Psicanálise A Clínica Do Amor
Psicanálise A Clínica Do Amor
Psicanálise A Clínica Do Amor
Tese de Doutorado
Volume I
Rio de Janeiro
Setembro de 2002
Ficha Catalográfica
[10], 133 f. ; 30 cm
CDD: 150
Maria Thereza Toledo
A toda a minha família, em especial aos tios Victor (in memorian) e Yvone,
que são fundamentais na minha história. Agradeço também em especial à minha
mãe, Vera, pelos e-mails encorajadores, e pelo trabalho de revisar o meu texto.
Aos amigos que estão ao meu lado, alguns há muito tempo, que fazem parte
da minha vida, e, conseqüentemente, da confecção desse trabalho: Neil, Gurã, Dudu,
Rosário, Regina, Márcio, Tiana e Morgana. À Magaly agradeço separadamente, pelo
suporte em momentos de angústia.
À Theresa, minha irmã escolhida, que foi imprescindível, de várias formas,
para a realização desta tese. Agradeço a interlocução e a revisão dos textos, a
paciência para escutar as minhas reclamações, e o conforto da sua amizade.
A Victor Biglione, meu amor, por tudo que aprendemos juntos nesses
últimos anos; pela compreensão nos momentos finais deste trabalho; e,
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Palavras-chave
Amor Romântico; Romantismo; Ideal; Nostalgia; Completude; Narcisismo;
Complexo de Édipo; Escolha amorosa; Falta; Ilusão
Compte Rendu
Keywords
Romanticism, Romantic love, Psychoanalysis
Sumário
Introdução.. .............................................................................................................. 11
(Clarice Lispector)
Introdução
últimas décadas do século XX, que aborda de forma crítica às exigências do ideal
romântico. Autores como Rougemont (1988), Perrot (1991), Slater (1991), Bloom
(1996), Lasch (1991), Lázaro (1996), e Costa (1998) denunciam a disparidade
entre o que é prometido por este modelo de amor e as possibilidades concretas de
realização.
A construção do saber psicanalítico está inserida no contexto histórico, e
reproduz, em muitos aspectos, os paradigmas da cultura. Assim, a escuta de Freud
foi permeada pela concepção de amor que se oferecia para seus pacientes e demais
homens de seu tempo. Porém, pretendemos demonstrar que Freud, já nos
primórdios do século XX, faz uma oposição ao ideal de amor romântico,
aproximando a vivência amorosa das manifestações sintomáticas. Freud descreve
a experiência subjetiva de forma muito próxima do pensamento romântico, mas,
no que concerne ao amor, sua abordagem tem, quase sempre, uma conotação
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crítica
O objetivo desta tese é apresentar a ligação entre a invenção da psicanálise
e a ascensão do ideal de amor romântico, assinalando as várias facetas desta
relação. Apesar de Freud desconstruir o código romântico para a felicidade,
baseado na supremacia do sentimento amoroso, ele perpetua este modelo a partir
de enunciados que naturalizam a forma de amar derivada do romantismo.
Realizamos essa pesquisa dividindo-a em quatro capítulos. O primeiro
deles é dedicado a discutir o amor romântico. Destacamos as origens
socioeconômicas e os principais aspectos do romantismo que influenciaram a
ascensão deste ideal. Assim, focalizamos a condição nostálgica e a expectativa de
completude que caracterizam a experiência humana, e contribuem para
desencadear uma idealização em torno do encontro amoroso e do próprio
sentimento de amor. Enfocamos ainda a postura crítica de alguns autores diante do
mal-estar produzido pelas imposições do romantismo. Nessa parte, que finaliza o
capítulo, damos destaque às contribuições de Jurandir Freire Costa, que
recentemente se dedicou a este tema.
Na fase subseqüente do trabalho entramos no campo da psicanálise. No
segundo capítulo apresentamos a noção de amor elaborada por Freud, indicando
sua relação com o ideal de amor moderno. A concepção de Freud da existência
humana inclui a alusão a um sentimento nostálgico como um dos motores do
13
1
A Invenção do Amor Romântico Ocidental
1.1
As origens do romantismo
Tendo em vista os rígidos padrões que devem ser seguidos pelo artista
dentro do classicismo, deparamo-nos com outra característica marcante deste
estilo, seja na esfera da literatura, seja no que se refere a qualquer outro tipo de
manifestação artística. Trata-se do disciplinamento dos impulsos subjetivos, que
deve ser realizado por parte do autor. O autor clássico deve dominar os ímpetos da
interioridade; seu único desejo manifesto deve ser o desejo de ser objetivo. Dessa
forma, o escritor desaparece por trás da obra, trabalhando segundo regras
estabelecidas, às quais se conforma e se ajusta. A adequação ao conjunto de
regras pré-estabelecidas representa para o artista do classicismo seu grande
objetivo de produção, pois a isso está relacionada a validação da obra,
qualificando-a como verdadeiramente “clássica”. A obra de arte, segundo
Rosenfeld e Gunsburg,
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“...deve enobrecer o homem, purgando-o da carga de paixões que ele acumula na vida
social e não consegue descarregar, o Classicismo lhe dá um relevo específico,
vinculando-o à boa “forma” capaz de falar à razão.” ( ibid, 264)
“Em Descartes, como na filosofia que dele derivou, a interioridade esgota-se em uma
dimensão racionalista, expressa no cógito, e os filósofos fazem a análise da razão,
19
“Tal concepção, racional, fria, mecânica, constitui para Rousseau a maior fonte de erros,
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pelo que representa de artificial e desvitalizado. É a natureza vista através dos olhos da
ciência, produto, portanto, da cultura. (ibid:81)
“Em toda a história da arte e da cultura, a transferência de liderança de uma classe social
para uma outra raramente ocorre com tão absoluta exclusividade quanto no presente caso,
em que a aristocracia é completamente desalojada pela burguesia e a mudança de gosto,
que coloca a expressão no lugar da decoração não poderia ser mais clara.” (Hauser, 1998:
498)
1.2
O caráter nostálgico do romantismo
“sempre que os românticos descrevem suas concepções sobre a arte e o mundo a palavra
ou a idéia de desamparo insinua-se em suas frases” (Hauser, 1998: 673).
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1.3
O romantismo e o ideal amoroso de completude
“Um dia eu estudava sozinho minha lição no quarto contíguo à cozinha. A criada pusera
para secar na chapa os pentes da senhorita Lambercier. Quando voltou para apanhá-los,
havia um com todo um lado de dentes quebrado. A quem atribuir a culpa desse estrago?
Ninguém além de mim entrara no quarto. Interrogam-me; nego ter tocado no pente. (...)
Persisto com obstinação; mas a convicção era forte demais, persistiu sobre todos os meus
protestos, embora fosse a primeira vez que me tivessem encontrado tanta audácia em
mentir. (...)
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Faz agora quase cinqüenta anos dessa aventura, e não tenho medo de ser hoje punido uma
segunda vez pelo mesmo fato. Pois bem! Declaro diante do Céu que eu era inocente (...)
Não tinha ainda bastante razão para sentir quanto as aparências me condenavam, e para
me colocar no lugar dos outros. Mantinha-me no meu lugar, e tudo o que sentia era o
rigor de um castigo terrível por um crime que não cometera.” (Rousseau, apud
Starobinski, 1991: 20)
haveria algo errado na escolha deste amor ou com a forma de vivê-lo diariamente.
O amor, para Rousseau, deveria ser, além de fiel e recíproco, complementar.
Assim, o autor sustentou uma teoria naturalista também com relação à questão da
diferença sexual.
A acepção romântica, assim como qualquer outra tradição de pensamento
de sua época, sustentava uma nítida distinção de papéis sociais e conjugais para
homens e mulheres. As mulheres ficariam responsáveis pelos filhos e pela casa;
já os homens preocupar-se-iam com o sustento e a proteção da família. A natureza
de ambos seria a razão maior dessa divisão, já que o homem tinha a força e a
mulher a suavidade. Dentro do romantismo de Rousseau, esta divisão de papéis
evoca claramente a noção de complementaridade. O casamento poderia ser, dessa
forma, o acesso à unidade absoluta, buscado pela natureza humana. Como assinala
Allan Bloom,
“a concepção romântica do amor procurava combinar o mais puro desejo com a mais
completa satisfação física. (...) E fazia isso por meio de um ideal de amor entre homens e
mulheres radicalmente diferentes, e, conseqüentemente, totalmente complementares.”
(Bloom, 1996: 29-30)
“O sistema familiar burguês, que alcançou seu pleno florescimento no século XIX e agora
parece estar decaindo lentamente, se apoiava no que os sociólogos denominaram
‘casamento de companheirismo’, centrado na educação doméstica das crianças, na
emancipação ou quase emancipação da mulher e no isolamento estrutural da família
nuclear em relação ao sistema de parentesco e à sociedade em geral. A família encontrou
respaldo ideológico e justificação no conceito de vida doméstica como refúgio emocional
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“A morte dos amantes significa não a derrocada da idéia de amor, mas um sacrifício por
meio do qual funda-se um mito de origem do amor moderno – experimentado como um
conflito irremediável contra a sociedade. “(Lázaro, 1996: 136)
“Romeu e Julieta jamais duvidam da legitimidade de seu amor. É essa crença que dá
ânimo aos dois amantes a persistirem contra tudo e contra todos, (...) eles não se apegam
aos papéis de membros da aristocracia, com suas obrigações e deveres correlatos, mas se
defrontam, primordialmente, como indivíduos singulares que devem ser fiéis, antes de
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primeira a partir da qual os sujeitos se unem pelo laço conjugal. Mais ainda, o
anseio à unidade absoluta alimenta o sonho de encontrar o amor perfeito, sem
rupturas. A esse propósito, recorremos a um comentário de Perrot, para quem
Rousseau “redesenhou o mito de um andrógino espiritual” (Perrot, 1991: 116).
Assinalamos que a idealização do amor, facilitada pela difusão dos valores
congregados por Rousseau, é inflacionada pelo sucesso do capitalismo e do
crescimento econômico, aliado, cada vez mais, à ideologia consumista. Lázaro
nos lembra que os processos de massificação e individualização são simultâneos
e complementares no século XX; ao mesmo tempo em que a cultura de massa
estratifica os desejos e projetos da população, ela vende o ideal da singularidade,
da realização única e pessoal. Nessa dinâmica, o amor, como tema central da
felicidade moderna, é presença obrigatória na propaganda e, especialmente, nas
produções da indústria da cultura. O encontro da “alma gêmea” é veiculado de
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forma maciça como a solução para todos os males, e como o meio de acesso à
singularização e à felicidade.
Capuzzo, em trabalho dedicado a analisar as estratégias narrativas do
drama romântico no cinema, observa que, ao longo do século XX, as mais
diversas produções exibidas foram, em sua essência, variações em torno de um
mesmo tipo de história de amor. O autor compara dois grandes sucessos de
bilheteria da indústria cinematográfica, ...E o Vento Levou (1939) e Titanic
(1997), assinalando que a grande empatia despertada no público deve-se, em
ambos os casos, à utilização habilidosa que fizeram Victor Fleming e James
Cameron, respectivamente, do ideal de amor romântico.
“Não se pode considerar Titanic como sendo apenas um filme catastrófico, da mesma
forma que ...E o Vento Levou não é somente uma encenação de cunho histórico sobre a
guerra da secessão. Ambos dialogam, intertextualmente, com o drama romântico, numa
estranha e impactante simbiose.” (Capuzzo, 1999: 217)
felicidade plena e contínua. Nesse sentido, Jablonski observa que o amor tornou-
se, ao mesmo tempo, “fator de união e desagregação do casamento
contemporâneo” (Jablonski, 1988: 83).
Valores como confiança, comunhão de idéias, cumplicidade, etc.
apresentam-se como opositores do amor-paixão, e não como agregados, conforme
propunha Rousseau. Sabemos que a união conjugal, na época de Rousseau, não
era sempre fonte de harmonia e felicidade. Desde que a cultura romântica,
atrelada aos interesses individualistas, propaga o amor como fonte primeira de
realização, o contraste entre ideal e realidade produz sofrimento. Entretanto, a
filosofia de Rousseau acenava com uma proposta viável, já que o amor, que
deveria sustentar uma relação duradoura, não se reduzia à efemeridade da paixão.
Já no contexto atual, amor e sofrimento parecem estar, necessariamente,
associados. Nessa perspectiva, terminaremos esse capítulo fazendo uma breve
exposição da crítica contemporânea ao ideal de amor romântico, onde
privilegiamos as reflexões de Jurandir Freire Costa sobre o tema. Sua linha de
abordagem denuncia a naturalização de invenções culturais, o que provoca a
aceitação de modelos impostos sem a possibilidade de questioná-los.
Identificamos essa postura crítica com a hipótese de que a psicanálise reproduz o
ideal de amor romântico, tornando tendência natural e universal aquilo que é, na
verdade, aprendido culturalmente. Esta é uma das facetas da relação entre
psicanálise e ideal de amor romântico, que pretendemos demonstrar nos próximos
37
1.4
Uma crítica ao ideal de amor romântico
inesgotável de conflitos.
Costa observa que, embora o amor seja cultuado, a ideologia atual
preconiza, ao mesmo tempo, o consumo ilimitado de sensações prazerosas,
sustentando o lema: “busque o seu lugar numa sociedade de ofertas múltiplas,
encontre seu produto favorito no supermercado de sensações” (Costa, 1999:123).
O imperativo do prazer opõe-se à tolerância, à capacidade para lidar com
frustrações inerentes a todo tipo de relacionamento. Isso dificulta a manutenção
das relações amorosas, uma vez que a paixão dissocia-se dos sentimentos ternos.
Como resultado, o outro passa a ser visto com desconfiança e a crença na
possibilidade real de ser amado fica abalada. Porém, a idéia de que o amor é o
bem supremo a ser alcançado continua inabalável, e o desejo de perpetuar a
ligação amorosa não se rende às adversidades.
Nesse contexto, qualquer frustração é experimentada como incapacidade
pessoal, já que o amor romântico é apresentado como manifestação espontânea da
natureza humana.
“As exigências da felicidade romântica, vistas de perto, são tão ou mais despóticas do que
a maioria dos ideais de autoperfeição que o ocidente inventou. Nem os ideais de bravura,
coragem, santidade, virgindade espiritual, castidade corpórea, quietismo, apatia ou outros
ousaram pedir tanto de seus crentes, fiéis discípulos ou praticantes. A Razão, a Sabedoria,
Deus, a Dama, a História, a Democracia souberam ser mais clementes com a fragilidade
de que somos feitos.” (Costa, 1998: 98)
satisfações imediatas e o ideal de amor eterno concorre para exacerbar este ideal,
que passa a representar o refúgio dentro de um mundo de experiências fugazes.
Assim, a cultura das sensações fortalece a idealização do amor e
enfraquece a possibilidade de sua realização prática. Nesse contexto, o amor deve
oferecer o êxtase passional, dentro de um projeto de satisfação plena, que dure
para sempre. Entretanto, o dia-a-dia transcorre de forma muito distante da
publicidade hollywoodiana, e o que observamos é “um mundo hipnotizado pela
obsessão amorosa” (Costa, 1999: 134).
“O culto irrefletido ao amor romântico, é verdade, pode nos levar aos céus do êxtase
apaixonado. Mas também pode nos fazer viver, de modo quase permanente, no inferno de
uma vida sem alegria, dilacerada pela falta de sentido e de esperanças.”(Costa, 1999: 134)
“...vive da própria vida dos que acreditam que o amor é um destino; que ele fulmina o
homem impotente e maravilhado para consumi-lo num fogo puro; e que ele é mais forte e
verdadeiro que a felicidade, a sociedade e a moral. Vive da própria vida do romantismo
em nós.” (Rougemont, 1988: 23)
“ele olha para trás, daí sua preocupação com temas de nostalgia e perda. Ele é
fundamentalmente incestuoso, por isso a ênfase em obstáculos e não-realização. Seu real
objeto (...) é a imagem fantasiada dos pais que foram retidos, intemporal e imutavelmente,
no inconsciente. O amor romântico é mais raro nas comunidades primitivas simplesmente
porque as ligações entre filhos e pais são mais casuais. As crianças em geral têm muitos
educadores e se habituam ao fato de que existem muitas fontes alternativas de amor. A
moderna criança ocidental criada numa pequena casa isolada não partilha desse
sentimento de substitubilidade. Sua vida emocional é por demais atada a uma única
pessoa. “ (Slater, 1991: 245)
“O mito dos heróis e heroínas amorosos que seqüestrou nossos espíritos é “mais” e
“menos” do que sabemos e podemos. É mais se aceitarmos ser vítimas impotentes do
fetiche amoroso; é “menos” se aceitarmos que a emoção amorosa não nasceu pronta e
acabada em algum lugar da mente, e pode ser aperfeiçoada por outros sentimentos, razões
e ações. Nem crédulos, nem desconfiados, talvez a melhor pergunta sobre o amor seja
aquela dirigida à nossa vontade de potência: como fazer da vida o que queremos e não a
cópia daquilo que quiseram por nós?” (Costa, 1998: 22)
ideal de amor vigente pode ser um ponto de partida para novas possibilidades de
realização, talvez mais condizentes com nossas fragilidades, e que tragam novas
soluções para as dificuldades intersubjetivas atuais.
42
2
A Teoria Freudiana Sobre O Amor
“Em parte alguma o conflito interior da alma romântica se reflete de modo tão direto e
expressivo quanto na figura do “segundo eu”, que está sempre presente ao espírito
romântico e repete-se em inúmeras formas e variações na literatura romântica. (...) Nessa
fuga da realidade [o Romantismo], descobre no inconsciente, aquilo que está escondido
em segurança da mente racional, a origem de seus sonhos de realizações de desejo e de
soluções irracionais de seus problemas. Descobre que “duas almas habitam em seu seio”,
que algo em seu íntimo sente e pensa não ser idêntico a si mesmo, que carrega consigo
seu demônio e seu juiz – em suma, descobre os fatos básicos da psicanálise. (Hauser,
1998: 679-680)
2.1
O referencial narcísico do amor
amou na infância.
Quando, em 1914, Freud escreve Sobre o narcisismo: uma introdução, a
noção de narcisismo é tomada como objeto de estudo de forma mais aprofundada
e sofre vários desdobramentos. Entre estes, interessa-nos especialmente a questão
da escolha amorosa, bem como as discussões sobre o narcisismo primário e o
ideal do ego, que são fundamentais para a abordagem do amor pelo viés narcísico.
Já em 1911, no Caso Schreber, Freud descreve o narcisismo como uma
fase da evolução sexual intermediária entre o auto-erotismo e o amor de objeto.
Nesta etapa do desenvolvimento haveria uma primeira unificação das pulsões
sexuais, até então dispersas, e o investimento num primeiro objeto amoroso, que
seria o ego. Só após esse movimento a libido poderia tomar um objeto externo
como objeto de amor. A inclusão do narcisismo na teoria da sexualidade traz
importantes conseqüências para a noção de ego e conduz a uma reformulação na
teoria da libido, desenvolvida no texto de 1914.
Em Sobre o narcisismo: uma introdução Freud afirma que para que se
produza uma unidade comparável ao ego é necessária “uma nova ação psíquica”
(Freud, 1914: 93), ou seja, o ego não existe no indivíduo desde o início, mas
ocorre como produto de um desenvolvimento. Nessa perspectiva, o narcisismo
funciona como fundador do ego. O investimento de toda a libido da criança em si
mesma, que configura o narcisismo primário, coincide com o momento inaugural
do ego como uma totalidade unificada e diferenciada de outros objetos.
44
2.1.1
O narcisismo primário
1
Essa abordagem do ego é desenvolvida, por exemplo, nos Estudos sobre a Histeria, e nos Três
Ensaios sobre a Teoria da sexualidade.
2
Abordaremos nos próximos capítulos as críticas de Lacan e de Winnicott à idéia de narcisismo
primário. Melanie Klein, que representa uma terceira tradição de pensamento da psicanálise pós-
freudiana, não considera relevante a discussão deste postulado; em sua teoria não há quase
referências ao narcisismo primário.
45
“O narcisismo primário das crianças por nós pressuposto e que forma um dos postulados
de nossa teoria da libido, é menos fácil de apreender pela observação direta do que de
confirmar por alguma outra inferência. Se prestarmos atenção à atitude de pais afetuosos
para com seus filhos, temos de reconhecer de que ela é uma revivescência e reprodução
de seu próprio narcisismo, que de há muito abandonaram. O indicador digno de
confiança, constituído pela supervalorização, que já reconhecemos como um estigma
narcisista no caso da escolha objetal, domina, como todos nós sabemos, a atitude
emocional. Assim eles se acham sob a compulsão de atribuir todas as perfeições ao filho
– o que uma observação sóbria não permitiria – e de ocultar e esquecer todas as
deficiências dele.” (Freud, 1914: 107-108)
Freud assinala que o amor dos pais nada mais é do que o seu próprio
narcisismo renascido, o que faz deste sentimento uma forma infantil de atitude
emocional. As afirmações de Freud sobre o narcisismo primário remetem à
imagem de um ego completo, que basta a si mesmo e pode prescindir dos objetos.
O narcisismo primário, nesse sentido, é um estado de perfeição e completude que
46
“A criança terá mais divertimentos que seus pais; ela não ficará sujeita às necessidades
que eles reconheceram como supremas na vida. A doença, a morte, a renúncia ao prazer,
restrições a sua vontade própria não a atingirão; as leis da natureza e da sociedade serão
ab-rogadas em seu favor; ela será mais uma vez realmente o centro e o âmago da criação
– ‘Sua Majestade o Bebê’, como nós outrora nos imaginávamos. A criança concretizará
os sonhos dourados que os pais jamais realizaram- o menino se tornará um grande homem
e um herói em lugar do pai, e a menina se casará com um príncipe como compensação
para sua mãe. (Freud, 1914: 108)
3
Utilizamos o termo idealização, ao longo do capítulo, com a conotação conferida por Freud em
1921, em Psicologia das massas e análise do ego. Neste artigo Freud define idealização como a
tendência a enaltecer as características da pessoa amada, que leva a falsificar a percepção e o
julgamento.
47
“Esse ego ideal é agora alvo do amor de si mesmo (self love) desfrutado na infância pelo
ego real. O narcisismo do indivíduo surge deslocado em direção a esse novo ideal, o qual,
como o ego infantil, acha-se possuído de toda perfeição de valor. Como acontece sempre
que a libido está envolvida, mais uma vez aqui o homem se mostra incapaz de renunciar a
48
um satisfação que outrora desfrutou. (...) O que ele projeta diante de si como sendo seu
ideal é o substituto do narcisismo perdido de sua infância na qual ele era o seu próprio
ideal.” (Freud, 1914: 111)
Notemos que Freud traça uma diferenciação nítida entre o ego real e o
ideal do ego. O ideal do ego está relacionado ao despertar do julgamento crítico,
pois serve constantemente como parâmetro para a auto-estima, ou seja, para que o
ego real possa considerar-se digno de ser amado e admirado. Em relação à noção
de ego ideal, embora Freud utilize esse termo no trecho acima citado, não
encontramos elaborações significativas que nos permita diferenciar ego ideal e
ideal do ego. Este desdobramento foi feito de forma meticulosa por Lacan,
criando nuances para a abordagem do narcisismo que têm repercussões
importantes no tema do amor. Freud, entretanto, não se dedicou a essa questão.
Quando ele se refere ao ego ideal no texto sobre o narcisismo trata-se, na maioria
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das vezes, de um sinônimo para ideal do ego, assim como, mais tarde, em O ego e
o Id, ideal do ego e superego serão termos equivalentes.
O ideal do ego representa a satisfação narcísica possível, uma vez que a
completude figurada pelo narcisismo primário não é sustentável. Entre as funções
do ideal, já ressaltamos que uma delas, que nos interessa em especial, remete à
questão da escolha amorosa. De fato, o objeto de amor precisa obedecer às
exigências do ideal do ego para que seja eleito. Mas antes de aprofundarmos esse
ponto, discutindo os dois tipos de escolha objetal descritos por Freud em 1914 –
anaclítico e narcisista - abordaremos o ideal do ego a partir da dinâmica amorosa,
na qual o objeto amoroso pode ocupar o lugar do próprio ideal.
2.1.2
A relação entre o amor e o ideal do ego
mantém ligação com as intenções narcisistas “assim como o corpo de uma ameba
está relacionado com os pseudópodes que produz” (Freud, 1914: 92).
Dessa forma, o ego não deixa de ser objeto de amor na medida em que os
objetos externos passam a ser levados em consideração, pois a libido pode se
distribuir nessas duas formas de investimento. A partir da hipótese do narcisismo,
Freud faz um remanejamento em sua teoria das pulsões. O dualismo pulsional até
então sustentado traçava um antagonismo entre pulsões do ego (ou de
autoconservação) e pulsões sexuais. No momento em que o ego passa a ser
considerado objeto de amor esta distinção torna-se complexa, e Freud introduz
uma nova diferenciação que diz respeito à qualidade da libido.
A libido poderá ser narcísica ou objetal, dependendo do alvo do
investimento. Entretanto, Freud não abandona o primeiro dualismo pulsional em
1914, e mantém a noção de pulsão de autoconservação, que vai ser equivalente ao
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“Vemos, em linhas gerais, uma antítese entre a libido do ego e a libido objetal. Quanto
mais uma é empregada, mais a outra se esvazia. A libido objetal atinge sua fase mais
elevada de desenvolvimento no caso de uma pessoa apaixonada, quando o indivíduo
parece desistir de sua própria personalidade em favor de uma catexia objetal, ao passo que
temos a condição oposta na fantasia do paranóico (ou autopercepção) do ‘fim do
mundo’.” (Freud, 1914: 92
“Nós o amamos por causa das perfeições que nos esforçamos por conseguir para nosso
próprio ego e que agora gostaríamos de adquirir, dessa maneira indireta, como meio de
satisfazer nosso narcisismo.” (Freud, 1921: 143)
2.1.3
A escolha do objeto de amor a partir do narcisismo
“A corrente afetiva é a mais antiga das duas. Constitui-se nos primeiros anos da infância;
forma-se na base do interesse da pulsão de autopreservação e se dirige aos membros da
família e aos que cuidam da criança. (...) Corresponde à escolha de objeto, primária, da
criança.” (Freud, 1912: 164)
4
Essas características são também conferidas às relações objetais na organização genital da
sexualidade, indicando o acesso a um modelo de relacionamento amoroso e sexual que ultrapassa
o padrão infantil.
53
“Resta-nos agora reunir o que sabemos da gênese do amor e do ódio. O amor deriva da
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“Rigorosamente falando, tais mulheres amam apenas a si mesmas, com uma intensidade
comparável a do amor do homem por elas. Sua necessidade não se acha na direção de
amar, mas de serem amadas; e o homem que preencher essa condição cairá em suas boas
graças”. (Freud, 1914:105)
“...a literatura ‘inventou’ o amor burguês e o casamento burguês abriu espaço para uma
invasão literária que enriqueceu o imaginário das mulheres compensando frustrações,
rompendo o isolamento em que viviam as donas de casa, abrindo vias fantasiosas de
gratificação, mas, sobretudo, dando voz às experiências isoladas das filhas e esposas da
família oitocentista.” (Kehl, 1998: 97)
“Parece muito evidente que o narcisismo de outra pessoa exerce grande atração sobre
aqueles que renunciaram a uma parte de seu próprio narcisismo e estão em busca do amor
objetal.” (Freud, 1914: 105-106)
“Na oposição entre libido do Eu e libido objetal, lidamos com uma força única, na qual
somente seus fins podem entrar em contradição. Freud mostra, a propósito do amor, que o
narcisismo tira vantagem disso: o objeto externo é simplesmente posto no lugar do Eu ou
do ideal do eu. O conjunto funciona segundo o princípio de vasos comunicantes: o que o
narcisismo perde de um lado, recupera do outro.” (Millot, 2001: 82)
2.2
O referencial edipiano do amor
2.2.1
A história edipiana e sua relação com o narcisismo
lhe seja tirado o pênis, tão valioso em sua economia psíquica, e motivo de
orgulho.
Em A Organização Genital Iinfantil, (1923) Freud inclui a fase fálica no
processo evolutivo psico-sexual. Tal interpolação é construída afirmando que,
quando os genitais passam a ser fonte privilegiada de prazer, é apenas o órgão
masculino que existe para as crianças. Trata-se de uma fase correlata à descoberta
da diferença anatômica entre os sexos, e nesse movimento a anatomia feminina
não é compreendida como um outro sexo, um sexo feminino, mas como o
resultado de uma castração. Assim, a diferença sexual, nesse momento, não é
inscrita psiquicamente; apenas o falo é levado em consideração, podendo estar
ausente ou presente.
A noção de falo, dessa forma, não se refere simplesmente ao órgão
anatômico. O falo funciona como símbolo do narcisismo, e a fantasia de castração
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“Os distúrbios aos quais o narcisismo original de uma criança se acha exposto, as reações
com que ele procura proteger-se deles e os caminhos aos quais fica sujeita ao faze-lo –
tais são os temas que proponho deixar de lado, como importante campo de trabalho ainda
por explorar. Sua parte mais importante , contudo, pode ser isolada sob a forma do
‘complexo de castração’”(Freud, 1914: 109)
“Dá-se assim a diferença essencial de que a menina aceita a castração como um fato
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“Enquanto nos meninos o complexo de Édipo é destruído pelo complexo de castração, nas
meninas ele se faz possível e é introduzido pelo complexo de castração”. (Freud, 1925: 318).
“a intensa dependência de uma mulher quanto ao pai simplesmente assume a herança de uma
ligação igualmente forte com a mãe” (Freud, 1931:261-262).
Sabemos que Freud faz coincidir a vivência edípica com a fase fálica das
crianças, enquanto o narcisismo é um estado experimentado desde a formação do
ego. Porém, podemos afirmar que uma das principais facetas do amor incestuoso é
a busca da plenitude narcísica. É verdade que, para Freud, a experiência da
castração referida ao falo encontra um lugar diferenciado na formação subjetiva;
daí o caráter organizador da vivência edipiana. Mas Freud também considera o
complexo de castração como uma formação psíquica que se opõe à onipotência do
narcisismo infantil.
Como veremos no próximo capítulo, essa visada foi desenvolvida
especialmente por Lacan, que considerou o Édipo uma estrutura que organiza a
construção do sujeito, desde seu nascimento. Mas a partir dos próprios escritos
freudianos podemos extrair a idéia de que narcisismo e complexo de Édipo são
teorias que apresentem a mesma questão: a tendência humana a restaurar uma
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“Se nos detivermos um pouco nessas situações de perigo, podemos dizer que, de fato,
para cada estádio do desenvolvimento está reservado, como sendo adequado para esse
desenvolvimento, um especial fator determinante de angústia. O perigo de desamparo
psíquico ajusta-se ao estádio da imaturidade inicial do ego; o perigo de perda de um
objeto ( ou perda do amor) ajusta-se à falta de auto-suficiência dos primeiros anos da
infância; o perigo de ser castrado ajusta-se à fase fálica; e, finalmente, o temor ao
superego, que assume uma posição especial, ajusta-se ao período de latência.” (Freud,
1933: 111)
libidinais não inibidos em seu objetivo. Freud diz que o menino quer copular com
a mãe, mas afirma também que ele está apaixonado por ela.
O menino quer ser o objeto exclusivo do amor materno; ele deseja a
atenção, os cuidados e o reconhecimento da mãe só para ele. Daí a rivalidade
característica da experiência edipiana. Não só o pai, mas os irmãos, ou qualquer
um que desperte o interesse da mãe, são tomados como rivais. Freud assinala que
“a menina gosta de considerar-se como aquilo que seu pai ama acima de tudo o
mais”e que “o menino encara a mãe como sua propriedade” (Freud, 1924: 217).
Além do desejo sexual, o amor edípico, como todos os outros, envolve
idealização. O objeto amado é supervalorizado, assim como a própria união
amorosa. A respeito da fantasia de castração, Freud observa:.
retornar ao útero materno é um sucedâneo desse desejo de copular. ( Freud, 1932: 110)
Notamos que Freud aproxima o desejo incestuoso ao anseio por uma fusão
com o objeto de amor. Essa imagem de plenitude remete, inevitavelmente, à
totalidade narcísica, da qual os sujeitos não querem abrir mão. Assim, conformar-
se com a ausência do falo, ou com a impossibilidade de fundir-se com o corpo
materno, seria uma forma de renunciar à completude narcísica.
Entretanto, embora o amor edipiano esteja inserido numa lógica narcísica,
notamos que na dissolução do complexo de Édipo os interesses edípicos e
narcisistas atuam como forças opostas entre si. No caso do menino, quando os
desejos sexuais se tornam mais intensos, a ponto da fantasia de castração assumir
o seu poder coercitivo, ele renuncia ao desejo incestuoso para preservar o falo.
Assim, Freud assinala uma distância entre narcisismo e Édipo, observada no
desfecho da vivência edipiana. Nesse momento parece haver uma cisão entre
amor e sexualidade, verificada especialmente no desenvolvimento das meninas.
Freud afirma que, junto com o medo da castração, o menino teme perder o
amor dos pais caso insista em seus propósitos edípicos. Mas quanto à menina, a
perda de amor é a ameaça fundamental que a leva a renunciar ao objeto de amor
edipiano. Durante a experiência edípica ela está apaixonada pelo pai, atitude esta
que envolve a fusão de impulsos estritamente sexuais com sentimentos e
expectativas idealizadas. Na dissolução do complexo de Édipo o amor funciona
65
como oponente do desejo sexual. Para continuar a ser objeto de amor, a menina
renuncia ao desejo de ser objeto sexual. Ela abandona o Édipo, mas mantém a
fantasia edípica, que produzirá efeitos nas escolhas amorosas futuras. Freud
assinala:
“Em seu sexo, o que sucede é o temor à perda de amor, o que é, evidentemente, um
prolongamento posterior da angústia da criança, quando constata a ausência da mãe. (...)
Se uma mãe está ausente ou retirou seu amor de seu filho, este não tem mais certeza de
que suas necessidades serão satisfeitas e talvez seja exposto aos mais angustiantes
sentimentos de tensão. Não rejeitem a idéia de que esses fatores determinantes de
angústia possam, no fundo, repetir a situação de angústia original, ocorrida no
nascimento, que , de fato, também representou uma separação da mãe”. (Freud, 1933:
110)
Freud ressalta que o medo de perder o amor dos pais é uma preocupação
básica das crianças em geral. Notamos que na citação acima ele descreve o amor
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“...os ideais ganham força e valor na medida em que satisfazem a demanda de amor; com
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efeito, a gente se identifica com tal ou qual traço para ser reconhecida, estimada, amada.”
(Julien, 1996 p. 124)
“Quando um relacionamento amoroso se encontra em seu auge, não resta lugar para
qualquer outro interesse pelo ambiente; um casal de amantes se basta a si mesmo. (...) Em
nenhum outro caso Eros revela tão claramente o âmago do seu ser, o intuito de, de mais
de um, fazer um único.” (Freud, 1930: 129)
5
Em uma das Novas Conferências Introdutórias (1932), A Dissecção da personalidade psíquica,
Freud organiza a relação entre essas duas noções. Ele assinala que o superego tem , entre outras, a
função de ser veículo do ideal do ego, através do qual o ego é estimulado a cumprir uma
exigência sempre maior de perfeição.
67
2.2.2
O amor transferencial
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2.2.2.1
A Transferência como reedição da vivência edípica
“...Uma análise sem transferência é uma impossibilidade. Não se deve supor, todavia, que
a transferência seja criada pela análise e não ocorra fora dela. A transferência é
meramente descoberta e isolada pela análise. Ela é um fenômeno universal da mente
humana, decide o êxito de toda influência médica, e de fato domina o todo das relações de
cada pessoa com seu ambiente humano.”(Freud, 1925: 56)
“Eles desenvolvem para com seu médico relações emocionais, tanto de caráter afetuoso
como hostil, que não se baseiam na situação real, mas que derivam de suas relações com
os pais (o complexo de Édipo). A transferência é uma prova do fato de que os adultos não
superaram sua antiga dependência infantil.” (Freud, 1926: 306)6
“Não temos o direito de contestar que o estado amoroso que faz seu aparecimento no
decurso do tratamento analítico tenha o caráter de um amor genuíno. Se parece tão
desprovido de normalidade, isto é suficientemente explicado pelo fato de que estar
enamorado na vida comum, fora da análise, é também mais semelhante aos fenômenos
mentais anormais do que aos normais.” (Freud, 1914: 218)
6
Trecho do escrito Psicanálise.
69
“Se a necessidade que alguém tem de amar não é inteiramente satisfeita pela realidade,
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ele está fadado a aproximar-se de cada nova pessoa que encontre com idéias libidinais
antecipadas.” (Freud, 1912: 134)
7
Termo utilizado por Freud em Análise Terminável e Interminável (1937).
71
amorosa em sua vida e decide interromper a análise, optando por uma espécie de
“cura pelo amor”. A esse respeito, Freud declara:
“Poderíamos ficar satisfeitos com esse resultado, se ele não trouxesse consigo todos os
perigos de uma dependência mutiladora em relação aquele que o ajuda.” (Freud, 1914:
119)
2.2.2.2
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“Qualquer escolha levada a um extremo condena o indivíduo a ser exposto a perigos, que
surgem caso uma técnica de viver, escolhida como exclusiva, se mostre inadequada.”
(Freud, 1930: 103)
“Evidentemente, estou falando da modalidade de vida que faz do amor o centro de tudo,
que busca toda a satisfação em amar e ser amado. Uma atitude psíquica desse tipo chega
de modo bastante natural a todos nós; uma das formas através da qual o amor se
manifesta – o amor sexual – nos proporcionou nossa mais intensa experiência de uma
transbordante sensação de prazer, fornecendo-nos assim um modelo para nossa busca de
felicidade. Há, porventura, algo mais natural do que persistirmos na busca da felicidade
no modo do modo como a encontramos da primeira vez ?” (Freud, 1930: 101).
“O lado fraco dessa técnica de viver é de fácil percepção, pois, do contrário, nenhum ser
humano pensaria em abandonar esse caminho da felicidade por qualquer outro. É que
nunca nos achamos tão indefesos contra o sofrimento como quando amamos, nunca tão
desamparadamente infelizes como quando perdemos o nosso objeto amado ou o seu
amor.” (Freud, 1930: 101)
Mas não é esse tipo de satisfação amorosa que se busca para a realização
pessoal típica do individualismo romântico. A clínica psicanalítica funda um
espaço voltado para a escuta das fantasias e frustrações humanas e, desse modo,
Freud depara-se, desde o início de sua prática, com as dores causadas pela
imposição do ideal de amor romântico como única via para a felicidade.
Assim, a direção do tratamento toma o sentido oposto ao da idealização
romântica. Através da análise, o sujeito deve abandonar o objeto de amor
incestuoso, que continua a ser investido na fantasia, e abrir mão da perfeição
narcísica. Entretanto, a clínica psicanalítica, ao acolher o mal-estar originado pelo
ideal de amor romântico, representa uma das conseqüências da ordem social que
possibilita a ascensão desse ideal. Apesar de criticar o modelo romântico de amor,
a proposta clínica inaugurada por Freud assinala o poder deste ideal na vida das
pessoas. Se a psicanálise funda uma técnica que se opõe à supervalorização do
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objeto amado é porque essa tendência caracteriza a dinâmica psíquica que Freud
se preocupa em compreender.
Desse modo, a relação entre a invenção freudiana e o ideal de amor
romântico não é uma questão muito simples. Freud critica o amor idealizado e as
exigências de completude, além de denunciar o mal-estar resultante das injunções
românticas. Ao mesmo tempo, naturaliza a forma de amar construída pela cultura,
ao afirmar que a busca da felicidade através do amor é um destino natural do ser
humano. A psicanálise freudiana, assim, apresenta dois tipos de inserção na ordem
social, no que se refere ao amor: uma encontra-se em consonância com a proposta
romântica, e outra desconstrói esse projeto de amor, denunciando suas falhas.
Ressaltamos, enfim, que a problemática do amor perpassa toda a criação
da psicanálise. Freud não dedicou um número significativo de escritos
exclusivamente a essa questão, mas articulou quase todas as suas preocupações
teóricas, da constituição do ego às orientações técnicas, à temática amorosa.
75
3
A Concepção de Amor no Ensino de Lacan
3.1
A construção do sujeito a partir da falta de objeto
3.1.1
O processo de alienação e separação e sua relação com o objeto
perdido
8
É importante assinalar que, ao criticar a genitalidade como postulado psicanalítico, Lacan se
dirije, quase sempre, à psicologia do ego e aos teóricos da relação objetal como um todo, sem levar
em consideração as distinções existentes entre os diversos autores que integram essas duas
correntes. Ressaltamos que nem todos esses autores utilizam a idéia de relação genital como um
estágio acabado da sexualidade, viabilizado pela maturação do objetivo pulsional. Balint, por
exemplo, refere-se à genitalidade como um padrão de relacionamento que é construído a partir da
relação com o outro, e que não indica plena harmonia. Conferir Sobre o amor genital (Balint,
1959)
77
Para Lacan, a sexualidade infantil descoberta por Freud não diz respeito
exatamente à existência de manifestações sexuais na vida das crianças, ou seja, o
infantil não designa a idade da sexualidade, ou uma fase do desenvolvimento;
designa, antes de tudo, a peculiaridade da sexualidade humana. Não há, assim, um
estágio final para o sexual, onde o infantilismo é ultrapassado. Nesse sentido, o
acesso à função reprodutora não impulsiona a sexualidade rumo a outros fins,
adequados à maturação do corpo biológico. Sobre o caráter infantil da
sexualidade, Elia comenta:
“Infantil é a sexualidade a partir da qual o sujeito humano advém, por ser falante. (...)
Infantil não porque ocorre na infância, embora ela, de fato, ali ocorra. Infantil como é
para Freud toda a sexualidade, em qualquer tempo biográfico em que a captemos, na
trajetória existencial do sujeito humano. Infantil como a reencontramos na análise. Freud
batizou de infantil a sexualidade que conceitualizou a partir da clínica, afirmando, em
contrapartida, a sua exclusividade: não há outra, só existe, do ponto de vista psicanalítico,
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precisamos abordar aquilo que causa esta operação, fazendo com que a relação
sujeito e objeto seja sempre, necessariamente, insatisfatória e incompleta.
Para Lacan existe uma falta fundamental, a partir da qual o sujeito orienta
seu desejo e seu posicionamento frente ao Outro9, que é a falta de um objeto
satisfatório para a satisfação pulsional. Este objeto, que é mencionado na obra
freudiana como objeto perdido, segundo Lacan nunca foi encontrado, ou seja, é
perdido desde sempre, por imposição da estrutura da linguagem.
Lacan parte da idéia freudiana de que todo encontro com o objeto é, na
verdade, um reencontro, que foi desenvolvida nos Três Ensaios sobre a Teoria da
Sexualidade, e faz a seguinte interpretação:
“Uma nostalgia liga o sujeito ao objeto perdido, através da qual se exerce o esforço de
busca. Ela marca a redescoberta do signo de uma repetição impossível, já que,
precisamente, este não é o mesmo objeto, não poderia sê-lo. A primazia dessa dialética
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coloca, no centro da relação sujeito-objeto, uma tensão fundamental, que faz com que o
que é procurado não seja procurado da mesma forma que o que será encontrado. (...)
Existe aí uma distância fundamental, introduzida pelo elemento essencialmente conflitual
incluído em toda busca de objeto. Esta é a primeira forma sob a qual, em Freud, aparece a
relação de objeto. (Lacan, 1956-1957: 13)
9
O Outro, com letra maiúscula, diz respeito à alteridade radical, instituída a partir do simbólico.
Para referir-se ao semelhante Lacan utiliza a palabra outro com letra minúscula.
79
seio quando a mãe não está presente ou se nega a amamentá-la. Da mesma forma,
só podemos falar em sujeito a partir da ausência do objeto, que possibilita a ordem
do desejo e da demanda. De fato, se todas as necessidades da criança fossem
antecipadas, se o desconforto nunca fosse experimentado, ela não entraria no jogo
da linguagem. Assim, no contexto da experiência subejtiva o objeto sempre esteve
perdido, pois o nascimento do sujeito depende da separação entre mãe e bebê.
Entretanto, apesar de o objeto perdido, na verdade, nunca ter havido, sua
ausência produz efeitos sobre o sujeito, funcionando como causa do desejo. É o
que Lacan denomina objeto a: um objeto inapreensível, para o qual se dirige o
desejo. Essa idéia torna-se mais clara se abordada através dos processos de
alienação e separação, que é uma das formas utilizadas por Lacan para explicar a
construção do sujeito.
O conceito de alienação diz respeito à inserção da criança no campo do
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“A bolsa ou a vida! Se escolho a bolsa, perco as duas. Se escolho a vida, tenho a vida sem
bolsa, isto é, uma vida decepada.” (Lacan, 1964: 201)
Se o sujeito optasse pela bolsa, perderia a vida e, nesse caso, nem mesmo
poderíamos falar em sujeito. Ao escolher, por outro lado, a vida dá-se o
nascimento do ser falante, a expensas de uma perda que inaugura a condição
faltosa do humano. O processo de separação implica justamente a inscrição da
falta. Os dois movimentos – alienação e separação – são quase indissociáveis e
ambos são necessários para a construção do sujeito. A alienação remete à
nomeação da criança por parte do Outro, que lhe confere um lugar no simbólico,
enquanto a separação implica a idéia de que não há completude no âmbito da
linguagem, o que se estabelece, em primeiro lugar, a partir da falta do Outro.
separação está baseada em um nem/nem. A separação implica uma situação na qual tanto
o sujeito quanto o Outro estão excluídos.” (Fink, 1998: 75-76)
“O objeto a pode ser entendido aqui como o resto produzido quando essa unidade
hipotética [mãe-bebê] se rompe, como último indício daquela unidade, um último resto
dessa unidade. Ao clivar-se desse resto, o sujeito dividido, embora excluído do Outro,
pode sustentar-se na ilusão da totalidade; ao apegar-se ao objeto a, o sujeito é capaz de
ignorar sua divisão.” (Fink, 1999: 82-83)
3.1.2
O Édipo estrutural
“Se a falta na mãe tem como razão o falo, a vida não é louca; tem um móbil imaginário
para a criança: encontrar um lugar, sendo o falo imaginário para a mãe.” (Julien,
1996:124)
dos tempos lógicos, podemos dizer que, num primeiro momento (1o tempo), a
mãe possui o falo, que é a criança. Depois (no 2o tempo) o pai, ou aquilo que
exerça sua função, passa a ser o falo, um falo onipotente, capaz de privar a mãe
que, então, mostra-se castrada. Finalmente, no último tempo, o pai tem acesso ao
falo, mas não o é. O falo encontra-se fora do pai, que o pode possuir. Neste
terceiro tempo, o falo é instaurado no sistema de trocas simbólicas, ou seja, é
inserido na cultura.
O conceito de castração, nesse contexto, designa o não proferido pelo pai
ao desejo incestuoso, entendido aqui como o desejo de uma relação impossível.
Essa lei, produto da função paterna e não da pessoa-física do pai, impede a
plenitude da relação dual, mas possibilita a vida propriamente humana. Na obra de
Lacan a castração refere-se mais à experiência de gozo do que à ausência do
pênis. Como observa Fink, “a castração está relacionada com o fato de que, em
um determinado ponto, somos forçados a renunciar a algum gozo” (Fink, 1999:
125).
Este gozo do qual o sujeito se vê excluído, que é barrado pela função
paterna, é o que Lacan chama de gozo do ser, ou gozo do Outro. Trata-se, na
verdade, de uma inferência produzida a posteriori, já que o sujeito nunca teve
acesso a tal completude, que estaria fora do campo da linguagem. Experimentar o
gozo do ser seria equivalente a encontrar o objeto perdido, que, enquanto causa do
desejo, é inatingível. O objeto a difere-se do falo na medida em que exerce seu
83
3.1 3
A diferença sexual inserida no registro fálico
pois sempre lhe falta algo. O objeto (a) é aquilo que , envolto pelas produções
imaginárias, oferece a ilusão de tamponar a falta. O sinal que une as duas letras
(◊), implica a idéia de junção e disjunção, ressaltando o efeito paradoxal do objeto
na fantasia que, ao mesmo tempo, mascara e indica a falta.
Dito isso, marcamos que é no nível fantasia, fundamentalmente
imaginária, que o sujeito vai se posicionar sexualmente, escolhendo uma das duas
posições, a de sujeito desejante, ou a de objeto, onde o próprio desejo é ser desejo
do outro. Assim, a diferença sexual é pensada a partir da significação fálica, e a
ligação entre sujeito e objeto se estabelece na dimensão do “parecer”, como uma
tentativa narcísica de encobrir a falta. É o que Lacan declara em A Significação do
Falo.
quais serão submetidas as relações entre os sexos. Digamos que essas relações concentrar-
se-ão em torno de um ser e de um ter (...) Isso pela intervenção de um parecer que se
substitui ao ter, para protegê-lo de um lado, para mascarar a falta, no outro, e que tem
como efeito projetar inteiramente as manifestações ideais ou típicas do comportamento de
cada um dos sexos, até o limite do ato da copulação na comédia.” (Lacan, 1966: 271)
“Na citação anterior [Lacan] sustenta que como os seres falantes não podem ser homens e
mulheres num sentido instintivo, a ambos os sexos não lhes resta mais que parecê-lo:
parecem homens e parecem mulheres. Não podem sê-lo porque não têm a norma
instintiva fixa (...) a única solução possível é este parecer que, por ser um parecer de
nenhum ser, introduz a dimensão da máscara.” (Rabinovich, 1995: 81. Tradução nossa.)
não existe, ou que não há um significante capaz de designar o que seria A Mulher.
Esse aforismo não se refere à mulher biológica; o que não há é o Outro sexo, que
não seja o falo. Vejamos a explicação de Julien:
“Na verdade, no gozo como sexual, cada um se relaciona com o falo, e não com o Outro,
o outro sexo, a mulher para o homem e o homem para a mulher. Não há relação sexual
que se escreva. Essa negação, não há, é da ordem do dizer-verdadeiro. (Julien, 1995: 143)
3.2
O amor como encobrimento da falta
3.2.1
O amor e a completude narcísica
“Basta entender o estádio do espelho como uma identificação no sentido pleno que a
análise dá a este termo: a saber, a transformação produzida no sujeito quando ele assume
uma imagem.” (Lacan, 1949: 87)
“O eu e a relação imaginária com o outro são indispensáveis para que se produza uma
inserção da realidade simbólica (a linguagem, a lei, etc.) na realidade do sujeito. (...) Para
que se estabeleça uma relação com o objeto do desejo, é preciso que haja uma relação
narcísica do eu com o outro.” (Nasio, 1997: 61)
“Tal relação dual torna-se efetivamente impossível de viver, pois não há subjetivação: o
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sujeito não se reconhece ali, porque está apenas capturado ali. De fato, é o ideal do eu –
simbólico – que pode regular as relações entre um eu e um eu ideal.” (Nasio, 1997: 60-
61)
“A mãe existe como objeto simbólico e como objeto de amor. (...) A mãe é inicialmente
mãe simbólica, e é só na crise da frustração que ela começa a se realizar, em razão de um
certo número de choques e particularidades que se produzem nas relações entre a mãe e a
criança.” (Lacan, 1956-1957: 229)
A partir daí podemos abordar a diferença entre desejo e demanda, que diz
respeito a esta distinção entre a relação do sujeito com a alteridade simbólica e
com o objeto de amor. O desejo, como já vimos, não tem objeto específico, e
designa o impulso que move o sujeito, por restar sempre insatisfeito após qualquer
satisfação parcial. A demanda visa um objeto consistente, imaginário. Lacan
afirma que por trás de todo pedido encontra-se uma demanda de amor, que se
apóia na ilusão narcísica de completude. A demanda, assim como o desejo,
permanece sempre insatisfeita, pois, apesar de dirigir-se a um objeto, a demanda
visa o amor ilimitado figurado pela relação dual com a mãe.
O desejo da mãe, na verdade, direciona-se ao falo como significante da
falta, e não à criança, que é um falo imaginário. É o amor da mãe que confere
sentido à vida da criança, sentido esse que será sempre fazer-se amar pelo outro.
Assim, Lacan assinala que:
92
“...essa relação de amor que liga o sujeito à sua própria imagem e que lhe mediatiza as
relações com seus objetos, é ela própria mediatizada pelo amor que lhe dedica ou lhe
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O que Lacan pretende ressaltar é que o amor se apresenta como uma forma
de restaurar o narcisismo através da ligação com o outro, nos moldes da relação
dual que instaura o eu. Daí sua afirmação de que “é o seu próprio eu que se ama
no amor” (Lacan, 1953-1954: 167). Dessa forma, a dimensão do amor, necessária
à formação do eu, é considerada por Lacan como sede de engano, assim como é o
próprio eu, pois ambos são cristalizações imaginárias. Quando o registro do
imaginário domina o funcionamento do simbólico, o que é típico do estado
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“...o Ich-ideal, enquanto falante, pode vir situar-se no mundo dos objetos ao nível do
Ideal-Ich, ou seja, ao nível em que se pode produzir essa captação narcísica com que
Freud nos martela os ouvidos ao longo desse texto. Pensem que no momento em que essa
confusão se produz, não há mais nenhuma espécie de regulação possível do aparelho. Ou,
em outras palavras, quando se está apaixonado, se é louco, como diz a linguagem
popular.” (Lacan, 1953-1954: 166)
3.2.2
O amor X o real do sexo
“Nesse nível não há traço de funções pulsionais, senão das que não são verdadeiras
pulsões, e que Freud chama em seu texto as Ichtriebe. O nível do ich é não-pulsional, e é
aí - eu lhes rogo que leiam atentamente o texto – que Freud funda o amor. Tudo que é
assim definido no nível do ich só toma valor sexual, só passa da Erhaltungstrieb, da
conservação, ao sexualtrieb, em função da apropriação de cada um desses campos, sua
apreensão, por uma das pulsões parciais.” ( Lacan, 1964: 181)
Sim, porque é claro que a pulsão sexual entra em jogo nas relações amorosas,
mesmo que o objetivo do amor seja encobrir a fragmentação do sexual.
Se lembrarmos que o sujeito é constituído através da estrutura edípica, que
organiza o desejo a partir do ideal do eu, sabemos que as marcas produzidas pelo
simbólico são investidas sexualmente. E quanto às cristalizações imaginárias, que
é o caso do amor, um dos aspectos relevantes deste processo é o investimento da
libido. Dessa forma, se Lacan afirma que o amor não é pulsional, entendendo
pulsional aqui como equivalente de sexual, é porque ele está remetendo o sexual,
nesse momento, exclusivamente ao real. Nesse contexto, a sexualidade é abordada
como aquilo diz respeito à impossibilidade. O ser sexuado é faltoso, e para ele não
há satisfação plena, nem objeto correspondente. O sexual pode ser visto, assim,
como o agente que instaura a divisão na ilusão da unidade.
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“Podemos observar assim que, para Lacan, o elemento central que categoriza
rigorosamente a pulsão é o registro do real, a partir do que situa-se de modo diverso a
dialética da pulsão e a ordem do amor. Se a pulsão implica o real em jogo no objeto a, o
amor define-se precisamente pela elisão do real.” (Coutinho Jorge, 2000: 52)
“...o amor comporta, por sua essência, o projeto de fazer malograr o sexo. O amor, em
suma, diz não à sexualidade enquanto determinada pelo sentido sexual inconsciente. Que
esse exclua estritamente que possa haver relação sexual, é o que o amor não para de
contestar. Seu fracasso em sustentar essa contestação, pelo menos a longo prazo, diante
da prova do real, é secundário com relação à mensagem da qual ele é o portador.” (André,
1991: 258)
97
“Nós dois somos um só. Todo mundo sabe, com certeza, que jamais aconteceu, entre
dois, que eles sejam só um, mas, enfim, nós dois somos um só. É daí que parte a idéia de
amor.”(Lacan,1993:64)
“Com efeito, o amante se identifica com a imagem do outro, para de dois fazer um; e
assim o amante se vê amado nesta imagem; acredita obter o que queria: a reciprocidade
narcísica. Mas se a roupa ama aquele que ama, ela continua sendo uma roupa. Nem
mais...nem menos, que se equivalem no que a imagem promete além dela, o que a veste:
um corpo.” (Julien, 1993: 165)
Julian faz menção, nesse trecho, a uma metáfora utilizada por Lacan no
seminário XX para explicar o estatuto do amor. Lacan conta a historinha de uma
periquita que estava apaixonada por Picasso, o que se percebia pela maneira como
ela mordiscava o colarinho de sua camisa e as abas de seu paletó. Lacan pretende
demonstrar que é sempre a imagem que amamos, representada na história através
da roupa. Nesse caso, “a periquita se identificava com Picasso vestido. Mas o
mesmo acontece com tudo o que diz respeito ao amor” (Lacan, 1972-1973: 14). O
99
“O amor é impotente, ainda que seja recíproco, porque ele ignora que é apenas o desejo
de ser Um, o que conduz ao impossível de estabelecer a relação dos... A relação dos quem
? – dois sexos.” (Lacan, 1972-1973: 14)
4
A Concepção de Amor Derivada da Teoria de Winnicott
lactente está situada numa esfera que não é totalmente dominada pelas exigências
da pulsão. A partir disso, temos acesso a uma concepção de amor que enfatiza
uma orientação freudiana - a de que o amor é derivado das pulsões do ego - muito
pouco explorada até então, inclusive pelo próprio Freud.
A obra de Winnicott mostra as marcas de sua experiência como pediatra,
função que exerceu antes de se dedicar à psicanálise. A observação da conduta das
crianças e suas mães influi de maneira decisiva em seu enfoque psicanalítico,
levando-o a tornar-se um teórico do desenvolvimento precoce do ser humano. Na
perspectiva de Winnicott o interesse na problemática edípica cede espaço à
preocupação com a construção do self, que se torna área privilegiada na pesquisa
do autor.
A teoria de Winnicott deixa entrever uma noção de amor diferente das
abordagens que privilegiamos até agora, a partir dos textos de Freud e Lacan.
Trata-se de uma concepção que tem como esteio a idéia de que o amor se
desenvolve do desamparo infantil, como um derivado da necessidade de
autoconservação, e não da inibição das pulsões sexuais. Winnicott não se dedicou
a discutir especificamente sobre o amor, mas teorizou sobre a importância do
relacionamento tranqüilo com o entorno, permeado pela ternura, que é
compreendida, neste contexto, como um laço afetivo anterior ao sexual.
Assim, resgataremos as formulações de Winnicott sobre o
desenvolvimento do self, de onde podemos depreender a idéia de amor que nos
102
4.1
A Mãe Suficientemente Boa e a Importância do Holding
o seu devido papel para que a criança possa naturalmente percorrer o caminho que
a levará à maturidade emocional e intelectual. A partir dessa suposição básica,
Winnicott elabora todo o conjunto de noções e conceitos que vão formalizar seu
modo de conceber o desenvolvimento humano, ancorado na experiência clínica.
A idéia de mãe suficientemente boa significa, em linhas gerais, um
ambiente satisfatório, adequado às necessidades do bebê. De acordo com
Winnicott a mulher às vésperas de ter um filho encontra-se no ápice de um
processo de mudanças fisiológicas e psicológicas que a sensibilizam para a função
que irá exercer. Se não houver distorções nesse processo de transformações, a mãe
saberá prover satisfatoriamente as necessidades de seu filho e o desenvolvimento
saudável, para o qual o bebê traz potencial, transcorrerá naturalmente. Assim,
conforme as palavras do próprio Winnicott, “pode-se dizer que um ambiente
satisfatório é aquele que facilita as várias tendências individuais herdadas, de tal
forma que o desenvolvimento ocorre de acordo com elas” (Winnicott, 1996:18).
A atenção dispensada por Winnicott à importância dos cuidados maternos
faz parte de sua preocupação com a fragilidade egóica do lactente. Apesar de
Winnicott considerar que o bebê nasce provido de uma tendência para o bom
desenvolvimento, ele não deixa de assinalar que o ser humano nasce como um
conjunto desorganizado de pulsões, instintos, capacidades perceptivas e motoras,
constituindo, assim, um ego frágil que necessita ser apoiado para transformar-se
em uma unidade capaz de diferenciar o “eu” do “não-eu” . Winnicott observa,
103
do termo holding, para o qual a tradução mais adequada nos parece ser a palavra
suporte. Sob a noção de holding Winnicott reuniu todo o conjunto de
preocupações e cuidados com o bebê, inclusive o próprio ato de segurar a criança
nos braços. O suporte oferecido pela mãe nessa fase é imprescindível para definir
os futuros passos da criança em desenvolvimento. Como ressaltam Bleichmar e
Bleichmar:
“A sustentação feita pela mãe é o fator que decide a passagem do estado de não
integração, que caracteriza o recém-nascido, para a integração posterior. Esse vínculo
físico e emocional entre a mãe e o bebê assentará as bases para o desenvolvimento
saudável das capacidades inatas do indivíduo.” (Bleichmar e Bleichmar, 1992: 223)
4.2
A diferença entre ego e self
prazer que antecipam para a criança experiências que ela não tem capacidade de
elaborar. Para que a pulsão não seja traumática é necessário que o ambiente se
adeque às necessidades do recém-nascido através de cuidados e do apaziguamento
de estímulos excessivos.10
Quando não há a integração dos núcleos do ego, o self, que está
relacionado ao sentimento de existência, desenvolve-se de forma defensiva,
impedindo o bebê de simplesmente ser, e desenvolver, assim, um self e um ego
saudável. Nos casos em que o ambiente é suficientemente bom, o ego se origina
de uma primeira identificação às funções maternas e se fortalece à medida em que
vai tomando para si as técnicas de cuidado inicialmente exercidas pela mãe.
Esta identificação fundamental é organizadora, uma vez que pressupõe
uma primeira integração, base de todas as integrações futuras. Para O’Dwyer de
Macedo, trata-se de uma identificação a um lugar, uma identificação ao espaço
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4.3
O verdadeiro self e o falso self
10
Vale ressaltar que não é apenas o registro pulsional que pode funcionar como traumático. O
meio externo também pode trazer estímulos excessivos ao bebê, desestabilizando sua
continuidade. A mãe suficientemente boa, além de suprir necessidades e sanar desconfortos, deve
ter o cuidado de não invadir o espaço do bebê, o que também é prejudicial.
106
“Se o cuidado materno não é suficientemente bom então o lactente realmente não vem a
existir, uma vez que não há continuidade do ser; ao invés a personalidade começa a se
constituir baseada em reações a irritações do meio.” (Winnicott, 1990: 53)
situação a criança tenta “fabricar” a proteção que se faz ausente, construindo uma
falsa base para o ser.
“Constituído em uma época em que o sujeito ainda não pode odiar, o self falsificado
testemunha distorções ocasionadas pelas intrusões do ambiente no espaço do verdadeiro
self. Estas intrusões indicam que a mãe (aqui confundida com o ambiente) não foi
passavelmente boa11, ou seja, capaz de realizar a função de ego para o recém-nascido. A
hipertrofia do processo de pensamento tenta suprir as rupturas brutais na continuidade de
existência, mas, sendo uma criação artificial – artificial à medida em que rompeu os laços
com os processos maturacionais, portanto com o soma, com as sensações e sentimentos –,
o self falsificado não pode fazer o sujeito sair do mundo irreal em que vive. Pelo
contrário, por meio do self falsificado, o sentimento de irrealidade afirma-se e acaba por
contaminar todos os aspectos de sua vida. O self falsificado tentará compensar as
carências da mãe-ego. E por ter sua origem no aspecto ‘maternagem’ da associação mãe-
recém-nascido, e não do indivíduo, ele é falso.” (O’Dwyer de Macedo, 1999: 109)
11
Esta expressão é a tradução preferida pelo autor para a idéia de mãe suficientemente boa.
107
4.4
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“É muito importante do ponto de vista teórico que o bebê crie este objeto, e o que a mãe
faz é colocar o mamilo exatamente ali e no momento certo para que seja o seu mamilo
que o bebê venha a criar.” (Winnicott, 1990: 122-123)
12
É importante reafirmar que esta aptidão natural para a atividade criadora só se manifesta se o
bebê alcançar a primeira integração egóica, que também é propiciada pelas condições favoráveis
do ambiente. A primeira identificação com as funções maternas é considerada, assim como no
caso da criatividade, uma tendência inata do recém-nascido, que se desenvolverá desde que o meio
externo não prejudique este processo.
110
então, cria o seio e experimenta uma unidade com ele, cultivando a onipotência
necessária para sua sustentação nessa fase. Davis e Wallbridge assinalam que:
“A partir disso, desenvolve-se uma crença de que o mundo pode conter o que é desejado e
necessitado, com o resultado de que o bebê possui esperança de que há uma relação viva
entre a realidade interna e a realidade externa, entre a criatividade primitiva inata e o
mundo em geral que é compartilhado por todos.” (Davis e Wallbridge, 1982: 59)
inscreve após repetidas investidas bem sucedidas, que a criança passa a poder
suportar a sua ausência sem que isso comprometa a sua existência.
4.5
A importância do objeto transicional
“Entre o subjetivo e aquilo que é objetivamente percebido existe uma terra de ninguém,
que na infância é natural, e que é por nós esperada e aceita. O bebê não é desafiado no
início, não é obrigado a decidir, tem o direito de proclamar que algo que se encontra na
fronteira é ao mesmo tempo criado por ele e percebido ou aceito no mundo, o mundo que
existia antes do concepção do bebê.” (Winnicott, 1990: 127)
aprende a lidar com a ausência da mãe uma vez que acredita na regularidade de
sua presença.
O objeto transicional ocupa justamente esse lugar, entre a ausência e a
presença da mãe. Na medida em que a criança pode apoiar-se e sentir-se segura na
presença do objeto transicional, que pode ser um ursinho de pelúcia, um cobertor,
etc., isso indica o fato de que ela está começando a poder prescindir da presença
ininterrupta da mãe. É o que Winnicott assinala quando chama a atenção para a
importância tanto do valor simbólico, quanto do estatuto de realidade do objeto
transicional. “O fato de ele não ser o seio (ou a mãe) é tão importante quanto o
fato de representar o seio (ou a mãe)” (Winnicott, 1975: 19).
A operação simbólica, através da qual a mãe é substituída pelo objeto
transicional, abre para a criança o caminho para a aceitação da diferença e da
similaridade, assim como para o intercâmbio entre externo e interno. Trata-se, na
verdade, da aquisição de um novo padrão de relacionamento, no qual o meio
externo começa a tomar forma própria e a criança não é mais a única a ter os
desejos e necessidades levados em consideração.
Winnicott assinala, porém, que, assim como não são todas as mães que
conseguem fornecer o holding a seu filho recém-nascido, também não são todas
que podem auxiliá-lo nessa tarefa de crescimento, sabendo ausentar-se no
momento propício. Se a adaptação às necessidades do lactente não acompanhar
sua evolução natural, diminuindo gradativamente, a criança não desenvolve a
capacidade de experimentar uma relação com a realidade externa ou mesmo de
formar uma concepção dessa realidade. Por isso a mãe deve ser suficientemente
boa, e não demasiadamente. Se a mãe puder exercer esse papel delicado, seu filho
deverá transformar-se num adulto saudável, o que não significa um indivíduo sem
conflitos e dificuldades em suas relações com os outros, mas certamente alguém
que saberá lidar com as exigências e vicissitudes inevitáveis impostas pela
realidade.
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4.6
O amor pulsional e o amor calmo
“Nos anos 20, tudo tinha o complexo de Édipo em seu âmago. A análise das neuroses
conduzia o analista repetitivamente às ansiedades pertencentes à vida instintiva do
período dos 4 a 5 anos do relacionamento da criança com seus pais. Dificuldades que
vinham à tona eram tratadas em análise como regressão a pontos de fixação pré-genitais,
mas a dinâmica vinha do conflito do complexo de Édipo marcadamente genital da
meninice. (...) Algo estava errado em algum lugar. Quando vim a tratar crianças pela
psicanálise pude confirmar a origem das neuroses no complexo de Édipo, mas mesmo
assim, sabia que as dificuldades começavam antes.” (Winnicott, 1988: 157)
13
Baseamo-nos especialmente nas elaborações de Winnicott desenvolvidas em A natureza humana
(1990).
114
“O importante para mim era que enquanto nada do impacto do complexo de Édipo se
perdia, o trabalho se fazia agora na base de ansiedades relacionadas com impulsos pré-
genitais. (Winnicott, 1988: 159)
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despertada por contê-la, assim também a libido é projetada, a fim de criar um objeto que
irá satisfazer o esforço pulsional do ego pela preservação da vida. O ego projeta parte dele
para fora e o que permanece é usado para estabelecer uma relação libidinal com esse
objeto ideal.” (Segal, 1975: 37)
“Se, a partir da situação de amamentação do lactente, Freud privilegia o apoio das pulsões
orais sobre a necessidade da fome para demonstrar o caráter sexual desta atividade vital
para o bebê, Winnicott – porque Freud já fez uma parte do trabalho – privilegia, pelo
117
contrário, as condições fornecidas pelo ambiente para que a força pulsional enriqueça e
fortifique o bebê em vez de assustá-lo.” (O’Dwyer de Macedo, 1999: 26)
“Está aqui um bebê com forte tensão instintiva. Desenvolve-se uma expectativa, um
estado de coisas no qual o bebê está preparado para encontrar algo em algum lugar, mas
sem saber o quê. Não há expectativa semelhante no estado tranqüilo ou não-excitado.
Mais ou menos no momento certo, a mãe oferece o seio.” (Winnicott, 1990: 120)
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“A criança ama sua mãe pelo seu cheiro, rosto, atitudes e técnicas de cuidados. Este
conjunto constitui as qualidades da mãe. Mas o bebê não pode aceitar que a mesma mãe
seja atacada impiedosamente em seus momentos de excitação pulsional. As duas funções
da mãe correspondem a dois estados na criança: calma e excitação pulsional.” (O’Dwyer
de Macedo, 1999: 50)
“Na época em que a mais primitiva satisfação sexual estava ainda vinculada à nutrição, a
pulsão sexual tinha um objeto fora do corpo próprio, no seio materno. Só mais tarde vem
a perdê-lo, talvez justamente na época em que a criança consegue formar para si uma
representação global da pessoa a quem pertence o órgão que lhe dispensava satisfação.
Em geral, a pulsão torna-se auto-erótica, e só depois de superado o período de latência é
que se restabelece a relação originária. Não é sem boas razões que, para a criança, a
amamentação no seio materno torna-se modelar para todos os relacionamentos
amorosos.” (Freud, 1905: 209).
Sabemos que esta não é a única forma através da qual Freud aborda o auto-
erotismo, que é considerado, na maioria das vezes, uma fase anterior às relações
objetais. Winnicott segue a indicação contida na citação acima, e acentua, neste
primeiro encontro com o objeto, o caráter terno desta relação, ou seja, a dimensão
dos cuidados que ajudam a criança em seu desamparo. Nesse sentido, o amor é
primário em relação à sexualidade porque a fusão com o entorno, nos moldes do
relacionamento tranqüilo, é primordial para pensar o desenvolvimento do bebê.
120
4.7
Algumas considerações sobre o amor na teoria de Winnicott e as
discordâncias com o pensamento lacaniano
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prolongamento do bebê. A criança tem a ilusão de possuir uma força criativa que
proporciona a certeza de que o objeto será encontrado quando for preciso. Nesse
processo, o mundo ilusório desempenha um papel fundamental, o que é verificado
claramente na fase em que a criança começa a explorar o espaço transicional. O
objeto transicional localiza-se entre a subjetividade e a realidade objetiva, e
auxilia a criança a aceitar a ausência da mãe e a adaptar-se ao princípio de
realidade. A onipotência relativa à ilusão é estruturante, mas não pela via do
narcisismo, no qual o sujeito é auto-centrado. “A onipotência associada à
criatividade primária pressupõe dependência” (O’Dwyer de Macedo, 1999: 127),
e faz parte do relacionamento tranqüilo estabelecido entre a criança e a mãe-
ambiente.
O amor, nessa perspectiva, tem como esteio a confiança, a presença calma
e constante do objeto. Assim, Winnicott contrapõe o desenrolar dos laços
amorosos às relações de objeto apaixonadas, desenvolvidas a partir da voracidade
da pulsão oral. Nesse sentido, o amor não é pensado como uma idealização, que
torna o sujeito vulnerável frente à onipotência narcísica do objeto; ao contrário, é
aquilo que permite o fortalecimento do ego e o desenvolvimento da aptidão para
estar só. Como já vimos, se a mãe do amor calmo puder desempenhar bem suas
funções, permitindo que o bebê confie em sua presença, ele aprende, aos poucos, a
suportar a ausência do objeto amado. Dessa forma, a experiência subjetiva será
centrada na afirmação de um self saudável, e não na dependência dos objetos de
122
momento de relação dual com a mãe representa a ilusão incestuosa, que deve ser
quebrada pela função paterna. Lacan enfatiza a necessidade de aceitar a castração,
que implica a ausência de relações plenamente satisfatórias, como um movimento
imprescindível para a estruturação saudável do sujeito, desde os primórdios de sua
existência. A preocupação lacaniana, no que concerne ao ambiente, está muito
mais associada à importância da interdição paterna do que aos cuidados maternos.
Dentro dessa perspectiva, não há técnica de maternagem que possa garantir um
desenvolvimento saudável e, nesse sentido, o melhor a fazer é preparar a criança
para a realidade das relações objetais, que serão sempre faltosas.
Todas essas discordâncias estão associadas, de forma inerente, a diferenças
fundamentais na concepção da relação mãe-bebê, que repercutem na noção de
amor própria a cada um dos autores. Notamos que Lacan segue e intensifica o
ponto de vista de Freud, de que esta relação está imersa na lógica fálica, que é
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intencionalmente.
Já a teoria de Winnicott não nos parece reproduzir de forma tão direta a
configuração social contemporânea no que se refere ao amor. Winnicott não se
dedicou a discutir amplamente sobre as vicissitudes da vida amorosa do adulto,
mas apresentou um caminho para o amor diferente da paixão, que seria próprio do
desenvolvimento saudável. Em um dos poucos comentários de Winnicott sobre a
vida amorosa adulta, encontramos indicações do autor de que uma união feliz é
aquela na qual os parceiros desenvolveram a capacidade para estar só, e podem,
por isso, confiar um no outro. Além disso, Winnicott indica a inserção ativa na
vida social como um índice de felicidade no casamento, o que nos remete à idéia
de investir em outros ideais, além do amoroso, para que a vivência do amor não
seja uma experiência mutiladora de dependência. Em uma palestra proferida em 8
de março de 1967, intitulada O conceito de indivíduo saudável, Winnicott declara:
“O principal é que o homem ou a mulher sintam que estão vivendo sua própria vida,
assumindo responsabilidade pela ação ou pela inatividade, e sejam capazes de assumir os
aplausos ou as censuras pelas falhas. Em outras palavras, pode-se dizer que o indivíduo
emergiu da dependência para a independência, ou autonomia. (...) Existe, por exemplo a
relação que ele ou ela mantém com a sociedade – uma extensão da família. Digamos que
um homem ou uma mulher saudáveis sejam capazes de alcançar uma certa dose de
identificação com a sociedade sem perder muito de seus impulsos individuais ou
pessoais. (Winnicott, 1996: 9-10)
125
14
É importante ressaltar que Winnicott concebe essa possibilidade de vivência amorosa apenas
para aquele que considera um indivíduo saudável. Entretanto, ele deixou claro, através de
inúmeros relatos clínicos, que as coisas não transcorrem dessa forma com a freqüência desejada.
126
tarefa muito difícil para o sujeito, muitas vezes só alcançada com o trabalho
analítico.
Podemos assinalar que, enquanto para Winnicott o ser humano traz uma
tendência para o bom desenvolvimento, Lacan acentua a tendência humana para a
neurose, o que produz efeitos na concepção de amor de cada um desses autores.
Para Winnicott a relação objetal primária pode suprir as necessidades do recém-
nascido, propiciando uma existência calma que conduza à afirmação das
potencialidades. Lacan concebe a experiência humana pela via trágica do desejo,
para o qual nunca haverá objeto satisfatório. Daí as diferenças na direção do
tratamento. Na perspectiva clínica de Winnicott, como assinala Sousa:
autor)
Considerações Finais
quem ama a partir do modelo anaclítico. Percebemos, então, que os dois tipos de
escolha objetal remetem a uma imagem de amor na qual o outro é complementar,
e o encontro amoroso representa uma via privilegiada para a restauração da
felicidade perdida com o afastamento do narcisismo primário.
A partir da teoria do complexo de Édipo o amor também é pensado por um
viés nostálgico e idealizado. O amor edípico é abandonado em função da
conservação do narcisismo, o que envolve, além da preservação do falo no caso
do menino, a necessidade de continuar a ser objeto do amor dos pais. Mas este
amor infantil imprime uma referência de satisfação que vai ser procurada nos
próximos objetos de amor. Freud desenvolve essa questão ao examinar o amor
transferencial, assinalando que os adultos amam a partir de padrões estabelecidos
na infância, que permanecem como efeito da fantasia edipiana.
Em função da compreensão do amor como uma reedição, inerente ao
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Assinalamos que tanto Freud quanto Lacan mantêm uma relação paradoxal
com o ideal de amor romântico. Os dois preocupam-se em explicar a dinâmica
amorosa característica da modernidade, e denunciam o mal-estar inerente a esta
forma de amar. Freud afirma que o amor aproxima-se mais dos fenômenos
anormais do que das manifestações normais (Freud, 1914). Lacan declara que
quando estamos amando somos loucos (Lacan, 1953-1954). Esta abordagem
semelhante do estado amoroso deve-se ao fato de ambos considerarem que a
inserção na civilização impõe o abandono das aspirações de plenitude, que estão
associadas à vivência do amor no imaginário social. Entretanto, apesar da
abordagem crítica, observamos que , para Freud e Lacan, o gozo absoluto nunca
deixa de ser buscado, e que o movimento de restauração narcísica é uma tendência
da natureza humana.
Concluímos, então, que a direção psicanalítica que vai de Freud a Lacan
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Dessa forma, questionar o ideal de amor romântico não significa propor e extinção
desta prática afetiva, mas relativizar a sua importância, denunciando a defasagem
entre as imposições da felicidade romântica e a limitação humana.
133
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