Episódio 148
Episódio 148
Episódio 148
PARTE B
Leia o excerto da Crónica de D. João I de Fernão Lopes que se apresenta de seguida. Em caso de
necessidade, consulte as notas.
Capítulo 148
Como nom lançariam fora a gente minguada1 e sem proveito, que o Mestre mandou saber em
certo pela cidade que pam havia per todo em ela, assi em covas come per outra maneira, e acharom
que era tam pouco que bem havia mester sobr’elo2 conselho?
Na cidade nom havia trigo pera vender, e se o havia, era mui pouco e tam caro que as pobres
5 gentes nom podiam chegar a ele; ca valia o alqueire 3 quatro livras;4 e o alqueire do milho quareenta
soldos;5 e a canada6 do vinho três e quatro livras; e padeciam mui apertadamente, ca dia havia i que,
ainda que dessem por uũ pam ũa dobra,7 que o nom achariam a vender; e começarom de comer
pam de bagaço de azeitona, e dos queijos das malvas e raízes de ervas, e doutras desacostumadas
cousas, pouco amigas da natureza; e taes i havia que se mantinham em alféloa. 8 No logar u9
10 costumavom vender o trigo, andavom homeẽs e moços esgaravatando a terra; e se achavom alguũs
grãos de trigo, metiam-nos na boca sem tendo outro mantimento; outros se fartavom d’ervas, e
beviam tanta agua, que achavom mortos homẽes e cachopos jazer inchados nas praças e em outros
logares.
Das carnes, isso mesmo, havia em ela grande mingua; e se alguũs criavom porcos, mantinham-
15 se em eles; e pequena posta de porco, valia cinco e seis libras que era ũa dobra castelã; e a galinha,
quareeenta soldos; e a dúzia de ovos, doze soldos; e se almogávares 10 tragiam alguũs bois, valia
cada uũ sateenta livras, que eram catorze dobras cruzadas, valendo entom a dobra cinco e seis
livras; e a cabeça e as tripas uũa dobra; assi que os pobres per mingua de dinheiro, nom comiam
carne e padeciam mal; e começarom de comer as carnes das bestas, e nom somente os pobres e
20 minguados, mas grandes pessoas da cidade, lazerando, nom sabiam que fazer; e os gestos
mudados com fame, bem mostravom seus encubertos padecimentos. Andavom os moços de três e
quatro anos pedindo pam pela cidade por amor de Deos, como lhes ensinavam suas madres, e
muitos nom tinham outra cousa que lhe dar senom lagrimas que com eles choravom que era triste
cousa de veer; e se lhes davom tamanho pam come ũa noz, haviam-no por grande bem. Desfalecia
25 o leite aaquelas que tinham crianças a seus peitos per mingua de mantimento; e veendo lazerar 11
seus filhos a que acorrer nom podiam, choravom ameúde sobr’eles a morte ante que os a morte
privasse da vida. Muitos esguardavom as prezes alheas12 com chorosos olhos, por comprir o que a
piedade manda, e nom tendo de que lhes acorrer, caíam em dobrada tristeza.
Toda a cidade era dada a nojo13, chea de mesquinhas14 querelas, sem neuũ prazer que i
30 houvesse: uũs com grande mingua do que padeciam; outros havendo doo 15 dos atribulados; e isto
nom sem razom, ca se é triste e mesquinho o coraçom cuidoso nas cousas contrairas que lhe aviinr 16
podem, vede que fariam aqueles que as continuadamente tam presentes tinham? Pero com todo
esto, quando repicavom, neuũ nom mostrava que era faminto, mas forte e rijo contra seus ẽmigos.
Esforçavom-se uũs por consolar os outros, por dar remedio a seu grande nojo, mas nom prestava
35 conforto de palavras, nem podia tal door seer amansada com neũas doces razões; e assi como é
natural cousa a mão ir ameúde onde see17 a door, assi uũs homẽes falando com outros, nom podiam
em al departir18 senom em na mingua que cada uũ padecia.
(1) gente minguada: população carente, pobre. (10) almogávares: soldados que roubavam gado do exército
(2) havia mester sobr’elo conselho: necessário haver um inimigo.
plano comum acerca disso. (11) lazerar: sofrer, afligir-se.
(3) alqueire: unidade de peso para cereais. (12) prezes alheas: preces das outras pessoas.
(4) livras: moedas medievais. (13) nojo: tristeza.
(5) soldos: moedas medievais. (14) mesquinhas: miseráveis.
(6) canada: antiga unidade de medida (líquidos). (15) doo: dó, pena, piedade.
(7) dobra: moeda medieval. (16) viinr: vir.
(8) alféloa: melaço. (17) see: está.
(9) u: onde. (18) em al departir: falar sobre outra coisa.
Apresente, de forma clara e bem estruturada, as suas respostas aos itens que se seguem.
1. O texto identifica a principal adversidade com que os habitantes de Lisboa deparam durante o
cerco do exército castelhano.
1.1 Liste as consequências sociais e psicológicas que a falta de alimentos gerou na cidade.
Fundamente a sua resposta com citações do texto.
2.1 Explique o motivo pelo qual o cronista enumera os bens e o seu preço de forma pormenorizada.
3. Considere a frase:
«[…] choravom ameúde sobr’eles a morte ante que os a morte privasse da vida.» (linhas 26-27)
3.1 Identifique dois recursos estilísticos presentes na frase e refira-se à sua expressividade.
GRUPO II
Dentro dos protocolos narrativos anteriormente definidos torna-se agora bem claro o objetivo de
Fernão Lopes. A apresentação dos sinais providenciais — sonhos, milagres, profecias e outros
prodígios, que constituem também pontos de articulação na estrutura da sua trilogia 1 — visa a
demonstrar o assenso2 divino a uma nova conceção do poder e a fornecer-nos a probatio ex eventu3
5 necessária à sua consolidação definitiva no domínio da mentalidade coletiva. A conduta do Mestre de
Avis e o destino de Nuno Álvares Pereira são encarados, por isso, à luz de um providencialismo 4 que os
marca diferentemente. Enquanto Nuno Álvares, como defensor da terra, talvez devido à admiração do
cronista pelo seu génio militar, ou às fontes de que este se serviu, surge já nimbado de uma auréola de
santidade, quaisquer que sejam as suas incompreensões dos objetivos da revolução, D. João é
10 retratado em toda a sua humanidade, com as suas fraquezas e indecisões, para emergir
progressivamente como o salvador da pátria.
Ironicamente, são os partidários da rainha quem começa por nomeá-lo «Mexias5 de Lisboa»,
traduzindo a realidade da atmosfera psicológica que se gera à sua roda. Porém, o fenómeno que então
se observa não apresenta rigorosamente as características que se associam com um movimento
15 messiânico. Não se encontra nas camadas sociais que, de início, vão seguir o Mestre de Avis, a
mentalidade apocalíptica da espera de um redentor. O clima mental, que precede e prepara o
levantamento de 1383, tem uma germinação demorada e sai de conversas de rua e de janela, de
aglomerações espontâneas nas praças das vilas e cidades, para comentar os acontecimentos do
momento até se darem os primeiros passos no sentido da ação revolucionária. E quando D. João, com
(1) Crónica de D. Pedro I, Crónica de D. Fernando e Crónica de D. João I, da autoria de Fernão Lopes.
(2) assenso: aprovação.
(3) probatio ex eventu: prova após a ocorrência dos factos.
(4) providencialismo: filosofia que considera que tudo acontece pela sabedoria suprema da divindade.
(5) Mexias: Messias.
(6) incipiente: principiante.
20 relutância, se decide encabeçar o incipiente6 movimento popular contra a regência da rainha, encontra
condições favoráveis à orientação que ele e o seu conselho lhe queiram imprimir. A morte do Andeiro
provoca uma onda de simpatia pelo Mestre, e a multidão, que lhe vai dar o seu apoio, ao identificar-se
totalmente com ele, nele personifica os seus anseios e aspirações, reconhecendo-o como o seu chefe.
LUÍS SOUSA REBELO, A Concepção do Poder em Fernão Lopes, Lisboa, Livros Horizonte, 1983 (com supressões).
1. Para responder a cada um dos itens, de 1.1 a 1.5, selecione a opção correta. Escreva, na folha
de respostas, o número de cada item e a letra que identifica a opção escolhida.
1.1 O excerto apresentado desenvolve a teoria de que Fernão Lopes insinua que
(A) D. Nuno Álvares Pereira foi o verdadeiro arquiteto da oposição a Leonor Teles.
(B) o Mestre de Avis agiu quer por astúcia quer por inspiração divina.
(C) a providência divina influenciou a resolução da crise dinástica.
(D) os opositores de Leonor Teles aguardavam a chegada de um redentor.
1.2 A expressão «sonhos, milagres, profecias e outros prodígios» (linhas 2 e 3) é utilizada para
(A) comprovar que houve provas de sinais providenciais relativas ao Mestre de Avis.
(B) evidenciar qual é o objetivo das crónicas de Fernão Lopes.
(C) listar os episódios centrais da Crónica de D. João I.
(D) exemplificar os presságios através dos quais a Divina Providência se manifesta.
1.4 O advérbio «ironicamente» (linha 12) refere-se ao modo como os adeptos de Leonor Teles
(A) denominaram o Mestre de Avis de forma depreciativa, sendo inimigos políticos.
(B) involuntariamente geraram uma ideia de predestinação relativa ao Mestre de Avis.
(C) expressaram a sua antipatia com a causa e as decisões do Mestre de Avis.
(D) mostraram que o Mestre de Avis devia a sua ascensão política a fatores externos.
1.5 Na frase «A morte do Andeiro provoca uma onda de simpatia pelo Mestre» (linhas 21 e 22),
encontramos o seguinte recurso expressivo:
(A) metáfora.
(B) personificação.
(C) apóstrofe.
(D) eufemismo.
2.2 Indique a língua de origem das palavras «alqueire» (linha 5) e «almogávares» (linha 16).
Justifique a sua resposta.