi-la de se aproximar das áreas de pouso.
Ele se foi, e Samia ficou no luxo inútil do seu carro terrestre
particular, uns trinta metros para dentro da entrada mais externa do
porto. Eles a estavam esperando e observando. Provavelmente
continuariam a observá-la. Se virasse uma roda que fosse mais para
dentro, pensou, indignada, provavelmente cortariam sua energia.
Ela cerrou os dentes. Era injusto da parte de seu pai fazer isso.
Eles eram todos iguais. Sempre a tratavam como se não
entendesse nada. No entanto, ela achava que entendia.
Ele se levantara da cadeira para cumprimentá-la, algo que nunca
fazia com mais ninguém agora que a Mãe estava morta. Ele a
abraçara, a apertara bastante, deixara todo o trabalho por ela. Até
mandara o secretário sair da sala porque sabia que ela sentia
repulsa pelo semblante pálido e estático do nativo.
Foi quase como no passado, antes de o Avô morrer, quando o
Pai ainda não se tornara um grande nobre.
— Mia, minha filha, eu contei as horas — disse ele. — Nunca
imaginei que Florina ficasse tão longe. Quando fiquei sabendo que
aqueles nativos tinham se escondido na sua nave, aquela que eu
tinha enviado só para garantir a sua segurança, quase fiquei louco.
— Papai! Não tinha nada com que se preocupar.
— Não tinha? Quase mandei a frota inteira para pegar você e
trazê-la com segurança militar completa.
Eles riram juntos da ideia. Minutos se passaram antes que
Samia trouxesse a conversa de volta ao assunto que a ocupava.
— O que vai fazer com os passageiros clandestinos, Pai? —
perguntou ela casualmente.
— Por que quer saber, Mia?
— Você não acha que eles planejam assassinar o senhor ou
algo do tipo?
Fife deu um sorriso.
— Você não devia pensar em coisas tão mórbidas.
— O senhor não acha, ou acha? — insistiu ela.
— Claro que não.
— Ótimo! Porque eu conversei com eles, Pai, e acredito que não
passam de pobres pessoas inofensivas. Não me importa o que diz o
capitão Racety.
— Eles infringiram um número considerável de leis para “pobres
pessoas inofensivas”, Mia.
— O senhor não pode tratá-los como criminosos comuns, Pai. —
Ela ergueu a voz, alarmada.
— De que outra forma devo tratá-los?
— O homem não é nativo. Ele vem de um planeta chamado
Terra e sofreu uma sondagem psíquica e não é responsável.
— Bem, nesse caso, querida, o Depseg vai perceber. Deixe esse
assunto com eles.
— Não, é importante demais para simplesmente deixar com eles.
Eles não entendem. Ninguém entende. Só eu!
— Só você no mundo inteiro, Mia? — perguntou ele em tom
indulgente, estendendo um dedo para acariciar um cacho que havia
caído sobre a testa da moça.
— Só eu! Só eu! — exclamou Samia com energia. — Todos os
outros vão pensar que ele é louco, mas eu tenho certeza de que não
é. Ele diz que Florina e toda a Galáxia correm um grande perigo. Ele
é espaçoanalista, e o senhor sabe que espaçoanalistas são
especialistas em cosmologia. Ele saberia!
— Como você sabe que ele é espaçoanalista, Mia?
— Ele falou.
— E quais são os detalhes sobre esse perigo?
— Ele não sabe. Aplicaram uma sonda psíquica nele. O senhor
não vê que essa é a melhor evidência de todas? Ele sabia demais.
Alguém estava interessado em manter tudo às escuras. — Seu tom
de voz instintivamente baixou e tornou-se roucamente confidencial.
Ela refreou um impulso de olhar por cima do ombro, então
continuou: — O senhor não vê que, se as teorias dele fossem
falsas, não haveria necessidade para uma sondagem psíquica?
— Por que não o mataram, se é esse o caso? — perguntou Fife,
e instantaneamente se arrependeu da pergunta. Era inútil provocar
a moça.
Samia pensou por um tempo em vão, depois falou:
— Se o senhor mandar o Depseg me deixar conversar com ele,
eu vou descobrir. Ele confia em mim. Sei que confia. Posso tirar
mais coisas dele do que o Depseg. Por favor, fale para o Depseg me
deixar vê-lo, Pai. É muito importante.
Fife apertou os punhos cerrados da moça com delicadeza e
sorriu para ela.
— Ainda não, Mia. Ainda não. Em algumas horas, vamos ter a
terceira pessoa nas nossas mãos. Depois disso, talvez.
— A terceira pessoa? O nativo responsável por todas as mortes?
— Exatamente. A nave que o está transportando vai aterrissar
em mais ou menos uma hora.
— E o senhor não vai fazer nada com a nativa e o
espaçoanalista até lá?
— Nadinha.
— Ótimo! Eu vou ao encontro da nave. — Ela se pôs de pé.
— Aonde você vai, Mia?
— Ao porto, Pai. Tenho muitas coisas para perguntar a esse
outro nativo. — Ela riu. — Vou lhe mostrar que a sua filha pode ser
uma detetive e tanto.
Fife não reagiu à sua risada.
— Prefiro que não vá — disse ele.
— Por que não?
— É essencial que não haja nada fora do comum quanto à
chegada desse homem. Você chamaria atenção demais no porto.
— E daí?
— Não posso explicar política para você, Mia.
— Política, bah! — Ela se inclinou em direção a ele, deu-lhe um
beijo no meio da testa e sumiu.
Agora estava confinada dentro do carro no porto sem poder fazer
nada, enquanto lá no alto havia um pontinho cada vez maior no céu,
um pontinho escuro contra a claridade do final de tarde.
Ela apertou o botão que abria o porta-luvas e apanhou os óculos
de polo. Normalmente, esses dispositivos eram usados para seguir
as estripulias rodopiantes dos veículos individuais rápidos que
faziam parte do polo estratosférico. Eles também podiam ser usados
para coisas mais sérias. Ela os levou aos olhos e o pontinho que
descia tornou-se uma nave em miniatura, deixando o brilho
avermelhado do motor bem visível.
Ela ao menos veria o homem quando saíssem, descobriria
quanto fosse possível com o sentido da visão, conseguiria uma
entrevista de algum modo, de algum modo, depois disso.
····
Sark preencheu a visitela. Um continente e metade de um oceano,
ocultos em parte pelo branco algodão desbotado das nuvens,
estava ali embaixo.
— O espaçoporto não vai estar fortemente vigiado — disse
Genro; suas palavras um pouquinho irregulares eram a única
indicação de que a melhor parte de sua mente estava forçosamente
nos controles diante dele. — Isso foi sugestão minha também. Falei
que qualquer tratamento estranho dispensado à chegada da nave
poderia alertar Trantor de que está acontecendo alguma coisa. Eu
disse que o sucesso dependia de que Trantor não soubesse em
nenhum momento da real situação até que fosse tarde demais.
Bem, não importa.
Terens deu de ombros, desanimado.
— Qual é a diferença?
— Muita, para você. Vou usar a área de pouso mais próxima ao
Portão Leste. Você vai sair pela saída de segurança na parte de trás
assim que eu aterrissar. Ande rápido, mas não rápido demais em
direção ao portão. Tenho alguns documentos que podem ajudar
você a passar sem dificuldade e podem não ajudar. Fica por sua
conta tomar as medidas necessárias se houver algum problema.
Com base no passado, acredito que posso confiar em você a esse
ponto. Do lado de fora do portão, haverá um carro esperando para
levá-lo até a embaixada. Isso é tudo.
— E você?
Aos poucos, Sark estava passando de uma enorme esfera
amorfa de tons marrons e verdes e azuis e brancos-nuvem
ofuscantes para algo mais vivo, para uma superfície cortada por rios
e encrespada por montanhas.
O sorriso de Genro era frio e sem graça.
— Preocupe-se consigo mesmo. Quando descobrirem que você
foi embora, pode ser que me matem como traidor. Se me
encontrarem completamente impossibilitado e fisicamente incapaz
de deter você, pode ser que apenas me rebaixem ao nível de tolo.
Esse último, suponho, é preferível, então lhe peço que, antes de
sair, use o chicote neurônico em mim.
— Você sabe como é um chicote neurônico? — perguntou o
citadino.
— Sei bem. — Havia gotículas de transpiração nas têmporas
dele.
— Como sabe que não vou matá-lo depois? Sou um matador de
nobres, sabe.
— Eu sei. Mas me matar não vai ajudá-lo. Só vai desperdiçar o
seu tempo. Já corri riscos maiores.
A superfície de Sark vista a partir da visitela estava aumentando;
sua extremidade escapava rapidamente ao limite de visibilidade, seu
centro expandia-se e novas extremidades escapavam, por sua vez,
à vista. Era possível ver algo como o colorido de uma cidade sarkita.
— Espero — disse Genro — que você não tenha a ideia de
atacar sozinho. Sark não é lugar para isso. Ou é Trantor ou são os
nobres. Lembre-se.
A vista era definitivamente a de uma cidade agora, e a faixa
marrom esverdeada nos arredores se ampliou e se tornou um
espaçoporto lá embaixo. O lugar flutuava em direção a eles em um
ritmo cada vez mais lento.
— Se Trantor não estiver com você dentro de uma hora, os
nobres vão pegá-lo antes que o dia acabe — falou Genro. — Não
dou garantias sobre o que Trantor vai fazer com você, mas posso
dar garantias sobre o que Sark vai fazer com você.
Terens estivera no Serviço Público. Ele sabia o que Sark faria
com um matador de nobres.
O porto se mantinha estável na visitela, mas Genro não olhava
mais para ele. Passara aos instrumentos, direcionando o feixe de
pulso para baixo. A nave virou-se lentamente no ar, a mil e
seiscentos metros de altura, e posicionou-se com a parte traseira
para baixo.
Noventa metros acima da área de pouso, os motores fizeram um
grande estrondo. Terens pôde sentir seu tremor sobre as molas
hidráulicas. Ele ficou zonzo.
— Pegue o chicote — disse Genro. — Rápido. Cada segundo é
importante. A porta de emergência vai se fechar depois que você
passar. Eles vão demorar cinco minutos para se perguntar por que
não abro a porta principal, outros cinco minutos para arrombar e
outros cinco minutos para encontrar você. Você tem quinze minutos
para sair do porto e entrar no carro.
O tremor parou e, no denso silêncio, Terens sabia que eles
haviam feito contato com Sark.
Os campos diamagnéticos de movimentação assumiram o
controle. O iate inclinou-se e tombou lentamente sobre a lateral.
— Agora! — exclamou Genro. Seu uniforme estava molhado de
suor.
Terens, com a cabeça rodando e olhos que se recusavam a se
concentrar, ergueu o chicote neurônico…
····
Terens sentiu o frio cortante de um outono sarkita. Ele passara anos
em suas rigorosas estações até quase esquecer o suave verão
eterno de Florina. Agora, seus dias no Serviço Público voltavam-lhe
à memória como se nunca houvesse deixado esse planeta de
nobres.
Só que naquele momento era um fugitivo, marcado pelo maior
dos crimes: o assassinato de um nobre.
Ele caminhava no mesmo ritmo que as batidas do seu coração.
Às suas costas estava a nave e dentro dela estava Genro,
paralisado pela agonia do chicote. A porta se fechara suavemente
após a sua passagem, e ele descia uma ampla vereda pavimentada.
Havia trabalhadores e mecânicos aos montes à sua volta. Cada um
tinha o próprio trabalho e os próprios problemas. Eles não paravam
para olhar no rosto de um homem. Não tinham motivo para isso.
Será que alguém o vira, de fato, sair da nave?
Ele disse a si mesmo que não, ou a essa altura haveria algazarra
de perseguição.
Tocou rapidamente a boina. Ela ainda cobria as suas orelhas e o
pequeno medalhão que havia nela agora era macio ao toque. Genro
dissera que ele serviria como identificação. Os homens de Trantor
estariam prestando atenção especificamente àquele medalhão,
cintilando ao sol.
Ele poderia tirá-lo, perambular por conta própria, encontrar o
caminho até outra nave… de alguma maneira. Ele podia fugir de
Sark… de alguma maneira. Ele escaparia… de alguma maneira.
Havia muitos “de alguma maneira”! Em seu coração ele sabia
que chegara ao fim e, como Genro dissera, ou era Trantor ou era
Sark. Ele odiava e temia Trantor, mas sabia que não poderia nem
deveria ser Sark em nenhuma hipótese.
····
— Você! Ei, você!
Terens ficou paralisado. Ergueu os olhos em puro estado de
pânico. O portão estava a trinta metros de distância. Se ele
corresse… Mas não permitiriam que um homem correndo saísse.
Ela algo que ele não ousava fazer. Não devia correr.
A jovem olhava para fora pelo vidro de um carro como Terens
jamais vira, nem durante quinze anos em Sark. O veículo brilhava
com o metal e cintilava com gemmita translúcida.
— Venha aqui — ela falou.
As pernas de Terens o levaram devagar até o carro. Genro
dissera que o carro de Trantor estaria esperando do lado de fora do
porto. Ou será que não fora isso? E será que mandariam uma
mulher em uma missão daquelas? Uma garota, na verdade. Uma
garota negra, de rosto bonito.
— Você chegou na nave que acabou de aterrissar, não chegou?
— perguntou ela.
Ele permaneceu calado.
Ela ficou impaciente.
— Qual é, eu vi você sair da nave! — Ela deu uma batidinha nos
óculos de polo. Ele já vira esses óculos antes.
— Cheguei, cheguei — murmurou Terens. Ele falou: — Você
sabe quem eu sou. — Ele ergueu os dedos momentaneamente até
o medalhão.
Sem nenhum barulho de força motriz, o carro recuou e virou.
No portão, Terens encolheu-se no estofado macio e gelado
revestido de kyrt, mas não havia motivo para cautela. A moça falou
peremptoriamente e eles passaram.
— Este homem está comigo. Sou Samia de Fife — disse ela.
Levou alguns segundos para o cansado Terens ouvir e entender
aquelas palavras. Quando fez um movimento brusco e tenso para a
frente, o carro estava percorrendo as vias expressas a cem por
hora.
····
Um trabalhador dentro do porto alçou os olhos de onde estava e
murmurou breves palavras na lapela. Depois entrou no prédio e
voltou ao trabalho. Seu superintendente franziu o cenho e anotou
mentalmente que devia falar com Tip sobre o hábito de se demorar
lá fora para fumar cigarros durante meia hora de cada vez.
Do lado de fora do porto, um homem em um carro terrestre falou
para o outro com irritação:
— Entrou em um carro com uma garota? Que carro? Que
garota? — Apesar das roupas sarkitas, seu sotaque definitivamente
pertencia aos planetas arcturianos do império trantoriano.
Seu companheiro era sarkita, bastante versado em
visicomunicados à imprensa. Quando o carro em questão passou
pelo portão e pegou velocidade, ao começar a guinar e subir para o
nível da via expressa, ele se soergueu no assento e gritou:
— É o carro de lady Samia de Fife. Não existe outro igual.
Grande Galáxia, o que vamos fazer?
— Segui-los — disse o outro em poucas palavras.
— Mas lady Samia…
— Ela não significa nada para mim. Não deveria significar para
você também. Do contrário, o que você está fazendo aqui?
O carro deles estava fazendo a volta, subindo para as amplas
faixas quase vazias nas quais só eram permitidas as viagens mais
rápidas em carro aéreo.
— Não podemos alcançar aquele carro — resmungou o sarkita.
— Assim que ela nos vir, vai eliminar a resistência. Aquele carro
pode chegar a duzentos e cinquenta.
— Ela está a cem por enquanto — falou o arcturiano.
Depois de um tempo, ele disse:
— Ela não está indo para o Depseg. Isso é certo.
Depois de mais um tempo, acrescentou:
— Ela não está indo para o palácio de Fife.
Houve outro intervalo, então ele comentou:
— Pelo espaço, não faço ideia de para onde ela está indo. Vai
sair da cidade de novo.
— Como sabemos que é o matador de nobres que está lá? —
perguntou o sarkita. — E se for um esquema para nos afastar do
posto? Ela não está tentando se livrar de nós e não usaria um carro
desses se não quisesse ser seguida. Não dá para deixar de ver em
um raio de pouco mais de três quilômetros.
— Eu sei, mas Fife não mandaria a filha para nos tirar do
caminho. Um esquadrão de patrulheiros teria feito o trabalho melhor.
— Talvez não seja a lady de verdade no carro.
— Nós vamos descobrir, colega. Ela está diminuindo a
velocidade. Ultrapasse e pare depois de uma curva!
····
— Quero conversar com você — disse a garota.
Terens concluiu que não era o tipo comum de armadilha que
considerara ser a princípio. Ela era a lady de Fife. Devia ser. Não
pareceu lhe passar pela cabeça que alguém pudesse ou devesse
impedi-la.
Ela jamais olhara para trás para ver se estava sendo seguida.
Por três vezes ele notara o mesmo carro logo atrás quando viraram,
mantendo distância, nem se aproximando nem se afastando.
Não era só um carro. Isso era certo. Poderia ser Trantor, o que
seria bom. Poderia ser Sark e, nesse caso, a lady seria um bom tipo
de refém.
— Estou pronto para falar — disse ele.
— Você estava na nave que trouxe o nativo de Florina? —
perguntou ela. — Aquele procurado por todos aqueles
assassinatos?
— Eu falei que estava.
— Muito bem. Eu trouxe você aqui para que não houvesse
nenhuma interferência. O nativo foi interrogado durante a viagem
para Sark?
Tanta ingenuidade, pensou Terens, não pode ser fingimento. Ela
realmente não sabia quem ele era.
— Foi — respondeu ele com cautela.
— Você estava presente no interrogatório?
— Estava.
— Ótimo. Eu pensei que estivesse. Por que saiu da nave, a
propósito?
Essa, pensou Terens, deveria ter sido a primeira pergunta.
— Eu devia levar — falou — um relatório especial para… — Ele
hesitou.
Ela se agarrou à hesitação com avidez.
— Para o meu pai? Não se preocupe com isso. Vou dar a você
total proteção. Vou dizer que veio comigo porque eu mandei.
— Muito bem, milady.
A expressão “milady” penetrou bem fundo em sua consciência.
Ela era uma lady, a maior daquela terra, e ele um floriniano. Um
homem capaz de matar patrulheiros também poderia aprender
facilmente a matar nobres, e um matador de nobres poderia, do
mesmo modo, olhar no rosto de uma lady.
Ele a fitou, com olhos firmes e perscrutadores. Ergueu a cabeça
e olhou para ela de cima a baixo.
Era muito bonita.
E, sendo a mais importante lady daquela terra, não se deu conta
do seu olhar.
— Quero que me conte tudo o que ouviu no interrogatório —
disse ela. — Quero saber tudo o que o nativo falou para você. É
muito importante.
— Posso saber por que a senhorita está interessada no nativo,
milady?
— Não pode — respondeu ela terminantemente.
— Como quiser, milady.
Ele não sabia o que ia dizer. Com metade da consciência,
esperava que o carro que os seguia os alcançasse. Com a outra
metade, prestava cada vez mais atenção ao rosto e ao corpo da
bela garota sentada ao seu lado.
Os florinianos do Serviço Público e aqueles trabalhando como
citadinos eram, teoricamente, celibatários. Na prática, a maioria
burlava essa restrição quando podia. Terens fizera o que se atrevera
a fazer e o que era conveniente nesse sentido. Na melhor das
hipóteses, suas experiências nunca haviam sido satisfatórias.
Portanto, era mais importante ainda o fato de que ele jamais
estivera tão perto de uma garota bonita em um carro tão luxuoso e
em condições de tamanha privacidade.
Ela estava esperando que ele falasse, com os olhos escuros —
tão escuros — flamejando de interesse, os lábios carnudos e
vermelhos entreabertos em antecipação; uma figura ainda mais bela
por estar usando kyrt. Ela não tinha a menor consciência de que
qualquer um, qualquer um pudesse se atrever a nutrir pensamentos
perigosos a respeito da lady de Fife.
A metade da consciência que esperava os perseguidores
desvaneceu.
De repente, ele descobriu que o assassinato de um nobre não
era o maior dos crimes, afinal.
Ele não estava completamente ciente de ter se mexido. Sabia
apenas que o corpo pequeno da moça estava em seus braços, que
aquele corpo se distendeu, que, por um instante, ela gritou, e então
ele abafou o grito com os lábios…
····
Havia mãos sobre seu ombro e um fluxo de ar frio nas suas costas
que entrara pela porta aberta do carro. Seus dedos tatearam em
busca da arma, tarde demais. Ela fora arrancada de sua mão.
Samia ofegou, sem palavras.
— Você viu o que ele fez? — comentou o sarkita, horrorizado.
— Esqueça isso! — exclamou o arcturiano.
Ele colocou um pequeno objeto preto no bolso e fechou a
abertura, alisando o tecido.
— Pegue-o — ele falou.
O sarkita arrastou Terens para fora do carro com a energia da
fúria.
— E ela deixou — murmurou ele. — Ela deixou.
— Quem são vocês? — gritou Samia com súbito vigor. — Meu
pai mandou vocês?
— Sem perguntas, por favor — disse o arcturiano.
— Você é um estrangeiro — replicou Samia com raiva.
— Por Sark, vou arrebentar a cabeça dele — falou o sarkita. Ele
cerrou o punho.
— Pare! — exclamou o arcturiano. Ele agarrou o punho do
sarkita e o forçou a abaixar o braço.
— Existem limites — resmungou o sarkita em tom taciturno. —
Posso tolerar os assassinatos dos nobres. Eu próprio gostaria de
matar alguns. Mas ficar parado vendo um nativo fazer o que ele fez
é demais para mim.
— Nativo? — disse Samia, com a voz estranhamente aguda.
O sarkita inclinou-se para a frente e arrancou com violência a
boina de Terens. O citadino empalideceu, mas não se mexeu. Não
tirou os olhos da garota e seu cabelo claro agitou-se de leve ao
sabor da brisa.
Impotente, Samia voltou a recostar-se no assento do carro até
onde pôde, e então, com um rápido movimento, cobriu o rosto com
as duas mãos, a pele empalidecendo sob a pressão dos dedos.
— O que vamos fazer com ela? — perguntou o sarkita.
— Nada.
— Ela viu a gente. Vai mandar o planeta inteiro nos procurar
antes de termos percorrido um quilômetro.
— Você vai matar a lady de Fife? — perguntou o arcturiano
sarcasticamente.
— Bom, não. Mas podemos destruir o carro dela. Quando ela
encontrar um radiofone, vamos estar bem.
— Não é necessário. — O arcturiano inclinou-se na direção do
carro. — Milady, só tenho um minuto. A senhorita pode me ouvir?
Ela não se mexeu.
— É melhor me ouvir — continuou o arcturiano. — Lamento tê-la
interrompido em um momento de ternura, mas, por sorte, fiz uso
desse momento. Agi rápido e consegui registrar a cena com uma
tricâmera. Não estou blefando. Vou transferir o negativo para um
lugar seguro minutos depois que eu sair e, portanto, qualquer
interferência da sua parte vai me forçar a ser desagradável. Tenho
certeza de que me entende.
Ele virou as costas.
— Ela não vai dizer nada sobre isso. Nadinha. Venha comigo,
citadino.
Terens o seguiu. Não foi capaz de olhar para o rosto pálido e
aflito no carro.
O que quer que fosse acontecer agora, ele realizara um milagre.
Por um instante, beijara a lady mais orgulhosa de Sark, sentindo o
toque fugaz de seus lábios macios e perfumados.
O ACUSADO

A diplomacia tem uma linguagem e um conjunto de atitudes só seus.


As relações entre os representantes dos estados soberanos, se
conduzidas estritamente de acordo com o protocolo, são estilizadas
e desumanizadas. A expressão “consequências desagradáveis”
torna-se sinônimo de guerra, e “ajuste adequado”, de rendição.
Quando estava por conta própria, Abel preferia deixar de lado o
papo furado diplomático. Com um feixe pessoal firme conectando-o
com Fife, poderia ter sido apenas um velho conversando
amigavelmente enquanto toma uma taça de vinho.
— Foi difícil achar você, Fife — disse ele.
Fife sorriu. Parecia tranquilo e imperturbável.
— Dia agitado, Abel.
— É. Eu ouvi falar alguma coisa.
— Steen? — retorquiu Fife em tom casual.
— Em parte. Steen está conosco faz umas sete horas.
— Eu sei. É minha culpa também. Você está considerando a
possibilidade de entregá-lo para nós?
— Receio que não.
— Ele é um criminoso.
Abel riu e girou a taça que tinha na mão, observando as
borbulhas preguiçosas.
— Acho que podemos fazer de conta que ele é um refugiado
político. A lei interestelar vai protegê-lo em território trantoriano.
— O seu governo vai apoiá-lo?
— Acho que vai, Fife. Não passei trinta e sete anos na
diplomacia sem saber o que Trantor vai apoiar e o que não vai.
— Posso pedir para Sark solicitar o seu regresso.
— De que isso serviria? Sou um homem pacífico que você
conhece bem. Meu sucessor poderia ser qualquer um.
Houve uma pausa. O semblante leonino de Fife contraiu-se.
— Acho que você tem uma sugestão.
— Tenho. Você está com um dos nossos homens.
— Qual dos seus homens?
— Um espaçoanalista. Um nativo do planeta Terra, que, por
sinal, faz parte do território trantoriano.
— Steen lhe contou isso?
— Entre outras coisas.
— Ele viu esse terráqueo?
— Ele não disse que viu.
— Bem, ele não viu. Nessas circunstâncias, duvido que você
possa confiar na palavra dele.
Abel pousou a taça. Entrelaçou as mãos frouxamente sobre o
colo e falou:
— Mesmo assim, tenho certeza de que o terráqueo existe. Eu
lhe digo, Fife, que nós deveríamos chegar a um acordo. Eu estou
com Steen e você está com o terráqueo. De certo modo, estamos
empatados. Antes de você continuar com os seus planos atuais,
antes que o seu ultimato expire e o seu golpe de Estado aconteça,
por que não uma reunião sobre a situação do kyrt em geral?
— Não vejo necessidade. O que está acontecendo em Sark
agora é uma questão puramente interna. Estou disposto a garantir
pessoalmente que não haverá intervenção no comércio de kyrt,
independentemente dos acontecimentos políticos que vão ocorrer
aqui. Acredito que isso deve pôr fim aos interesses legítimos de
Trantor.
Abel bebeu vinho, aparentando estar pensativo.
— Parece-me que temos um segundo refugiado político — falou
ele. — Um caso curioso. Um dos seus subordinados, a propósito.
Um citadino. Myrlyn Terens, ele se chama.
Os olhos de Fife faiscaram de repente.
— Nós meio que desconfiávamos. Por Sark, Abel, existe um
limite para a interferência descarada de Trantor neste planeta. O
homem que vocês sequestraram é um assassino. Vocês não podem
transformá-lo em refugiado político.
— Bem, e então, você quer esse homem?
— Você tem um acordo em mente? É isso?
— A reunião da qual falei.
— Por um assassino floriniano. Claro que não.
— Mas o modo como o citadino conseguiu escapar e chegar até
nós é bastante curioso. Pode ser que você se interesse…
····
Junz andava de um lado para o outro, chacoalhando a cabeça. A
noite já estava bem avançada. Ele gostaria de conseguir dormir,
mas sabia que precisaria de somnin de novo.
— Eu poderia ter precisado ameaçar o uso de força, como
sugeriu Steen — disse Abel. — Teria sido ruim. Os riscos teriam
sido terríveis e os resultados, incertos. No entanto, até o citadino ser
trazido para nós, eu não via alternativa, exceto, claro, a política de
não fazer nada.
Junz chacoalhou a cabeça com violência.
— Não. Algo tinha que ser feito. Porém, tornou-se chantagem.
— Tecnicamente, acho que sim. O que você queria que eu
fizesse?
— Exatamente o que fez. Não sou hipócrita, Abel. Ou tento não
ser. Não vou condenar os seus métodos quando pretendo fazer
pleno uso dos resultados. Mas, e a garota?
— Não vão machucá-la enquanto Fife honrar seu compromisso.
— Tenho pena dela. Comecei a não gostar dos nobres sarkitas
pelo que fizeram a Florina, mas não posso deixar de sentir pena
dela.
— Como indivíduo, sim. Mas a verdadeira responsabilidade é de
Sark em si. Escute, meu velho, você já beijou uma garota em um
carro terrestre?
Uma ponta de sorriso fez os cantos da boca de Junz se
mexerem.
— Já.
— Eu também, embora tenha que recorrer a lembranças mais
antigas do que você, imagino. Minha neta mais velha provavelmente
está fazendo esse tipo de coisa neste momento, não seria de
surpreender. O que é um beijo roubado em um carro terrestre,
afinal, se não a expressão da emoção mais natural da Galáxia?
“Escute, parceiro. Nós temos uma garota, evidentemente de
posição social elevada, que, por conta de um equívoco, se vê no
mesmo carro que, digamos, um criminoso. Ele aproveita a
oportunidade para beijá-la. Acontece em um impulso e sem o
consentimento dela. Como ela deveria se sentir? Como o pai dela
deveria se sentir? Zangado? Talvez. Incomodado? Com certeza.
Bravo? Ofendido? Insultado? Sim, tudo isso. Mas desonrado? Não!
Desonrado a ponto de estar disposto a pôr em risco questões de
Estado importantes para evitar a exposição? Bobagem.
“Mas é exatamente essa a situação, e só poderia acontecer em
Sark. Lady Samia não tem culpa de nada, a não ser de teimosia e
certa ingenuidade. Tenho certeza de que ela já foi beijada antes. Se
tivesse beijado de novo e se tivesse beijado inúmeras vezes
qualquer um que não fosse um floriniano, ninguém diria nada. Mas
ela beijou um floriniano.
“Não importa que ela não soubesse que ele era floriniano. Não
importa que ele tenha forçado esse beijo. Tornar pública a foto que
temos de lady Samia nos braços de um floriniano tornaria a vida
insuportável para ela e para o pai dela. Eu vi a cara do Fife
enquanto ele olhava para a reprodução. Não dava para saber com
certeza que o citadino era um floriniano. Ele usava vestimentas
sarkitas e uma boina que cobria bem o seu cabelo. A pele dele era
pálida, mas isso não permitia chegar a nenhuma conclusão. No
entanto, Fife sabia que muitos acreditariam no boato com prazer,
muitos interessados no escândalo e no sensacionalismo e no fato
de a foto ser considerada uma prova incontestável. E ele sabia que
seus inimigos políticos capitalizariam o máximo que pudessem em
cima disso. Você pode chamar de chantagem, Junz, e talvez seja,
mas é uma chantagem que não funcionaria em nenhum outro
planeta da Galáxia. O próprio sistema social doentio nos deu essa
arma e não tenho pudor de usá-la.”
Junz suspirou.
— Qual foi o acordo final?
— Vamos nos reunir amanhã ao meio-dia.
— Então ele adiou o ultimato?
— Indefinidamente. Vou estar no escritório dele em pessoa.
— Esse é um risco necessário?
— Não é tão arriscado assim. Haverá testemunhas. E estou
ansioso para estar na presença desse espaçoanalista que você vem
procurando há tanto tempo.
— Eu vou participar?
— Ah, sim. O citadino também vai. Vamos precisar dele para
identificar o espaçoanalista. E Steen, claro. Todos vocês vão estar
presentes através de personificação trimênsica.
— Obrigado.
O embaixador trantoriano abafou um bocejo e piscou para Junz,
com os olhos cheios d’água.
— Agora, se não se importa, não durmo faz dois dias e uma
noite e receio que meu corpo velho não suporte mais antisomnina.
Preciso dormir.
····
Com a personificação trimênsica aperfeiçoada, reuniões importantes
raramente aconteciam cara a cara. Fife teve a intensa sensação de
um quê de verdadeira indecência na presença material do velho
embaixador. Não se podia dizer que sua tez trigueira houvesse
escurecido, mas as linhas do seu rosto tinham um ar de raiva
silenciosa.
Ele tinha de ficar em silêncio. Não podia dizer nada. Podia
apenas olhar soturnamente para o homem que o encarava.
Abel! Um velho caquético de roupas gastas com um milhão de
mundos atrás dele.
Junz! Um interferente de pele negra e cabelo lanoso cuja
perseverança precipitara a crise.
Steen! O traidor! Com medo de olhar direto nos seus olhos!
O citadino! Olhar para ele era a coisa mais difícil de todas. Era o
nativo que desonrara sua filha com um toque e que, no entanto,
podia permanecer seguro e intocável atrás dos muros da embaixada
trantoriana. Fife teria ficado feliz em cerrar os dentes e bater na
mesa se estivesse sozinho. Nas atuais circunstâncias, nenhum
músculo do seu rosto devia se mexer, embora se rasgasse por trás
daquele esforço.
Se Samia não houvesse… Ele abandonou esse pensamento.
Sua própria negligência cultivara a teimosia dela, e ele não podia
culpá-la por isso agora. Ela não tentara se desculpar nem atenuar
sua própria culpa. Ela lhe contara toda a verdade sobre suas
tentativas particulares de bancar a espiã interestelar e a forma
horrível como tudo acabara. Confiara completamente, em sua
vergonha e amargura, que ele compreenderia, e ela teria essa
compreensão, se isso significasse a ruína da estrutura que ele vinha
construindo.
— Fui forçado a participar desta reunião — disse ele. — Não
vejo motivo para dizer nada. Estou aqui para ouvir.
— Acredito que Steen gostaria de ser o primeiro a falar — disse
Abel.
Os olhos de Fife se encheram de um desdém que ferroou Steen.
— Você me fez recorrer a Trantor, Fife — Steen gritou sua
resposta. — Você violou o princípio de autonomia. Você não podia
esperar que eu fosse tolerar isso. Francamente.
Fife não falou nada e Abel interveio, não sem um pouco de
desdém:
— Vá direto ao ponto, Steen. Você falou que tinha algo a dizer.
Diga.
As bochechas pálidas de Steen, mesmo sem blush, coraram.
— Vou falar, e vou falar agora mesmo. Claro que não alego ser o
detetive que o nobre de Fife diz ser, mas sei pensar. Sério! Eu andei
pensando. Fife tinha uma história a contar ontem sobre um
misterioso traidor que chamou de X. Eu podia perceber que era só
um falatório para ele poder declarar uma emergência. Ele não me
enganou nem um minuto.
— Não existe nenhum X? — indagou Fife em voz baixa. —
Então por que você fugiu? Um homem que foge não precisa de
nenhuma outra acusação.
— Ah, é assim então? Mesmo? — gritou Steen. — Bem, eu
sairia correndo de um prédio em chamas mesmo que não fosse eu
mesmo o responsável pelo incêndio.
— Continue, Steen — disse Abel.
Steen umedeceu os lábios e passou a examinar minuciosamente
as unhas. Alisava-as com delicadeza enquanto falava.
— Mas aí eu pensei: por que inventar essa história em particular
com todas as suas implicações e detalhes? Não é o estilo dele.
Verdade! Não é o estilo de Fife. Eu o conheço. Todos nós o
conhecemos. Ele não tem imaginação nenhuma. Sua Excelência.
Um homem bruto! Quase tão ruim quanto Bort.
Fife ficou carrancudo.
— Ele está falando alguma coisa, Abel, ou está balbuciando?
— Continue, Steen — disse Abel.
— Vou continuar, se vocês me deixarem falar. Puxa vida! De que
lado você está? Depois do jantar eu perguntei a mim mesmo: por
que um homem como Fife inventaria uma história dessas? Ele não
poderia ter inventado tais coisas. Não com a cabeça dele. Então era
verdade. Tinha que ser verdade. E, claro, patrulheiros tinham sido
mortos, embora Fife fosse bem capaz de dar um jeito de isso
acontecer.
Fife deu de ombros.
— Quem é X? — continuou Steen. — Não sou eu. De verdade!
Sei que não sou eu. E admito que só poderia ter sido um grande
nobre. Mas qual dos grandes nobres sabia mais sobre esse
assunto, afinal? Qual dos grandes nobres vem tentando usar a
história do espaçoanalista há um ano para assustar os outros a
ponto de participarem do que ele chama de “esforço conjunto” e o
que eu chamo de rendição a uma ditadura do Fife? Vou dizer quem
é X.
Steen levantou-se; sua cabeça roçava a borda do cubo-receptor
e se achatava quando a parte mais alta desaparecia. Ele apontou
um dedo trêmulo e disse:
— Ele é X. O nobre de Fife. Ele encontrou o espaçoanalista. Ele
o tirou do caminho quando viu que o resto de nós não ficou
impressionado com as suas afirmações idiotas na nossa primeira
reunião, e depois o trouxe de volta quando já tinha organizado um
golpe militar.
Fife virou-se cansadamente para Abel.
— Ele já terminou? Se terminou, tire-o da reunião. Ele é uma
ofensa insuportável para qualquer homem decente.
— Você tem algum comentário a fazer sobre o que ele diz? —
perguntou Abel.
— Claro que não. Não vale a pena comentar. O homem está
desesperado. Ele vai falar qualquer coisa.
— Você não pode simplesmente ignorar o que eu disse, Fife —
gritou Steen. Ele olhou para os demais. Seus olhos se estreitaram, e
a pele das narinas estava branca de tensão. Ele continuou de pé. —
Escutem. Ele contou que seus investigadores encontraram registros
em uma clínica médica. Contou que o médico morreu em um
acidente depois de diagnosticar o espaçoanalista como vítima de
uma sondagem psíquica. Falou que foi um assassinato cometido por
X para manter a identidade do espaçoanalista em segredo.
Pergunte a ele. Pergunte a ele se não foi isso que ele disse.
— E se foi? — retrucou Fife.
— Então pergunte a ele como conseguiria acessar os registros
da clínica de um médico que estava morto e enterrado havia meses
se não estivesse com esses registros o tempo todo. Sério!
— Isso é bobagem — replicou Fife. — Podemos desperdiçar o
nosso tempo indefinidamente desse jeito. Outro médico assumiu a
clínica do morto e os registros dele também. Algum de vocês acha
que os registros médicos são destruídos junto com o médico?
— Não, claro que não — respondeu Abel.
Steen gaguejou, então se sentou.
— O que vem agora? — perguntou Fife. — Algum de vocês tem
mais alguma coisa a dizer? Mais acusações? Mais qualquer coisa?
— Ele falava baixo. A amargura transparecia em sua voz.
— Bem, essa foi a fala de Steen, e nós vamos deixar passar —
falou Abel. — Agora Junz e eu estamos aqui por outro tipo de
assunto. Nós gostaríamos de ver o espaçoanalista.
Fife mantivera as mãos pousadas sobre a mesa até então.
Naquele momento, ergueu-as e baixou-as, agarrando a borda da
mesa. Franziu as sobrancelhas pretas.
— Temos sob custódia um homem de mentalidade abaixo do
normal que alega ser o espaçoanalista — disse ele. — Vou mandar
trazerem esse homem!
····
Valona March jamais, jamais na vida sonhara que existissem essas
coisas impossíveis. Por mais de um dia agora, desde que
aterrissara neste planeta de Sark, houvera um toque de assombro
em tudo. Até mesmo as celas da prisão onde ela e Rik haviam sido
colocados separadamente pareciam ter um aspecto majestoso
surreal. A água saía de um buraco em um cano quando se apertava
um botão. O aquecimento saía da parede, embora o ar lá fora
estivesse mais frio do que ela pensava que o ar pudesse ser. E todo
mundo que falava com ela vestia roupas muito bonitas.
Ela estivera em salas onde havia todo tipo de coisa que nunca
vira antes. Aquela que via agora era maior do que qualquer uma
delas, mas estava quase vazia. No entanto, havia mais pessoas
dentro dela. Havia um homem de aspecto severo atrás de uma
mesa, e um homem muito mais velho, muito enrugado em uma
poltrona, e três outros…
Um era o citadino!
Ela ergueu-se de um salto e correu até ele.
— Citadino! Citadino!
Mas ele não estava lá.
Ele se levantara e acenara para ela.
— Fique aí, Lona. Fique aí.
E ela passou direto por ele. Ela estendera a mão para tocar a
manga de sua roupa; ele desviou. Ela precipitou-se, meio que
tropeçando, e passou direto por ele. Por um momento, faltou-lhe o
fôlego. O citadino se virara, encarava-a outra vez, mas ela só
conseguia olhar para as próprias pernas.
Ambas estavam enfiadas no braço pesado da poltrona onde o
citadino estava sentado. Ela conseguia ver com nitidez, com todas
as cores e solidez. O móvel rodeava suas pernas, mas ela não
sentia. Estendeu uma mão trêmula e seus dedos se afundaram uns
dois centímetros em um estofamento que ela também não sentia.
Seus dedos continuavam visíveis.
Ela gritou e caiu. Sua última sensação foi ver os braços do
citadino se estendendo automaticamente em direção a ela e cair
sobre eles como se fossem pedaços de ar pintados da cor de carne.
Estava sentada em uma cadeira outra vez, enquanto Rik
segurava-lhe uma das mãos com firmeza e o velho enrugado se
inclinava sobre ela.
— Não se assuste, minha querida — ele disse. — É só uma
imagem. Uma fotografia, sabe?
Valona olhou em volta. O citadino continuava sentado ali. Ele
não estava olhando para ela.
Ela apontou um dedo.
— Ele está ali?
— É uma personificação trimênsica, Lona — disse Rik de
repente. — Ele está em outro lugar, mas podemos vê-lo daqui.
Valona chacoalhou a cabeça. Se Rik tinha dito, tudo bem. Mas
ela abaixou os olhos. Não ousava olhar para pessoas que estavam
lá e ao mesmo tempo não estavam.
····
— Então você sabe o que é personificação trimênsica, jovem? —
Abel perguntou para Rik.
— Sim, senhor. — Fora um dia extraordinário para Rik também,
mas, enquanto Valona estava cada vez mais deslumbrada, ele
achava as coisas cada vez mais familiares e compreensíveis.
— Onde aprendeu sobre isso?
— Não sei. Eu sabia antes… antes de esquecer.
Fife não se mexera de sua cadeira atrás da mesa durante o
movimento impetuoso de Valona March na direção do citadino.
— Lamento ter que atrapalhar esta reunião trazendo uma nativa
histérica — comentou ele em um tom mordaz. — O suposto
espaçoanalista solicitou a presença dela.
— Está tudo bem — disse Abel. — Mas percebo que o seu
floriniano com mentalidade abaixo do normal parece ter
familiaridade com a personificação trimênsica.
— Ele foi bem treinado, eu imagino — retorquiu Fife.
— Ele foi interrogado depois que chegou a Sark? — perguntou
Abel.
— Sem dúvida.
— E qual foi o resultado?
— Nenhuma informação nova.
Abel voltou-se para Rik.
— Qual é o seu nome?
— Rik é o único nome que lembro — respondeu ele,
calmamente.
— Você conhece alguém aqui?
Rik olhou de rosto em rosto sem medo.
— Só o citadino — respondeu. — E Lona, claro.
— Este — falou Abel indicando Fife — é o maior nobre que já
existiu. Ele é dono do planeta inteiro. O que você acha dele?
— Eu sou terráqueo. Ele não é meu dono — retrucou Rik com
audácia.
— Não acho que um floriniano nativo adulto pudesse ser
treinado para demonstrar esse tipo de rebeldia — Abel comentou
com Fife à parte.
— Mesmo com uma sonda psíquica? — contestou Fife com
desdém.
— Você conhece este cavalheiro? — perguntou Abel, apontando
para Rik.
— Não, senhor.
— Este é o dr. Selim Junz. Ele é um importante oficial da
Agência Interestelar de Espaçoanálise.
Rik olhou para ele com atenção.
— Então ele seria um dos meus chefes. Mas — prosseguiu,
desapontado — não o conheço. Ou talvez apenas não lembre.
Junz chacoalhou a cabeça com tristeza.
— Eu nunca o vi, Abel.
— É algo para ficar registrado — murmurou Fife.
— Agora escute, Rik — recomeçou Abel. — Vou lhe contar uma
história. Quero que você ouça com toda atenção e pense. Pense e
pense! Você entendeu?
Rik assentiu.
Abel falou devagar. Sua voz foi o único som na sala durante
longos minutos. Enquanto continuava, as pálpebras de Rik se
fecharam e permaneceram bem fechadas. Ele apertou os lábios,
levou os punhos ao peito e inclinou a cabeça para a frente. Tinha a
aparência de um homem em agonia.
Abel continuou a falar, recuando e avançando na reconstrução
dos acontecimentos do modo como haviam sido apresentados
originalmente pelo nobre de Fife. Falou da mensagem original de
desastre, de sua intercepção, do encontro entre Rik e X, da
sondagem psíquica, de como Rik fora encontrado e reeducado em
Florina, do médico que o diagnosticou e depois morreu, de sua
memória que estava voltando.
— Essa é a história inteira, Rik — disse ele. — Eu contei tudo.
Alguma coisa soa familiar para você?
Lentamente, dolorosamente, Rik respondeu:
— Eu me lembro das últimas partes. Os últimos dias, sabe.
Lembro alguma coisa de antes também. Talvez tenha sido o médico,
quando comecei a falar. É muito vago… Mas é só.
— Mas você se lembra de antes também — falou Abel. — Você
se lembra de perigo para Florina.
— Lembro. Lembro. Foi a primeira coisa que lembrei.
— Então você não consegue se lembrar do que veio depois?
Você aterrissou em Sark e encontrou um homem.
— Não consigo — gemeu Rik. — Não consigo lembrar.
— Tente! Tente!
Rik levantou os olhos. Seu rosto pálido estava úmido devido à
transpiração.
— Me lembro de uma palavra.
— Que palavra, Rik?
— Não faz sentido.
— Diga mesmo assim.
— Ela veio junto com uma mesa. Muito, muito tempo atrás. Muito
vago. Eu estava sentado. Acho que talvez alguma outra pessoa
estivesse sentada. Depois ele estava de pé, olhando para mim. E
tem uma palavra.
Abel teve paciência.
— Qual palavra?
Rik cerrou os punhos e sussurrou:
— Fife!
Todos os homens, menos Fife, levantaram-se.
— Eu falei — gritou Steen, e então soltou uma gargalhada
borbulhante e estridente.
O ACUSADOR

— Vamos acabar com essa farsa — disse Fife, com uma paixão
rigorosamente controlada.
Ele esperara antes de falar, com os olhos firmes e o rosto
inexpressivo, até que, em um absoluto anticlímax, o resto foi forçado
a se sentar de novo. Rik inclinara a cabeça, de olhos dolorosamente
fechados, sondando a própria mente dolorida. Valona puxou-o para
perto de si, tentando com afinco aninhar a cabeça dele em seu
ombro, acariciando-lhe o rosto com delicadeza.
— Por que você diz que é uma farsa? — perguntou Abel,
trêmulo.
— E não é? — retrucou Fife. — Concordei em participar dessa
reunião, em primeiro lugar, só por causa de uma ameaça em
particular que você me fez. Eu teria recusado mesmo assim se
soubesse que o objetivo da reunião era me julgar com renegados e
assassinos agindo tanto como promotores quanto como júri.
Abel franziu o cenho e retorquiu, com uma formalidade fria:
— Isso não é um julgamento, nobre. O dr. Junz está aqui para
resgatar um membro da AIE, como é seu direito e dever. Eu estou
aqui para proteger os interesses de Trantor em um momento
conturbado. Não me restou dúvida de que esse homem, Rik, é o
espaçoanalista desaparecido. Podemos terminar essa parte da
reunião de imediato se você concordar em entregar o homem para o
dr. Junz para exames mais detalhados, inclusive uma verificação de
características físicas. Naturalmente, nós pediríamos uma
assistência adicional para encontrar o culpado pela aplicação da
sonda psíquica e para estabelecer salvaguardas contra uma futura
repetição de tais atos contra aquela que é, afinal, uma agência
interestelar que sempre esteve acima da política regional.
— Um discurso e tanto! — exclamou Fife. — Mas o óbvio
continua sendo óbvio e os seus planos são muito transparentes. O
que aconteceria se eu entregasse este homem? Prefiro pensar que
a AIE vai conseguir descobrir exatamente o que quer descobrir. Ela
afirma ser uma agência interestelar sem ligações regionais, mas o
fato é que Trantor contribui com dois terços do orçamento anual,
não é? Duvido que qualquer observador sensato a consideraria
realmente neutra na Galáxia de hoje. Suas descobertas em relação
a este homem com certeza atenderão aos interesses imperialistas
de Trantor.
“E quais serão essas descobertas? Isso também está claro. A
memória desse homem voltará lentamente. A AIE emitirá boletins
diários. Pouco a pouco, ele se lembrará cada vez mais dos detalhes
necessários. Primeiro o meu nome. Depois a minha aparência. Em
seguida, as exatas palavras que eu disse. Vou ser solenemente
declarado culpado. Vão exigir reparações e Trantor será forçado a
ocupar Sark temporariamente, uma ocupação que de alguma forma
se tornará permanente.
“Existe um limite além do qual qualquer chantagem cai por terra.
A sua, senhor embaixador, termina aqui. Se quiser este homem,
diga a Trantor para enviar uma frota para buscá-lo.”
— Não é uma questão para o uso de força — falou Abel. — No
entanto, percebo que você cuidadosamente evitou negar a
implicação do que o espaçoanalista disse por último.
— Não existe nenhuma implicação que eu precise dignificar com
uma negação. Ele lembra uma palavra, ou diz lembrar. E daí?
— O fato de ele lembrar não significa nada?
— Absolutamente nada. O nome Fife é importante em Sark.
Mesmo se presumirmos que o suposto espaçoanalista seja sincero,
ele teve um ano para ouvir o nome em Florina. Veio para Sark na
nave que transportava a minha filha, uma oportunidade ainda
melhor de ter ouvido o nome Fife. O que é mais natural do que o
nome se embaralhar com os vestígios da memória dele? Claro,
pode ser que não seja sincero. Essas revelações pouco a pouco
podem muito bem ser ensaiadas.
Abel não pensou em nada para dizer. Olhou para os outros. Junz
franzia sombriamente o cenho, enquanto os dedos da mão direita
alisavam devagar o queixo. Steen dava sorrisos afetados e falava
consigo mesmo. O citadino floriniano olhava inexpressivamente para
os joelhos.
Foi Rik quem falou, soltando-se do abraço de Valona e
levantando-se.
— Escutem — ele disse. Seu rosto pálido estava distorcido.
Seus olhos refletiam dor.
— Outra revelação, suponho — comentou Fife.
— Escutem! — exclamou Rik. — Nós estávamos sentados a
uma mesa. O chá estava batizado. Nós estávamos discutindo. Não
lembro por quê. Depois eu não conseguia me mexer. Só conseguia
ficar ali parado. Não conseguia falar. Só conseguia pensar: Grande
Espaço, fui drogado. Eu queria gritar e berrar e correr, mas não
podia. Então veio o outro, Fife. Ele tinha gritado comigo. Só que
agora não estava gritando. Não precisava. Ele contornou a mesa.
Ficou ali, pairando sobre mim. Eu não podia dizer nada. Não podia
fazer nada. Só consegui tentar erguer a cabeça em direção a ele.
Rik permaneceu de pé, calado.
— Esse outro homem era Fife? — perguntou Junz.
— Lembro que o nome dele era Fife.
— Bem, ele era aquele homem?
Rik não se virou para olhar.
— Não consigo me lembrar da aparência dele — respondeu.
— Tem certeza?
— Eu estou tentando. Vocês não sabem como é difícil —
disparou ele. — Dói! É como uma agulha em brasa. Bem fundo!
Aqui! — Ele colocou a mão na cabeça.
— Sei que é difícil — falou Junz, suavemente. — Mas você
precisa tentar. Não vê que precisa continuar tentando? Olhe para
aquele homem! Vire-se e olhe para ele!
Rik voltou-se para o nobre de Fife. Olhou por um momento,
depois virou de costas.
— Consegue se lembrar agora? — indagou Junz.
— Não! Não!
Fife deu um sorriso sinistro.
— O seu homem esqueceu as falas dele ou a história vai parecer
mais crível se ele se lembrar do meu rosto da próxima vez?
— Eu nunca vi esse homem antes e nunca falei com ele —
retrucou Junz, em um tom acalorado. — Não houve nenhum acordo
para incriminar você e estou cansado das suas acusações nesse
sentido. Só quero a verdade.
— Então, posso fazer algumas perguntas para ele?
— Vá em frente.
— Obrigado pela gentileza. Agora você… Rik, ou qualquer que
seja o seu nome verdadeiro…
Ele era um nobre dirigindo-se a um floriniano.
Rik alçou os olhos.
— Sim, senhor.
— Você se lembra de um homem se aproximando de você pelo
outro lado da mesa onde estava sentado, drogado e indefeso.
— Sim, senhor.
— Você olhou para ele, ou tentou olhar.
— Sim, senhor.
— Sente-se.
Rik se sentou.
Por um momento, Fife não fez nada. Talvez tenha cerrado mais a
boca de lábios finíssimos; os músculos do maxilar, sob o brilho azul
enegrecido da barba por fazer que lhe cobria o rosto e o queixo,
moveram-se um pouco. Então ele escorregou cadeira abaixo.
Escorregou abaixo! Era como se tivesse se ajoelhado atrás da
mesa.
Mas ele saiu de trás da mesa e foi possível ver claramente que
estava de pé.
A cabeça de Junz rodou. O homem, tão escultural e formidável
em seu assento, transformara-se sem nenhum aviso em um mísero
anão.
As pernas deformadas de Fife se mexiam debaixo dele com
esforço, levando adiante a desengonçada massa do torso e da
cabeça. Seu rosto enrubesceu, mas seus olhos mantiveram o ar de
arrogância intacto. Steen soltou uma gargalhada e sufocou-a
quando aqueles olhos se voltaram para ele. Os demais ficaram em
um silêncio fascinado.
Rik, com os olhos arregalados, observou-o se aproximar.
— Fui eu o homem que se aproximou de você contornando a
mesa? — perguntou Fife.
— Não consigo me lembrar do rosto dele, senhor.
— Não peço que se lembre do rosto dele. Será possível que
você tenha se esquecido disso? — Ele fez um gesto largo com os
dois braços, enquadrando seu corpo. — Será possível que você
tenha se esquecido da minha aparência, do meu jeito de andar?
— Parece que não deveria, senhor, mas não sei — respondeu
Rik em tom lastimoso.
— Mas você estava sentado, ele estava de pé e você levantou a
cabeça para olhar para ele.
— Sim, senhor.
— Ele abaixou a cabeça para olhar para você, “pairando” sobre
você, na verdade.
— Sim, senhor.
— Você se lembra disso pelo menos? Está seguro desse fato?
— Sim, senhor.
Os dois estavam cara a cara agora.
— Estou abaixando a cabeça para olhar para você?
— Não, senhor — respondeu Rik.
— Você ergueu a cabeça para olhar para mim?
Rik, sentado, e Fife, de pé, olhavam um para o outro no mesmo
nível, olho a olho.
— Não, senhor.
— Eu poderia ter sido esse homem?
— Não, senhor.
— Tem certeza?
— Sim, senhor.
— Você continua dizendo que o nome de que se lembra é Fife?
— Eu me lembro desse nome — insistiu Rik obstinadamente.
— Quem quer que tenha sido, então, usou meu nome como
disfarce?
— Ele… deve ter usado.
Fife virou-se; então, com vagarosa dignidade, voltou com
dificuldade para a mesa e subiu na cadeira.
— Nunca permiti que nenhum homem me visse de pé antes em
toda a minha vida adulta — falou ele. — Existe algum motivo para
essa reunião continuar?
Abel ficou constrangido e irritado ao mesmo tempo. Até o
momento, a reunião fora muito contraproducente. A cada passo, Fife
conseguira se colocar do lado certo e os outros, do lado errado.
Fora bem-sucedido em apresentar-se como mártir. Havia sido
forçado a participar daquela reunião por causa de uma chantagem
trantoriana e se tornara objeto de acusações falsas que haviam
caído por terra de imediato.
Fife trataria de inundar a Galáxia com a sua versão da reunião e
não teria de se afastar muito da verdade para transformá-la em uma
excelente propaganda antitrantoriana.
Abel gostaria de poder diminuir o prejuízo. O espaçoanalista que
sofrera uma sondagem psíquica seria inútil para Trantor agora.
Ririam de qualquer “lembrança” que ele pudesse ter de agora em
diante e a ridicularizariam, por mais verdadeira que fosse. Ele seria
considerado um instrumento do colonialismo trantoriano; um
instrumento quebrado, aliás.
Mas ele hesitou, e foi Junz quem falou.
— Me parece que existe uma razão muito boa para não terminar
a reunião ainda — disse Junz. — Não determinamos exatamente
quem foi o responsável pela sondagem psíquica. O senhor acusou o
nobre de Steen e Steen acusou o senhor. Pressupondo que os dois
estejam enganados e que os dois sejam inocentes, continua sendo
verdade que cada um de vocês acredita que um dos grandes nobres
é culpado. Então, qual?
— Isso importa? — perguntou Fife. — No que se refere a vocês,
tenho certeza de que não. Essa questão estaria resolvida a essa
altura não fosse a interferência de Trantor e da AIE. Vamos acabar
descobrindo o traidor. Lembre-se de que o responsável pela
sondagem psíquica, seja quem for, tinha a intenção original de
conseguir à força que um monopólio de kyrt fosse parar em suas
mãos, então é pouco provável que eu vá deixá-lo escapar. Quando
identificarmos o responsável e cuidarmos dele, o seu homem aqui
será devolvido a vocês ileso. Essa é a única oferta que posso fazer,
e é uma oferta razoável.
— O que você vai fazer com o homem que aplicou a sonda
psíquica?
— Essa é uma questão estritamente interna que não é da sua
conta.
— Ah, é, sim — contestou Junz energicamente. — Não se trata
apenas do espaçoanalista. Existe algo mais importante envolvido e
estou surpreso que ninguém o tenha mencionado ainda. Não
aplicaram a sonda psíquica nesse homem, Rik, só porque ele era
espaçoanalista.
Abel não sabia ao certo quais eram as intenções de Junz
naquele momento, mas colocou seu peso na balança.
— O dr. Junz está se referindo, claro, à mensagem original de
perigo do espaçoanalista — disse em um tom brando.
Fife deu de ombros.
— Até onde sei, ninguém deu importância a isso até agora,
inclusive o dr. Junz nesse último ano. No entanto, o seu homem está
aqui, doutor. Pergunte a ele que história é essa.
— Naturalmente, ele não vai se lembrar — retorquiu Junz,
irritado. — A sonda psíquica é mais eficaz sobre as redes mais
intelectuais de raciocínio armazenadas na mente. Esse homem
pode nunca recuperar os aspectos quantitativos do seu trabalho de
uma vida.
— Então já era — disse Fife. — O que se pode fazer a esse
respeito?
— Algo muito concreto. Essa é a questão. Existe outra pessoa
que sabe, e é o sondador. Ele pode não ser um espaçoanalista,
pode não saber os detalhes exatos. Porém, conversou com o
homem quando sua mente estava intocada. Deve ter descoberto o
bastante para nos colocar na trilha certa. Sem ter descoberto o
suficiente, ele não teria se atrevido a destruir a fonte de informação.
Mas, só para constar, você lembra, Rik?
— Apenas que havia perigo e que envolvia as correntes do
espaço — murmurou Rik.
— Mesmo se você descobrir, o que vai ter? — indagou Fife. —
Até que ponto são confiáveis as teorias alarmantes que esses
espaçoanalistas loucos estão sempre criando? Muitos deles acham
que conhecem os segredos do universo, quando estão tão loucos
que mal conseguem ler seus instrumentos.
— Talvez esteja certo. O senhor está com medo de me deixar
descobrir?
— Sou contra criar rumores, sejam verdadeiros ou falsos, que
possam afetar o comércio de kyrt. Não concorda comigo, Abel?
Abel contorceu-se por dentro. Fife estava se colocando em uma
posição de onde qualquer interrupção nas entregas de kyrt
resultantes de seu próprio golpe pudessem ser imputadas a
manobras trantorianas. Mas Abel era um bom jogador. Ele
aumentou as apostas calma e impassivelmente.
— Não — respondeu. — Sugiro que você ouça o dr. Junz.
— Obrigado — disse Junz. — Agora o senhor falou, nobre Fife,
que quem quer que tenha aplicado a sonda psíquica deve ter
matado o médico que examinou o Rik. Isso implica que o sondador
manteve alguma espécie de vigilância sobre o Rik durante o tempo
que ele ficou em Florina.
— E daí?
— Devem existir sinais dessa vigilância.
— Quer dizer que acha que esses nativos saberiam quem estava
de olho neles?
— Por que não?
— Você não é sarkita, então comete erros — respondeu Fife. —
Eu lhe garanto que os nativos ficam em seus lugares. Não se
aproximam dos nobres e, se os nobres se aproximarem deles, eles
sabem que devem olhar para baixo. Não saberiam nada sobre ser
observados.
Junz visivelmente estremeceu de indignação. Os nobres tinham
o despotismo tão arraigado que não viam nada de errado ou
vergonhoso em falar sobre ele às claras.
— Os nativos comuns, talvez — ponderou ele. — Mas temos um
homem aqui que não é um nativo comum. Acho que ele nos
mostrou exaustivamente que não é um floriniano respeitoso o
bastante. Até agora não contribuiu em nada para a discussão, e
está na hora de fazer algumas perguntas para ele.
— A evidência daquele nativo não vale nada — disse Fife. — Na
verdade, aproveito a oportunidade mais uma vez para exigir que
Trantor o entregue para um julgamento adequado nas cortes de
Sark.
— Deixe-me conversar com ele primeiro.
— Acho que não custa nada fazer algumas perguntas para ele,
Fife — interveio Abel, com um tom ameno. — Se ele não cooperar
ou se mostrar indigno de confiança, podemos considerar o seu
pedido de extradição.
Terens, que até o momento se concentrara imperturbavelmente
nos dedos de suas mãos entrelaçadas, levantou os olhos por um
breve instante.
Junz voltou-se para Terens.
— Rik esteve na sua cidade desde que foi encontrado em
Florina, não esteve? — perguntou ele.
— Esteve.
— E você esteve na cidade o tempo todo? Quero dizer, você não
fez nenhuma viagem de trabalho demorada, fez?
— Citadinos não fazem viagens de trabalho. Seu trabalho é a
sua cidade.
— Certo. Agora relaxe e não se melindre. Faria parte do seu
trabalho saber se algum nobre viesse para a cidade, imagino.
— Claro. Quando eles vêm.
— Eles vieram?
Terens deu de ombros.
— Uma ou duas vezes. Pura rotina, eu lhe garanto. Os nobres
não sujam suas mãos com kyrt. Isto é, kyrt não processado.
— Mais respeito! — bradou Fife.
Terens olhou para ele e retrucou:
— Você pode me obrigar?
— Vamos manter isso entre o homem e o dr. Junz, Fife —
interrompeu Abel suavemente. — Você e eu somos espectadores.
Junz sentiu um brilho de satisfação com a insolência do citadino,
mas disse:
— Responda às minhas perguntas sem comentários extras, por
favor, citadino. Agora, quem eram exatamente os nobres que
visitaram a sua cidade neste último ano?
— Como posso saber? — retorquiu Terens em um tom
impetuoso. — Não sei responder a essa pergunta. Nobres são
nobres e nativos são nativos. Posso ser citadino, mas ainda sou um
nativo para eles. Não vou aos portões da cidade para cumprimentá-
los e perguntar seus nomes.
“Eu recebo uma mensagem, só isso. Ela vem endereçada para o
‘citadino’. Diz que haverá uma inspeção de nobre em tal e tal dia e
que devo tomar as providências necessárias. Então tenho que
garantir que os funcionários das fábricas estejam vestidos com suas
melhores roupas, que a fábrica esteja limpa e funcionando
adequadamente, que o estoque de kyrt seja amplo, que todos
pareçam contentes e satisfeitos, que as casas estejam limpas e as
ruas policiadas, que alguns dançarinos estejam à mão caso os
nobres queiram ver alguma dança nativa divertida, que talvez
algumas belas m…”
— Esse detalhe não importa, citadino — interveio Junz.
— Para você não importa. Para mim, sim.
Após suas experiências com os florinianos do Serviço Público,
Junz achou o citadino tão revigorante como um copo de água
gelada. Decidiu que usaria qualquer influência que a AIE pudesse
exercer para evitar que o citadino fosse entregue aos nobres.
— De qualquer forma, essa é a minha parte — continuou Terens,
em um tom mais calmo. — Quando eles vêm, eu entro na fila junto
com os outros. Não sei quem são. Não falo com eles.
— Houve alguma dessas inspeções na semana anterior à morte
do médico da Cidade? Suponho que você saiba em que semana
isso aconteceu.
— Acho que ouvi nos noticiários. Creio que não houve nenhuma
inspeção de nobres naquele momento. Não posso afirmar com
certeza.
— A quem pertence a sua terra?
Terens deu um meio sorriso.
— Ao nobre de Fife.
Steen pronunciou-se, interrompendo a conversa entre os dois
com uma subitaneidade um tanto surpreendente.
— Ah, olhe aqui. Sinceramente! Você está fazendo o jogo do Fife
com esse tipo de interrogatório, dr. Junz. Você não vê que não vai
chegar a lugar nenhum? Verdade! Você acha que, se Fife tivesse
interesse em vigiar aquela criatura ali, ele se daria o trabalho de
fazer viagens a Florina para olhar para ele? Para que servem os
patrulheiros? Francamente!
Junz pareceu confuso.
— Em um caso desses, com a economia de um planeta e talvez
sua segurança física dependendo do conteúdo da mente de um
homem, seria natural que o sondador não quisesse deixar a guarda
aos cuidados dos patrulheiros.
— Mesmo depois de ter eliminado essa mente, para todos os
efeitos? — interveio Fife.
Abel projetou o lábio inferior e franziu a testa. Viu sua última
aposta cair nas mãos de Fife, com todo o resto.
— Havia algum patrulheiro ou grupo de patrulheiros em particular
que estava sempre em solo? — voltou a tentar Junz, hesitante.
— Eu jamais saberia. Eles são apenas uniformes para mim.
Junz virou-se para Valona com o efeito de um salto repentino.
Um momento antes, ela ficara muito pálida e seus olhos estavam
arregalados e fixos. Junz não deixara de notar isso.
— E você, garota? — indagou ele.
Ela apenas chacoalhou a cabeça, sem dizer nada.
Abel pensava gravemente: Não há mais nada a fazer. Acabou.
Mas Valona se pôs de pé, trêmula.
— Quero dizer uma coisa — falou, em um murmúrio rouco.
— Continue, garota — encorajou Junz. — O que é?
Valona falava de modo ofegante, com um medo nítido em cada
linha de seu semblante e em cada contração nervosa dos dedos.
— Sou só uma moça do campo — disse ela. — Por favor, não
fiquem bravos comigo. Mas parece que as coisas só podem ser de
uma maneira. O meu Rik era tão importante assim? Quero dizer,
como vocês dizem?
— Acho que ele era muito, muito importante. Acho que ainda é
— respondeu Junz gentilmente.
— Então deve ter sido como você falou. Quem quer que tenha
colocado Rik em Florina não teria se atrevido a tirar os olhos dele
nem um minuto sequer, teria? Quero dizer, suponhamos que Rik
apanhasse do superintendente ou fosse apedrejado pelas crianças
ou ficasse doente e morresse. Não deixariam que ele ficasse
desamparado no campo, onde ele poderia morrer antes de ser
encontrado, deixariam? Não iriam pensar que sorte seria suficiente
para mantê-lo a salvo. — Ela falava com intensa fluência agora.
— Continue — disse Junz, observando-a.
— Porque houve uma pessoa que observou Rik desde o
começo. Ele o encontrou no campo, providenciou que eu cuidasse
dele, que o mantivesse longe de problemas e ficava sabendo dele
todos os dias. Sabia até sobre o médico porque eu contei. Foi ele!
Foi ele!
Gritando, apontou o dedo rigidamente para Myrlyn Terens, o
citadino.
E, desta vez, até a calma sobre-humana de Fife desapareceu e
seus braços se estenderam sobre a mesa, soerguendo o corpo
maciço quase três centímetros enquanto girava a cabeça
rapidamente em direção ao citadino.
OS VITORIOSOS

Era como se uma paralisia vocal houvesse se apossado de todos


eles. Até Rik, com descrença nos olhos, conseguia apenas olhar
rigidamente, primeiro para Valona, depois para Terens.
Então ouviu-se a risada estridente de Steen e quebrou-se o
silêncio.
— Eu acredito — falou Steen. — De verdade! Eu disse o tempo
todo. Disse que o nativo estava na folha de pagamento de Fife. Isso
mostra o tipo de homem que o Fife é. Ele pagaria um nativo para…
— Essa é uma mentira horrenda.
Não foi Fife quem falou, mas o citadino. Ele estava de pé, e seus
olhos brilhavam de paixão.
Abel, que parecia o menos comovido de todos, perguntou:
— O que é mentira?
Terens olhou para ele por um momento, sem compreender;
então disse, abafadamente:
— O que o nobre falou. Eu não estou na folha de pagamento de
nenhum sarkita.
— E o que a garota disse? É mentira também?
Terens umedeceu os lábios secos com a ponta da língua.
— Não, é verdade. Fui eu que apliquei a sonda psíquica. — Ele
se apressou em continuar. — Não olhe para mim desse jeito, Lona.
Eu não quis machucá-lo. Não tive a intenção de fazer nada do que
aconteceu. — Ele voltou a se sentar.
— Isso é algum tipo de artifício — falou Fife. — Não sei
exatamente o que você está planejando, Abel, mas é impossível,
diante disso, que esse criminoso possa ter incluído esse crime em
particular ao seu repertório. É certo que só um grande nobre poderia
ter o conhecimento e as instalações necessárias. Ou você está
ansioso para livrar a cara do seu amigo Steen conseguindo uma
confissão falsa?
Terens, com as mãos fortemente entrelaçadas, inclinou-se para a
frente no assento. — Eu também não recebo dinheiro trantoriano.
Fife o ignorou.
Junz foi o último a voltar a si. Por alguns minutos, foi incapaz de
aceitar que o citadino não estava de fato no mesmo cômodo que
ele, mas em outra parte na sede da embaixada, e que podia vê-lo
apenas em imagem — tão real quanto Fife, que estava a mais de
trinta e dois quilômetros de distância. Ele queria se aproximar do
citadino, agarrá-lo pelos ombros, conversar com ele a sós, mas não
podia.
— Não faz sentido discutirmos antes de ouvir o sujeito — disse
ele. — Vamos ouvir os detalhes. Se ele for o responsável pela
aplicação da sonda psíquica, precisamos muito dos detalhes. Se
não for ele, os detalhes que vai tentar nos dar vão provar isso.
— Se querem saber o que aconteceu — gritou Terens —, eu vou
contar. Manter segredo não vai mais me ajudar. É Sark ou Trantor,
afinal, então para o espaço com tudo. Pelo menos vou ter a chance
de revelar uma ou duas coisas.
Ele apontou para Fife com desdém.
— Ali está um grande nobre. Somente um grande nobre, diz
esse grande nobre, pode ter o conhecimento ou as instalações para
fazer o que o sondador fez. Ele também acredita. Mas do que ele
sabe? Do que qualquer um dos sarkitas sabe?
“Eles não administram o governo. Os florinianos administram! O
Serviço Público Floriniano administra. Eles recebem os documentos,
fazem os documentos, arquivam os documentos. E são os
documentos que gerem Sark. Claro, a maioria de nós está abatida
demais até para lamuriar-se, mas vocês sabem o que nós
poderíamos fazer se quiséssemos, mesmo debaixo dos narizes dos
seus malditos nobres? Bem, vocês viram o que eu fiz.
“Eu fui gerente de tráfego por algum tempo no espaçoporto, um
ano atrás. Parte do meu treinamento. Está nos registros. Vocês vão
ter que procurar um pouco para encontrar, porque o gerente de
tráfego na lista é um sarkita. Ele tinha o título, mas eu que fazia o
trabalho de verdade. Meu nome seria encontrado na seção especial
denominada Funcionários Nativos. Nenhum sarkita teria sujado os
olhos procurando lá.
“Quando a AIE local enviou a comunicação do espaçoanalista
para o porto, sugerindo que fôssemos ao encontro da nave com
uma ambulância, fui eu que recebi a mensagem. Passei adiante o
que era seguro. Essa questão da destruição de Florina não foi
repassada.
“Providenciei um encontro com o espaçoanalista em um
pequeno porto da periferia. Consegui fazer isso com facilidade.
Todas as linhas e fios que geriam Sark estavam nas pontas dos
meus dedos. Eu estava no Serviço Público, lembrem-se. Um grande
nobre que quisesse fazer o que fiz não conseguiria, a menos que
desse ordens para um floriniano fazer por ele. Eu pude fazer sem
ajuda de ninguém. Mais ainda pelo conhecimento e pela facilidade.
“Me encontrei com o espaçoanalista e o mantive longe tanto de
Sark quanto da AIE. Tirei dele o máximo de informações que pude e
comecei a usar essa informação a favor de Florina e contra Sark.”
Fife sentiu-se forçado a falar.
— Você mandou aquelas primeiras cartas?
— Eu mandei aquelas primeiras cartas, grande nobre —
confirmou Terens, calmamente. — Achei que poderia conseguir à
força o controle de áreas de kyrt suficientes para fazer um acordo
com Trantor nos meus próprios termos e tirar vocês do planeta.
— Você estava louco.
— Talvez. De qualquer forma, não funcionou. Eu tinha dito para o
espaçoanalista que era o nobre de Fife. Tive que fazer isso porque
ele sabia que Fife era o homem mais importante do planeta e,
contanto que acreditasse que eu era Fife, estaria disposto a
conversar abertamente. Perceber que ele achou que Fife estaria
ansioso para fazer o que fosse melhor para Florina me fez rir.
“Infelizmente, ele estava mais impaciente do que eu. Insistia que
cada dia perdido era uma calamidade, enquanto eu sabia que as
minhas negociações com Sark exigiam tempo mais do que qualquer
outra coisa. Achei difícil controlá-lo e acabei tendo que usar a sonda
psíquica. Consegui uma. Eu tinha visto a sonda em uso em
hospitais. Sabia alguma coisa sobre ela. Infelizmente, não o
bastante.
“Ajustei a sonda para apagar a ansiedade das camadas
superficiais da mente dele. É uma operação simples. Ainda não sei
o que aconteceu. Acho que a ansiedade devia ocupar um lugar mais
profundo, bem mais profundo, e a sonda automaticamente seguiu
esse caminho, arrancando junto a maior parte da mente consciente.
Fiquei com uma coisa sem mente nas minhas mãos… Sinto muito,
Rik.”
Rik, que estivera ouvindo com atenção, comentou com tristeza:
— Você não devia ter me atrapalhado, citadino, mas imagino
como se sentiu.
— É — concordou Terens —, você viveu no planeta. Sabe sobre
os patrulheiros e os nobres e a diferença entre a Cidade Alta e a
Cidade Baixa.
Ele retomou o fluxo da sua história.
— Então, lá estava eu com o espaçoanalista completamente
indefeso. Eu não podia deixar que ele fosse encontrado por alguém
que pudesse descobrir a identidade dele. Não podia matá-lo. Eu
tinha certeza de que a memória dele voltaria e ainda iria precisar do
conhecimento dele. Isso sem falar que, se o matasse, eu perderia a
boa vontade de Trantor e da AIE, da qual eu viria a precisar. Além do
mais, naquela época eu era incapaz de matar.
“Providenciei minha transferência para Florina como citadino e
levei o espaçoanalista comigo. Dei um jeito para que ele fosse
encontrado e escolhi Valona para cuidar dele. Não houve nenhum
perigo depois disso, a não ser aquela vez com o médico. Então tive
que entrar nas centrais elétricas da Cidade Alta. Não foi impossível.
Os engenheiros eram sarkitas, mas os zeladores eram florinianos.
Em Sark, aprendi o suficiente sobre a mecânica da energia elétrica
para saber como causar um curto-circuito em uma rede de energia.
Demorou três dias para encontrar o momento apropriado. Depois
disso, pude matar com facilidade. Mas eu nunca soube que o
médico guardava registros duplicados nas duas metades da clínica.
Eu gostaria de ter sabido.”
Terens podia ver o cronômetro de Fife de onde estava.
— Então, cem horas atrás… parecem cem anos… — Rik
começou a se lembrar de novo. — Agora vocês têm a história
completa.
— Não — discordou Junz —, não temos. Quais são os detalhes
da história do espaçoanalista sobre destruição planetária?
— Você acha que eu entendi os detalhes do que ele tinha a
dizer? Era alguma espécie de… me perdoe, Rik… loucura.
— Não era, não — contestou Rik, em um tom inflamado. — Não
pode ter sido.
— Esse espaçoanalista tinha uma nave — comentou Junz. —
Onde está ela?
— No ferro-velho há muito tempo — respondeu Terens. — Uma
ordem para descartá-la foi expedida. Meu superior a assinou. Um
sarkita nunca lê documentos, claro. Ela foi descartada sem
questionamentos.
— E os documentos de Rik? Você disse que ele lhe mostrou
documentos!
— Entregue esse homem a nós — disse Fife de repente —, e
descobriremos o que ele sabe.
— Não — respondeu Junz. — O primeiro crime dele foi contra a
AIE. Ele sequestrou e danificou a mente de um espaçoanalista. Ele é
nosso.
— Junz está certo — concordou Abel.
— Escutem aqui — interveio Terens. — Eu não digo uma palavra
sem garantias. Sei onde estão os documentos de Rik. Estão em um
lugar onde nenhum sarkita ou trantoriano jamais encontrará. Se
quiserem os documentos, vão ter que concordar que sou um
refugiado político. O que fiz foi por patriotismo, por consideração às
necessidades do meu planeta. Um sarkita ou um trantoriano podem
alegar que são patriotas; por que um floriniano não?
— O embaixador disse que você será entregue à AIE — declarou
Junz. — Eu lhe garanto que você não será entregue para Sark. Pelo
que fez com o espaçoanalista, você será julgado. Não posso
garantir o resultado, mas, se cooperar conosco, isso contará a seu
favor.
Terens lançou um olhar penetrante para Junz, e então falou:
— Vou me arriscar com você, doutor… De acordo com o
espaçoanalista, o sol de Florina está no estágio pré-nova.
— O quê?! — A exclamação ou seu equivalente veio de todos,
menos de Valona.
— Ele está prestes a explodir e ir pelos ares — continuou Terens
sardonicamente. — E, quando isso acontecer, Florina inteira vai
desaparecer como uma baforada de cigarro.
— Não sou espaçoanalista, mas ouvi dizer que não há como
prever quando uma estrela vai explodir — objetou Abel.
— É verdade. Até agora, em todo caso. Rik explicou o que o fez
pensar assim? — perguntou Junz.
— Acho que os documentos dele vão mostrar isso. A única coisa
que consigo lembrar é a corrente de carbono.
— O quê?
— Ele ficava falando: “A corrente de carbono do espaço, a
corrente de carbono do espaço”. Isso e a expressão “efeito
catalítico”. Aí está.
Steen deu risada. Fife franziu a testa. Junz ficou olhando.
— Me perdoem — murmurou Junz então. — Eu já volto. — Ele
saiu dos limites do cubo-receptor e desvaneceu.
Voltou quinze minutos depois.
Junz olhava ao redor, perplexo, quando retornou. Só Abel e Fife
estavam presentes.
— Onde… — começou a dizer.
— Estávamos esperando você, dr. Junz — interrompeu Abel
instantaneamente. — O espaçoanalista e a garota estão a caminho
da embaixada. A reunião está terminada.
— Terminada? Pela Grande Galáxia, nós apenas começamos.
Tenho que explicar as possibilidades de formação de uma nova.
Abel contorceu-se no assento, inquieto.
— Não é preciso fazer isso, doutor.
— É necessário, sim. É essencial. Me deem cinco minutos.
— Deixe-o falar — disse Fife. Ele estava sorrindo.
— Vamos partir do começo — propôs Junz. — Nos primeiros
textos científicos da civilização galáctica de que se tem registro, já
se sabia que as estrelas obtinham sua energia a partir das
transformações nucleares no seu interior. Também se sabia que,
considerando o que sabemos sobre as condições no interior das
estrelas, dois tipos e apenas dois tipos de transformações nucleares
podem produzir a energia necessária. Ambos envolvem a conversão
de hidrogênio em hélio. A primeira transformação é direta: dois
hidrogênios e dois nêutrons se combinam para formar um núcleo de
hélio. A segunda é indireta, com várias etapas. Ela termina com o
hidrogênio se tornando hélio, mas nas etapas intermediárias
participam núcleos de carbono. Esses núcleos de carbono não são
usados, mas formados outra vez à medida que as reações
prosseguem, de modo que uma pequena quantidade de carbono
possa ser usada repetidas vezes, servindo para converter uma
grande quantia de hidrogênio em hélio. Em outras palavras, o
carbono age como catalisador. Tudo isso é conhecido desde a pré-
história, na época em que a raça humana estava restrita a um único
planeta, se é que houve essa época.
— Se todos nós sabemos dessas coisas — disse Fife —, acho
que você não está contribuindo com nada além de perda de tempo.
— Mas isso é tudo o que sabemos. Se as estrelas usam um ou o
outro, ou os dois processos nucleares, nunca foi determinado.
Sempre houve escolas de pensamento a favor de uma ou outra
alternativa. Em geral, o peso da opinião tem estado a favor da
conversão direta de hidrogênio em hélio, uma vez que é a mais
simples das duas.
“Bem, a teoria do Rik deve ser esta: a conversão direta do
hidrogênio em hélio é a fonte normal de energia estelar, mas, em
certas condições, a catálise do carbono acrescenta o seu peso,
apressando o processo, acelerando-o, aquecendo a estrela.
“Existem correntes no espaço. Todos vocês sabem bem disso.
Algumas delas são correntes de carbono. As estrelas que passam
pelas correntes absorvem inumeráveis átomos. A massa total de
átomos atraídos, porém, é incrivelmente microscópica em
comparação ao peso da estrela e não a afeta de nenhuma forma.
Exceto pelo carbono! Uma estrela que passa por uma corrente que
contém concentrações de carbono fora do comum se torna instável.
Não sei quantos anos ou séculos ou milhões de anos leva para os
átomos de carbono se dispersarem pelo interior da estrela, mas
provavelmente é muito tempo. Isso significa que uma corrente de
carbono precisa ser ampla e uma estrela deve cruzá-la em um
ângulo pequeno. De qualquer modo, uma vez que a quantidade de
carbono difundindo-se no interior da estrela passa de uma quantia
crítica, a radiação da estrela de repente é imensamente
potencializada. As camadas externas cedem sob uma explosão
inimaginável e você tem uma nova. Entende?”
Junz esperou.
— Você deduziu tudo isso em dois minutos com base em uma
expressão vaga que o citadino lembrou ter ouvido do espaçoanalista
um ano atrás? — perguntou Fife.
— É, é. Não há nada de surpreendente nisso. A espaçoanálise
está pronta para essa teoria. Se Rik não tivesse descoberto isso,
outra pessoa descobriria em breve. Na verdade, teorias
semelhantes foram apresentadas antes, mas nunca foram levadas a
sério. Elas foram formuladas antes que as técnicas de
espaçoanálise fossem desenvolvidas, e ninguém jamais conseguiu
explicar a súbita aquisição de excesso de carbono por parte da
estrela em questão.
“Mas agora sabemos que existem correntes de carbono.
Podemos traçar suas rotas, descobrir quais estrelas cruzaram essas
rotas nos últimos dez mil anos e comparar com os nossos registros
sobre formação de novas e variações de radiação. É isso que o Rik
deve ter feito. Esses devem ter sido os cálculos e as observações
que ele tentou mostrar ao citadino. Mas nada disso vem ao caso.
“O que precisa ser providenciado é a imediata evacuação de
Florina.”
— Achei que fosse chegar a esse ponto — comentou Fife
calmamente.
— Lamento, Junz — disse Abel —, mas isso é impossível.
— Por que é impossível?
— Quando o sol de Florina vai explodir?
— Não sei. Pela ansiedade de Rik um ano atrás, eu diria que
temos pouco tempo.
— Mas você não consegue estabelecer uma data?
— Claro que não.
— Quando você vai conseguir estabelecer uma data?
— Não dá para dizer. Mesmo que peguemos os cálculos de Rik,
tudo terá que ser verificado de novo.
— Você pode garantir que vai ficar provado que a teoria do
espaçoanalista está correta?
Junz franziu o cenho.
— Eu pessoalmente estou seguro disso, mas nenhum cientista
pode garantir nenhuma teoria com antecedência.
— Então você quer que Florina seja evacuada por mera
especulação.
— Acho que não se pode correr o risco de matar a população de
um planeta.
— Se Florina fosse um planeta comum, eu concordaria com
você. Mas Florina produz o suprimento galáctico de kyrt. Isso não
pode ser feito.
— Foi esse o acordo que você fez com Fife enquanto eu estava
fora? — retrucou Junz com raiva.
Fife interveio.
— Deixe-me explicar, dr. Junz — falou ele. — O governo de Sark
jamais consentiria em evacuar Florina, mesmo que a AIE afirmasse
ter provas dessa sua teoria da estrela nova. Trantor não pode nos
forçar porque, embora a Galáxia possa apoiar uma guerra contra
Sark com o propósito de manter o comércio de kyrt, ela nunca
apoiará uma guerra com o propósito de acabar com esse comércio.
— Exatamente — concordou Abel. — Receio que o nosso
próprio povo não nos apoiaria em uma guerra dessas.
Junz sentiu a repulsa se intensificar dentro de si. Um planeta
cheio de gente não significava nada contra os ditados da
necessidade econômica!
— Me escutem — disse ele. — Não se trata de um planeta, mas
de toda uma Galáxia. Existem agora vinte novas inteiras se
originando dentro da Galáxia a cada ano. Além do mais, umas duas
mil estrelas em meio às cem bilhões da Galáxia modificam sua
radiação o suficiente para tornar inabitável qualquer planeta
habitável que possam ter. Os seres humanos ocupam um milhão de
sistemas estelares na Galáxia. Isso significa que, em média, uma
vez a cada cinquenta anos, um planeta habitado se torna quente
demais para a vida humana. Esses casos são uma questão de
registro histórico. A cada cinco mil anos, algum planeta habitado tem
cinquenta por cento de chance de ser transformado em gás por uma
estrela nova.
“Se Trantor não fizer nada sobre Florina, permitindo que o
planeta seja vaporizado com seu povo, todas as pessoas da Galáxia
vão entender que, quando chegar a sua vez, elas não deverão
esperar ajuda, caso essa ajuda interfira no caminho da conveniência
econômica de alguns homens poderosos. Você pode correr esse
risco, Abel?
“Por outro lado, ajudando Florina, Trantor demonstra que coloca
sua responsabilidade para com as pessoas da Galáxia acima da
preservação de meros direitos de propriedade. Trantor vai angariar
uma boa vontade que jamais conseguiria angariar por meio da
força.”
Abel inclinou a cabeça e depois chacoalhou-a, com fadiga.
— Não, Junz. O que você diz me agrada, mas não é prático. Eu
não poderia contar com emoções em comparação com o efeito
político garantido de qualquer tentativa de acabar com o comércio
do kyrt. Acho que seria sensato evitar a investigação da teoria. A
ideia de que ela poderia estar certa causaria estragos demais.
— Mas, e se for verdade?
— Precisamos partir do princípio de que não é. Imagino que,
quando você sumiu alguns instantes atrás, foi para contatar a AIE.
— Foi.
— Não importa. Trantor, creio eu, terá influência suficiente para
impedir as investigações.
— Receio que não. Não essas investigações. Senhores, em
breve teremos o segredo do kyrt barato. Não haverá monopólio de
kyrt daqui a um ano, haja ou não uma nova.
— O que você quer dizer?
— A reunião está chegando ao ponto essencial agora, Fife. De
todos os planetas habitados, o kyrt cresce apenas em Florina. Suas
sementes produzem celulose comum em todas as outras partes.
Florina é provavelmente o único planeta habitado, por obra do
acaso, que está neste momento em estágio pré-nova, e
provavelmente esteve nesse estágio desde que entrou na corrente
de carbono, talvez milhares de anos atrás, se o ângulo de
interseção era pequeno. Parece bastante provável, então, que
exista uma relação entre o kyrt e o estágio pré-nova.
— Bobagem! — disse Fife.
— Será? Deve haver alguma razão para o kyrt ser kyrt em
Florina e algodão em outras partes. Os cientistas tentaram muitos
outros métodos para produzir artificialmente o kyrt em outros
lugares, mas o fizeram às cegas, então sempre fracassaram. Agora
vão saber que a produção se deve a fatores induzidos em um
sistema estelar pré-nova.
— Eles tentaram reproduzir as qualidades da radiação do sol de
Fife — disse Fife com desdém.
— Com arcos de luz apropriados, sim, que reproduziam o
espectro visível e ultravioleta apenas. E a radiação infravermelha e
as outras? E os campos magnéticos? E a emissão de elétrons? E os
efeitos dos raios cósmicos? Não sou bioquímico físico, de modo que
pode haver fatores que desconheço. Mas os bioquímicos físicos vão
estar de olho agora, uma Galáxia inteira deles. Em um ano, eu lhe
garanto, a solução será encontrada.
“A economia está do lado da humanidade agora. A Galáxia quer
kyrt barato e, se o encontrarem, ou mesmo se imaginarem que
encontrarão logo, vão querer que Florina seja evacuada, não só por
uma questão de humanidade, mas pelo desejo de finalmente virar o
jogo contra os sarkitas escavadores de kyrt.”
— Blefe! — rosnou Fife.
— Você acha que é blefe, Abel? — perguntou Junz. — Se ajudar
os nobres, Trantor será considerado não só o salvador do comércio
de kyrt, mas o salvador do monopólio de kyrt. Você pode correr esse
risco?
— Trantor pode correr o risco de uma guerra? — indagou Fife.
— Guerra? Bobagem! Nobre, daqui a um ano as suas
propriedades em Florina não vão valer nada, com ou sem nova.
Venda. Venda Florina inteira. Trantor pode pagar.
— Comprar um planeta? — retorquiu Abel, desconcertado.
— Por que não? Trantor tem os recursos e o que vai ganhar em
termos de boa vontade entre os povos do universo vai pagar em
dobro. Se dizer a eles que vocês estão salvando centenas de
milhões de vidas não for suficiente, diga-lhes que vai levar kyrt
barato para eles. Isso vai servir.
— Vou pensar no assunto — respondeu Abel.
Abel olhou para o nobre. Fife baixou os olhos.
— Vou pensar no assunto — disse ele também, após uma longa
pausa.
Junz deu uma risada áspera.
— Não pensem demais. A história do kyrt vai se espalhar logo.
Nada pode impedir. Depois disso, nenhum de vocês dois terá
liberdade de ação. Cada um de vocês pode fazer uma negociação
melhor agora.
····
O citadino parecia abatido.
— É verdade mesmo? — ele ficava repetindo. — Verdade
mesmo? Não haverá mais Florina?
— É verdade — confirmou Junz.
Terens abriu os braços, deixando-os cair junto ao corpo.
— Se quiserem vê-los, os documentos que peguei de Rik estão
arquivados em meio a arquivos estatísticos vitais na minha cidade
natal. Eu peguei os arquivos mortos, registros de um século atrás e
até mais. Ninguém jamais procuraria lá por motivo nenhum.
— Olhe — disse Junz. — Tenho certeza de que podemos fazer
um acordo com a AIE. Vamos precisar de um homem em Florina,
que conheça o povo floriniano, que possa nos dizer como explicar
os fatos para eles, como organizar melhor a evacuação, como
escolher os planetas de refúgio mais adequados. Você vai nos
ajudar?
— E ganhar o jogo desse jeito, você quer dizer? Me safar dos
assassinatos? Por que não? — De repente, brotaram lágrimas nos
olhos do citadino. — Mas, de qualquer modo, eu saio perdendo. Não
vou mais ter um planeta, um lar. Todos nós vamos perder. Os
florinianos perdem o seu planeta, os sarkitas perdem a sua riqueza,
os trantorianos perdem a chance de pôr a mão nessa riqueza. Não
existem vencedores no final das contas.
— A menos — replicou Junz suavemente — que você perceba
que, na nova Galáxia, uma Galáxia a salvo da ameaça de
instabilidade estelar, com kyrt disponível para todos e onde a
unificação política estará tão mais próxima, haverá vencedores,
afinal. Um quatrilhão de vencedores. O povo da Galáxia: eles serão
os vitoriosos.
EPÍLOGO
UM ANO DEPOIS

— Rik! Rik! — Selim Junz atravessou o terreno do porto correndo


em direção à nave, com as mãos estendidas. — E a Lona? Eu
jamais teria reconhecido nenhum dos dois. Como vocês estão?
Como vocês estão?
— Tão bem quanto poderíamos desejar. Vejo que as nossas
cartas chegaram até você — disse Rik.
— Claro. Diga-me, o que acha disso tudo? — Eles estavam
voltando juntos para o escritório de Junz.
— Visitamos o nosso antigo vilarejo hoje de manhã — contou
Valona com tristeza. — Os campos estão tão vazios. — Suas
vestimentas eram agora as de uma mulher do império, e não as de
uma camponesa de Florina.
— É, deve ser triste para uma pessoa que viveu aqui. É triste até
para mim, mas vou ficar o máximo que puder. Os registros da
radiação do sol de Florina são de enorme interesse teórico!
— Tanta evacuação em menos de um ano! Isso revela uma
organização excelente.
— Estamos fazendo o melhor que podemos, Rik. Ah, acho que
devo chamá-lo pelo seu verdadeiro nome.
— Não, por favor. Nunca vou me acostumar. Eu sou o Rik. Esse
ainda é o único nome que lembro.
— Você já decidiu se vai voltar para a espaçoanálise? —
perguntou Junz.
Rik chacoalhou a cabeça.
— Já me decidi, mas a decisão é não. Nunca vou lembrar o
suficiente. Essa parte se perdeu para sempre. Mas isso não me
incomoda. Vou voltar para a Terra… A propósito, eu esperava ver o
citadino.
— Acho que não vai dar. Ele decidiu partir hoje. Acho que se
sente culpado. Você não guarda ressentimento dele?
— Não — respondeu Rik. — Ele tinha boas intenções e mudou a
minha vida para melhor de muitas formas. Para começar, eu conheci
a Lona. — Ele a envolveu com o braço.
Valona olhou para ele e sorriu.
— Além do mais — continuou Rik —, ele me curou de uma
coisa. Eu descobri por que era espaçoanalista. Sei por que quase
um terço de todos os espaçoanalistas são recrutados em um
planeta, a Terra. Qualquer um que viva em um mundo radioativo
está fadado a crescer com medo e insegurança. Um passo em falso
pode significar a morte, e a própria superfície do nosso planeta é o
maior inimigo que temos.
“Isso inculca uma espécie de ansiedade em nós, dr. Junz, um
medo de planetas. Só estamos felizes no espaço; é o único lugar
onde podemos nos sentir seguros.”
— E você não sente mais isso, Rik?
— Com certeza, não. Nem me lembro de me sentir assim. O
citadino ajustou a sonda psíquica para remover sensações de
ansiedade e não se deu o trabalho de ajustar o controle de
intensidade. Ele achava que tinha um problema recente e superficial
para resolver. Em vez disso, existia essa ansiedade profunda e
entranhada que ele desconhecia. Ele se livrou completamente dela.
De certo modo, valeu a pena me livrar dela, apesar de ter perdido
tanta coisa junto. Não preciso ficar no espaço agora. Posso voltar
para a Terra. Posso trabalhar lá, e a Terra precisa de homens.
Sempre vai precisar.
— Sabe — disse Junz —, por que não podemos fazer pela Terra
o que fizemos por Florina? Não é necessário criar terráqueos com
tanto medo e insegurança. A Galáxia é grande.
— Não — concordou Rik com veemência. — É um caso
diferente. A Terra tem o seu passado, dr. Junz. Muitas pessoas
podem não acreditar, mas nós, terráqueos, sabemos que a Terra é o
planeta originário da raça humana.
— Bom, talvez. Não posso dizer nem que sim nem que não.
— É, sim. É um planeta que não pode ser abandonado, que não
deve ser abandonado. Um dia vamos transformá-lo, transformar a
sua superfície no que deve ter sido antes. Até lá… vamos ficar.
— E eu sou uma terráquea agora — falou Valona, em um tom
suave.
Rik agora olhava para o horizonte. A Cidade Alta estava
espalhafatosa como sempre, mas as pessoas haviam ido embora.
— Quantos restaram em Florina?
— Uns vinte milhões — respondeu Junz. — Trabalhamos mais
devagar à medida que avançamos. Temos que manter as nossas
desocupações equilibradas. As pessoas que ficarem sempre devem
se manter como uma unidade econômica nos meses que restam.
Claro, o reassentamento está em seus primeiros estágios. A maioria
dos evacuados ainda está em acampamentos temporários em
mundos vizinhos. Existem dificuldades inevitáveis.
— Quando partirá a última pessoa?
— Na verdade, nunca.
— Não entendo.
— O citadino solicitou extraoficialmente permissão para ficar. Ela
foi concedida, também extraoficialmente. A questão não entrará
para os registros públicos.
— Ficar? — Rik estava chocado. — Mas, pelo amor de toda a
Galáxia, por quê?
— Eu não sabia — replicou Junz —, mas acho que você explicou
quando falou sobre a Terra. Ele se sente como você. Sempre diz
que não consegue suportar a ideia de deixar Florina morrer sozinha.
POSFÁCIO

As correntes do espaço foi escrito em 1951 e publicado pela


primeira vez em 1952. Na época, sabia-se comparativamente muito
pouco sobre a astrofísica da formação de uma nova, de modo que
minha especulação relativa às “correntes de carbono” era legítima.
Os astrônomos sabem muito mais agora, e parece bastante seguro
afirmar que a natureza das correntes do espaço não têm nada a ver
com a formação de novas (embora, por acaso, a análise de nuvens
interestelares de poeira e gás tenha se tornado bem mais
interessante agora do que eu jamais imaginei em 1951). É uma
pena, pois as minhas especulações a respeito das correntes do
espaço eram tão perspicazes (na minha opinião) que sinto que elas
deveriam ter sido verdadeiras. No entanto, o Universo segue o seu
próprio caminho e não vai se curvar apenas para homenagear a
minha perspicácia; então, só posso pedir que vocês reprimam sua
descrença quanto à formação de novas e apreciem o livro (supondo
que apreciem) em seus próprios termos.
AS CORRENTES DO ESPAÇO
TÍTULO ORIGINAL:
The Currents of Space
COPIDESQUE:
Isabela Talarico
REVISÃO:
Hebe Ester Lucas
Renato Ritto
PROJETO GRÁFICO E DIAGRAMAÇÃO:
Desenho Editorial
CAPA:
Pedro Inoue
ILUSTRAÇÃO:
Chris Foss
DIAGRAMAÇÃO DE E-BOOK E REVISÃO DA VERSÃO ELETRÔNICA:
Calil Mello Serviços Editoriais
DIREÇÃO EXECUTIVA:
Betty Fromer
DIREÇÃO EDITORIAL:
Adriano Fromer Piazzi
EDITORIAL:
Daniel Lameira
Tiago Lyra
Andréa Bergamaschi
Débora Dutra Vieira
Luiza Araujo
Juliana Brandt
COMUNICAÇÃO:
Thiago Rodrigues Alves
Fernando Barone
Maria Clara Villas
Júlia Forbes
COMERCIAL:
Giovani das Graças
Lidiana Pessoa
Roberta Saraiva
Gustavo Mendonça
FINANCEIRO:
Roberta Martins
Sandro Hannes
Copyright © Isaac Asimov, 1952
Copyright renovado © Estate of Isaac Asimov, 1980
Copyright © Editora Aleph, 2022
(Edição em língua portuguesa para o Brasil)
Todos os direitos reservados.
Proibida a reprodução, no todo ou em parte, através de quaisquer meios.

DADOS INTERNACIONAIS DE CATALOGAÇÃO NA PUBLICAÇÃO (CIP)


A832p Asimov, Isaac
As correntes do espaço / Isaac Asimov ; traduzido por Aline Storto Pereira. – São
Paulo, SP : Editora Aleph, 2022.
304 p.; il; 14×21 cm.
Tradução de: The currents of space.
ISBN 978-85-7657-518-4
1. Literatura norte-americana. 2. Ficção Científica
I. Pereira, Aline Storto II. Título
CDD-813.0876 | 2022-1977 | CDU-821.111(73)-3
Índices para catálogo sistemático:
1. Literatura americana: ficção científica 813.0876
2. Literatura americana: ficção científica 821.111(73)-3

Rua Tabapuã, 81, cj. 134


04533-010 – São Paulo – SP – Brasil
Tel.: [55 11] 3743-3202
www.editoraaleph.com.br
1. O termo original em inglês é squire, e se refere a um proprietário de terras influente, de
alta posição social, que vive no campo; pertence a uma espécie de fidalguia rural. Por não
haver um termo específico em português para designar essa condição, será chamado de
“nobre” ao longo do livro. [N. de T.]

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