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4 Pele de Veludo - Jude Deveraux

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Ficha Técnica

Título original: Highland Velve


Título: Pele de Veludo
Autor: Jude Deveraux
Tradução: Luís Filipe Silva
Revisão: Carlos Santana/Isabel Garcia
ISBN: 9789896607760

QUINTA ESSÊNCIA
uma marca da Oficina do Livro – Sociedade Editorial, Lda
uma empresa do grupo LeYa
Rua Cidade de Córdova, n.º 2
2610-038 Alfragide – Portugal
Tel. (+351) 21 427 22 00
Fax. (+351) 21 427 22 01

© Deveraux Inc., 1982


e Oficina do Livro – Sociedade Editorial, Lda.
Todos os direitos reservados de acordo com a legislação em vigor
E-mail: quintaessencia@oficinadolivro.leya.com
www.quintaessencia.com.pt
www.leya.pt

Esta edição segue a grafia do novo acordo ortográfico.


Jude Deveraux

PELE
DE
VELUDO
Tradução
Luís Filipe Silva
Para a Mia
(a belíssima de Louisville)
com carinho
Prólogo

Stephen Montgomery cavalgava ainda com as costas bastante direitas, após


o longo percurso noturno. Não queria pensar na noiva que o aguardava no
final do caminho – aliás, que o aguardava há três dias. Judith, a cunhada,
não lhe poupara críticas por ter faltado à própria boda, e nem sequer se ter
dado ao trabalho de enviar uma mensagem, desculpando-se pelo atraso.
E contudo, apesar dos comentários de Judith e percebendo o insulto
cometido sobre a futura esposa, abandonara com relutância a propriedade
do rei Henrique. Stephen deixara para trás a cunhada com bastantes
reservas. Judith dos olhos dourados, a linda esposa do irmão Gavin, tinha
caído pelas escadas e abortara o bebé por que tanto ansiava. Durante dias,
Judith pairara entre a vida e a morte. E ao acordar, descobrindo que perdera
o bebé, a sua primeira preocupação foi, como era típico nela, o bem-estar
alheio. Stephen até deixara passar a data do seu casamento, e nem sequer se
lembrara da noiva. Judith, envolta na dor e no desgosto, recordara-lhe que
tinha um dever a cumprir e que uma noiva escocesa aguardava por ele.
Três dias volvidos, Stephen alisou a mecha forte de cabelo grosso e louro-
escuro. Queria ter permanecido ao lado do irmão, Gavin. Judith estava
furiosa com o marido. A queda não foi um acidente mas obra da amante de
Gavin, Alice Chatworth.
– Meu senhor.
Stephen abrandou o passo e virou-se para o pajem.
– As carruagens ficaram muito para trás. Vamos demasiado depressa.
Ele anuiu sem se pronunciar, e guiou o cavalo para o ribeiro estreito que
acompanhava o trilho. Desmontou, ajoelhou-se num só joelho, e banhou a
cara com a água fria.
Havia outro motivo para atrasar o encontro com a noiva que não
conhecia. O rei Henrique quis recompensar os Montgomerys pelos anos de
serviço dedicado ao reino, e assim atribuiu ao segundo irmão uma noiva
escocesa de famílias ricas. Stephen tentava sentir-se agradecido, mas
descobrira entretanto certas histórias a respeito dela.
Era, por nascimento, chefe de um clã escocês poderoso.
Contemplou o prado verde no horizonte, na outra margem do ribeiro.
Malditos escoceses, mais a sua absurda crença que uma mera mulher podia
ter a inteligência e a força necessárias para chefiar homens. Era obrigação
do pai dela ter escolhido um herdeiro masculino, e não uma mulher.
Fez uma careta de desagrado. Como seria aquela mulher, se até o pai a
designou para chefiar. Teria quarenta anos ou mais, cabelo da cor do aço, e
talvez um porte maior do que o próprio Stephen. E quando viesse a noite de
núpcias, ele lutaria contra ela pelo privilégio de ficar por cima… acabando
por perder.
– Meu senhor – disse o rapaz. – Não estais com bom aspeto. Talvez a
longa cavalgada vos tenha feito mal.
– Não foi a cavalgada que me pôs agoniado. – Stephen endireitou-se
lentamente sem dificuldades, os poderosos músculos deslocando-se sob as
vestes. Era alto como uma torre, ao lado do pajem, de corpo magro e ágil,
fruto de anos de treino árduo. Cabelo pejado de caracóis suados que caíam
pelo pescoço, maxilar retesado, lábios delicadamente traçados. E contudo,
as olheiras ensombravam os olhos de azul reluzente. – Regressemos às
nossas montadas. As carruagens que nos sigam. Não quero adiar mais a
minha execução.
– Meu senhor… execução?
Stephen não deu resposta. Ainda faltavam bastantes horas até alcançar o
terror que o aguardava: a figura sólida e possante de Bronwyn MacArran.
Capítulo Um

1501
Do alto da janela com pinázios da casa senhorial inglesa, que aberta deixava
entrar o calor do sol estival, Bronwyn MacArran observava o pátio.
Debruçou-se ligeiramente, à procura de um sopro mais fresco. De imediato,
um dos soldados em baixo lançou-lhe um sorriso sugestivo.
Ela retrocedeu rapidamente, agarrou a janela e fechou-a com força.
Virou-se furiosa.
– Ingleses sebentos! – praguejou a rapariga baixinho. Tinha a voz suave,
prenhe da urze e das névoas das Terras Altas.
Passos pesados aproximaram-se da porta. Ela prendeu a respiração,
soltando-a quando depois se afastaram. Era prisioneira, mantida na fronteira
mais setentrional de Inglaterra por homens que sempre odiara, homens que
agora lhe sorriam e piscavam os olhos como se adivinhassem os seus
pensamentos mais íntimos.
Aproximou-se de uma pequena mesa situada no meio da sala forrada a
carvalho. Agarrou a extremidade da madeira, sentindo a aresta aguçada
cortar-lhe a palma da mão. Tudo faria para evitar que aqueles homens
percebessem o seu estado de espírito. Os ingleses eram seus inimigos. Vira-
os matarem o pai e os três capitães. Vira o irmão praticamente enlouquecer,
frustrado com as tentativas fúteis de retribuir aos ingleses na mesma moeda.
E durante toda a sua vida dera de comer e vestir aos membros do clã depois
de os ingleses lhes terem destruído as colheitas e incendiado as casas.
Há um mês os ingleses tinham-na feito prisioneira. Bronwyn sorriu,
recordando a quantidade de golpes desferidos por si e pelos seus homens
nos soldados ingleses. Quatro deles acabariam por perecer.
Mas no fim capturaram-na, a mando do inglês Henrique VII. O homem
afirmava pretender a paz e que para tal designaria um inglês como chefe do
clã MacArran. E pensou consegui-lo se unisse um dos seus cavaleiros em
matrimónio com Bronwyn.
Ela sorriu ao pensar na arrogância do rei inglês. Era a chefe do clã
MacArran, e nenhum homem lhe sonegaria o poder. O estúpido do rei
acreditava que os homens dela receberiam ordens de um estrangeiro, um
inglês, e não do seu líder só porque se tratava de uma mulher. Coitado do
Henrique, não conhecia os escoceses!
Virou-se subitamente ao ouvir o rosnido de Rab. Era um galgo irlandês, o
maior cão do mundo, esguio, forte, pelo como aço macio. Oferecido pelo
pai dela há quatro anos, quando Jamie regressara de uma viagem à Irlanda.
Jamie pensara treinar o cão como protetor da filha, mas não fora preciso.
Rab e Bronwyn cuidaram um do outro imediatamente, e Rab várias vezes
demonstrara que daria a vida pela adorada dona.
Os músculos de Bronwyn relaxaram quando o rosnido de Rab finalmente
parou – só um amigo causaria tal reação. Ela levantou a cabeça com
expectativa.
Tratava-se de Morag. Era uma velhota pequena e contorcida, mais
semelhante a um nó de madeira do que a um ser humano. Tinha olhos como
vidro negro, faiscantes, penetrantes, que viam além da superfície da pessoa.
Tirava partido da sua figura pequena e ágil, surgindo sem ser notada,
sempre com olhos e ouvidos bem abertos.
Morag atravessou silenciosamente o quarto, e abriu a janela.
– Então? – perguntou Bronwyn com impaciência.
– Vi-te fechar a janela com raiva. Os homens riram-se e disseram que, se
ele não aparecer, darão eles conta da noite de núpcias.
Bronwyn virou as costas à velha.
– Dás-lhes muitos motivos para falarem. Devias manter a cabeça erguida
e ignorá-los. Não passam de ingleses, e tu és uma MacArran.
Bronwyn voltou-se para trás.
– Não preciso que me digam como agir – retorquiu. Rab, ciente da
perturbação da dona, aproximou-se das suas pernas. Ela enterrou os dedos
no pelo do animal.
Morag sorriu-lhe, vendo a rapariga ocupar o lugar junto à janela. Ela fora
entregue aos seus cuidados ainda mal tinha nascido. Morag embalara a bebé
enquanto via a mãe morrer. Depois procurara uma ama-de-leite para a
criança, dera-lhe o nome da avó galesa e cuidara dela até aos seis anos de
idade, quando o pai a reclamou para si.
Morag encarava a sua protegida com orgulho. Tinha agora quase vinte
anos. Bronwyn era alta, mais alta do que muitos homens, reta e flexível
como um junco. Não tapava o cabelo como as inglesas, mas deixava-o
flutuar costas abaixo numa cascata requintada. Tinha cor negra como os
corvos, era grosso e pesado – e o pescoço delgado suportava
espantosamente o peso. Usava um vestido de cetim à moda inglesa, de cor
creme como a das Terras Altas. O decote quadrado era curto e justo, dando
destaque aos seios firmes e jovens de Bronwyn. Encaixava-se como a
própria pele na cintura da rapariga, antes de se abrir em folhos múltiplos. O
bordado entrelaçado com delicados fios de ouro acompanhava o decote e a
cintura, e caía numa cascata complexa ao longo da saia.
– Passei no exame? – perguntou Bronwyn rispidamente, ainda irritada
pela discussão sobre a vestimenta inglesa. Preferia as roupas das Terras
Altas, mas Morag convencera-a a usar o traje inglês, com a justificação de
que o inimigo teria menos motivos para se rir dela se não a visse nas
supostas «vestes bárbaras».
Morag riu-se entredentes numa voz seca.
– É uma pena que esta noite nenhum homem te arranque o vestido.
– Um inglês! – sibilou Bronwyn. – Já te esqueceste? O sangue vermelho
do meu pai desapareceu da tua vista?
– Sabes bem que não – disse Morag calmamente.
Bronwyn sentou-se pesadamente no assento da janela, o vestido de cetim
a flutuar à sua volta. Passou o dedo pelo grosso bordado. O vestido fora
dispendioso, gastara dinheiro que teria sido melhor aplicado no clã. Mas
não queria passar vergonhas perante o inglês, e assim adquiriu o traje
próprio de uma rainha.
Teria sido o seu vestido de casamento.
Puxou violentamente um fio dourado.
– Calma! – ordenou Morag. – Não estragues a roupa por estares zangada
com um inglês. O homem deve ter uma boa razão para chegar atrasado à
sua própria boda.
Bronwyn levantou-se rapidamente, e Rab aproximou-se dela num gesto
de proteção.
– Se ele nunca aparecer, que me importa a mim? Espero que lhe tenham
cortado o pescoço e esteja a apodrecer numa vala qualquer.
Morag encolheu os ombros.
– Depois escolhem-te um novo marido, por isso que ganhas tu com a
morte deste? Quanto mais depressa tiveres um marido inglês, mais depressa
voltaremos para as Terras Altas.
– Para ti é fácil falar! – retorquiu Bronwyn. – Não és tu quem terás de
casar com ele e… e…
Os olhinhos negros de Morag dançaram.
– E ir com ele para a cama? É isso te que preocupa? Quem me dera poder
trocar contigo. Achas que o Stephen Montgomery perceberia se fosse eu a
entrar na cama dele?
– O que sei eu do Stephen Montgomery exceto que não me tem respeito,
deixando-me à espera vestida de noiva? Dizes que os homens gozam
comigo. O homem que será o meu esposo expôs-me ao ridículo – encarou a
porta com a vista semicerrada. – Se entrasse neste momento por ali,
enfiava-lhe uma faca sem pensar duas vezes.
Morag sorriu. Jamie MacArran teria ficado orgulhoso da filha. Mesmo
prisioneira, não perdera nem o orgulho nem o ânimo. Mantinha-se de
queixo erguido, olhos faiscantes como adagas de gelo azul-cristalino.
Bronwyn era espantosamente linda. De cabelo negro como as noites
despojadas de lua nas montanhas escocesas, olhos azuis profundos como a
água de um lago banhado pelo sol. O contraste era impressionante. Era
frequente quem a visse pela primeira vez, e em particular se fosse homem,
perder a fala. Pestanas espessas e escuras, pele fina e clara. Lábios carmins
traçados sobre o queixo do pai, forte, quadrado na ponta, com uma ligeira
covinha.
– Vão pensar que és cobarde se continuares a esconder-te no quarto. Que
escocês tem medo das parvoíces ditas pelos ingleses?
Bronwyn endireitou as costas e fitou o vestido de cor creme. Vestira-o
pela manhã julgando que nele se desposaria. Mas a hora da cerimónia
passara, e o noivo não se dignara a aparecer nem enviara um pedido de
desculpas ou uma justificação.
– Ajuda-me a desatar esta coisa – pediu Bronwyn. O vestido teria de se
manter intacto até se casar. Se não hoje, noutro dia. E talvez com outro
homem. O pensamento trouxe-lhe um sorriso.
– O que vai nessa tua cabeça? – perguntou Morag, com as mãos nas
costas do vestido de Bronwyn. – Traquinices, sem dúvida.
– Só fazes perguntas. Vai-me buscar aquele vestido de brocado verde. Os
ingleses podem pensar que fiquei destroçada pela rejeição no altar, mas já
vão ver que as escocesas são feitas de material mais duro.
Embora fosse prisioneira, e há mais de um mês, Bronwyn estava
autorizada a passear pelo domínio de Sir Thomas Crichton. Podia andar
pela casa e, se acompanhada, nos terrenos circundantes. A propriedade era
fortemente guardada e nunca livre de vigilância. O rei Henrique informara o
clã de Bronwyn que, caso tentassem salvá-la, a executaria. Ninguém lhe
faria mal; mas tencionava colocar um inglês como chefe. O clã
recentemente sofrera a morte de Jamie MacArran, bem como dos seus três
capitães. Obrigados a recuar, os escoceses viram a nova senhora ser
capturada, e planeavam agora como iriam reagir quando os homens do rei
ousassem dar-lhes ordens.
Bronwyn desceu lentamente pelas escadas até ao salão. Sabia que os
homens do clã aguardavam pacientemente no perímetro do terreno,
escondidos pela floresta, na fronteira constantemente turbulenta entre a
Inglaterra e a Escócia.
Por si, ela preferia morrer a aceitar o cão inglês que tinha de desposar,
mas a morte despertaria conflitos dentro do clã. Jamie MacArran designara
a filha como sucessora, e ela devia ter casado com um dos capitães que
pereceram ao lado do pai. Se Bronwyn morresse sem sucessão, certamente
ocorreria uma batalha sangrenta para determinar o novo senhor.
– Sempre desconfiei que os Montgomerys fossem espertos – riu-se um
homem a poucos metros de Bronwyn. Uma tapeçaria volumosa escondia-a
da sua vista. – Veja só a forma como o mais velho casou com a herdeira do
Revedoune. Mal pôs o pé fora do leito conjugal, mataram o pai dela e ele
herdou o condado.
– E agora Stephen segue as pegadas do irmão. Não só é linda, esta
Bronwyn, como é dona de hectares e hectares de terra.
– Digam o que disserem – indicou um terceiro. A manga vazia indicava a
falta de um braço. – Não invejo o Stephen. A mulher é magnífica, mas
durante quanto tempo conseguirá apreciá-la? Perdi este a lutar contra os
demónios escoceses. São meio humanos, vão por mim. Só aprendem a
roubar e pilhar. E lutam como animais, mais do que como homens. Gente
bruta e selvagem.
– E ouvi dizer que as mulheres cheiram a porco – disse o primeiro.
– Mas por aquela Bronwyn de cabelo negro, até prendia a respiração.
Bronwyn deu um passo em frente, com um esgar feroz nos lábios.
Quando uma mão lhe agarrou o braço, ela levantou a cara. Encontrou o
rosto de um jovem. Bonito, com olhos negros e uma boca firme. A vista
estava ao nível da sua.
– Permiti-me, minha senhora – disse ele, calmamente.
Ele abordou os homens. Usava meias-calças justas nas pernas fortes, o
casaco de veludo dando ênfase à amplidão dos ombros.
– Não têm nada melhor para fazer, do que coscuvilharem como velhas?
Falam daquilo que desconhecem. – O tom de voz era dominador.
Os três homens sobressaltaram-se.
– Ora, Roger, qual é o problema? – perguntou um deles, antes de
encontrar Bronwyn a espreitar por cima do ombro de Roger, a qual
dardejava olhares de pura fúria.
– Acho que o Stephen devia despachar-se e proteger os seus bens – riu-se
um dos outros homens.
– Desapareçam! – ordenou Roger. – Ou preferem que desembainhe a
espada para me darem ouvidos?
– Livrem-me do fervor da juventude – disse um homem, fatigado. – Vai
ter com ela. Venham, está mais fresco no exterior. As paixões expandem-se
melhor fora de casa.
Após a saída dos homens, Roger virou-se para Bronwyn.
– Aceitais as minhas desculpas pelos meus conterrâneos? São rudes
porque são ignorantes. Não fazem por mal.
Bronwyn fitou-o.
– Parece-me que o ignorante sois vós. Fazem por mal, e muito, ou julgais
que matar escoceses não seja pecado?
– Protesto! Estais a ser injusta. Matei alguns homens na minha vida,
nenhum deles escocês. – Fez uma pausa. – Permitis que me apresente? Sou
o Roger Chatworth. – Retirou a boina de veludo da cabeça e fez uma vénia
pronunciada.
– E eu, meu senhor, sou Bronwyn MacArran, prisioneira dos ingleses e,
recentemente, noiva descartada.
– Lady Bronwyn, acompanhais-me num passeio pelo jardim? Talvez o
Sol afaste parte do desgosto que o miserável Stephen vos causou.
Ela virou-se e começou a andar ao seu lado. Assim os guardas não lhe
lançariam dizeres grosseiros. Encontrando-se no exterior, ela voltou a falar.
– Referis o nome do Montgomery como se o conhecêsseis.
– Ainda não o haveis conhecido?
Bronwyn virou-se para ele.
– E desde quando o vosso rei inglês me concedeu a mínima cortesia? Tive
a consideração do meu pai, a ponto de me nomear senhora do clã
MacArran, mas o vosso rei julga que não sou sequer capaz de escolher
marido. Não, não conheço esse Stephen Montgomery nem sei nada acerca
dele. Um dia soube que casaria com ele. Mas da parte dele não houve
qualquer reconhecimento da minha existência.
Roger ergueu uma sobrancelha elegante. Aquela hostilidade fazia a vista
dele reluzir como diamantezinhos azuis.
– Estou certo de que terá um motivo para o atraso.
– Talvez com a desculpa de que pretende demonstrar a sua autoridade
sobre todos os escoceses. Mostrar-nos quem manda aqui.
Roger ficou calado por instantes como se ponderasse as palavras dela.
– Há quem considere os Montgomerys arrogantes.
– Dizeis ter conhecido Stephen Montgomery. Como é ele? Ignoro se é
baixo ou alto, velho ou novo.
Roger encolheu os ombros, como se alheado do tema.
– É um homem vulgar – parecia relutante em dar pormenores. – Lady
Bronwyn, amanhã dais-me a honra de passear comigo pelo parque a
cavalo? Existe um ribeiro que passa pelas terras de Sir Thomas e talvez
pudéssemos levar comida.
– Não temeis que atentem contra a vossa vida? Não estou autorizada a
sair deste lugar há mais de um mês.
Ele sorriu-lhe.
– Gostaria que soubésseis que há ingleses com boas maneiras e que,
como haveis dito, não se descartariam da mulher no dia da boda.
Bronwyn ficou hirta, ao recordar a humilhação que Stephen Montgomery
lhe causara.
– Gostaria muito de acompanhar-vos.
Roger Chatworth sorriu e cumprimentou um homem que passava por eles
no caminho estreito do jardim. Raciocinava a grande velocidade.
Três horas depois Roger regressava aos seus aposentos na ala leste da
casa de Sir Thomas Crichton. Chegara há duas semanas para convencer Sir
Thomas a recrutar jovens da região. Sir Thomas andava demasiado ocupado
com os problemas da herdeira escocesa para se preocupar com outros
assuntos. Agora Roger começara a pensar que a sua vinda fora obra do
destino.
Pontapeou o banco em que o pajem adormecido repousava os pés.
– Tenho tarefas para ti – ordenou, retirando o casaco de veludo e
depositando-o na cama. – Anda por aqui um velho escocês chamado Angus.
Encontra-o e trá-lo até mim. De certeza rondará um local que sirva bebidas
noite e dia. E traz-me também meio tonel de cerveja. Compreendido?
– Sim, meu senhor – respondeu o rapaz, saindo de costas pela porta ainda
a esfregar os olhos sonolentos.
Quando Angus apareceu à entrada, vinha já semiembriagado. Trabalhava
para Sir Thomas com uma função qualquer, embora pouco mais fizesse que
beber. Tinha o cabelo sujo e emaranhado, caído abaixo dos ombros à moda
dos escoceses. Usava uma camisa comprida de linho, atada à cintura, com
pernas e joelhos à mostra.
Roger lançou um relance ao homem e à vestimenta suja com ar de
repulsa.
– Chamou-me, meu senhor? – disse Angus, com a voz entaramelada. O
olhar viajou para o pequeno barril de cerveja que o pajem de Roger trazia
para a sala.
Chatworth despachou o rapaz, encheu o copo de cerveja, sentou-se e
indicou a Angus que o imitasse. Sentado o homem imundo, Roger
começou.
– Gostava que me falasses da Escócia.
Angus levantou as sobrancelhas hirsutas.
– Quer saber onde há ouro? Somos uma terra pobre, meu senhor, e…
– Basta de sermões! Usa as tuas mentiras noutro. Quero que me digas
aquilo que deve saber o homem que pretenda casar com a chefe de um clã.
Angus fitou-o com ar duro durante instantes, tapando então a boca com a
caneca de cerveja.
– Então, um epónimo? – murmurou em gaélico. – As gentes do clã não
aceitam facilmente estranhos.
Roger atravessou a sala com uma passada longa e arrancou a caneca das
mãos do homem.
– Não quero sentenças. Responde-me à pergunta que fiz, ou atiro-te pelas
escadas a pontapés.
Angus fitou a caneca fria com um olhar desesperado.
– Tem de se tornar um MacArran – olhou para Roger. – Imagino que se
refira a esse clã.
Roger anuiu brevemente.
– Tem de acolher o nome de senhor do clã, para que os homens o aceitem.
E vestir-se à maneira escocesa, senão riem-se de si. Tem de amar a terra e
os escoceses.
Roger afastou a cerveja.
– E a mulher? O que tenho de fazer para a possuir?
– A Bronwyn só se interessa pela sua gente. Matar-se-ia antes de casar
com um inglês, mas sabe que a morte dela causaria um conflito dentro do
clã. Se mostrar àquela mulher que as suas intenções com o povo dela são
boas, será sua.
Roger entregou a cerveja ao homem.
– Quero saber mais. O que é um clã? Porque se tornou uma mulher líder?
Quem são os inimigos do clã MacArran?
– Falar dá sede.
– Terás toda a bebida que conseguires beber, desde que me digas o que
quero saber.

Bronwyn encontrou Roger Chatworth na manhã seguinte, bem cedo.


Apesar da sua intenção, sentia-se tão excitada com a ideia de cavalgar entre
as árvores que mal conseguira dormir. Morag ajudara-a a enfiar um vestido
leve de veludo castanho, enquanto lançava avisos sobre os ingleses e as
prendas que traziam.
– Só quero andar a cavalo – disse Bronwyn com teimosia.
– Sim, e que coisa irrisória quererá este Chatworth? Ele sabe que vais
casar com outro.
– Vou? – ripostou Bronwyn. – Então onde para o meu noivo? Devo vestir
o meu vestido de noiva e ficar mais um dia inteiro à sua espera?
– É melhor do que seguir um jovem conde cheio de ideias.
– Um conde? O Roger Chatworth é um conde inglês?
Morag recusou-se a responder, mas esticou com força pela derradeira vez
o vestido antes de a empurrar para fora do quarto.
Agora, montada a cavalo, com Rab a correr a seu lado, Bronwyn sentia-se
viva pela primeira vez em muitas semanas.
– As rosas regressaram às vossas faces – disse Roger, rindo-se.
Ela sorriu como resposta, e o sorriso suavizou-lhe o queixo e os olhos
iluminaram-se. Espicaçou o cavalo para galopar mais depressa. Rab
acompanhou-os, correndo a largos passos.
Roger virou-se por instantes e examinou os homens que os seguiam. Três
guardas pessoais, dois pajens e um cavalo de carga cheio de comida e
pratos. Virou-se e olhou para Bronwyn, que ia à frente. Franziu o cenho
quando ela espreitou por cima do ombro e espicaçou ainda mais o cavalo.
Era uma cavaleira excelente, e sem dúvida que o bosque estava pejado de
homens do seu clã, desejosos de ajudá-la a escapar.
Esticou a mão e gesticulou aos homens que avançassem, enquanto
espetava as esporas no seu corcel.
Bronwyn fez o cavalo praticamente voar. O vento no cabelo, a sensação
da liberdade, era uma emoção. Quando alcançou o ribeiro, seguia a galope.
Não fazia ideia se o cavalo saltara anteriormente na vida, mas incitou-o,
independentemente do risco. Voou sobre a água como se tivesse asas. Na
outra margem, puxou o cavalo, fazendo-o parar e virou-se para trás.
Roger e os homens aproximavam-se agora do ribeiro.
– Lady Bronwyn! – exclamou Roger. – Senti-vos bem?
– Obviamente – riu-se ela, orientando o cavalo pela água, de volta ao
local em que Roger a aguardava. Inclinou-se para diante, afagando o
pescoço do cavalo. – É um bom animal. Conseguiu saltar.
Roger desmontou e acercou-se dela.
– Assustastes-me verdadeiramente. Podíeis ter ficado ferida.
Ela riu-se de contentamento.
– Uma escocesa dificilmente se fere em cima de um cavalo.
Roger esticou os braços para a ajudar a desmontar.
Subitamente Rab interpôs-se entre eles num pulo com os lábios
arrepanhados e os dentes compridos e afilados à mostra. Rosnou profunda e
ameaçadoramente. Roger recuou por instinto.
– Rab! – O cão obedeceu a Bronwyn imediatamente. Afastou-se, mas o
olhar, com um brilho de aviso, nunca abandonou Roger. – Só quer proteger-
me – disse ela. – Não gosta que ninguém me toque.
– Não voltarei a esquecer-me disso – disse Roger cautelosamente
enquanto ajudava Bronwyn a desmontar. – Talvez vos apeteça descansar
depois deste passeio – sugeriu. Estalou os dedos e os pajens trouxeram duas
cadeiras estofadas de veludo vermelho. – Minha senhora – ofereceu Roger.
Ela sorriu de espanto, ao ver as cadeiras pousadas no bosque. A relva sob
os pés parecia um tapete de veludo. O regato soava melodioso, e ao pensar
nisso, um dos homens de Roger começou a tocar um alaúde. Ela fechou os
olhos por instantes.
– Tendes saudades da vossa terra, minha senhora? – perguntou Roger.
Ela suspirou.
– Não fazeis ideia. Só quem tenha nascido nas Terras Altas entende o que
significa ser-se escocês.
– Tive uma avó escocesa, o que talvez me permita compreender alguns
dos vossos modos.
A cabeça dela levantou-se abruptamente.
– Uma avó! Como se chamava?
– Era uma MacPherson de MacAlpin.
Bronwyn sorriu. Era bom ouvir novamente nomes familiares.
– MacAlpin. É um bom clã.
– Sim. Passei muitas tardes escutando as histórias, sentado no joelho
dela.
– E que tipo de histórias contava ela? – perguntou Bronwyn com cautela.
– Casara com um inglês, e costumava comparar as culturas dos dois
países. Dizia que os escoceses eram mais hospitaleiros, que os ingleses
enfiavam as mulheres num quarto e fingiam que elas eram parvinhas.
Enquanto os escoceses tratavam as mulheres como iguais.
– Sim – concordou Bronwyn numa voz calma. – O meu pai nomeou-me
senhora. – Fez uma pausa. – E o vosso avô inglês, como tratava a esposa
escocesa?
Roger riu-se, como se fosse uma anedota privada.
– O meu avô viveu uns tempos na Escócia, e sabia que a minha avó era
uma mulher inteligente. Deu-lhe valor, toda a sua vida. Nunca tomaram
decisões sem participação de ambos.
– E haveis passado algum tempo com os vossos avós?
– A maior parte da vida. Perdi os meus pais, era muito novo.
– E o que pensais desta forma não inglesa de tratar as mulheres? Agora
que sois adulto, tendes percebido que as mulheres só servem para levar para
a cama, procriar e criar os filhos.
Roger riu-se com gosto.
– Se eu tivesse um pensamento desses, o fantasma da minha avó dava
cabo de mim. Não – disse com ar mais sério –, ela queria que eu casasse
com a filha de um primo seu, mas a criança morreu antes de podermos
casar. Cresci com o nome de MacAlpin.
– O quê? – espantou-se ela.
Roger mostrou-se surpreso.
– Ficou estabelecido no contrato de casamento que me tornaria MacAlpin
para agradar ao clã dela.
– E vós faríeis isso? Eu disse ao Sir Thomas que o meu marido tinha de
se tornar um MacArran, mas ele respondeu que era impossível, que nenhum
inglês abandonaria o seu fino nome de família para adotar um nome escocês
pagão.
O olhar de Roger faiscou de raiva.
– Não entendem! Malditos ingleses! Pensam que só existe a maneira
deles. Até os franceses…
– Os franceses são nossos amigos – interrompeu Bronwyn. – Visitam o
nosso país, e nós o deles. Não destroem as nossas colheitas nem roubam o
nosso gado, como os ingleses.
– Gado – sorriu Roger. – Eis um tema interessante. Dizei-me, os
MacGregors ainda criam animais pujantes?
Bronwyn respirou fundo de ultraje.
– O clã MacGregor é nosso inimigo.
– É verdade – ele sorriu. – Mas não concordais que um assado feito com
carne de vaca dos MacGregors é mais suculento que os outros?
Ela não soube o que dizer. Os MacGregors eram inimigos dos MacArrans
há séculos.
– Claro que as coisas mudaram desde que a minha avó era uma moçoila
das Terras Altas – continuou Roger. – Nessa época, os jovens divertiam-se a
assaltarem o gado durante a noite.
Bronwyn sorriu-lhe.
– Nesse aspeto, nada mudou.
Roger virou-se e estalou os dedos.
– Quereis comer, minha senhora? O Sir Thomas tem um cozinheiro
francês, que nos preparou um repasto. Dizei-me, haveis provado uma
romã?
Ela abanou a cabeça, novamente sem palavras, fitando-o de espanto ao
ver as cestas serem esvaziadas e a comida ser servida pelo pajem de Roger
em pratos de prata. Pela primeira vez na vida, ponderou que um inglês
podia tornar-se uma pessoa capaz de aprender, e com vontade de aprender,
os modos escoceses. Pegou numa fatia de paté na forma de uma rosa e
depositou-a numa bolacha. Os acontecimentos do dia tornavam-se uma
revelação, a seu ver.
– Dizei-me, lorde Roger, o que pensais do nosso sistema de clãs?
Roger sacudiu as migalhas do seu gibão de brocado dourado e sorriu para
si mesmo. Preparara-se bem para todas aquelas perguntas.

Bronwyn aguardava no quarto em que passara demasiado tempo no


último mês. Tinha as faces ainda coradas e os olhos reluzentes da cavalgada
acelerada da manhã.
– Ele é diferente dos outros – disse a Morag. – Ouve o que eu digo,
passámos horas juntos e não parámos de falar. Ele até sabe palavras em
gaélico.
– Nã’ é difícil apanhar uma coisa aqui e ali. Até os das Terras Baixas
sabem gaélico. – Era o pior insulto que Morag podia fazer. Para ela, quem
vivia nas Terras Baixas eram escoceses traidores, mais ingleses que
escoceses.
– Como explicas assim o que ele disse a seguir? Que a avó era escocesa.
Devias ter escutado as ideias dele! Que pediria ao rei Henrique para parar as
incursões dos ingleses contra nós, que isso traria mais paz do que a prática
de capturar escoceses e forçá-los a casarem-se contra vontade.
Morag enrugou o rosto escuro e amarrotado numa feiura de casca de noz.
– Partiste esta manhã cheia d’ódio pelos ingleses e voltaste mansinha.
Dele só ouviste palavras, mas ações, nada. Como é que agora confias nele?
Bronwyn sentou-se pesadamente no assento junto à janela.
– Não percebes que só quero o melhor para o meu povo? Se sou obrigada
a desposar um inglês, porque não um parcialmente escocês, em mente e em
corpo?
– Não podes escolher maridos! – disse Morag firmemente. – Não vês que
és caça grossa? Qualquer jovem dirá seja o que for para se enfiar nas saias
de uma mulher bonita. E se as saias estiverem cobertas com pérolas, até
matam para as ter.
– Dizes que ele mente?
– Como é que posso saber? Acabei de conhecer o homem. Mas não vi o
Stephen Montgomery. Tanto quanto saiba, a mãe dele até pode ser escocesa.
Talvez apareça com um tartã ao ombro e um punhal à cintura.
– Não espero tanto – Bronwyn suspirou. – Conheci ingleses sem conta, e
nenhum deles compreenderia o meu clã como o Roger Chatworth. –
Levantou-se. – Mas tens razão. Serei paciente. Talvez este Montgomery
seja especial, um homem compreensivo que acredite nos escoceses.
– Não tenhas grandes esperanças – disse Morag. – Espero que o
Chatworth não te tenha dado grandes esperanças.
Capítulo Dois

Stephen cavalgara o dia inteiro sem sequer abrandar, e era noite cerrada
quando alcançou a casa de Sir Thomas na fronteira. Stephen há muito
deixara as carruagens e os criados para trás. Apenas a sua guarda pessoal
conseguira acompanhá-lo. Poucas horas antes tinham-se deparado com uma
tempestade e com um rio quase a galgar as margens. Stephen teve de
arrastar-se pelo lodo. Agora, ao entrarem no pátio, quer ele quer os seus
homens vinham cobertos com uma camada de lama. Um ramo golpeara
Stephen sobre o olho e o sangue secara entretanto, atribuindo-lhe uma
aparência grotesca.
Desmontou com destreza e atirou as rédeas ao pajem exausto. A casa
senhorial encontrava-se iluminada por uma miríade de velas e ouvia-se
música pelo ar.
Stephen permaneceu parado à porta, dando tempo à vista para se adequar
à luz.
– Stephen! – exclamou Sir Thomas, aproximando-se com andar manco. –
Estávamos preocupados convosco! Preparava-me para mandar homens à
vossa procura quando raiasse a manhã.
Apareceu um homem atrás do cavaleiro idoso e atacado pela gota.
– Então é este o noivo extraviado – sorriu o homem, mirando Stephen de
cima a baixo, reparando na roupa imunda e rasgada. – Nem todos nós
ficámos preocupados, Sir Thomas.
– Certo – riu-se outra pessoa. – O jovem Chatworth aproveitou bem a
ausência do noivo tardio.
Sir Thomas assentou a mão no ombro de Stephen e orientou-o para uma
sala ao lado do corredor.
– Vinde, rapaz. Temos de falar.
Era uma sala extensa, coberta de painéis de carvalho cinzelados num
padrão rendilhado. Uma fileira de livros encostava-se à parede assente
numa mesa comprida em forma de cavalete. A completarem o conteúdo
espartano, quatro cadeiras ladeavam uma lareira enorme, na qual chamas
mansas dançavam com alegria.
– Que comentário foi aquele sobre o Chatworth? – perguntou Stephen de
imediato.
– Primeiro, sentai-vos. Estais exausto. Quereis comida? Ou vinho?
Stephen afastou uma almofada de uma cadeira feita em nogueira e, grato,
sentou-se. Aceitou o vinho oferecido por Sir Thomas.
– Peço perdão pelo meu atraso. A minha cunhada deu uma queda e
perdeu o bebé. Ia morrendo. Lamento, mas não reparei na data e só me
apercebi de que já estava atrasado ao fim de três dias. Vim o mais depressa
que pude – tirou um pedaço de lama seca do pescoço e lançou-o à lareira.
Sir Thomas anuiu.
– Isso é evidente pelo vosso aspeto. Se não me tivessem informado da
vossa chegada, ostentando o estandarte com os leopardos dos
Montgomerys, não vos teria reconhecido. O corte por cima do vosso olho é
tão mau quanto parece?
Stephen apalpou a zona com ar absorto.
– É essencialmente sangue seco. Cavalguei tão depressa que não escorreu
pela cara – brincou.
Sir Thomas riu-se e sentou-se.
– É bom ver-vos. Como se encontram os vossos irmãos?
– O Gavin casou-se com a filha do Robert Revedoune.
– O Revedoune? Um casamento com dinheiro à mistura.
Stephen sorriu e pensou que Gavin pouco se importava com o dinheiro da
esposa.
– O Raine não se cala com as suas ideias parvas sobre o modo como
tratamos os servos.
– E o Miles?
Stephen acabou o vinho no copo.
– O Miles presenteou-nos com mais um dos seus bastardos na semana
passada. Já são três, ou quatro, já nem sei. Se ele fosse um garanhão,
estaríamos ricos.
Sir Thomas riu-se e voltou a encher os dois cálices de metal.
Stephen fitou o homem mais velho, erguendo novamente o copo num
brinde. Sir Thomas fora amigo do pai, um tio honorário que trazia prendas
aos miúdos das inúmeras viagens e que participara no batismo de Stephen
há vinte e seis anos.
– Agora que concluímos as amenidades – disse Stephen lentamente –,
talvez me possais contar o que escondeis.
Sir Thomas riu-se, um som rotundo que vinha das profundezas da
garganta.
– Conheceis-me bem de mais. Não é nada, a bem dizer, um incómodo,
nada sério. O Chatworth tem passado imenso tempo na companhia da vossa
noiva, apenas isso.
Erguendo-se devagar, Stephen aproximou-se da lareira. Pedaços de lama
tombaram das suas roupas com o movimento. Sir Thomas não podia saber o
que significava o nome Chatworth para Stephen. Alice Valence fora amante
do seu irmão durante anos. Repetidas vezes Gavin a pedira em casamento, e
ela recusara, preferindo casar com o rico Edmund Chatworth. Mas, pouco
depois do matrimónio, Edmund fora assassinado e Alice reaparecera na
vida de Gavin. Era uma mulher traiçoeira, e enfiara-se na cama com Gavin
ainda bêbado e sonolento, de modo a que Judith os apanhasse. Na sua dor,
Judith caíra pelas escadas, perda o bebé e quase morrera.
Roger Chatworth era cunhado de Alice, e a mera menção daquele nome
fez Stephen ranger os dentes.
– Não pode ser só isso – disse Stephen por fim.
– A Bronwyn deu a entender ontem à noite que talvez preferisse ter o
Roger por marido do que alguém tão… descortês.
Stephen sorriu e regressou à cadeira.
– E como é que o Roger responde a isso?
– Favoravelmente, pelos vistos. Acompanha-a nas passeatas a cavalo pela
manhã, janta a seu lado, fica no jardim com ela.
Stephen emborcou o resto do vinho e começou a descontrair-se.
– É do conhecimento geral que os Chatworths são gananciosos, mas não
me tinha apercebido que o eram tanto. Deve estar muito necessitado, para
aturar a companhia da mulher.
– Aturar? – perguntou Sir Thomas, surpreso.
– Não tendes de ser insincero comigo. Contaram-me que ela lutou como
um homem quando se viu cercada, e pior ainda, que até o pai a considerava
como um homem, a ponto de nomeá-la sua sucessora. Quase tenho pena do
Roger. Era bem feito, deixá-lo ficar com uma mulher tão feia.
Sir Thomas ficou boquiaberto, mas aos poucos os olhos começaram a
brilhar.
– É feia? – riu-se.
– Que mais poderá ser? Não vos esqueçais que passei tempos na Escócia.
Nunca vi bando de gente tão selvagem. Mas podia dizer que não ao rei
Henrique? Ele considerou-a uma recompensa. Contudo, se me afastar e a
deixar ao Roger, este ficar-me-á eternamente em dívida. Assim poderei
casar com uma coisinha bonita que não queira vestir a minha armadura. Sim
– sorriu –, se calhar faço isso.
– Concordo – disse Sir Thomas com firmeza. – A Bronwyn é uma mulher
verdadeiramente feia. Estou certo de que o Roger só se interessa pela terra
dela e não pela rapariga. Mas, de modo a poderes explicar ao rei Henrique
que foste justo, porque não a conheceis primeiro? Estou certo de que ela
olhará para vós e para o vosso estado lamentável, e de imediato se recusará
a casar convosco.
– Sim – Stephen sorriu amplamente, dentes brancos tornando-o, por
contraste, ainda mais imundo. – Depois, a mulher e eu podemos em
conjunto informar o Roger da nossa decisão. E eu voltarei para casa. Sim,
Sir Thomas, é uma ideia fabulosa.
Os olhos de Sir Thomas rebrilharam como os de um menino;
praticamente dançaram.
– Tendes uma sabedoria incomum para um homem tão jovem. Aguardai
aqui, e eu mandá-la-ei vir pelas escadas das traseiras.
Stephen soltou um assobio baixo.
– Escadas das traseiras? Deve ser mais feia do que pensei.
– Vereis, meu rapaz. Vereis – disse Sir Thomas, saindo da sala.

Bronwyn encontrava-se mergulhada até ao queixo numa banheira de água


quente e fumegante, com os olhos fechados, e imaginava-se novamente em
casa. Roger estaria a seu lado, e juntos liderariam o clã. Era uma imagem
que começava a evocar com mais frequência nos últimos dias. Roger era
um inglês que ela, pelo menos, podia compreender. Todos os dias ele
parecia descobrir mais acerca dos escoceses.
Morag irrompeu pela sala, fazendo Bronwyn abrir os olhos.
– Já chegou – anunciou a velha.
– Quem? – teimou Bronwyn, sabendo precisamente a quem ela se
referia.
Morag ignorou a pergunta.
– Está a falar com o Sir Thomas mas certamente vais ser chamada daqui a
poucos minutos, portanto pula da água e veste-te. Vais usar o vestido azul.
Bronwyn inclinou a cabeça para trás.
– Não acabei ainda o banho. E não tenciono vê-lo só porque se dignou
aparecer. Esperei quatro dias por ele; talvez agora o faça esperar cinco.
– Estás a ser infantil, como bem sabes. O rapaz da estrebaria disse que os
cavalos do homem estavam quase mortos de cansaço. Veio a galope.
– Ou talvez esteja habituado a maltratar os cavalos.
– E a seguir a maltratada serás tu! Vá, salta da banheira ou despejo um
balde de água fria na tua cabeça.
Antes de Morag poder agir, a porta foi novamente aberta de rompante,
revelando um par de guardas.
– Mas que ousadia é esta? – berrou Bronwyn, afundando-se mais na
água.
De imediato, Rab levantou-se do seu lugar ao fundo da banheira em
modo de ataque.
Os homens nem conseguiram regalar a vista com a figura da rapariga,
pois foram logo derrubados pelo animal, com os seus cinquenta quilos
caninos e dentes afilados à mostra.
Morag agarrou na camisa interior de Bronwyn e atirou-lha. Erguendo-se,
Bronwyn cobriu rapidamente o corpo; a bainha caiu na água. Saindo da
banheira, recebeu um tartã de lã das mãos de Morag.
– Vem cá, Rab! – ordenou Bronwyn. O mastim obedeceu de imediato,
regressando para a dona.
Os guardas levantaram-se devagar, esfregando pulsos e ombros nos locais
em que Rab os abocanhara. Não sabiam que o cão matava apenas se
comandado por Bronwyn; caso contrário, protegia-a sem causar danos
permanentes. Os homens tinham visto a banheira ser levada para o quarto
de Bronwyn, ouviram a água, e aproveitaram as ordens de Sir Thomas
como pretexto para a apanharem no banho. Mas entretanto ela envolvera-se
da cabeça aos pés numa manta escocesa. Nem o contorno do corpo à
mostra, apenas o rosto e os olhos a brilhar de humor.
– O que querem? – perguntou Bronwyn com riso na voz.
– É chamada ao estúdio de Sir Thomas – disse um dos guardas com ar
carrancudo. – E se o seu cão tentar mais uma vez…
Ela interrompeu-o.
– Se vocês entrarem mais uma vez no meu quarto sem permissão, o Rab
salta-vos à garganta. Sigam à minha frente.
Eles olharam para Bronwyn e para o grande galgo, depois viraram-se.
Bronwyn manteve a cabeça erguida ao segui-los pelas escadas. Não
deixaria que percebessem a sua raiva pela forma como Stephen
Montgomery a tratava. Quatro dias atrasado para o próprio casamento e, no
dia em que aparece, ela vê-se arrastada para a sua presença, como uma
criadita qualquer.
Quando Bronwyn entrou no estúdio, olhou para Sir Thomas e depois para
o homem junto à lareira. Era alto, mas encontrava-se imundo da cabeça aos
pés. Do rosto, nada se discernia. Parecia ter uma parte da cara inchada –
talvez um problema permanente.
Subitamente um dos guardas encontrou uma forma de retribuir o
comportamento dela. Agarrando a ponta do comprido tartã, empurrou
Bronwyn com força. Ela caiu para a frente enquanto o guarda puxava a
manta para trás.
– Você! – berrou Sir Thomas. – Fora daqui! Como ousa tratar uma
senhora dessa forma! Se o apanhar a menos de setenta quilómetros da
propriedade quando chegar a manhã, mando-o enforcar!
Ambos os guardas viraram as costas e partiram, enquanto Sir Thomas se
virava para pegar no traje.
Momentaneamente atordoada, Bronwyn rapidamente se pôs de pé. A fina
camisa interior colava-se ao corpo ainda húmido como se estivesse nua.
Tentou tapar-se com as mãos até que encarou Stephen. Este já não se
encontrava encostado à lareira com ar indiferente, mas pusera-se muito
direito, fitando-a com um ar atónito, olhos esbugalhados, revelando globos
assaz brancos, boca tão escancarada que a língua quase tombou.
Ela arrebanhou o lábio, em jeito de desagrado, mas Stephen não pareceu
notar. Só tinha olhos para a aparição que representava aquela figura. Ela
deixou cair os braços e ficou a olhá-lo.
Decorreu um período extraordinariamente longo antes de Sir Thomas
depositar a manta de Bronwyn gentilmente sobre os ombros da rapariga.
Ela imediatamente cingiu-a contra o corpo.
– Bem, Stephen, não cumprimentais a vossa noiva?
Stephen pestanejou várias vezes, até se recompor. Aproximou-se dela
lentamente.
Bronwyn era alta, mas teve de levantar a vista para lhe encontrar o olhar.
A parca luz conferia-lhe um aspeto ainda pior. A luz das velas desenhava
sombras funestas na lama e no sangue seco do rosto.
Stephen tomou uma madeixa de cabelo caída sobre o peito dela e rodou-a
nos dedos.
– Não vos tereis equivocado, Sir Thomas? – perguntou calmamente, os
olhos nunca abandonando os dela. – Esta é a senhora do clã MacArran?
Bronwyn recuou um passo.
– Tenho cérebro e língua. Não precisa de se referir a mim como se eu não
estivesse presente. Sou a MacArran dos MacArran, e jurei odiar todo e
qualquer inglês, em particular os que insultam o meu clã e a minha pessoa,
atrasando-se e aparecendo nesse estado – virou-se para Sir Thomas. –
Encontro-me muito fatigada. Peço a vossa licença, se podeis conceder a esta
pobre prisioneira tamanho pedido.
Sir Thomas franziu o cenho.
– O Stephen agora é o vosso senhor.
Ela virou-se para ele, lançou-lhe um olhar contundente e saiu da sala sem
permissão.
Sir Thomas virou-se para Stephen.
– Falta-lhe alguma educação. Culpa dos escoceses, que não sabem aplicar
corretivos às suas mulheres. Mas apesar da língua afiada, ainda a julgais
hedionda?
Stephen não conseguia desviar a vista da porta por onde Bronwyn se
esvaíra. Visões da sua figura dançavam perante ele – um corpo que existia
apenas em sonhos, cabelo preto e olhos cor de safiras. Espetara o queixo na
direção dele, e ele ardera de desejo de beijá-la. Tinha seios generosos e
retesados contra o tecido húmido; cintura fina e firme; ancas e coxas
redondas, desavergonhadas, excitantes.
– Stephen?
Stephen quase tombou na cadeira.
– Se eu soubesse – sussurrou –, se eu tivesse a mínima noção, já teria
vindo há semanas, quando o rei Henrique ma prometeu como esposa.
– Então aprovai-la?
Passou a mão sobre os olhos.
– Deve ser um sonho. Nenhuma mulher viva tem aquele aspeto. Só pode
ser uma partida vossa. Não pretendeis substituí-la pela verdadeira Bronwyn
MacArran durante a cerimónia, pois não?
– Garanto-vos de que é a verdadeira. Porque julgais que a guardo tão bem
guardada? Os homens são como os cães, prontos a lutar por ela a qualquer
instante. Podem contar histórias sobre a natureza traiçoeira dos escoceses,
mas a verdade é que individualmente cada um ofereceu-se generosamente
para ocupar o vosso lugar na cama da rapariga.
Stephen enrolou o lábio de desagrado.
– Mas mantiveste-os afastados dela.
– Não tem sido fácil.
– E aquele Chatworth? Terá tomado o meu lugar junto da minha noiva?
Sir Thomas riu-se.
– Estais com ciúmes, e há poucos momentos queríeis entregá-la ao Roger.
Não, o Roger nunca passou um momento sequer a sós com ela. É uma
cavaleira excelente, e ele não a acompanharia sozinho com medo de
encontrar o povo dela.
Stephen fungou de desdém.
– O mais certo é que o nome Chatworth tenha demasiados inimigos para
se atrever a andar sozinho – levantou-se. – Devíeis tê-la trancado no quarto
para que não andasse a passear com outros.
– Não estou assim tão velho que consiga resistir a uma carinha laroca
como a da Lady Bronwyn. Ela só tem de me pedir o que quiser, que eu dou-
lhe.
– Pois agora ela é responsabilidade minha. Tenho o mesmo quarto a
sudeste? Podeis mandar preparar-me um banho e comida? Amanhã ela não
se sentirá insultada pela minha aparência.
Sir Thomas sorriu perante a tranquila postura de Stephen. O dia de
amanhã prometia muitos acontecimentos.

A luz do sol do princípio da manhã banhava o quarto. Bronwyn


encontrava-se junto à mesa, de pé, a ler uma mensagem. Tinha o cenho
franzido. Usava um vestido de veludo azul-pavão. As mangas com folhos
tinham aberturas, pelas quais despontava a gaze de seda verde-clara – a qual
também sobressaía pela frente da saia.
Virou-se para Morag.
– Ele pede-me para nos encontrarmos no jardim.
– Estás com ar apresentável.
Bronwyn amarrotou a mensagem. Continuava zangada pela forma como
ele a convocara na noite passada. Chegada a manhã, não oferecera
quaisquer desculpas nem explicações pelo comportamento ou pelo atraso.
Limitou-se a pedir que ela cumprisse as suas instruções, a seu mando.
Ela fitou a criada que aguardava uma resposta.
– Diz ao Lorde Stephen que não me encontrarei com ele.
– Não, minha senhora? Senti-vos indisposta?
– Sinto-me perfeitamente. Entrega a minha mensagem como indiquei,
depois procura o Roger Chatworth e informa-lhe que me encontrarei com
ele no jardim daqui a dez minutos.
Os olhos da rapariga esbugalharam-se, e saiu do quarto.
– É melhor que faças as pazes com o teu marido – disse Morag. – Nada
ganhas se o irritares.
– O meu marido! O meu marido! Não ouço outra coisa. Ainda não é meu
marido. Devo saltar sempre que me chama, mesmo depois de me ter
ignorado durante dias? Nesta casa, riem-se de mim por causa dele, e
contudo, devo cair a seus pés como uma esposa obediente quando se dignou
comparecer. Não quero que fique com a impressão de que sou uma mulher
cobarde e manipulável. Quero que saiba que o odeio e à sua estirpe.
– E quanto ao jovem Chatworth? É inglês.
Bronwyn sorriu.
– Ao menos, é metade escocês. Talvez consiga levá-lo para as Terras
Altas e fazer dele um escocês por inteiro. Vem, Rab, temos um encontro.

– Bom dia, Stephen – anunciou Sir Thomas. Estava uma manhã adorável,
com o sol brilhante, o ar fresco depois da chuvada rápida da noite anterior.
O aroma das rosas flutuava no ar. – Tendes melhor aspeto do que ontem.
Stephen usava um casaco curto de lã. Salientava a amplidão dos ombros,
a grossura do peito. As pernas estavam envoltas em meias-calças que
aderiam às curvas musculadas das pernas fortíssimas. O cabelo louro-
escuro enrolava-se no colarinho, os olhos rebrilhavam sobre o maxilar
cinzelado. Era extraordinariamente bem-parecido.
– Ela recusou ver-me – disse sem meias-medidas.
– Eu avisei de que tinha modos bruscos.
Stephen subitamente virou a cabeça para cima. Bronwyn aproximava-se
deles. Ele não reparou logo em Roger a seu lado. Só tinha olhos para ela. O
cabelo forte e pesado caia-lhe pelas costas, solto e descoberto. Refletia a luz
do sol, brilhando como se coberto de pó de ouro. O azul do vestido
combinava com o azul dos olhos. O queixo parecia tão teimoso à luz do dia
como na noite anterior.
– Bom dia – disse Roger, baixinho, quando pararam por instantes.
Bronwyn cumprimentou Sir Thomas, depois o olhar pousou em Stephen.
Não o reconheceu. Apenas pensou que nunca vira um homem com olhos
assim. Pareciam trespassá-la. Teve dificuldade em desviar a vista e
continuar a andar.
Quando Stephen recuperou o suficiente para perceber que Roger
Chatworth acompanhava a mulher que iria desposar, soltou um rugido
profundo e deu um passo em frente.
Sir Thomas apanhou-lhe o braço.
– Não façais isso. O Roger adoraria uma luta. E a bem dizer, até a
Bronwyn.
– Sou bem capaz de lutar contra os dois!
– Stephen! Escutai-me. Haveis magoado a rapariga. Haveis chegado
atrasado e sem mandar mensagem. Ela é orgulhosa, mais do que uma
mulher tem o direito de ser. Foi obra do pai, quando fez dela sua herdeira.
Dai-lhe tempo. Levai-a a passear a cavalo, amanhã, conversai com ela. É
uma mulher inteligente.
Stephen ficou mais descansado e tirou a mão do punho da espada.
– Conversar com ela? Como conseguirei falar com uma mulher com
aquele aspeto? Na noite passada mal consegui dormir, assombrado por ela.
Sim, levo-a a dar um passeio, embora talvez não seja esse tipo de passeio.
– O vosso casamento está marcado para depois de amanhã. Deixai a
rapariga virgem até então.
Stephen encolheu os ombros.
– É minha. Farei o que quiser com ela.
Sir Thomas abanou a cabeça perante a arrogância do jovem.
– Vinde ver os meus novos falcões.
– A Judith, a minha cunhada, mostrou ao Gavin um novo chamariz.
Talvez o queirais ver.
Deixaram o jardim e entraram nos estábulos.
Enquanto acompanhava Roger, Bronwyn não deixou de perscrutar o
jardim, em busca do homem que conhecera na noite anterior. O único
estranho que vira fora o homem ao lado de Sir Thomas. De resto, os
guardas eram os mesmos, fitando-a, rindo-se depreciativamente à sua
passagem.
Mas nenhum deles correspondia ao homem feio e imundo a cuja presença
fora convocada. Uma vez espreitou por cima do ombro, para o lugar em que
estivera Sir Thomas. Quer ele quer o estranho tinham partido. Os olhos
daquele sujeito assombravam-na. Queria fugir deles tanto quanto queria
manter-se parada. Pestanejou para clarear a vista e virou-se para uma figura
segura: Roger. Tinha um olhar sorridente, bondoso e de modo algum
perturbador.
– Dizei-me, Lorde Roger, que mais há para saber sobre o Stephen
Montgomery além do facto de ser horrendo?
Roger ficou espantado com a pergunta dela. As mulheres, quando
conheciam Stephen, não costumavam considerá-lo horrendo. Chatworth
sorriu.
– Em tempos os Montgomerys foram ricos, mas o excesso de arrogância
desagradou a um certo rei, que lhes tirou a riqueza.
Ela franziu a testa.
– Então agora têm de casar com a riqueza.
– Com as mulheres mais ricas que encontrarem – sublinhou ele.
Bronwyn pensou nos homens que tinham morrido com o pai. Teria
escolhido um deles para marido, e teria casado com um homem que a
amasse, um que a desejasse mais do que às suas terras.

***

Morag, enquanto retirava um balde de água do poço, não largou da vista o


jovem encostado ao muro do jardim. Nos últimos dias, Morag nunca se
afastara de Bronwyn, embora a rapariga não notasse a sua presença. Não
gostava da forma como Bronwyn se pavoneava perante este Chatworth.
Nem Morag gostava dele, um homem capaz de fazer a corte a uma mulher a
poucos dias desta se casar.
Morag ouvira os delírios de Bronwyn na noite em que regressara do
encontro com Stephen Montgomery. Ouvira-a descrevê-lo como um idiota
lascivo e babado. Bronwyn jurara aos berros que jamais se casaria com ele,
que era vil e asqueroso.
Morag pousou o balde de água no chão. Há uma hora que via o homem
de olhos azuis contemplar Bronwyn, enquanto ela cantava a música que
Roger tocava num alaúde. O estranho mal pestanejara, ficando apenas a vê-
la.
– Então você é o futuro esposo – disse Morag em voz alta.
Stephen teve dificuldade em desviar a vista. Lançou um olhar à mulher
nodosa e sorriu.
– Como sabia?
– Pela forma como olha para ela, como se já fosse sua.
Stephen riu-se.
– Ela disse que você era o homem mais feio no qual assentou a vista.
O olhar de Stephen faiscou.
– E você concorda?
Morag resmungou.
– Escapa. E não tente sacar-me elogios.
– Agora que me colocou no lugar, talvez me possa dizer quem é. Pelo seu
sotaque presumo que seja escocesa como a minha Bronwyn.
– Sou a Morag de MacArran.
– A criada da Bronwyn.
Morag empertigou-se.
– Somos todos livres na Escócia, nunca se esqueça disso. Faço o que
posso para ganhar o meu sustento. Porque se atrasou para o casamento?
Stephen voltou a fitar Bronwyn.
– A minha cunhada ficou muito doente. Não podia partir até ter a certeza
de que sobreviveria.
– E não podia mandar uma mensagem?
Stephen lançou-lhe um olhar embaraçado.
– Esqueci-me. Estava preocupado com a Judith e esqueci-me.
Morag soltou uma gargalhada como um cacarejo. Começava a gostar
deste cavaleiro alto.
– É um bom homem, pois coloca a preocupação pelos outros acima dos
seus interesses.
A vista de Stephen faiscou.
– A bem dizer, não fazia ideia de que a sua patroa tivesse aquele aspeto.
A mulher riu-se novamente.
– Você é um rapaz bom e sincero… para inglês. Entre e tome um uísque
comigo. Não tem medo de um copinho logo pela manhã?
Ele esticou o braço para ela.
– Talvez eu consiga embebedá-la e arrancar-lhe informações sobre a
Bronwyn.
O cacarejo de Morag atravessou o jardim.
– Em tempos, meu jovem, os homens queriam embebedar-me para outros
fins. – E entraram juntos na casa.
Bronwyn franziu a testa ao ouvir a gargalhada. Estivera bem ciente do
homem que a fitava sem parar, situação que a perturbava. Lançava-lhe
olhares ocasionais, e retinha a impressão de uma graciosidade misturada
com força e poder controlado. A conversa de Morag, demasiado íntima com
o estranho, perturbou-a. A velha normalmente não gostava dos homens, em
particular dos ingleses, e Bronwyn ficou a pensar o que tinha este para
encantá-la tão facilmente.
– Quem é o homem que está com a Morag?
Roger franziu o cenho.
– Pensei que o conhecíeis. É o Stephen.
Ela fitou a figura de Stephen que se afastava, viu-o oferecer o braço à
mulher enrugada. A cabeça de Morag mal ultrapassava o cotovelo de
Stephen.
Bronwyn sentiu-se subitamente mais insultada. Que tipo de homem
ficaria impassível enquanto outro tentava seduzir a mulher que ia desposar?
Não distava mais que alguns metros e, contudo, nem tentara falar com ela.
– Lady Bronwyn, algo vos preocupa? – perguntou Roger, olhando-a com
atenção.
– Não – ela sorriu. – Nada, absolutamente. Continuai a tocar, por favor.
Bronwyn só voltou a ver Morag quando a noite caía. O sol poente
escurecia o quarto. Rab aguardava ao lado da dona enquanto ela penteava o
cabelo comprido.
– Já sei que tiveste uma visita esta tarde – disse, como se fosse
irrelevante.
Morag encolheu os ombros.
– Conversaram sobre algum assunto interessante?
Morag voltou apenas a encolher os ombros.
Bronwyn pousou o pente e dirigiu-se para o lugar à janela onde se sentava
Morag.
– Responde-me, por favor!
– És uma abelhuda. Desde quando tenho de prestar contas das minhas
conversas privadas?
– Voltaste a beber durante a tarde. Tresandas.
Morag riu-se.
– O rapaz aguenta bem a bebida. Aposto que era capaz de vencer um
escocês nos copos.
– Quem? – perguntou Bronwyn.
Morag lançou-lhe um olhar dissimulado.
– Ora, o teu marido, obviamente. Não é sobre ele que me assedias com
tantas perguntas?
– Não estou…! – Bronwyn acalmou-se. – Não é meu marido. Nem sequer
se digna a dirigir-me a palavra, quanto mais comparecer no casamento.
– Então é isso que ainda te incomoda. Imaginei que nos verias juntos.
Querias humilhá-lo quando te agarraste ao braço do jovem Chatworth?
Bronwyn não respondeu.
– Foi o que pensei! Deixa-me dizer-te que o Stephen Montgomery não
está acostumado a ser humilhado por nenhuma mulher, e se decidir casar
contigo depois da forma como te comportaste com o Chatworth, és uma
sortuda.
– Sortuda! – soprou Bronwyn, esbaforida. Não conseguia continuar a
conversa. Se Morag dissesse mais uma palavra, ainda lhe torcia o
pescocinho. – Vem, Rab – ordenou, saindo do quarto.
Desceu as escadas a correr, para o jardim. Já escurecera, e a lua brilhava
com força por cima das árvores e das sebes. Percorreu os caminhos durante
bastante tempo, até se sentar num banco de pedra diante de um muro baixo.
Que saudades de casa! Queria afastar-se destes estrangeiros, destas roupas
estranhas, dos homens estranhos que a encaravam apenas como um trunfo
de guerra.
Subitamente, Rab endireitou-se e soltou um rosnido de alerta.
– Quem vem aí? – perguntou ela.
O homem deu um passo em frente.
– Stephen Montgomery – disse em voz baixa. Parecia maior ao luar, uma
torre. – Posso sentar-me a vosso lado?
– E porque não? O que quero terá algum peso nas decisões dos ingleses?
Stephen sentou-se, vendo-a controlar Rab com um único gesto. Recostou-
se contra o muro, esticando as pernas compridas. Bronwyn afastou-se dele,
deslizando para a ponta do banco.
– Se continuais, podereis cair.
Ela ficou hirta.
– Dizei o que viestes falar, e acabai o assunto de uma vez.
– Nada tenho para dizer – respondeu ele de imediato.
– «Nada» não foi o que tereis dito à Morag.
Ele sorriu, e o luar refletiu-se nos dentes brancos e uniformes.
– A mulher tentou embebedar-me.
– E conseguiu?
– É impossível crescer com três irmãos sem se aprender a beber.
– Beberam sem conversar?
Stephen ficou calado por instantes.
– Porque sois tão hostil para comigo?
Ela levantou-se rapidamente.
– Esperáveis que vos recebesse de braços abertos? Aguardei seis horas
vestida de noiva que aparecêsseis. Vi a minha família inteira chacinada
pelos ingleses e contudo sou obrigada a casar com um deles. Depois sou
desconsiderada como se não existisse. E agora nem sequer pedis desculpa,
mas perguntais porque sou hostil.
Virou-se e começou a andar em direção à casa.
Ele agarrou-lhe o braço e fê-la virar-se para si. Bronwyn não estava
acostumada a um homem tão mais alto do que ela.
– Se pedir desculpas, aceitá-las-ás? – A voz dele era calma, profunda,
como prata líquida ao luar. Tocava-lhe pela primeira vez, e pela primeira
vez estavam assim próximos. Stephen agarrou-lhe nos pulsos, percorreu os
braços dela com as mãos, prendendo-lhe a carne sob a seda e o veludo.
– O rei Henrique só quer a paz – disse ele. – Pensa que se colocar um
inglês entre os escoceses, estes consigam ver que não somos assim tão
maus.
Bronwyn fitou-o. O coração batia com força. Queria afastar-se dele mas o
corpo não lhe obedecia.
– A vossa vaidade é assustadora. A vossa falta de educação só dará aos
escoceses uma pior impressão dos ingleses.
Stephen riu-se baixinho, mas era óbvio que não estava concentrado nas
palavras dela. Deslocou a mão esquerda e tocou-lhe no pescoço.
Bronwyn tentou soltar-se do aperto.
– Libertai-me! Não tendes direito de me agarrares… nem de te rirdes de
mim.
Stephen não fez qualquer tentativa de a libertar.
– Sois deliciosa. Não paro de pensar que, se não tivesse faltado ao nosso
casamento, levar-vos-ia para os meus aposentos neste mesmo instante. E
que tal se vos esqueceres que esperaste dias pelo nosso casamento e subires
já comigo?
Ela arfou de terror, fazendo Rab rosnar de forma ameaçadora para
Stephen. Ela contorceu-se violentamente para se libertar das mãos que a
prendiam. Rab intrometeu-se entre a dona e o homem que a tocava.
– Como vos atreveis? – perguntou, entredentes. – Dai graças por não
soltar o Rab contra vós por esse insulto.
Stephen riu-se de espanto.
– O cão dá valor à vida. – Deu um passo em frente e Rab rosnou com
mais força.
– Não vos aproximeis – avisou Bronwyn.
Stephen fitou-a com perplexidade. Levantou as mãos num gesto de
súplica.
– Bronwyn, não foi minha intenção insultar-vos, mas…
– Lady Bronwyn, posso ajudar-vos? – perguntou Roger Chatworth,
emergindo das sombras das sebes.
– Então agora escondeis-vos nas sombras, Chatworth? – retorquiu
Stephen.
Roger estava calmo e sorridente.
– Prefiro considerar-me como um salvador de damas necessitadas. –
Virou-se para Bronwyn com o braço estendido. – Desejais escolta até aos
vossos aposentos?
– Chatworth, aviso-vos!
– Parai! Os dois! – disse Bronwyn, repudiada pela briga infantil. – Roger,
agradeço-vos a vossa gentileza, mas o Rab será escolta suficiente. – Virou-
se para Stephen, lançando-lhe um olhar gélido. – Quanto a vós, senhor, fico
contente por não ser obrigada a continuar na vossa vil companhia. – Virou
as costas aos homens, e Rab seguiu-a de perto, acompanhando-a a casa.
Roger e Stephen ficaram a observá-la demoradamente depois, sem se
entreolharem, afastaram-se também.

Bronwyn teve dificuldade em adormecer. Stephen Montgomery


perturbava-a grandemente. A sua proximidade era desconcertante, e hoje
não conseguira sequer raciocinar enquanto ele lhe tocava. Era este o homem
que ela tinha de apresentar ao clã como um chefe? Não parecia levar nada a
sério.
Quando adormeceu por fim, teve sonhos sangrentos. Viu os homens do
seu clã a seguirem a bandeira inglesa, até serem chacinados, um por um.
Stephen Montgomery ostentava essa bandeira, ignorando a morte dos
escoceses enquanto tentava enfiar a mão pelo vestido de Bronwyn acima.
Chegada a manhã, um convite de Stephen pedindo-lhe para passear com
ele a cavalo não a deixou mais bem-disposta. Amarrotou a mensagem e
disse a Morag que não iria. Mas Morag tinha um jeito para implicar, e
conseguia convencer qualquer um a fazer a sua vontade. A velha conseguira
entretanto arrancar a Bronwyn o motivo da sua irritação com Stephen.
Morag fungou.
– É jovem e saudável, e pediu-te para passares a noite com ele. Lembro-
me de que já tiveste pedidos destes e não ficaste insultada.
Bronwyn ficou calada, pensando que o inglês tinha posto fim aos seus
dias de liberdade e riso.
Morag não se deixou incomodar pelo silêncio de Bronwyn. Queria algo, e
não descansaria enquanto não o obtivesse.
– Ele pede-te para passares o dia com ele. Afinal, o vosso casamento está
marcado para amanhã.
– Como sabes tanto? Não me falaram da nova data.
– Disse-me o Stephen esta manhã – informou Morag com impaciência.
– Ah! Então estiveste com ele novamente! O que te interessa tanto nele?
Há mais homens, inclusive ingleses, e melhores.
Morag fungou.
– Ainda não conheci nenhum.
– O Roger Chatworth é um homem bondoso e inteligente, e tem uma
herança de sangue escocês.
– Foi ele quem te disse isso? – retorquiu Morag. – Se calhar referia-se ao
seu apreço pelas terras dos escoceses. Acho que o Roger Chatworth
adoraria ter as tuas terras.
Os olhos de Bronwyn flamejaram de fúria.
– Não é o que os ingleses também querem? Mesmo velha e gorda, ainda
seria cortejada.
Morag abanou a cabeça em desagrado.
– Num segundo, repudias o Stephen pela sua fogosidade, no outro
queixas-te de que os homens só querem a tua riqueza e não a tua pessoa.
Dá-lhe uma hipótese para se redimir. Fala com ele, passem o dia juntos,
pergunta-lhe porque se atrasou.
Bronwyn franziu o cenho. Não queria voltar a ver Stephen nunca mais, se
fosse possível. Imaginava Roger ao seu lado, a cavalo, mas Stephen só faria
o que lhe desse na gana, independentemente da vontade dela. Olhou para
Morag.
– Tentarei falar com ele… se ele conseguir manter as mãozinhas quietas.
Morag riu-se.
– Noto esperança na tua voz.
Capítulo Três

Apesar de se sentir relutante em passar o dia com o noivo, Bronwyn vestiu-


se com decoro. Escolheu um vestido simples de lã, da cor do vinho escuro.
Uma linha de pérolas pequenas tracejava a berma do decote profundo e
quadrado. As mangas cingiam-se aos braços, revelando-lhes a curva.
Desceu as escadas de cabeça erguida, Rab colado aos calcanhares.
Tencionava dar a Stephen Montgomery uma hipótese, a de demonstrar boa
vontade para consigo e a sua gente. Podia ter feito um juízo apressado a
respeito dele, talvez o homem quisesse o melhor para ela e para o clã. Seria
capaz de perdoar-lhe o atraso em comparecer no próprio casamento. Afinal,
que importância tinha o seu incómodo pessoal? Apenas interessava a
atitude de Stephen para com o clã, e se este o aceitaria – ou não. Ela
almejava a paz entre escoceses e ingleses, tanto quanto o rei Henrique – ou
mais ainda, após a chacina perpetrada sobre a sua família.
Deteve-se ao fundo das escadas, observando o jardim soalheiro. Stephen
recostava-se contra uma parede de pedra baixa, à sua espera. Bronwyn tinha
de admitir que era um homem bem-parecido, e que sentia por ele uma
extraordinária atração, mas não permitiria que os sentimentos pessoais –
fossem de amor ou de ódio – interferissem com as necessidades do clã.
– Bom dia – disse ela, baixinho, avançando para ele. Stephen fitou-a com
uma intensidade ardente. Pegou num caracol de cabelo com bastante à-
vontade.
– É hábito escocês não tapar o cabelo? – enrolou a mecha sedosa nos
dedos.
– Até a mulher dar à luz, é costume deixar o cabelo destapado. A não ser
que use um tartã – acrescentou, atenta aos comentários dele ou indícios de
entendimento.
– Dar à luz – sorriu Stephen. – Havemos de tratar desse assunto. –
Apontou com a cabeça para o fundo do jardim. – Pedi que nos preparassem
dois cavalos. Estais preparada?
Ela rodou a cabeça para que ele lhe largasse o cabelo.
– As escocesas estão sempre preparadas para cavalgar. – Ergueu as saias
compridas e seguiu na frente, ignorando o riso divertido.
Uma linda égua negra aguardava ao lado do garanhão ruano de Stephen.
A égua não parava quieta, levantando as patas com a antecipação de partir.
Antes de Stephen tentar ajudá-la, Bronwyn saltou para a sela. As saias
pesadonas atrapalharam-na, fazendo-a amaldiçoar as modas inglesas pela
centésima vez. Ainda bem que Stephen não lhe oferecera uma daquelas
selas de montar à amazona, como Roger fizera.
Antes de Stephen ter subido para o seu corcel, já ela incitava a égua. Era
um animal irrequieto, tão ansioso por correr como a dona. Fez o cavalo
correr a pleno galope, pelo caminho que Roger lhe indicara. Inclinou-se na
sela, adorando o vento no rosto e no pescoço.
Subitamente, notou um movimento pelo canto do olho. Virando-se para
trás, notou que Stephen se aproximava velozmente. Riu-se com vontade. Os
ingleses não eram páreo para os escoceses sobre um cavalo! Falou com a
égua e aplicou a vara no flanco do animal. O cavalo disparou em frente
como se ganhasse asas. Uma sensação de força e exultação percorreu
Bronwyn.
Espreitando por cima do ombro, viu Stephen a ganhar terreno,
aproximando-se dela. Franziu o cenho. Adiante, o trilho estreitava-se,
demasiado apertado para que dois cavalos passassem lado a lado. Se ele
quisesse ultrapassá-la, teria de sair do trilho, entrar na floresta, e arriscar
partir uma das patas do cavalo numa toca de coelho ou embater numa
árvore. Orientou a égua para o centro do trilho. Sabia como reagiria um
escocês se ela lhe bloqueasse o trilho, mas estes ingleses eram coisinhas
moles, sem coragem nem vivacidade.
A égua avançava a forte galope. Stephen estava quase em cima dela, e
Bronwyn sorriu de triunfo ao notar a confusão dele. Foi quando a égua
relinchou que Bronwyn se viu obrigada a aguentar-se em cima do animal. O
garanhão de Stephen mordera a garupa da égua, que era um animal mais
pequeno.
Bronwyn tentou a todo o custo controlar a égua, amaldiçoando o inglês
por lhe perturbar a montada. O animal tornara-se estranho, sem responder
às suas ordens.
A égua voltou a relinchar ao ser mordida uma segunda vez pelo garanhão,
e contra as indicações de Bronwyn, afastou-se para o lado e Stephen
ultrapassou-a a correr, lançando à rapariga um olhar que a fez soltar um
praguejo gaélico horrendo. Ela puxou as rédeas e conduziu a égua de volta
ao centro do trilho.
Durante a corrida, Bronwyn não permitiu que a égua abrandasse. Foi
graças à sua extraordinária afinidade com os cavalos que conseguiu
controlar o animal, ao saltar para a floresta, longe do garanhão
intempestivo.
Quando alcançou o ribeiro, saltando por cima dele, Stephen encontrava-se
à sua espera. Desmontara e aguardava calmamente ao lado do cavalo
enquanto este se dessedentava.
– Nada mau. – Ele sorriu-lhe. – Tendes uma tendência para puxar a rédea
direita com mais força que a esquerda, mas com mais treino tornar-vos-eis
muito boa.
Bronwyn lançou-lhe um olhar de fogo azul. Treino! Aos quatro anos
recebera o primeiro pónei, e acompanhara o pai nos assaltos ao gado desde
os oito. Cavalgava pelas charnecas durante a noite, subindo as rochas da
costa marítima… e ele dizia que precisava de treino!
Stephen riu-se.
– Não façais essa cara. Se vos sentirdes melhor, sois a melhor cavaleira
que jamais encontrei. Daríeis lições a muitas mulheres inglesas.
– Mulheres! – ela soltou. – Daria lições aos homens!
– Do meu ponto de vista, haveis perdido uma corrida contra um inglês.
Saltai do cavalo e esfregai-o. Não podeis deixar o animal coberto de suor.
Agora ousava dizer-lhe como cuidar do cavalo. Olhou-o com desdém,
levantou o chicote e dobrou-se para golpeá-lo com ele. Stephen desviou-se
sem dificuldades do açoite, depois deu-lhe um torção brusco ao pulso, que a
magoou, e o chicote caiu por terra. Bronwyn desequilibrou-se com o
movimento inesperado. O vestido inglês pesado envolvera-se nela de modo
a fazê-la perder o equilíbrio no estribo e caiu para a frente.
Agarrou-se à pega da sela e teria recuperado o equilíbrio, mas as mãos de
Stephen já a agarravam pela cintura. Puxou-a contra si, e ela tentou afastar-
se dele. Durante instantes, foi uma digladiação de forças, mas o que a
enfureceu foi o facto de Stephen estar a apreciar por completo a sua
humilhação. Brincava com ela, fingindo que perdia mas puxando-a para
baixo logo a seguir.
Riu-se e deu um puxão vigoroso, levantando-a do selim, por cima da sua
cabeça.
– Sabíeis que a cova do vosso queixo fica mais pronunciada quando vos
zangais?
– Cova! – arfou ela, e levou o pé para trás numa tentativa de pontapeá-lo.
Considerando que tinha os pés um metro acima do chão, e que o único
apoio eram as mãos de Stephen na cintura, a decisão não foi sensata. Ele
riu-se novamente dela, atirou-a ao ar, e depois, enquanto ela procurava
reequilibrar-se, apanhou-a nos braços. Abraçou-a contra si e deu-lhe um
beijo sonoro na orelha.
– Costumais ser assim tão divertida? – riu-se.
Ela recusou encará-lo, embora Stephen a segurasse no alto. Tinha os
braços presos e não conseguia bater-lhe.
– Costumais ser assim tão frívolo? – retorquiu ela. – Só pensais em
apalpar as mulheres, e nada mais?
Ele esfregou a cara na macia face da rapariga.
– Cheirais bem – fitou-a. – Admito que sois a primeira mulher que me
afetou desta forma. Mas também sois a minha primeira noiva, uma mulher
completa e totalmente minha.
Contra a impossibilidade física, ela retesou-se ainda mais nos braços
dele.
– Para vós, uma mulher não passa disso? Uma propriedade?
Ele sorriu, abanou a cabeça e pousou-a no chão, com as mãos nos ombros
dela.
– Claro. Para que mais servem as mulheres? Agarrai em folhas e limpai o
suor do cavalo.
Ela afastou-se dele com contentamento. Não trocaram palavra, entretidos
com o desmontar das selas e a limpeza dos cavalos. Stephen não tentou
sequer ajudá-la com o selim pesado, para agrado dela pois teria recusado
ajuda. Enquanto mulher, não era nada incapaz, ao contrário do que ele
esperaria.
Por fim, prenderam os animais e ela fitou-o.
– Pelo menos, percebeis de cavalos – disse ele. Riu-se perante a
expressão que recebeu e acercou-se dela. Afagou-lhe o braço, com uma
expressão séria.
– Não insistais – ripostou ela, desviando-se. – Não pensais em mais
nada?
O olhar dele faiscou.
– Convosco por perto, não. Enfeitiçastes-me. Fazia-vos nova proposta,
mas a última ofendeu-vos.
A referência ao acontecimento no jardim levou Bronwyn a olhar em
redor. Rab deitara-se junto ao ribeiro. Era estranho que não tivesse
ameaçado Stephen quando ele lhe tocou. O cão não parava de rosnar
quando Roger se aproximava mais do que o suposto.
– Os vossos homens?
– Com o Sir Thomas, presumo.
– Não precisais deles para vos protegerem? E os meus escoceses? Não
sabeis que aguardam na floresta, preparados para me salvarem?
Stephen tomou-lhe a mão e puxou-a para um conjunto de pedregulhos.
Ela tentou libertar-se mas ele não a soltou. Fê-la sentar-se a seu lado, depois
deitou-se ao lado dela, com a cabeça apoiada nas mãos. Pelos vistos, as
perguntas dela não mereciam resposta. Ficou a observar o céu azul brilhante
que espreitava por entre as árvores.
– Porque motivo o vosso pai vos nomeou líder do clã?
Bronwyn encarou-o por instantes e sorriu. Eis o que procurava, falar-lhe
do que mais lhe importava no mundo – a sua gente.
– Ia casar com um dos três pretendentes, excelentes candidatos a chefe,
todos eles. Mas nenhum se encontrava dentro dos nove graus de parentesco
por onde se escolhem os chefes. O meu pai nomeou-me a próxima
MacArran, com o entendimento de que eu desposaria um desses homens.
– E os homens?
A boca de Bronwyn contorceu-se de fúria.
– Foram mortos, tal como o meu pai. Pelos ingleses!
Stephen não soube como reagir, além de um ligeiro franzir das
sobrancelhas.
– Então, quem casar convosco agora, torna-se o senhor?
– A senhora dos MacArran sou eu – afirmou ela sem hesitações,
começando a levantar-se.
Ele agarrou-lhe a mão e voltou a puxá-la contra o solo.
– Quem me dera que conseguísseis não me encarar com raiva durante
algum tempo. Como é que serei capaz de compreender se tentardes fugir
constantemente?
– Não fujo de vós! – Ela libertou a mão com um puxão forte, porque ele
começara a beijar-lhe a ponta dos dedos. Bronwyn obrigou-se a ignorar a
sensação que lhe subiu pelo braço e alcançou o lóbulo das orelhas.
Stephen suspirou e recostou-se.
– Receio não ser capaz de olhar para vós e conversar ao mesmo tempo. –
Fez uma pausa. – O vosso pai devia ter outra pessoa de família a quem
entregar o clã.
Bronwyn acalmou-se. Entendia perfeitamente a insinuação do imbecil
inglês: qualquer homem seria preferível a uma mulher. Não referiu o irmão
mais velho, Davey.
– Os escoceses acreditam que as mulheres são inteligentes e fortes de
caráter. Não nos veem unicamente como procriadoras.
Stephen soltou um resmungo como resposta, e Bronwyn foi assolada por
uma deliciosa imagem em que lhe partia a cabeça com um pedregulho.
Sorriu. Como se a compreendesse, Rab levantou a cabeçorra e fitou-a
interrogativamente.
Stephen parecia não se aperceber daquela troca de olhares.
– E quais seriam os meus deveres como senhor?
Ela rangeu os dentes e tentou ser paciente.
– A MacArran sou eu, e os meus homens respondem perante mim.
Teriam de aceitar-vos antes de vos obedecerem.
– Aceitar-me? – perguntou ele, virando-se para ela, mas os seios que
despontavam do decote delineado com pérolas eram uma forte distração e
teve de desviar a vista para manter a compostura. – Diria que eu é que tenho
de aceitá-los.
– Só um inglês é que diria isso! – desdenhou ela. – Como se as
circunstâncias do vosso nascimento vos colocassem acima de todos. Deveis
pensar que as vossas ideias e costumes são melhores que as dos coitados
dos escoceses. Deveis julgar-nos cruéis e selvagens, comparados convosco.
Mas não somos nós que capturamos as vossas mulheres e as obrigamos a
casar com os nossos homens, embora fossem melhores maridos do que os
ingleses.
Stephen não se ofendeu com o desabafo. Limitou-se a encolher os
ombros.
– É normal que cada um julgue que a sua pátria seja a melhor. Passei
algum tempo nas Terras Baixas, mas não acredito que sejam como as Terras
Altas.
– As pessoas das Terras Baixas são mais inglesas do que escocesas!
Ele ficou calado por instantes.
– Parece-me que ser o chefe de um clã… perdão – disse-lhe com um
risinho divertido –, estar casado com a chefe acarreta algumas
responsabilidades. O que devo fazer para ser aceite?
Bronwyn descontraiu os ombros. Uma vez que ele desviara o olhar, ela
conseguiu observá-lo demoradamente. Era tão alto... mais alto do que os
outros homens que ela conhecia. O corpo comprido erguia-se diante dela, e
estava bem ciente da sua proximidade. Apesar daquelas palavras, só lhe
apetecia sentar-se a seu lado e ficar a fitá-lo. Às pernas fortes, ao peito
grosso e aos caracóis louro-escuros no colarinho. Gostava de vê-lo em
trajes discretos, e não berrantes como era normal nos ingleses. Imaginou-o
num tartã escocês, expondo-lhe as pernas desde o meio da coxa até abaixo
dos joelhos.
– Tendes de vestir-vos como um escocês – disse calmamente. – Os
homens não deixarão de ver-vos como inimigo se não usardes um tartã.
Stephen franziu a testa.
– Andar por aí com as pernas à mostra? Faz muito frio nas Terras Altas.
– Bem se não sois homem para isso… – calou-se ao ver o olhar arrogante
dele.
– E mais?
– Tendes de tornar-vos um MacArran, ser um MacArran. Os MacGregors
serão vossos inimigos, o vosso nome mudará para MacArran. E…
– Espera! – exclamou Stephen, levantando-se e impondo-se sobre ela. –
Mudar de nome! Então, eu, o marido, é que fico com o nome da minha
esposa? – Afastou-se dela. – Que coisa tão absurda. Sabeis quem sou? Sou
um Montgomery! Os Montgomerys têm uma herança de centenas de
guerras, de inúmeros reis. Outras famílias nasceram e caíram, mas os
Montgomerys mantêm-se firmes. As terras da família são nossas há
quatrocentos anos.
Virou-se para ela e alisou o cabelo.
– E agora esperais que abandone o nome de Montgomery pelo da minha
mulher? – Fez uma pausa, e riu-se. – Seria o alvo da chacota interminável
dos meus irmãos.
Bronwyn levantou-se lentamente, enquanto se compenetrava do que ele
dissera.
– Os vossos irmãos podem perpetuar o nome da família. Sabeis o que
acontecerá se acolher um inglês que nem tenta compreender os nossos
costumes? Para começar, os meus homens matá-lo-iam, e depois eu teria de
escolher um novo marido. Imaginais os conflitos que isso causaria? Vários
jovens gostavam de casar-se comigo, e lutariam entre eles.
– Então sou obrigado a mudar de nome só para controlares os vossos
homens? E se mesmo assim não me aceitarem? Talvez tenha de pintar o
cabelo ou cortar o braço. Não! Ou me obedecem ou sentirão isto! –
Desembainhou com um gesto lesto a comprida espada.
Bronwyn fitou-o estarrecida. Agora ele queria matar-lhe o povo, os
amigos, os familiares, as pessoas cujas vidas dependiam de si. Não podia
regressar à Escócia com este louco.
– Não posso casar convosco – disse calmamente, com olhar duro e muito
sério.
– Parece-me que não tendes escolha – comentou Stephen, embainhando a
espada. Não quisera enfurecer-se, mas a mulher precisava de saber desde
logo quem mandava ali… tal como os escoceses a quem chamava de
homens «dela». – Sou um inglês – disse baixinho – e continuarei inglês,
onde quer que esteja. Devíeis compreender isso, pois não acredito que
queirais mudar os vossos costumes escoceses.
Bronwyn sentiu-se bastante fria, apesar do quente dia de outono.
– Não é o mesmo. Viverias com a minha gente, todos os dias, ano após
ano. Não vedes que jamais vos aceitarão se vos pavoneares nas vossas
vestes inglesas com o vosso antigo nome inglês? Sempre que vos virem,
vão recordar-se que os ingleses lhes mataram os filhos, verão o meu pai,
abatido ainda jovem.
A suplica dela comoveu-o.
– Usarei o traje escocês. Com isso, concordo.
Uma raiva súbita e inclemente tomou conta da frieza no corpo de
Bronwyn.
– Então concordais em usar o tartã escocês e a camisa de açafrão! Deveis
gostar da ideia de mostrares as pernas fortes às mulheres do meu clã.
A boca de Stephen abriu-se ligeiramente, depois sorriu tão abertamente
que quase dividiu a cara ao meio.
– Nem tinha pensado nisso, mas é bom saber que isso vos ocorreu. –
Esticou a perna, fletiu o grande músculo que começava no cimo do joelho.
– Julgais que as vossas mulheres concordarão convosco? – Os olhos
brilharam. – Ireis ter ciúmes?
Bronwyn não encontrou palavras. O homem não conseguia manter-se
sério. Brincava com ela, espicaçava-a, quando falavam da vida e da morte.
Levantou as saias e começou a avançar para o ribeiro.
– Bronwyn! – gritou Stephen. – Esperai! Não quis menosprezar o vosso
pedido. – Compreendera imediatamente o seu erro. Agarrou-a pelo pulso e
virou-a para si. – Por favor – pediu, emocionado. – Não quis ofender-vos. É
que a vossa beleza torna-me incapaz de pensar. Vejo o vosso cabelo e só me
apetece tocar-lhe. Quero beijar-vos os olhos. O raio do vestido é tão
descaído que quase vos cai do corpo, e fico louco só de imaginar. Como é
que consigo falar a sério sobre as disputas entre escoceses e ingleses?
– Disputas! – cuspiu ela. – É uma guerra!
– Guerra, seja o que for – disse ele, concentrado no peito dela, as mãos
afagando-lhe os braços. – Céus! Não consigo ficar assim perto de ti sem te
ter. Até já me dói, estar há tanto tempo nesta condição. – Involuntariamente
ela olhou para baixo e corou.
Stephen sorriu-lhe com um olhar encoberto, um sorriso sapiente.
Ela retesou o lábio em desagrado. Era um homem com um
comportamento básico, obviamente julgando que ela partilhava a mesma
falta de caráter. Desviou-se das mãos inquisidoras, e quando ele se recusou
a soltá-la, puxou com força. Stephen não se mexeu mas o impacto contra o
peito duro fez Bronwyn perder o equilíbrio. Não sabia que estava tão perto
da berma do ribeiro.
Caiu para trás, tentando freneticamente apoiar-se em qualquer coisa.
Stephen estendeu a mão para a apanhar, mas quando lhe tocou no pulso, ela
deu-lhe uma palmada. Ele encolheu os ombros e recuou, pois não desejava
molhar as roupas com os salpicos provocados por ela.
A água do ribeiro devia brotar nas montanhas das Terras Altas. Era a
única explicação para ser tão fria. Bronwyn sentou-se na água com força, e
o pesado vestido de lã ficou ensopado no gelo líquido como se aguardasse
tal oportunidade.
Ficou parada por um segundo, ligeiramente atordoada, e encarou Stephen,
que sorria para ela. Um pingo frio de água colava-se à ponta do nariz dela.
Rab ao lado de Stephen começou a latir-lhe, a cauda a abanar de prazer com
aquele jogo.
– Precisas de ajuda? – perguntou Stephen com ar animado.
Bronwyn afastou um caracol de cabelo preto da cara. A qualquer instante
os dentes começariam a tremer, mas seria capaz de arrancá-los da boca só
para ele não notar.
– Não, obrigada – disse ela, com ar tão nobre quanto foi capaz.
Ela olhou em volta, em busca de apoio, mas não havia nada a não ser que
se arrastasse para uma rocha a poucos metros. E jamais se arrastaria diante
dele!
– Anda, Rab! – ordenou, e o canzarrão entrou na água rapidamente atrás
da dona.
Bronwyn limpou mais água do rosto, evitando de propósito o rosto
sorridente de Stephen. Colocando as mãos nas costas do animal, começou a
levantar-se. O vestido de lã, pesado à partida, tornava-se impossível assim
ensopado de água. A juntar às pedras escorregadias, era demais para ela.
Estava semiagachada, posição que lhe demorara minutos para alcançar,
quando os pés cederam. Rab desviou-se e Bronwyn caiu novamente, desta
vez de costas, e mergulhou a cara. Emergiu com falta de ar.
O primeiro som que ouviu foi o riso de Stephen, depois, com uma
sensação de traição, ouviu o latido de Rab – muito semelhante a um riso
canino.
– Malditos sejam os dois! – sibilou e agarrou as saias frias e coladas ao
corpo.
Stephen abanou a cabeça, entrando na água. Antes de ela se manifestar, já
ele se tinha dobrado e levantou-a nos braços. Ela daria o que não tinha para
poder naquele instante puxá-lo para dentro de água consigo, mas Stephen
apoiara bem os pés. Quando se dobrou para a levantar, manteve as pernas
direitas, usando apenas as costas e evitando o contacto com a água.
– Agradecia que me largasses – disse ela, o mais empertigadamente que
conseguiu.
Stephen encolheu um ombro, e baixou os braços. Por instinto, não
querendo cair novamente na água gelada, ela soltou uma exclamação e
agarrou-se ao pescoço dele.
– Assim é melhor! – riu-se Stephen, abraçando-a com tal forma que ela
não conseguia baixar os braços.
Avançou para a margem e parou, sem a largar.
– Acho que nunca vi a mistura de olhos azuis com cabelo preto –
sussurrou ele, devorando-lhe o rosto com a vista. – Estou arrependidíssimo
por ter faltado ao nosso casamento.
Ela percebeu exatamente o motivo pelo qual ele lamentava, e isso não a
tornou mais feliz.
– Tenho frio. Por favor, solta-me – pediu frontalmente.
– Eu podia aquecer-te – disse ele, prendendo-lhe o lóbulo da orelha entre
os dentes.
Bronwyn sentiu um arrepio subir-lhe pelo braço, um arrepio que nada se
relacionava com o vestido molhado. A sensação assustou-a; ela não queria
senti-la.
– Larga-me, por favor – disse suavemente.
A cabeça de Stephen endireitou-se repentinamente, e fitou-a com
preocupação.
– Estás fria. Despe o vestido e eu dou-te o meu casaco. Queres que faça
uma fogueira?
– Preferia que me soltasses e voltássemos para casa.
Com relutância, Stephen assentou-a de pé diante dele.
– Estás a tremer – disse ele, afagando-lhe os braços. – Ainda adoeces se
não despires o vestido.
Ela afastou-se dele. O vestido ensopado batia-lhe nas pernas, as mangas
pesavam-lhe nos braços.
Stephen lançou-lhe um olhar de desagrado.
– Essa maldita coisa é tão pesada que mal consegues andar. Porque é que
as mulheres usam tais coisas, não entendo. É tão pesada que duvido que o
cavalo aguente contigo.
Bronwyn endireitou os ombros, embora desconfiasse que o vestido os
puxaria novamente para baixo.
– Mulheres! São vocês, ingleses, que impõem estas modas às vossas
mulheres. Tentam mantê-las imóveis, pois não sabem lidar com mulheres
livres. Mandei fazer este vestido para não envergonhar o meu clã. Os
ingleses também avaliam as pessoas pelas roupas que usam.
Esticou o tecido.
– Fazes ideia de quanto me custou? Podia ter comprado cem cabeças de
gado pelo mesmo valor. E tu arruinaste-o.
– Eu? Quem o arruinou foi a tua teimosia. Tal como agora. Estás a tremer
de frio porque preferes ficar congelada a obedecer-me.
Ela lançou-lhe um sorriso trocista.
– Pelo menos não és totalmente estúpido. Até compreendes algumas
coisas.
Stephen riu-se.
– Compreendo mais do que pensas. – Despiu o casaco e tentou dar-lho. –
Se tens tanto medo de mim, enfia-te na mata e troca de roupa.
– Medo! – bufou Bronwyn, ignorando a roupa que lhe era oferecida.
Avançou lentamente, dando pontapés à saia, até ao selim no solo. Retirou
um tartã das Terras Altas do alforge. Não olhou para Stephen, mas entrou
no arvoredo, com Rab atrás de si.
Foi difícil desapertar as presilhas nas costas do vestido. Quando alcançou
a última, já tinha a pele quase azul. Agarrou no vestido e arrancou-o dos
ombros, rasgando os derradeiros ganchos. Deixou o vestido tombar num
monte a seus pés.
O tecido grosso da túnica interior e o saiote anteriormente rígido tinham
adquirido um tom rosa por causa da lã vermelha. Apetecia-lhe retirar a
roupa interior, mas não se atreveu, estando Stephen Montgomery nas
proximidades. Ao pensar nisso, olhou em volta, garantindo que ele não a
espiava, depois levantou o saiote e despiu as meias de seda. Quando tinha
retirado tanta roupa quanto se atrevia, envolveu-se no tartã escocês e
regressou ao ribeiro.
Stephen não estava por perto.
– Procuravas-me? – perguntou ele atrás de si.
Quando ela se virou, ele sorria, segurando o vestido molhado. Era óbvio
que se tinha escondido para a ver despir.
Fitou-o com um olhar gélido.
– Deves julgar que venceste, certo? Estás tão confiante que me deixarei
cair a teus pés, que me tratas como se fosse um brinquedo. Mas não sou, e
muito menos sou um brinquedo teu. Apesar da tua vaidade inglesa,
continuo escocesa e tenho poder.
Ela virou-se para a égua negra amarrada, parando depois e olhando para
ele.
– E usarei esse poder. – Ignorando a sua presença, ela puxou o tartã até
aos joelhos, agarrou na crina do cavalo e montou-o. Incitou-o a andar, e
estava já a galope quando Stephen a alcançou.
Não tentou detê-la mas montou o garanhão sem a sela e seguiu-a.
Mandaria alguém mais tarde recolher o equipamento.
O regresso à casa senhorial foi demorado e a espinha dorsal do cavalo
golpeava-o, pelo seu mau comportamento. Era uma mulher orgulhosa e ele
tratara-a incorretamente. Mas ela perturbava-o. Olhava para ela, e deixava
de conseguir pensar. Ela tentava conversar com ele, e Stephen só a
imaginava na cama. Talvez depois de estarem casados e terem feito amor
algumas vezes, ele conseguisse encará-la sem que o sangue fervesse nas
veias.

Bronwyn examinou-se ao espelho no quarto. Sentia-se melhor, depois do


banho quente e da pausa para pensar. Stephen Montgomery não lhe serviria
como marido. Se antagonizasse as pessoas tal como a si, rapidamente seria
morto, e depois os ingleses cairiam sobre eles. Não se casaria com ninguém
que pudesse causar a guerra nem conflitos internos no clã.
Compôs novamente o cabelo. Afastara-o da testa, para que caísse solto
pelas costas. Uma criada trouxera-lhe margaridas acabadas de colher, e
Bronwyn entrelaçara um punhado na nuca.
O vestido era feito de seda verde-esmeralda. A cauda estava debruada
com pele de esquilo cinzenta, acentuando a seda cinzenta exposta pela
abertura na frente da saia em forma de sino.
– Quero estar no meu melhor – disse Bronwyn, vendo Morag de relance
no espelho.
Morag fungou.
– Preferia pensar que te vestiste para agradar ao Sir Stephen, mas não
acredito nisso.
– Nunca me vestirei para lhe agradar!
– Pelo que percebi, o homem só te quer nua – murmurou Morag.
Bronwyn não respondeu, nem se deixaria perturbar. O que ela tinha de
fazer afetaria centenas de vidas, e não podia fazê-lo zangada.
Sir Thomas aguardava por ela na biblioteca. Exibia um sorriso cordial,
mas reservado. Desejava ardentemente livrar-se da mulher bela para que os
homens se deixassem de brigas.
Quando Bronwyn se sentou, recusando um copo de vinho, começou a
falar. Estava ciente do verdadeiro motivo para não aceitar Stephen: porque
ele não acolheria os costumes dos escoceses. Mas tinha encontrado uma
razão mais inglesa para dar a Sir Thomas.
– Mas, minha cara – disse ele, exasperado. – O Stephen foi escolhido para
vós pelo rei Henrique.
Bronwyn baixou a cabeça, com ar submisso.
– E estou disposta a aceitar um marido escolhido pelo rei inglês, mas sou
chefe do clã MacArran, e o Stephen Montgomery é um mero cavaleiro.
Teria problemas com os meus homens se casasse com ele.
– Mas acreditais que aceitariam o Lorde Roger?
– Desde a morte recente do irmão, tornou-se conde, mais próximo da
minha posição como chefe.
Sir Thomas fez um esgar. Estava a ficar velho para este tipo de situações.
Raios partam os escoceses, por permitirem que uma mulher tivesse
opiniões. Nada disto teria acontecido se Jamie MacArran não tivesse
nomeado a filha como sua sucessora.
Aproximou-se da porta e pediu que Stephen e Roger fossem ambos
chamados à sua presença.
Quando os jovens se encontravam sentados cada qual ao lado de Lady
Bronwyn, Sir Thomas contou-lhes o plano dela. Examinou cuidadosamente
as expressões dos homens. Viu a luz brilhar nos olhos de Roger, e Sir
Thomas afastou-se dele. Stephen manteve-se calado; o único sinal que dele
saiu foi um leve enegrecer dos olhos. Bronwyn nem se mexeu, o verde do
vestido oferecendo aos olhos uma nova profundidade, as margaridas no
cabelo dando-lhe um ar doce e inocente.
Roger foi o primeiro a pronunciar-se quando Sir Thomas terminou.
– A Lady Bronwyn está certa. O título dela tem de ser honrado.
O olhar de Stephen faiscou.
– Claro que diríeis isso, porque quereis ganhar com essa decisão. – Virou-
se para Sir Thomas. – O rei passou um ano a escolher-me uma noiva. Quis
recompensar a minha família por ter ajudado a patrulhar a fronteira das
Terras Baixas.
Bronwyn virou-se bruscamente para ele.
– Ou seja: matar e violar!
– Patrulhar, foi o que eu disse. Matámos pouca gente. – Desceu a vista
aos seios da rapariga e a voz suavizou-se. – E quase não se verificaram
violações.
Bronwyn ergueu-se.
– Sir Thomas, conheceis as Terras Altas. – Ela ignorou o arrepio dele
quando se lembrou. – O meu povo sentiria desonra se aparecesse com um
cavaleiro menor para se tornar senhor deles. O rei Henrique pretende a paz.
Este homem – apontou para Stephen – só causará sarilhos se puser o pé nas
Terras Altas.
Stephen riu-se, ao aproximar-se de Bronwyn pelas costas e pousou um
braço forte em volta da cintura dela. Apertou-a contra si.
– Não é uma questão de diplomacia, mas a ira de uma rapariga. Pedi-lhe
para vir para a cama comigo antes do casamento, e ela tomou-o como um
insulto.
Sir Thomas sorriu, aliviado. Preparou-se para responder.
Roger deu um passo em frente.
– Protesto! A Lady Bronwyn não é uma mulher que se desconsidere com
essa facilidade. O que ela diz faz todo o sentido. – Virou-se para Stephen. –
Tendes medo de pôr à prova a vossa reivindicação?
Stephen ergueu um sobrolho.
– Não me parece que o nome Montgomery esteja conotado com cobardes.
O que tendes em mente?
– Senhores! Por favor! – quase gritou Sir Thomas. – O rei Henrique
enviou a Lady Bronwyn para aqui para se casar, para uma ocasião feliz.
Bronwyn escapou-se do aperto de Stephen.
– Feliz! Como podeis proferir tal palavra quando tenho de casar com este
ser abominável e insuportável? Juro que o mato enquanto ele dormir.
Stephen sorriu-lhe.
– Desde que seja depois da noite de núpcias, por mim, tudo bem.
Bronwyn fungou de desdém.
– Lady Bronwyn – pediu Sir Thomas. – Podíeis deixar-nos a sós?
Ela suspirou. Tinha desabafado, e agora não conseguia estar perto de
Stephen. Com graciosidade exagerada, levantou as saias e saiu.
– Stephen – começou Sir Thomas. – Não gostava de ser a causa da vossa
morte.
– Não me sinto ameaçado pelas palavras de uma mulher.
Sir Thomas franziu a testa.
– É a vossa inocência que se manifesta. Nunca esteve a norte das Terras
Altas. Ali não existe governo, pelo menos igual ao nosso. Os senhores
governam os seus clãs, e ninguém governa os senhores. Basta à Lady
Bronwyn indicar descontentamento, e todos os homens, e até as mulheres,
do clã farão os possíveis para matar-vos.
– Um risco que estou disposto a correr.
Sir Thomas adiantou-se e pousou uma mão no ombro de Stephen.
– Conheci o vosso pai. Tenho a certeza de que não queria que mandasse o
filho para a morte certa.
Stephen recuou da mão amigável. A expressão tornou-se uma de fúria.
– Quero aquela mulher! Não tendes o direito de tirá-la de mim. – Virou-se
para Roger, que começara a sorrir. – Defrontemo-nos no campo de batalha,
e veremos então quem é mais digno de reclamar a liderança do clã.
– Aceito! – vociferou Roger. – Amanhã de manhã. O vencedor casará
com ela pela tarde e deitar-se-á com ela pela noite.
– Feito!
– Não – murmurou Sir Thomas, sabendo que perdera. Eram jovens e
impetuosos. Suspirou pesarosamente. – Saiam, ambos. Preparai a vossa
disputa. Não quero saber.
Capítulo Quatro

Stephen aguardava ao lado do garanhão, coberto de aço da cabeça aos pés,


sob o sol inclemente. A armadura já se tornara um castigo, embora há muito
tivesse aprendido a sustentar-lhe o peso.
– Meu senhor – indicou o pajem. – Ficareis encandeado pelo Sol.
Stephen anuiu secamente. Estava ciente disso.
– Que o Chatworth tenha todas as vantagens. Bem precisa delas.
O rapaz sorriu, orgulhoso do amo. Vestir Sir Stephen com todas as
camadas de enchimentos de algodão e couro que o protegiam das placas de
aço era um trabalho demorado.
Stephen montou a cavalo com destreza, inclinou-se para aceitar a lança e
o escudo do rapaz. Não se preocupou em olhar para a direita. Sabia que
Bronwyn ali se encontrava com um rosto tão branco como o vestido de
marfim debruado a ouro que trajava. Não o animava saber que a mulher
adoraria vê-lo perder, ou pior ainda, morrer na luta.
Ajustou a comprida lança de madeira contra a armadura. Ele e Roger não
se falavam desde a noite anterior, e Sir Thomas fazia jus à sua palavra;
ignorava a luta. Daí que não se tivessem estabelecido regras. Era uma justa,
uma contenda para determinar quem se aguentaria mais tempo sobre o
cavalo.
O cavalo de guerra de Stephen, um garanhão pujante e negro com patas
muito peludas, empinou-se, impaciente. Os animais eram criados para
terem força e resistência, e não rapidez.
Os homens de Stephen rodearam-no, mas recuaram ao ver Roger surgir
ao fundo do campo arenoso. Uma barreira de madeira baixa protegia-o ao
centro.
Stephen baixou a viseira do elmo, deixando apenas uma abertura para os
olhos e mantendo a cabeça completamente protegida. Um jovem levantou a
bandeira, e ao baixá-la, os dois nobres lançaram-se em carga, um contra o
outro, com as lanças em riste. Não era um teste de velocidade, mas de força.
Só um homem no gozo das suas plenas capacidades aguentaria o embate da
lança contra o escudo.
Stephen agarrou-se ao cavalo com as coxas poderosas, quando a lança de
Roger embateu em cheio no escudo. Ambas as lanças se desfizeram.
Stephen trouxe o cavalo até ao fundo do campo.
– Ele é bom, meu lorde – disse um dos homens de Stephen ao entregar-
lhe uma nova lança. – Cuidado com a ponta, desta vez. Ele tenciona passá-
la sob o vosso escudo.
Stephen anuiu brevemente, e baixou a viseira do elmo outra vez.
Caiu a bandeira para dar início à segunda carga. Stephen só precisava de
arrancar o oponente da montada e pelas regras da justa, ganharia. Quando
Roger voltou à carga, Stephen baixou o escudo ligeiramente e conseguiu
evitar que Roger o atingisse. Apanhado de surpresa, Roger não viu a lança
de Stephen, que o atingiu de lado. Rodou na sela, e quase caiu com o
poderoso golpe, mas conseguiu suster-se.
– Ficou tonto – disse o homem ao lado de Stephen. – Desfirais novo
golpe e ele vai abaixo.
Mais uma vez, Stephen anuiu e fechou o elmo.
Roger concentrou-se no ataque, não se preocupando com a sua defesa. Ao
baixar a lança, Stephen golpeou-o novamente, e desta vez com mais força.
Roger caiu para trás, e depois para o lado, tombando duramente na terra
junto às patas do cavalo de Stephen.
Stephen olhou rapidamente para trás, vendo o oponente prostrado no
chão, e voltou o olhar para Bronwyn.
Mas Roger Chatworth não era homem a quem se pudesse virar as costas.
Tirou uma clava da sela do cavalo e correu com ela erguida.
– Stephen! – berrou alguém.
Stephen reagiu de imediato, mas não foi a tempo. A maça de Roger
atingiu Stephen com força na perna direita. A armadura de aço dobrou-se e
mordeu-lhe a carne. O impacto inesperado fê-lo rodar, e caiu do garanhão,
agarrado ao pomo da sela.
Stephen endireitou-se e viu que Roger avançava novamente contra ele,
preparado para novo ataque. Rodou, dobradiças de aço protestando.
Atiraram uma clava a Stephen, no momento em que a de Roger lhe
golpeou o ombro. Stephen gemeu e enfiou a clava no flanco de Roger. Este
cambaleou de lado, e Stephen seguiu atrás dele. Estava decidido a ganhar a
batalha.
O segundo golpe, contra a placa do ombro direito de Roger, fê-lo cair por
terra. As armaduras protegiam os homens das feridas, mas a força de cada
golpe era impressionante.
Roger não se mexeu, obviamente aturdido. Stephen desembainhou a
espada, escarranchou-se sobre os ombros de Roger e abriu-lhe a viseira.
Depois, apertando o punho da espada com ambas as mãos, levantou a arma
apontada para ele.
Roger fitou o vencedor.
– Mata-me, termina isto! Eu ter-te-ia matado.
Stephen observou-o do alto.
– Ganhei. Não preciso de mais. – Desviou-se para o lado da forma inerte
de Roger, retirou a manopla, esticando a mão exposta, com a palma para
cima, ao oponente caído por terra.
– Insultas-me! – sibilou Roger, levantando a cabeça e cuspindo na mão
que Stephen oferecera. – Não me esquecerei disto.
Stephen limpou a mão na armadura.
– Nem eu. – Guardou a espada na bainha e virou-se.
Avançou em linha reta para Bronwyn, que aguardava na companhia de
Morag. Bronwyn viu-o aproximar-se com pose rígida. Stephen parou diante
dela e retirou o elmo lentamente, atirando-o para Morag, que o recebeu com
um sorriso.
Bronwyn recuou um passo.
– Não me voltas a escapar – disse Stephen enquanto agarrava no
antebraço dela com a mão destapada. Puxou-a para si, o braço mais forte
que o corpo dela.
Puxou o corpo macio contra o aço da armadura. A frieza do metal, a
presença sólida, fez Bronwyn arquejar. Mais metal atingiu-lhe as costas
quando se viu abraçada por ele.
– Agora és minha – murmurou Stephen quando os lábios dele tocaram
nos dela.
Não era a primeira vez que Bronwyn beijava um homem. Tinham
ocorrido vários momentos fugazes durante os assaltos ao gado pela urze.
Mas era a primeira vez que experimentava um beijo deste tipo. Era doce e
macio, mas também tomando dela aquilo que Bronwyn nunca dera. A boca
brincava com a sua, tocava-lhe, acariciava-a, mas também a pilhava. Pôs-se
em bicos dos pés para melhor o alcançar, virou a cabeça, inclinando-a. Ele
parecia querer que ela abrisse os lábios, e ela assim fez. O toque quente e
frio da ponta da língua dele na sua despertou-lhe arrepios na espinha.
Sentiu-se desfalecer, e quando a cabeça se afastou para trás, ele
acompanhou-a, mantendo-a presa com mais eficiência que qualquer
corrente.
Stephen recuou abruptamente, e quando Bronwyn abriu os olhos, ele
sorria-lhe insolentemente. Ela percebeu que ficara apanhada por completo,
aquele beijo fê-la entregar toda a sua massa corporal a ele. Endireitou-se,
deixando-se sustentar pelos próprios pés.
Stephen riu-se.
– És minha, mais do que julgas. – Soltou-a, empurrando-a contra Morag.
– Vai, apronta-te para o nosso casamento… se fores capaz de aguardar tanto
tempo.
Bronwyn virou-se rapidamente. Não queria que ele nem mais ninguém
visse o seu rosto fortemente corado, nem as lágrimas que se formavam.
Aquilo que os insultos dele não eram capazes de fazer, o beijo conseguira
provocar-lhe: lágrimas.
– Porque estás a chorar? – retorquiu Morag, mal se encontravam a sós no
quarto. – É um homem bonito e bom, aquele com quem vais casar.
Conseguiste o que querias, e ele ainda lutou por ti. Mostrou ser um
guerreiro forte e agressivo. Que mais queres?
– Trata-me como uma rapariga das tabernas!
– Trata-te como uma mulher. O outro, aquele Roger, só vê terras e não a
tua pessoa. Ele ainda nem percebeu que és uma mulher.
– Não é verdade! Ele é como… o Ian!
Morag franziu o cenho, pensando no jovem, morto aos vinte e cinco
anos.
– Consideravas o Ian como um irmão. Cresceste com ele. Se estivesse
vivo para casar contigo, ia sentir-se culpado pelo sexo, era como levar a
irmã para a cama.
Bronwyn fez uma careta.
– Neste Stephen Montgomery não há qualquer culpa. Não saberia o
significado da palavra.
– O que te incomoda tanto? – perguntou Morag tão alto que Rab soltou
um latido de preocupação. Ela calou-se e as rugas do rosto reagruparam-se
sozinhas. A voz ficou mais baixa. – É a noite de núpcias?
Bronwyn encarou Morag com uma expressão tão funesta que a velha
soltou uma fungadela de riso.
– Então és virgem! Não tinha a certeza, pois o senhor deixava-te à solta
com os rapazes.
– Sempre andei guardada. Sabes disso.
– Nem sempre um rapaz é o melhor guarda da virtude de uma rapariga. –
Ela sorriu. – Não estejas nervosa. Aguarda-te uma experiência muito
agradável. E a não ser que muito me engane, este Stephen sabe como
suavizar a primeira vez de uma mulher.
Bronwyn aproximou-se da janela.
– Acredito que sim. A confiar na forma como age, pensaria que foi para a
cama com metade de Inglaterra.
Morag fitou as costas de Bronwyn.
– Tens medo de que a tua inexperiência o desagrade?
Bronwyn deu meia-volta.
– Não nasceu ainda a inglesa pálida que possa competir com uma
escocesa!
Morag soltou risinhos.
– Já estás mais corada. Agora salta desse vestido e vamos colocar-te o
vestido de noiva. Faltam poucas horas para irmos para a igreja.
A cara de Bronwyn perdeu novamente a cor, e com resignação dedicou-se
ao demorado processo de trocar de roupa.

Stephen enfiara-se até ao pescoço numa banheira de água quente. A perna


e o ombro latejavam das pancadas desferidas por Roger. Tinha os olhos
fechados quando ouviu a porta abrir e fechar-se.
– Sai! – rosnou. – Quando precisar de ti, hei de chamar-te.
– E que vais chamar-me? – soltou uma voz familiar e divertida.
Stephen abriu os olhos num ápice, e no minuto seguinte saltava pelo
quarto, nu, a escorrer água.
– Chris! – riu-se, agarrando o amigo.
Christopher Audley devolveu rapidamente a saudação, e logo afastou
Stephen.
– Estás a molhar-me, e não quero ter de trocar de roupa para assistir ao
casamento. Ainda não foi, pois não?
Stephen voltou a entrar na banheira.
– Senta-te ali para poder ver-te. Perdeste peso novamente. França não foi
do teu agrado?
– Agradou-me e muito. As mulheres quase me tiraram a pele, de tanto
vigor. – Pousou uma cadeira ao lado da banheira. Era um homem baixo,
magro e moreno, com um nariz pequeno e uma barba curta e aparada. Tinha
olhos castanhos, grandes, como os de uma corça. Usava-os, mansos e
expressivos, para atrair as mulheres.
Apontou para o ombro de Stephen, onde ficava a lesão.
– Nova ferida? Não te sabia envolvido numa luta recente.
Stephen despejou um pouco de água sobre a lesão.
– Tive de lutar contra o Roger Chatworth pela mulher com quem vou
casar.
– Lutar? – disse Chris, espantado. – Falei com o Gavin antes de partir, e
segundo ele estavas quase doente com a ideia do casamento. – Sorriu. –
Deparei-me com a esposa do Gavin. É uma beldade, mas já me disseram
que causa problemas. A corte ficou em polvorosa com as suas leviandades.
Stephen agitou a mão.
– Comparada com a Bronwyn, a Judith é a calma em pessoa.
– Essa Bronwyn é a herdeira com quem vais casar? O Gavin disse que era
gorda e feia.
Stephen riu-se enquanto ensaboava as pernas.
– Ficarás incrédulo quando vires a Bronwyn. O cabelo é tão preto que
quase faz de espelho. Até reflete o sol. Olhos azuis e um queixo espetado,
em desafio, sempre que falo com ela.
– E o resto?
Stephen suspirou.
– Magnífico!
Chris riu-se ante o tom de voz de Stephen.
– Tu e o Gavin são irmãos verdadeiramente afortunados. Mas porque
tiveste de lutar por ela? Pensei que fosse oferenda do rei Henrique.
Stephen levantou-se e apanhou a toalha que Chris lhe lançou.
– Atrasei-me quatro dias para a boda, e por isso a Bronwyn ficou…
desagradada comigo. Nutre a ideia absurda de que, para casar com ela,
tenho de me tornar escocês e mesmo mudar de nome. Não sei bem, mas
desconfio que o Chatworth terá indicado que faria o que fosse preciso para
casar com ela.
Chris fungou.
– Sem dúvida que ela acreditou. O Roger sempre deu a volta às mulheres,
mas eu nunca confiei nele.
– Fizemos uma justa, e lancei-o por terra, mas ele contra-atacou com uma
clava de guerra.
– Filho da mãe! Sempre pensei que tivesse bastante do irmão. O Edmund
era um homem atroz. Pelos vistos, ganhaste a contenda.
– Fiquei tão furioso por ele me ter atacado que quase o matei. Bem, ele
suplicou que o fizesse, que o contrário seria um insulto.
Chris ficou pensativo.
– Tornou-se teu inimigo. Não é nada bom.
Stephen caminhou para a cama onde o aguardavam as roupas do
casamento.
– Não culpo o homem por ter tentado conquistar a Bronwyn. Ela faria
qualquer homem lutar por ela.
Chris sorriu.
– Nunca te vi reagir desta forma por causa de uma mulher.
– Nunca encontrei uma mulher como a Bronwyn, até hoje. – Parou e
berrou «entra» após baterem à porta.
Uma jovem criada apareceu à entrada, braços esticados onde repousava
um tecido prateado. Fitou Stephen de peito nu.
– O que é? – perguntou ele. – Porque não entregaste o vestido à Lady
Bronwyn?
O lábio inferior da rapariga tremeu.
Stephen vestiu a camisa e tirou o vestido dos braços da rapariga.
– Podes contar-me – disse mais calmo. – Sei que a Lady Bronwyn tem
uma língua afiada. Não te vou bater se repetires o que ela disse.
A rapariga levantou a vista.
– Ela estava no salão, meu senhor, quando a encontrei, e havia mais gente
à volta. Dei o vestido à senhora e ela pareceu gostar dele.
– Sim! Continua!
A rapariga apressou-se a terminar.
– Mas quando eu disse que era dádiva vossa, para ser usado na boda, ela
atirou-mo de volta. Disse que já tinha um vestido e que jamais usaria o
vosso. Oh, meu senhor, foi horrível. Fartou-se de gritar e as pessoas riram-
se.
Stephen recebeu o vestido da rapariga e entregou-lhe uma moeda de
cobre.
Mal a rapariga desapareceu, Chris começou-se a rir.
– Disseste que ela tinha uma língua afiada? Parece-me uma lâmina.
Stephen, irado, enfiou os braços no gibão.
– Estou farto. Aquela jovem precisa de uma boa lição.
Atirou o vestido por cima dos ombros e saiu do quarto, avançando para o
Salão Grande em passadas largas. Fora difícil encontrar um vestido tão
requintado. Bronwyn queixara-se de que o vestido se estragara ao cair no
ribeiro, e portanto Stephen quisera compensá-la – ainda que não tivesse
culpa pela queda dada. Cavalgara até à cidade, descobrira o tecido prateado,
e depois pagara a quatro mulheres para o costurarem a noite inteira. O
material era feito de lã macia e fina entrançada com fio de prata. Tão
pesado quanto sumptuoso. Tremeluzia e brilhava mesmo no corredor mais
escuro. Sem dúvida mais caro do que todos os vestidos que pertenciam a
Bronwyn.
E contudo, ela recusava-se a usá-lo.
Viu-a mal entrou no Salão Grande. Estava sentada numa cadeira estofada
usando um vestido acetinado de cor marfim. Ao seu lado, um jovem
dedilhava um saltério.
Stephen plantou-se entre eles.
Ela lançou-lhe um olhar assustado, mas depois virou-se para o lado.
– Quero que uses este vestido – disse ele baixinho.
Ela não olhou para cima.
– Já tenho um vestido de noiva.
Junto a Stephen, alguém soltou um risinho.
– Mais problemas com as mulheres, Stephen?
Stephen ficou quieto por um instante, antes de puxar Bronwyn da cadeira
e fazê-la levantar-se. Não disse nada, mas a expressão soturna foi suficiente
para mantê-la calada. Apertou-lhe o pulso com os dedos e arrastou-a atrás
de si, os pés dela prendendo-se nas saias, quase caindo antes de conseguir
levantar o tecido com a mão livre. Sabia que Stephen a arrastaria ao longo
do soalho se caísse.
Stephen praticamente atirou-a para os aposentos vazios, fechando então a
porta. Lançou o vestido sobre a cama.
– Veste-o! – ordenou.
Bronwyn manteve-se firme.
– Não sou, nem jamais serei, criada tua a quem possas dar ordens.
O olhar dele era funesto e duro.
– Fiz tudo o que me era humanamente possível para compensar o meu
atraso.
– Atraso! – rosnou ela. – Achas que é por isso que te odeio? Sabes tão
pouco a meu respeito que me consideras vaidosa, e pensas que te odeio por
teres os modos de um campónio? Queria que tivesses perdido hoje porque o
Roger Chatworth é uma melhor escolha para o meu clã. Irão odiar-te tanto
quanto eu por causa da tua arrogância, porque julgas que tudo te pertence.
Até acreditas que podes escolher o vestido com que me casarei.
Stephen deu um passo em frente, agarrou-lhe o maxilar, com o polegar e
os dedos enterrando-se nas bochechas.
– Estou farto de ouvir falar do teu clã, e ainda mais farto de ouvir o nome
do Chatworth a sair dos teus lábios. Mandei fazer o vestido para ti como
prenda, mas és demasiado teimosa e estouvada para perceber isso.
Bronwyn tentou libertar a cabeça mas não foi capaz. Ele intensificou o
aperto, despertando-lhe lágrimas.
– És a minha esposa – disse ele – e como tal vais obedecer-me. Não sei
nada sobre o teu povo, e só conseguirei lidar com isso quando o conhecer.
Mas sei que as esposas têm de ser bem-comportadas. Passei por muito para
te preparar este vestido, e vais usá-lo.
– Não! Jamais te obedecerei! Sou uma MacArran!
– Maldita! – disse ele, agarrando-a pelos ombros e começando a abaná-la.
– Não estamos a falar de Inglaterra e da Escócia, nem de um senhor e um
membro do clã. É um assunto entre nós os dois: um homem e uma mulher!
Vais usar o vestido porque sou teu marido e digo-te para o usares!
Parou de abaná-la, vendo que as palavras não tinham produzido efeito
nela. Dobrou-se e deitou-a por cima do ombro.
– Solta-me!
Ele não perdeu tempo a responder-lhe, ao atirá-la sobre a cama, com o
rosto para baixo.
– Para! Estás a magoar-me!
– E tu magoaste-me ainda mais – ripostou ele, com os dedos enormes
lutando contra os minúsculos botões das costas do vestido. Prendia-a com
as pernas. – Hoje, vou mostrar-te as feridas que o Roger me causou. Quieta
ou rasgo-te o vestido.
Bronwyn ficou imediatamente quieta.
Stephen lançou-lhe um olhar de repúdio.
– Parece que só respondes quando se fala de dinheiro.
– Somos uma terra pobre e não nos podemos dar ao luxo de desperdiçar
como vocês. – Manteve-se quieta enquanto Stephen desapertava os botões.
– Tu… lutaste bem hoje.
Ele fez uma pausa, antes de retomar a sua tarefa com o vestido.
– Eis um comentário que deve ter-te custado, pois querias que ele me
matasse.
– Não queria que ninguém morresse! Só queria…
– Não me digas! Sei o que querias! O Roger Chatworth.
Foi um momento invulgar. Bronwyn sentia-se estranhamente íntima com
Stephen, como se se conhecessem há anos. Sabia que não conseguia
explicar-lhe por que razão queria Roger. Bem tentara! Mas encontrava
alguma satisfação naquele tom ciumento. Que pensasse que ela desejava
Roger. Era bem feito.
– Pronto! Levanta-te e despe o vestido.
Ela não se mexeu, e ele inclinou-se para ela, passando os lábios pelo
pescoço feminino.
– Não esperemos até cair a noite.
As palavras, e o gesto, despertaram Bronwyn. Ela escapou-se
rapidamente de debaixo dele. Agarrou a parte da frente do vestido, que
tombava.
– Visto-o, mas tens de sair.
Stephen recostou-se sobre o cotovelo.
– Não tenciono ir a lado nenhum.
Bronwyn tentou argumentar, mas era inútil. Além disso, por duas vezes a
vira em roupa interior molhada. Pelo menos, desta vez ficaria mais
protegida pela roupa seca. Despiu o vestido e depositou-o cuidadosamente
sobre o baú de madeira.
O olhar de Stephen vigiava-a esfaimado e, quando ela pegou no vestido
cinzento, ele puxou-o para si, e ela teve de encurtar a distância. Stephen
conseguiu depositar-lhe um beijo rápido no ombro antes de Bronwyn se
esquivar.
O tecido pesado de cor cinza era belo. Afagou-o com admiração antes de
o enfiar pela cabeça. Ajustava-se perfeitamente, apertando a cintura estreita,
caindo com graciosidade sobre as ancas. Ao assentar, por fim, Bronwyn
fitou Stephen com espanto. O decote não era pronunciado, como estava na
moda, mas subia até ao pescoço com um pequeno colarinho de renda.
Stephen encolheu os ombros, ante a perplexidade dela.
– Prefiro não mostrar aos outros o que me pertence.
– Te pertence! – arfou ela. – Tu é que vais decidir tudo na minha vida? Já
nem posso escolher o que visto?
Ele resmungou.
– Sabia que a tua meiguice não duraria. Anda cá, para poder apertá-lo.
– Não preciso de ajuda.
Ele deixou-a debater-se durante algum tempo, e depois puxou-a para si.
– Quando é que vais perceber que não sou teu inimigo?
– Mas és. Todos os ingleses são meus inimigos e do meu clã.
Ele segurou-a entre as pernas e começou a abotoar os pequenos botões.
Quando terminou, virou-a, sustendo-a entre os joelhos.
– Espero que um dia consiga mostrar-te que sou mais do que um inglês. –
Afagou-lhe os braços. – Anseio por esta noite.
Bronwyn contorceu-se, tentando soltar-se. Stephen suspirou e libertou-a.
Aproximou-se dela e pegou-lhe na mão.
– O padre e os nossos convidados aguardam.
Bronwyn aceitou a mão com relutância. A palma estava quente e seca,
calejada dos anos de treino. O pajem de Stephen aguardava à porta,
segurando o pesado casaco de veludo do amo. Bronwyn viu Stephen
agradecer ao rapaz, que o fitou com orgulho e lhe desejou sorte e
felicidade.
Stephen sorriu e levou a mão de Bronwyn aos lábios.
– Felicidade – disse ele. – Acreditas que seja possível entre nós haver
felicidade?
Ela afastou o olhar sem responder. Começaram a descer as escadas juntos
de mãos dadas. O vestido prateado era pesado, e cada passo que dava era
uma lembrança do domínio daquele estranho sobre si.
Muitas pessoas aguardavam ao fundo das escadas, apenas homens,
amigos de Sir Thomas, homens que tinham lutado contra o povo das Terras
Altas. Não tentaram sequer esconder a animosidade que nutriam contra os
escoceses. Descreveram aos risos a «conquista» que Stephen faria ao
inimigo. Riram-se do modo como Bronwyn lutara contra eles quando lhe
tinham matado o pai. Disseram que, se ela fosse assim selvagem na cama,
Stephen nem sabia o que o esperava.
Ela levantou a cabeça, dizendo a si mesma que era uma MacArran e que
teria de resguardar o orgulho do clã. Os ingleses eram brutos e fanfarrões, e
ela não se rebaixaria ao nível deles, reagindo aos comentários vis.
A mão de Stephen apertou a sua com mais força, e ela fitou-o com
espanto. O rosto estava solene e a boca firme num traço lúgubre; um
músculo mexia-se na queixada. Ela julgara que os comentários dos
conterrâneos lhe agradariam, pois provavam que ele ganhara um troféu de
guerra. Ele virou-se e baixou os olhos tristemente, como se pedisse
desculpas.
A cerimónia terminou rapidamente. A bem dizer, não parecia sequer um
casamento. Bronwyn, ao prostrar-se diante do padre, percebeu finalmente o
quanto estava sozinha. Imaginara um casamento nas Terras Altas, na
primavera, quando a terra começava a nascer. Rodeada pela família e pelos
membros do clã. O marido seria alguém que conhecia.
Virou-se e fitou Stephen. Ajoelharam lado a lado dentro da capelinha da
casa de Sir Thomas. Stephen baixara a cabeça em reverência. Estava
distante, ausente. Não sabia nada sobre ele. Tinham crescido em dois
mundos muito diferentes, formas distintas de viver. Durante toda a sua
existência, ela fora ensinada a conhecer os seus direitos e poderes, que as
pessoas lhe pediriam ajuda. E contudo este inglês conhecia apenas uma
sociedade que ensinava as mulheres a bordar e a serem meras extensões dos
maridos.
Estava condenada a partilhar a vida com este homem. Ele já fizera valer a
sua opinião: Bronwyn era propriedade sua, algo que lhe pertencia e que
usaria à sua vontade.
E logo à noite… o pensamento parou-lhe, porque não era capaz de pensar
naquilo. Não conhecia aquele homem, de parte alguma. Nada sabia sobre
ele. Quais as suas comidas prediletas, se sabia ler ou cantar, que família era
a dele. Nada! E, no entanto, tinha de deitar-se com dele e partilhar a
experiência mais íntima da vida e todos julgavam que ela devia aproveitar!
Stephen virou-se e fitou-a. Estava ciente de que ela o observava
constantemente, e isso agradava-lhe. Havia confusão e perplexidade na
adorável expressão da rapariga. Lançou-lhe um sorriso ligeiro que tentou
tornar tranquilizante, mas ela afastou o olhar e voltou a tapar os olhos com
os dedos entrelaçados.
Para Bronwyn, o dia prolongou-se sem fim. Os homens convidados para
o casamento não tentaram sequer esconder que só lhes interessava a noite
de núpcias. Ficaram a beber durante horas em volta das mesas de cavalete.
E quanto mais bebiam, mais rudes eram as brincadeiras. O ódio de
Bronwyn pelos ingleses ia crescendo a cada frase e cada zombaria
embriagada. Nada mais lhes interessava, além de tratar-se de uma mulher,
um troféu para ser desfrutado
Quando Stephen lhe pegou na mão, ela retraiu-se, e este gesto despertou
nova ronda de gargalhadas estridentes. Ela não olhou para Stephen, notando
apenas que ele tinha bebido bastante do forte vinho tinto.
Os raios de sol avançavam pelo salão. Um par de homens, ébrios,
começou a discutir e a brigar. Ninguém tentou pará-los, pois estavam
demasiado bêbados para se magoarem a sério.
Bronwyn comeu pouco e bebeu ainda menos. Aproximava-se a noite, e
ela sentia-se cada vez mais tensa. Morag estava certa: era a perspetiva
daquela noite que a perturbava. Tentou dizer a si mesma que era mulher de
coragem. Várias vezes chefiara os assaltos ao gado dos MacGregors.
Enrolara-se num tartã escocês e dormira durante tempestades. Até lutara
contra os ingleses ao lado do pai. Mas nada a assustava como a ideia
daquela noite. Tinha conhecimento do ato físico de acasalamento, mas quais
as consequências? Iria mudar? Iria aquele Stephen Montgomery
transformá-la depois do acasalamento, tal como ele acreditava? Morag dizia
que fazer amor era uma experiência agradável, mas Bronwyn vira rapazes
destroçados por se julgarem apaixonados. Vira mulheres viçosas e felizes
engordarem e tornarem-se donas de casa complacentes quando um homem
lhes enfiava o anel no dedo. O leito conjugal envolvia mais do que o mero
acasalamento, e esse desconhecimento assustava-a.
Quando Morag se aproximou por detrás e lhe disse, que tinha de se
preparar para a noite, o rosto de Bronwyn empalideceu e as mãos
crisparam-se sobre as cabeças de leão das cadeiras.
Stephen agarrou-lhe o braço.
– Estão cheios de inveja. Ignora-os. Em breve vamos fechar a porta e
deixamos de ouvi-los.
– Preferia ficar aqui – rosnou Bronwyn, mas saiu do Salão Grande atrás
de Morag.
Morag não disse nada enquanto desapertava o vestido prateado. Bronwyn
parecia uma boneca obediente que se enfiou despida debaixo dos cobertores
da cama. Rab deitou-se no chão ao lado da dona.
– Anda, Rab – chamou Morag. O cão não se mexeu. – Bronwyn! Manda
o Rab embora. Ele não vai gostar de ficar contigo esta noite.
Bronwyn lançou-lhe um olhar fixo.
– Preocupas-te com o cão mas não comigo? Será que ainda tenho
amigos? Fica, Rab!
– Estás com pena de ti mesma, nada mais. Quando isto acabar, não te vais
sentir tão triste. – Calou-se quando a porta se abriu de rompante.
Stephen entrou apressado e fechou a porta com um estrondo.
– Então, Morag – disse ele. – Vai rapidamente. Ficarão zangados quando
perceberem que me escapei deles. Mas não os aguento nem mais um
segundo, e não sujeitarei Bronwyn a mais grosserias. Malditos!
Morag sorriu e pousou a mão no braço dele.
– És um bom rapaz – inclinou-se para diante. – Cuidado com o cão. –
Deu uma palmada no braço dele. Stephen abriu-lhe a porta e fechou-a
quando ela saiu.
Stephen virou-se para Bronwyn e sorriu-lhe. Ela endireitou-se na cama,
com o cabelo negro caindo em cascata sobre os lençóis. Tinha a cara pálida,
olhos muito abertos e assustados. Os nós dos dedos, que sustinham o lençol
até ao queixo, estavam brancos, tanta era a força com que o agarrava.
Stephen sentou-se pesadamente na berma da cama e descalçou os sapatos,
tirando a seguir a jaqueta e o gibão. Enquanto desabotoava a camisa, disse:
– Lamento a falta de uma atmosfera mais festiva para a nossa boda. A
casa de Sir Thomas fica demasiado perto da fronteira e portanto as esposas
deles têm medo de vir. – Parou, ao ouvir os homens batendo à porta.
– Não é justo, Stephen! – berraram. – Queremos ver a noiva. Vais tê-la a
vida inteira.
Stephen levantou-se e virou-se para a esposa, ao desatar a espada e
punhal.
– Hão de partir. Estão demasiado bêbados para representarem um perigo.
Quando ficou nu, enfiou-se dentro dos lençóis com ela. Sorriu ante o
olhar vidrado e imóvel. Esticou a mão e acariciou-lhe a cara.
– Sou assim tão terrível que não consegues olhar para mim?
Subitamente Bronwyn acordou. Saltou da cama e puxou o lençol consigo.
Encostou-se à parede e um Rab assustado acompanhou-a. Ela fitou Stephen
deitado na cama. O corpo nu, as pernas musculadas cobertas de pelos louro-
claros, tinham um ar estranhamente vulnerável. O peito era mais largo do
que quando estava vestido. Ela comprimiu-se contra a parede.
– Não me toques – disse ela, em surdina.
Lentamente e com imensa paciência, Stephen tirou as pernas para fora da
cama. Ela manteve-se atenta ao rosto dele, percebendo que considerava
aquela reação como um mero incómodo. Stephen passou por ela, dirigindo-
se à mesa onde aguardavam uma taça e uma gamela com frutos. Encheu-lhe
um copo de vinho.
– Toma, bebe e acalma-te.
Ela afastou o copo com uma palmada, e o copo voou pelo quarto, até se
despedaçar contra o chão.
– Não permito que me toques – repetiu ela.
– Bronwyn, são apenas nervos. Todas as noivas têm medo da primeira
vez.
– Primeira vez! – repetiu ela num tom agudo. – Julgas que é a minha
primeira vez? Já me deitei com metade dos homens do meu clã. Não quero
é que nenhum inglês imundo me toque!
Stephen não perdeu o sorriso paciente.
– Sei tão bem quanto tu que é mentira. Não estarias tão amedrontada se
tivesses experiência com homens. Tranquiliza-te, por favor. Só pioras a
situação. Além disso, que podes fazer?
Ela detestava aquele ar presunçoso perante o qual ficava indefesa.
Detestava tudo a seu respeito. Era tão confiante. Mesmo despido, produzia
uma sensação de poder. Bronwyn correspondeu ao sorriso, pois ocorreu-lhe
uma forma de o perturbar.
– Rab! – ordenou. – Ataca!
O canzarrão hesitou por um segundo apenas, mas logo se endireitou num
pulo e desatou a correr rumo à cabeça de Stephen.
O homem desviou-se para o lado, reagindo mais rapidamente que o
animal. Rab lançou-se contra ele, uma massa de rosnidos e dentes
compridos e aguçados. Stephen fechou o punho e esmurrou com força a
enorme cabeça quadrada do cão. O trajeto de Rab mudou prontamente de
direção, embatendo na parede com força e caindo logo num monte no chão.

– Rab! – berrou Bronwyn e largou o lençol, correndo para o cão.


O animal tentou levantar-se mas cambaleou tropegamente.
– Magoaste-o – gritou Bronwyn, ao levantar o olhar e encarar Stephen ao
seu lado.
Este lançou um mero olhar ao mastim para garantir que não ficara ferido,
e depois centrou a atenção apenas em Bronwyn. Fitou, boquiaberto, os seios
rosados nas pontas, as coxas redondas cuja pele tinha o tom marfim dos
cetins.
– Acabo contigo! – berrou Bronwyn.
Stephen continuava tonto perante tanta beleza para notar que ela levara a
mão à faca pousada na mesa ao lado da fruta. Era romba, mas a pequenina
ponta parecia afiada. Ele apercebeu-se de relance um segundo antes de lhe
entrar no ombro. Desviou-se e apenas lhe rasgou a pele.
– Raios! – exclamou, levando a mão ao golpe. Subitamente sentiu-se
exausto. O sangue escorreu-lhe entre os dedos. Sentou-se na cama, afastou
a mão e observou o ombro. – Corta um pedaço do lençol para atar isto.
Bronwyn manteve-se imóvel, sem largar a faca.
Stephen voltou a encará-la, os olhos percorrendo-lhe o corpo.
– Já! – ordenou, e viu-a ajoelhar-se e rasgar uma comprida faixa de tecido
do lençol. Enrolou o resto em volta dela.
Stephen não lhe pediu ajuda para enfaixar o ombro. Depois de o ter atado,
usando uma mão e os dentes, virou-se para o cão.
– Rab, vem cá – disse mansamente. O cão obedeceu de imediato. Stephen
examinou a cabeça do cão mas não viu nenhuma ferida. Afagou o animal, e
Rab esfregou a cabeça na mão de Stephen. – Bonito menino. Vai para o
canto e dorme – Rab dirigiu-se para o local indicado por Stephen e deitou-
se.
– Agora, Bronwyn – disse ele no mesmo tom de voz –, vem para a cama.
– Não sou o Rab para mudar assim a minha lealdade.
– Raios te partam! – disse Stephen, dando uma passada larga em direção
a ela e agarrando-a pelo pulso. Arrancou-lhe o lençol e atirou-o para o chão.
– Vais obedecer-me, nem que tenha de te bater. – Atirou-a sobre as pernas
desnudas, com o rabo para cima, e aplicou-lhe uma série de palmadas duras
e dolorosas nas nádegas firmes e redondas.
No final, quando ambas exibiam as marcas dos seus dedos, ele atirou-a
para o fundo da cama. Ignorou as lágrimas de dor naqueles olhos. Deitou-se
ao seu lado, envolveu-lhe a cintura com o braço e pousou a coxa pesada
sobre a dela.
Stephen manteve-se quieto por um instante, imerso na deliciosa sensação
da pele de Bronwyn contra a sua, querendo imensamente fazer amor com
ela. Mas também estava bastante cansado. Lutara contra Roger pela manhã,
e contra Bronwyn, mais o cão, durante o resto do dia. Um sentimento voraz
de contentamento envolveu-o. Tinha-a, era sua para apreciar durante o resto
da vida. Sentiu os músculos relaxarem.
Bronwyn mantinha-se debaixo de Stephen numa posição rígida, pronta
para o que viria a seguir. O traseiro ardia das palmadas; fungou no meio do
choro. Quando o sentiu relaxar, e ouviu a respiração que indiscutivelmente
indicava que ele dormia, ficou aliviada – e depois insultada. Tentou afastar-
se mas ele agarrara-a com tamanha força que quase lhe partira uma costela.
Percebendo então que não podia fazer nada, começou a descontrair-se. E
mal o fez, notou que até gostava de sentir a pele dele contra a sua. O ombro
era duro, firme e ela encostou a face contra ele. As velas do quarto
tremeluziram e ela sorriu, sonolenta, enquanto Stephen mergulhava ainda
mais a cara no seu cabelo.
Capítulo Cinco

Stephen acordou bastante cedo na manhã seguinte. Primeiro, sentiu apenas


a dor e a rigidez do ombro lesionado e do antebraço ferido. O quarto
encontrava-se ainda escuro e silencioso, uma ténue luz rosada entrando pela
janela alta.
Stephen ficou então ciente do cheiro de Bronwyn. Envolvia-lhe o braço
uma madeixa do cabelo preto e forte. A coxa descansava entre as suas.
Todo o desconforto que sentia prontamente se foi. Inalou lenta e
profundamente e contemplou-a. Dormia, tranquila, olhos que assim não
dardejavam ódio contra ele; o queixo estava descaído e indefeso, macio, e
feminino.
Com cautela, levantou a mão e tocou-lhe no rosto. Tinha a face macia
como a de um bebé, redonda e mole, corada do sono. Mergulhou os dedos
no cabelo dela, viu os caracóis agarrarem-se ao seu antebraço qual roseiral
trepando por uma treliça. Era como se tivesse ansiado por ela durante toda a
vida. A mulher por quem sonhara. Não queria esgotar o prazer que ela lhe
dava. Tendo esperado tanto tempo, avançaria devagar, para a saborear com
preceito.
Estava acordado quando Bronwyn abriu os olhos. Evitou gestos bruscos,
nada que a pudesse assustar. Os olhos dela, grandes e azuis enchiam-lhe o
rosto, evocavam os cervos dos parques dos Montgomery. Quando era rapaz,
Stephen conseguira aproximar-se deles sorrateiramente, ficando então a vê-
los, até os animais perderem o medo da sua presença.
Tocou-lhe no ombro, deslizou pelo braço até lhe tomar a mão. Levou-a
lentamente aos lábios, abocanhando um dos dedos, enquanto a olhava nos
olhos e sorria. Ela fitou-o com preocupação, como se receasse perder mais
do que a virgindade. Ele quis tranquilizá-la mas tal não seria possível
usando palavras, pois ela apenas compreenderia quando reagisse aos seus
gestos.
Mexeu-se de modo a libertar os braços, e sentiu-a ficar tensa. Usou uma
mão para levar as pontas dos dedos da rapariga à sua boca, tocando na
superfície macia com dedos e língua. Passou a outra mão pelas costelas de
Bronwyn, abraçando a cintura, acariciando a anca.
Ela tinha um corpo firme, com músculos, sob a pele macia, bem
torneados pelo uso. Sentiu-a inspirar abruptamente quando lhe tocou no
seio. E muito delicadamente, passou o polegar pela ponta rosada. O mamilo
endureceu sob o toque, mas mesmo assim ela não relaxou. Stephen franziu
o cenho, percebendo que não alcançava o seu objetivo. Tanta ternura só a
deixava mais contraída.
A mão dele desceu então do seio para a coxa dela. Dobrou a cabeça,
tocou no pescoço com a língua, transitou os lábios do ombro para o peito da
rapariga enquanto brincava com a forma delicada do joelho em que pousara
a outra mão. Sentiu-a soltar um pequeno arrepio de prazer, e sorriu,
mudando para o seio esquerdo, as suas mãos desceram na direção da cintura
dela. Franziu a cara quando ela ficou novamente contraída.
Afastou-se dela. Bronwyn continuava deitada de costas, fitando-o com
assombro. Stephen traçou a linha do cabelo dela ao longo da testa com as
pontas dos dedos. Aquele cabelo solto em redor dela era como uma cascata
de pérolas negras feitas de água.
É diferente, pensou ele, diferente das outras.
Especial, única…
Sorriu-lhe, e com um gesto rápido, afastou para o lado o lençol que
tapava as pernas dela, do joelho aos pés.
– Não – sussurrou Bronwyn. – Por favor.
Eram pernas magníficas: compridas, esguias, curvilíneas. Uma vida
passada em cima dos cavalos, capaz de aguentar longos trajetos por colinas
e vales. Pernas sensíveis. Stephen percebera que aquele tremor de prazer
não fora causado pelo toque no seio mas pela mão que pousara no joelho
dela.
Desceu para o fundo da cama, fitando-a, embriagado na beleza feminina.
Inclinou-se e pousou-lhe as mãos nos tornozelos, depois moveu-as
lentamente ao longo dos joelhos e das coxas. Bronwyn saltou como se
tocada por um carvão em brasa.
Stephen riu-se, no fundo da garganta, e voltou a descer as mãos. Pegou
num dos pés dela, e depositou os lábios nas suas pernas. Beijou-as, passou a
língua pela escultura do joelho.
Bronwyn mexeu-se com inquietação debaixo dele. Arrepios de prazer
trespassavam-lhe o corpo, desciam pelos braços, corriam pelos ombros.
Nunca se tinha sentido assim. O corpo tremia, a respiração era rápida e
irregular.
Stephen virou-a sem delicadezas para baixo e depositou a boca na dobra
do joelho. Bronwyn praticamente caiu da cama, mas a mão de Stephen na
curva das costas manteve-a segura. Ela enfiou a cara na almofada e gemeu
como se fosse dor. Stephen não parava de torturá-la. As mãos e a boca
exploraram todos os centímetros das suas pernas sensíveis.
Ele desejava-a tanto que não conseguia resistir mais. Virou-a para si
novamente, e desta vez a boca procurou a dela. Não estava preparado para a
ferocidade da paixão dela. Agarrou-se a ele, abraçando-o num aperto, como
um torno. A boca dela queria beber a essência dele. Stephen sabia o que ela
queria, mas também sabia o que ela ignorava.
Quando começou a empurrá-lo para a cama, percorrendo as costas e os
braços dele freneticamente com as mãos, foi ele quem a empurrou no final.
Colocou-se em cima dela, e Bronwyn abriu as pernas naturalmente para o
aceitar, já preparada. Arregalou os olhos e arfou quando se sentiu penetrada
pela primeira vez. Depois cerrou os olhos, deitou a cabeça para trás e
sorriu.
– Sim – sussurrou. – Oh, sim.
Stephen julgou que o coração pararia no seu peito. Aquela expressão,
aquelas palavras murmuradas num tom gutural, eram mais excitantes que
todos os poemas de amor. Eis uma mulher! Uma mulher que não temia o
homem, sua igual na paixão.
Começou a mexer-se em cima dela, e ela acompanhou-o sem hesitar. As
mãos de Bronwyn acariciaram o corpo dele, esfregaram o interior das coxas
até Stephen acreditar que ficaria cego pela potência do seu crescente desejo.
E, no entanto, Bronwyn correspondia a todos os seus impulsos, aceitando e
dando em troca. Quando ele por fim, explodiu dentro dela, estremeceu
violentamente, a força quase que o despedaçava.
Colapsou sobre Bronwyn, suado, inerte, e apertou-a com tanta força que
quase a esmagou.
Bronwyn não se importou de não poder respirar. Por instantes, julgou que
morrera. Ninguém podia experimentar aquilo e sobreviver. Todo o corpo
dela latejava, e ela sentia que não seria capaz de andar, mesmo para salvar a
vida. Entregou-se ao sono com os braços e as pernas a envolver Stephen.
Quando acordou, Bronwyn mirou aqueles olhos azuis divertidos. O sol
entrava no quarto, e subitamente recordou tudo o que acontecera entre eles.
Sentiu o rosto arder. Era estranho não recordar os sentimentos que a fizeram
agir de forma tão humilhante.
Ele tocou-lhe na bochecha, olhos repletos de riso.
– Eu sabia que merecias tanta luta – disse ele.
Ela afastou-se dele. Sentia-se bem-disposta. Aliás, há muito que não se
sentia assim tão bem. Claro!, pensou. Acabara de descobrir que não se
transformara. Continuava a mesma pessoa, depois de ter passado a noite
com um homem. Ainda o odiava; ainda era o inimigo. Um fanfarrão
insuportável e arrogante.
– Não passo disso para ti? Uma meretriz para te aquecer o leito.
Stephen sorriu indolente.
– Quase pegaste fogo – afagou-lhe o braço.
– Larga-me! – disse ela com firmeza, saltando da cama e agarrando o
roupão de veludo verde.
Soou uma pancada curta na porta, após a qual Morag entrou no quarto,
trazendo um cântaro de água quente.
– A vossa discussão ouve-se do fundo da escada – retorquiu.
– Se calhar ouviste também outro tipo de sons – disse Stephen, unindo as
mãos atrás da nuca.
Morag virou-se e sorriu-lhe, o rosto envelhecido tão amarrotado de rugas
que os olhos desapareceram.
– Está muito satisfeito consigo mesmo. – Ela lançou-lhe um olhar
apreciativo, vendo a pele bronzeada do sol contra os lençóis, os músculos
pesados do peito e dos braços salientes mesmo quando descontraídos.
– Mais do que satisfeito, devo dizer. Não admira que vocês, os das Terras
Altas, nunca desçam para sul. – Os olhos viajaram para Bronwyn, que
continuava a fitá-lo com ódio.
Chris Audley surgiu à porta.
– Não podemos ter alguma privacidade? – ripostou Bronwyn ao virar-se
para a janela, com Rab a seu lado. Não tocou no cão, pois sentia-se traída
pelo animal, quer na noite anterior como nesta manhã, ao ter permitido que
Stephen lhe… lhe… Começou a enrubescer novamente.
Stephen sorriu para Chris.
– Ela gosta de estar a sós comigo.
– O que aconteceu ao teu braço? – perguntou Chris, indicando a ligadura
coberta de sangue seco.
Stephen encolheu os ombros.
– Um revés. Bem, se vocês os dois já se sentem contentes por não nos
termos matado um ao outro, talvez possam deixar-nos um pouco em paz,
para que a minha mulher me cuide da ferida.
Morag e Chris sorriram-lhe, lançaram um rápido relance às costas hirtas
de Bronwyn e partiram.
Bronwyn virou-se, encarando Stephen.
– Oxalá sangres até morreres – cuspiu-lhe.
– Vem cá – pediu-lhe ele com paciência e doçura, e estendeu a mão na
sua direção.
Apesar da sua intenção, Bronwyn obedeceu-lhe. Ele agarrou-lhe na mão e
puxou-a para baixo, fazendo-a sentar-se na ponta da cama ao seu lado.
Rolou na sua direção, e o lençol escorregou para o fundo, expondo mais da
sua anca e cintura. Bronwyn desviou a vista, de volta ao seu rosto. Teve de
controlar a ânsia de lhe tocar.
Ele apertou ambas as mãos numa das suas, depois afagou-lhe a face com
a mão livre.
– Se calhar, provoco-te demasiado. Deste-me muito prazer hoje de
manhã.
Ele observou o fluxo de cor manchar-lhe as bochechas.
– Agora, o que posso fazer para te agradar, além de me atirar pela janela?
– Gostava de voltar para casa – disse ela, baixinho, colocando toda a sua
saudade na voz mansa. – Quero voltar para as Terras Altas, para o meu clã.
Ele dobrou-se para diante, beijando-lhe os lábios suavemente, com a
meiguice da chuva primaveril.
– Então partimos hoje.
Ela sorriu-lhe e tentou afastar-se, mas ele susteve-lhe as mãos com
firmeza. O rosto dela ficou imediatamente frio.
– Não confias mesmo em mim, pois não? – Ele fitou a ligadura sangrenta
no ombro. – Isto precisa de ser limpo e devidamente cuidado.
Ela contorceu-se para se libertar dele.
– A Morag é boa nisso, e aposto que teria muito gosto, pois parece ter um
grande afeto por ti.
Stephen afastou o lençol para o lado e endireitou-se diante dela. Puxou-a
para os seus braços.
– Oxalá encontrasse ciúmes na tua voz. Não quero que a Morag troque a
ligadura. A ferida foi obra tua, tu é que tens de cuidar dela.
Bronwyn não conseguia mexer-se nem sequer pensar quando ele a
abraçava assim. Lembrava-se da sensação dos lábios dele na dobra dos
joelhos. Afastou-o de si.
– Pronto, eu faço isso. Demora menos do que discutir contigo. Depois
vamos para casa.
Ele sentou-se junto à janela, recostou-se contra os almofadões,
aparentemente alheio ao facto de se encontrar nu. Esticou o braço para ela,
sorrindo quando ela desviou o olhar.
Mas a Bronwyn não agradava tanta presunção, a confiança fácil de que a
sua proximidade causava efeito nela. Pior ainda, odiava a forma como o
belo corpo dele lhe atraia a atenção. Sorriu maliciosamente quando
arrancou a ligadura do ombro. Pedaços de pele em carne viva e a crosta
recém-formada separaram-se da ferida.
– Maldita! – berrou Stephen, pulando do assento. Levou a mão à nuca
dela, puxando-a para si. – Hás de arrepender-te disso! Um dia saberás que
uma gota do meu sangue é mais valiosa que os sentimentos de ira dentro de
ti.
– É esse o teu desejo mais ardente? Digo-te já que não o realizarás. Casei
contigo para poupar o meu clã de lutas internas. Não te matei agora porque
o teu rei velho causaria problemas ao meu clã.
Stephen empurrou-a com violência, fazendo-a embater na cama.
– Nunca me matarás! – zombou. Escorria sangue pelo braço dele, da
ferida reaberta. Levantou-se e agarrou as roupas caídas no chão. – Tens-te
em grande consideração – comentou, enfiando as pernas nas meias-calças e
nos culotes. Deitou a camisa e o gibão sobre o braço. – Tens uma hora para
te aprontares – disse sem expressão, saindo do quarto intempestivamente.
O quarto ficou num estranho silêncio quando Stephen partiu. Parecia
demasiado grande e vazio. Ela ficara contente pela ausência dele, como é
óbvio. Por um breve instante, perguntou-se quem lhe ligaria a ferida, mas
encolheu os ombros. Porque se importava ela? Aproximou-se da porta e
chamou Morag. Havia muito para ser feito numa hora.
Cavalgaram o dia inteiro, até se fazer noite. Bronwyn sentiu o coração e
alma aliviarem-se quanto mais a norte estavam. Odiava o ruído e as
carruagens de carga que os seguiam. Para a perceção de economia dos
escoceses, tantas carruagens cheias de bens eram inúteis. Um escocês
levava a roupa no corpo e a comida que coubesse num saco. Os ingleses
paravam ao meio dia para cozinharem uma refeição. Bronwyn sentia-se
demasiado impaciente para comer.
– Senta-te! – ordenou Stephen. – Vais pôr os meus homens nervosos se
andas de um lado para o outro.
– Os teus homens! E os meus, que aguardam por mim?
– Só consigo cuidar de um grupo de homens de cada vez.
– Só consegues…! – começou ela, mas calou-se. Vários dos homens de
Stephen observavam-nos com interesse. Christopher Audley sorriu-lhe, com
os olhos a brilhar. Bronwyn sabia que era um jovem elegante, mas agora
ninguém lhe agradava. Queria afastar-se daquelas malditas Terras Baixas o
mais depressa possível.
Cruzaram os Grampianos durante a noite. Eram montes baixos,
intercalados por amplos vales. Mal os cruzaram, o ar pareceu ficar mais
fresco, a paisagem mais selvagem, e Bronwyn começou a respirar melhor.
Descontraiu os ombros, e os músculos do rosto desnovelaram-se.
– Bronwyn! – exclamou Stephen ao seu lado – Temos de parar durante a
noite.
– Parar! Mas… – Ela sabia que era inútil insistir. Só Morag sentia o
mesmo o que ela: os outros tinham de descansar antes de prosseguir. Ela
respirou fundo e sabia que encontrar-se tão perto da sua casa a ajudaria a
dormir. Desmontou e desatou o alforge. Ao menos podia livrar-se das
restritivas roupas inglesas.
– O que é isto? – perguntou Stephen, tocando no tartã dobrado por cima
do braço dela. – Foi isto que vestias na primeira noite em que te conheci? –
perguntou, os olhos a brilhar da recordação.
Ela arrancou-o das mãos dele e avançou pela escuridão do arvoredo. Não
era fácil despir sozinha um vestido inglês, mas estava determinada em ver-
se livre do traje. Uma vez pousado com cautela o vestido de veludo pesado
sobre as pedras, tirou a roupa por completo. O traje costumeiro dos
escoceses era simples e conferia liberdade a quem o usava. Enfiou uma
camisa interior de algodão macio, depois uma camisa cor de açafrão de
mangas compridas. As mangas eram apanhadas junto ao ombro, e apertadas
nos pulsos. A saia tinha folhos largos, cingida na cintura mas
suficientemente solta para lhe permitir montar a cavalo. Era um tartã azul-
claro. Um cinto largo com uma fivela grande de prata envolvia-lhe a cintura
estreita. Atirou com destreza um segundo tartã por cima dos ombros, que
fixou com um broche grande e articulado. O broche pesado de prata fora
passado de filha em filha ao longo das gerações.
– Deixa-me ver – surgiu uma voz nas usas costas.
Ela rodopiou, encontrando Stephen.
– Novamente a espiar-me? – perguntou com tom frio.
– Prefiro pensar que te protegia. Sabe-se lá o que pode acontecer a uma
menina bonita sozinha na floresta.
Ela recuou.
– O pior já aconteceu. – Não queria que se aproximasse dela, nem que
repetisse o poder que mantivera sobre ela na noite passada. Virou-se e
correu de volta para o acampamento.
– Não te esqueceste destes? – chamou Stephen, levantando os sapatos
dela. Riu-se quando ela não olhou para trás.
Bronwyn coxeou até à tenda que lhe foi indicada como pertencendo a
Stephen. Os homens dele eram eficientes a montar um acampamento
semelhante a uma pequena aldeia. Ela fez uma careta, mesmo quando o pé
tocou na berma do tapete esticado sobre o bom solo escocês. Esquecera-se
de que tinham passado meses desde que correra descalça pela terra. Os pés
tinham perdido o jeito, saindo da corrida cheios de cortes e nódoas negras.
Sentou-se na berma do amplo catre e pôs-se a inspecioná-lo. Quando se
abriu a aba da tenda e Stephen entrou, ela levantou-se rapidamente, não
obstante as lágrimas de dor devido aos pés magoados.
Stephen atirou os sapatos dela para um canto. Sentou-se no catre.
– Deixa-me examiná-los.
– A que te referes? Não entendo… – disse ela desdenhosamente,
afastando-se dele.
– Bronwyn, tens de ser sempre teimosa? Magoaste os pés, bem sei. Anda
cá e deixa-me vê-los.
Ela sabia que, mais tarde ou mais cedo, teriam de ser tratados. Com
relutância, sentou-se no catre ao lado de Stephen.
Com um suspiro de exasperação, ele inclinou-se e puxou os pés dela para
o colo. Bronwyn recostou-se, apoiada nos braços. Stephen franziu o cenho,
inspecionando os cortes, um dos quais era profundo. Berrou ao pajem para
lhe trazer uma bacia com água quente e ligaduras limpas.
– Pousa aqui os pés – disse, pousando a água no chão.
Ela observou-o lavar e enxaguar com meiguice os seus pés, para depois
os colocar no colo, secá-los e enfaixá-los.
– Porque me fazes isto? – perguntou ela, pausadamente. – Sou tua
inimiga.
– Não, não és. Tu é que lutas comigo, não o inverso. Por mim, vivia em
paz contigo.
– Como haverá paz quando o sangue do meu pai é um muro entre nós?
– Bronwyn… – começou, mas calou-se. Não valia a pena discutir com
ela. Só com ações conseguiria convencê-la de que só queria o bem dela e do
clã. Deu palmadinhas na ligadura do pé direito dela. – Isto deve servir
durante algum tempo. – Quando ela começou a afastar-se, ele manteve os
pés dela no colo. Os olhos ficaram mais sérios e passou uma mão pela
barriga da perna – Tens umas pernas lindas – sussurrou.
Bronwyn queria afastar-se dele porque reconheceu o olhar, mas ele
hipnotizava-a, mantinha-a quieta mesmo quando a segurava gentilmente.
Ambas as mãos subiram pela comprida saia dela, e ela recostou-se contra as
almofadas, imóvel, enquanto ele lhe acariciava as pernas e as nádegas.
Ele deitou-se ao lado dela, puxou-a para os seus braços, e começou a
beijar-lhe o rosto, as orelhas, a boca. As mãos desapertaram-lhe o broche
com destreza e a fivela do cinto. As roupas caíram-lhe do corpo antes de ela
perceber que estavam desatadas. Stephen afastou-se dela por segundos
apenas, enquanto, se livrava das suas próprias roupas. Soltou um riso
gutural quando as mãos de Bronwyn lhe procuraram o corpo e o puxaram
de volta para si.
Ele beijou-a sofregamente, saboreando a doçura da sua língua.
– Quem sou? – sussurrou ao passar os dentes pelo pescoço dela.
Ela não lhe respondeu mas esfregou as coxas contra as dele. O coração
corria no peito, e apesar da noite fria, uma película de suor formava-se na
sua pele.
Ele agarrou-lhe o cabelo, enchendo a mão com a grossura dele.
– Quem sou? Quero ouvir-te dizer o meu nome.
– Stephen – sussurrou ela. – E eu sou a MacArran.
Ele riu-se, com os olhos a brilharem. Mesmo na sua paixão, ela não
perdia aquele incrível orgulho.
– E eu sou o conquistador da MacArran – riu-se ele.
– Jamais! – exclamou ela num sussurro gutural enquanto agarrava o
cabelo dele e o puxava com força para trás. A cabeça dele contorceu-se e
ela enfiou os dentes na garganta alheia. – Quem é a conquistadora agora?
Stephen puxou-a para cima de si, passou as mãos com firmeza pelo corpo
dela.
– Se tu fosses a inimiga, nós os ingleses perdíamos todas as guerras.
Subitamente levantou-a e fê-la descer aos poucos até a sentar no seu
membro.
Bronwyn arfou de espanto, depois soltou um gemido profundo de prazer,
dobrando-se sobre ele e começando a mexer-se para cima e para baixo.
Stephen manteve-se muito quieto, deixando-a controlar o prazer mútuo.
Quando sentiu a excitação dela subir, fê-la deitar-se de costas e ela agarrou-
o com os fortes braços e pernas. Explodiram em conjunto num relâmpago
ofuscante.
Exaustos, adormeceram naquela posição, enovelados um no outro, peles
coladas pelo suor e paixão.
Uma coruja acordou Bronwyn. Despertou com olhos abertos e sentidos
alerta. Stephen encontrava-se semideitado sobre ela, prendendo-a. Ela
franziu o sobrolho, recordando a paixão anterior. Desaparecera, e a cabeça
voltava a comandar o corpo desobediente.
O som da coruja era familiar. Escutara aquele sinal durante a vida inteira.
– Tam! – semissussurrou. Lentamente, com mais carinho do que sentia,
afastou de si os membros de Stephen, pesados do sono.
Vestiu-se à pressa no escuro, quase sem fazer ruído. Encontrou os sapatos
onde Stephen os atirara, e abriu caminho para fora da tenda. Manteve-se
parada durante instantes, atenta à escuta com Rab a seu lado. Stephen
posicionara guardas que percorriam a periferia do acampamento. Bronwyn
lançou-lhes um olhar de repúdio, esgueirando-se entre eles e entrando na
floresta. A cor de urze do tartã e do seu cabelo escuro tornavam-na
praticamente invisível.
Deslocou-se rapidamente, com confiança pela floresta, soltando pouco
ruído à passagem. Subitamente ficou muito quieta. Sentiu que alguém se
aproximava.
– O Jamie ensinou-te bem ensinada – disse uma voz profunda nas suas
costas.
Ela virou-se, com um sorriso brilhante no rosto.
– Tam! – arquejou, um instante antes de voar para os seus braços.
Ele apertou-a contra si, levantando-a do chão, enquanto ela entregava
todo o seu peso.
– Trataram-te bem? Estás inteira?
Ela afastou-se dele.
– Deixa-me ver-te. – O luar pintava o cabelo de Tam com um tom ainda
mais prateado do que o habitual. Tinha altura média, pouco mais alto do
que Bronwyn, mas era possante, com braços e um peito que fariam inveja a
um carvalho. Tam era o primo do pai, e fora seu amigo durante toda a vida.
Um dos filhos de Tam era um dos três homens que podia ter escolhido para
casar.
Tam soltou um riso profundo.
– Os teus olhos são melhores do que os meus, já velhos. Não consigo ver
se estás bem ou não. Queríamos vir à tua procura, mas temíamos pela tua
segurança.
– Sentemo-nos.
– Tens tempo? Ouvi dizer que arranjaste marido.
Ela notou a preocupação no rosto dele, parecendo haver mais rugas em
volta dos olhos.
– Sim, casei-me – disse ela, quando se sentaram lado a lado num
pedregulho. – É inglês.
– Como é o homem? Pensa ficar na Escócia contigo ou voltará para
Inglaterra?
– Que sei eu? É arrogante. Tentei falar-lhe do meu clã mas não quer ouvir.
Está convicto de que os modos ingleses são os únicos que interessam.
Tam tocou-lhe na bochecha. Durante anos considerara a rapariga como
uma filha.
– Ele magoou-te? – perguntou calmamente.
Bronwyn estava agradecida pela escuridão que lhe ocultava o rubor.
Stephen ferira-lhe o orgulho por a ter feito contorcer-se debaixo e em cima
dele. Ela não perdia a calma desde que ele não lhe tocasse. Mas não era
algo que dissesse a um homem que considerava um segundo pai.
– Não, não me magoou. Diz-me, como está o meu clã? Os MacGregors
deram-te trabalho?
– Não. Tudo calmo na tua ausência. Temos andado muito preocupados. O
rei inglês prometeu que não sofrerias qualquer mal. – Estendeu a mão ao
ver Rab aproximar-se. Fez festas à cabeçorra do animal, absorto. – Não me
disseste tudo. O que pensas deste teu marido?
Bronwyn pôs-se de pé.
– Odeio-o! Vai causar mais problemas do que preciso. Riu-se de mim
quando lhe disse que teria de ser aceite pelo meu clã. Viaja com um exército
de homens e bagagem.
– Há dias que ouvimos dizer isso.
– Preocupa-me que a ignorância e burrice dele prejudiquem os meus
homens. Sem dúvida que vai tentar convertê-los aos seus costumes. Alguém
enfiará uma adaga entre as suas costelas, e o rei inglês lançará os soldados
sobre as cabeças do meu clã.
Tam levantou-se e pousou as mãos nos ombros de Bronwyn. Eram
ombros demasiado pequenos para sustentar a responsabilidade que
carregavam.
– Talvez não. Talvez alguns pedaços de pele possam ser retirados, e assim
o ajudemos a aprender os nossos costumes.
Bronwyn virou-se e sorriu-lhe.
– És bom para mim. Os ingleses chamam-nos selvagens e rudes. Se te
escutassem, acreditariam nisso sem dúvida.
– Ai, somos selvagens? – perguntou Tam, brincando com ela.
– Pois, e dizem que as mulheres são tão más quanto os homens.
– Ora essa! – resmungou Tam. – Vá, vejamos se te recordas do que te
ensinei.
Antes de ela poder pestanejar, ele tinha retirado a adaga e apontava-a na
direção da sua garganta. Passara anos a ensiná-la a proteger-se de várias
formas dos homens fortes. Ela desviou-se para o lado num movimento
rápido e fluido, mas não foi suficientemente rápido. A faca ficou encostada
ao pescoço.
Subitamente, do meio das árvores, um homem lançou-se literalmente no
ar, cortando-o, embatendo em Tam de lado. Bronwyn saltou para o lado, e
Tam tentou manter o equilíbrio. Era um homem sólido e forte, e a sua força
residia na capacidade de ficar firme contra os oponentes. Bronwyn vira uma
vez quatro homens adultos saltarem contra ele, e Tam continuar de pé.
Tam encolheu os ombros, e o homem deslizou dele, enquanto Tam
pestanejava curioso.
Bronwyn sorriu ao ver Stephen caído de costas. Seria um prazer vê-lo
derrotado. Vencera Roger Chatworth, mas Roger era inglês, educado nas
regras da cavalaria e na correção da disputa. Tam era um lutador a sério.
Stephen não perdeu tempo examinar contemplar o atacante. Apenas sabia
que tinha visto o homem apontar uma faca à garganta da esposa. Para ele,
eram as vidas deles em troco da de Tam. Agarrou num pedaço de lenha do
chão, e enquanto Tam se virava, perplexo, para Bronwyn, Stephen enfiou o
tronco contra a dobra do joelho do homenzarrão.
Tam soltou um queixume profundo e caiu em frente. Stephen de joelhos,
enfiou o punho na cara de Tam e sentiu o nariz do homem ceder.
Tam sabia que Stephen não era um desconhecido, senão Rab teria ladrado
a avisar, mas, quando sentiu o nariz partir-se, deixou de se importar com a
identidade do atacante. Abriu as grandes mãos e alcançou a garganta de
Stephen. Este sabia que não teria resistência contra a força do homem, mas
a sua juventude e agilidade compensaram. Desviou-se das mãos de Tam, fez
uma finta de cabeça e esmagou ambos os punhos no estômago duro como
pedra. Tam não pareceu notar os ataques de Stephen. Agarrou em Stephen
pelos ombros, levantou-o do chão, e atirou-o contra uma árvore – uma vez,
duas vezes. Stephen ficou atordoado quando o corpo embateu na árvore,
mas levantou as pernas e usou a sua força para empurrar o peito de Tam. A
força das pernas de Stephen fez Tam parar o ataque.
Stephen levantou as mãos, passou-as debaixo dos pulsos de Tam, e a
reação súbita obrigou Tam a libertá-lo. Tam atacou Stephen novamente, as
mãos gigantes procurando o pescoço do jovem. Stephen tinha poucos
segundos para fugir. Atirou as pernas ao ar e deu uma cambalhota para trás
na perfeição.
Tam ficou agachado por instantes. Num instante o inimigo estava naquele
lugar, e no seguinte desaparecera. Antes de conseguir pestanejar, sentiu uma
lâmina fria de aço contra a garganta.
– Não te mexas – disse Stephen, ofegante – ou corto-te a garganta.
– Para! – berrou Bronwyn. – Stephen! Solta-o imediatamente!
– Soltá-lo? – perguntou Stephen. – Tentou matar-te. – Franziu o cenho ao
sentir o riso profundo de Tam.
– Matar-me! – disse Bronwyn. – És o homem mais estúpido que jamais
conheci. O Rab ter-se-ia atirado a ele se houvesse perigo. Pousa mas é a
faca antes que magoes alguém.
Lentamente, Stephen voltou a embainhar a faca.
– O raio do cão estava tão quieto que parecia estar morto. – Esfregou a
nuca. Era como se tivesse partido a espinha.
– Ele tem razão, Bronwyn – disse Tam. – Cumpriu a sua obrigação.
Chamo-me Tam MacArran. – Esticou a mão a Stephen. – Onde aprendeu a
lutar assim?
Stephen hesitou antes de aceitar o cumprimento do homem. O que
realmente lhe apetecia fazer era deitar Bronwyn no colo e bater-lhe por lhe
ter chamado estúpido, quando só tentara protegê-la.
– Stephen Montgomery – disse, apertando a mão de Tam. – Tenho um
irmão com um porte igual ao seu. Descobri que só conseguiria vencer-lhe se
fosse mais rápido do que ele. Aprendi alguns truques com um acrobata, e
têm-me dado jeito.
– Eu que o diga! – disse Tam, esfregando o nariz. – Parece-me que está
partido.
– Oh, Tam! – exclamou Bronwyn, lançando um olhar de ódio a Stephen.
– Vem connosco para o acampamento e deixa-me examinar-te.
Tam não se mexeu.
– Acho que devias pedir autorização ao teu marido. Assumo que seja o
marido dela?
Stephen simpatizou com o homem.
– Já tenho cicatrizes para prová-lo.
Tam riu-se.
– Tomemos uma cerveja. E quero dar uma palavrinha aos meus guardas.
Como é que não ouviram a Bronwyn sair do acampamento é que não
entendo. Um homem com armadura teria feito menos barulho.
– Menos barulho! – disse Bronwyn. – Vocês, os ingleses, são
realmente…
Tam pousou a mão no ombro dela, calando-a.
– Se os outros não te ouviram, o teu marido ouviu. Anda, traz-me água
quente para me lavar. Acho que tenho sangue seco em todo o corpo. –
Encarou Stephen com ar afável. – Esses punhos têm bastante força.
Stephen sorriu.
– Mais um embate contra a árvore e partia a espinha.
– Sim – disse Tam. – Falta de carne que amorteça.
– Ha! – fungou Stephen. – Se eu fosse tão pesado como vós, não
conseguiria mexer-me.
Os homens riram-se entre si e seguiram Bronwyn e Rab de regresso ao
acampamento.
– Stephen! – exclamou Chris ao alcançarem-no. – Ouvimos barulho, mas
demorámos a perceber que tinhas partido. Dentes divinos! Que vos
aconteceu e quem é este?
Os homens iam despertando com a agitação e acendendo tochas.
– Volta para a cama, Chris – disse Stephen. – Mas antes, pede que nos
tragam água quente e abram um barril de cerveja, pode ser? Entra, Tam.
Tam espreitou para o interior da tenda. As paredes encontravam-se
adornadas com seda azul-clara, o chão coberto de tapeçarias orientais.
Sentou-se na cadeira de carvalho entalhado.
– Belo sítio que aqui tem – disse.
– Um desperdício de dinheiro! – retorquiu Bronwyn. – Com tantas
pessoas a passar fome e…
– Paguei para me fazerem esta tenda, e presumo que essas pessoas terão
comprado comida com o dinheiro – ripostou Stephen.
Tam passou os olhos de um para o outro. Viu raiva e hostilidade
emanarem de Bronwyn, mas da parte de Stephen viu tolerância e talvez
afeto. E Stephen atacara-o, pensando que Tam ameaçava Bronwyn.
Trouxeram água quente, e ambos os homens desnudaram os troncos e
começaram a lavar-se. Bronwyn apalpou o nariz de Tam e garantiu-lhe que
não estava partido. As costas de Stephen estavam repletas de cortes
sangrentos onde a casca da árvore rasgara a pele.
– Parece-me que as costas do teu marido precisam de cuidados – disse
Tam baixinho.
Bronwyn encarou Stephen com desdém e abandonou a tenda, seguida por
Rab.
Tam pegou numa ligadura.
– Sente-se, rapaz, eu trato-lhe das costas.
Stephen obedeceu. Enquanto Tam lavava cuidadosamente as costas do
jovem, ele tentou falar.
– Eu devia pedir desculpas pelo comportamento da minha esposa.
– Não é preciso. Eu é que devia pedir desculpas pois ajudei a que ela
fosse assim.
Stephen riu-se.
– Afinal, tinha motivos para lutar consigo. Diga-me, acha que ela
conseguirá deixar de estar zangada comigo?
Tam enrolou o tecido cheio de sangue.
– É difícil adivinhar. Ela e o Davey têm muitas razões para odiarem os
ingleses.
– Davey?
– O irmão mais velho da Bronwyn.
Stephen virou-se rapidamente.
– Irmão! A Bronwyn tem um irmão e contudo o pai nomeou-a como
sucessora dele?
Tam riu-se e empurrou Stephen para baixo, para acabar de lhe limpar as
costas.
– Os costumes escoceses devem ser muito estranhos para vós.
Stephen fungou.
– Estranhos é dizer pouco. Que tipo de homem era o pai da Bronwyn?
– É melhor perguntar-lhe sobre o irmão. O Davey sempre foi indomável,
pouco atinado desde que nasceu. É um rapaz bonito e tem alguns atributos
favoráveis e, sempre foi capaz de levar a sua avante junto dos outros. O
problema era que nunca fazia aquilo que era melhor para o clã.
– Mas a Bronwyn fazia? Ela só se preocupa com o clã… e com aquele
maldito cão.
Tam sorriu, fitando a nuca de Stephen.
– O Jamie, o pai dela, nunca teve quaisquer ilusões a respeito da filha. Ela
tem um temperamento difícil, e nem sempre perdoa. – Ignorou o olhar que
Stephen lhe lançou. – Tal como diz, ela adora o clã. Está acima de tudo e
antes de qualquer coisa.
– E daí ser nomeada chefe, e não o irmão.
– Pois foi, mas não foi assim tão simples. Ela combinou com o pai que
casaria com o homem escolhido por si. Ele deu-lhe a escolher entre três
jovens, todos fortes e sólidos, contrapondo ao temperamento volátil da
rapariga. – Tam largou o tecido na bacia e voltou a ocupar a cadeira.
– E os homens? – perguntou Stephen, vestindo a camisa novamente.
– Foram todos mortos, bem como o Jamie.
Stephen ficou calado por um instante. Mortos pelos ingleses, os quatro,
como bem sabia.
– E a Bronwyn apaixonara-se por algum deles? Já tinha escolhido? – Tam
demorou tanto a responder que Stephen levantou a cabeça. O homem
parecia ter envelhecido no espaço de minutos.
Tam levantou a cara. Tentou forçar um sorriso nas feições escarpadas.
– Quero crer que ela tinha escolhido e que preferia um deles aos outros. –
Respirou fundo e fitou Stephen diretamente nos olhos. – Um dos jovens
mortos era o meu filho mais velho.
Stephen encarou o homem. Tinham-se conhecido há poucas horas e agora
doía-lhe o corpo da sova de Tam, mas era como se o conhecesse há anos. A
queixada forte, o nariz amplo, os olhos negros, o cabelo comprido e
grisalho, traços familiares. Sentiu o pesar de Tam pela perda do filho.
– E o Davey? – perguntou Stephen. – Cedeu lugar à irmã mais nova sem
dar luta?
Tam fungou de desdém, limpando os olhos.
– Os escoceses nunca agem sem fervor. O Davey ameaçou dividir o clã
contra o pai quando o Jamie anunciou que a Bronwyn seria a herdeira.
– Ameaçou? E o que disse a Bronwyn?
Tam levantou a mão, rindo-se.
– Ela chamou-o de estúpido. Mas eu não acho.
Stephen lançou-lhe um olhar revelador do que pensava daquela opinião
da sua pessoa.
Tam prosseguiu.
– O Davey chegou a convencer alguns homens para que o seguissem, mas
recusaram-se a lutar contra os membros do próprio clã, e portanto
refugiaram-se nas colinas onde vivem em exílio.
– E a Bronwyn?
– Coitada. Ela adorava o Davey. Bem lhe disse que ele era um rapaz
persuasivo. Ela disse ao pai que se recusava a retirar ao Davey o que era
dele por direito próprio. Mas o Jamie apenas se riu e perguntou-lhe se
queria pôr-se à parte e assistir ao começo de uma disputa dentro do clã.
Stephen levantou-se.
– E claro que a Bronwyn só faria o que fosse melhor para o clã – disse
com um travo de sarcasmo.
– Ah, pois, isso sim. A moça até se matava se achasse que isso
beneficiaria o clã.
– Ou mantinha-se viva e sofreria um destino pior do que a morte.
Tam lançou-lhe um olhar astuto.
– Pois, capaz disso era ela.
Stephen sorriu.
– Segue connosco até ao castelo de Bronwyn?
Tam levantou-se, movendo devagar a volumosa figura.
– Seria uma honra.
– Posso oferecer-lhe um lugar na minha tenda?
Tam ergueu o sobrolho.
– Isso é muito finório para mim. Não preciso de mimos na minha idade.
Tenho a minha manta, mas agradeço.
Pela primeira vez, Stephen reparou no traje de Tam. Usava uma camisa
com mangas grandes e um gibão comprido e acolchoado até meio da coxa.
Os pés calçavam sapatos grossos por cima de meias-calças pesadas de lã
que subiam quase até ao joelho. Os joelhos musculados estavam expostos.
Sobre os ombros dependurava-se um manto amplo e comprido de tartã. Um
cinturão grosso e largo cingia o gibão, com uma adaga de lado.
Tam não se mexeu durante a inspeção de Stephen, à espera dos habituais
comentários dos ingleses.
– Assim apanha frio – disse Stephen.
Tam sorriu.
– Não há cá fracotes entre os escoceses. A gente vê-se pela manhã. – E
abandonou a tenda.
Stephen ficou parado por instantes, entrando a seguir pela aba da tenda.
Soltou um assobio baixo e calado, e pouco depois apareceu Rab.
– Bronwyn – ordenou numa voz mansa.
O cão deu uma rápida lambidela na mão de Stephen e começou a andar
para o negro bosque, seguido pelo homem.
Bronwyn dormia, envolta na manta. Ele sorriu para aquela figura,
satisfeito por a ver capaz de adormecer na terra fria, dura e húmida.
Dobrou-se para a pegar ao colo. Os olhos dela abriram-se ligeiramente. Ele
beijou-lhe o canto da boca e a rapariga acalmou-se. Aninhou-se contra ele
ao ser levada ao colo de volta à tenda e ao leito de Stephen.
Capítulo Seis

Chegaram ao Castelo Larenston no final do dia seguinte. Bronwyn,


demasiado impaciente para continuar a esperar, incitou o cavalo em frente.
– Acompanhe-a – urgiu Tam a Stephen. – Aposto que nunca viu nada
como Larenston.
Curioso por conhecer o lugar que se tornaria a sua casa, Stephen incitou o
cavalo a subir a colina relvada.
Tam tinha razão: nada o teria preparado para Larenston. A colina em que
assentava abria-se abruptamente para um vale extenso e profundo no qual
pastava gado felpudo, pontilhado por casas de camponeses. O vale era
cortado por uma estrada estreita que subia pela falésia ao fundo. No cimo
desta encontrava-se uma península alta, de pedra vermelha, despontando
pelo mar como um enorme punho blindado. A península ligava-se a terra
por um rochedo tão estreito como a estrada, cujas escarpas íngremes eram
ladeadas pelo mar. Guardando a entrada da península estavam dois imensos
portões com três andares de altura.
O complexo do castelo consistia em várias estruturas de pedra e um
enorme edifício no centro. Não tinha muralha circundante. Nem era preciso.
As falésias que se erguiam do mar podiam ser guardadas por um punhado
de homens armados com arcos e flechas.
Bronwyn virou-se para ele, com um brilho no olhar que ele descobria pela
primeira vez.
– Nunca foi conquistado – disse ela, antes de seguir caminho para o fundo
do vale.
Subitamente todas as portas das casas abriram-se e as pessoas emergiram
a correr para a saudar, com os braços abertos. Stephen não percebeu como
teriam descoberto que o grupo se aproximava.
Stephen fez o cavalo avançar a galope para acompanhar o ritmo de
Bronwyn, mas teve de desviar-se porque ela desmontou sem delongas e
começou a abraçar as pessoas – homens, mulheres, crianças, inclusive o
ganso gordo de um miúdo. Ficou sensibilizado. Até então, só lhe conhecia a
faceta de irritação permanente. Ela afirmara que o clã representava toda a
sua vida, mas ele nunca visualizara o clã como indivíduos concretos.
Bronwyn parecia conhecê-los por nome, um por um, aos filhos, às suas
maleitas, queria saber se lhes faltava algo.
Stephen esticou-se na sela e olhou em volta. Os terrenos eram pobres. A
terra remexida pelo cavalo só tinha turfa. E, contudo, discernia campos
cultivados. A cevada parecia crescer atrofiada mas não desistia. As casas
eram pequenas e de aspeto miserável.
Stephen comparou aquelas pessoas com os servos dos terrenos do irmão.
A terra pertencia a Bronwyn mas elas é que a cultivavam. A mesma
situação dos servos.
Voltou a olhar para ela, que aceitava uma fatia de queijo de uma mulher.
Aquelas pessoas eram servas, e contudo ela tratava-as como se fizessem
parte da família. Não era capaz de imaginar uma única dama inglesa que
tocasse nos servos, muito menos abraçá-los. As pessoas tratavam a sua
senhora por Bronwyn, e não Lady Bronwyn como era seu direito.
– Tem má cara, amigo – disse Tam ao lado dela. – Os nossos costumes
desagradam-lhe?
Stephen retirou o chapéu e passou a mão pelo cabelo espesso.
– Ainda tenho muito que aprender. Nunca pensei no que significaria
realmente um clã. Imaginava que os membros do clã fossem como os meus
homens, de famílias nobres.
Tam fitou-o por um instante.
– Clã é uma palavra gaélica, significa filhos. – Os olhos reluziram. – E
quanto à nobreza, pergunte a qualquer escocês se este não lhe identifica um
rei escocês entre os seus antepassados.
– Mas a pobreza… – começou Stephen, calando-se com medo de ofender
Tam.
O maxilar do homem endureceu.
– Somos pobres por causa dos ingleses e da terra que Deus nos deu. Mas
fique a saber que na Escócia o valor de um homem mede-se pelo seu
íntimo, e não pelo ouro no bolso.
– Obrigado pelo conselho, que não esquecerei – Stephen incitou o cavalo
a avançar, até se colocar ao lado de Bronwyn. Ela lançou-lhe um mero olhar
rápido, virando-se depois para continuar a ouvir uma mulher falar-lhe das
novas tinturas para roupas.
Uma por uma, as pessoas começaram a calar-se, observando-o. Trazia
roupas diferentes A maior parte dos escoceses nada trazia nas pernas, nem
sapatos nem meias-calças, e outros usavam as meias curtas como Tam.
Mas o olhar de Stephen fixara-se nas mulheres. Não tinham as feições
resguardadas e pálidas das damas inglesas, mas um bronzeado dourado de
uma vida ao relento. Vista reluzente, cabelos gloriosos à solta por cima de
cinturas estreitas e cintadas.
Stephen saltou do cavalo, tomou a mão de Bronwyn na sua esquerda, e
esticou a mão direita.
– Permitam-me que me apresente. Sou o Stephen Montgomery.
– Um inglês! – soltou um homem ao lado de Stephen, com voz virulenta
de ódio.
– Sim, inglês! – respondeu Stephen com ênfase, os olhos azuis fixos e
firmes nos do escocês.
– Calma! – disse Tam. – Deixem-no em paz. Ele atacou-me, pensando
que eu queria fazer mal à Bronwyn.
Várias pessoas sorriram com a afirmação absurda. Era óbvio quem
ganhara, pois Tam pesava pelo menos mais trinta quilos do que o esquálido
Stephen.
– Ele é que ganhou – disse Tam lentamente. – Quase me partiu o nariz, e
encostou-me uma faca à garganta.
As pessoas ficaram caladas por instantes, como se não acreditassem em
Tam.
– Bem-vindo, Stephen – anunciou uma das jovens bonitas, apertando a
mão esticada.
Stephen pestanejou várias vezes, ao ser tratado pelo nome próprio, mas
sorriu e começou a apertar outras mãos.

– Não vai correr tão bem com os meus homens – alertou Bronwyn
enquanto cavalgavam lado a lado pela estrada que ligava a península ao
continente. A estrada era tão estreita que só permitia dois cavalos de cada
vez. Stephen lançou um olhar nervoso à escarpa íngreme à sua esquerda.
Um passo em falso e cairia pela berma. Bronwyn mostrava-se insensível ao
perigo, pois atravessara a estreita estrada a vida inteira. – Os meus homens
não se deixam conquistar com a mesma prontidão das minhas mulheres –
disse Bronwyn. Encarou-o, notando que ele não parava de olhar
nervosamente para o mar. Sorriu e incitou o cavalo a correr ao encontro do
dele.
A montada de Stephen afastou-se do de Bronwyn; sentindo uma pata
entrar no vazio ao lado da estrada, entrou em pânico e recuou. Stephen
debateu-se em desespero por um instante para controlar o animal e evitar
escorregar para o vazio tão próximo.
– Raios te partam! – berrou Stephen quando recuperou o controlo do
corcel.
Bronwyn riu-se dele e olhou por cima do ombro.
– Os costumes escoceses são demasiado agrestes para ti?
Stephen enfiou as esporas no cavalo. Bronwyn viu-o cavalgar contra si
mas não reagiu a tempo. Stephen agarrou-a pela cintura e puxou-a para a
sela.
– Solta-me! – exigiu ela. – Os meus homens estão a ver-nos!
– Ainda bem! Então viram a tua tentativa de me humilhares. Ou querias
que eu caísse?
– Para depois termos o exército do rei Henrique em cima de nós? Não,
não desejo a tua morte em terras escocesas.
Stephen soltou uma exclamação perante tanta sinceridade.
– Eu estava a pedi-las. – Pousou um dedo nos lábios dela quando
Bronwyn tentou falar. – Mas não pedi esta humilhação, por isso vais pagá-
las. Quantos outros homens entraram em Larenston com uma MacArran na
sela?
– Trouxemos muitos mortos de volta, normalmente mortos pelos… – Ele
calou-a com um beijo.
Contra a própria vontade, Bronwyn agarrou-se a ele, braços em volta do
pescoço, lábios colando-se esfomeados aos seus. Ele apertou-a contra si,
acariciando-lhe as costas. Sentiu-lhe a pele quente pelo tecido da camisa.
Afinal, o traje escocês era preferível ao inglês. Os tecidos pesados de
Inglaterra escondiam a pele da mulher.
Stephen foi o primeiro a emergir do transe. Estavam a ser observados.
Abriu os olhos, ergueu ligeiramente a cabeça, sem deixar de beijar
Bronwyn. Não percebera que o cavalo continuara a galgar o trilho em
direção às guaritas do portão. Vários homens os cercavam – homens sérios
com ar solene, expressões fechadas, vazios de emoção.
– Bronwyn, querida – disse Stephen baixinho.
Bronwyn reagiu de imediato. Afastou-se dele num sacão, fitou os seus
homens.
– Douglas – murmurou e desceu do cavalo para os braços deste, que a
esperava. Cumprimentou os homens um por um.
Stephen desmontou lentamente e puxou o cavalo, entrando pelo portão
atrás dela. A grade de ferro estava levantada. Os homens não lhe dirigiram a
palavra nem se viraram para ele, mas Stephen estava bastante ciente da
forma como o cercavam com ar solene e desconfiado. Bronwyn avançava
em frente, rindo em conjunto com os seus homens, colocando perguntas,
recebendo respostas.
Stephen sentia-se um estranho, forasteiro naquele ambiente. Os homens a
seu lado olhavam-no com desconfiança, e ele sentia a hostilidade no ar.
Vestiam-se de forma diferente dos homens do vale. Alguns traziam meias
curtas e calçado como Tam, outros, botas altas até aos joelhos. Todavia,
todos tinham das pernas do joelho à coxa, descobertas.
Atravessando o portão, o terreno alargou-se e passaram por várias
construções pequenas até alcançarem a casa principal. Stephen reconheceu
as construções circundantes como uma vacaria, uma forja, estrebarias. Até
havia um pequeno quintal. Um local como este aguentaria um cerco
prolongado.
O interior da casa era simples e espartano. As paredes de pedra continham
humidade, não estavam pintadas nem revestidas. As janelas minúsculas
pouca luz deixavam entrar. O interior do castelo era frio, mais frio ainda
que a friagem de outono, e contudo não se viam lareiras acesas.
Bronwyn sentou-se numa cadeira sem almofada.
– Bem, Douglas, conta-me o que se tem passado.
Stephen ficou de lado, a observar. Ninguém perguntou se ela estava
confortável nem sugeriu que repousasse.
– Os MacGregors fizeram novas pilhagens. Levaram seis cabeças de gado
há duas noites.
Bronwyn franziu a testa. Deixaria para depois o tema dos MacGregors.
– E problemas dentro do clã?
O homem chamado Douglas afagou distraidamente uma madeixa
comprida.
– Os terrenos junto ao lago estão novamente a ser contestados. O Robert
diz que o salmão lhe pertence, mas o Desmond exige ser pago pelo peixe.
– Já desembainharam as espadas? – perguntou Bronwyn.
– Não, mas não anda longe disso. Envio alguém para resolver a questão?
Um pouco de sangue nos locais certos acaba com qualquer briga.
Stephen começou a levantar-se. Ele estava habituado a tomar decisões
daquela natureza. A mão de Tam no braço interrompeu-o.
– Não te ocorre mais nada, a não ser usares a espada, Douglas? –
perguntou ela zangada. – Nunca te ocorre que os homens têm motivo para
brigarem? O Robert tem sete filhos para alimentar, e o Desmond uma
esposa que lamenta a falta de crianças. Deve haver uma forma de resolver
os problemas deles.
Os homens lançaram-lhe olhares vazios.
Ela suspirou.
– Diz ao Robert que envie quer o filho mais velho quer o mais novo para
serem criados pelo Desmond. O Robert não exigirá peixe que sirva para
alimentar os próprios filhos, e a mulher do Desmond deixará de chorar a
falta de crianças. Bem, e que mais aconteceu entretanto?
Stephen sorriu perante aquela sensatez. Proveniente do amor e
conhecimento do clã. Era incrível, observá-la no seu ambiente familiar. Ela
parecia rejuvenescer a cada instante. O queixo já não se esticava com raiva
para quem a rodeava. Endireitava os ombros mas não para desviar golpes
ou respostas contundentes.
Observou os rostos dos homens à sua volta. Respeitavam-na, davam-lhe
ouvidos, e cada decisão sua era sensata e defendia os interesses do clã.
– O Jamie ensinou-a bem – disse Tam baixinho.
Stephen anuiu. Era um lado totalmente diferente dela, e que ele jamais
imaginara existir. Ele conhecia a vertente zangada, impulsiva, cheia de
ódio, dada a usar uma faca e exigir o impossível. Lembrou-se de ter-se rido
dela quando caiu no ribeiro.
Subitamente sentiu uma onda de ciúmes. Nunca vira esta mulher que se
sentava tão calma entre os homens e tomava decisões que afetavam as suas
vidas. Conheciam um lado dela que ele jamais imaginara.
Bronwyn ergueu-se, avançando para a escadaria ao fundo do corredor.
Stephen seguiu-a. Subitamente ocorreu-lhe que os homens ignoravam como
ela reagia se tocada na dobra dos joelhos. Sorriu para si mesmo, mais
tranquilo.

– Olha para ele – disse Bronwyn com repúdio. Era manhã cedo, e o ar de
final de outono mostrava-se fresco. Fitou Stephen da janela dos aposentos
do terceiro piso. O homem estava no pátio, e quer ele quer Chris
envergavam armadura completa. Os escoceses em volta observavam-nos
num silêncio soturno.
Tinham passado duas semanas desde a boda, e durante esse tempo
Stephen fizera um esforço tremendo para ensinar aos homens o combate à
moda inglesa. Ela ficara a vê-lo treinar os homens sobre a importância de
usarem proteções. Oferecera-se para comprar armaduras para quem
treinasse duramente durante muito tempo. Mas os escoceses não
comentaram e não pareciam interessados no prémio valioso de uma
armadura quente e pesada. Preferiam usar os trajes selvagens, que
expunham metade do corpo. A única concessão que Stephen deles obteve,
foi convencê-los a usar uma cota de malha debaixo das mantas.
Bronwyn afastou-se da janela, sorrindo para si mesma.
– Não precisas de ficar tão contente – retorquiu Morag. – Estes teus
homens podiam trabalhar um pouco. Passam muito tempo sentados. O
Stephen fá-los mexerem-se.
Bronwyn não deixou de sorrir.
– É um homem obstinado. Ontem atreveu-se a dizer aos meus homens
que a Escócia está sempre em guerra e tentou ensiná-los a protegerem-se.
Como se não soubéssemos! É por causa dos ingleses que...
Morag levantou a mão em jeito de defesa.
– Aborrece-lo com os teus sermões intermináveis mas a mim não. O que
te incomoda tanto nele? É a forma como te faz gritar durante a noite? Tens
vergonha da tua paixão pelo inimigo?
– Não tenho… – começou Bronwyn mas calou-se quando ouviu o
estalido suave da porta atrás de Morag. Virou-se e encarou Stephen. Teve de
admitir para si mesma que ficava incomodada com a forma como o corpo
reagia ao toque dele. Tremia sempre que o sol se punha. Tinha o cuidado de
nunca mostrar a Stephen este sentimento. Nunca tomou a iniciativa nem lhe
dava afeto; afinal, ele era o inimigo, pertencia à raça que lhe matara o pai.
Era fácil recordar durante o dia que era o inimigo, pois vestia-se como um
inglês, falava como um inglês, pensava como um inglês. A diferença era
berrante, para ela e para os seus homens. Mas chegada a noite, quando
Stephen lhe tocava, ela olvidava quem ele era e também quem ela própria
era.

***

– Stephen! – exclamou Chris, ao atravessarem o campo coberto de areia.


Pararam na berma da península, contemplando o mar. – Tens de parar com
isso. Não percebes que eles não se interessam pelos teus ensinamentos?
Stephen retirou o elmo. O vento frio banhou o cabelo pejado de suor.
Todos os dias ficava frustrado por tentar lidar com os homens de Bronwyn.
Os homens dele treinavam constantemente, aprendendo a manusear as
armaduras pesadas e as armas. Mas os homens de Bronwyn mantinham-se à
margem, fitando os ingleses como se fossem animais do jardim zoológico
do rei Henrique.
– Deve haver uma forma de os convencer! – disse em surdina.
Subitamente ouviu um homem a correr na direção deles.
– Meu senhor – disse um dos homens de Stephen. – Houve um assalto ao
gado dos MacArran a norte. Os homens estão já a preparar os selins.
Stephen anuiu em resposta. Agora teria hipótese de mostrar aos escoceses
que tipo de soldados eram os cavaleiros ingleses. Estava habituado a
proteger as terras de salteadores e ladrões.
A pesada armadura de aço impossibilitava qualquer movimento brusco. O
pajem aguardava ao lado do seu cavalo, que também estava coberto com
proteções. Era um animal pesado, fruto de cruzamentos ao longo de séculos
para conseguir sustentar o peso de um homem completamente equipado. O
cavalo nunca seria rápido mas precisava de se manter firme durante as
batalhas mais aguerridas e obedecia aos comandos que o dono lhe
transmitia com os joelhos.
Quando Stephen e os homens equipados montaram finalmente, os
escoceses já tinham partido. Stephen soltou um esgar, percebeu que tinha de
impor disciplina e castigos.
Decorreram anos até Stephen conseguir recordar os acontecimentos dessa
noite nas charnecas escocesas sem uma mistura de vergonha e espanto.
A noite caíra entretanto quando ele e os homens alcançaram o pasto de
onde os MacGregors levaram o gado. O barulho que faziam ao cavalgar
ecoava pelos campos. As armaduras retiniam; os cascos pesados dos corcéis
eram trovões.
Stephen pensava que os MacGregors os atacariam como os ingleses, num
combate corpo-a-corpo. Mas foi com consternação que ele e os homens, nas
suas montadas, observaram a batalha que se seguiu – muito diferente do que
ele imaginara ou tinha sequer presenciado na vida.
Os escoceses desmontaram e esconderam-se no arvoredo. Descartaram as
mantas dos ombros, ficando livres para correr nas camisas soltas. Surgiram
berros das árvores, e depois o som das Claymores escocesas a golpearem
aço.
Stephen indicou por gestos aos homens que desmontassem, seguindo
depois o som dos escoceses para as árvores. Mas os escoceses já tinham
mudado de lugar. As armaduras pesadas tornavam os ingleses lentos e
hesitantes.
Stephen olhava em volta, confuso, quando um dos homens de Bronwyn
saltou das sombras.
– Corremos com eles – disse o escocês, a boca torcida num sorriso
trocista.
– Quantos feridos?
– Três lesionados, nenhum morto – disse de imediato, e sorriu. – Os
MacArrans são demasiado rápidos para os MacGregors. – O homem estava
corado com o entusiasmo da batalha. – Chamo os homens para o ajudarem
a montar? – perguntou, sorrindo abertamente para Stephen na armadura.
– Que grande…! – começou Chris. – Espeto-te uma espada, aqui mesmo.
– Anda, cão inglês – espicaçou o escocês. – Corto-te a garganta antes de
conseguires mexer as dobradiças desse caixão de aço.
– Parem! – ordenou Stephen. – Chris, guarda a espada. E tu, Douglas,
cuida dos feridos – disse-o com voz pesada.
– Ele não pode ficar impune – disse Chris. – Como é que queres ensiná-
los a respeitarem-te?
– Ensiná-los! – retorquiu Stephen. – Um homem não ensina outro homem
a ser respeitado. Tem de conquistar esse respeito. Regressemos a Larenston.
Isto requer ponderação.
Bronwyn remexeu-se na cama, enfiando o punho fechado na almofada.
Continuava a dizer a si mesma que não lhe interessava que Stephen
preferisse passar a noite noutro lado. Não lhe importava que escolhesse
outra. Pensou nos membros do clã. A filha de Margaret era bonitinha, e
ouvira alguns homens vangloriarem-se de terem passado uns bons bocados
com ela.
Tinha de falar com Margaret quando raiasse o dia! Não era bom ter uma
rapariga dessas à solta.
– Raios! – exclamou em voz alta, e Rab rosnou. Endireitou-se na cama, as
cobertas deslizando dos seios adoráveis. A cama solitária estava fria. Morag
tinha-lhe contado como decorrera o assalto ao gado. Descrevera os
MacGregors de forma colorida. Mas sibilou quando Bronwyn manifestou o
seu desejo que Stephen não fosse morto, para não despertar a ira do rei
Henrique.
Agora não parava de fitar a porta, franzindo o cenho ocasionalmente.
Quando a porta começou a abrir-se, susteve a respiração. Podia ser Morag
com mais novidades. Mas voltou a respirar quando Stephen entrou, cabelo e
camisa molhados da água do poço.
Stephen mal olhou para ela. A sua vista azul tinha escurecido,
acompanhando o vinco entre as sobrancelhas. Sentou-se pesadamente na
berma da cama, começando a retirar as roupas. Não parecia muito atento,
pois fazia pausas demoradas.
Bronwyn tentou encontrar assunto.
– Tens fome? – Ele não respondeu. Ela deslocou-se pela cama até se
sentar ao lado dele. Bronwyn envolvera parte do corpo no lençol, deixando
o tronco desnudo. – Perguntei se tinhas fome – disse novamente, num tom
mais alto.
– Oh? – resmungou Stephen, descalçando a bota. – Não sei. Acho que
não.
Bronwyn quis perguntar o que se passava, mas jamais o faria. Pouco lhe
importavam os problemas do inglês.
– Algum dos meus homens ficou ferido no assalto ao gado?
Stephen voltou a não dar resposta, e ela deu-lhe um encontrão no ombro.
– Ficaste surdo? Fiz-te uma pergunta.
Stephen virou-se para ela, como se só então notasse a sua presença. Os
olhos percorreram o corpo nu a seu lado, mas não mostrou nele qualquer
interesse, enquanto se levantava e retirava o cinto.
– Ninguém ficou ferido a sério. Uns pontos no braço de um dos homens,
mas nada mais.
– Quem? Quem é que precisou de pontos?
Stephen afastou a pergunta com um gesto e enfiou-se nu na cama.
Assentou a cabeça nos braços e fitou o teto. Não tentou agarrá-la.
– Acho que se chama Francis – disse por fim.
Bronwyn continuava sentada no leito, com o cenho franzido. O que se
passava com ele?
– Os nossos costumes escoceses meteram-te medo, inglês? Os meus
homens foram demasiado fortes para ti, ou demasiado rápidos?
Para espanto dela, Stephen não mordeu a isca.
– Demasiado rápidos – disse ele com ar muito sério, ainda atento ao teto.
– Mexiam-se rapidamente e sem quaisquer problemas. Claro, em Inglaterra
jamais resistiriam, porque um punhado de cavaleiros armados cortaria
cinquenta deles às postas, mas aqui...
– Cinquenta! – exclamou ela. No segundo imediato, esmurrou com força
o largo e exposto peito de Stephen com ambas as mãos. – Nunca virá o dia
em que um inglês consiga derrubar cinquenta escoceses – praticamente
gritou enquanto dava murros contra o peito rijo.
– Ouve! Para com isso! – disse Stephen, prendendo-lhe os punhos. – Já
me bastam as nódoas negras que tenho, não preciso de mais.
– Deixo-te com mais do que nódoas negras – disse ela, debatendo-se
contra o aperto das mãos.
Os olhos de Stephen acenderam-se. Puxou-lhe as mãos, contra si. Os
seios dela encostaram-se ao seu peito.
– Então deixa – disse ele, roucamente, finalmente prestando-lhe atenção
plena. Soltou-lhe uma das mãos para lhe acariciar o cabelo. – Irás trazer-me
sempre de volta à realidade? – perguntou, tocando-lhe na têmpora. – Aqui
estava eu, preocupado com o maior problema do universo, e tu fazes a tua
magia de chamares a minha atenção para a tua pele adorável e os teus olhos
– disse ele, deslizando os dedos – e os teus lábios.
Bronwyn sentiu o coração bater com força. A respiração dele era tão
calma e acolhedora. Tinha o cabelo ainda molhado, e um caracol colado à
orelha, no qual lhe apetecia tocar. Mas impedia-se de tomar qualquer
iniciativa.
– E preocupava-te algum problema de maior? – perguntou ela com ar
indiferente, como se não tivesse qualquer importância.
Ele imobilizou os dedos, capturou o olhar no seu.
– Noto preocupação na tua voz? – perguntou ele calmamente.
– Jamais! – cuspiu ela, rodando na cama para se afastar dele. Pensou que
Stephen se riria, divertido, mas ele manteve-se calado. Bronwyn teve então
vontade de se virar, observá-lo, mas continuou de costas. Ele ficou muito
quieto, e passados instantes, começou a respirar de forma calma e
compassada, indicando que adormecera. Ela ficou imóvel, e começou a
sentir lágrimas no canto dos olhos. Por vezes, a solidão golpeava-a com
tanta força que não sabia o que fazer. Na sua ideia de casamento, duas
pessoas partilhavam vidas e amor. Mas ela casara com um inglês!
Stephen virou-se subitamente, e passou um braço pesado em volta dela,
cingindo-a contra si. Bronwyn tentou manter-se tensa e distante dele, mas
contra a própria vontade, esticou o traseiro e encostou-se ao corpo
masculino.
– Assim atrapalhas o descanso de um homem – sussurrou Stephen, depois
levantou a cabeça e beijou-lhe a têmpora. – O que é isto? – perguntou. –
Lágrimas?
– Claro que não. Entrou-me qualquer coisa no olho.
Ele virou-a para si.
– Mentes – disse diretamente. Perscrutou-lhe o rosto, tocou na cova do
queixo. – Somos estranhos um para o outro – sussurrou. – Quando é que
nos tornaremos amigos? Quando é que te abrirás comigo? Quando é que me
contarás o motivo das tuas lágrimas?
– Quando fores escocês! – disse ela com a firmeza de que era capaz. Mas
a proximidade de Stephen distorceu-lhe a intenção, como se fosse um
suplício e não uma exigência impossível de cumprir.
– Feito! – anunciou com grande confiança, como se conseguisse mesmo
tornar-se escocês.
Ela quis rir-se dele, dizer-lhe que isso jamais aconteceria – nem ser
escocês nem amigo dela. Mas ele puxou-a para si e começou a beijá-la.
Beijou-a como se tivesse todo o tempo do mundo, lenta e indolentemente.
Bronwyn sentiu o sangue latejar-lhe nas veias. Queria puxar Stephen para
si, mas ele manteve-a imóvel. Um tudo-nada afastada do seu corpo, para
conseguir acariciar-lhe os peitos, as costelas e o ventre.
Ela curvou-se em arco, para trás, pernas entrelaçadas nas dele, coxas
apertando a coxa masculina. A mão de Stephen desceu para as pernas dela,
e ele sorriu ao senti-la respirar fundo.
– A minha bela, bela esposa – sussurrou ao passar as unhas suavemente
ao longo do tendão no verso do joelho dela. – Oxalá conseguisse satisfazer-
te fora da cama.
Ela regressou para ele, procurou-lhe os lábios, e percorreu o pescoço com
a boca. A pele dele tinha um sabor delicioso, salgada do suor, firme mas
macia. Levou a ponta da língua àquela orelha, e ele estremeceu da cabeça
aos pés. Um ronco de riso percorreu-a.
Stephen agarrou-lhe os ombros ferozmente.
– Venha, senhora do clã MacArran. – Empurrou-a para a cama e deitou-se
em cima dela.
Bronwyn arqueou o corpo ao encontro dele, levantando as coxas. Era
escocesa, igual a ele. Agora não esperava pela iniciativa dele, mas ia ao seu
encontro, com tanta paixão como a sua.
Mais tarde, ficaram deitados lado a lado, tão próximos como se fossem
apenas uma pessoa. Bronwyn abriu os olhos, descobrindo o caracol do
cabelo de Stephen sobre a orelha. O mesmo que quisera tocar
anteriormente. Mexeu a cabeça para beijar esse caracol, sentindo o cabelo
macio entre os lábios. Depois afastou-se, corada. Aquele beijo parecia mais
íntimo do que fazer amor.
Stephen sorriu ligeiramente, olhos fechados, ainda adormecido, e puxou-a
para si, ficando em cima dela. Bronwyn respirava com dificuldade mas não
lhe interessava. Respirar não era a prioridade.

Stephen encontrava-se numa casinha de camponeses, aquecendo as mãos


diante da lareira de turfa. O vento soprava com força no exterior, e fora
preciso acendê-la. Tam viera de visita à irmã, ausentando-se alguns dias da
casa de Bronwyn. Sentara-se entretanto no fundo do quarto com paredes de
pedra, uma rede de pesca aberta sobre os joelhos desnudos. Fazia nós, as
mãos grandes puxando o cordame áspero.
– Então quer que o ajude a não fazer figura de parvo – disse Tam com ar
sério.
Stephen virou-se. Ainda não se habituara totalmente à forma como os
escoceses se sentavam ou levantavam conforme queriam, na presença dele.
Estava demasiado habituado a ser «o dono da casa».
– Não colocaria as coisas dessa forma – disse ele. Pensando nos
acontecimentos do assalto ao gado, abanou a cabeça. – Bem, fiz figura de
parvo diante dos meus homens e dos escoceses. Foi como se estivesse
dentro de um caixão de aço, como disse o Douglas.
Tam fez uma pausa, ao apertar um nó.
– O Douglas continua a pensar que devia ser sido escolhido pelo Jamie
para casar com a Bronwyn. – Riu-se ante a expressão de Stephen. – Não te
preocupes, rapaz, que o Jamie sabia o que fazia. O Douglas é dos que
seguem, não dos que lideram. E tem tanto respeito à Bronwyn que jamais
lhe daria ordens.
Stephen riu-se.
– Acho que nenhum homem tem coragem suficiente para lhe dar ordens.
Tam não fez comentários, mas sorriu para si mesmo. Morag vigiava o
casal de perto e dava-lhe informações. Ele só queria ter a certeza de que
Bronwyn não corria perigo junto do inglês. Pelo que Morag lhe contava, era
Stephen que corria perigo de morte… por cansaço.
Tam olhou para cima.
– A primeira coisa a fazer é tirar essas roupas inglesas.
Stephen anuiu; esperava isto.
– E depois tem de aprender a fugir, quer em distância quer em
velocidade.
– Fugir! Um soldado luta, não foge.
Tam fungou de desdém.
– Os nossos modos são outros. A não ser que esteja disposto a aprender,
não me serve para nada.
Com um ar de resignação, Stephen anuiu.
Uma hora mais tarde, começava a arrepender-se. Ele e Tam encontravam-
se à mercê do gélido vento outonal, e Stephen nunca se sentira tão desnudo
na vida. Ao invés das roupagens quentes e pesadas inglesas, usava apenas
uma camisa fina com uma manta atada à cintura. Calçava meias de lã e
botas altas, mas sentia-se nu da cintura para baixo.
Tam deu-lhe uma palmada no ombro.
– Vá, rapaz, que se habitua. Mais cabelo e quase parece um escocês.
– Esta terra é demasiado fria para andarmos com o rabo ao léu –
murmurou Stephen, abrindo a manta e mostrando uma nádega.
Tam riu-se.
– Agora já sabe o que os escoceses usam debaixo da manta. – Depois
ficou sério. – Há uma razão para nos vestirmos assim. A manta esconde um
homem no meio da urze. O traje é fácil de retirar e rápido de vestir. A
Escócia é uma terra húmida, e não podemos ter roupas molhadas coladas à
pele; morreríamos de doenças dos pulmões. A manta é fresca no verão e a
fricção constante nos joelhos aquece no inverno. – Os olhos brilharam de
humor. – E traz ar fresco para as partes vitais.
– Isso é verdade – disse Stephen.
– Ah! Agora parece um homem! – disse Morag atrás dele. Fitou sem
reservas as pernas dele. – Usar aquela armadura fez-lhe músculos.
Stephen sorriu-lhe.
– Se não fosse já casado, ainda pensaria em si.
– E eu até podia aceitar. Embora não quisesse lutar com a Bronwyn por
sua causa.
Stephen lançou-lhe um olhar desanimado.
– Ela oferecia-me a qualquer uma, se pudesse.
– Mas continuava a tê-lo na cama, é isso? – cacarejou Morag antes de se
afastar.
Stephen pestanejou uma vez. A familiaridade dentro do clã não deixava
de surpreendê-lo. Todos pareciam saber a vida de toda a gente.
– Estamos a perder tempo – disse Tam. – Tente correr até ao poste. –
Apontou.
Uma tarefa fácil, pensou Stephen. Afinal, até as crianças corriam, e ele
estava em boa forma. Mas sentiu que os pulmões quase rebentavam depois
da curta corrida. Precisou de vários minutos para acalmar o coração
galopante e recuperar o fôlego. O coração queria saltar pelos tímpanos.
– Tome, beba água – disse Tam, passando-lhe uma concha. – Quando
recuperar o fôlego, tente novamente.
Stephen arqueou um sobrolho, desconfiado.
– Vá, rapaz – disse Tam. – Eu corro consigo. Não vai deixar que um
velho ganhe, pois não?
Stephen arfou, com falta de ar.
– Nunca o chamaria de velho. – Largou a concha. – Vamos embora.
Capítulo Sete

Bronwyn encontrava-se sozinha no fundo das escadas que conduziam ao


cimo da velha torre. Ardiam-lhe os olhos, secos e quase inchados das
lágrimas não vertidas. Agarrava com força uma fivela pesada de prata. Nas
costas via-se a gravação: «Para Ennis, de James MacArran».
Há uma hora, um dos camponeses tinha-lhe trazido a fivela. Bronwyn
recordava-se de quando o pai entregara as fivelas aos três rapazes que
escolhera como seus sucessores. Fora quase uma cerimónia. Tinha havido
comida e bebida, danças, e muito, muito riso. E as constantes provocações
sobre o homem que Bronwyn escolheria para esposo. Ela brincava e ria-se e
dizia que eram todos inúteis, quando comparados com o pai.
Havia Ian, o filho de Tam. Ian era da altura dela, mas maciço como o pai.
Ramsey era louro, de ombros largos, com uma boca que conseguia pô-la
nervosa. Ennis tinha sardas e olhos verdes, e cantava com voz tão doce que
despertava lágrimas.
Apertou a fivela até lhe ferir a palma da mão. Agora estavam todos
mortos. O forte Ian, o bonito Ramsey, o doce Ennis – mortos e enterrados.
Mortos pelos ingleses!
Virou-se e subiu a correr as escadas até ao piso superior. Tirou uma chave
do molho à cintura e destrancou uma porta de carvalho. A porta pesada
gemeu em protesto, ao rodar nas dobradiças com falta de óleo.
Julgou-se preparada para a visão do quarto, mas não estava. Quase
esperava ver o pai levantar a cabeça e sorrir-lhe. Não voltara àquele quarto
desde a sua morte, temendo revê-lo.
Entrou na divisão e olhou em volta. Havia uma manta caída numa
cadeira, cujo fundo estava gasto e usado. Armas penduradas nas paredes de
pedra, machados, Claymores, arcos. Tocou no arco favorito do pai, na parte
usada. Avançou devagar para a cadeira ao lado de uma janela. O couro tinha
ainda a marca do corpo de Jamie.
Bronwyn sentou-se na cadeira, a poeira rodopiando à sua volta. O pai
costumava entrar nesta sala para pensar e ficar a sós. Não permitia a entrada
de mais ninguém, a não ser dos dois filhos. Bronwyn mordia uma seta
tirada do alforge do pai quando lhe nasceram os dentes.
Percorreu os objetos conhecidos com o olhar, sentindo a cabeça começar
a doer. Desaparecera tudo. O pai, morto, o irmão que a odiava de morte, e
os jovens belos que teria escolhido, apodreciam numa campa algures.
Já não havia em Larenston nem o amor nem a alegria. O rei inglês fizera-
a casar com um dos seus assassinos, e a felicidade extinguira-se.
Os ingleses!, pensou. Julgavam ser donos do mundo. Odiava a forma
como os homens de Stephen o tratavam por Lorde e o saudavam com
vénias. Eram frios, os ingleses. Tentava inúmeras vezes falar-lhes dos
costumes escoceses mas eles eram demasiado vaidosos para prestarem
atenção.
Sorriu para si mesma. Pelo menos, os homens dela reconheciam a sua
senhora. Riam-se de Stephen pelas costas. Passara a manhã a ouvir histórias
do assalto ao gado roubado na noite anterior. Que Stephen fora ridículo,
com a sua armadura idiota.
Um ruído no pátio chamou-lhe a atenção. Dirigiu-se à janela e espreitou
para baixo.
De início, não reconheceu Stephen. Pensava apenas que era um homem
bem constituído com autoconfiança excecional. A manta atada à cintura
esvoaçava entre as suas pernas com garbo. Mas arfou de indignação ao
perceber que era ele, Stephen, o tal que avançava com tamanhã arrogância,
usando o traje escocês como se tivesse direito a isso.
Vários dos homens dela encontravam-se no pátio, e não tentaram saudá-
lo, para agrado de Bronwin. Sabiam reconhecer um impostor.
O sorriso abandonou-lhe o rosto quando viu um homem, e depois outro,
avançarem para Stephen. Viu-o sorrir e falar, e depois levantar a borda da
manta. Ouviu ecos de risadas.
Douglas – o seu Douglas! – avançou e ofereceu o braço a Stephen. Este
agarrou-o e o par enganchou antebraços, tornozelos e começaram a lutar em
pé. Mal tinha passado um minuto e Douglas já se prostrava no solo.
Ela viu com desagrado Stephen desafiar os homens, um por um. Cortou-
se-lhe a respiração quando a filha de Margaret deu um passo em frente,
ancas a ondular em jeito provocatório. Levantou a saia para exibir os
tornozelos esbeltos e demonstrou a Stephen alguns passos de dança das
Terras Altas.
Bronwyn afastou-se da janela e abandonou o quarto, trancando a porta.
Desceu as escadas, incutindo a cada passo um vigor nascido da raiva.
Stephen apareceu diante dela. Cabelo desgrenhado, faces rosadas do
exercício ao ar frio. Olhos faiscantes, a brilhar. Atrás de si, vários dos
homens dele e de Bronwyn, bem como raparigas bonitas.
Ele fitou-a, qual rapaz à procura de agradar. Esticou a perna.
– Estou aprovado? – brincou.
Ela fitou-o intensamente por um segundo, ignorando a perna musculada.
– Enganas alguns, mas para mim és inglês e inglês ficarás. Trocaste de
roupa mas não de alma. – Virou-se e afastou-se de todos eles.
Stephen ficou parado por instantes, testa franzida. Talvez pretendesse
fazê-los esquecer a sua natureza inglesa. Talvez…
Tam bateu-lhe no ombro.
– Não fique assim.
Stephen virou-se e descobriu que os escoceses atrás dele sorriam.
– Ela pode ser uma boa senhora, mas não deixa de ser mulher – continuou
Tam. – Viu-o dançar com outras mulheres e ficou incomodada.
Stephen tentou sorrir.
– Oxalá tenha razão.
– Vá ter com ela e dê-lhe uma palavrinha.
Stephen quis responder, mas calou-se. Tam não precisava de saber que
Bronwyn não apreciava o marido. Subiu as escadas atrás dela. Encontrou-a
junto a uma costureira, comandando a disposição da tecelagem de uma
nova manta.
– Stephen – saudou uma das mulheres –, estás com bom aspeto. – A
rapariga bonita tinha um ar quase lascivo ao vê-lo nas curtas vestes.
Stephen virou-se para sorrir à mulher, mas apercebeu-se de Bronwyn pelo
canto do olho, que quase rosnou para si ao sair da sala. Alcançou-a no cimo
das escadas.
– Qual é o teu problema? Pensei que estivesses contente com o meu traje.
Disseste que eu devia tornar-me escocês.
– O traje não faz de ti escocês. – Desviou-se dele.
Stephen agarrou-lhe o braço.
– Que se passa? Estás zangada por algum motivo?
– Porque estaria eu zangada? – perguntou ela, com a voz pejada de
sarcasmo. – Casei com o meu inimigo. Sou…
Stephen encostou o dedo aos lábios dela.
– Algo te incomoda – disse mansamente. Examinou-lhe o rosto, mas ela
baixou a vista para ocultar a dor que ali se manifestava. Ele agarrou-lhe nos
braços e fez descair as mãos até tocar nas dela. A mão esquerda de Bronwin
agarrava com força um objeto. – O que é isto? – perguntou ele com
delicadeza.
Ela tentou retirar a mão mas ele obrigou-a a abri-la. Fitou a fivela e leu a
inscrição.
– Alguém te deu isto hoje?
Ela anuiu silenciosamente.
– Pertencia ao teu pai?
Ela manteve a vista baixa e só conseguiu anuir.
– Bronwyn – disse ele, com a voz embargada de emoção – Olha para
mim. – Levou a mão gentilmente ao queixo dela, levantou-lhe a cara. –
Peço imensa desculpa.
– Como podias tu saber? – retorquiu ela, desviando-se dele num ímpeto.
Silenciosamente, amaldiçoou-se por cair no engodo que ele representava,
por deixar-se afetar por aquela voz e aquela presença.
– Sei o que é perder um pai e uma mãe – disse ele com paciência. –
Fiquei destroçado, tal como tu.
– Mas eu não matei o teu pai!
– Nem eu matei o teu! – respondeu firmemente. – Ouve-me, ouve-me por
uma vez que seja, como homem e não foi um peão político. Casámos. Está
consumado. Não se pode voltar atrás. Podemos ser felizes, sei que
podemos, se ao menos nos deres uma hipótese.
A expressão dela endureceu, e a vista enregelou-se.
– Para te vangloriares junto dos teus homens, que tens uma escocesa à tua
mercê? Tentarás conquistá-los, e às minhas mulheres, para que tirem o teu
partido, tal como fizeste hoje?
– Conquistá-los! – começou Stephen. – Raios te partam! Passei o dia a
correr, literalmente, neste clima frio com as pernas à mostra e o rabo
também, para dizer a verdade, só para te agradar e aos homens que são tudo
para ti. – Empurrou-a para longe de si. – Vá, afoga-te no teu ódio. Que te
aqueça a cama nas noites frias. – Virou-lhe as costas e começou a andar.
Bronwyn ficou muito quieta por instantes. Depois, aos poucos, começou
a descer as escadas. Queria confiar nele. Precisava de um marido em quem
confiar. Mas seria capaz disso? O que aconteceria se as suas terras fossem
atacadas por bandos de ingleses? Stephen ergueria a espada contra a própria
gente?
Sabia bem a reação que ele lhe causava. Seria fácil esquecer as diferenças
entre os dois e sucumbir aos seus doces toques, à sua voz rica. Mas ela
precisava de estar atenta e cautelosa, e não com os sentidos entorpecidos.
Não podia dar-se a esse luxo. Não podia arriscar a vida do seu povo, apenas
para gozar de um período de luxúria na cama com um homem que podia
revelar-se um espião.
Sentou-se no jardim pequeno atrás da casa de pedra alta. Não podia
confiar nele. Afinal, talvez quisesse usá-la, fazê-la confiar. Ele tinha irmãos.
Talvez os chamasse, mal abrisse uma brecha nas defesas de Bronwyn? Iria
pavonear-se diante dos irmãos, afirmando que ela lhe obedecia em tudo,
que ela se deixava conquistar com um beijo na dobra dos joelhos?
Levantou-se e começou a avançar rapidamente para a fronteira da
península. O mar fustigava os rochedos, e abria o horizonte ao longo de
quilómetros. Era uma grande responsabilidade, ser a chefe de um clã.
Muita, muita gente dependia dela para proteção e, se fosse esse o caso,
também para comer. Esforçava-se por conhecer o seu clã e compreendê-lo.
Não podia baixar as defesas nem por um instante. Portanto, sempre que
Stephen a acariciava e a agarrava, ela teria de proteger-se contra ele, contra
o assalto das emoções que tentavam dominá-la. Só escutaria o coração
quando soubesse que podia confiar nele.
– Bronwyn.
Ela virou-se.
– O que se passa, Douglas? – Fitou os olhos castanhos do jovem.
Discerniu a pergunta não colocada, a mesma que encontrava em todas as
expressões dos seus homens. Não sabiam se podiam confiar em Stephen ou
não, e procuravam a opinião dela. Além disso, também sobre ela haveria
opiniões. Se se enganasse, não voltariam a confiar nela.
– Fiquei a saber que os MacGregors planeiam novo assalto ao gado esta
noite.
Bronwyn anuiu. Douglas tinha acesso a um informador.
– Contaste a mais alguém?
Douglas fez uma pausa, percebendo a intenção da pergunta, pois referia-
se a Stephen.
– Ninguém.
Ela encarou o mar.
– Logo à noite, serei eu a chefiar os homens, e mostraremos aos
MacGregors quem são os MacArrans. Não se riem de mim novamente.
Douglas sorriu.
– Vai ser bom ter-te a nosso lado novamente.
Ela fitou-o.
– Não contes a ninguém sobre os nossos planos. A ninguém! Entendeste?
– Sim, entendi. – Virou-se e deixou-a.

A comprida mesa de jantar encontrava-se tapada de comida. Stephen


olhou desconfiado para tanta abundância, porque o pendor escocês de
Bronwyn para a frugalidade fá-la-ia montar uma mesa mais modesta. Ela
não parou de sorrir-lhe durante o jantar. Tal surpreendeu-o, pois assumiu
que continuaria zangada por causa dos acontecimentos da tarde. Mas talvez
tivesse escutado as palavras dele e se dispusesse a dar-lhe uma hipótese.
Reclinou-se na cadeira e passou a mão pela perna dela. Sorriu ao sentir o
sobressalto.
Ela virou-se para ele, olhar manso e caloroso, lábios entreabertos, e
Stephen sentiu o corpo reagir. Debruçou-se para ela.
– Não estamos sozinhos – disse ela, uma nota de tristeza na voz.
– Vamos para o piso de cima, então.
Ela sorriu sedutoramente.
– Daqui a pouco. Prova a nova bebida que preparei. É uma mistura de
vinho com sumo de frutas e uma especiaria. – Passou-lhe um cálice de
prata.
Stephen mal sentiu o que bebeu. Bronwyn nunca o tinha olhado assim; o
sangue fervia-lhe nas veias. As pestanas compridas fecharam-se sobre
aqueles olhos que soltavam um esplendor de pérolas azuis. A ponta da
língua rosada humedeceu o lábio inferior, e Stephen sentiu arrepios na
espinha. Então, aquela era a Bronwyn quando tinha vontade!
Cobriu a mão dela com a sua, tendo de se controlar para não a apertar e
partir-lhe os dedos.
– Vem comigo – sussurrou com voz rouca.
Antes de chegar ao fim das escadas, começou a sentir-se sonolento. Ao
alcançar a porta do quarto, mal foi capaz de manter os olhos abertos.
– Passa-se alguma coisa – sussurrou, esforçando-se por falar.
– É só cansaço – disse ela com compreensão. – Passaste grande parte do
dia a treinar com o Tam, e ele consegue desgastar um homem. Dou-te uma
ajuda. – Passou um braço em volta da cintura dele, conduzindo-o para a
cama.
Stephen colapsou na doçura do leito. Os membros estavam pesados e
inúteis.
– Desculpa, eu…
– Caluda – disse Bronwyn mansamente. – Descansa. Vais sentir-te melhor
se dormires.
Stephen não teve remédio, a não ser obedecer-lhe e deixar-se ir.
Bronwyn fitou-o por instantes, com o cenho franzido. Oxalá não tivesse
exagerado na droga entorpecedora que deitara na bebida. Mordeu-lhe a
consciência vê-lo ali tão calmo. Mas ela tinha de garantir que ele não
interferiria. Para mostrar aos MacGregors que não podiam roubar-lhe o
gado sem sofrerem as consequências.
Virou-se para sair do quarto mas ainda olhou para trás. Suspirando,
descalçou-lhe as botas. Stephen não se mexeu, ficando quieto, deitado, sem
a ver nem lhe pedir nada. Ela dobrou-se e afagou-lhe o cabelo e, num
impulso beijou-lhe a testa. Recuou logo, o rosto corado, amaldiçoando-se
pela parvoíce. Que lhe interessava aquele inglês?
Os seus homens já aguardavam por ela. Bronwyn levantou as saias
compridas e enfiou as pernas na sela. Os homens não precisaram de
comandos verbais; seguiram-na pelo caminho estreito até ao continente.
O informador de Douglas estava correto quanto ao assalto ao gado.
Bronwyn e os homens cavalgaram fortemente durante duas horas,
abandonando então as montadas e avançando a pé pelo bosque escuro.
Bronwyn foi a primeira a escutar os passos de um homem. Levantou a
mão para deter o seu bando, e assinalou-lhes que se dispersassem, mas
Douglas ficaria consigo. Os homens do clã MacArran esconderam-se nas
árvores sem qualquer ruído, cercando os ladrões de gado.
Quando deu tempo suficiente aos homens para ocuparem os seus lugares,
abriu a boca e soltou um grito agudo que lançou o gado num agitar nervoso.
Os MacGregors largaram as cordas que seguravam e agarraram as
claymores. Mas era tarde de mais, e os homens de Bronwyn já os cercavam.
Desfizeram-se das mantas para estarem disponíveis para lutar nas camisas
soltas. Os gritos selvagens de guerra ecoaram pelos campos. Bronwyn
retirou a saia, ficando apenas com camisa e manta que lhe chegava aos
joelhos. Manteve-se na retaguarda para orientar os homens e não os
atrapalhar com a sua fraqueza. Nestas ocasiões amaldiçoava a sua falta de
força.
– Jarl! – gritou, a tempo de salvar um dos homens de apanhar com uma
claymore na cabeça. Atravessou a relva a correr, para impedir um
MacGregor de saltar sobre outro homem.
O luar refletiu-se na lâmina de uma adaga por cima da cabeça de
Douglas. Ela viu que este perdera a sua arma.
– Douglas! – gritou, lançando-lhe uma faca. O MacGregor atrás dele
fitou-a, e nesse instante Douglas espetou-o sob as costelas. O homem
tombou lentamente.
A luta pareceu terminar naquele instante. Bronwyn, pressentindo a
mudança nos homens, olhou para o homem a seus pés.
– O MacGregor – sussurrou. – Está morto?
– Não – respondeu Douglas –, apenas ferido. Há de acordar.
Ela olhou em volta. Os outros MacGregors tinham desaparecido por entre
as árvores, agora que o chefe fora derrubado. Ajoelhou-se ao lado do
homem caído.
– Dá-me a minha adaga – pediu ela.
Douglas obedeceu sem hesitação.
– Quero que o MacGregor se lembre de mim. Achas que ele gostava de
ter as minhas iniciais gravadas na carne?
– E que tal na face? – sugeriu Douglas com avidez.
Bronwyn lançou-lhe um olhar gélido, que o luar tornava prateado.
– Não quero iniciar uma guerra, apenas deixar uma lembrança. Além
disso, soube que o MacGregor é bonito. – Abriu-lhe a camisa.
– Andas muito interessada em homens bonitos – disse Douglas
amargamente.
– Talvez tu é que andes demasiado preocupado com os homens que me
interessam. Aquilo que te consome são ciúmes ou ganância? Cuida dos
meus homens e deixa-te de birras.
Douglas virou-lhe as costas.
Bronwyn ouvira as histórias do MacGregor e sabia que valorizaria ter
uma cicatriz feita pela mulher que o tinha derrotado. Ela usou a ponta da
adaga, e mal abriu a pele, enquanto gravava um pequeno B no ombro. Era
uma forma de se lembrar dela quando quisesse novamente roubar-lhe o
gado.
Quando terminou, correu para junto dos seus homens, e reuniram-se aos
cavalos. Era uma experiência inebriante: a primeira vitória como chefe do
clã.
– Ao Tam! – berrou, quando estava montada a cavalo. – Despertemo-lo
da cama. Há de querer saber que o MacGregor usa agora a marca da
MacArran. – Riu-se ao pensar na raiva do homem, quando descobrisse o
presente que ela lhe deixara.
Mas não estavam fadados a chegarem a casa tão facilmente. Subitamente
os céus abriram-se e um dilúvio de chuva gelada caiu sobre eles. Enrolaram
as mantas sobre as cabeças e Bronwyn pensou com saudades na saia quente
que deixara por terra. Os relâmpagos faiscaram, fazendo os cavalos
saltarem, amedrontados com a luz e com o ruído.
Voltaram a Larenston pela falésia junto ao mar. Não era a via mais segura
mas era a mais rápida, e sabiam que os MacGregors evitariam persegui-los
nos trilhos desconhecidos e perigosos.
Subitamente um forte relâmpago rasgou os céus e atingiu o solo, diante
de Alexander. O cavalo recuou, pisando o solo num frenesi com as patas
dianteiras. No instante seguinte o trovão ameaçou derrubar o rochedo sobre
eles. O cavalo de Alexander mudou de direção, e os pés escorregaram pela
berma da falésia. Por instantes, cavalo e cavaleiro ficaram suspensos entre a
terra e o ar. Depois caíram, Alex saltando da sela.
Bronwyn foi a primeira a desmontar. A chuva fria golpeava-a na cara.
Tinha as pernas azuis do frio.
– Foi-se! – gritou Douglas. – O mar levou-o.
Bronwyn tentou espreitar o mar ao fundo, entre a noite e a chuva. Um
novo relâmpago mostrou-lhe o corpo do cavalo, caído e imóvel nas rochas.
Mas não via Alex.
– Vamos andando! – berrou Douglas. – Já não tem salvação.
Bronwyn levantou-se. Era tão alta quanto Douglas, e ficava ao mesmo
nível.
– Mas tu dás-me ordens? – perguntou ela, espreitando de volta para o
mar. – Agarra-me pelos tornozelos, para conseguir debruçar-me sobre a
berma.
Bronwyn deitou-se sobre o estômago, e Douglas segurou-lhe nos
tornozelos. De imediato, dois homens apareceram de cada lado para lhe
apoiar os braços. Outro homem pousou as mãos nos ombros de Douglas.
Pouco a pouco, Bronwyn esticou-se sobre a berma até conseguir espreitar
a parede rochosa. Era assustador encontrar-se assim pendurada, confiando a
vida às mãos fortes nos tornozelos. O primeiro impulso foi de avisar que
não via nada, mas não podia deixar Alex para trás se ainda estivesse vivo.
Aguardou com paciência o próximo relâmpago, para vasculhar a área. Aos
poucos, mexeu a cabeça para analisar outra parte da falésia. A posição
semi-invertida dava-lhe tonturas, e o medo consumia-lhe o estômago.
Foi quando virou a cabeça pela terceira vez que pensou ver algo.
Decorreu uma eternidade até um novo relâmpago iluminar novamente a
parede. O pescoço como que ameaçava partir-se de tanto esticar a cabeça.
Surgiu o relâmpago, e subitamente as dores abandonaram-na. À sua
esquerda, a meio da descida, viu um relance familiar da manta vermelha
que era a favorita de Alex.
Ela agitou a mão, e os homens puxaram-na para cima.
– O Alex! Está ali! – arfou com a boca cheia de água da chuva. Limpou
os olhos com o antebraço, impaciente. – Numa saliência estreita. Atem uma
corda à minha cintura. Acho que consigo lá chegar.
– Deixa-me ir! – disse Francis.
– És demasiado grande. Não há espaço suficiente na saliência. Dá-me
corda e eu levo-a ao ombro. Compreendes? – Fez acompanhar os gritos
com gestos.
Os homens assentiram, e imediatamente ela se viu a enrolar uma corda
para enfiar ao ombro. Entregou uma ponta a Douglas.
– Iça-o quando sentires dois puxões. – A seguir atou outra corda à cintura.
– Depois puxa-me a mim, quando o Alex estiver a salvo.
Avançou para a berma da falésia. Não quis fitar o vazio funesto. Fez uma
pausa.
– O Tam é o meu sucessor – anunciou, sem acrescentar, caso eu morra.
A pesada corda entranhou-se-lhe na cintura, e embora os homens a
baixassem lentamente com o maior dos cuidados, ela embateu no rochedo
várias vezes. Joelhos e ombros doíam-lhe imenso, e sentiu a pele
desprender-se das mãos ao agarrar a corda. Pensa no Alex, disse a si
mesma, pensa no Alex.
Demorou a chegar à saliência estreita. Mal havia espaço para ela enfiar os
pés ao lado do corpo opulento de Alex.
Depois de manobras cautelosas, ela conseguiu escarranchar-se sobre as
ancas do rapaz.
– Alex! – berrou por cima da chuva fustigante.
O jovem abriu os olhos, depois encarou Bronwyn como se fosse um anjo
na terra.
– Chefe – sussurrou enquanto fechava os olhos, o som da palavra
perdendo-se na tempestade.
– Raios, Alex, acorda! – berrou Bronwyn.
Alex voltou a abrir os olhos
– Estás ferido? Consegues ajudar-me com a corda?
Alex subitamente ficou ciente de onde estava.
– Parti a perna, mas acho que consigo mexer-me. Como chegaste aqui?
– Não fales! Ata os nós!
Ela equilibrava-se numa posição precária, e havia muito pouco espaço
para se mexer. Dobrou-se, mantendo as pernas direitas, sem mudar a
disposição dos pés, enquanto ela e Alex atavam a corda em volta do corpo
dele. Fizeram um arnês apressado, passando a corda por entre as pernas e
pelas costas do rapaz.
– Estás pronto? – berrou ela.
– Vai na frente. Eu aguardo.
– Não discutas comigo, Alex. É uma ordem. – Ela deu dois puxões
vigorosos na corda, sentindo-a ficar tensa quando os homens começaram a
içá-la. Franziu a testa ao ver Alex embater na muralha, magoando ainda
mais a perna já lesionada.
Quando ele se encontrou por cima dela, colou-se ao rochedo. A chuva
fustigava-a; a ameaçadora parede da falésia era dura ameaçando as suas
costas. Subitamente sentiu-se bastante só – e muito assustada. A
preocupação com Alex motivara a sua coragem no início, mas agora
esvaíra-se. Alex estava a salvo, e ela encontrava-se só e assustada. Pensou
que só lhe apetecia estar no colo de Stephen, sentada diante da lareira com
os braços dele à sua volta.
Sentiu apertar-se a corda que lhe envolvia a cintura, e despertou do
pensamento. E contudo, enquanto subia, agarrada à costa, mãos apertadas,
pés enredados para reduzir a pressão na cintura, a imagem de Stephen não a
largou.
Não constituiu surpresa alcançar o cimo da encosta e descobrir Tam e
Stephen a puxá-la. Stephen estendeu as mãos e susteve-a pelos sovacos,
levantando-a e pousando-a em terra. Apertou-a contra si num abraço que
quase a esmagou, mas ela agradeceu aquela pressão, contente por já não se
encontrar sozinha. Ele afastou-a ligeiramente, com o rosto dela nas mãos, e
examinou-a. Tinha um olhar escuro e ensombrado. Ela queria falar, dizer
que estava contente por o ver, contente por estar novamente a salvo, mas a
expressão dele não acolhia palavras.
Abruptamente, ele levou as mãos aos braços dela, e iniciou uma inspeção
impessoal da sua pessoa. Deitou-a novamente no braço, e passou a mão
sobre as pernas dela, franzindo o cenho ao ver as manchas de sangue nos
joelhos. A sensação de conforto abandonou-a por completo. Como ousava
ele inspecioná-la assim diante dos homens!
– Solta-me! – ordenou.
Stephen ignorou-a, e ela fitou Tam, que pairava entre eles.
– Vários cortes e nódoas negras, mas nada sério.
Tam endireitou-se e anuiu. Pareceu rejuvenescer dez anos.
Bronwyn deu um pontapé e debateu-se contra Stephen.
– Se já acabaste – disse ela, com altivez –, gostava de ir para casa.
Stephen virou-se e fitou-a, e ela compreendeu a expressão naquele rosto.
Estava zangado – muito, muito zangado. A chuva abrandara em parte, e a
madrugada iluminava o céu. Ela sentou-se e tentou afastar-se dele.
– Tenho de falar com o Alex.
– O Alex está a receber cuidados – disse Stephen de imediato,
entredentes. A mão agarrava com força o pulso dela, e puxou-a para cima
quando se levantou. Começou a avançar na direção do cavalo, arrastando-a
consigo.
– Exijo que me soltes – disse tão baixo quanto lhe foi possível, uma vez
que os homens estavam perto deles.
Ele virou-se para ela e puxou-a para si.
– Se dizes mais uma palavra, ainda passo esse pedaço de saia por cima da
tua cabeça e dou-te açoites até ficares com o rabo vermelho. O Alex está a
salvo, mais do que tu estás agora, portanto não me tentes. Compreendido?
Ela esticou o queixo no ar e fitou-o intensamente. Mas não lhe deu
motivos para cumprir a ameaça. Ele virou-se e puxou-a para um cavalo que
os aguardava. Não lhe deu tempo para o montar, mas levantou-a no ar e
deixou-a cair no selim com tal força que lhe fez vibrar os dentes. Stephen
montou também sem demora.
Pegou nas rédeas do cavalo dela.
– Segues-me ou tenho de ser eu a conduzir o teu cavalo?
Ela não suportava a ideia de ser levada como uma criança mal
comportada.
– Sigo-te – disse, costas direitas, queixo erguido.
Afastaram-se dos homens no estreito trilho da encosta e Bronwyn não
olhou para trás. A humilhação era demasiado grande. Os homens dela
respeitavam-na e obedeciam-lhe, mas Stephen queria reduzi-la a mera
criança. Rab corria ao lado dos cavalos, seguindo, como sempre, a dona.
Cavalgaram durante mais de três horas, e Bronwyn sabia que iam a
caminho das propriedades mais a norte. O território era selvagem, cheio de
colinas, atravessado por vários ribeiros. Stephen manteve um passo lento e
sólido, sem olhar para ela mas pressentindo quando tinha de abrandar e
aguardar por ela.
Bronwyn sentia-se exausta. Não se alimentava desde o assalto noturno ao
gado, e era como se tivessem passado dias. Estava tão esfomeada que o
estômago parecia devorar-se a si mesmo. A chuva abrandara, era agora um
chuvisco frio e húmido, que a enregelava até aos ossos. Sentia arrepios
frequentes e espirrou várias vezes. As pernas estavam cheias de cortes e
nódoas negras, e por muito que se virasse, o selim magoava sempre o
mesmo local.
Mas preferia morrer a pedir a Stephen que descansassem.
A meio do dia, ele parou, e Bronwyn não pode evitar um suspiro de
alívio. Antes de poder desmontar, ele colocou-se ao lado dela e puxou-a do
cavalo. Bronwyn estava demasiado cansada, gelada e esfomeada para
sequer recordar os acontecimentos da noite.
Sentou-a no chão e afastou-se dela. Olhou para trás, ela notou que não lhe
desaparecera nem um pouco da ira.
– Porquê? – perguntou ele, e a palavra revelou o nível de controlo que
usava para não desatar a gritar. – Porque me drogaste?
Ela procurou manter os ombros direitos.
– Os MacGregors planeavam mais um assalto, e eu tinha de proteger a
propriedade do meu povo.
O olhar dele ficou duro e frio.
– E ninguém te informou que é dever de um homem chefiar um ataque de
guerra?
Ela encolheu os ombros.
– Isso é o que vos ensinam na Inglaterra. Na Escócia é diferente.
Entregaram-me ao meu pai aos sete anos, tal como o meu irmão. Aprendi a
cavalgar e, em caso de necessidade, a manusear uma espada.
– E pensaste que eu não seria capaz de chefiar os homens, por isso tiraste
as roupas – ele escarneceu da saia curta que ela usava – e chefiaste-os
sozinha. Serei para ti tão pouco homem que te consideras um homem
melhor do que eu?
– Seres um homem! – exclamou ela com desdém. – Só isso te preocupa.
No último assalto levavas uma armadura. Sabes que os MacGregors se
riram de mim! Disseram que os MacArrans tinham uma mulher como chefe
e um monte de aço como capitão. Bem, ontem à noite deixaram de se rir.
Gravei um B no ombro do MacGregor.
– O quê? – Stephen até soltou perdigotos.
– Ouviste o que eu disse – respondeu ela com arrogância.
– Santo Deus! – disse Stephen, passando a mão pelo cabelo molhado. –
Não entendes como funciona o orgulho masculino? Viverá para sempre com
a marca que uma mulher lhe deixou. Há de odiar-te… e ao teu clã.
– Estás equivocado! Além disso, os MacGregors já odeiam os
MacArrans, e vice-versa.
– Nem por isso. São meros arrufos. É mais um jogo que uma guerra a
sério.
– Não percebes porque és inglês – disse ela, virando-se para o cavalo e
desatando o selim.
Ele pousou a mão na dela.
– Quero que me jures que nunca mais me irás drogar.
Ela sacudiu-lhe a mão.
– Pode vir o dia em que…
Ele agarrou-a pelos ombros e virou-a para si.
– Nunca virá o dia em que controles a minha vida e meu pensamento. O
que teria acontecido se surgissem problemas e precisassem de mim?
Adormeci tão profundamente que o castelo podia cair e eu não acordaria.
Não vivo com quem não confie. Tens de me prometer.
Ela soltou um sorrisinho.
– Não posso prometer.
Ele empurrou-a para longe.
– Não colocarei os meus homens em perigo por causa dos caprichos de
uma miúda tola – disse ele.
– Miúda! – exclamou. – Sou a chefe dos MacArrans. Tenho centenas de
homens e mulheres que me obedecem e respeitam.
– E que fazem todas as tuas vontades. És inteligente e tens discernimento.
Mas falta-te a experiência de liderar homens numa luta. Isso é comigo.
– Os meus homens não te seguirão.
– Seguirão enquanto eu estiver consciente para os liderar. – E fitou-a
quando ela não deu resposta. – Pedi-te uma promessa e agora vou fazê-la
eu. Se me voltares a drogar, ficas sem o cão.
Bronwyn abriu a boca, atónita.
– O Rab voltaria sempre para mim.
– Se estiver sete palmos abaixo de terra, não volta. – Ela demorou a
entender.
– Serias capaz de matar um cão para alcançares o teu objetivo?
– Mataria cem cães, ou cavalos, para salvar um homem, meu ou teu. As
vidas deles correm perigo se não estiver por perto para os proteger, e não
me posso dar ao luxo de desconfiar que posso não estar acordado numa
certa noite por causa da minha mulher. Entendido?
– Bastante. Terias prazer em matar o meu cão. Afinal, tiraste-me tudo o
resto.
Stephen lançou-lhe um olhar exasperado.
– É óbvio que só vês aquilo que queres ver. Lembra-te apenas que se
amas o animal, hesitarás antes de adulterares novamente a minha comida.
Subitamente Bronwyn sentiu-se subjugada pelos acontecimentos. A noite
comprida e húmida, o terror de descer por uma falésia e agora a perspetiva
de perder Rab – foi demais. Caiu de joelhos no chão encharcado, e Rab
aproximou-se dela. Envolveu o canzarrão com os braços e enterrou a cara
na pele áspera e molhada.
– Sim, adoro-o – sussurrou. – Os ingleses tiraram-me tudo o resto, tirem-
me o Rab também. Mataram o meu pai e os três homens que ele escolhera.
Mataram as minhas hipótese de ser feliz com um marido que amasse –
ergueu a cabeça, olhos brilhando à beira das lágrimas. – Porque não levas o
Rab? E o Tam, já agora? E incendeia a minha casa.
Stephen abanou a cabeça, fitando-a. Depois estendeu a mão.
– Estás cansada e cheia de fome e não sabes o que dizes. – Ela ignorou-o
e endireitou-se.
Stephen agarrou-a repentinamente, puxando-a contra os braços. Ignorou
as tentativas dela de o afastar.
– Não consegues amar-me? Se me amasses, pouparíamos muitas
discussões.
– Como posso amar alguém em quem não confio? – perguntou ela,
simplesmente.
Stephen não respondeu, mas continuou a cingi-la contra si, face encostada
ao cabelo molhado.
– Anda – disse após um momento. – Vai voltar a chover. Temos de andar
ainda alguns quilómetros antes de chegarmos ao nosso abrigo.
– Não olhou mais para ela. Bronwyn desconfiou que Stephen estaria
triste, mas expulsou de imediato o pensamento e montou o cavalo.
Capítulo Oito

Entardecia quando Stephen parou diante de uma velha casa de pedra. A


traseira enterrava-se na encosta de uma pequena colina, o telhado cobria-se
de terra e relva. Voltara a chover, agora que as roupas de Bronwyn já
tinham quase secado.
Ela parou o cavalo mas não desmontou. Sentia-se demasiado cansada e
abatida para se mexer.
Stephen pousou as mãos na cintura dela e praticamente arrastou-a para o
chão.
– Tens fome? – murmurou antes de a levantar nos braços e a levar para a
casa.
O espaço estava acolhedor por causa da lareira de turfa, apesar do chão
sujo. Encostado à parede havia um catre. Ele deitou-a nele.
– Fica aqui enquanto eu cuido dos cavalos.
Ela mal notou o regresso dele, tanto era o cansaço.
– Pensei que os escoceses eram rijos – brincou ele, rindo-se quando ela se
endireitou com cautela, afastando-se do encosto da parede. – Anda e vê o
que trouxe. – Ele abriu um cesto junto à parede e começou a tirar comida.
Havia uma panela com um guisado de aroma divino. Seguiu-se pão escuro.
Mais sopa e peixe, fruta e vegetais.
Bronwyn sentia-se num sonho. Aos poucos, abandonou o catre e sentou-
se ao lado de Stephen. Procurou esfomeada cada prato com o olhar,
acompanhando-o quando ele o pousava no lado oposto.
Ela tentou alcançar uma peça de porco assado com ar suculento, mas
Stephen afastou o prato.
– Tudo isto tem um preço – disse calmamente.
Ela desviou-se dele com o olhar endurecido. Começou a levantar-se.
Stephen pousou o prato.
– Toma! – disse, agarrando-a pelos ombros. – Não há uma ponta de
humor em ti?
– Quando vem de um inglês assassino não – disse ela hirta.
Stephen puxou-a contra si de súbito.
– Pelo menos és consistente. – Afastou-a um pouco, afagou-lhe a
bochecha com os nós dos dedos. – E o que julgas que eu cobrarei pela
comida?
– Que eu e os meus homens te juremos fidelidade, que fiquemos do teu
lado, mesmo se tivermos de lutar contra o nosso povo – disse ela sem
expressão.
– Santo Deus! – semiberrou Stephen. – Deves julgar que sou um monstro.
– Fitou-a com a testa franzida, mas depois sorriu. – O pagamento que eu
quero vai custar-te muito mais. Quero um beijo teu. Um beijo dado de livre
vontade. Um beijo pelo qual não tenha de lutar.
A primeira reação de Bronwyn foi de dizer-lhe aos gritos o que poderia
fazer com a comida e os beijos; em gaélico, obviamente, mas decerto ele
compreenderia. Depois fez uma pausa. Os escoceses eram pessoas práticas.
Ela não podia deixar que a comida se estragasse.
– Está bem – sussurrou. – Eu dou-te um beijo.
Ela inclinou-se para diante, de joelhos, e tocou com os lábios nos dele.
Ele tentou agarrá-la mas ela afastou-lhe os braços.
– És meu! – disse ela possessivamente. Stephen sorriu e recostou-se sobre
os cotovelos, deixando-a possui-lo.
Os lábios dela brincaram com os dele docemente, tocando-lhes,
remexendo-os. Usou a ponta dos dentes, a da língua, para explorar e
investigar a sua boca.
Afastou-se um pouco para o observar. Chovia, lá fora, e o som manso fê-
los sentirem-se isolados, sós, em intimidade. Os tons dourados suaves das
labaredas bruxuleantes imprimiam sombras naquele rosto atraente. Com os
olhos fechados e os lábios ligeiramente abertos, Bronwyn sentiu o coração
começar a bater com força. Era imaginação sua ou ele estava mais bonito
desde o primeiro encontro? Parecia a perfeição em forma de macho.
E contudo, ele não se mexeu. Sem sinal da mesma excitação que ela
sentia. Não há uma ponta de humor!, pensou ela, sorrindo. Vejamos que
humor existe em ti, inglês!
Stephen abriu ligeiramente os olhos antes de os lábios de Bronwyn
descerem novamente sobre os dele. Desta vez não foi nem doce nem meiga,
mas esfomeada. Mordeu-lhe os lábios, chupou-os.
Stephen perdeu a pose descontraída e caiu contra o chão duro. As mãos
fecharam-se sobre a cintura de Bronwyn, puxando-a para si. Ela riu-se
profundamente e afastou novamente as mãos dele. Obediente, ele deixou-as
cair.
Ela recuou a cabeça, lábios ainda presos nos dele, e ele acompanhou-a.
Com uma mão atrás da cabeça dele e dedos entrelaçados no cabelo,
Bronwyn pousou a outra mão no joelho do homem. Fê-la subir, e ele
começou a tremer. Usava o traje escocês, nu debaixo da camisa e do tartã.
Lentamente, pouco a pouco, ela acariciou-lhe o interior da coxa, cada vez
mais acima. Quando lhe tocou entre as pernas, os olhos de Stephen abriram-
se de rompante, e no minuto seguinte atirara Bronwyn de costas e tinha uma
perna sobre ela.
– Não! – disse ela, tentando afastar-se dele. – Um beijo, foi esse o teu
preço. – Arfava tão violentamente que mal conseguia falar, como se
corresse uma longa distância.
Stephen não recuperou rapidamente o raciocínio. Ficou a fitá-la com ar
aparvalhado.
Ela espalmou as mãos contra o peito dele.
– Prometeste que eu podia comer se te desse um beijo. Foi o que fiz –
disse ela com ar muito sério.
– Bronwyn – disse Stephen como se estivesse moribundo.
Ela sorriu com alegria e empurrou-o com força, recuando também.
– Os escoceses são pessoas de palavra.
Stephen gemeu de queixume, fechou os olhos por instantes.
– Devo ter envelhecido vinte anos desde que te vi. Drogas-me pela
manhã, depois escalas a falésia, e agora tentas acabar comigo. Que mais me
aguarda? O potro ou preferes a tortura da água?
Ela riu-se dele, mas deu-lhe uma porção suculenta de porco assado. Já
comia, lábios vermelhos do beijo e brilhantes da carne. Agarrou numa fatia
de tarte de carne quando Stephen escolheu o porco.
– Que lugar é este? Quem trouxe a comida? Quem te disse da falésia?
Foi a vez de Stephen de se rir, começando a comer, mas sem o vigor de
Bronwyn. Ainda não recuperara da sensação da mão de Bronwyn entre as
pernas. Tam estava cheio de razão ao descrever a conveniência dos trajes
escoceses.
– O Douglas chamou o Tam – disse após algum tempo, franzindo a testa.
– Oxalá consiga ensinar aos homens a procurarem-me – disse com
desagrado. – Fico a saber do que se passa em segunda mão.
Bronwyn tinha a boca e ambas as mãos pejadas de comida.
– O Douglas só tentava ser um filho obediente.
– Filho? De que falas tu?
Ela pestanejou, espantada.
– O Douglas é filho do Tam.
– Mas pensei que o filho do Tam tinha sido morto.
Ela lançou-se um olhar de desaprovação enquanto untava de manteiga
uma fatia de pão escuro.
– Um homem pode ter mais do que um filho. O meu pai dizia que o Tam
tentava criar um clã só seu. Tem uma dúzia de filhos, ou tinha, até vocês, os
ingleses, matarem um deles.
Stephen levantou as mãos como se em defesa própria.
– Quem são?
– O Douglas, o Alex, o Jarl e o Francis são os mais velhos. Depois tem
rapazes demasiado novos para lutar, e a nova esposa em breve vai dar-lhe
outro.
Stephen riu-se. Os mais calmos eram sempre os mais atrevidos.
– Não respondeste às minhas perguntas – disse Bronwyn, sem sequer
abrandar a mastigação. – E porque me trouxeste para aqui?
– Pensei que a cavalgada me acalmaria os humores, e não queria que os
teus homens interferissem – disse ele antes de responder às outras
perguntas. – O Tam tentou acordar-me mas não conseguiu. – Lançou a
Bronwyn um olhar de repreensão mas ela ignorou-o. – A Morag fez-me
beber uma mistela intragável que me ia matando. Mas antes de ter
recuperado por completo, vi-me em cima de um cavalo a correr pela estrada
de acesso. Chegámos quando o Alex estava a ser içado.
Pousou a perna de frango e perscrutou-lhe o rosto.
– Porque tiveste de descer pela falésia? Como é que os teus homens te
permitiram fazer tal loucura?
Ela pousou o scone.
– Não entendes, pois não? Eu sou a chefe MacArran. Eu é que digo e
desdigo. Os homens seguem as minhas ordens, não o contrário.
Stephen levantou-se e lançou mais achas à fogueira. A sua educação
inglesa fê-lo contestar.
– Mas não és uma pessoa forte. E se o Alex estivesse inconsciente e não
te ajudasse? Não tens massa muscular para levantares o peso morto de um
homem.
Ela respondeu com paciência, notando que ele se esforçava por
compreender.
– Fui porque sou pequena. Não havia muito espaço livre no rebordo, e
pensei que teria maior liberdade de movimento que um homem grande.
Quanto a levantar o Alex, não conseguiria levantá-lo em peso mas havia de
passar a corda debaixo dele para que o puxassem. Se pensasse que o Alex
teria melhores hipóteses com outra pessoa, não hesitaria em enviá-la. Tento
sempre fazer o que considero melhor para a minha gente.
– Raios! – disse Stephen com vigor, puxando-a para cima. – Não me
agrada tanta sabedoria numa mulher.
Ela pestanejou, mas sorriu perante aquela honestidade.
– Não conheces bons líderes que usam a cabeça e não os músculos?
Ele fitou-a, e depois apertou-a nos braços, a sua mão enterrou-se no
cabelo dela.
– Fiquei furioso – murmurou ele. – Não quis acreditar nos homens
quando me disseram onde estavas. Acho que só voltei a respirar quando te
vi novamente a salvo.
Ela levantou a cabeça e fitou-o, perscrutando-lhe o rosto.
– Se eu tivesse morrido, sem dúvida que o Tam te daria algumas das
minhas terras.
– Terras! – arfou ele, e encostou-lhe a cabeça ao peito. – Às vezes és
mesmo imbecil. Devia castigar-te por tal insulto. – Não a deixou mexer-se
quando ela tentou. – Talvez não te deixe comeres agora – disse ele com voz
rouca. Ergueu-lhe a cara e beijou-a avidamente, rindo-se com a gordura que
ficou nos lábios. – És uma criatura da terra – disse ele, mas não continuou
quando ela lhe envolveu o pescoço com os braços.
Demorou poucos instantes a renovar a paixão. Recordar os
acontecimentos da manhã e o medo que sentira ao sabê-la dependurada
numa parede rochosa, fê-lo beijá-la quase em desespero. Susteve o rosto
feminino nas mãos, a língua saboreando o doce néctar.
Enfiou os braços debaixo dos joelhos dela e depositou-a cuidadosamente
junto à lareira. Despiu-a devagar, abrindo a fivela do cinto, beijando-lhe o
estômago. Levantou-lhe a manta das pernas, depois beijou-as em toda a sua
extensão dourada.
– Vem para aqui – sussurrou ela.
Mas era a vez dele de torturá-la. Afastou as mãos que imploravam,
começando a desabotoar-lhe a blusa. Beijou todas as partes da pele, à
medida que emergiam, e sorriu quando ela se arqueou ao encontro dele.
Riu-se apenas quando ela lhe puxou pelo cabelo, exigindo que ele a
tomasse. Abanou a cabeça com vigor, cara enterrada nos seios, e as mãos
dela tombaram. Ele sentou-se sobre os calcanhares e fitou-a. Era tão belo,
aquele corpo.
Ela abriu os olhos para o observar, intrigada com o que passaria na mente
de Stephen. Viu-o despir as roupas e deitar-se ao seu lado. Arfou quando a
pele tocou na sua.
Estava calor no quarto, mas os corpos quentes que se tocavam faziam do
espaço um inferno.
– Stephen – murmurou ela, carinhosamente.
– Sim – murmurou ele, antes de a puxar para debaixo de si.
Apesar de tanta paixão, fizeram amor lentamente. Demoraram a explorar
os corpos mútuos. Bronwyn fê-lo deitar-se de costas e controlou os
movimentos de ambos. Depois, à medida que o desejo crescia cada vez
mais, Stephen atirou Bronwyn para o chão para as profundas investidas
finais.
Fraco, colapsou sobre ela, lábios contra o pescoço dela. Minutos depois,
adormeceram ambos.

Duas semanas mais tarde, a previsão de Stephen de que o MacGregor


odiaria Bronwyn tornou-se verdadeira.
Stephen passara essas duas semanas a aprender com os homens de
Bronwyn. O desastre do assalto ao gado mostrara-lhe a necessidade de
saber lutar à maneira dos escoceses. Treinou a corrida, a usar a manta
pesada. Conseguia já tirar e colocar o tartã em segundos. As pernas ficaram
morenas, e não se importou sequer com o frio ao chegarem os primeiros
nevões.
Quanto a Bronwyn, observava-o desconfiada, apenas baixando a guarda
durante a noite quando se deitava nos braços dele.
Stephen mudara tanto nas últimas semanas que, na sua memória, o assalto
ao gado em que Bronwyn deixara marca inicial no ombro inimigo ocorrera
há muito. O primeiro indício da ira de Lachlan MacGregor surgiu quando
incendiou as casas dos camponeses nas terras a norte.
– Ficou alguém ferido? – perguntou Bronwyn com ar preocupado quando
soube a notícia.
Tam apontou para um jovem sentado entre as ruínas. Este virou-se e na
cara estava marcado um L.
Bronwyn levou a mão à boca, horrorizada.
– O MacGregor disse que marcaria todo o clã, que quase morreu de
septicemia pela marca que deixaste nele – continuou Tam.
Ela virou-se e dirigiu-se ao seu cavalo. Stephen bloqueou-a.
– Não tenhas medo que não te prego uma lição – disse de imediato
quando notou a expressão dela. – Oxalá aprendas com isto. Agora é a minha
vez de resolver o assunto.
– O que pensas fazer? – perguntou ela.
– Tentarei encontrar-me com o MacGregor e resolver de vez este
assunto.
– Encontrares-te com ele! – arfou ela. – Há de matar-te! Odeia os ingleses
mais do que eu.
– Isso é impossível – comentou ele com sarcasmo, ao montar no cavalo e
afastar-se das ruínas fumegantes das casas.
Uma hora mais tarde, era a vez de Chris concordar com Bronwyn. Os
dois homens, que tinham chegado à Escócia com igual aspeto, estavam
agora muito diferentes. Chris mantinha os trajes ingleses – uma jaqueta
pesada de veludo, debruada em pele de marta, culotes de cetim com meias-
calças justas de lã fina. Mas Stephen mudara radicalmente; até a pele
escurecera. O cabelo ultrapassava as orelhas e nelas se enroscava com
elegância. E as pernas estavam mais musculadas das incursões diárias com
os escoceses.
– Ela tem razão – disse Chris. – Não podes bater-lhes à porta e pedires
para falar com o MacGregor. Contaram-me histórias sobre ele. Terias sorte
se te matassem logo.
– E o que é suposto fazer? Fico sentado e vejo-o marcar a minha gente e
atear fogos?
Chris fitou-o por instantes.
– A tua gente? – perguntou baixinho. – Agora és escocês?
Stephen sorriu e passou a mão pelo cabelo.
– É boa gente e teria orgulho em fazer parte deles. Foi o temperamento de
Bronwyn que causou tudo isto. Deve ser possível resolver o assunto.
– Sabes que o feudo dura há séculos? Todos os clãs estão em guerra entre
si. É um lugar de bárbaros!
Stephen sorriu para o amigo. Há meses teria dito o mesmo.
– Entra e tomemos uma bebida. Recebi uma carta do Gavin e ele quer que
leve a Bronwyn para casa para passarmos o Natal.
– E ela irá?
Stephen riu-se.
– Há de ir, quer queira quer não. E tu? Virás connosco?
– Adoraria. Estou farto desta terra fria. Não consigo entender como andas
por aí seminu.
– Chris, devias experimentar. Ficas muito mais à vontade.
Chris fungou de desdém.
– Não tenho vontade nenhuma de congelar o meu dito cujo. Indica-me um
bom local para caçar. Pensei levar uns homens teus e meus e apanhar um
veado.
– Só se prometeres levar alguns dos homens de Bronwyn.
Chris soltou um ligeiro trejeito de escárnio.
– Não sei se deva entender isso como um insulto ou não. – Mas calou-se
ante a expressão de Stephen. – Pronto, assim farei. Se encontrar problemas,
não fará mal ter alguns homens com a perna à mostra. – Sorriu e pousou a
mão no ombro de Stephen. – Até amanhã. Havemos de comer veado
fresco.
Stephen não voltou a ver Chris com vida.

O sol invernal punha-se no horizonte quando quatro dos homens de


Bronwyn atravessaram a cavalo os portões a norte da península. Traziam as
roupas rasgadas e manchadas de sangue. Um deles ostentava um corte
profundo e irregular no rosto.
Stephen encontrava-se no campo de treinos, a ouvir Tam indicar-lhe
como se usava o machado lochaber, e Bronwyn a observá-los.
Tam foi o primeiro a notar os homens feridos e desgrenhados. Largou o
machado no chão e correu para eles. Stephen e Bronwyn seguiram-no de
perto.
– O que aconteceu, Francis? – arquejou, ajudando o jovem a desmontar.
– MacGregor – disse este. – Atacaram o grupo de caça.
Stephen já montara, antes de Francis pisar o solo. O rapaz olhou para ele.
– Três quilómetros, depois do lago da estrada de leste. – Stephen anuiu
uma vez e espicaçou o cavalo. Não notou que Bronwyn e Tam tentavam
acompanhá-lo.
O sol poente reluziu na armadura de Chris, imóvel no solo frio escocês.
Stephen saltou do cavalo e ajoelhou-se junto ao amigo. Abriu a viseira com
cuidado.
Não olhou para cima ao ouvir a voz de um dos homens de Chris.
– O Lorde Chris quis mostrar aos escoceses como lutavam os ingleses –
disse o homem. – Vestiu a armadura e tentou lutar com o MacGregor corpo
a corpo.
Stephen observou a forma imóvel de Chris. Sabia que a armadura
imobilizara o amigo, dando ao MacGregor a liberdade para o golpear. A
armadura tinha zonas desprotegidas, e viam-se amolgadelas e mutilações no
aço.
– Tentaram salvá-lo.
Stephen notou pela primeira vez os três escoceses caídos ao lado de
Chris. Os três jovens estavam cobertos de sangue e era horrível contemplá-
los.
Stephen sentiu uma raiva crescer dentro de si. O amigo! O amigo
morrera. Endireitou-se, agarrou em Bronwyn, virou-a para que fitasse os
quatro cadáveres.
– Isto aconteceu por causa da tua leviandade. Olha para eles! Conhece-
los?
– Sim – conseguiu ela murmurar, enquanto os contemplava. Ela conhecia
os jovens desde sempre, nas suas curtas vidas. Desviou o olhar.
Stephen enfiou as mãos no cabelo dela, puxando-lhe a cabeça para trás
dolorosamente.
– Recordas-te das vozes deles, como eram? Estão a rir-se? Têm famílias?
– Virou-lhe a cabeça na direção de Chris. – Ele e eu fomos criados juntos.
Passámos juntos a nossa infância.
– Solta-me! – pediu ela desesperadamente.
Ele largou-a abruptamente.
– Drogaste-me e levaste os teus homens num assalto ao gado, e gravaste a
tua inicial no MacGregor. Ações parvas e infantis! E agora pagámos por
elas, não foi?
Ela tentou manter a cabeça erguida. Não queria acreditar que ele tinha
razão.
Douglas manteve a espada claymore erguida. Seguira atrás de Bronwyn e
do pai a cavalo.
– Temos de vingar isto – disse em voz alta. – Temos de ir atrás do
MacGregor agora mesmo.
– Sim! – berrou Bronwyn. – Temos de ripostar já!
Stephen avançou um passo e enterrou o punho na cara de Douglas.
Agarrou a claymore antes de o rapaz cair.
– Escutem-me todos – disse Stephen numa voz calma que alcançava
todos os homens. – Isto será resolvido, mas sem mais derramamento de
sangue. É um feudo inútil e não vou retaliar com mais mortes. Estes
homens não voltarão a viver. – Apontou para os quatro corpos no chão.
– És um cobarde – comentou Douglas, em voz baixa, esfregando o
maxilar magoado.
Antes de Stephen responder, Tam aproximou-se do filho. Tirou a adaga
da bainha e apontou-a às costelas do rapaz.
– Podes discordar do homem mas não lhe chames cobarde – disse num
tom profundo.
Douglas trocou um olhar com o pai, depois anuiu uma vez antes de se
virar para Stephen.
– Estamos prontos para o seguir – disse depois de uns segundos.
– Segui-lo! – Bronwyn praticamente gritou. – A chefe MacArran sou eu.
Esquecem-se de que não passa de um inglês?
Tam falou pelo filho.
– Não esquecemos, apenas ficámos a saber – disse baixinho.
Bronwyn não perguntou o que tinham ficado a saber. Fitou as expressões
dos homens, um por um, e percebeu que mudavam de opinião a seu
respeito. Acontecera gradualmente ou também a culpavam pela morte dos
homens? Deu um passo atrás, afastando-se deles, sentindo que devia
levantar as mãos para se proteger.
– Não – murmurou, antes de se virar e correr para o cavalo.
Não se importava para onde iria, nem quão longe. As lágrimas turvavam-
lhe a visão a ponto de nem conseguir ver. Cavalgou durante quilómetros,
pelas colinas e lagos. Nem sequer notou que tinha saído da terra dos
MacArran.
– Bronwyn! – alguém gritou atrás de si.
Começou por atiçar o cavalo, para galopar mais depressa, para longe da
voz familiar. Foi só quando ele se encontrava a seu lado que descobriu o
irmão.
– Davey – murmurou e refreou o cavalo de imediato.
Davey sorriu-lhe. Era alto como Bronwyn, com o cabelo negro do pai,
mas herdara os olhos castanhos da mãe. Estava mais magro, na memória de
Bronwyn, e o olhar trazia um brilho selvagem.
– Estiveste a chorar – disse ele. – Por causa dos homens mortos pelo
MacGregor?
– Já sabias? – disse ela, limpando as lágrimas com as costas da mão.
– Não deixa de ser o meu clã, contra a vontade do meu pai. – Por um
instante, o olhar ficou duro e frio, mas depois mudou. – Há muito que não
te vejo. Senta-te comigo, dá descanso ao cavalo.
Subitamente o irmão surgiu a seus olhos como um velho amigo, e ela
afastou da memória a última vez que o vira – a noite em que Jamie
MacArran a nomeara chefe. Fora um anúncio inesperado, e portanto, ainda
mais doloroso. O clã reunira-se a aguardar a proclamação de Davey como
novo senhor. Jamie MacArran era sempre sincero no que tocava a si e,
portanto, aos filhos. Disse que Davey gostava demasiado da guerra, que
preferia as batalhas à proteção do clã. Disse que Bronwyn tinha um
temperamento demasiado forte e que agia sem pensar. Ambos os filhos se
sentiram profundamente humilhados com as queixas do pai. Jamie
continuou, dizendo que Bronwyn podia ser controlada se tivesse um marido
razoável como Ian, Ramsey ou Ennis. Mesmo esta afirmação não fez
ninguém suspeitar da declaração seguinte. Quando anunciou Bronwyn
como sucessora, na condição de que casasse com um dos jovens indicados,
o salão ficou silencioso. Depois, um por um, levantaram os cálices e
brindaram à saúde dela. Davey demorou algum tempo a reagir, mas depois
levantou-se, amaldiçoou o pai, chamando-lhe traidor, e declarou que não
seria mais seu filho. Pediu aos homens que o seguissem e abandonassem
para sempre o clã. Doze jovens acompanharam Davey ao sair do salão.
Bronwyn não voltara a ver o irmão desde essa noite. Desde então vários
homens tinham morrido, incluindo o pai, e ela casara-se com um inglês.
Subitamente tudo o que Davey dissera no passado não parecia importante.
Ela desmontou e envolveu-o com os braços.
– Oh, Davey, aconteceram coisas horríveis – lamentou-se.
– O inglês?
Ela anuiu, ao encontro do ombro ossudo.
– Mudou tudo. Hoje os meus homens olharam-me como se fosse eu a
intrusa. Vi no olhar deles que ele estava certo e eu errada.
– Ele virou-os contra ti? – ripostou Davey, afastando-se dela. – Estão
cegos! Deve ser um excelente ator, para apagar o horror da morte do nosso
pai. Como puderam os homens esquecer-se de que o MacArran foi morto
pelos ingleses? E o Ian? Até o Tam se esqueceu da morte do filho?
– Não sei – disse Bronwyn, sentando-se num tronco caído. – Pareciam
confiar nele. Veste-se como um escocês. Treina com os meus homens. Até
passa tempo com os camponeses. Vejo-os sempre juntos, a rir, e sei que
gostam dele.
– Mas ele fez alguma coisa para conquistar a confiança deles? Além de
beijar bebés?
Ela levou as mãos às têmporas. A imagem dos quatro mortos no chão não
a largava. Teria causado aquelas mortes?
– Ele também nada fez para que desconfiassem dele.
Davey fungou de desdém.
– Obviamente, seria cuidadoso para evitar isso. Vai aguardar até ganhar a
confiança de todos antes de chamar os ingleses.
– Quais ingleses?
– Não entendes? – explicou Davey com grande paciência. – Diz-me, ele
planeia regressar a Inglaterra em breve?
– Sim – respondeu ela, espantada. – Algures nas próximas semanas.
– E quando voltar, outros ingleses o acompanharão. Vai ensinar-lhes o
que aprendeu sobre os nossos métodos de luta e já não conseguiremos
defender-nos.
– Não! – exclamou ela, erguendo-se. – Davey, não podes dizer isso. Ele é
uma pessoa boa, e preocupa-se com os meus homens.
Ele lançou-lhe um olhar de reprovação.
– Ouvi dizer que ele te faz uivar na cama. Não queres perdê-lo.
Sacrificarias o teu clã para teres as mãos de um inglês no teu corpo.
– Isso não é verdade! O clã comigo está sempre em primeiro lugar. –
Calou-se abruptamente. – Já me tinha esquecido das nossas brigas. Tenho
de voltar.
– Não – disse Davey baixinho, com a mão no braço dela. – Perdoa-me
por te ter perturbado. Fica aqui comigo um pouco. Tenho saudades tuas.
Fala-me de Larenston. Arranjaste a goteira do telhado? Quantos filhos tem
o Tam agora?
Ela sorriu enquanto se voltava a sentar. Conversaram demoradamente
enquanto a noite os envolvia, sobre a rotina do clã. Ela descobriu que
Davey vivia algures nas colinas, mas não quis dar pormenores sobre a sua
vida e ela respeitou a privacidade dele.
– E tu gostas de ser chefe? – perguntou ele amavelmente. – Os homens
obedecem-te?
Ela sorriu.
– Sim. Tratam-me com muito respeito.
– Até esta manhã, quando se viraram para o teu marido.
– Não recomeces.
Davey recostou-se contra uma árvore.
– É uma vergonha que os MacArrans após vários séculos sejam agora
governados por um inglês. Se tivesses tempo terias estabelecido a tua
autoridade, mas não podes esperar que os homens sigam uma mulher
quando há um homem a arrastá-la atrás de si.
– Não entendo.
– Estava apenas a conjeturar. E se este Stephen for um espião a mando do
rei Henrique? Quando conquistar a confiança dos teus homens, poderá
prejudicar imenso a Escócia. Claro, tentarias levar os teus homens a
seguirem-te, mas já estarão tão habituados a desobedecerem-te que nunca
chamarás a atenção deles.
Ela não conseguiu responder-lhe. Recordava todas as vezes em que os
seus homens abordaram Stephen, contra a evidência de que, quando
voltaram de Inglaterra, o clã só dava ouvidos a ela.
Davey prosseguiu:
– É uma pena não teres tido tempo suficiente com o clã. Caso contrário,
perceberiam que tens a capacidade de os liderar. Quando, ou se, o
Montgomery os traísse, conseguirias levar o clã para um lugar seguro.
Ela não queria pensar nas palavras dele. Hoje causara a morte a homens
seus. A estupidez e arrogância dela provocara quatro mortos, e Stephen
estava certo em culpá-la. Os homens dela estavam certos em seguirem-no.
Mas, e se Stephen fosse espião? E se ele decidisse usar a confiança dos
homens contra o clã? Há várias gerações que os escoceses odiavam os
ingleses. Decerto que tal ódio teria um motivo válido. Talvez houvesse uma
centena de tragédias na vida de Stephen que o fizessem nutrir ódio pelos
escoceses. Talvez Davey tivesse razão e Stephen quisesse matá-los a todos.
Ela levou as mãos à cabeça.
– Não consigo raciocinar – murmurou. – Não sei o que ele possa ser, nem
se é de confiança.
– Bronwyn – disse Davey ao pegar-lhe nas mãos. – Podes não acreditar,
mas eu só quero o melhor para o clã. Passei estes meses a fazer as pazes
comigo mesmo… e contigo. Sei que tu é que devias ser a senhora e não eu
– levou um dedo aos lábios dela. – Não, deixa-me terminar. Quero ajudar.
Garantir que não é um espião, que não se virará contra o clã.
– A sério? Como assim?
– Deixa-me levá-lo para o meu acampamento, só isso. Não lhe acontecerá
nada de mal e, enquanto ele estiver longe, podes reafirmar-te como a
verdadeira líder do clã MacArran.
– Levá-lo! – Ela ergueu-se, olhos faiscando até na negrura da noite.
– Não lhe acontecerá nada. Seria uma parvoíce matá-lo. O rei Henrique
declararia guerra ao clã MacArran. Só quero ganhar-nos tempo.
Ela afastou-se dele.
– E tu, que ganhas tu com isso? – perguntou com frieza.
– Quero voltar para casa – disse ele, pesarosamente. – Se eu te der esta
ajuda, espero poder voltar com honra. Passamos fome, eu e os meus
homens, Bronwyn. Não somos camponeses e não os temos para tratar das
colheitas.
– És bem-vindo em casa, devias sabê-lo – disse ela baixinho.
Ele deu um pulo.
– Para que os homens se riam de mim e digam que voltei com o rabo
entre as pernas? Não! – Acalmou-se ligeiramente. – Ao regressarmos
triunfantes, salvaremos a nossa dignidade. Entraremos em Larenston com o
teu marido inglês e todos, do rei Henrique até ao último plebeu, nos
agradecerão.
– Eu… não, não é possível. O Stephen é…
– Pensa. Terás controlo sobre a tua gente. Eu regressaria a casa com
honra. Ou talvez te preocupes mais com este inglês do que com o teu irmão
– escarneceu.
– Não! Claro que não! Mas se ele for ferido…
– Insultas-me! Crês que não tenho cérebro? Se eu o ferisse, imagina o que
o rei Henrique nos faria! Oh, Bronwyn, pondera. Faria um bem tão grande
ao clã. Não os confundas mais do que já estão. Não esperes até os veres em
plena batalha indecisos entre os ingleses e os escoceses. Faz-lhes saber que
são escoceses. Não dividas a sua lealdade.
– Davey, tenho de ir, por favor.
– Devias ir. Pensa no que te disse. Encontramo-nos daqui a três dias na
escarpa da falésia. Onde o Alex caiu. – Ela olhou para cima, sobressaltada.
– Eu sei o que se passa no meu clã – afirmou ele, ao passar a perna por cima
da sela antes de se afastar sobre o corcel.
Bronwyn viu-o desaparecer até ser engolido pelas trevas. Temia regressar
a Larenston, temia lidar com as mortes dos seus homens, além da fúria de
Stephen. Mas uma MacArran não podia ser cobarde. Endireitou as costas e
montou o cavalo.
Capítulo Nove

Bronwyn caminhou lentamente pelo pátio. Teve três dias para pensar, desde
aquele em que lhe mataram os homens. As palavras de Davey
assombravam-na. A cada minuto que passava, ficava mais ciente da forma
como os homens se viravam para Stephen. Era natural que procurassem um
homem como chefe, pois não tinha ainda passado meses desde a liderança
de Jamie MacArran. Mas Bronwyn não confiava nos ingleses. Sabia que era
um povo imundo, rude, ganancioso. Não tinha conhecido tantos ingleses
durante o cativeiro na residência de Sir Thomas Crichton?
Quanto a Stephen, a morte do amigo afetara-o imensamente. Não falava
muito, e Bronwyn costumava apanhá-lo com ar absorto. Imediatamente
após as mortes ele ordenara que se iniciassem os preparativos para a viagem
para Inglaterra. Disse que queria devolver o corpo de Chris à família.
Durante a noite, quando ficavam a sós, mantinham-se deitados, lado a
lado, sem se tocarem nem trocarem palavra. Bronwyn estava assombrada
pela imagem dos três mortos, pensando como conseguia o pai perdoar-se
quando um erro seu custava a vida dos seus homens. Sentiu um nó a
formar-se na garganta. A chefe de um clã não podia chorar. Tinha de ser
forte, sem medo de ficar sozinha.
Além do peso da culpa, tinha de ponderar nas súplicas de Davey.
Conhecia o orgulho do irmão e sabia que aqueles pedidos lhe tinham
custado imenso. E, contudo, seria ela capaz de lhe entregar Stephen?
Levou as mãos aos ouvidos. Queria fazer o correto para todos, mas
sentia-se só e impotente. O que seria mais correto, afinal?
Albardou o cavalo sem ajuda e saiu da península, ao encontro de Davey.
Davey fitou-a durante alguns momentos, olhar fervoroso e acutilante.
Quando Bronwyn baixou a vista para as mãos, tentando exprimir o que
pensava, ele percebeu qual era a decisão.
– Então! – disse ele a olhar agora implacável. – Vais colocar o teu amante
acima do clã.
Ela fitou-o sem pestanejar.
– Sabes bem que não é verdade.
Ele fungou de desdém.
– Então é porque não acreditas em mim. Esperava que me deixasses
provar as minhas intenções, que cresci e não sou mais o rapaz terrível que
amaldiçoou o pai.
– Mas eu quero, Davey – disse ela, calmamente. – Quero fazer o que for
mais correto para todos.
– Uma treta! – explodiu ele. – Só te importas contigo mesma. Temes o
meu regresso. Temes que os homens me sigam, ao verdadeiro MacArran. –
Virou-se para o cavalo.
– Davey, por favor, não quero que nos separemos neste estado. Volta para
casa, nem que seja por algum tempo.
– E fico a ver a minha irmã – escarneceu da palavra – ocupar o lugar no
clã que é meu por direito? Obrigado, mas não. Prefiro ser rei de um reino
pobre, mas meu, do que criado noutro. – Quase pulou para a sela e partiu
disparado.
Bronwyn nem soube quanto tempo se manteve especada, olhando para o
chão com uma sensação de estupidez e impotência.
– Quem era? – perguntou Stephen calmamente.
Ela fitou-o, e não se espantou de o ver ali. Era frequente ele aparecer ao
seu lado sem ela se aperceber.
– O meu irmão – disse com igual tom de voz.
– O Davey? – perguntou ele com interesse, vendo-o desaparecer a
galope.
Ela não respondeu.
– Pediste-lhe que voltasse para Larenston? – continuou ele. – E disseste
que os portões estão sempre abertos?
– Não preciso que me ensines a falar com o meu próprio irmão. – Ela
virou-se com lágrimas nos olhos.
Ele agarrou-lhe o braço.
– Lamento. Não foi com essa intenção.
Ela arrancou o braço do seu aperto, mas ele voltou a agarrá-la e encaixou-
a nos braços.
– Agi mal em amaldiçoar-te quando descobri o Chris morto – disse ele
calmamente. – Fiquei tão furioso que só quis descarregar em alguém. Fui
incorreto.
Ela manteve o rosto enterrado no peito dele. Só queria que ele a
abraçasse.
– Não! Tinhas razão! Matei os meus homens e o teu amigo.
Ele puxou-a para si, sentindo o corpo dela tremer. Tinha ombros tão
pequenos e delicados.
– Não, é demasiada responsabilidade para assumires. – Levantou-lhe o
queixo. – Olha para mim. Quer acredites, quer não, estamos juntos nisto, e
partilharei o fardo das mortes dos homens.
– Mas fui eu – disse ela desesperada.
Ele levou o dedo aos lábios dela, num gesto de silêncio, perscrutando-lhe
o rosto.
– És tão jovem, nem tens vinte anos sequer, mas queres cuidar de
centenas de pessoas, inclusive protegê-las de mim, pois desconfias que sou
um espião.
Ele riu-se da expressão do rosto dela.
– Começo a entender-te. Agora pensas que tenho um motivo escondido
para dizer isto. Pensas que planearei um ato traiçoeiro enquanto tento
desconcertar-te com os meus dizeres melífluos.
Ela afastou-se dele.
– Larga-me! – As palavras dele espelharam tão bem o seu pensamento
que quase se assustou.
Ele riu baixinho.
– Acertei? Queres que continue a ser um estranho, é isso? Alguém que
possas odiar sem reservas. Mas não tenciono deixar-te em paz, pois
esqueces que sou um homem antes de ser inglês.
– Tu… isto não faz sentido. Tenho de voltar para Larenston.
Ele ignorou-a, sentando-se na relva e puxando-a contra si.
– Amanhã encetamos caminho para Inglaterra. Queres conhecer a minha
família?
Ela fitou-o, embasbacada.
– Nem pensei nisso. – O olhar soltou faíscas azuis ao recordar o período
na casa de Sir Thomas. – Não gosto dos ingleses.
– Não os conheces! – retorquiu Stephen. – Só conheceste escumalha. Até
eu fiquei embaraçado pela minha gente pela forma como te trataram na casa
do Sir Thomas.
– Mas nenhum deles me deixou pendurada no altar vestida de noiva.
Ele riu-se.
– Não vais esquecer isso, pois não? Quando conheceres a tua cunhada
Judith, talvez me perdoes.
– Ela… como é? – perguntou Bronwyn timidamente.
– Linda! Bondosa, doce e esperta. Governa a propriedade do Gavin até
com os olhos fechados. O rei Henrique ficou impressionado com ela e
várias vezes lhe pediu a opinião.
Bronwyn suspirou pesadamente, com a respiração entrecortada.
– É bom saber que existem pessoas competentes que honram as suas
responsabilidades. Oxalá o meu pai tivesse tido uma filha merecedora do
título de senhora.
Ele riu-se e puxou-a de novo contra si, estendida na terra fria e húmida.
– Para mulher, és bastante capaz no papel de chefe.
Ela pestanejou.
– Para mulher? Achas que as mulheres não são capazes de serem líderes
de um clã?
Ele encolheu os ombros.
– Pelo menos não uma tão jovem e bonita ou tão pouco preparada.
– Pouco preparada! Treinei toda a vida. Sabes que sei ler melhor do que
tu além de somar uma série de números.
Ele riu-se.
– A arte de comandar homens não envolve só somas de números. – Ele
fitou-a por instantes. – És tão linda – disse calmamente, inclinando-se para
a beijar.
– Deixa-me. És ignorante, insuportável, mesquinho… – Ela calou-se
porque as mãos dele tinham pousado nas suas pernas e começado a
acariciá-las.
– Sim – sussurrou ele ao encontro da boca dela. – E mais o quê?
– Não sei nem quero saber – disse ela de forma pouco eloquente.
Arqueou o pescoço para trás quando ele o tocou com os lábios.
Apesar da aparente privacidade, Bronwyn e Stephen não se encontravam
sozinhos. Davey MacArran mantinha-se na colina acima deles, à espreita.
– Que puta! – sussurrou. Colocava a sua luxúria antes das necessidades
do irmão. E pensar que Jamie MacArran julgara-a a mais merecedora do
papel de líder.
Ergueu o punho contra o casal em baixo. Havia de mostrar-lhes! E a toda
a Escócia quem era o mais poderoso, o verdadeiro chefe do clã MacArran.
Puxou as rédeas do cavalo com força para partir, dirigindo-se para o
acampamento secreto nas colinas.
O Sol acabara de se levantar quando as carruagens desceram o caminho
íngreme para o continente. Os homens de Stephen, agora bronzeados a
ponto de não se distinguirem dos escoceses de Bronwyn, acompanhavam-
no. Eram um grupo calado e apreensivo com o resultado da viagem. As
carruagens iam carregadas com roupas inglesas, e os homens de Bronwyn
perguntavam-se se conseguiriam viver na sociedade inglesa.
Bronwyn tinha as suas próprias preocupações. Morag aplicara-lhe um
sermão demorado quando soube do plano de Davey.
– Não confies nele – advertiu, apontando um dedo curto e ossudo para
Bronwyn. – Sempre foi manhoso, mesmo quando criança. Deseja Larenston
e não vai descansar até o ter.
Bronwyn defendera o irmão, mas agora recordava os avisos de Morag.
Olhou em volta pela centésima vez.
– Nervosa? – perguntou Stephen ao seu lado. – Não precisas de estar. A
minha família vai gostar de ti, de certeza.
Demorou um minuto para compreender a que se referia ele. Esticou o
nariz com ar altivo.
– Devias era preocupares-te primeiramente se a MacArran vai gostar
deles – disse ela, incitando o cavalo em frente.
Caía o Sol quando a primeira seta zumbiu junto à orelha esquerda de
Bronwyn. Mal tinha começado a descontrair-se e largar a sua apreensão. No
início nem percebeu o que estava a acontecer.
– Ataque! – berrou Stephen, e em poucos segundos os homens tinham
formado um círculo de defesa com as armas em riste. Os homens de
Bronwyn deslizaram das montadas, largaram as mantas e enfiaram-se na
mata.
Ela ficou sentada estupidamente sobre o cavalo ao ver vários homens
atrás de si serem abatidos.
– Bronwyn! – berrou Stephen. – Vai!
Ela obedeceu-lhe por instinto. As setas voavam ao seu redor. Uma
raspou-lhe na perna, e o cavalo berrou de dor ao sentir a haste queimar-lhe a
pele. As setas eram todas dirigidas a ela! E um dos arqueiros que discerniu
numa árvore era um dos homens que abandonara o clã para se unir a Davey.
O próprio irmão tentava matá-la!
Ela baixou a cabeça e incitou o cavalo. Não precisava de voltar para trás;
sentia o bater dos cascos atrás de si. Seguiu o cavalo de Stephen, que a
conduzia para longe das setas voadoras. Nem se preocupou em perceber se
podia confiar nele.
Soltou um grito quando o cavalo foi atingido. Antes de o animal cair,
Stephen voltou para trás, e agarrou-a pela cintura, puxando-a para a parte da
frente da sua sela. Ela remexeu-se até conseguir montar, e depois deitou-se
sobre o pescoço do animal.
Atravessaram intempestivamente o terreno selvagem. Bronwyn sentia o
garanhão de Stephen a começar a cansar-se.
Subitamente Stephen tombou contra as costas de Bronwyn. Ela nem
parou para pensar, agarrando nas rédeas e dando-lhes um puxão forte. O
cavalo abandonou o parco trilho e enfiou-se no bosque. Ela sabia que tinha
de tirar Stephen do cavalo antes de ele cair. Não conseguiriam deslocar-se
com rapidez entre as árvores, mas talvez encontrassem um abrigo.
Deteve o cavalo subitamente, com o freio a rasgar-lhe a boca. O corpo
inerte de Stephen tombou no chão antes de Bronwyn conseguir desmontar.
Ela soltou uma exclamação, caindo ao lado dele. A nuca tinha um golpe
sangrento, da seta que lhe raspara a pele. Não tinha tempo para pensar, pois
já ouvia os outros cavaleiros a aproximarem-se. O piso da floresta estava
coberto de folhas secas, dando-lhe uma ideia.
Com cautela, para não fazer ruído, afastou o cavalo de Stephen. Não
podia arriscar o barulho de uma palmada, portanto retirou o broche e
espetou a ponta afiada no rabo do cavalo. Este começou a galopar quase
instantaneamente. Ela regressou a Stephen, caindo de joelhos, e puxou-o
contra um tronco caído. Tapou-o com uma mão cheia de folhas. As mantas
que ele usava misturavam-se no tom da folhagem. Deitou-se ao lado dele,
encaixando-se no esconderijo.
Segundos depois, estavam cercados por homens irados. Apertou Stephen
contra si, a sua mão tapando-lhe a boca não fosse ele acordar e soltar um
gemido.
– Maldita.
Susteve a respiração, reconhecendo a voz de Davey.
– Ela e as suas sete vidas! Eu tiro-lhas todas – acrescentou cruelmente. –
Mais ao marido inglês! O rei Henrique vai perceber que quem manda na
Escócia são os escoceses.
– O cavalo dela vai acolá! – disse outra voz.
– Vamos! – disse Davey. – Não pode estar longe.
Bronwyn demorou algum tempo até se mexer. Estava demasiado
atordoada e consternada. Quando o espírito clareou, tornou-se cautelosa.
Queria ter a certeza de que Davey não deixara ninguém para trás na zona.
Esperava ouvir o som de cavalos a aproximarem-se, dos homens dela, mas
após uma hora sem ruídos, perdeu a esperança.
Estava escuro como breu quando Stephen gemeu e fez o primeiro
movimento.
– Cala-te! – disse ela, passando os dedos pela face dele. Tinha o braço
direito dormente por causa dele, por ter ficado tanto tempo deitado sobre
ele.
Aos poucos, atenta a todos os sons da floresta ao seu redor, ela afastou as
folhas. Os olhos penetraram a escuridão e escutou atentamente à sua volta.
Havia um ribeiro não muito distante, no fundo da crista íngreme. Ela
acorreu para lá, ajoelhou-se, rasgou um quadrado de tecido da saia interior e
molhou-o.
Ajoelhou-se ao lado de Stephen, depositou algumas gotas de água nos
lábios dele, e limpou a ferida na nuca. O corte não era muito pronunciado
na sua testa, mas ela sabia que por vezes aquele tipo de feridas tinha
consequências mais sérias. Era bem possível que o cérebro tivesse sido
atingido.
Abriu os olhos e fitou-a. O luar tornava os seus olhos cinzentos. Ela
inclinou-se sobre ele com preocupação.
– Quem sou? – perguntou baixinho.
Ele fez uma expressão séria, intrigado pela pergunta.
– Um anjo de olhos azuis que torna a minha vida no céu e no inferno ao
mesmo tempo.
Ela gemeu de desagrado, e largou o tecido ensanguentado no rosto dele.
– És o mesmo para mim, infelizmente.
Stephen tentou sorrir, debilmente, e depois sentar-se. Levantou um
sobrolho quando Bronwyn passou a mão debaixo dele para o ajudar.
– Estou assim tão mal? – perguntou, dedos esfregando a têmpora.
– Como assim? – perguntou ela, desconfiada.
– Se me ajudas, é porque estou em pior estado do que pensava.
Ela ficou hirta.
– Devia ter-te deixado destapado, para eles te levarem.
– Tenho uma dor de cabeça monumental, e pouca vontade para
discussões. O que fizeste às minhas costas? Enfiaste-lhes agulhas de metal?
– Caíste do cavalo – disse ela com alguma satisfação. Mesmo na
escuridão notou o olhar de alarme. – Devia começar do início.
– Ficaria muito agradecido – disse ele, com uma mão a segurar a cabeça,
a outra esfregando as costas.
Ela contou-lhe o mais sucintamente possível o plano de Davey para raptar
Stephen.
– E deves ter concordado, obviamente – disse ele de imediato.
– Claro que não!
– Mas se te livrasses de mim, resolverias quase todos os teus problemas.
Porque não concordaste?
– Não sei – respondeu ela baixinho.
– Os argumentos dele eram bastante lógicos, uma boa forma de te livrares
de mim.
– Não sei! – repetiu ela. – Talvez eu não confiasse realmente nele. Aqui,
enquanto estávamos escondidos nas folhas, ouvi-o dizer… que nos mataria
a ambos.
– Foi o que pensei.
– Como assim?
Ele tocou-lhe num caracol de cabelo negro.
– Uma suposição baseada no número de flechas apontadas a ti. E a forma
como nos tentaram distanciar dos homens. Perturbou-te, não foi?
A cabeça dela esticou-se.
– E se descobrisses que um dos teus irmãos te tinha tentado matar?
Mesmo na escuridão reparou que a expressão de Stephen ficara branca.
Fitou-a horrorizado.
– É uma ideia impossível – disse neutramente, cortando o assunto. Olhou
em volta. – Onde estamos?
– Não faço ideia.
– E os homens? Estarão por aqui?
– Sou uma mera mulher, recordas-te? Como é que poderei conhecer a
estratégia bélica?
– Bronwyn! – admoestou ele.
– Não sei onde estamos. Se os homens não nos encontrarem em breve,
regressarão para Larenston, para onde temos de ir o mais depressa possível.
– Deitou a cabeça de lado. – Caluda! – murmurou com firmeza. – Alguém
se aproxima. Temos de esconder-nos!
O primeiro impulso de Stephen foi de defrontar o indivíduo em questão,
mas não tinha armas além da adaga, e ignorava quantos surgiriam.
Bronwyn pegou-lhe na mão e puxou-o em diante. Conduziu-o para o
cimo da crista íngreme, e passaram para o outro lado. Esconderam-se no
matagal denso e viram dois homens aparecerem. Eram caçadores,
obviamente, à procura de presas e não de uma senhora perdida mais o seu
marido.
Stephen tencionava chamar a atenção dos homens, mas Bronwyn
impediu-o. Fitou-a com espanto, mas não disse nada.
Quando os homens se encontravam fora de alcance do som, virou-se para
ela.
– Não eram do grupo do Davey.
– Pior ainda – disse ela. – Eram MacGregors.
– Não me digas que conheces os MacGregors individualmente.
Ela abanou a cabeça perante a estupidez dele.
– Os laços ostentavam as cores e insígnias dos MacGregors.
Ele lançou-lhe um rápido olhar de admiração pela extraordinária visão
noturna da rapariga.
– Julgo que sei onde nos encontramos agora.
Ele virou-se, recostou-se contra o tronco e suspirou.
– Não me digas – respondeu sarcasticamente. – Deixa-me adivinhar.
Estamos no meio da terra do MacGregor. Sem armas, sem cavalos, nem
comida ou ouro. Caçados pelo teu irmão, e o MacGregor adoraria ter as
nossas cabeças numa salva.
Bronwyn virou-se, apreciando o perfil dele, e soltou um risinho.
Stephen fitou-a com assombro, mas também sorriu.
– Sem remédio, certo?
– Sim – concordou ela com os olhos a dançarem.
– Olha que não há motivos para rir.
– Nenhum.
– Mas tem quase graça, não tem? – riu-se ele.
Ela juntou-se a ele.
– Estaremos provavelmente mortos amanhã, seja como for.
– Então o que queres fazer na tua derradeira noite de vida? – perguntou
ele, com os olhos azuis refletindo os raios do luar.
– Alguém pode aparecer sem avisar – disse ela com ar bastante sério.
– Hmmm. Vamos dar-lhes algo para verem?
– Tal como?
– Um par de duendes da madeira totalmente nus em pleno êxtase.
Ela apertou a manta contra si.
– Está muito frio, não concordas? – disse timidamente.
– Aposto que encontramos uma forma de nos mantermos quentes. Aliás,
faz todo o sentido aquecermo-nos um ao outro.
– Nesse caso… – Ela pulou do chão e caiu sobre ele.
Stephen soltou um trejeito de espanto, mas riu-se.
– Acho que já devia ter-te trazido para as terras do MacGregor.
– Cala-te, inglês! – ordenou ela, baixando a cabeça e beijando-o.
Nenhum deles se lembrou de que estavam equilibrados no cimo de uma
crista íngreme. A paixão intensificada pelo perigo dos seus apuros tornou-
os insensíveis aos perigos mais imediatos.
Bronwyn foi a primeira a perder o apoio. Tinha-se deslocado para o lado
de Stephen, despindo a saia enquanto ele se dedicava a retirar a sua roupa,
quando no minuto seguinte rolava pela encosta abaixo.
Stephen tentou agarrá-la, mas a paixão entorpecera-lhe os reflexos e
falhou. Mas também se tinha esticado em demasia e caiu atrás dela.
Aterraram ao mesmo tempo numa mistura de pele nua, exposta ao luar, e
uma chuva de folhagem.
– Estás bem? – perguntou Stephen.
– Estarei, mal saias de cima de mim. Partes-me a perna.
Ao invés de sair de cima dela, encaixou-se na rapariga ainda mais.
– Nunca te tinhas queixado que eu era demasiado pesado para ti – disse
ele, mordiscando-lhe a orelha.
Ela sorriu, fechando os olhos.
– Às vezes, não pesas nada. – Ele fez descer os lábios para o pescoço
dela.
Subitamente algo enorme aterrou pesadamente em cheio nas costas de
Stephen. Ele colapsou sobre Bronwyn por um segundo, mas logo se ergueu
sobre os braços para a proteger.
– Mas que raios!
– Rab! – exclamou Bronwyn, e esquivou-se ao corpo de Stephen. – Oh,
Rab – disse ela com grande alegria. – Rab, doce Rab. – Enterrou a cara no
pelo denso do animal.
Stephen sentou-se sobre os calcanhares.
– Só me faltava isto – comentou sarcasticamente. – Como se não tivesse
dores nas costas suficientes.
Rab afastou-se de Bronwyn e saltou para Stephen. Apesar do que dissera,
o homem abraçou o canzarrão que lhe lambia a cara e tentava abafá-lo de
afetos.
– Bem, não tens vergonha – riu-se Bronwyn. – Ele adora-te e está muito
contente por te ver.
– Oxalá prestasse mais atenção ao facto de que o adoro. Para baixo, Rab!
Vais afogar-me. Vá, busca! – Stephen atirou um pau imaginário, e o cão
correu feliz atrás dele.
– Isso foi terrível! Ele vai passar horas à procura. Quer tanto agradar.
Stephen esticou o braço e agarrou-lhe no pulso.
– Espero que passe a noite toda à procura. Sabes que ficas deliciosa ao
luar?
Ela observou o peito amplo, os ombros dele.
– Também não se pode dizer que sejas uma visão desagradável.
Stephen puxou-a para si.
– Continua assim e eu não te levo de volta para Larenston. Onde íamos?
– Estavas cheio de dores nas costas e…
A boca dele na sua calou-a.
– Anda cá, rapariga – murmurou ele, arrastando-a para as folhas.
Estava muito frio, mas nenhum deles o sentia. As folhas tombaram à
volta deles, protegendo-os, ocultando-os, aquecendo-os. Bronwyn sentiu as
coxas de Stephen contra as suas, e ela cingiu-o contra si cada vez com mais
intensidade.
Debateram-se em conjunto, a rirem-se. Paus e pedras espetavam-se na
pele dos dois, mas nenhum deles se importou. E numa vez, Stephen
começou a fazer cócegas a Bronwyn, despertando na rapariga o riso que era
tão alheio a ele, que a sua paixão ficou ao rubro.
– Bronwyn – murmurou ele, antes de a puxar para debaixo de si e o
momento se tornar sério.
Vieram-se ao mesmo tempo, mas desta vez foi especial. Apesar das suas
diferenças e da sua situação impossível, fizeram amor como se fossem
livres pela primeira vez. Com paixão, sim, mas também com alegria e
diversão.
– Não sabia que tinhas tantas cócegas – murmurou Stephen com ar
sonhador, apertando Bronwyn contra si.
Rab aninhou-se no outro lado.
– Nem eu. E se nos vestíssemos?
– Daqui a pouco – murmurou Stephen. – Daqui a pou…

Acordaram ao raiar do dia com o rosnar de Rab. Os reflexos de Stephen


fizeram-no levantar-se e empurrar Bronwyn para trás de si. Fitava um
homem a seis metros de distância. Era pequeno e magro, com cabelo e
olhos castanhos. E ostentava o laço dos MacGregor.
– Bom dia – saudou este com vigor. – Não quis acordar-vos. Vinha buscar
água mas o cão não me deixa passar.
Stephen ouviu Bronwyn inspirar fundo para falar. Virou-se e lançou-lhe
um olhar de admoestação. Estava semienterrada nas folhas, apenas a cara e
os ombros desnudos à mostra.
– Bom dia – cumprimentou-o Stephen com igual vigor, voz pesada com o
sotaque arrastado escocês. – Rab, anda cá, deixa passar o senhor.
– Obrigado, amigo – disse o homem, avançando os poucos metros até ao
ribeiro.
– Rab, traz as nossas roupas – disse Stephen, e viu o cão obedecer. Fitou
o homem na berma da água que observava o casal nu com curiosidade. –
Somos como o Adão e a Eva – riu-se Stephen.
O homem também se riu.
– Era o que eu estava a pensar – endireitou-se. – Não encontrei cavalos
nem carruagens e não sabia que havia pessoas por aqui.
Stephen vestiu a camisa, e enfiou expeditamente a manta, atando-a com o
cinto largo. Ambos os homens se viraram discretamente para Bronwyn se
vestir. Ela não disse nada, fascinada pelo sotaque recém-adquirido por
Stephen.
– Para dizer a verdade – comentou Stephen – só temos a roupa que
trazemos vestida.
Bronwyn viu-o colocar o gorro às costas e arrancar-lhe o laço dos
MacArran.
– Fomos atacados por salteadores.
– Salteadores! – disse o homem. – Nas terras do MacGregor? Ele não
gostará disso.
– Ah, pois não – concordou Stephen. – E mais quando souber que foram
aqueles patifes dos MacArrans. Oh, desculpa, amor, puxei-te o cabelo –
disse quando Bronwyn soltou um arfar de horror.
– Ah, os MacArrans – comentou o homem. – Não há gente mais
desonesta, traiçoeira e cobarde à face da Terra. Sabiam que quase mataram
o MacGregor, só porque o homem atravessou as terras daquela mulher? A
bruxa cortou-o com a faca e quase o mutilou. Ouvi dizer que ia-lhe
arrancando o membro. Deve ter inveja.
Stephen virou Bronwyn de repente para si, de modo a que o homem não
notasse a sua expressão.
– Eu ajudo-te com o broche – disse num tom agradável e arrastado.
– Mal o arranhei – disse ela com desagrado.
– O quê? – perguntou o homem.
Stephen sorriu.
– A minha esposa avisa-me que eu a arranhei da última vez que lhe
apertei o broche.
O homem riu-se.
– Sou o Donald Farquhar do clã MacGregor.
Stephen sorriu com ar feliz.
– Sou o Stephen Graham e esta é a minha esposa, Bronwyn. – Sorriu
perante a careta que esta lhe fez.
– Bronwyn! – exclamou Donald. – Que nome tão infortunado. Sabia que
é o nome da bruxa dos MacArrans?
Stephen agarrou os ombros de Bronwyn com firmeza.
– É o nome que lhe deram, não é culpa dela…
– Não, pois não. – Ele fitou o cabelo comprido e espesso de Bronwyn que
lhe tombava pelas costas e que tinha folhas presas. – Vê-se perfeitamente
que a sua Bronwyn não é como a outra.
Bronwyn dobrou a cabeça e agiu como se beijasse a mão de Stephen, mas
a bem dizer aplicou os dentes com força na pele. Ele soltou-a, e ela virou-se
para sorrir a Donald.
– E obviamente viu a MacArran várias vezes – disse com ar doce.
– Não, de perto não, mas já a vi ao longe.
– E é feia?
– Ah, sim. Ombros largos como os de um homem e mais alta que a maior
parte dos seus homens. E uma cara tão hedionda que tem de andar tapada.
Os dedos de Stephen enterraram-se nos ombros dela em jeito de aviso.
Ela anuiu.
– Foi o que ouvi dizer. É bom encontrar alguém que a conhece, por assim
dizer – disse ela com ar sério.
Stephen inclinou-se para diante e beijou-lhe a orelha.
– Comporta-te, para que não nos matem – murmurou.
Donald sorriu aos dois.
– Devem ser recém-casados – disse ele alegremente. – Reparei logo pela
forma como vocês não se largam.
– Você é perspicaz, Donald – disse Bronwyn.
– Gosto de me considerar observador. A nossa carruagem encontra-se no
cimo da crista rochosa. Talvez queiram comer connosco e conhecer Kirsty,
a minha mulher.
– Não… – começou Bronwyn a dizer, mas Stephen interpôs-se diante
dela.
– Adoraríamos – respondeu ele. – Não comemos nada desde o meio-dia
de ontem. Talvez nos possa orientar. Desde que fomos roubados, andámos
às voltas e não sabemos onde estamos.
– Mas fizeram bom uso do tempo – riu-se Donald, fitando
significativamente as folhas.
– Isso é verdade! – exclamou Stephen jovialmente, braço pousado
firmemente sobre os ombros de Bronwyn.
– Bem, venham daí. Um MacGregor acolhe sempre outro MacGregor. –
Virou-se e começou a subir a colina.
– Não faças nada que nos coloque em perigo – avisou Stephen enquanto o
seguiam.
– Um MacGregor! – murmurou ela irada.
– E um inglês! – acrescentou ele no mesmo tom de voz.
– Não sei qual dos males é o menor.
Stephen sorriu.
– Odeia-me a mim, mas não a ele, pois tem comida.
No cimo da crista rochosa, os três pararam e fitaram a mulher pequenina
dobrada sobre a fogueira. Era delicada, pouco maior que uma criança, e o
perfil indicava um nariz minúsculo, uma boca frágil. Mas o que era tão
invulgar era a sua condição: estava grávida. A barrigona parecia um
monumento gigante. Ia contra as forças da razão que conseguisse manter-se
direita, sem cair para a frente com o peso.
Ela endireitou-se sem dificuldades, e virou-se para fitar as três pessoas
que a observavam. Durante um instante só viu Donald, e um sorriso de pura
adoração iluminou-lhe o rosto. Mas a expressão alterou-se quando depois
encontrou Bronwyn. Pareceu atravessar várias emoções: espanto, medo,
incredulidade, até sorrir por fim.
Stephen e Bronwyn ficaram quietos, sem respirarem, esperando a
qualquer instante que revelasse a identidade deles.
– Kirsty! – exclamou Donald, acorrendo para a mulher. – Sentes-te bem?
Ela pousou uma mão na barrigona e fitou-o apologeticamente.
– Desculpa receber-te assim, mas senti um pontapé muito forte.
Donald olhou para cima e sorriu.
– É um rapaz forte – riu-se. – Venham, sentem-se aqui à fogueira.
Stephen foi o primeiro a relaxar os músculos e avançar para a fogueira.
Bronwyn seguiu-o devagar. Ainda não tinha certeza se não vira um ar de
reconhecimento em Kirsty. Talvez pensasse contar a Donald mais tarde e os
MacGregors iriam atacá-los durante a noite.
Donald apresentou-os à esposa, e mesmo quando o nome de Bronwyn foi
mencionado, ela limitou-se a sorrir. Não era um nome escocês mas galês, e
teria despertado comentários.
– Julgas que temos comida que baste? – perguntou Donald.
Kirsty sorriu. Tinha cabelo louro-escuro e olhos inocentes e castanhos.
Era difícil que as pessoas não confiassem nela.
– Temos sempre de sobra para partilhar – disse baixinho.
Sentaram-se diante de uma refeição de pães de aveia e um guisado de
coelho saboroso. O vento frio soprava em redor deles. A carruagem de
Donald encontrava-se na berma da estrada, com um abrigo de madeira
erguido no cimo. Um carro confortável mas não destinado a longas
viagens.
Depois do pequeno-almoço, Stephen propôs que ele e Donald fossem à
caça.
Bronwyn levantou-se de imediato, limpou as migalhas da saia e
prontificou-se a acompanhá-los.
Stephen virou-se para ela.
– Talvez devesses ficar com a Kirsty – disse baixinho, com intento. – O
lugar da mulher é junto à fogueira.
Bronwyn sentiu-se a encher de raiva. O que sabia ela das artes da
cozinha? Na caça podia ajudar. Foi quando viu a aprovação no rosto de
Donald que compreendeu Stephen. Donald podia desconfiar de uma mulher
capaz de caçar mas incapaz de cozinhar. Suspirou, resignada.
– Ao menos, teremos o Rab para proteção.
– Não – disse Stephen. – Acho que vamos precisar dele na caçada.
– Rab! – ordenou ela. – Fica comigo.
– Vem, Rab – disse Stephen, cheio de paciência. – Vamos caçar.
O canzarrão nem sequer tentou mover-se e abandonar Bronwyn.
Donald riu-se.
– O cão está bem treinado.
– Foi-me dado pelo meu pai – disse ela com orgulho.
– O seu pai? – inquiriu Donald.
– É melhor irmos – disse Stephen rapidamente, lançando um olhar de
aviso a Bronwyn.
Ela afastou-se deles e sentou-se junto à lareira, perto de Kirsty – a sua
inimiga.
Capítulo Dez

Bronwyn torceu um pedaço de erva nas mãos. O aviso de Stephen fê-la


perceber que era muito fácil denunciar-se. Sabia pouco sobre ser uma
esposa e sobre o comportamento normal de uma mulher. Passara a vida
inteira com homens. Era capaz de cavalgar e atirar mas cozinhar era, para
ela um verdadeiro mistério. Tal como as conversas banais entre mulheres.
– Casaram-se há muito? – perguntou Kirsty.
– Não – respondeu Bronwyn. – E vós?
– Há cerca de nove meses. – Sorriu Kirsty, esfregando a barriga enorme.
Bronwyn percebeu subitamente que um dia a barriga dela também teria
aquele aspeto. Nunca lhe ocorrera que teria de experimentar a gravidez.
– A criança dá muitas dores? – perguntou baixinho.
– Só de vez em quando. – Subitamente um ar de dor encheu-lhe o rosto. –
Hoje está pior do que é costume – disse sem fôlego.
– Queres que te traga alguma coisa? Água? Uma almofada?
Kirsty fitou-a, pestanejando incessantemente.
– Não, fala comigo, apenas isso. Não falo com mulheres há muito tempo.
Conta-me, como é o seu marido?
– Stephen? – perguntou Bronwyn.
Kirsty riu-se.
– Não faça caso, sou cusca. Só quando vivemos com um homem é que o
conhecemos verdadeiramente.
Bronwyn falou com cautela.
– O Donald foi uma desilusão?
– De modo algum. Ele era muito tímido antes de casarmos, e agora é
bondoso e atencioso. O seu Stephen parece ser um bom homem.
Bronwyn percebeu que nunca pensara em Stephen, a não ser como
inglês.
– Ele… ele faz-me rir – disse após um momento. – Faz-me rir quando
fico demasiado séria.
Kirsty sorriu, depois levou as mãos ao estômago e dobrou-se para diante.
– O que foi? – berrou Bronwyn, aproximando-se dela
Kirsty endireitou-se, a respirar profundamente, com dificuldade.
– Deixa-me ajudar-te, por favor – suplicou Bronwyn, com as mãos sobre
o braço de Kirsty.
Kirsty olhou Bronwyn nos olhos.
– És muito bondosa, não és?
Bronwyn sorriu.
– Nem um pouco. Sou… – Calou-se antes de confessar que era
MacArran. Mas o que era ela, longe do seu clã?
Kirsty pousou a mão sobre a de Bronwyn.
– Acho que tentas esconder. Fala-me mais de ti. Ajuda-me a distrair dos
meus problemas.
– Acho que devia chamar alguém. Acho que vais ter o bebé agora.
– Por favor – disse Kirsty em desespero. – Não assustes o Donald. O bebé
ainda não vai nascer. Não pode ser. O Donald e eu vamos para a casa dos
meus pais. A minha mãe fará de parteira. Deve ser algo que comi. Já tive
estas dores.
Bronwyn franziu o cenho, voltando a sentar-se no chão.
– Fala-me de ti – pediu Kirsty novamente. Tinha o olhar vidrado. – O que
é estar casada com um…
A cabeça de Bronwyn levantou-se bruscamente, mas Kirsty não terminou
a frase. Dobrou-se de dor, e no minuto seguinte, Bronwyn agarrou a
pequena mulher nos braços.
– É o bebé – murmurou Kirsty. – Está a vir. És a única que me pode
ajudar.
Bronwyn ficou a olhar, horrorizada. Estavam no meio de nenhures, quem
faria de parteira? Abraçou Kirsty enquanto nova dor a percorria.
– Rab – chamou baixinho – vai buscar o Stephen. Vai buscar o Stephen e
trá-lo cá imediatamente.
Rab desapareceu antes de Bronwyn acabar de falar.
– Entra na carruagem, Kirsty – disse gentilmente. Bronwyn era forte, e
foi-lhe fácil empurrar a mulher pequena para a carruagem. Kirsty deitou-se,
e nova dor fê-la dobrar-se.
Bronwyn espreitou para o bosque. Não havia sinais dos homens. Voltou a
dar atenção a Kirsty, entregando-lhe um copo de água. Stephen saberia o
que fazer, não parava de pensar, embora sem se aperceber que pela primeira
vez dependia dele.
Sorriu ao ouvir o berro zangado de Stephen.
– Bronwyn!
Ela desceu da carruagem.
– Mas que raio está este cão dos demónios a tentar fazer? – perguntou ele.
– Saltou-me em cima logo quando eu tentava mirar um veado. Depois quase
me rasgou a perna a tentar arrastar-me até aqui.
Ela limitou-se a sorrir-lhe.
– A Kirsty vai ter o bebé.
– Oh, meu Deus! – exclamou Donald acorrendo para a carruagem.
– Quando? – perguntou Stephen.
– Parece-me que já.
– Parece-te! – exclamou Stephen, irritado. – Não sabes?
– Como haveria de saber?
Stephen engasgou-se.
– As mulheres deviam saber essas coisas.
– E quando é que aprendem, durante as lições de leitura ou de esgrima? –
perguntou ela sarcasticamente.
– Uma educação perfeitamente inadequada para uma rapariga, se quiseres
saber. Deve ter havido uma época em que a tua família não se dedicava
apenas aos assaltos ao gado.
– Raios te partam! – começou ela, mas calou-se quando Donald desceu da
carruagem.
Estava obviamente preocupado.
– Quer falar consigo – disse ele, testa franzida. Nos cantos dos lábios via-
se um traço branco. Alcançou um pedaço de lenha, mas a mão tremia tanto
que o deixou cair.
– Comigo? – perguntou Bronwyn mas Stephen deu-lhe um empurrão com
força.
– Não há mais ninguém – disse ele.
A expressão dela ficou sem cor.
– Stephen, não sei nada sobre partos.
Ele pousou a mão na sua face.
– Estás assustada?
Ela fitou as suas mãos.
– Não deve ser muito diferente de trazer uma égua ou vaca ao mundo –
disse ele, esperançosamente.
– Uma vaca! – Bronwyn lançou-lhe um olhar faiscante, mas depois
acalmou-se. – Fica comigo – pediu calmamente. – Ajuda-me.
Stephen nunca a vira tão mansa e necessitada de apoio.
– Mas como? Um homem não assiste aos partos. Talvez se fosse minha
parente…
– Olha para ele! – disse Bronwyn, indicando Donald. – Só se interessa
que a mulher fique bem. Não se interessa com mais nada.
– Bronwyn! – berrou subitamente Kirsty do interior da carruagem.
– Por favor – pediu, a mão pousada no peito de Stephen. – Nunca te pedi
nada antes.
– A não ser que mudasse o meu nome e nacionalidade e…
Ela virou-lhe as costas mas ele tomou-lhe o braço
– Juntos – sussurrou ele. – Por uma vez, façamos algo juntos.

Não foi um parto fácil. Kirsty era muito pequena, e o bebé enorme.
Nenhum dos três tinham experiência, mas todos concordaram no fim que
tinha sido fabuloso. Bronwyn e Stephen suaram tanto quanto Kirsty.
Quando a cabeça emergiu, entreolharam-se com orgulho. Stephen susteve
Kirsty para que esta conseguisse assistir enquanto Bronwyn agarrava na
cabecinha e guiava gentilmente os ombros para fora.
A última parte do bebé quase saiu por si, e Bronwyn segurou-o nos
braços.
– Conseguimos! – murmurou.
Stephen sorriu-lhe, depois deu a Kirsty um beijo forte.
– Obrigada – sorriu Kirsty, recostando-se contra o braço de Stephen,
completamente exausta mas muito feliz.
Demoraram alguns minutos a limpar a criança e Kirsty. Stephen e
Bronwyn fitaram mãe e filho, este já à procura do peito de Kirsty.
– Vamos contar ao Donald que tem um filho – murmurou Stephen.
Donald aguardava do lado de fora da carruagem, cara cheia de medo.
– Alegra-te! – disse Stephen, rindo-se. – Anda ver o rapaz.
– Um rapaz – comentou Donald, numa voz muito trémula antes de subir
para a carruagem.
Escurecera durante o trabalho de parto. O dia brilhante e frio dera azo a
uma noite escura e ainda mais fria.
Bronwyn espreguiçou-se, inspirando profundamente o ar fresco e
límpido. Sentia-se livre, mas sem saber porquê. Subitamente deitou a
cabeça para trás, esticou os braços e rodopiou.
Stephen riu-se e agarrou-a, levantando-a do chão.
– Foste maravilhosa – disse ele com entusiasmo. – Calma e forte, e
facilitaste a provação de Kirsty. – Calou-se de imediato, receando que
tivesse aberto a porta para ela lhe contar do treino que recebera para se
tornar a chefe MacArran.
Bronwyn sorriu-lhe, envolveu-lhe o pescoço com os braços, encostando-
lhe a cara no ombro.
– Obrigada. Mas foram as tuas ideias do que havíamos de fazer que
ajudaram mesmo. Se fosse só eu, teria ficado paralisada quando vi a cabeça
do bebé.
Stephen não acreditou nela nem um pouco, mas contribuiu para o seu
orgulho pensar que lhe tinha sido útil.
– Estás cansada? – perguntou baixinho, cingindo-a contra si e afagando-
lhe o cabelo.
– Muito – disse ela, sentindo-se confortável e descontraída.
Ele inclinou-se e passou o braço sob os joelhos dela.
– Procuremos um lugar para dormir. – Levou-a por cima da crista da
encosta e pousou-a, enquanto desatava a manta e a esticava no chão. Em
poucos minutos, aninhavam-se um no outro, apertando-se para manterem o
calor, Rab de encontro às costas de Bronwyn.
– Stephen? – perguntou Bronwyn baixinho. – O que vamos fazer agora?
Não temos forma de alcançar Inglaterra, e sozinhos hão de reconhecer-nos.
Stephen ficou muito quieto, com o pensamento acelerado. Bronwyn
nunca lhe pedira a opinião, nem se deitara ao seu lado daquela forma,
confiando nele. Sorriu, beijou-lhe o cimo da cabeça, e apertou-a contra si,
sentindo o peito inchar visivelmente.
– Ainda não pensei bem, mas se pudermos, devíamos continuar com
Kirsty e Donald. – Fez uma pausa. – Que te parece? – Mal proferira estas
palavras, percebeu que tinha mudado. Há meses teria simplesmente dado
uma ordem à esposa. Agora, pedia-lhe a opinião.
Bronwyn anuiu, encostada a ele.
– Dirigem-se para sul, para a casa dos pais dela. Se pudéssemos
acompanhá-los, talvez conseguíssemos comprar cavalos.
– Comprar? Com a tua beleza? – perguntou Stephen. – Não temos nada
que valha um tostão. Nem conseguimos pagar ao Donald pela
hospitalidade.
– Um escocês não espera ser pago.
– Nem sequer um MacGregor? – brincou Stephen.
Ela soltou um risinho.
– Desde que pense que não somos MacArrans. Quanto à comida, és bom
caçador, e julgo que melhor do que o Donald. Agora só temos de encontrar
uma forma de pagar os cavalos. – Ela suspirou. – É uma pena que o Davey
não nos tenha atacado mais próximo da fronteira.
– Porquê?
– Teria vestido um vestido inglês. Aquelas malditas coisas estão cobertas
de joias que poderia vender.
– Se estivesses vestida à inglesa, o mais certo é que não estarias viva e,
além disso, não teríamos uma manta quente para nos enrolarmos.
Ela fitou-o.
– Pensei que odiavas os nossos trajes escoceses. Se bem me recordo,
disseste que te deixava a nu a tua metade de baixo.
– Não sejas impertinente – disse ele com uma seriedade fingida. – O
acesso fácil tem as suas vantagens. Consegue-se soltar a manta no mesmo
tempo que demora a um inglês a pensar em despir-se.
Ela sorriu-lhe.
– Isso é orgulho na tua voz? – brincou. – E onde é que arranjaste esse
sotaque?
– Não entendo o que queres dizer – brincou ele. – E em boa verdade, acho
que veio com a manta.
– Eu gosto – disse ela suavemente, levantando o joelho pela perna
exposta debaixo da camisa que ele ainda usava. – Queres fazer amor com
uma parteira? Ou insistes em ter a senhora de um clã?
Ele pousou a mão no cabelo dela.
– Neste instante, tomo-te tal como és. Bronwyn, uma coisinha doce e
deliciosa capaz de montar como um demónio, salvar a vida ao marido e dar
à luz um bebé numa questão de horas.
– Tive uma pequena ajuda – sussurrou ela, antes de levantar a boca para
receber o beijo.
Bronwyn também sentia a estranheza do lugar e do tempo. Podia sentir-se
preocupada com o clã mas sabia que Tam estaria lá para os guiar, e talvez
os seus homens estivessem melhor sem a contenda constante entre ela e
Stephen. Agora não tinha qualquer vontade de lutar com ele. Sentia-se
como nunca: mansa e feminina. Sem decisões para tomar, sem raiva, sem
preocupações de que Stephen estivesse do lado oposto. Agora eram caçados
por igual.
– Tens um olhar distante – comentou ele. – Partilhas os teus pensamentos
comigo?
– Pensava em como me sinto feliz agora. Não tenho tido pensamentos
felizes nem calmos desde a morte do meu pai.
Stephen sorriu porque, pela primeira vez, ela não o acusou de matar
ninguém.
– Anda cá, docinho, a ver se te faço ainda mais feliz.
Desta vez não se apressou a despi-la. Rodaram ambos debaixo da manta
enrolada e riram-se quando um cotovelo se enterrou num lugar delicado.
Era uma luta íntima, rodando, rindo-se, apreciando-se mutuamente bem
como à sua liberdade.
As mãos de Stephen na pele de Bronwyn aquietaram-na. Descobria os
prazeres de fazer amor com ele. Beijou-lhe o rosto, o pescoço, acompanhou
o jogo do luar sobre a pele dele.
Ele traçou-lhe o ombro com os lábios, depois desceu até ao peito. Ela foi
assolada por arrepios.
– Stephen – sussurrou. Ele percorreu a cintura e as costelas com as mãos.
A força dele era excitante, tornava-a pequena e dependente dele.
– És linda – sussurrou ele.
Ela sorriu e soube que ele a tornava linda. Passou as mãos pelo interior
das coxas dela, e quando a sentiu tremer, igual emoção assolou-o.
Em cima dela, mexia-se devagar. Ela entregou-se a ele sem reservas, com
ânsia, puxando a boca contra a sua. Quando ela gemeu alto de prazer
Stephen beijou-a intensamente. Os sons que ela emitia, o seu abandono à
paixão dele, excitavam-no.
Fizeram amor demoradamente, até Bronwyn arranhar Stephen, exigindo-
lhe mais. Arqueou o corpo ao encontro dele, e ele explodiu num ímpeto
vigoroso. Ela agarrou-o com força, sem o deixar ir, querendo-o na íntegra.
Adormeceram assim, unidos, envoltos nos braços mútuos.
Foi Bronwyn a primeira a acordar. Stephen apertava-a contra si a ponto
de mal conseguir respirar. Ela fitou-o por instantes. Tinha um caracol de
cabelo sobre a orelha. Ela notou como ele tinha mudado ao longo dos
últimos meses. Idos estavam a pele pálida dos ingleses e o cabelo curto e
arranjado inglês. Sim, pensou ela, ninguém diria que era inglês agora.
Mexeu-se para beijar o caracol de cabelo. Recordou os dias em que temera
tomar iniciativas daquela natureza. Nesta manhã nada era mais certo do que
acordá-lo aos beijos.
Ele sorriu antes de abrir os olhos.
– Bom dia – sussurrou ela.
– Até tenho medo de olhar – disse ele, sonhador. – Alguém terá trocado a
minha Bronwyn por um duende dos bosques? – Ela mordeu-lhe o lóbulo da
orelha.
– Ai! – Abriu os olhos, depois riu-se. – Acho que não te troco por duende
nenhum – disse, aproximando-se dela.
– Nem penses! – Ela empurrou-o. – Quero ver o nosso bebé.
– O nosso bebé? Prefiro ficar aqui e fazer um só para nós.
Ela rodou para longe dele.
– Não sei se quero passar pelo mesmo de Kirsty. Anda, fazemos uma
corrida até ao cimo da encosta.
Stephen vestiu-se à pressa, e só quando Bronwyn alcançou o cimo da
crista que o riso dela o fez virar-se. Ela mostrou as botas dele. Ele gritou a
Rab para lhe trazer as botas, e a desavença entre cão e dona deu-lhe tempo
para correr pela colina. Ele conseguiu recuperar as botas, correndo depois
nas suas meias curtas de lã para a carruagem. Aguardava calmamente
sentado quando ela regressou.
– Bom dia – saudou-a como se não a visse há dias. – Dormiste bem?
Ela riu-se dele e entrou na carruagem para cuidar de Kirsty.
O resto do dia trouxe pouco tempo para risos ou brincadeiras. Os homens
foram à caça e Bronwyn foi deixada para trás para cuidar de Kirsty e do
acampamento. Estava chocada com a pouca quantidade de comida que o
casal tinha. Havia dois pequenos sacos de pães de aveia e pouco mais. Não
queria insultar Kirsty pedindo mais mantimentos, mas esperava que
houvesse outros algures.
Os homens regressaram ao cair do dia apenas com dois pequenos coelhos
nas mãos, que mal davam para uma refeição.
– Stephen – disse Bronwyn, puxando-o para o lado –, não podemos
continuar a aproveitar-nos deles. Não têm nada praticamente.
Ele recostou-se contra uma árvore.
– Eu sei, mas ao mesmo tempo, detesto deixá-los a sós. O Donald mal
sabe usar um arco e flecha. E a caça nesta zona foge dos caçadores. Detesto
largá-los e detesto ficar.
– Oxalá pudéssemos ajudar de alguma forma. Olha, bebe isto. – Estendeu
uma caneca.
– O que é?
– A Kirsty pediu-me que o preparasse. É feito de líquenes com um pouco
de cerveja. Disse que cura tudo. Passou o dia preocupada contigo e com o
Donald ao frio.
Stephen provou o líquido quente.
– E tu, preocupaste-te connosco?
Ela sorriu.
– Talvez com o Donald, mas eu sabia que serias capaz de tomar conta dos
dois.
Ele começou a responder, mas a bebida chamou-lhe a atenção.
– Isto é mesmo bom. Acho que está a curar a minha dor de cabeça.
Ela franziu a testa.
– Não sabia que te doía a cabeça.
– Não parou de doer desde que a seta do teu irmão a raspou. – Mudou de
assunto. – Tive uma ideia. Foi difícil arranjar líquenes?
– Nem por isso – disse ela, curiosa.
Os olhos de Stephen começaram a brilhar.
– Hoje o Donald contou-me que há uma vila aqui perto. Quer levar o filho
para ser batizado. Se nós os dois prepararmos uma barrica desta mistela,
talvez a possamos vender.
– Isso é muito esperto! – concordou ela, começando a fazer planos.
Passaram o final do dia à procura de líquenes. Donald reuniu o dinheiro
que havia e usou um dos cavalos da carruagem para se dirigir à vila e
comprar mais cerveja.
Já se fazia tarde quando estenderam as mantas no chão ao lado da
fogueira moribunda e se deitaram. Bronwyn aninhou-se a Stephen, satisfeita
por ficar ao lado dele sem ter de fazer amor. Esta sensação de proximidade
era nova para si, e fê-la sentir-se confortada e contente.
Muito cedo na manhã seguinte, atrelaram os cavalos à carruagem e
dirigiram-se para a pequena vila muralhada. Parecia haver centenas de lojas
além de casinhas dentro das muralhas, e o ar estava pesado, desagradável
para o respirar. Bronwyn ansiava pelos campos abertos.
Entrara em poucas vilas em toda a sua vida. Normalmente, eram os
mercadores que se dirigiam para Larenston para venderem os bens.
Donald parou a carruagem na estreita rua principal, diante de um beco, e
soltaram os cavalos. Preparavam um jarro da bebida e começaram a chamar
as pessoas para comprarem. Bronwyn e Kirsty ficaram dentro da carruagem
à escuta. A voz profunda de Stephen ecoava por cima do ruído da vila. Fez
algumas promessas extraordinárias pela bebida, falando da sua experiência
breve como se o tivesse curado da lepra.
Mas ninguém lhes comprava nada.
As pessoas paravam para escutar, mas não ofereciam moedas em troca do
líquido milagroso.
– Talvez pudesses executar uns rodopios com o corpo como fizeste ao
Tam – brincou Bronwyn.
Stephen ignorou as provocações dela enquanto tentava convencer um
jovem a comprar, dizendo que o elixir melhoraria a sua vida amorosa.
– Talvez o senhor precise de ajuda, mas eu não – respondeu o jovem. A
multidão riu-se e começou a dispersar-se.
– Está na hora de tentar isto – disse Bronwyn, começando a desabotoar a
camisa.
– Bronwyn! – protestou Kirsty. – Estás a pensar fazer uma coisa para
enfurecer o Stephen?
Ela sorriu.
– Talvez. Assim chega? – Olhou para baixo, para a curva generosa dos
seios expostos pela camisa desabotoada.
– Chega e bem. O Donald arrancava-me os cabelos se me visse assim.
– As inglesas usam vestidos com decotes no limite da decência –
retorquiu Bronwyn.
– Mas tu não és inglesa!
Bronwyn limitou-se a sorrir, em forma de resposta, descendo da dianteira
da carruagem, na ponta oposta à de Stephen.
Stephen sorriu de surpresa quando a ouviu anunciar.
– Isto cura tudo, desde furúnculos à doença dos suores – dizia ela.
Stephen viu a multidão começar a aproximar-se da parede lateral da
carruagem.
– A sua mulher anda infeliz? – anunciou Bronwyn. – Talvez seja culpa
sua. Esta bebida vai fazer de si o mais poderoso dos homens. Uma poção
amorosa sem rival.
– Conseguirá encontrar-me uma mulher como você? – berrou um
homem.
– Só se beber uma pipa inteira – respondeu Bronwyn prontamente.
A multidão riu-se.
– Acho que vou experimentar – berrou outro homem.
– Vou comprar alguma para o meu marido – exclamou uma mulher, antes
de se apressar para o fundo da carruagem, onde Donald e Stephen
aguardavam.
Durante algum tempo Stephen manteve-se entretido a encher os frascos
dos aldeões e a aceitar moedas para escutar Bronwyn com atenção. Estava
orgulhoso da forma como ela vendia e satisfeito que as pessoas gostassem
dela. Riu-se com a ideia de uma senhora inglesa que se fingisse ser
vendedora de rua, e com tanto êxito.
Foi quando começou a perceber o riso baixo e sugestivo dos homens que
ela realmente lhe chamou a atenção.
Um dos homens segurando uma caneca virou-se para o companheiro.
– Ela praticamente prometeu que se encontraria comigo junto ao poço da
terra.
O rosto de Stephen enregelou.
– E ela referiu que eu também iria? – perguntou numa voz ameaçadora.
O homem olhou para Stephen, para o desafio no rosto esbelto, e recuou.
– Não me ponha as culpas, foi ela quem me deu essa ideia.
– Raios a partam! – disse Stephen violentamente e atirou a concha para
dentro da bebida. O que julgava ela que estava a fazer?
Deteve-se ao contornar a carruagem. Ela tinha a camisa desabotoada,
expondo uma generosa porção dos seios firmes e subidos. Tinha despido a
manta e a saia colava-se às pernas. Andava destemida diante da multidão
cada vez maior. E a forma como andava! Mãos nas ancas, ancas que
baloiçavam sedutoramente.
Durante um instante, ficou chocado, e demasiado atordoado para reagir;
depois deu dois passos compridos na direção dela. Agarrou-a pelo braço, e
puxou-a para o beco nas traseiras da carruagem.
– Mas que raio pensas tu que fazes? – perguntou entredentes cerrados.
– A vender o bálsamo – disse ela muito calmamente. – Tu e o Donald não
estão a fazer grande coisa, e pensei que ajudaria.
Ele soltou-lhe o braço e começou a abotoar-lhe a blusa com raiva.
– Estás a gostar disto, não estás? A exibir-te como uma flausina!
Ela encarou-o, e sorriu de contentamento.
– Estás com ciúmes?
– Claro que não! – retorquiu ele, calando-se depois. – Claro que sim,
estou com ciúmes. Aqueles sebosos não têm direito a ver o que me
pertence.
– Oh, Stephen, isso… isso, não sei, mas fico muito contente com a tua
ciumeira.
– Contente? – perguntou, atónito. – Da próxima vez, espero que dependas
da tua memória e não despertes novamente este sentimento. – Abraçou-a
com força e beijou-a: feroz, ávido, possessivo.
Bronwyn correspondeu, e empurrou o corpo contra o dele, deixando-se ir
naquela posse.
Subitamente um berro que quase abalou as casas à sua volta interrompeu-
lhes o beijo.
– Onde está a moça que vendia o bálsamo?
Bronwyn afastou-se com relutância, olhando para Stephen, confusa.
– Onde está ela? – irrompeu a voz novamente.
– É o MacGregor – sussurrou ela. – Já ouvi a voz dele no passado.
Ela virou-se para a voz, mas Stephen agarrou-lhe no braço.
– Não podes ir ao encontro do MacGregor.
– Porque não? Nunca me viu. Não sabe quem eu sou, e além disso, como
é que posso recusar? Estamos em terra dos MacGregors.
Stephen franziu o cenho mas soltou-a. Uma recusa despertaria as
suspeitas.
– Aqui estou eu – anunciou ela, saindo do beco, com Stephen atrás de si.
O MacGregor montava a cavalo, fitou-a com olhar divertido. Era um
homem grande e compacto, cabelo grisalho nas têmporas, maxilar
particularmente forte. Tinha olhos verdes e muito vivos sobre um nariz
proeminente. – Quem me chama? – perguntou ela com arrogância.
O MacGregor deitou a cabeça para trás e soltou um estrondo de riso.
– Como se não soubesses quem é o teu senhor – disse ele, o olhar
enaltecendo um tom profundo de esmeralda.
Ela sorriu-lhe com ar doce.
– Será o mesmo senhor que não conhece os seus próprios elementos do
clã?
Ele não perdeu o sorriso.
– És uma moça atrevida. Como te chamas?
– Bronwyn – respondeu ela com orgulho, como se o nome fosse um
desafio. – O nome da senhora do clã MacArran.
A mão de Stephen apertou o ombro dela em jeito de aviso.
O olhar do MacGregor endureceu.
– Não evoques essa mulher na minha presença.
Bronwyn enfiou as mãos na anca.
– Será porque ainda trazes a marca dela na tua pessoa?
Subitamente fez-se um silêncio de morte. A multidão ficou tensa, com a
respiração contida.
– Bronwyn – começou Stephen, atónito com as palavras dela.
O MacGregor levantou a mão.
– Não só és atrevida como corajosa. Nenhuma outra pessoa se atreveu a
mencionar-me essa noite.
– Conta-me, porque ficaste tão zangado com uma marca tão pequena?
O MacGregor ficou silencioso ao ponderar a questão, e também a própria
rapariga.
– Pareces saber muito sobre esse assunto. – A tensão soltou-se dele
subitamente, e sorriu. – Talvez seja a mulher. Se fosse mais parecida
contigo, usaria a marca com orgulho, mas nenhuma mulher com aparência
de uma bruxa horrenda marcará um MacGregor.
Bronwyn preparou-se para responder, mas Stephen assentou ambas as
mãos na cintura dela impedindo-a de respirar.
– Perdoe a minha esposa – disse. – É um pouco desbocada.
– Isso é – concordou o MacGregor com entusiasmo. – Oxalá consigas
segurá-la.
– Seguro o mais que posso – riu-se Stephen.
– Gosto de uma mulher com verve – disse o MacGregor. – Esta é bonita e
tem cabeça.
– Mas eu preferia que de vez em quando ela guardasse os pensamentos
para si.
– Isso é coisa que as mulheres não fazem. Tenham um bom dia – disse,
incitando o cavalo para partir.
– Raios te partam! – exclamou Bronwyn ao virar-se para Stephen.
Antes de ela ter hipótese de se manifestar, ele deu-lhe um abanão de
sacudir os dentes.
– Ainda nos metias em sarilhos! – começou, olhando depois para a
multidão ainda atenta a eles. Agarrou-a pelo braço e puxou-a para a parte
lateral da carruagem. – Bronwyn – disse com paciência –, não sabes o que
podias ter feito? Quase que te anunciavas como a senhora do clã
MacArran.
– E se o tivesse feito? – perguntou ela teimosamente. – Ouviste-o dizer…
Interrompeu-a.
– Aquilo de que um homem se gaba a uma rapariga bonita e aquilo que é
obrigado a fazer perante uma multidão são duas coisas distintas. Pensaste
na Kirsty e no Donald? Deram-nos abrigo.
Para seu espanto, Bronwyn descontraiu-se, ou melhor dizendo,
desinchou. A alma como que a abandonou. Recostou-se contra os braços
dele.
– Estás cheio de razão, Stephen. Quando é que aprendo?
Ele cingiu-a contra si, afagando-lhe o cabelo. Gostava que ela o usasse
como apoio, mental e fisicamente.
– Serei alguma vez suficientemente esperta para merecer ser a chefe
MacArran?
– Serás, amor – sussurrou ele. – O desejo vive dentro de ti, e em breve
irás satisfazê-lo.
– Bronwyn?
Ambos olharam para cima, descobrindo Donald junto a eles.
– A Kirsty quis que vos viesse perguntar se estavam prontos para ver o
padre. Pensámos batizar o bebé antes de anoitecer. Não gostamos de estar
dentro de paredes à noite.
Stephen sorriu.
– Claro que estamos prontos. – Perscrutou Donald, percebendo que algo
incomodava o jovem. E porque se teria dirigido a Stephen em primeiro
lugar? Ocorreu-lhe que se Donald esteve dentro da carruagem, tê-los-á
escutado a dizer que Bronwyn era uma MacArran. Se soubesse, Stephen
podia garantir que Donald não tencionava entregá-los ao MacGregor.

A igreja era a maior edificação da terra, alta, imponente. Calaram-se


quando entraram, com o bebé adormecido nos braços de Kirsty.
– Posso falar contigo? – perguntou ela baixinho antes de alcançarem o
altar. – Aceitam serem padrinhos do nosso filho?
Bronwyn ficou a olhar por instantes.
– Mal nos conhece – sussurrou.
– Conheço o suficiente. Sei que encaram o papel de padrinhos com
seriedade e responsabilidade.
Stephen tomou a mão de Bronwyn.
– Sim, seremos padrinhos, em tudo o que isso implica. Nunca faltará nada
ao rapaz enquanto formos vivos – disse ele.
Kirsty sorriu a ambos, e avançou para o padre que a esperava. O rapaz foi
batizado com o nome de Rory Stephen. Stephen, após uma expressão de
espanto, sorriu abertamente. Não surgiram protestos de Bronwyn quando
ele indicou o sobrenome de Montgomery ao padre.
Ao abandonarem a igreja, ele transportou a criança de regresso à
carruagem. Olhou para Bronwyn.
– Porque não fazemos um como este? Gostava de ter um menino com
cabelo preto e olhos azuis e uma cova no queixo.
– Então a minha aparência adequa-se melhor ao género masculino? –
brincou ela.
Ele riu-se.
– Sabes, começo a gostar de ti, agora que não me chamas constantemente
inglês.
Ela observou o cabelo comprido dele, e a forma como usava um tartã com
tanta facilidade.
– Não te pareces com um inglês. O que vão os teus irmãos dizer quando
virem que o irmão se tornou quase escocês?
Ele fungou de desdém.
– Aceitar-me-ão como sou, e, se tiverem um mínimo de miolos,
aprenderão coisas dos escoceses como nós.
– Nós? – perguntou ela acutilante, interrompendo o passo.
– Anda, para de fitar-me como se me tivesse crescido uma segunda
cabeça – disse ele.
Ela prosseguiu, observando-o, e subitamente percebeu que ele usava o
sotaque escocês constantemente, mesmo quando se encontravam a sós. A
manta batia-lhe nos joelhos no ângulo certo, e caminhava como se tivesse
sido escocês a vida inteira. Ela sorriu e apressou o passo. Tinha bom aspeto,
o homem, levando o bebé no braço sem dificuldades, e ela apreciava a
forma como pousou o outro braço em volta dos seus ombros.
Regressaram à carruagem juntos, a rirem-se, felizes.
Capítulo Onze

Deslocaram-se muito lentamente nos dois primeiros dias. Bronwyn tentava


convencer Kirsty a manter-se quieta na carruagem mas ela só se ria.
Stephen disse que Kirsty teve de se defender após experimentar uma
amostra dos cozinhados de Bronwyn.
– É o pior estufado de coelho que alguma vez provei – disse Stephen com
repulsa numa noite. – Não tem sabor nenhum.
– Coelho? – perguntou Bronwyn com ar absorto. Segurava o bebé nos
braços, vendo os olhos pequenos acompanharem o movimento do reflexo
do sol no broche. – Oh, não – disse ao perceber por fim.
O riso de Stephen calou-a.
– O que aconteceu à mulher esperta com quem casei?
Bronwyn sorriu-lhe com uma grande confiança.
– Ainda cá continua. Qualquer um é capaz de cozinhar. Eu sei… – Calou-
se e olhou para cima perplexa.
– Estamos à espera – disse Stephen.
– Não brinques com ela – disse Kirsty, de mansinho. – Bronwyn, bela
como és, não tens de cozinhar E além disso, és corajosa, destemida, muito
prática e…
Bronwyn riu-se.
– Vês! – disse a Stephen. – Ainda bem que alguém me sabe apreciar.
– Oh, o Stephen também te aprecia – sorriu Kirsty. – Aliás, acho que
nunca vi um casal tão apaixonado como vocês os dois.
Bronwyn, atenta ao bebé, levantou a cabeça com espanto. Stephen
encarava-a com um ar idiota, como se fosse a primeira vez que a via.
– É bonita, não é? – disse ele. – Se ao menos soubesse cozinhar.
Disse-o com um ar tão pesaroso que Bronwyn fez uma careta e atirou um
torrão de terra à sua cabeça.
Ele riu-se e pareceu regressar à atualidade.
– Passas-me o meu afilhado? Ele passa demasiado tempo com as
mulheres. – Riu-se novamente perante a reação de Bronwyn.
Já caíra a noite do dia seguinte quando a casa dos pais de Kirsty apareceu
no horizonte. Tinha o aspeto típico de uma casa de camponeses, pedra
caiada de branco com telhado de colmo. Nas proximidades, campos de
cevada, ovelhas e cabeças de gado. Uma formação rochosa íngreme via-se
ao fundo das terras, não muito distante da casa.
Os pais de Kirsty saíram para cumprimentarem os recém-chegados. O
pai, Harben, era um homem baixo e rugoso, a quem faltava o braço direito.
Rosto tapado por cabelo cinzento e por uma barba volumosa. Mas o que
ficava à vista tinha uma expressão de raiva permanente.
Nesta, a mãe de Kirsty, era pequenina, com o cabelo grisalho repuxado
para a nuca. Era calorosa, o oposto da frieza de Harben. Abraçou o bebé,
Kirsty e Bronwyn de uma só vez. Agradeceu a Stephen e Bronwyn
repetidas vezes por ajudarem ao parto do único neto. Beijou Stephen com
tanto entusiasmo como beijou Donald.
Stephen perguntou se se importavam que dormissem ali naquela noite,
pois partiriam de manhã.
O rosto de Harben mostrou uma expressão de insulto.
– Ficam apenas uma noite? – resmungou. – Que raio de homem é você?
Tem uma mulher magricela, e sem filhos? – Não esperou pela resposta de
Stephen. – A minha infusão caseira vai pôr um bebé naquela barriga sem
curvas.
Stephen anuiu como se tivesse acabado de ouvir palavras sábias.
– E sempre pensei que ela ficaria grávida por causa do que eu lhe fazia.
Afinal bastava uma infusão caseira.
Harben soltou um som que podia ser riso.
– Entrem e sejam bem-vindos.
Após uma rica ceia de leite, manteiga, queijo e bolos de aveia, sentaram-
se em redor de uma lareira de turfa no interior da única divisão. Stephen
ficou num banco e agitava um brinquedo para Rory. Bronwyn sentou-se no
chão de terra, encostada ao joelho dele. Kirsty e a mãe dela estavam no lado
oposto, Donald e Harben ficaram diante da lareira.
Donald, que já se revelara um bom contador de histórias, acabou de dar
um relato hilariante de Bronwyn a vender a bebida e a reação de Stephen
aos movimentos sedutores da rapariga. Terminou com o encontro de
Bronwyn com o MacGregor.
Bronwyn riu-se de si mesma juntamente com os restantes.
Subitamente, Harben saltou do banco que tombou no chão.
– Pai – disse Kirsty baixinho, com ar preocupado. – O teu braço voltou a
doer?
– Ah, sim – disse ele com grande amargura. – Nunca para, desde que os
MacArrans o cortaram.
Stephen imediatamente pousou a mão em Bronwyn para avisá-la.
– Não é a melhor ocasião – começou Nesta.
– Não é a melhor ocasião! – berrou Harben. – Há alguma ocasião para
não odiar os MacArrans? – Virou-se para Bronwyn e Stephen, mostrando a
manga vazia. – O que faz um homem sem o braço direito? O MacArran
cortou-mo em pessoa. Há seis anos assaltou-me o gado e tirou-me o braço.
– Seis anos – murmurou Bronwyn. – E o MacGregor não fez um assalto
em que matou quatro homens?
Harben abanou a mão.
– Foi a paga por nos terem roubado.
– E devia o MacArran ficar quieto quando lhe mataram os homens? Não
se devia ter vingado?
– Bronwyn… – avisou Stephen.
– Não se meta – retorquiu Harben. – Tem aqui uma boa peça. O que sabes
sobre o MacArran?
– Ele…
Kirsty interrompeu-a.
– A Bronwyn vive junto à fronteira com a terra dos MacArrans.
– Ah, devem dar-te muitas chatices – disse Harben com empatia.
– Atualmente, nenhuma – sorriu Bronwyn.
– Tens de me contar como… – começou Harben.
Kirsty levantou-se.
– Está na hora de nos irmos deitar. Amanhã cedo temos de ordenhar.
– Sim – disse Harben. – As manhãs são cada vez mais cedo ano após
ano.
Só mais tarde, quando Bronwyn e Stephen já estavam aninhados debaixo
das suas mantas num catre de palha, é que ela se pronunciou.
– Não ralhes comigo – murmurou com resignação.
Ele cingiu-a contra si.
– Nem quero. Gosto de te ver discutir com o Harben. Encontraste alguém
igual a ti. Nenhum dos dois acredita que o clã oposto tenha algo de bom.
Ele beijou-a quando ela começou a responder, e recostaram-se para
dormir.
Na manhã seguinte, ficaram a saber de novidades que alteraram os planos
de Stephen de abandonarem a casa de Harben. Era do conhecimento
público que a líder MacArran estava desaparecida, mais o seu marido
inglês, e o MacGregor oferecia uma recompensa generosa pela captura dos
dois.
Stephen sorriu quando Harben comentou que gostaria de entregar a bruxa
feia ao MacGregor mas deixou de sorrir quando este também disse que o
inglês era um pavão inútil, não merecedor da terra em que seria enterrado.
Stephen fez uma careta quando Bronwyn começou a concordar com a
opinião de Harben sobre os ingleses. E incentivou-o até Kirsty mandar o pai
calar-se.
– Hás de pagá-las – murmurou Stephen quando se dirigiram para o anexo
da ordenha, onde as vacas aguardavam.
– Sujeitando-me aos teus costumes ávidos? – provocou ela, caminhando
em frente dele com as ancas a balançar.
Stephen tentou responder, mas sentiu-se subitamente muito ávido. Sorriu-
lhe e escolheu uma vaca.
Bronwyn passara a vida com os camponeses de MacArran e conhecia o
trabalho das quintas. Stephen só sabia comandar soldados. Sentou-se num
banco ao lado da vaca e ficou especado.
– É assim – disse Kirsty baixinho e mostrou-lhe como se espremia a teta
da vaca, ignorando os palavrões que ele soltava quando o leite caia nele e
não no balde.
Mais tarde juntaram o leite, para o balde de Stephen se encontrar tão
cheio quanto o delas. Nesta ficou intrigada com a produção de leite
invulgarmente menor, mas sorriu-lhes afavelmente e mandou-os para os
campos.
Era necessário colher os vegetais de inverno e reparar cercas. Donald e
Bronwyn riram-se com a expressão de Stephen perante uma cerca de pedra,
feliz como uma criança por haver um trabalho que sabia fazer. Transportou
mais pedras do que os outros, juntos, conseguiram reunir. Esforçando-se por
deslocar uma pedra que mais parecia um rochedo, Kirsty deu uma
cotovelada a Bronwyn. Harben observava Stephen com adoração.
– Acho que têm casa enquanto quiserem ficar – disse ela baixinho.
– Obrigada – respondeu Bronwyn, e novamente pressentiu que Kirsty
sabia quem ela era.
Foi um grupo muito cansado aquele que regressou à casinha quente. Mas
feliz. Harben viu-os brincarem entre si, rindo, revivendo os acontecimentos
do dia. Acendeu um cachimbo, enfiou o cotovelo no joelho e pela primeira
vez em anos não recordou o dia em que perdera o braço.

Dois dias depois Kirsty e Bronwyn saíram em busca de líquenes no outro


lado do monte rochoso atrás da casa. Rory Stephen estava enrolado numa
manta quente, e dormia dentro de um cesto ao lado do ribeiro. Nevara
durante a noite, e as mulheres conduziam a recolha pausadamente. Riam-se,
conversavam sobre a quinta e os maridos. Bronwyn nunca se sentira tão
livre. Longe de responsabilidades e preocupações.
Subitamente ficou hirta. Não ouvira som nenhum, mas algo no ar
despertou-lhe uma sensação de perigo. Eram demasiados os anos de treino
para se esquecer deles.
– Kirsty – disse baixinho, em tom de quem ordena.
A cabeça da outra levantou-se rapidamente.
– Não faças qualquer gesto. Entendeste? – Já não era uma rapariga alegre
mas a chefe MacArran.
– Rory – murmurou Kirsty, abrindo os olhos.
– Escuta-me e faz como te digo. – Bronwyn exprimiu-se
deliberadamente. – Quero que vás para os juncos altos e te escondas lá.
– Rory – repetiu Kirsty.
– Tens de confiar em mim! – disse Bronwyn com firmeza.
Trocaram um olhar.
– Sim – disse Kirsty. Sabia que podia confiar nesta mulher que se tornara
sua amiga. Bronwyn era mais forte e rápida do que ela e não iria sujeitar
Rory à vaidade da mãe. Virou-se e entranhou-se nos juncos, agachando-se
com vista para o cesto onde o filho descansava. Sabia que Bronwyn teria
mais hipóteses de fugir com o bebé – os homens capturariam Kirsty ao fim
de segundos.
Bronwyn manteve-se quieta, aguardando pelo desconhecido.
A água do ribeiro era ruidosa, e abafara as patas dos cavalos. Quatro
cavaleiros surgiram por cima da crista rochosa, logo a seguir a Kirsty se ter
escondido. Eram ingleses, vestiam roupas com enchimentos, gibões
rasgados, meias-calças remendadas, expressões ávidas.
Viram Bronwyn prontamente, e ela reconheceu a luz que lhes surgiu nos
rostos. Rory começou a chorar, e Bronwyn acorreu ao bebé, segurando-o
contra o peito.
– O que é isto? – disse um homem louro ao orientar o cavalo diretamente
para ela.
– Uma beleza nas charnecas escocesas – riu-se um segundo homem,
colocando o cavalo atrás dela.
– Olhem-me para este cabelo! – disse o primeiro.
– As mulheres na Escócia são todas putas – disse um terceiro. Este e um
quarto fecharam o cerco em volta de Bronwyn.
O homem na frente incitou o cavalo em diante, até ela ser obrigada a dar
um passo atrás.
– Não me parece assustada – disse ele. – A bem dizer, parece que está a
pedir-nos para tirar-lhe aquela expressão. As mulheres não deviam ter
queixos com covinhas – riu-se –, não se adequa a elas.
– Cabelo negro e olhos azuis – disse o segundo. – Onde terei já visto
isso?
– Eu não me esqueceria dela se a tivesse visto – disse o terceiro.
Desembainhou a espada e apontou a Bronwyn, pousando a ponta debaixo
do queixo da rapariga.
Ela fitou-o com olhar vidrado e duro, sem se mexer, avaliando a situação.
– Santo Deus! – disse o segundo. – Já sei quem é.
– Que interessa isso – disse o primeiro, desmontando. – Tenciono provar
esta coisinha, e só isso interessa.
– Espera! – berrou o segundo. – É a MacArran. Vi-a na casa do Sir
Thomas Crichton. Lembram-se que ia casar com um dos Montgomerys?
O homem diante de Bronwyn recuou um passo.
– Isso é verdade? – perguntou baixinho num tom reverente.
Ela limitou-se a fitá-lo, as mãos procurando acalmar a criança nos
braços.
Um dos homens a cavalo riu-se.
– Olhem para ela! Claro que é a MacArran. Alguma vez viram uma
mulher tão orgulhosa? Contaram-me que fez o Montgomery lutar por ela,
depois de o rei Henrique a ter prometido ao homem.
– Pois foi – confirmou o segundo. – Mas já percebem por que motivo o
Montgomery estava disposto a usar a espada por causa dela.
– Lady Bronwyn – disse o primeiro, pois o nome dela era conhecido pelas
elites de Inglaterra –, onde se encontra o Lorde Stephen?
Bronwyn não lhe respondeu. A vista desviou-se na direção das pedras que
a separavam da casa de Harben. O bebé gemeu e ela encostou a cara à
cabecinha dele.
– Que troféu! – disse o quarto, até então muito calado. Disse-o quase em
surdina. – O que fazemos com ela?
– Devolvemo-la aos Montgomerys. Decerto que o Stephen estará à
procura dela – disse o primeiro.
– E pagará uma fortuna pelo resgate – riu-se outro.
O quarto aproximou o cavalo, obrigando Bronwyn a dar um passo atrás.
– E o clã dela? – perguntou com ar sério. – Sabem que os MacArrans
estão em guerra com os MacGregors? Estamos em território MacGregor,
sabiam?
– Charles – disse o primeiro homem lentamente –, parece-me que estás a
ter boas ideias. É óbvio que está escondida. E de quem é esse bebé? –
perguntou, dirigindo a pergunta a Bronwyn.
– É demasiado velho para pertencer ao Montgomery. Talvez tenha fugido
dele para parir o filho de outro.
O segundo riu-se.
– Então pagará muito para a ter de volta, só para a ferver em óleo.
– E que tal pedirmos resgate aos três: ao clã dela, ao MacGregor e ao
Montgomery?
– E divertimo-nos um pouco com ela enquanto aguardamos – riu-se o
terceiro.
Kirsty observava dos juncos que ladeavam o ribeiro. Tinha lágrimas nos
olhos e sangue no lábio inferior, onde o mordera. Sabia que Bronwyn podia
ter fugido. As pedras atrás de si eram demasiado íngremes para os cavalos
dos homens, e Bronwyn conseguiria escapar-lhes. Mas não com a criança
nos braços. Teria de usar as duas mãos para subir às rochas. Bronwyn não
conseguiria fugir enquanto segurasse o bebé.
– Gosto dessa ideia – comentou o primeiro homem. Aproximou-se de
Bronwyn – Não te faremos mal se cooperares. Entrega-me essa criança. –
Dirigia-se a ela como se fosse deficiente. Bronwyn recuou e ele franziu a
testa. – Sabemos que o bebé não pertence ao Montgomery, portanto não
seria melhor livrarmo-nos já dele?
Bronwyn manteve-se firme.
– Se me tocarem ou ao meu filho, todo o meu clã, bem como os
Montgomerys virão atrás de vocês – disse ela calmamente.
O homem fitou-a com espanto por instantes, depois recompôs-se.
– Disse isso para nos assustar? – Deu um passo em frente. – Entregue-me
a criança!
– Não se aproxime – disse Bronwyn sem hesitações.
Um dos homens riu-se.
– É melhor tomares cuidado. Ela parece-me perigosa.
O homem atrás dela escorregou para o chão.
– Queres ajuda? – perguntou baixinho.
Os outros dois mantiveram-se em cima dos cavalos, mas aproximaram-
se.
Bronwyn não entrou em pânico. Não podia largar a criança nem alcançar
a faca. A sua única hipótese seria tentar fugir aos ingleses, experientes na
arte de cavalgar. Ela desviou-se facilmente do homem diante dela, encaixou
Rory contra si e desatou a correr.
Mas mesmo uma escocesa não dava luta a um cavalo.
Um dos homens ultrapassou-a e fê-la parar. O riso traiçoeiro rasgou o ar.
Rory começou a chorar e Bronwyn cingiu-o contra o peito. Sabia que os
homens matariam o bebé se o largasse.
Os homens voltaram a cercá-la. Um deles agarrou-a pelo ombro, e
empurrou-a contra o outro homem.
Subitamente uma seta manifestou-se do nada e enterrou-se no peito do
primeiro homem, quando tentava alcançar Bronwyn novamente.
Os outros três ficaram aturdidos. Endireitaram-se e fitaram o
companheiro, calado e sem vida a seus pés.
Bronwyn não perdeu tempo a pensar quem teria atirado. Usou os
preciosos segundos para correr em direção às rochas.
Os homens olharam em volta, procurando a origem da seta. Antes de
conseguirem raciocinar, um escocês solitário endireitou-se nas rochas e
disparou nova seta. O terceiro homem, também a pé, tombou.
Os homens a cavalo viraram-se abruptamente e incitaram os cavalos pelo
caminho de regresso.
Stephen galgou as rochas ágil e rapidamente, com Rab atrás de si. O cão
lançara o alerta. Stephen cavalgou atrás dos homens, com arco e flechas.
Abateu um deles, e o cavalo deste continuou a correr, o pé do morto preso
no estribo, arrastado pelo chão duro. Stephen continuou a perseguir o quarto
homem.
Lentamente Kirsty emergiu do esconderijo. Estava demasiado assustada
para se deslocar rapidamente. Bronwyn veio ao encontro dela. Kirsty
aceitou o filho, abraçou-o com ternura, olhou para cima, para Donald que se
aproximava. Entregou o bebé ao pai e depois agarrou-se a Bronwyn. Tremia
da cabeça aos pés.
– Salvaste-o – murmurou abalada. – Podias ter fugido mas não o fizeste,
arriscaste a vida pelo meu bebé.
Mas Bronwyn nem a ouvia. Fitava o lugar em que Stephen tinha
aparecido.
– Ele matou ingleses! – não parava de murmurar, sentindo-se feliz e
também atónita. Stephen matara ingleses para a proteger e ao bebé.
Donald pousou a mão no ombro de Bronwyn.
– Tu e o Stephen terão de partir – disse ele com tristeza.
– Oh, Donald, por favor… – começou Kirsty.
– Não, tem de ser. Os homens… – Calou-se quando viu Stephen de volta.
Bronwyn avançou para ele como se mergulhada num torpor. Fitou-o
cuidadosamente, mas não encontrou sinais de sangue. Estava suado da
corrida e ela quis limpar-lhe a testa.
– Feriram-te? – perguntou baixinho.
Ele encarou-a e apertou-a contra si.
– O que tu fizeste foi muito corajoso, a forma como protegeste o bebé.
Antes de ela conseguir responder, Donald interpôs-te.
– Stephen? E o outro homem?
– Escapou – disse Stephen, cingindo Bronwyn contra si, afagando-lhe as
costas como se procurasse confirmar que ela estava a salvo.
Kirsty e Donald trocaram olhares.
– Tenho a certeza de que ele vai a caminho do MacGregor – disse
Donald.
Bronwyn afastou-se do abraço de Stephen.
– Há quanto tempo sabem que sou a chefe MacArran? – perguntou.
– Logo que te vi – respondeu Kirsty. – Tinha-te encontrado há um ano,
quando passaste a cavalo ao lado do teu pai. A minha mãe e eu colhíamos
bagas.
– Então a tua mãe também sabe – disse Bronwyn. Não largara ainda a
mão de Stephen, grata pelo conforto. – E o teu pai.
Kirsty franziu a testa.
– Ele ficou demasiado perturbado para conseguir perdoar. Eu queria mais
tempo. Queria que vos conhecesse aos dois, e quando partissem ele ficaria a
saber. Sabia que ser-lhe-ia difícil odiar-vos.
– Mas não há tempo – esclareceu Donald. – O inglês dará com a língua
nos dentes.
– Stephen – disse Bronwyn. – Temos de ir. Não podemos colocar a Kirsty
nem a família dela em risco.
Ele anuiu.
– Donald, Kirsty… – começou.
– Não – disse Kirsty, interrompendo-o. – Não tens de dizer nada. Sois os
padrinhos do meu filho, e eu tenciono garantir que não deixareis de o ser.
Stephen sorriu-lhe.
– Posso colocá-lo a cargo de um dos meus irmãos, para o educar.
– Como inglês! – retorquiu Bronwyn. – Não, Kirsty, ele pode ficar com
os MacArrans.
Donald sorriu.
– Parem com isso. Havemos de fazer mais rapazes para o vosso agrado.
Agora levem os cavalos ingleses e voltem para casa. Ainda conseguem
chegar à casa do irmão do Stephen antes do Natal.
– Kirsty – começou Bronwyn a dizer, e Kirsty abraçou-a com força. – O
que dirão as pessoas quando lhes contar que a minha melhor amiga é uma
MacGregor? – Bronwyn riu-se.
Kirsty ficou com ar sério.
– Tens de voltar para nós e falar com o MacGregor. É um bom homem e
gosta de mulheres bonitas. Tens de acabar com esta disputa. Preferia que os
nossos filhos não tivessem de lutar entre si.
– Nem eu – admitiu Bronwyn, afastando-se do abraço. – Dou-te a palavra
que hei de voltar.
Stephen apertou-a contra si.
– Temos de regressar para provar mais um pouco da bebida caseira do
Harben.
Donald riu-se.
– E Bronwyn, acredita que estou em dívida contigo por te teres rido de
mim quando nos conhecemos. As coisas que eu disse da MacArran!
– E são todas verdadeiras – riu-se Stephen. – Ela é a mais casmurra,
desobediente…
– E a mais magnífica mulher de todas – concluiu Donald, agarrando
Bronwyn e abraçando-a. – Jamais conseguirei compensá-la pela vida do
meu filho. Obrigado. – Largou-a e abraçou Stephen. – Partam. Levem os
cavalos dos ingleses e ide. – Afastou-se de Stephen. – Quando Kirsty disse
que eras inglês, não acreditei. Nem mesmo agora.
Stephen riu-se.
– Aceito isso como um elogio. Kirsty, foi uma honra conhecer-te. Oxalá
pudéssemos ficar mais tempo para a minha mulher aprender com os teus
modos calmos.
Donald desatou a rir antes de Bronwyn dar resposta.
– A calma é só aparente, meu amigo. Leva a sua avante, tal como a
Bronwyn, só que de outra forma – disse ele.
Bronwyn semicerrou as pálpebras e fitou Stephen.
– Pensa bem antes de responderes – avisou.
Stephen puxou-a para si.
– Penso que temos de ir. – Tocou na mão de Rory, sentindo os dedinhos
envolverem os seus, depois pegou na mão de Bronwyn e encaminhou-se
para os corcéis.
Nenhum deles foi capaz de olhar para trás enquanto se afastavam. O curto
período na casa do camponês fora de paz, e custava-lhes ter de abandoná-
lo.

Cavalgaram a bom passo durante horas, procurando não atrair as atenções


que o galope traria. Stephen fez uma paragem, retirou os indícios ingleses
dos cavalos e escondeu-os nos arbustos. Bronwyn convenceu a mulher de
um camponês a dar-lhe uma vasilha com tingidura escura e cobriu as
manchas brancas dos cavalos. Quem olhasse de perto, notaria que as pernas
dianteiras eram ligeiramente púrpuras e não castanho-escuras como o resto
do animal.
Stephen estava preocupado com a comida e queria gastar as moedas
remanescentes que encontraram nos alforges dos cavalos Mas Bronwyn
limitou-se a rir dele e lembrar-lhe que estavam ainda na Escócia. Para onde
fossem, seriam recebidos com hospitalidade e generosidade. Por vezes um
camponês tinha pouco mais do que o suficiente para a família, e no entanto
estava sempre disposto a partilhá-lo com outro escocês – ou com quem não
fosse inglês. Bronwyn rira-se da forma como Stephen se unia
frequentemente às queixas contra os ingleses. Os escoceses iam mostrando
a Stephen os campos queimados pelos ingleses. Um homem apresentou a
neta, produto da violação de um inglês à sua filha mais nova.
Stephen escutava e respondia com o seu sotaque arrastado que lhe era
agora tão natural como respirar. Vinda a noite, enrolavam-se nas suas
mantas e faziam amor. Por vezes, durante o dia, entreolhavam-se, do cimo
dos cavalos, e no momento seguinte, estariam por terra, roupas espalhadas e
abandonadas.
Stephen só precisava de olhar para Bronwyn e ela percebia o que lhe
passava pela mente. Os olhos dela ficariam em fogo, o corpo despertaria.
Sorria para Stephen, enquanto ele passava o braço pela sua cintura e a
puxava para o selim consigo.
– Não consigo cansar-me de ti – murmurava Stephen, mordendo-lhe o
lóbulo da orelha.
– Bem tentas – disse ela impudentemente, mas fechou os olhos e deitou a
cabeça para o lado, dando-lhe pleno acesso ao pescoço. – Stephen! –
exclamou subitamente, e endireitou-se, pois várias pessoas os observavam
da estrada.
– Bom dia – saudou ele, regressando ao pescoço de Bronwyn.
Ela afastou-se dele.
– Não tens pudor nenhum? Devíamos ao menos… – Ela calou-se ao
reparar no brilho daqueles olhos. – Podemos ir para as árvores –
murmurou.
Rab ficou de guarda enquanto Stephen e Bronwyn se deitavam no
pequeno bosque. Bronwyn sentia que, quando mais amor faziam, mais o
corpo de Stephen a fascinava. A luz que penetrava pelas folhas brincava na
pele morena ao longo dos músculos. Fascinava-a a força e energia neles
contidos, a capacidade de Stephen de deslocar o corpo dela com uma mera
mão. Brincava com ele, esquivava-se, e contudo, ele só tinha de usar uma
mão, puxá-la pela cintura e trazê-la de volta.
Faziam amor em todas as posições possíveis. Estarem afastados do clã há
tanto tempo retirara a Bronwyn o peso da responsabilidade, e sentia-se
livre, feliz. Procurava Stephen com igual ânsia que ele a procurava. Fez
experiências, deixando o corpo dominar a mente. Deitou-se de costas,
pernas colocadas sobre Stephen que ficava deitado de lado. Agarrava-se a
ele, puxava-o para si, gemia quando sentia as mãos dele nas suas pernas.
Todo o seu corpo era abalado quando eclodiam em conjunto.
Mantiveram-se deitados durante bastante tempo, enrolados um no outro,
nenhum deles reparando no ar frio de inverno nem no solo molhado e quase
gelado.
– Como é a tua família? – perguntou Bronwyn com voz rouca.
Stephen sorriu, observando-lhe o corpo, perpendicular ao seu. Sentia-se
satisfeito por Bronwyn se encontrar fraca e exausta, tal como ele se sentia.
Soltou um arrepio com uma rajada de vento, quais agulhas finas pelo
corpo.
– Veste-te e vamos preparar biscoitos de aveia.
Terminando de se vestirem, Stephen aproximou-se do cavalo, tirou uma
placa de metal da aba da sela e um saco de aveia. Só tinham comprado
aquele utensílio. Bronwyn acendera uma fogueira quando ele voltou.
Misturaram a aveia com água enquanto a placa aquecia, depois espalharam
a mistura resultante pelo metal quente. Stephen virou a massa com as
mãos.
– Não me respondeste – disse Bronwyn quando provou o primeiro
biscoito.
Stephen percebeu-a, mas não quis mostrar a sua satisfação com a
pergunta sobre a sua família. Teve a noção súbita de que não lhe apetecia
jamais alcançar as propriedades dos Montgomery, que só a queria para si e
para sempre. A luz bruxuleava no cabelo dela, reluzia no broche ao ombro.
Não queria partilhar aquela mulher com ninguém.
– Stephen? Estás a olhar para mim com ar estranho.
Ele sorriu e fitou o biscoito de aveia na grelha.
– Estou a pensar. Vejamos. Perguntaste-me como era a minha família. –
Tirou um pedaço quente e começou a comê-lo. – O Gavin é o mais velho,
seguido por mim, pelo Raine e pelo Miles.
– E como são eles? Iguais a ti?
– É difícil avaliar-me a mim mesmo. O Gavin é alto e muito teimoso. É
bastante dedicado às terras dos Montgomery e passa lá a maior parte do
tempo.
– É o único casado.
– Já te esqueceste de mim? – riu-se ele. – O Gavin e a Judith casaram há
quase um ano.
– E ela, como é?
– Linda! Bondosa, simpática, clemente – riu-se. – Só podia ser, para viver
com o Gavin. Ele não sabe muito sobre mulheres, e como tal arranja
bastantes sarilhos.
– Ainda bem que é o único dos quatro que sabe pouco sobre mulheres.
Stephen não ouviu o sarcasmo do comentário. Recordava a família com
saudades.
– Depois há o Raine. O mais parecido com o Tam, pesado e sólido, como
o nosso pai. O Raine é o… não sei explicar. É boa pessoa, por dentro. Não
tolera injustiças. Colocaria a vida em perigo antes de magoar um servo ou
permitir que outro o fizesse.
– E o Miles?
– O Miles – disse Stephen e sorriu. – O Miles é calado e ninguém sabe
muito a seu respeito. É bastante resguardado, mas de vez em quando
explode com uma fúria inimaginável. Éramos crianças quando, uma vez, ele
zangou-se com dos pajens do meu pai e foram precisos nós o três para o
contermos.
– E o que tinha feito o pajem? – perguntou ela com curiosidade, aceitando
outro bolo de aveia.
A vista de Stephen dançou ao recordar-se.
– O rapaz meteu-se com uma menina. O Miles adora mulheres.
– Todas as mulheres?
– Todas! – disse Stephen. – E seguem-no como se tivesse a chave da
felicidade. Nunca conheci uma mulher que não gostasse do Miles.
– Parece-me ser um homem interessante – disse ela, lambendo os dedos.
– Nem te atrevas! – começou, mas calou-se porque Bronwyn fitava-o
intensamente. Virou a atenção para os biscoitos. – E depois há a Mary.
– A Mary?
– A nossa irmã.
A resposta fê-la virar-se para ele.
– Nunca me falaste de uma irmã. Como é ela? Irá visitar-nos no Natal?
– A Mary parece a Nossa Senhora – disse com reverência. – Até em
pequenos, sabíamos que ela era diferente. É a mais velha, e sempre
conseguia controlar os irmãos mais novos. Gavin e Raine andavam sempre
à bulha. Gavin tinha consciência de que havia de herdar as terras, e ficava
fulo quando Raine perdoava um criado por ter partido alguma coisa, mesmo
se fosse acidental. A Mary interpunha-se entre eles e acalmava-os com a
voz mansa.
– Como? – perguntou Bronwyn, pensando apenas das suas próprias
responsabilidades com o clã.
– Nunca compreendi como o fazia. Daquela vez em que o Miles tentou
matar o escudeiro, foi a Mary quem conseguiu acalmá-lo.
– E o que lhe aconteceu? O marido é bom para ela?
– Não tem marido. Pediu autorização para nunca casar, e uma vez que
nunca encontrámos um homem capaz de ser suficientemente bondoso,
concedemos-lhes o desejo. Vive num convento nas proximidades da
propriedade dos Montgomery.
– Foi generoso da vossa parte conceder-lhe o desejo. Sei que as mulheres
inglesas não costumam ter arbítrio sobre o seu futuro.
Stephen não se ofendeu com aquelas palavras.
– Acho que tens razão. Deviam aprender com os escoceses.
– Deviam? – perguntou ela inclementemente.
Ele riu-se ao perceber.
– Sabes, acho que começo a sentir-me escocês. – Levantou-se, esticou a
perna nua. – Será que os meus próprios irmãos me irão reconhecer?
– Talvez – disse ela. – Mas duvido que os outros reconheçam. – Havia
orgulho na voz.
– Gostava de saber se tens razão.
– Tens algo em mente? – perguntou desconfiada, porque naquele instante
parecia um menino traquinas. – Stephen, já temos os MacGregors à nossa
procura, o meu irmão e os seus homens, e sem dúvida ingleses, pois mataste
três. Gostava de chegar inteira à casa do teu irmão.
– Haveremos de chegar – disse Stephen com um olhar distante. – Embora
possa ser preciso fazer uma paragem antes.
Bronwyn suspirou, depois levantou-se e ajustou as saias. Ao voltar ao
cavalo, levava a mente cheia de pensamentos sobre rapazes que nunca
crescem.
Capítulo Doze

Ao entrarem em Inglaterra, Stephen sentiu uma diferença no ar. Mesmo na


fronteira da Escócia, não era habitual encontrarem-se pessoas das Terras
Altas. Houve quem fitasse abertamente as suas vestes; houve quem lhes
gritasse com raiva, porque as suas terras e os seus pertences tinham sofrido
com os ataques dos escoceses. Bronwyn cavalgava com as costas retesadas
e cabeça erguida. Recusava-se a responder ao que os ingleses diziam. Só
mostrou emoções uma vez. Stephen parou no poço de um camponês para
encher as bolsas de água, e o homem correu atrás deles com uma forquilha.
Stephen, com o sangue a ferver nas veias, tentou alcançar o homenzinho
que amaldiçoava vividamente os escoceses. Bronwyn agarrou o marido
pelo braço e puxou-o de volta para os cavalos. Durante horas Stephen foi
resmungando contra a estupidez dos ingleses. Bronwyn sorria com estas
palavras; todas elas já ela pensara ou dissera.
Agora discutiam sobre outro assunto. Há duas noites, Stephen contara a
Bronwyn sobre um plano que tinha para ludibriar um amigo de infância.
– Não, não compreendo! – comentou Bronwyn pela centésima vez,
seguramente.
– É uma contenda entre nós – explicou Stephen com paciência. – Logo tu,
que entendes tão bem o que é uma luta.
– O que se passa entre os MacGregors e os MacArrans é real e baseia-se
em muitos anos de raiva e hostilidade. Mataram os meus homens e
roubaram o meu gado. Algumas das minhas mulheres cuidam de bastardos
dos MacGregors. – Lançou-lhe um olhar suplicante. – Por favor, Stephen, é
uma brincadeira de crianças, e só vai dar chatices. O que interessa se este
homem te reconhece ou não?
Stephen recusou-se a responder-lhe, em particular porque ela já colocara
várias vezes a pergunta. Não era capaz de explicar-lhe a questão com Hugh.
Nem se lembrava daquela época sem embaraço e dor.
Patrulhavam juntos as Terras Baixas na fronteira, para o rei Henrique,
quando se soube que o rei escolhera Stephen para se casar com a senhora do
clã MacArran. Hugh explodira de riso. Durante dias, pouco mais fez do que
tecer imagens hediondas da nova noiva de Stephen. E rapidamente todo o
acampamento falava da criatura feia que o Lorde Stephen teria de desposar.
O decreto foi particularmente terrível porque nessa época Stephen
acreditava estar apaixonado. O nome dela era Margaret – Meg como
alcunha. Era uma lourinha roliça, clara e rosada, filha de um mercador das
Terras Baixas. Tinha bonitos olhos azuis e uma boquinha sempre pronta a
beijar. Era tímida e calada e adorava Stephen… ou ele assim pensava. À
noite Stephen abraçava-a, sentia o corpo branco macio, imaginando a
medonha vida que o esperava com uma mulher chefe de um clã.
Passadas várias noites em claro, pensou em recusar a oferta do rei.
Pensou em casar-se com a filha do mercador. Não era rica mas o pai tenha
algum dinheiro, e Stephen recebia uma renda de uma pequena propriedade.
Quanto mais pensava naquilo, mais lhe agradava a ideia. Tentou não pensar
na ira do rei quando Stephen o rejeitasse.
Mas foi Hugh quem desfez os sonhos de Stephen. Hugh contou a Meg o
casamento planeado de Stephen e a pobre coitada, na sua mágoa, atirara-se
aos braços acolhedores de Hugh. Este não hesitou em aceitá-la no seu leito,
ou assim contou Meg a Stephen.
Stephen ficou atónito ao descobrir o amigo e a mulher que amava juntos
na cama. Mas, estranhamente, o seu espanto não se tornou raiva, e por
causa disto percebeu que não amava Meg verdadeiramente, nem ela a ele,
pois rapidamente mudara de amante. O seu único pensamento foi de
conseguir vingar-se de Hugh com o mesmo tratamento. Antes de formular
um plano, surgira um mensageiro com a indicação de que Gavin precisava
de assistência, e Stephen foi ao encontro do irmão sem se lembrar mais de
Hugh.
Agora Stephen viu uma forma de retribuir ao amigo, pois Hugh era ainda
seu amigo. Se ele, Stephen, conseguisse entrar e sair das propriedades de
Hugh sem ser detetado, deixando uma mensagem de que estivera lá, teria
conseguido o seu intento. Hugh não gostava de estranhos à sua volta;
raramente saía de casa sem uma guarda completa. Sim, sorriu Stephen,
havia formas de se vingar de Hugh Lasco.
Alcançaram a propriedade de Lasco pouco depois do cair da noite. Era
uma casa de pedra, alta, com as janelas cobertas de proteções de ferro
forjado. O átrio de entrada estava repleto de pessoas em passo ordeiro,
como se tivessem tarefas a cumprir. Os criados não se juntavam em grupos
para trocarem mexericos.
Stephen e Bronwyn foram parados pelos guardas mal se encontraram
dentro dos terrenos da casa. Stephen, na fala arrastada dos escoceses,
perguntou se podia cantar em troca de comida. Aguardaram pacientemente
pelo regresso de um dos guardas, com permissão de Sir Hugh.
Stephen sabia que Hugh se considerava um tocador de alaúde excecional,
e não perderia uma oportunidade para avaliar a capacidade alheia. Sorriu
quando o guarda lhes indicou para guardarem os cavalos na estrebaria e
depois dirigirem-se para a cozinha.
Só mais tarde, quando se encontravam sentados diante de uma refeição
variada numa enorme mesa de carvalho na cozinha, é que Bronwyn
começou a resignar-se aos planos de Stephen. Embora ele não tivesse
relevado muito! Apenas descobrira que Stephen pensava pregar uma partida
infantil ao amigo.
– Como é o Sir Hugh? – perguntou ela, a boca cheia de pão acabado de
cozer.
Stephen fungou de desdém.
– É um homem bonito, acho eu, se é isso que queres saber, mas é baixo e
pesado, muito moreno. E muito exasperante como companhia. Mexe-se
mais devagar do que qualquer pessoa. Nas Terras Baixas andei sempre
preocupado que seríamos atacados, e que matariam o Hugh antes de ele
conseguir abrir os olhos, muito menos vestir a armadura.
– Casado?
Ele lançou-lhe um olhar acutilante. Examinou-a especulativamente por
instante. Nunca percebia o motivo, mas as mulheres ficavam atraídas por
Hugh. Para ele, os modos extremamente cautelosos e vagarosos de Hugh
eram exasperantes. Mas para as mulheres…
– Quero que mantenhas a cabeça baixa constantemente – disse com
firmeza. – Por uma vez que seja, comporta-te como uma esposa obediente e
respeitadora.
Ela arqueou uma sobrancelha.
– Quando é que fui o contrário?
– Bronwyn, aviso-te! Isto é entre mim e o Hugh, e não te quero
envolvida.
– Pareces ter medo dele – provocou ela. – Há algo nele que faz as
mulheres lançarem-se a seus pés?
Disse-o na brincadeira, mas a expressão de Stephen revelou que remexera
na ferida. Subitamente quis garantir-lhe que não era muito provável lançar-
se aos pés de qualquer homem. Claro, por vezes, em certas posições,
encontrara-se com a cabeça encostada aos pés de Stephen. Sorriu
calorosamente com a lembrança.
– Não é motivo para risos! – disse Stephen, tenso. – Se não me
obedeceres, eu…– Calou-se pois aproximava-se um dos guardas de Hugh
para indicar que chegara a hora de Stephen fazer o seu espetáculo.
As mesas em forma de cavalete já tinham sido postas no Salão Grande e a
refeição tivera início. Stephen empurrou delicadamente Bronwyn para um
banco baixo encostado a uma parede do fundo. Ela sorriu levianamente com
este comportamento e até abafou risinhos quando ele lhe lançou um olhar
de aviso. Esperava que ele se arrependesse deste esquema infantil.
Stephen aceitou o alaúde que lhe foi entregue, e sentou-se a poucos
metros da mesa principal. Tocava bastante bem; tinha uma voz profunda e
rica, e a melodia soava na perfeição.
Bronwyn foi observando o espaço. O homem moreno à cabeceira da mesa
nunca fitou o cantor. Ela observou-o enquanto comia, tal como Stephen
descrevera, muito lentamente. Todos os movimentos pareciam fruto de um
plano bem congeminado.
Rapidamente perdeu interesse em observar Hugh Lasco e recostou a
cabeça contra a parede de pedra, fechando os olhos, e entregou o espírito à
música de Stephen. Era como se tocasse apenas para ela; uma vez abriu os
olhos e reparou que ele a observava, e este olhar foi tão surpreendente como
um toque. Sentiu-se assolada por arrepios, descobrindo a expressão
naqueles olhos. Sorriu em resposta, depois voltou a cerrar as pálpebras. Ele
entoou uma canção gaélica e ela ficou satisfeita por ele ter tido o cuidado de
aprender a letra, talvez com Tam. A doce melodia, as palavras de amor
cantadas na sua fala, fizeram-na esquecer-se de que estava em Inglaterra,
rodeada de ingleses, casada com um inglês, mas em casa, em Larenston, e
com o homem que amava.
Ela sorriu sonhadoramente com esta ideia, mas mesmo nesse sorriso não
deixava de estar ciente na mudança da canção de Stephen. Abriu
rapidamente os olhos. Ele não a observava mas olhava para Hugh, do outro
lado da sala. Lentamente virou a cabeça. Sabia, antes de ver, que Hugh a
fitava.
Era um homem elegante, de um jeito mundano. Tinha cabelo e olhos
escuros. A boca apresentava lábios demasiado grandes para um homem,
mas que chamavam a atenção de Bronwyn. Enquanto o observava, Hugh
esticou os lábios lentamente, e passou-lhe pelo espírito se ele se mexeria tão
lenta e prolongadamente na cama.
Sorriu com os seus próprios pensamentos. Então era esta a atração de
Hugh! Claro, Stephen não o veria, mas sendo mulher, ela considerava
interessante a forma de ser do homem. Sorriu novamente, ao pensar que
contaria a Stephen esta descoberta.
Virou-se para o marido, e notou que lhe fazia uma carranca, sobrancelhas
franzidas, olhos azuis como safiras escuras. Durante um instante ela
perguntou-se o que teria feito para o irritar assim, antes de praticamente se
rir. Tem ciúmes, ocorreu-lhe com assombro, e o pensamento incitou-a mais
do que o aspeto atraente de Hugh.
Baixou a vista para as saias, passou o dedo pela manta. Não devia sentir-
se contente, claro, mas estava: Stephen sentia ciúmes. Não ousava contar-
lhe que Hugh interessava tanto como… como o jardineiro, porque o que a
acalentava era saber que Stephen gostava dela o suficiente para ter ciúmes.
Hugh disse algo a um dos dois guardas atrás de si, e o guarda dirigiu-se a
Stephen, o qual escutou o homem, entregou-lhe o alaúde e atravessou
irritado a sala, agarrou Bronwyn pelo braço e quase a arrastou consigo.
Virou-a para si quando se encontravam no exterior da praça banhada pelo
luar.
– Divertiste-te bastante! – sibilou ele, rangendo os dentes.
– Estás a magoar-me – disse ela pacificamente, tentando abrir-lhe os
dedos que agarravam o seu antebraço.
– Devia dar-te uns açoites!
Ela fitou-o intensamente. Estava a sair dos limites!
– A lógica dos homens! Tu é que quiseste vir cá. Tu é que insististe em
agires como criança. E agora, para encobrires a tua estupidez e
infantilidade, tencionas bater-me!
Ele enterrou os dedos com mais força no braço dela.
– Disse-te para ficares sentada, calada, discreta, mas tiveste de sorrir para
o Hugh de forma apelativa. Dizendo-lhe que podia fazer contigo o que
quisesse.
O queixo dela caiu de espanto.
– Isso é perfeitamente absurdo.
– Mentes! Eu vi-te!
Os olhos dela abriram-se ainda mais, e respondeu com muita calma.
– Stephen, mas o que tens tu? Olhei para o homem como a qualquer
outro. Estava curiosa porque disseste que ele era lento e, contudo, parecias
pensar que era popular com as mulheres.
– Estavas a tentar juntar-te ao seu harém?
– Isso é uma acusação cruel e insultuosa – disse ela. – E continuas a
magoar-me.
Ele não a soltou.
– Talvez preferisses que o rei o tivesse dado a ti como marido, além do
Roger Chatworth. Se venci um, posso vencer outro.
A declaração era tão infantil que Bronwyn só conseguiu rir.
– Que pensamento irracional. Nada fiz além de olhar para o homem. Se
sorri, era porque pensava noutra coisa. Volto a lembrar-te que não queria ter
vindo.
Subitamente a raiva de Stephen desapareceu e ele agarrou-a num abraço
esmagador.
– Não voltes a fazer isso – pediu com firmeza.
Começou a responder que não fizera nada, mas a forma como Stephen a
segurava era quase reconfortante. Doíam-lhe os braços e sentia o contorno
de cada um dos dedos de Stephen, mas gostava que ele sentisse ciúmes dela
pela atenção de outro homem.
Manteve-a afastada.
– Quase gostava que não fosses tão bela – murmurou, mas depois pousou
a mão sobre os ombros da rapariga. – Estou esfaimado. Vamos à cozinha,
pode ter sobrado alguma coisa. – Bronwyn sentia-se particularmente
próxima de Stephen, enquanto voltaram para trás. Era como se estivessem
apaixonados, mas a paixão não fosse apenas física. O pessoal da cozinha
resmungou ao vê-los regressar, mas Stephen piscou o olho à cozinheira e
Bronwyn viu a velha gorda derreter-se sob o olhar azul caloroso. Sentiu
uma pontada de ciúmes e percebeu assim que queria só para ela todos os
olhares de Stephen.
Mantiveram-se à parte, provando tartes suculentas de maçã frita.
– Há tanto desperdício aqui – comentou Bronwyn.
Stephen preparava-se para responder em defesa da cozinha inglesa, mas
estivera demasiado tempo na Escócia. Vivera com os pais de Kirsty,
testemunhara a pobreza deles. Mesmo em Larenston as pessoas eram
comedidas, sempre cientes do valor da comida que amanhã podia faltar.
– Ah, pois é – disse com firmeza. – Aproveitaríamos bem a comida lá em
casa.
Bronwyn encarou-o, sentindo um imenso afeto. Estendeu a mão para
afastar um caracol do pescoço dele. O cabelo comprido e a tez bronzeada
combinavam com ele. Olhou em redor do espaço, e descobriu uma jovem e
robusta ajudante fitando Stephen com grande interesse, em particular a coxa
musculada, exposta quando ele pousou uma perna no assento da cadeira.
Deu-lhe a mão.
– Estou farta deste local. Vamos para o exterior?
Stephen concordou com ela e partiram antes que ele reparasse na criada
da cozinha.
A tempestade acabou por impedi-los de abandonar a propriedade de
Hugh. Apareceu inesperadamente, com chuva violenta. Num minuto os
céus apresentavam-se límpidos, e no seguinte, começou a repetição do
dilúvio de Noé.
Bronwyn suplicou a Stephen que não ficassem naquele lugar. Disse que
uma chuvinha nunca tinha travado uma escocesa, mas ele não deu ouvidos,
pois temia a febre dos pulmões, e preferia evitar riscos. Portanto, preparam-
se para passar a noite na casa de Hugh.
O chão do Salão Grande estava repleto de catres de palha, prontos para
acolher os serviçais e convidados. Stephen procurou um canto isolado mas
não encontrou. Acomodando-se ao lado de Bronwyn, ele enfiou a mão pela
saia dela e tocou-lhe no joelho. Recebeu um sibilar como resposta,
indicando inequivocamente que não se exporia em público. Ele suspirou e
acabou por concordar com ela. Ela aninhou-se a ele e adormeceu ao final de
minutos.
Mas Stephen não foi capaz de dormir. Passara demasiado tempo em
campo aberto, e agora as paredes sufocavam-no. Remexeu-se no catre
várias vezes, mas a palha era demasiado mole. Rab até lhe rosnou porque
não parava quieto. Pousou a cabeça nas mãos e fitou o teto de vigas. Não se
esquecia do modo como Hugh contemplava Bronwyn. Raios o partam!
Hugh convencera-se de que era capaz de conquistar qualquer mulher. Sem
dúvida, tinha sido encorajado pela forma como Meg se entregara a ele.
Quanto mais pensava na partida que Hugh lhe pregara, mais irado se
sentia. Apesar dos avisos de Bronwyn, queria que Hugh soubesse que ele
estivera na sua casa.
Deslizou silenciosamente para fora do catre, ordenando a Rab que
guardasse Bronwyn, e sem fazer barulho, dirigiu-se para a porta de leste
que dava para o Salão Grande.
Em crianças, ele e os irmãos costumavam frequentar a propriedade dos
Lasco. Um dia, quando eram muito jovens, ele e Hugh tinha descoberto
uma passagem secreta que conduzia ao cimo da casa. Tremiam com
entusiasmo ao alcançarem a porta no cimo das escadas, ficaram espantados
por descobrir que a porta, estava bem oleada, e esgueiraram-se para o
quarto sem fazerem ruído, tapados por uma tapeçaria pesada. Não sabiam
sequer onde se encontravam até ouvirem sons vindos do leito. Mas era
demasiado tarde. O avô de Hugh estava na cama com uma criada muito
nova, e ambos pareciam divertir-se imenso. O velho não ficou nada
contente ao ver os dois miúdos de sete anos observando-os com olhos
esbugalhados. Stephen ainda se contraía ao recordar a sova que o avô de
Hugh lhes pregou e outra que lhes pregaria se revelassem o conhecimento
da passagem secreta. Há quatro anos, o velhote falecera e Stephen chorara
no funeral. Desejava poder também satisfazer as jovens quando tivesse a
mesma idade. Stephen riu-se e ficou satisfeito por Bronwyn não ter ouvido
aquele pensamento.
Esgueirou-se para a proteção de uma tela na antecâmara do Salão Grande.
Dirigiu-se ao assento da janela e tirou a faca para abrir os painéis recobertos
de pano atrás dos almofadões. O painel fora deslocado pela primeira vez, há
tanto tempo, por causa de uma luta de almofadas. Teve de enfiar o braço
através de centímetros de teias de aranha antes de conseguir ver o contorno
da escadaria de pedra. Entrando, voltou a colocar o painel no lugar.
Dentro da escadaria não havia luz, e ouviam-se patinhas a correr de um
lado para o outro. Mais teias de aranha atingiram-lhe o rosto, e ele desejou
ter trazido a espada para as limpar. A passagem estivera em uso constante e
portanto sempre limpa no tempo do avô de Hugh. Uma vez que Hugh vivia
sozinho, Stephen supôs que não teria motivos para esconder as escapadelas
de ninguém.
A porta ao cimo das escadas abriu-se com um ligeiro ranger, mas Stephen
não teve tempo de pensar no assunto. A vista acostumara-se à escadaria
escura e, portanto, o quarto iluminado por uma única vela grossa, parecia
arder de luz. Stephen sorriu ante a sua sorte extraordinária, pois Hugh
dormia na cama. Sorriu ao ver a figura calada e inocente, e depois retirou a
faca da bainha que trazia à cintura.
Mesmo na infância, Hugh tinha pavor de ficar desprotegido. Aos cinco
anos tinham tentado raptá-lo. Contara muito pouco sobre o que lhe
acontecera, quer então quer depois, mas nunca se deslocava a parte alguma
sem a sua guarda. Acordar pela manhã e descobrir uma faca junto à cabeça
seria paga suficiente pela rapariga que roubara a Stephen.
Stephen envolveu um pedaço da manta escocesa em volta do cabo e
prendeu o laço dos MacArran. Silenciosamente depositou a faca ao lado do
amigo. Sorrindo expansivamente, virou-se para a tapeçaria e a porta
secreta.
– Agarrem-no! – gritou Hugh, com a voz profunda.
Quatro homens saltaram dos cantos escuros do quarto e correram para
Stephen, que se esquivou do primeiro e enfiou o punho na cara do segundo.
O homem cambaleou para trás. As reações de Stephen foram mais rápidas
que as dos outros dois homens. Encontrava-se junto à porta quando sentiu a
ponta da espada de Hugh na nuca.
– Bem feito! – disse Hugh com admiração. – Estou a ver que não
negligenciaste o teu treino na Escócia. – Recolheu a espada para Stephen se
poder virar.
Hugh trajava por completo. Apontava a espada para a garganta de
Stephen, indicou aos homens para cercarem o amigo, depois pegou na faca
pousada na almofada.
– É MacArran? – Sopesou a faca na mão esquerda. – Bons olhos te
vejam, Stephen.
Stephen sorriu abertamente.
– Raios! Como soubeste?
– O Gavin apareceu há dois dias e disse que te esperava. Contaram-lhe
que tinhas encontrado sarilhos na Escócia, e pensou que talvez fizesses uma
paragem aqui. Estava a ficar preocupado.
Stephen abanou a cabeça.
– Traído pelo meu próprio irmão. – Olhou para cima, espantado. – Mas,
mesmo que me esperasses, como?… – Sabia que tinha um aspeto muito
diferente do Stephen inglês do passado.
Hugh sorriu, a vista a iluminar-se de afeto.
– Cantaste uma das músicas que aprendemos juntos nas Terras Baixas,
lembras-te? Esqueceste-te do que demorámos a aprender esse acorde?
– Claro! – disse Stephen, percebendo que se encontrava demasiado
confiante no seu disfarce. – A Bronwyn disse que jamais funcionaria, que
eu me iria denunciar.
– Devo dizer que esse sotaque é perfeito, mas podes parar, agora.
– Sotaque? – perguntou Stephen, genuinamente perplexo. – Parei de usar
o sotaque quando saímos da terra dos MacGregor.
Hugh riu-se profundamente.
– Stephen, tornaste-te mesmo um escocês. Conta-me o que aconteceu na
Escócia. Casaste mesmo com a mulher horrível? Era o quê, senhora de um
clã? E quem era aquela criatura deliciosa que não parava de olhar para ti
com tanto desejo enquanto tocavas?
Stephen franziu o cenho.
– É a Bronwyn – disse.
– A Bronwyn? Um nome galês? Encontraste-a na Escócia? Como fugiste
à tua mulher?
– A Bronwyn é a senhora do clã MacArran, e é a minha mulher. –
Stephen ficou muito tenso, lábios mal se mexendo enquanto falava.
Hugh ficou boquiaberto.
– Queres dizer… aquele anjo de olhos azuis é chefe de um clã e tens a
sorte de estares casado com ela?
Stephen não respondeu mas fitou Hugh intensamente. Porque continuava
cercado de guardas?
– O que se passa? – perguntou baixinho.
Hugh sorriu, os olhos a reluzir.
– Nada de mais. Só uma partida, como aquela que querias pregar-me. –
Esfregou a faca entre os dedos. – Bronwyn, a sério? – perguntou baixinho.
Fizera descair a espada mas continuava pronto a atacar. – Lembras-te
quando soubemos da novidade? Não paravas de queixar-te e que não
casarias com uma mulher tão feia. Querias… como se chamava ela? A
Elizabeth?
– Margaret – retorquiu Stephen. – Hugh, não sei o que tens em mente,
mas…
– Tenho em mente o que tinha antes.
Stephen fitou-o, recordando bem de mais a visão dele e de Meg na cama.
Pensar que ele tocaria em Bronwyn…
– Se lhe tocares, mato-te – disse com intensão.
Hugh pestanejou de espanto.
– Até parece que falas a sério.
– É mesmo a sério.
Hugh sorriu.
– Mas somos amigos. Já partilhámos mulheres.
– A Bronwyn é minha esposa! – berrou Stephen antes de se lançar a
Hugh.
Os quatro guardas tentaram agarrá-lo mas não foram capazes de o
segurar. Hugh recuou o mais depressa que pode, mas Stephen continuou a
persegui-lo. A porta do quarto abriu-se de rompante e entraram três outros
guardas, que prenderam Stephen.
– Levem-no para o quarto da torre – disse Hugh, encarando o amigo com
admiração, enquanto os sete guardas o sustinham.
– Não faças isso! – avisou Stephen, ao ser arrastado pelo quarto.
– Não me irei impor a ela, se é a isso que te referes – riu-se Hugh. – Só
quero um dia inteiro, e se não a tiver até lá, saberás que a tua mulher te é
fiel.
– Maldito! – praguejou Stephen, e fez nova tentativa antes de ser tirado à
força do quarto.

***

Bronwyn encontrava-se diante do comprido espelho e examinou-se com


olhar crítico. Demorara uma hora para vestir o traje inglês. A saia e as
mangas eram feitas de brocado reluzente laranja. Atado com fitas nos
ombros, depois esticado nas mangas, encontrava-se um manto de arminho.
A saia abria-se à frente para relevar veludo cor de canela. O decote
quadrado era pronunciado.
O cabelo dela caiu-lhe pelas costas em caracóis espessos e volumosos,
enroscando-se atrás das orelhas.
– Estais linda, minha senhora – disse a tímida aia atrás de si. – O Sir
Hugh nunca hospedou uma senhora tão bonita.
Bronwyn fitou a mulher e preparou-se para comentar, mas não o fez. Não
demorara a perceber que era inútil fazer perguntas na casa de Lasco. Nessa
manhã teve de impedir Rab de atacar Hugh, quando este se acercou do catre
dela no Salão Grande. Rab detestava completamente o homem.
Hugh lançou-se numa demorada explicação da ausência de Stephen antes
de Bronwyn ser capaz de fazer perguntas. Ao terminar a história – que
Stephen fizera um favor ao velho amigo, indo ver uma das propriedades de
Hugh – recuou e sorriu para Bronwyn com grande confiança.
Ela disparou as perguntas. Porque partira Stephen sem falar com ela? Que
negócio era aquele que o próprio Hugh não seria capaz de tratar sem ajuda?
De que modo era Stephen mais adequado a isso? E se Hugh precisava de
ajuda, porque não a tinha pedido mais cedo aos irmãos de Stephen?
Viu Hugh engasgar-se e tropeçar nas palavras. Fitava-a com um ar
estranho, incapaz de encontrar o olhar franco dela. Acabou por sorrir, e ela
pressentiu que lhe ocorrera uma ideia. Surgiu uma nova história, de que
Stephen quis preparar-lhe uma surpresa, e pedira a Hugh que a
acompanhasse durante o dia.
Bronwyn fechou a boca e não fez mais perguntas. Por ora, agiria como se
acreditasse nas óbvias falsidades de Hugh. Sorriu calorosamente ao homem
ligeiramente mais baixo do que ela.
– Uma surpresa! – exclamou numa voz que esperava soasse infantil e
inocente. – Que imagina que possa ser?
Hugh sorriu-lhe com benevolência.
– Logo veremos, não concordais? Mas entretanto, preparei alguma
diversão para nós. Mandei erguerem os pavilhões e acenderem as
fogueiras.
– Oh! Que bom! – disse ela, batendo as palmas como uma menina e ao
mesmo tempo ordenando a Rab que não atacasse o pescoço do homem.
Hugh conduziu-a para o piso superior, onde entraram num quarto
acolhedor e limpo que guardava o vestido brocado preparado para ela. A
bainha fora descida para ajustá-lo à sua altura. Bronwyn percebeu que
tinham passado a noite inteira a costurá-lo. Hugh soltou-lhe um dos seus
sorrisos sedutores lentos ao sair do quarto, e Bronwyn teve de se esforçar
para retribuir com o sorrisinho tonto que ele parecia esperar de volta.
Encontrando-se sozinha, acorreu para a janela. Na praça, os carpinteiros
montavam uma plataforma rapidamente. Já tinham acendido seis fogueiras
e montado um braseiro a carvão enorme debaixo de um toldo. Franziu a
testa, consternada. Porque é que um inglês pensaria em organizar um
espetáculo exterior em pleno dezembro? A chuva da véspera tornara-se
neve, e o solo mostrava-se ligeiramente polvilhado. Do que conhecia dos
ingleses, eram criaturas fraquinhas que preferiam o conforto dos interiores.
A aia veio ajudá-la com o vestido, mas Bronwyn pouca informação lhe
sacou. A mulher disse que Sir Hugh passara a noite acordado para
coordenar as festividades do dia. Bronwyn interrogou-se se não exagerara
na sua reação. Talvez Stephen tivesse sido convocado por algum motivo, e
Hugh só quisesse honrar a mulher do amigo. Mas Stephen seria capaz de
partir para lhe preparar uma surpresa? Era demasiado realista. E quase de
certeza que a faria dar-lhe uma ajuda com a própria prenda.
Antes de chegar a uma conclusão, Hugh surgiu à porta. Fitou-a com
admiração, o olhar percorrendo-a lentamente da cabeça aos pés.
– Sois magnífica – murmurou. – O Stephen é realmente um homem de
sorte.
Ela agradeceu-lhe e pegou-lhe no braço que ele lhe ofereceu ao descerem
as escadas.
– Tendes de contar-me tudo sobre o vosso clã – pediu, com os olhos fixos
nos lábios dela. – Imagino o vosso contentamento por terdes um marido
inglês. Um dia conhecereis o rei Henrique e podeis agradecer-lhe.
Bronwyn quase explodiu com a força da sua reação. Pensava que a
vaidade de Stephen era o cúmulo, mas este homem ultrapassava a sua
imaginação.
– Ah, sim – disse num tom manso –, o Stephen tem sido bom para mim, e
aprendemos muito com ele – quase se engasgou ao recordar que fora
Stephen a mudar e não os homens dela.
– Obviamente – sorriu Hugh. – Inglaterra tem soldados mais capazes. Os
escoceses podem aprender bastante. – Parou. – Peço desculpa. Não queria
dizer isto. Afinal, sois a chefe de um clã.
Era como se desse esmolas a um pobre. Ela não se atreveu a responder
porque, se ele continuasse, era capaz de incitar Rab contra aquele pavão
inútil.
– Oh, vede! – exclamou ela cheia de satisfação. – Como é bonito! – disse,
referindo-se ao pavilhão de cores alegres.
Hugh parou, lançou um relance às paredes da casa, pegou-lhe na mão e
beijou-a.
– Nada é demasiado bom para vós, nada é demasiado belo para vós.
Ela observou-o com interesse remoto. Quando o vira pela primeira vez,
encontrara algum interesse nos movimentos lentos e na boca invulgar.
Agora considerava-o entediante. Ele devia pensar que Bronwyn gostava de
ser beijada na mão.
Foi preciso controlar-se para não se esquivar constantemente dele. Será
que todos os homens se consideram muito atraentes para as mulheres?
Percebeu subitamente que tinha pouca experiência. Os homens do clã
jamais tentariam tocar-lhe, talvez com receio da ira do pai. Em Inglaterra,
só tinha passado algum tempo com Roger Chatworth, que queria discutir
planos para o seu povo. Stephen era o único homem que lhe tinha tocado, e
aparentemente, também o único ao qual reagiria. Ou assim se sentia, uma
vez que o toque de Hugh Lasco lhe causava repulsa.
A resposta dela, ou a falta da mesma, pareceu satisfazê-lo, e ele conduziu-
a para uma cadeira de talha dourada sob o pavilhão. Hugh bateu as palmas
uma vez, e três malabaristas apareceram na plataforma de madeira diante
deles. Ela sorriu ligeiramente para Hugh e fingiu observar os artistas. Mas a
verdade é que se encontrava mais interessada nas redondezas. A cada
momento que passava sentia-se mais desconfiada. Algo estava errado.
Porque decorria a diversão no exterior?
Dançarinas juntaram-se aos malabaristas, e Bronwyn reparou que tinham
os ombros azuis do frio. Um vento hostil começou a soprar-lhes no rosto.
Um dos serviçais de Hugh sugeriu que virassem o pavilhão para bloquear o
vento. A resposta de Hugh foi quase violenta, recusando-se a alterar a
disposição do pano.
– Perdoai-me, Sir Hugh – disse Bronwyn na sua voz mais doce. Precisava
de tempo para espreitar a casa.
Talvez conseguisse encontrar a pista do mistério. Talvez Stephen não
tivesse realmente partido.
– Oh, mas não podeis partir já. Ouça. Vou pedir que aumentem a fogueira.
Ou trazemos outro braseiro.
– Não tenho frio – disse ela sinceramente, tentando não sorrir com o nariz
azul de Hugh. – Só queria… – Olhou para as mãos no regaço, confusa.
– Claro! – disse ele embaraçado. – Enviarei um guarda…
– Não! Tenho o Rab, e certamente consigo desenvencilhar-me na casa.
– Se assim desejais… – Sorriu, e beijou-lhe a mão novamente.
Bronwyn teve de conter-se para não correr para a casa. Não queria agir de
forma a criar suspeitas em Hugh. Mas, após ter entrado, sabia que tinha de
apressar-se.
– Rab – ordenou –, descobre o Stephen.
Rab subiu as escadas a correr cheio de alegria. A manhã inteira tinha
resistido contra as ordens de Bronwyn. O cão parou diante de uma porta
que ela pensava ser o quarto de Hugh. O animal farejou e deu voltas até
subir outras escadas. Bronwyn levantou as pesadas saias e correu atrás
dele.
No cimo do terceiro lance de degraus, encontrava-se uma porta de
carvalho com aspeto pesado, e a janela montada com grades de ferro. Rab
saltou, batendo com as patas da frente na janela. Latiu uma vez.
– Rab! – surgiu a voz de Stephen.
– Para baixo! – ordenou Bronwyn. – Está tudo bem, Stephen? Porque te
fizeram prisioneiro? – Estendeu-lhe a mão, agarrando-o através das grades.
Stephen tomou-lhe a mão nas suas, fitou-a.
– Esta é a mão que deixas o Hugh beijar constantemente? – perguntou
com frieza.
– Não temos tempo para um ataque de ciumeira. Porque estás preso? E
que celebração absurda é esta?
– Absurda? – indignou-se Stephen, largando a mão dela. – Parecia-me
que estavas a divertir-te muito. Conta-me, o Hugh é um homem atraente?
Muitas mulheres consideram que sim.
Ela encarou-o, afagando Rab que se encontrava nervoso porque o dono
estava preso. O pensamento voava acelerado.
– Isto não é nada sério, pois não? – perguntou baixinho. – Apenas um
jogo entre ti e o teu amigo.
– Não é jogo no que concerne à minha esposa – disse firmemente.
– Raios te partam, Stephen Montgomery! – sibilou ela. – Disse-te para
não virmos para cá. Ah, mas tu sabes mais do que eu. Agora gostava de
perceber o que se passa aqui e como te tiro deste lugar, embora não saiba
porque te quero à solta.
Stephen semicerrou a vista.
– Se cederes ao Hugh e o deixares vencer, parto-te o pescoço.
Ela começava a compreender.
– Queres dizer que faço parte de uma aposta? O que vai ele ganhar?
Vendo que Stephen não respondia, ela respondeu por ele.
– Vou adivinhar. O Hugh julga que pode seduzir-me a ir para a cama com
ele, e tu acreditas nisso. Já entrou nesse teu cérebro de ervilha inchado e
vaidoso que eu posso ter opinião? Consideras-me tão cabeça de vento que
basta um homem sorrir-me e beijar-me a mão para saltar para a cama dele?
Devias saber que lhe espetaria uma faca, para não dizer mais. O Rab rosna
sempre que o Hugh me toca.
– Uma situação recorrente, se bem vejo.
Bronwyn reparou a janela no fundo da cela. Então era por isso que Hugh
recusava a virar o pavilhão. Queria que Stephen conseguisse vê-los juntos.
Ela fitou o rosto frio e irado de Stephen, e começou a sentir igual ira.
Aqueles dois homens usavam-na numa espécie de partida infantil própria
dos miúdos. Hugh dissera que convenceria Bronwyn a ir com ele para a
cama, e Stephen obviamente tinha uma opinião tão fraca da moralidade e
integridade dela que acreditava poder perdê-la para qualquer homem
empenhado nessa tarefa. E Hugh! Insultara-a, tratando-a como se fosse
burra, e contudo convencido de que ela cederia aos seus encantos.
– Raios vos partam aos dois! – murmurou ela, antes de voltar as costas.
– Bronwyn! Volta aqui! – ordenou Stephen. – Diz ao Hugh que sabes de
tudo e pede-lhe a chave.
Ela fitou-o e lançou-lhe o seu sorriso mais doce.
– E perco a diversão que Sir Hugh tem prevista para mim? – perguntou,
pestanejando. Começou a descer as escadas, boca retesada contra as
vociferações que Stephen lhe lançou. – Raios vos partam aos dois – repetiu
para si mesma.
Capítulo Treze

Bronwyn alcançou o fundo das escadas completamente indignada. Sir Hugh


aguardava por ela com ar impaciente, como se quisesse admoestá-la pela
demora. O primeiro impulso dela foi de pregar-lhe um sermão sobre o que
pretendia fazer, mas o pensamento logo se desvaneceu. Ingleses!, pensou
ela. Ao conhecer Stephen, ele julgava que a única via possível seria à
inglesa. Rira-se quando ela pedira que usasse o traje escocês e não a
armadura pesada dos ingleses. Agora duvidava conseguir convencê-lo a
envergar uma jaqueta pesadona com enchimentos de Sir Hugh. Mas
Stephen teve de participar na batalha para se dispor a mudar.
Talvez ela fosse capaz de criar uma batalha sua, para que os dois ingleses
aprendessem o que era sobejamente conhecido por qualquer escocês: que as
mulheres eram bem capazes de pensar pelas próprias cabeças.
– Já me perguntava onde andaríeis – disse Sir Hugh, estendendo a mão.
Bronwyn abriu os olhos numa expressão de pura inocência.
– Espero que não vos incomodais mas eu apreciava a vossa casa. É
magnífica! Dizei-me, tudo isto vos pertence?
Sir Hugh tomou-a pelo braço, prendendo-o debaixo do seu. O peito
expandiu-se visivelmente.
– Tudo isto, mais setecentos acres. Claro, tenho mais uma propriedade no
sul.
Ela suspirou pesarosamente.
– O Stephen – começou timidamente – não tem um lugar como este, pois
não?
Hugh franziu o cenho.
– Acho que não. Tem terras algures, penso eu, com uma torre antiga, não
uma casa. Decerto que os vossos terrenos…
Ela suspirou novamente.
– Mas ficam na Escócia.
– Claro, entendo. É um país frio e húmido, certo? Não admira que prefira
viver aqui. Bem, talvez o Stephen… – Calou-se.
Ela sorriu para si mesma. Tal como calculara, Hugh não estava
interessado nela, ou não iria desonrar o amigo; mas sentia-se entediado e
queria arreliar Stephen.
Referia-se demasiado ao amigo para ser um inimigo convicto. Stephen
pensou que ela podia ser seduzida para o leito de um homem atraente, e
Hugh aproveitava-se dela apenas para antagonizar o amigo. E nenhum dos
homens tinha em conta o que ela própria desejava nem pensava.
Sorriu mais abertamente, ao congeminar os efeitos de lhes perturbar os
planos. O que diria a Sir Hugh se confessasse o seu descontentamento com
Stephen e que preferiria ficar na Inglaterra com um homem bonito e fino
como ele?
Aproximando-se do pavilhão, ela olhou para o céu.
– O sol parece pronto a despontar. E se tirarmos as cadeiras do toldo?
Sir Hugh sorriu ante esta sugestão e ordenou que as cadeiras fossem
movidas para a frente.
Bronwyn indicou que as juntassem mais, e sorriu perante o franzir de
cenho de Hugh. Não perdeu tempo, mal se sentaram. Havia músicos a
tocarem uma bela balada, mas não olhou para eles; estava fixada apenas em
Hugh.
– Não tendes esposa, meu senhor? – perguntou baixinho.
– Não… por enquanto. Não tive igual sorte que o meu amigo Stephen.
– Ele é realmente vosso amigo? Podeis ser também meu amigo?
Hugh fitou-a profundamente nos olhos, temendo perder-se neles. Stephen
era realmente sortudo.
– Claro que sois minha amiga – disse num tom paternal.
Ela suspirou, humedeceu os lábios e afastou-os ligeiramente.
– Percebo que sois um homem inteligente e sensível. Oxalá tivesse um
marido como vós. – Sorriu respeitosamente ao ver o queixo caído de Hugh.
– Deveis saber como foi o meu casamento. Não tive escolha. Tentei
escolher outro que não… Lorde Stephen.
Hugh retesou as costas.
– Ouvi dizer que o Stephen teve de lutar por vós, e que o fez bem. O tal
de Chatworth tentou atacá-lo pelas costas.
– Ah, sim, o Stephen luta bem, mas não é o que como direi? Não me
satisfaz.
Os olhos de Hugh esbugalharam-se.
– Quereis dizer que Stephen Montgomery tem falhas de desempenho?
Deixai-me dizer-vos que fomos amigos a vida inteira. E as mulheres dele! –
Começava a irritar-se agora. – Quando estivemos juntos na Escócia, o
Stephen andou meio apaixonado por uma putéfia, cego para o facto de que
ela dormia com metade dos soldados. Até lhe paguei para dormir comigo
para que ele nos apanhasse juntos.
– É por isso que ele ficou tão zangado convosco? – perguntou ela,
esquecendo-se por instantes de usar a voz melosa.
– Ele jamais acreditaria em mim se lhe contasse o que ela era. Não era
capaz de ignorar as covinhas do rosto.
Bronwyn recuou, digerindo as novidades. Bem. Stephen usava-a para se
vingar do homem que lhe roubara uma das suas mulheres. Uma mulher por
quem estava meio apaixonado! Sentiu uma dor aguda no peito, e lágrimas
ardentes nos olhos. Não tinha querido casar com ela por se encontrar
apaixonado por uma meretriz com covinhas na cara.
– Lady Bronwyn, sente-se bem?
Ela levou o nó do dedo ao olho.
– Entrou qualquer coisa para o olho.
– Deixe-me ver. – Tomou-lhe o rosto nas mãos grandes e fortes, e
Bronwyn levantou o rosto para ele.
Sabia que Stephen a observava, e passou-lhe pela mente se ele pensaria
na mulher que desejara.
– Não vejo nada – indicou Sir Hugh sem largar o rosto dela. – Sois uma
mulher incrivelmente bela – murmurou ele. – O Stephen…
Ela libertou-se do apego dele.
– Não quero voltar a ouvir esse nome – disse com ar zangado. – Hoje
livrei-me dele, e prefiro que fique assim. Talvez os músicos nos possam dar
algum espaço para dançarmos. Eu mostrar-vos-ei alguns passos escoceses.
Ele lançou um olhar nervoso para o alto, mas deixou-se ser puxado para a
plataforma de madeira.
Sir Hugh não se recordava de outro momento tão divertido. Não estava
habituado a ver o cabelo de uma mulher a voar livremente em torno do
corpo ágil. Os olhos de Bronwyn faiscaram e riram-se enquanto ele tentava
copiar os passos complicados mas sem jeito. O dia frio pareceu aquecer, e
ele esqueceu-se de que o marido dela observava do alto da torre.
– Bronwyn – disse ele tendo já largado o formal «senhora» há uma hora
–, tens de parar! Receio já ter dores de costas.
Ela riu-se dele.
– Não serás grande escocês senão aguentares algum exercício.
Ele pegou-lhe no braço.
– Não me esforço tanto desde que passei uma semana a treinar com os
irmãos Montgomery.
– Sim – disse ela ao sentar-se. – O Stephen treina muito a sério. – Mas
depois a expressão perdeu o humor.
– É um bom homem – disse Hugh, tirando uma fatia de queijo do
tabuleiro que um criado lhe apresentou.
– Talvez – disse ela, bebendo profusamente o copo de vinho quente com
especiarias.
– Invejo-o.
– A sério? – perguntou ela perscrutando-o.
– Talvez consiga substituí-lo… de certa forma – observou Hugh com
interesse, enquanto se fazia de subentendido. Pavão vaidoso!, pensou ela.
Nem lhe ocorre, tal como a nenhum homem, que as mulheres não o
consideram uma dádiva divina.
– Lady Bronwyn – disse Hugh formalmente –, tenho de falar a sério
convosco. Sobre o Stephen…
– Como era ele em criança? – perguntou ela, interrompendo-o.
Hugh ficou naturalmente espantado.
– Sério, como o Gavin. Todos os irmãos cresceram num mundo só de
homens. Talvez se o Stephen for um pouco desajeitado, é porque pouco
sabe como tratar uma mulher.
– Ao contrário de vós – ronronou ela.
Hugh sorriu de forma confiante.
– Tenho ganho experiência, e imagino que seja por isso que… se sinta
atraída por mim. Está casada com o Stephen há tão pouco tempo. Acredito
que com os anos crescerá… afeto entre os dois.
– É o que pretende da vida? Afeto?
– Sou diferente do Stephen – disse ele com ar presunçoso.
Bronwyn sorriu-lhe, começando a tecer um plano.
– Recentemente, estando nós na Escócia, eu e o Stephen pernoitámos com
camponeses. Uma das mulheres preparou uma bebida deliciosa com
líquenes. No caminho para a vossa propriedade, vi rochas cheias deles, e
pensei que talvez pudéssemos passear e recolher alguns. Gostava de
preparar-vos uma bebida.
Hugh mostrou-se consternado por uns instantes, mas acabou por
concordar. Não lhe agradava o decorrer dos acontecimentos. Era como se a
esposa de Stephen quisesse trair o marido.
Hugh queria confirmar que Bronwyn não podia ser conquistada por outro
homem, e no entanto era por si que ela manifestava preferência.
Durante o passeio, Hugh começou a descrever Stephen como um homem
honrado, digno de uma mulher com o estatuto de Bronwyn. E referiu que
Stephen mostrava-se bastante generoso por usar o ridículo traje escocês.
Bronwyn não se manifestou, enquanto guardava líquenes e pétalas secas
no cestinho que Hugh lhe oferecera. Escutava com atenção e nada dizia.
Voltara a chover no regresso a casa. Sir Hugh mostrou-me muito formal
ao conduzi-la para a residência privada do piso superior. Um criado trouxe-
lhes vinho quente e canecas, para Bronwyn preparar as bebidas. Enquanto
cuidadosamente misturava e mexia os ingredientes observou Hugh, de peito
inchado e lábios contorcidos na convicção presunçosa de que era nobre da
sua parte rejeitar a tentativa de sedução de Bronwyn.
– Meu senhor – disse ela baixinho, entregando-lhe a caneca quente. A
mão dela tocou na dele com uma pequena carícia. Ela sorriu quando ele
declarou a bebida deliciosa, esvaziou a caneca e pediu mais.
– Tenho de falar convosco – disse ele seriamente, bebericando a segunda
caneca de líquido quente. – Não posso deixar que pensais certas coisas.
– E que coisas serão essas? – perguntou ela com ar doce.
– O Stephen é meu amigo, sempre o foi. E eu espero que continue depois
disto.
– E porque não continuaria?
– Dependerá de vós. Jamais podeis mencionar a vossa… a vossa atração
por mim.
– A minha atração por vós? – perguntou ela inocentemente. Sentou-se na
cadeira diante dele. – A que vos referis?
– Ah, minha senhora, então. Ambos sabemos o que se passa entre nós.
Todas as mulheres entendem os assuntos do coração.
Ela levantou as sobrancelhas.
– Todas as mulheres? Dizei-me, por favor, o que sabem todas as
mulheres?
– Não se arme em tímida – ripostou ele. – Ao contrário do Stephen
Montgomery, não considero as mulheres inocentes. Talvez consigais
persuadi-lo que não olhais para outros homens, e como ele é meu amigo,
vou apoiar a vossa versão, mas não tenteis armar-vos em inocente comigo.
– Fui apanhada! – disse ela, sorrindo. – Conheceis tão bem as mulheres e
o vosso amigo, que não poderei escapar.
Hugh começou a falar, mas uma agonia súbita assolou-lhe as entranhas e
fechou a boca.
– Hugh, deixe-me encher a vossa caneca. Não tem bom ar.
Hugh aceitou a caneca e esvaziou-a. Quando recuperou, estava sem
fôlego.
– O peixe estava estragado, sem dúvida – disse ele, e mudou de assunto. –
Onde ia eu?
– Dizíeis-me que estava pronta a trocar o meu marido por si.
– Esticais o que eu disse – comentou. – Eu…
Bronwyn bateu o jarro de vinho contra a mesa, e o vidrado do barro
rachou.
– Não! Eu é que falo agora! – debruçou-se sobre ele, mãos nas ancas. –
Dizes-te amigo do Stephen, e no entanto pregaste-lhe uma partida infantil,
prendendo-o para que te visse armares-te em parvo com a mulher dele.
– Parvo! Não creio que me tenha armado em parvo.
– Julgas ler os meus pensamentos? És vaidoso a ponto de julgares que
continuaria insatisfeita após passar meses na cama do Stephen
Montgomery?
– Mas disseste…
– Estavas pronto a acreditar em tudo. Como se tivesse sido nobre pagares
à puta para dormir contigo. Pensas ter feito um favor ao Stephen mas
pergunto-me se não andarias invejoso. Todos os soldados tiveram de lhe
pagar, exceto um… o meu Stephen!
– O teu Stephen! – Hugh começou a levantar-se, mas outra dor derrubou-
o. Olhou para cima, horrorizado. – Envenenaste-me.
Ela sorriu.
– Não foi veneno mas ficarás doente por vários dias. Quero que te
lembres do dia de hoje durante muito tempo.
– Porquê? – perguntou ele, agarrado ao estômago. – O que te fiz eu?
– Nada – disse ela com ar sério. – Absolutamente nada. Fui usada pelos
ingleses durante demasiado tempo para poder aguentar outra vez. Usaste-
me para brincares com o Stephen. Nunca te ocorreu que eu podia ter um
dizer na matéria. Percebi ontem à noite, enquanto o Stephen tocava o
alaúde. Estavas tão seguro de ti mesmo que qualquer mulher te quereria.
Hugh dobrou-se de dor.
– Grande cabra! – arfou. – O Stephen que te carregue.
– Sou uma cabra por ter decidido ser mais do que um peão nos vossos
joguinhos? Lembre-se, Sir Hugh, o tabuleiro de xadrez pode ter apenas uma
mulher mas é a peça mais versátil e poderosa. – Inclinou-se e retirou a
chave do bolso do gibão de Hugh antes de se virar.
– O Stephen viu-te. Jamais acreditará que não me desejavas.
Retesou as costas.
– Ao contrário do que pensas dele, o Stephen Montgomery é o homem
mais são e inteligente que conheço. – Fez uma pausa junto à porta. – Ah,
sim, e Sir Hugh, da próxima vez que precisares de ajuda com as tuas
mulheres, sugiro que peças conselhos ao Stephen. Pelo que já vi, há pouco
que ele não saiba. – E saiu da sala.
Rab aguardava-a do lado de fora da porta de Hugh e juntos subiram as
escadas até ao quarto onde Stephen fora aprisionado. Espreitou pela porta
trancada e viu Stephen a olhá-la intensamente. A raiva e ódio naquela
expressão lançou-lhe um arrepio na espinha. Enfiou a chave na fechadura e
abriu a porta.
– Estás livre – disse baixinho. – Ainda é dia e podemos ir para a
propriedade do teu irmão.
Stephen sentou-se sem dizer nada, cenhos unidos.
Ela aproximou-se dele, estendeu a mão e tocou num caracol do cabelo.
– Seria preferível que despejasses a tua fúria.
Ele enxotou a mão dela.
– Como te atreves a dirigir-te a mim depois de estares com ele? Usas um
vestido que ele te ofereceu, o mesmo com que te pavoneaste para ele. Ele
gostou? Gostou de ver nu o teu colo?
Ela suspirou e sentou-se à janela.
– O Hugh disse que não acreditarias na minha inocência depois de teres
presenciado tudo.
– Agora trata-lo por Hugh? – rosnou Stephen, levantando ambos os
punhos para ela, mas deixando-os cair. – Vingaste-te de mim por completo
pelo casamento. Bem esperaste para teres esta vingança. – Sentou-se
pesadamente no banco, ignorando Rab, que esfregava o focinho contra ele.
– Na noite de núpcias, a tua faca devia ter encontrado o meu coração.
Bronwyn mexeu-se tão depressa que nem Rab notou. Deu uma bofetada a
Stephen em pleno na cara que o pescoço saltou para trás.
– Raios te partam, Stephen Montgomery – arfou. – Estou farta de tantos
insultos. Primeiramente, o teu dito amigo trata-me como se fosse uma
propriedade a deitar a mão, depois chama-me cabra quando eu o rejeito e o
faço pagar. Agora sou obrigada a ouvir-te acusares-me de agir como uma
rameira. Não sou a tua rapariga dos acampamentos com covinhas na cara.
Stephen fez uma pausa no maxilar magoado.
– De que falas tu? Que rapariga?
– Ela não representa nada – disse, zangada. – O que fiz eu para te levar a
julgar-me como uma rameira? Quando é que os meus atos mostraram a
minha desonestidade ou que não respeito os meus votos?
– Não entendo nada. Quais votos?
Ela soltou um suspiro exasperada.
– Os nossos votos matrimoniais, palerma! Eu aceitei-os e não os trairia.
– Também aceitaste obedecer-me – comentou ele cabisbaixo.
Ela virou-lhe as costas.
– Anda, Rab, vamos para casa.
Stephen pôs-se de pé imediatamente. Agarrou-lhe o braço.
– O que pensas que fazes? Voltas para o Hugh?
Ela levou o pé atrás para lhe dar um pontapé, mas ele fê-la rodar e puxou-
a contra si, de costas.
– Quase fiquei louco – murmurou. – Porque me fizeste isto? Sabias que
eu assistia a tudo.
As palavras dele acenderam-lhe a pele. Passara uma eternidade desde a
última vez que fora tocada por ele. Encostou a cara ao braço de Stephen.
– Irritaste-me. Os dois usavam-me como se eu não tivesse direitos
próprios.
Ele virou-a para si, mãos nos ombros da rapariga.
– Esquecemo-nos que és uma MacArran, foi? Bronwyn, eu…
– Abraça-me – pediu ela baixinho – e não digas nada.
Ele quase a esmagou contra si.
– Não aguentava pensar que ele te tocava. Sempre que te dava a mão… e
quando ele te pegou na cara!
– Cala-te! – ordenou Bronwyn. – Cala-te agora mesmo. – Afastou-se
dele. – Nada aconteceu entre o Hugh Lasco e eu. Ele julgava-se capaz de
conquistar qualquer mulher, e eu quis mostrar-lhe o contrário.
A raiva de Stephen.
– Realmente, foste boa nisso. De onde eu estava, vocês podiam ser
amantes há anos.
– É isso que julgas? Acreditas que deixaria um homem agarrar-me como
ele fez se não fosse com intenção?
A vista de Stephen ensombreceu.
– Havia um motivo! Sei como te portas na cama. Talvez quisesses
descobrir se outros homens te fazem gritar. Conta-me, ele descobriu os teus
joelhos à primeira?
Ela fitou-o intensamente.
– Achas mesmo que passei a tarde na cama com ele?
– Não – disse ele, derrotado. – Não houve tempo, e o Hugh…
– Deixa-me acabar por ti – disse ela prontamente. – O Hugh é teu amigo e
sabes que é um homem honrado que não faria nada tão desonroso. Por outro
lado, sou apenas uma mulher e portanto não tenho honra. Um pedaço
volátil, uma planta que vai para onde o vento me leva, certo?
– Deturpas as minhas palavras!
– Não creio. Esta manhã, quando te vi aqui dentro, presumiste que o
Hugh me podia ter se quisesse. Só precisava de pedir-me ou tratar-me bem.
Se me conhecesses minimamente, terias aguardado calmamente por mim
nesta cela. Depois iríamos rir juntos da partida que preguei ao teu Sir
Hugh.
– Que partida? – perguntou Stephen de imediato.
Bronwyn sentiu-se subitamente sem fôlego. Tanto que aprendera sobre
Stephen nos passados meses, até confiar nele, acreditar nele, pensar que o
amava. Mas ele não aprendera nada sobre ela! Continua a julgá-la uma tola
manipulável e fraca.
Falou sem emoção.
– Dei-lhe a beber uma mistela com ervas que a Kirsty disse que provoca
dor de estômago. Vai passar mal durante dias.
Stephen fitou-a por instantes. Quanto queria confiar nela! Era como se
tivesse passado metade da vida a vê-la debruçar-se sobre Hugh, a conversar
com ele. Tentara arrancar as grades das janelas quando os dois dançaram.
Os tornozelos de Bronwyn emergiam das saias; a luz do sol reluzia no
vestido. Como podia ele ser moderado quando ela quase o tornara um
animal? Se tivesse conseguido libertar-se, mataria Hugh, desfaria o amigo
com as próprias mãos.
Limpou os olhos. Ela pedia-lhe para pensar de forma racional, mas ele
não era capaz de pensar sequer. Fitou-a com assombro. O que lhe fizera ela?
Não tinha uma única ideia clara desde que a vira, caída no chão na sua
camisa interior molhada. Lutara por ela, quase morrera quando ela arriscou
a vida na falésia por um dos seus homens, quase a matou quando a sua
infantilidade custara a vida de Chris. E ela dizia-lhe para ser racional? Estar
perto dela tirava-lhe toda a sanidade possível.
– Devíamos ir – disse ela com frieza e deu meia-volta.
Viu-a sair do quarto com Rab na esteira. Só lhe apetecia segui-la, dizer-
lhe que acreditava nela, que era uma mulher honrada, mas não era capaz.
Hugh já tinha provado no passado ser capaz de tirar uma mulher a Stephen.
A doce Meg amava Stephen mas Hugh fora capaz de a roubar. Bronwyn
não ocultava minimamente o facto de considerar Stephen como inimigo.
Para ela, um inglês era igual a outro. Talvez Hugh tivesse feito promessas a
respeito do clã. Se o clã estivesse envolvido…
Levantou a vista quando Rab ladrou. Voltou para o presente e desceu as
escadas a correr, até ao quarto de Hugh.
Hugh jazia no leito, joelhos levantados até ao peito, quatro criados e três
guardas à sua volta.
– Desaparece – arfou entre pontadas de dor. – Não te quero voltar a ver
nem àquela cabra.
Stephen começou a recuar, sorrindo. Ela dissera a verdade!
– Desaparece, já disse! – ordenou Hugh. Agarrou o estômago e caiu na
cama.
– Vencido por uma mulher – riu-se Stephen ao abandonar o quarto.
Desceu as escadas até ao Salão Grande. Bronwyn aguardava-o, usando a
saia feita com a manta escocesa e uma blusa branca. Voltara a ser a sua
rapariga das Terras Altas. Aproximou-se dela, tocou-lhe, sorriu-lhe.
Ela afastou-se, fria.
– Bronwyn – começou.
– Se já acabaste, acho que nos devíamos ir embora. Mas claro que és o
meu dono e ficarei se for essa a tua ordem.
Ele fitou por instantes o azul gelado daquele olhar.
– Não, não desejo ficar – disse após algum tempo. Deu meia-volta e
avançou para a porta de entrada.
Bronwyn seguiu-o devagar. Aquela situação tinha começado como um
jogo, para verem quem seria o mais capaz, mas ela aprendera algo
espantoso sobre o marido. Ela julgara que tinha de ser ela a aprender a
confiar nele. Observara-o ao longo dos últimos meses, com desapego,
vendo-o mudar. Passara de inglês arrogante a escocês, praticamente. Muita
da frieza para com os próprios homens tinha-o abandonado, e estes, que
eram ingleses, tinham mudado tanto quanto o chefe. Um por um,
começaram a usar mantas, e deixaram de passar horas a polirem as suas
armaduras. Depois, há poucos dias, Stephen tinha abatido três ingleses para
salvar Bronwyn e o bebé de Kirsty. Para Bronwyn, esse gesto fora a prova
derradeira que precisava para acreditar nele.
Mas o que tinha Stephen aprendido a respeito dela? Desaprovava tudo o
que ela fazia. Amaldiçoava-a se chefiasse os seus homens. Ficava irritado
se arriscasse a vida por outros. O que podia ela fazer para lhe agradar?
Devia transformar-se noutra pessoa? Gostaria mais dela se fosse como…
como a linda cunhada? Tinha uma ideia feita de Judith: gentil, nunca
levantava a voz, sorria constantemente para o marido com ar doce, nunca
discutia com ele.
– Os homens só querem isso! – disse ela em surdina. Stephen queria que
ela ficasse quieta e calada, sem o contradizer. Como as inglesas Maldito!,
praguejou. Não era nenhuma inglesa mansinha! Era uma MacArran, e
quando mais depressa Stephen Montgomery se compenetrasse disso,
melhor lhes correria a vida.
Esticou o queixo ao avançar para a estrebaria.

Por acordo silencioso e mútuo, não pararam durante a noite. Mantiveram-


se a cavalo, a passo constante, sem falarem, cada um imerso em
pensamentos sobre os dois últimos dias. Stephen só conseguia pensar na
visão das mãos de Hugh em Bronwyn. Sabia que ela se vingara, mas
desejava que tivesse sido menos subtil e enfiasse uma faca no homem.
Quanto a Bronwyn, já se esquecera de Hugh. O que lhe interessava era
que Stephen não confiara nela, e a acusara de mentir.
Pela madrugada, as muralhas do velho castelo Montgomery
apresentaram-se diante deles. Bronwyn não esperava ver uma fortaleza
escura e enorme, mas um casarão como o de Hugh Lasco. Lançou um olhar
a Stephen e viu que estava ansioso, tal como ela teria estado ao ver
Larenston.
– Entramos pelo portão do rio – disse ele, incitando o cavalo.
As muralhas altas eram encimadas por dois torreões massivos que
protegiam os portões fechados. Ela seguiu Stephen em direção às muralhas
baixas que formavam um túnel sem teto, terminando no portão mais
pequeno ao fundo das muralhas.
Stephen abrandou e entrou cautelosamente no vale estreito e muralhado.
Imediatamente uma seta cortou o ar e aterrou aos pés do cavalo de Stephen.
– Quem vem lá? – perguntou uma voz anónima do cimo da muralha.
– Stephen Montgomery! – declarou em voz alta.
Bronwyn sorriu pois a voz de Stephen tinha o sotaque das Terras Altas.
– Não és o Lorde Stephen, pois conheço-o bem! Vira essas pilecas para
trás e desaparece. Por aqui só entram amigos. Daqui a uma hora aparece no
portão principal e suplica ao guarda que te deixe passar.
– Matthew Greene! – berrou Stephen. – Já não reconheces o teu senhor?
O homem inclinou-se para baixo, estreitando a vista.
– Sois vós! – disse após alguns instantes. – Abram o portão! – berrou, a
voz cheia de alegria. – O Lorde Stephen está vivo! Sejais bem-vindo, meu
senhor.
Stephen acenou ao homem e prosseguiu. Ao longo da muralha os homens
iam-no saudando. No final da passagem, abriu-se um portão, e entraram
com os cavalos num pátio interior, rodeado pela casa imponente.
– Meu senhor, que bom é ver-vos – disse um velhote que tomou as rédeas
de Stephen. – Não vos teria reconhecido se os homens não me tivessem
dito.
– É bom estar de volta, James. Os meus irmãos encontram-se em casa?
– O Lorde Gavin regressou há pouco mais de uma hora.
– Regressou?
– Sim, meu senhor, todos os vossos irmãos procuraram por vós.
Pensámos que tinha sido morto pela vossa bárbara esposa.
– Tento na língua, James! – ordenou Stephen. Deu um passo atrás e pegou
na mão de Bronwyn. – Eis a minha esposa, a Lady Bronwyn.
– Oh, minha senhora – engasgou-se o homem. – Perdoai-me. Tomei-vos
por uma… quero dizer, o Lorde Stephen costumava trazer para casa…
– Já falaste demais. Vem, Bronwyn – disse Stephen.
Ele não deu tempo para Bronwyn se preparar. Iria apresentar-se à família
dele com o aspeto de serviçal. Até o criado assim pensou. Sabia que os
ingleses davam muita importância à forma de vestir e pensou saudosamente
nos vestidos elegantes que usara na casa de Sir Thomas Crichton. Restava-
lhe entrar de queixo erguido e aguentar os snobes ingleses. A não ser pela
Judith, a perfeita. Sem dúvida, seria simpática e compreensiva, uma
almofada fofa.
– Pareces aterrorizada – retorquiu Stephen, fitando-a. – Garanto-te que o
Gavin raramente bate nas mulheres e a Judith…
Ela ergueu a mão.
– Poupa-me. Já me falaste muito desta Judith. – Endireitou as costas. – E
os escoceses abandonarão as suas mantas antes de veres uma MacArran
com medo de meros ingleses.
Ele sorriu-lhe, abrindo a porta que dava para uma sala reluzindo na luz
matinal. Bronwyn lançou um breve olhar aos painéis das paredes antes de
prender a atenção nas duas pessoas de pé no centro.
– Mas que raios, Judith! – berrou um homem alto. Tinha cabelo negro,
olhos cinzentos e queixada bem definida. Um homem extraordinariamente
bonito, cuja expressão ardia de raiva. – Deixei ordens precisas sobre a
construção da vacaria. Inclusive desenhos. Como se não tivesse bastante
com que me preocupar, estando o Stephen e a nova esposa desaparecidos,
quando volto para casa descubro que as fundações já foram colocadas e que
em nada se parecem com os meus planos.
Judith encarou-o com uma expressão muito calma. Tinha cabelo dourado
apenas parcialmente tapado por um capuz francês. O olhar reluziu como
ouro.
– Porque os teus planos eram completamente ineficientes. Já tentaste
fazer manteiga ou queijo? Ou sequer ordenhaste uma vaca?
O homem tentou impor-se sobre ela mas a mulher pequena não se
amedrontou.
– O que interessa se ordenhei uma vaca ou não? – Estava tão zangado que
as maçãs do rosto pareciam dispostas a irromper pela pele. – O que
interessa é que contrariaste as minhas ordens. E como fico perante os meus
trabalhadores?
Judith semicerrou as pálpebras.
– Vão agradecer-te por não terem de trabalhar na toca de coelho que
tinhas planeado.
– Judith! – resmungou. – Se julgasse que daria resultado, batia-te até
ficares negra com tanta insolência.
– É fantástico que fiques assim zangado sempre que tenho razão. – O
homem rangeu os dentes e deu um passo em frente.
– Gavin! – berrou Stephen, ao lado de Bronwyn, agarrando um machado
de um sortido de armas na parede.
Gavin, experiente de guerra, sentidos sempre alerta, reconheceu a
chamada. Virou-se rapidamente e agarrou o machado de guerra que Stephen
lhe atirou. Por instantes, Gavin olhou perplexo do irmão, que envergava
roupa tão bizarra, para o machado na mão.
– Para te proteger da Judith – riu-se Stephen.
Antes de Gavin conseguir reagir, Judith atravessou a sala a correr e
atirou-se aos braços de Stephen.
– Onde tens estado? Há dias que procuramos por ti. Andámos tão
preocupados.
Stephen enterrou a cara no pescoço da cunhada.
– Já te sentes bem? A febre…?
O fungar de desdém de Gavin interrompeu-o.
– Está tão bem que já mete o nariz nos meus assuntos.
– Assuntos? – riu-se Stephen. – Ainda não aprendeste a tua lição?
– Calem-se, os dois – disse Judith, soltando-se de Stephen.
Gavin abraçou o irmão.
– Onde estiveste? Disseram-nos que havias sido morto e depois, que
morreste pela segunda vez. Foi… – Não conseguiu acabar nem contar a
Stephen a agonia deles enquanto o procuravam.
– Agora estou bem, como podem ver – riu-se Stephen, e afastou-se do
irmão.
– Noto que ficaste mais jeitoso – comentou Judith, apreciando as pernas
morenas e musculadas do cunhado.
Gavin lançou o braço sobre Judith de forma possessiva.
– Nada de namoriscos com o meu irmão, e digo-te desde já que não
pretendo usar uma daquelas coisas.
Judith riu-se baixinho e aninhou-se no marido.
Bronwyn manteve-se na sombra de uma cadeira alta, a estranha que
observava a família. Então era esta a amável Judith! Mais pequena que
Bronwyn, uma coisinha bonita, qual joia adorável. E, contudo, enfrentava o
marido alto sem medos. Eis uma mulher que não perdia os dias a costurar!
Judith foi a primeira a notar que Bronwyn os observava. A sua primeira
impressão foi que Stephen alcançara a sua promessa: havia de prender a
esposa numa torre e encontraria uma plebeia linda que o fizesse feliz. Mas
ao observar Bronwyn percebeu que jamais uma plebeia teria tal pose. Não
era apenas o orgulho de ser espantosamente linda mas algo íntimo. Eis uma
mulher que conhecia o seu valor.
Judith afastou-se do marido e avançou para Bronwyn.
– Lady Bronwyn? – perguntou baixinho com a mão estendida.
Os olhos de Bronwyn cruzaram os de Judith, e entre as duas nasceu um
entendimento. Reconheceram-se como iguais.
– Como sabias? – riu-se Stephen. – O James pensou que era uma das
minhas… bem, não a minha esposa.
– O James é parvo – disse Judith sem delongas. Afastou-se de Bronwyn
examinando as vestes da mulher mais alta. – A saia permite-lhe
movimentar-se sem problemas, não é? E não é tão pesada como este
vestido, pois não?
Bronwyn sorriu calorosamente.
– É deliciosamente leve mas a sua é mais bonita.
– Acompanhe-me aos meus aposentos, para conversarmos – disse Judith.
Os homens fitaram as esposas, que os abandonavam, com espanto
boquiaberto.
– Nunca vi a Judith dirigir-se a outra pessoa aquela forma – disse Gavin.
– E como percebeu ela que se tratava da tua esposa? Pela forma como
estava vestida, podia concordar com o James.
– É a Bronwyn! – disse Stephen. – Odeia a roupa inglesa. Não imaginas
os sermões que tive de ouvir sobre os ingleses que obrigam as mulheres a
vestir trajes tão apertados.
Gavin começou a sorrir.
– Cabelo preto e olhos azuis! Vi-a realmente ou foi imaginação minha?
Pensei que tinhas dito que era feia e gorda. Ela não é realmente a senhora
de um clã, pois não?
Stephen riu-se.
– Sentemo-nos. Achas que podem arranjar algo para comer? – pestanejou.
– Ou os criados agora só obedecem à Judith?
– Se não me sentisse tão contente por estares vivo, far-te-ia pagares pelo
comentário – disse Gavin, saindo da sala para pedir comida e despachar
homens à procura dos irmãos.
– Como está a Judith, a sério? – perguntou Stephen quando trouxeram a
comida. – Sei que dissesse nas tuas cartas que ela já tinha recuperado do
aborto, mas…
Gavin tirou um ovo cozido do prato de Stephen.
– Viste-a – disse pesadamente. – Tenho de lutar para ter qualquer controlo
sobre a minha própria gente.
Stephen olhou para cima repentinamente.
– Mas tu adoras – disse devagar.
Gavin sorriu.
– Ela torna a vida interessante, isso é certo. Sempre que encontro uma
daquelas esposas dos outros aprumadas vestidas com cor-de-rosa, fico grato
por ter a Judith. Daria em maluco se não tivesse uma boa disputa todas as
semanas. Mas chega de falar de mim! Como é a tua Bronwyn? É sempre tão
doce e dócil como há pouco?
Stephen não sabia se havia de rir ou chorar.
– Dócil? A Bronwyn! Ela não faz ideia do sentido da palavra. Estava
afastada para decidir se havia de usar uma faca ou aquele cão dos infernos.
– E porque faria isso?
– É escocesa, homem! Os escoceses odeiam os ingleses por lhes
queimarem as colheitas, violarem as mulheres, porque os ingleses são um
bando de filhos da mãe malditos, insuportáveis e arrogantes, que se julgam
melhores do que os escoceses honestos, generosos e…
– Espera um pouco! – riu-se Gavin. – Tanto quanto saiba, és inglês.
Stephen regressou à comida, obrigando-se a acalmar.
– Devo ter-me esquecido por instantes.
Gavin recostou-se na cadeira, examinando o irmão.
– Dado o cabelo assim comprido, diria que te esqueceste há meses.
– Não critiques o traje escocês antes de experimentares – retorquiu
Stephen.
Gavin pousou a mão no braço do irmão.
– O que se passa? O que te preocupa?
Stephen levantou-se e aproximou-se da lareira.
– É como se já não soubesse quem sou. Quando fui para a Escócia, sabia
que era um Montgomery, e sentia-me muito honrado pela missão que ali
fazia. Ensinar aos escoceses ignorantes o nosso modo de vida civilizado. –
Passou a mão pelo cabelo. – Mas não são ignorantes, Gavin muito pelo
contrário. Céus, o que podíamos aprender com eles! Nem sequer sabemos o
significado da lealdade. O clã de Bronwyn morreria por ela, e raios me
partam se ela não colocaria a vida em risco por eles… como já o fez. As
mulheres deles sentam-se nos conselhos, tomam decisões e parece que até
tomam as mais corretas.
– Como a Judith – disse Gavin baixinho.
– Sim! – exclamou Stephen em voz alta. – Mas ela tem de lutar
constantemente contra ti.
– Claro – respondeu Gavin com firmeza. – As mulheres têm de…
O riso de Stephen interrompeu-o.
– Deixei de pensar dessa forma.
– Fala-me mais da Escócia – pediu Gavin, tentando mudar de assunto.
Stephen voltou a sentar-se, regressou à comida. A voz estava distante.
– É um lugar lindo.
– Parece que só chove.
Stephen afastou a ideia.
– Para um escocês, a chuva não é nada.
Gavin ficou pensativo, a observar o irmão, ouvindo-o.
– O Christopher Audley apareceu há algum tempo. Chegou a encontrar-te
antes do casamento?
Stephen afastou o prato.
– O Chris foi morto na Escócia.
– Como?
Stephen pensou como havia de explicar a um cavaleiro como Gavin que
Chris fora morto numa luta a seus olhos desonrosa.
– Um assalto ao gado. A Bronwyn perdeu os homens que o tentaram
proteger.
– Proteger o Chris? Mas ele era um lutador excelente. A armadura dele…
– Raios partam a armadura! – retorquiu Stephen. – Não conseguia correr.
Como disse o Douglas, estava preso num caixão de metal.
– Não entendo. Como?
Stephen foi poupado à resposta quando a porta se abriu de rompante.
Raine e Miles explodiram para dentro da sala. Raine avançou com
ímpeto, as passadas fazendo tremer as janelas. Levantou o irmão mais velho
mas mais leve num abraço de partir ossos.
– Stephen! Pensámos que tinhas morrido.
– E há de morrer se não o largares – disse Miles, calmamente.
Raine aliviou parte da pressão.
– Continuas magricela – disse com ar convencido.
Stephen soltou um sorriso para o irmão, e depois esticou os braços para
os de Raine. Sorriu ainda mais abertamente ao sentir os de Raine mexerem-
se. Stephen puxou com mais força, Raine aplicou mais pressão. Raine
perdeu.
Stephen sorriu para o irmão com puro deleite. Não havia muitos homens
capazes de subjugar a força massiva de Raine sem o recurso de amarras.
Ofereceu um agradecimento calado a Tam.
Raine afastou-se e sorriu ao irmão cheio de orgulho.
– A Escócia fez-te bem.
– Ou então tens negligenciado o teu treino – lançou Stephen com ar
convencido. As covinhas de Raine ficaram mais pronunciadas.
– Queres pôr-me à prova?
– Calma! – disse Miles, interpondo-se entre os irmãos. – Não deixes que
o Raine te mate antes de poder cumprimentar-te – abraçou Stephen.
– Estás mais crescido, Miles – comentou Stephen – e gordo.
Gavin fungou.
– São as mulheres. Duas ajudantes da cozinheira estão a tentar
ultrapassar-se uma à outra na cozinha.
– Logo vi – riu-se Stephen. – E o troféu é o nosso maninho?
Raine riu-se.
– O que restar dele quando as outras acabarem.
Miles ignorou os irmãos. Raramente mostrava um sorriso aberto, como os
irmãos. Era uma pessoa solene, e as emoções transpareciam apenas nos
olhos cinzentos contundentes. Olhou em volta.
– O James indicou que a tua esposa te acompanhava.
– Só mesmo o Miles – riu-se Gavin. – Pelo menos, agora vou conseguir
estar com a minha mulher. Sempre que olho, lá se encontra ela com um dos
meus inúteis irmãos.
– O Gavin faz dela criada – disse Raine, meio-sério. Stephen sorriu. Era
bom voltar para casa, ver as discussões entre Gavin e Raines, provocar
Miles. Os irmãos pouco tinham mudado nos últimos meses. Raine até
parecia mais forte e saudável, expansivo no seu amor pelo mundo. Miles
mantinha-se afastado, pertencendo ao grupo mas sempre separado. E Gavin
unia-os a todos. Gavin era a peça sólida, aquele que amava as coisas
terrenas. A presença de Gavin era sinónimo de lar para os Montgomerys.
– Não sei se estou preparado para que conheçam a Bronwyn – começou
Stephen.
– Ela é tímida? – perguntou Raine, preocupado. – Espero que não a
tenhas arrastado de Inglaterra contigo. Porque não vais cuidar das
carruagens de carga? Onde estão os teus homens?
Stephen respirou fundo e riu-se. Nunca acreditariam se lhes contasse a
verdade.
– Não, não chamaria Bronwyn de tímida – disse.
Capítulo Catorze

Bronwyn sentou-se numa banheira de água quente e cheia de sabão que lhe
dava pelo pescoço. O fogo ardia fortemente na lareira ampla, conferindo ao
quarto um ambiente caloroso e fragrante. Olhou em redor, descontraída. O
aposento era belo, desde o teto de vigas ao chão com mármore espanhol. As
paredes continham madeira pintada de branco com pequenos botões de rosa
enrolando-se nos cantos. A enorme cama com dossel tinha cortinas de
veludo rosa-escuro. As cadeiras, os bancos, os armários estavam todos
elegantemente ornamentados com baixos-relevos em forma de arcos altos e
pontiagudos.
Bronwyn sorriu, recostando-se na banheira. Era agradável encontrar-se no
meio de tanto luxo, ainda que criticasse o uso de tanto dinheiro, melhor
empregue noutras finalidades. Ela e Stephen tinham presenciado a pobreza
profunda no caminho para a propriedade dos Montgomery. Se fosse ela,
teria usado o dinheiro em prol da sua gente, mas sabia que os ingleses
pensavam de forma diferente.
Fechou os olhos e reviveu os últimos minutos. Sorrindo, pensou na Judith
que tinha esperado e na Judith que conhecera. Esperava encontrar uma
mulher mansa e doce mas Judith nada tinha de mansa. Todos os criados
obedeciam-lhe sem hesitar. Antes de Bronwyn se ter apercebido do que
estava a acontecer, encontrara-se despida dentro da banheira. Afinal, água
quente era precisamente aquilo de que necessitava.
A porta abriu-se de mansinho e Judith entrou.
– Sentes-te melhor? – perguntou.
– Bastante. Já nem me lembrava de como era bom receber mimos. –
Judith soltou um sorriso e estendeu uma toalha quente para Bronwyn.
– Infelizmente, os homens desta família não são conhecidos por mimarem
as suas esposas. O Gavin nem pensa duas vezes se eu tiver de acompanhá-
lo na pior das tempestades.
Bronwyn envolveu a toalha em volta do corpo e fitou Judith com cautela.
– E o que farias se ele te pedisse para ficares em casa? – perguntou
baixinho.
Judith riu-se alegremente.
– Jamais ficaria em casa. O Gavin costuma menosprezar pormenores que
ele considera irrelevantes, tais como um capataz roubar o cereal dos
celeiros.
Bronwyn sentou-se junto à lareira e suspirou.
– Oxalá desses uma vista de olhos às minhas contas. Não sou boa a
mantê-las.
Judith pegou num pente de marfim e começou a desembaraçar o cabelo
acabado de lavar da cunhada.
– Mas tens mais preocupações dentro de ti do que feijões num armazém.
Conta-me, o que é ser a senhora de um clã, e teres aqueles jovens esbeltos a
fazerem todas as tuas vontades?
Bronwyn explodiu de riso, quer pelo tom sonhador de Judith quer pela
ideia absurda. Levantou-se, enfiou um dos roupões de Judith e começou a
puxar os nós do cabelo.
– É uma grande responsabilidade – disse com ar sério. – E no que toca à
obediência dos homens… – suspirou e tirou cabelos do pente. – Na Escócia
não somos como vocês, ingleses. Aqui, as mulheres são tratadas de forma
diferente.
– Como se não tivéssemos cérebro! – explodiu Judith.
– Sim, é verdade, mas quando os homens creem que a mulher é
inteligente, esperam mais delas.
– Não entendo – respondeu Judith.
– Os meus homens não me obedecem cegamente. Questionam-me
constantemente. Na Escócia os homens creem-se iguais entre si. O Stephen
diz aos homens dele que têm uma hora para se aprontarem e aos cavalos, e
eles nem sequer o questionam.
– Começo a entender – disse Judith. – Os teus homens perguntariam para
onde iriam e porquê? Se assim for, pode ser…
– Muito desgastante às vezes – concluiu Bronwyn por ela. – Há um
homem, mais velho, o Tam, que vigia todos os meus passos e comenta
todas as minhas decisões. Depois há os filhos do Tam, que me contradizem
a qualquer oportunidade. A bem dizer, só tomo decisões menores, pois as
grandes são um ato coletivo.
– Mas e se quiseres algo que eles estejam contra? O que farás?
Bronwyn sorriu lentamente.
– Há formas de dar a volta aos homens, mesmo aos que pairam sobre nós
como águias.
Foi a vez de Judith se rir.
– Como a vacaria! Não podia deixar que o Gavin construísse aquela coisa
horrível que ele tinha concebido. Fiz os homens trabalharem a noite toda
para cavarem as fundações antes de ele regressar. Sabia que seria
demasiado sóbrio para as derrubar e demasiado orgulhoso para admitir que
eu estava certa.
Bronwyn sentou-se no banco ao lado da cunhada.
– E pensar que eu temia conhecer-te. O Stephen dizia… bem, a forma
como ele te descreveu fez-me pensar que eras uma idiota bonita mas
inativa.
– O Stephen! – riu-se Judith e pegou na mão de Bronwyn. – Fui eu a
causa do atraso dele para o vosso casamento. Fiquei horrorizada quando
descobri que ele nem te tinha enviado uma mensagem a justificar-se –
hesitou. – Ouvi dizer que isso te causou problemas.
– O Stephen Montgomery causou os seus próprios problemas – disse
Bronwyn de imediato – Às vezes consegue ser o mais arrogante,
insuportável e frustrante…
– E fascinante dos homens – disse Judith com um suspiro pesado. – Nem
me digas. Sei bem disso porque casei com um deles. Mas não trocaria o
Gavin por nenhum outro homem afável e cavalheiresco. Deves sentir o
mesmo a respeito do Stephen.
Bronwyn sabia que tinha de responder, mas não sabia como.
Subitamente Rab estava de pé, cauda a abanar alegremente enquanto latia
entusiasmado para a porta dos aposentos.
Stephen entrou e ajoelhou-se, coçando as orelhas de Rab.
– Vocês as duas parecem estar bastante satisfeitas – disse ele.
– Foi uma alegria ter um pouco de paz e sossego – retorquiu Bronwyn.
Stephen sorriu para Judith.
– Já que aqui estamos, talvez possas domesticar-lhe a língua. Já agora
está um homem à entrada a delirar sobre vestidos.
– Maravilha! – declarou Judith e praticamente saiu do quarto a correr.
– Que se passou? – perguntou Stephen, endireitando-se e avançando para
a esposa. Levantou um caracol húmido do peito dela. – Estás tão apetitosa
como uma manhã de primavera.
Ela retraiu-se e encarou a lareira.
– Bronwyn, ainda não estás zangada por causa do sucedido com o Hugh,
pois não?
Ela virou-se para ele.
– Zangada? – perguntou friamente. – Não, zangada não estou. Fui apenas
tola, nada mais.
– Tola? – reagiu ele, pousando a mão no ombro de Bronwin. Não lhe
importavam os seus ataques de raiva nem o facto de lhe ter apontado uma
faca, mas ficava perturbado com tanta frieza. – Tola em que sentido?
Ela virou-se novamente para ele.
– Começava a crer que havia algo entre nós.
– Amor? – perguntou ele, olhos a reluzir, sorriso a curvar os lábios. – Não
é errado admitires que me amas.
Ela arreganhou o lábio e afastou-lhe a mão.
– Amor! – disse, irada. – Falo de coisas mais importantes que o amor
entre um homem e uma mulher. Falo de confiança e lealdade e a fé que uma
pessoa deposita noutra.
Ele franziu o cenho.
– Não faço ideia do que falas. Pensava que amor era o que as mulheres
normalmente querem.
Ela suspirou exasperada, e exprimiu-se num tom baixo.
– Quando perceberás tu que não sou uma «mulher normal»? Sou a
Bronwyn, a MacArran, e não há outra como eu. Talvez as mulheres julguem
que o amor é o maior objetivo das suas vidas, mas isso já tenho. Os meus
homens amam-me, o Tam ama-me. Sou amiga das mulheres do meu clã e
agora até da Kirsty, uma MacGregor.
– E onde me encaixo nisto? – perguntou Stephen, com o maxilar
retesado.
– Sem dúvida que nos amamos um ao outro, à nossa maneira. Cuidei de ti
quando a seta do Davey te feriu, e tu costumas mostrar que te preocupas
comigo.
– Obrigado por nada – disse ele amargamente. – E eu que julguei que
gostarias que te dissesse que te amo.
Ela fitou-o intensamente, sentindo o coração pular ante estas palavras mas
sem querer confessar.
– Quero mais do que amor. Quero algo que dure além da minha pele lisa e
da minha cintura estreita. – Fez uma pausa. – Quero respeito. Quero honra e
confiança. Não quero acusações de mentirosa nem quero os teus ciúmes.
Sendo a líder MacArran preciso de viver num mundo de homens, e não
quero um marido que me acuse de atos desonrosos quando saio da presença
dele.
Mexeu-se um musculo no maxilar de Stephen.
– Então! Ficarei calado a ver os homens tocarem-te sem reagir?
– Não acredito que tenha havido mais do que um homem. Devias ter
deduzido que atrás dos meus atos havia um motivo.
– Deduzido! Raios, Bronwyn! Achas que me ponho a deduzir quando
outro te toca?
O latido de Rab impediu-a de responder.
A porta entreabriu-se.
– É seguro? – perguntou Judith, atenta a Rab.
– Vem cá, Rab – ordenou Bronwyn quando Judith entrou. – Ele não te faz
mal a não ser que me ataques com uma arma.
– Não me esquecerei disso – riu-se Judith e estendeu os braços. Suspenso
neles estava um vestido de veludo castanho-escuro, bordado com fio grosso
de ouro. – Para ti – disse. – Vejamos se cabes nele.
– Mas…? – começou Bronwyn, recebendo o traje luxuoso.
Judith soltou um sorriso secreto.
– O Gavin tem a seu cargo um homenzinho horroroso, e volta e meia
tranca-o na adega por causa das suas… indiscrições. Decidi dar uso aos
talentos do homem. Em troca de uma bolsa com prata, disse-lhe a tua altura
e pedi-lhe que me trouxesse um vestido digno de uma senhora.
– É lindo – murmurou Bronwyn, passando as mãos pelo veludo. – És tão
boa para mim, fazes-me sentir tão bem-vinda.
Judith fitava Stephen, de costas para elas. Pousou a mão no ombro dele.
– Stephen, está tudo bem? Tens um ar cansado.
Ele tentou sorrir-lhe e beijou-lhe a mão distraído.
– Talvez esteja. – Virou-se para Bronwyn. – Os meus irmãos gostariam de
conhecer-vos – disse com ar formal. – Seria uma honra se pudésseis
aparecer. – Virou-se e saiu da sala.
Judith não perguntou o que tinha sucedido aos recém-casados. Só queria
que a estadia deles fosse o mais isenta de problemas quanto possível.
– Anda, ajudo-te a vestir. Amanhã poderás experimentar as novas roupas
que te encomendei.
– Novas…? Não devias ter feito isso.
– Mas fiz, e o mínimo que podes fazer é usá-las. Vejamos se isto te serve.
Horas depois, Bronwyn estava finalmente vestida e arranjada segundo os
critérios de Judith. Esta indicou que tinha aprendido muitos truques
enquanto estava na corte, lugar ao qual jamais queria voltar. Gostava do
costume escocês de Bronwyn que lhe deixava o cabelo solto, a ponto de
tirar o capuz e deixar o cabelo acobreado tombar pelas costas. Judith usava
um vestido de cetim violeta, mangas e decote debruados com vison
castanho-escuro. Um cinto dourado pontilhado com ametistas púrpuras
cingia-lhe a cintura.
Bronwyn alisou o veludo ao longo das ancas. O vestido era pesado e
apertado, mas gostou dele. O decote pronunciado e quadrado exibia os seios
no seu melhor. As mangas com folhos estavam abertas para mostrar o
tecido dourado muito fino. Endireitou os ombros e desceu as escadas ao
encontro dos cunhados.
Os quatro homens encontravam-se lado a lado diante da lareira no salão
invernal, e quer Bronwyn quer Judith fizeram uma pausa para os
observarem com orgulho.
Stephen cortara o cabelo comprido e tirara as vestes escocesas, e
Bronwyn sentiu uma pontada de perda pela sua figura das Terras Altas.
Usava agora uma jaqueta de veludo azul-escuro, e colarinho de pele de
marta. As pernas pesadas e musculadas estavam envoltas em meias-calças
de lã azul-escura.
Gavin envergava a jaqueta cinzenta, debruada com pele de esquilo
cinzenta. Raine vestia veludo preto, o colarinho bordado com fio de prata
num padrão espanhol convoluto. A jaqueta de Miles era feita de veludo
verde-esmeralda, as mangas abertas e cortadas para mostrar o tecido
prateado. As mangas da camisa continham pérolas.
Miles foi o primeiro a virar-se e deparar-se com as mulheres. Pousou o
cálice prateado de vinho sobre a cornija e adiantou-se. Parou em frente de
Bronwyn, olhar enegrecendo até se tornar um fogo escuro. Ajoelhou-se
num só joelho.
– É uma honra – disse em grande reverência, com a cabeça baixa.
Bronwyn fitou os outros, consternada.
Judith sorriu orgulhosa para a cunhada.
– Apresento-te o Miles.
Bronwyn esticou a mão e Miles tomou-a, beijando-a demoradamente.
– Acaba lá com isso, Miles – disse Stephen, sarcasticamente.
Gavin riu-se e deu uma palmada a Stephen no ombro com tanta força que
entornou vinho na mão.
– Agora tenho quem me ajude com o irmão mais novo – disse Gavin. –
Lady Bronwyn, posso apresentar-me formalmente? Sou o Gavin
Montgomery.
Bronwyn tirou a mão do aperto de Miles e desviou o olhar dele com
relutância. Havia algo extraordinariamente intrigante no jovem. Entregou a
mão a Gavin, depois virou-se para o outro irmão.
– Deves ser o Raine. Contaram-me bastante sobre ti.
– Alguma coisa boa? – perguntou Raine, pegando-lhe na mão, as
covinhas da cara mais profundas pelo sorriso.
– Muito pouco – respondeu ela com sinceridade. – Um dos meus homens,
o Tam, com o porte de um carvalho, treinava o Stephen na Escócia. Durante
semanas ouvi o teu nome ser usado para incitar o Stephen sempre que
tentava escapar às exigências duras do Tam.
Raine soltou uma gargalhada sonora.
– Deve ter resultado, pois ele venceu-me numa breve luta de manhã. –
Encarou Stephen. – Embora ainda não tenha aceitado o meu desafio para
um combate mais prolongado.
Bronwyn abriu os olhos, examinando o portento que eram os ombros
largos e o peito musculado de Raine.
– Parece-me que a primeira vez devia ser a única necessária para vencer o
oponente.
Raine agarrou-a pelos ombros e beijou-lhe o rosto com exuberância.
– Stephen, esta é para manter – riu-se.
– Bem tento – disse ele, pegando-lhe na mão antes de Miles a alcançar. –
A ceia está pronta, vamos? – sugeriu ele, perscrutando-lhe o olhar.
Ela sorriu-lhe com doçura, como se não estivessem zangados.
– Sim, por favor – disse com ar recatado.
Foi durante o jantar, à medida que os pratos iam sendo trazidos, que
Bronwyn se apercebeu de como eram diferentes, estes ingleses, dos
restantes. A família divertida e contente não era igual aos homens da casa
de Sir Thomas Crichton. Judith não se poupara a esforços para a acolher. Os
irmãos de Stephen aceitaram-na e não soltaram comentários sarcásticos a
respeito da sua condição de senhora de um clã.
Subitamente sentiu-se tonta. Toda a sua vida odiara os MacGregors e os
ingleses.
Agora era madrinha de um MacGregor e começava a gostar desta família
inglesa bastante chegada. E contudo os MacGregors matavam os
MacArrans há séculos. Os ingleses tinham-lhe assassinado o pai. Como
conseguiria amar aqueles que era suposto odiar?
– Lady Bronwyn? – perguntou Gavin. – O vinho está demasiado forte
para si?
– Não – ela sorriu. – Tudo isto é perfeito. É esse o meu problema.
Ele perscrutou-a.
– Quero que saibas que também somos a tua família. Se precisares de
nós, estamos ao dispor.
– Obrigada – respondeu ela com sinceridade. Sabia que eram palavras
sentidas.
Após a ceia, Judith conduziu Bronwyn numa ronda da área exterior às
muralhas. Havia duas secções no castelo, a exterior em que viviam e
trabalhavam os serviçais, e o círculo interior mais protegido, destinado à
família. Bronwyn ouviu e colocou centenas de perguntas sobre o complexo
do castelo incrivelmente eficiente e organizado. Os acres de terra no interior
das paredes altas e grossas praticamente sustentavam todo o castelo.
Stephen interrompeu-as quando falavam com o ferreiro e Judith
apresentava a Bronwyn uma nova técnica de forja.
– Bronwyn – disse Stephen –, posso dar-te uma palavrinha?
Ela sabia que o assunto era sério, portanto acompanhou-o para o exterior,
onde falariam em privado.
– O Gavin e eu vamos voltar para Larenston para trazer o corpo de Chris.
– O Tam já o terá enterrado.
Ele anuiu.
– Eu sei, mas devemo-lo à família do Chris. Ainda nem sabem que ele
morreu. Ajudará se puderem enterrá-lo na terra deles.
Ela anuiu em concordância.
– O Chris não gostava da Escócia – disse com ar triste.
Stephen afagou-lhe a cara com os nós dos dedos.
– É a primeira vez que nos separamos desde o casamento. Preferia
pensar... – Calou-se e deixou cair a mão.
– Stephen... – começou ela.
Subitamente, tomou-a nos braços e cingiu-a contra si.
– Oxalá pudéssemos voltar aos dias que passámos com a Kirsty e o
Donald. Estavas feliz.
Ela agarrou-o. Apesar do perigo em que se encontraram, também
recordava aquele período com alegria.
– Tornaste-te tão importante para mim – sussurrou ele. – Odeio partir
quando estás... tão fria comigo.
Ela riu-se e ele reagiu, afastando-a com um franzir de testa.
– Divirto-te? – perguntou com ar zangado.
– Pensava que fria é aquilo que não me sinto. Diz-me, daqui a quanto
tempo partes?
– Dentro de minutos – disse com um tom de voz tão arrependido que ela
se voltou a rir.
– E regressas, quando?
Pousou os dedos sob o queixo dela.
– Pelo menos, três dias muito compridos. Conhecendo o Gavin, vai ser
uma cavalgada dura – sorriu. – Não faremos paragens quase de hora em
hora, como tu e eu.
Ela enfiou os braços em volta do pescoço de Stephen.
– Não te esquecerás de mim enquanto estiveres fora? – sussurrou, lábios
encostados aos dele.
– Tão facilmente como me esqueceria de uma tempestade – respondeu
prontamente, rindo-se quando ela tentou escapar. – Anda cá, criadita –
ordenou.
A boca de Stephen tomou posse da de Bronwyn com tamanha avidez que
ela se esqueceu de manter a honra e o respeito. Recordava apenas os
encontros nas charnecas das Terras Altas. Ele virou-lhe a cabeça de lado,
para melhor se encaixar contra ela, e sorveu a doçura da ponta da outra
língua. Ela enterrou o corpo no dele e abraçou-o com força.
– Stephen... – tentou dizer.
Ele pousou dois dedos nos lábios da rapariga.
– Temos tanto para conversar quando regressares. Estás disponível?
Ela sorriu, contente.
– Muito disponível.
Ele beijou-a novamente, com desejo e promessas futuras. Afastou-se por
fim com relutância.

Caíra entretanto a noite quando Bronwyn se apercebeu do quanto sentia a


falta dele. O grande leito no quarto adoravelmente coberto de azulejos
estava frio e insuportável. Pensou em Stephen, a regressar à Escócia a
cavalo sem uma única pausa. Amaldiçoou-se por não ter insistido em
acompanhá-lo.
O pensamento não a largava e ficou ansiosa. Atirou as cobertas para o
lado, e percorreu com vigor o chão frio até ao baú do canto. Retirou de lá os
trajes das Terras Altas. Minutos depois já atava o manto ao ombro. Talvez
um passeio no pátio gelado a ajudasse a dormir.
Mal se encontrou no exterior, ouviu os ecos dos cascos de cavalos na
calçada do pátio.
– Stephen! – arfou, começando a correr em frente. Sabia que apenas
pessoas da família estavam autorizadas a entrar durante a noite.
– Lady Mary – disse alguém baixinho. – Seja bem-vinda. Fez boa
viagem?
– Tão boa quanto podia pedir, James – surgiu uma voz calma e suave. –
Devo chamar a Lady Judith?
– Não, não a perturbes. Precisa de descansar. Hei de encontrar o
caminho.
Bronwyn manteve-se nas sombras e observou um dos serviçais do castelo
ajudar a Lady Mary a desmontar. Recordou como Stephen sempre
comparara a irmã com a Nossa Senhora, dizendo que era a pacificadora e
que vivia num convento perto da propriedade Montgomery.
– Esperávamo-la mais cedo – disse James. – Espero que não tenha havido
problemas.
– Uma das crianças estava doente. Fiquei para trás de modo a cuidar
dela.
– Sois demasiado bondosa, Lady Mary. Não devíeis aceitar essas crianças
tresmalhadas. Algumas delas têm pais que são assassinos. E também mães,
para dizer a verdade.
Mary pensou responder, mas calou-se e virou-se para Bronwyn. Sorriu.
– Tive a estranha sensação de ser observada. – Deu um passo em frente. –
Deves ser a Bronwyn do Stephen.
O pátio estava mal iluminado, tendo como fonte apenas o luar e uma
lanterna. Mary era baixa e gorducha com um rosto perfeitamente oval. Um
rosto que transmitia confiança.
– Como sabias? – sorriu Bronwyn. – Não consegui enganar nenhum
Montgomery.
– Conheço o vigor dos escoceses. E suportar este vento sem necessidade
requer bastante vigor.
Bronwyn riu-se.
– Vem para dentro para o salão de inverno, e daqui a poucos minutos já
teremos uma lareira a aquecer o espaço.
– Ideia fabulosa – disse Mary, resguardando as mãos na capa de lã
escura.
Mary seguiu a cunhada para a sala larga e apainelada, aguardando calada
que Bronwyn acendesse a lareira. Sorriu, satisfeita por ver uma dama com o
estatuto de Bronwyn ter a confiança suficiente para realizar tarefas
humildes.
Bronwyn virou-se.
– Deves estar cansada. Talvez prefiras que acendam a lareira do teu
quarto.
Mary sentou-se numa cadeira estofada e estendeu as mãos para as
chamas.
– Estou cansada, demasiado cansada para dormir. Prefiro ficar aqui
sentada um pouco até aquecer.
Bronwyn fez uma pausa, antes de repor o atiçador no suporte. Mary
parecia mesmo a Nossa Senhora. O rosto oval tinha uma testa alta e limpa
por cima de olhos castanhos afáveis e expressivos. A boca era pequena,
frágil e delicada, e tinha uma covinha numa das bochechas. As covinhas de
Raine, pensou Bronwyn.
– É bom voltar para casa – suspirou Mary, olhando a seguir para
Bronwyn. – Porque estás acordada? – perguntou acutilantemente. – O
Stephen…?
Bronwyn riu-se e sentou-se ao lado de Mary.
– Ele e o Gavin voltaram para a Escócia para… trazerem o corpo de um
amigo.
– Christopher – disse Mary e suspirou, reclinando-se na cadeira.
– Sabias? – perguntou Bronwyn quase a medo.
– Sim. O Stephen escreveu-me, contando que tinha morrido.
Bronwyn ficou muito calada.
– Ele mencionou que fui eu a causa da morte do Chris?
– Não! E não devias sequer pensar isso. Ele disse que foi a arrogância do
Chris que o levou à morte. Que todos os ingleses cometiam suicídio ao
entrarem nas Terras Altas.
– Os ingleses mataram muita gente das Terras Altas – comentou Bronwyn
com firmeza, mas virou-se e encarou Mary. – Peço desculpa. Esqueço-
me…
– Que somos ingleses? Decerto que é um elogio. – Examinou Bronwyn
debaixo do suave brilho da lareira. – O Stephen descreveu-me a tua beleza,
mas não disse tudo.
Bronwyn sorriu.
– Ele avalia a mulher pelo aspeto.
Mary riu-se.
– Já conheceste a Judith, então. Os meus irmãos pensam que as mulheres
são todas iguais a mim, sem genica nem verve.
Bronwyn fitou-a.
– Mas certamente…
Mary levantou a mão.
– Mas certamente uma mulher com irmãos tão intensos como os meus
deve ter alguma genica também? Ias dizer isso? – Não esperou pela
resposta. – Não, receio ter fugido da vida. As mulheres como a Judith, e se
deduziste corretamente a partir das cartas do Stephen, agarram a vida com
as duas mãos.
Bronwyn não soube como responder. Pensava que a conversa era
estranha. Falavam entre si como se se conhecessem há anos e não há
poucos minutos. Mas a intimidade da sala, e a forma como a luz da lareira
as isolava dos cantos escuros, tornava a situação banal.
– Diz-me, sentes-te solitária? – perguntou Mary. – Com saudades dos
costumes escoceses? E a tua família e amigos?
Bronwyn demorou a responder.
– Sim, tenho saudades dos amigos. – Pensou em Tam e Douglas e nas
outras pessoas. – Sim, muitas saudades.
– E agora até o Stephen partiu. Talvez amanhã possamos dar um passeio a
cavalo, e contas-me coisas da Escócia.
Bronwyn sorriu e recostou-se na cadeira. Gostava muito de passar o dia
com esta mulher. Transmitia paz e bonança, e Bronwyn estava bastante
necessitada de ambas.

Bronwyn passou os dois dias seguintes com Lady Mary, e não demorou a
gostar da mulher. Enquanto Judith se atarefava com as finanças da casa e
com os problemas de gerir a sua vasta propriedade, bem como a de Gavin,
Mary e Bronwyn descobriram um apreço mútuo pelo povo. Bronwyn nunca
tivera grande interesse pelos números nos papéis, mas era capaz de
aprender mais sobre a prosperidade dos lugares ao falar com as gentes. Ela
e Mary percorreram os acres e acres de terra e conversavam com os
habitantes. Os servos eram inicialmente tímidos, mas rapidamente reagiram
à abertura de Bronwyn. Ela estava habituada a dirigir-se aos subordinados
como iguais, e um por um. Mary viu homens e mulheres endireitarem os
ombros de orgulho. Bronwyn mandou os doentes deitarem-se. Pediu, e
foram-lhe alegremente concedidos, mantimentos suplementares para as
crianças.
Mas não era sempre generosa com as oferendas. Considerava os serviços
como pessoas, pelo que não os encarava com piedade. Descobriu vários
homens que roubavam dos donos, e garantiu que eram castigados. Algumas
famílias leais, caladas e trabalhadoras foram colocadas em cargos de
responsabilidade e estatuto.
No final do primeiro dia, Judith e Bronwyn passaram horas juntas, a
cunhada ouvindo com admiração os relatos de Bronwyn. Judith apercebeu-
se da sensatez da cunhada imediatamente e acolheu os conselhos.
Por outro lado, Bronwyn aprendeu bastante sobre organização e
eficiência, conhecimento que pretendia aplicar em Larenston. Examinou os
desenhos de Judith para os edifícios, as plantas dos jardins. Judith prometeu
enviar um carregamento de canteiros de plantas para Larenston ao nascer a
primavera.
E Judith era um espanto no que tocava à criação animal. Bronwyn ficou
fascinada pela forma como Judith cruzava várias vezes as ovelhas e gado
para produzir mais carne, leite e lã.
Quando Bronwyn se recolheu aos aposentos sentia-se muito cansada. Foi
assolada por imagens de números e gráficos. Centenas de nomes e caras
flutuaram nos seus sonhos.
Acordando ainda de madrugada, digeriu-se às estrebarias antes de o
castelo ter acordado. Levava novamente o traje das Terras Altas, pois
descobrira que as pessoas reagiam mais expansivamente se vestisse roupas
modestas.
Depositou uma sela leve no flanco de uma égua cor de morango.
– Minha senhora – surgiu uma voz forte ao seu lado. – Permitia-me.
Deparou-se com um homem louro, bonito e baixo, um dos homens de
Miles, que a tinha acompanhado, e a Mary, na véspera.
– Obrigada, Richard.
Os olhos, de um tom verde-escuro, alegraram-se ao fitá-la.
– Conheceis o meu nome. É uma honra para mim.
Ela riu-se.
– Parvoíce! Na Escócia conheço o nome de todos os meus homens, e eles
tratam-me pelo meu.
Ele inclinou-se para atar a fivela.
– Falei com os homens do Lorde Stephen que o acompanharam à Escócia.
Contaram-me que costumáveis viajar de noite sozinha com os vossos
homens.
– É verdade – disse ela, lentamente. – Sou uma MacArran, chefe dos
meus homens.
Ele sorriu de forma lenta e provocadora.
– Permitais-me dizer que invejo os vossos homens das Terras Altas. Na
Inglaterra raramente temos chefes que sejam mulheres, e nunca tão lindas.
Ela franziu o cenho, e alcançou as rédeas do cavalo.
– Obrigada – disse ela, tensa, e orientou o animal para fora das
estrebarias.
– O que julgas que fazes? – retorquiu um homem atrás de Richard.
Richard lançou um relance à porta usada por Bronwyn antes de se virar
para o homem nas suas costas.
– Nada que te interesse, George – disse, passando pelo cavaleiro.
George agarrou o braço de Richard.
– Vi-te a falares com ela, e quero saber o que disseste.
– Porquê? – ripostou Richard. – Para ficares com ela só para ti. Bem sei o
que tu e os outros homens do Stephen diziam a respeito dela.
– Para ti é Lorde Stephen!
– És um hipócrita! Trata-la por Bronwyn e falas com ela como se fosse a
tua irmãzinha, e contudo, quando mais alguém fala com ela, tiras logo a
espada. Deixa-me dizer-te que, da minha parte, vou tratá-la como a puta
escocesa que é. Nenhuma senhora falaria assim com os homens e os servos,
a não ser que estivesse atrás do que eles têm entre as pernas. E eu…
O punho de George enfiou-se na boca de Richard antes de puder
continuar.
– Mato-te! – berrou George, tentando alcançar a garganta de Richard.
Richard conseguiu esquivar-se ao segundo golpe. Uniu as mãos e atingiu
a nuca de George, fazendo-o cair de cara na palha.
– O que se passa aqui? – ouviu-se a voz de Bronwyn vinda da entrada.
George sentou-se, esfregando o pescoço. Richard sangrava do nariz, e
limpou o sangue com as costas da mão.
– Fiz uma pergunta – disse Bronwyn em voz baixa, observando os dois
homens. – Não quero saber a causa da vossa briga, pois o assunto é pessoal,
mas quem desferiu o primeiro golpe.
Richard olhou decidido para George.
– Fui eu, minha senhora – disse George, tentando levantar-se.
– Tu, George? Mas… – Bronwyn calou-se. Teria havido um bom motivo
para George, com a sua personalidade calma e sólida, atacar primeiro. Não
gostava de Richard e não confiava nele. Passara a véspera a olhar
lascivamente para as jovens servas. Mas não podia deixar George e Richard
a sós, e não podia levar George consigo pois tinha sido ele a começar a
briga. Era preferível manter Richard consigo e proteger o homem de
Stephen.
– Richard – disse ela –, podes acompanhar-me e à Lady Mary hoje. –
Lançou um olhar de arrependimento para George e saiu da estrebaria.
– A mulher está doida por mim – riu-se Richard, saindo da estrebaria
antes de George lhe bater novamente.
Capítulo Quinze

Mary caiu no selim e lançou um olhar sonolento à cunhada. Questionou-se


se esta conheceria conceitos como: exaustão ou frio. Tinham cavalgado o
dia anterior inteiro, até cansarem também os guardas que as
acompanhavam. Depois Bronwyn sentara-se ao lado de Judith, e ficaram a
conversar animadamente até altas horas da noite
Mary espreguiçou-se, bocejando, e sorriu. Não admira que Stephen
tivesse dito na carta que acompanhar a esposa era um cansaço. Será que
Stephen já dissera a Bronwyn o quanto a admirava? As cartas de Stephen
estavam repletas de elogios pelo seu novo povo e a sua nova vida, e
particularmente pela esposa corajosa.
Mary incitou o cavalo em diante, tentando manter-se a par de Bronwyn.
A escocesa parara na cabana de um servo.
A manhã ia adiantada quando finalmente descansaram na encosta. Os
homens estenderam-se na relva, esbaforidos, devorando o pão, o vinho e o
queijo.
Mary e Bronwyn sentaram-se no cume da encosta, donde a Bronwin era
capaz de contemplar a paisagem. Mary teve de recorrer a todas as suas
energias para segui-la.
– O que foi isto? – perguntou Bronwyn subitamente.
Mary prestou atenção, mas só ouvia o suspiro manso do vento e as vozes
dos guardas.
– Lá está novamente! – Bronwyn espreitou por cima do ombro, e Rab
encostou-se a ela. – Sim – murmurou. Levantou-se rapidamente. – Há
alguém ferido – disse a Mary, desatando a correr até ao cimo da encosta,
com Rab atrás de si.
Os guardas olharam para cima, mas deram às mulheres alguma
privacidade, julgando que transpunham a colina para responder a uma
necessidade física.
Mary esforçou a vista, mas não viu nada. Ao fundo, encontrava-se um
lago, as bermas semicongeladas, no qual flutuavam extensas placas de
gelo.
Bronwyn esforçou a vista, até que subitamente Rab soltou um latido
seco.
– Além! – berrou Bronwyn e correu.
Mary não conseguiu encontrar o alvo dela, mas levantou as pesadas saias
e seguiu-a. Foi só quando se encontrava a meio caminho para o lago que
notou a cabeça e os ombros de uma criança – presa na água gelada.
Mary sentiu um arrepio percorrer-lho a espinha e desatou a correr mais
depressa. Não reparou que ultrapassara Bronwyn, mas correu diretamente
para a água e agarrou na criança.
O rapazinho fitou-a com olhos grandes e inexpressivos. Poucos minutos o
separavam da morte por hipotermia.
– Está preso! – berrou Mary para Bronwyn. – O pé dele ficou entalado
algures. Lanças-me a tua faca?
A mente de Bronwyn raciocinou depressa. Sabia que a criança não
conseguiria aguentar a água gelada durante mais tempo, portanto
precisavam de agir rapidamente. Se atirasse a faca a Mary e esta não a
apanhasse, iriam perder a criança. Só havia uma forma de garantir que
Mary recebia a faca.
– Rab! – chamou Bronwyn, e o cão reconheceu a urgência na voz. – Vai
pedir ajuda aos homens. Traz um deles. Precisamos de ajuda, Rab.
O cão disparou a correr como uma seta atirada do arco. Mas não se
encaminhou para os guardas que repousavam do outro lado da encosta.
– Raios! – praguejou Bronwyn, mas já era demasiado tarde para chamar o
cão de volta.
Tirou a faca da bainha à cintura e mergulhou na água gelada. Avançou o
mais depressa que lhe foi possível, impedida pela vegetação debaixo de
água. Mary já estava azul do frio, mas não largou o rapaz, cujo rosto ficara
cinzento.
Bronwyn ajoelhou-se, a água batendo-lhe contra o peito como uma
parede de tijolos. Apalpou em volta, procurando as pernas da criança,
encontrando a vegetação que o prendia. Os dentes já começavam a bater
enquanto serrava as hastes resistentes.
– Soltou-se! – murmurou após alguns instantes. Reparou que o rosto de
Mary começava a perder o tom azul, e tornava-se cinzento. Bronwyn
ajoelhou-se e ergueu a criança. – Consegues seguir-me? – perguntou a Mary
por cima do ombro.
Mary não tinha forças para responder. Concentrou todas as energias na
deslocação das pernas e foi atrás da figura rápida de Bronwyn.
Bronwyn mal alcançou a berma do lago antes de a criança lhe ser
retirada. Descobriu o rosto sério de Raine.
– Mas como...? – começou Bronwyn.
– O Miles e eu vínhamos ao vosso encontro quando o cão nos alcançou.
O Rab saltava como um demónio. – Enquanto falava, Raine ia-se mexendo,
entregando a criança a um dos homens, depositando a sua capa sobre os
ombros frios e húmidos de Bronwyn.
– A Mary? – perguntou Bronwyn, começando a tremer.
– O Miles já a agarrou – disse Raine, colocando a cunhada na sela e
montando atrás dela.
Dirigiram-se sem demoras para o castelo Montgomery. Raine controlava
o cavalo com uma mão enquanto a outra esfregava os ombros e braços de
Bronwyn. Ela percebia que estava a enregelar e tentou enrolar-se numa
bola, aninhando-se ao encontro do calor sólido de Raine.
Entrando pelos portões, Raine transportou Bronwyn para os aposentos
dela. Assentou-a no meio do chão enquanto abria um baú e retirava um
roupão de lã grossa.
– Veste isto – indicou, virando-se de costas para ela e atiçando a lareira.
Os dedos de Bronwyn tremeram ao tentarem desabotoar a camisa. O
tecido molhado colava-se à pele. Despegou-o, e agarrou no roupão que
Raine atirara para a cama. A lã era grossa e pesada, mas ainda não a
aquecia.
Raine virou-se de novo para ela, apercebeu-se do rosto desprovido de cor,
e abraçou-a. Sentou-se numa cadeira enorme diante da lareira, com ela no
colo. Ajeitou o roupão grande, que pertencia a Stephen, à volta dela, cingiu-
a contra si, e ela encostou as pernas ao peito e enfiou a cabeça no peito
volumoso de Raine.
Demorou vários minutos até parar de tremer.
– A Mary? – murmurou.
– O Miles esta a cuidar dela, e a Judith já a enfiou numa banheira de água
quente.
– E a criança?
Raine fitou-a, os olhos assumindo um tom azul-escuro.
– Era apenas o filho de um servo, sabias? – perguntou baixinho.
Ela afastou-se dele.
– E que importância tem? Havia que socorrê-lo.
Raine sorriu-lhe e voltou a cingi-la contra o peito.
– Não me pareceu que fosse um problema para ti. Também não o seria
para a Mary. Mas vais ter problemas com o Gavin. Ele não arriscaria um
cabelo sequer de ninguém da família por todos o servos do mundo.
– Já tive de lidar com o Stephen durante meses, e creio que sou capaz de
lidar com o Gavin. – Soltou um grande suspiro de resignação.
Raine soltou uma risada que nasceu na sua barriga lisa. Ela sentiu-a antes
de se manifestar.
– Bem dito! Estou a ver que compreendes os meus irmãos mais velhos.
Ela sorriu ao encontro do peito dele.
– Raine, porque nunca casaste?
– A pergunta universal das mulheres – riu-se. – Não te ocorreu que
ninguém me queira?
A pergunta era tão absurda que ela nem respondeu.
– A bem dizer, rejeitei seis mulheres em oito meses.
– Porquê? – perguntou ela. – Eram demasiado feias, magras ou gordas?
Ou nem sequer as viste?
– Vi-as, sim – disse ele baixinho. – Não sou como os meus irmãos, que só
conhecem as noivas no dia do casamento. Os pais fazem as ofertas e eu
passo três dias com cada mulher.
– E rejeitaste-as todas.
– Sim.
Ela suspirou.
– O que pretendes de uma mulher? Uma devia ser suficientemente
bonita.
– Bonita! – desdenhou Raine. – Três delas eram lindas! Mas quero mais
do que uma mulher bonita. Quero uma mulher que pensa por si, e não
apenas nos padrões dos bordados. – O olhar rebrilhou. – Quero uma mulher
que entre num lago gelado para salvar o filho de um servo.
– Mas se outra mulher visse a criança…
Raine desviou a vista para a lareira.
– Tu e a Mary são especiais, tal como é a Judith. Sabias que a Judith
chefiou os homens do Gavin quando ele foi capturado por um louco?
Arriscou a própria vida para salvar a dele. – Sorriu para Bronwyn. –
Aguardo até encontrar alguém do vosso calibre.
Bronwyn ponderou no assunto.
– Não, não entendo que tu queiras alguém como nós. O Gavin está ligado
à terra, tal como a Judith. Encaixam-se um no outro. E a Escócia é o meu
destino. O Stephen pode viver lá comigo sem outras amarras. Mas tu… tu
não ficas muito tempo no mesmo lugar. Precisas de quem seja tão livre
como tu és, alguém que não se prenda a um pedaço de pedra e terras.
Raine fitou-a, boquiaberto, fechou a boca e sorriu.
– Não te pergunto como sabes isso. A resposta é que és uma bruxa. Bem,
uma vez que sabes tanto sobre mim, gostava de te colocar algumas
perguntas pessoais.
Fez uma pausa e fitou-a nos olhos.
– Que se passa entre ti e o Stephen? – perguntou delicadamente. – Porque
te zangas com ele constantemente?
Bronwyn respondeu lentamente. Sabia que os irmãos eram chegados e
Raine podia não gostar das suas críticas no que tocava ao mais velho da
família, mas poderia ela mentir?
Respirou fundo e disse a verdade.
– O Stephen julga que não tenho honra nem orgulho. Acredita nos outros
e não em mim. Na Escócia pensava que tudo o que eu fazia estava errado, e
a bem dizer, parte estava, mas não tinha o direito de me tratar como se tudo
o que eu fizesse fosse errado.
Raine anuiu, mostrando compreensão. Gavin demorara a entender que
Judith não era apenas um corpinho bonito.
Mas antes de poder comentar, a porta abriu-se de rompante e um Stephen
cansado e sujo entrou intempestivamente no quarto.
– O Miles disse que a Bronwyn saltara para um lago gelado! – vociferou.
– Onde está ela? – Viu-a no colo de Raine, ao colocar a pergunta.
Atravessou o quarto com duas grandes passadas e arrancou-a ao irmão.
– Maldita! – berrou. – Não te posso deixar em paz mais de uma hora, que
te metes em sarilhos.
– Larga-me! – disse ela com frieza. Estivera ausente vários dias, a
primeira separação deles, e ao regressar, começou logo com acusações.
Stephen terá pressentido os pensamentos de Bronwyn. Pousou-a no chão
diante dele.
– Bronwyn – disse baixinho, tocando-lhe no rosto.
Ela levantou a ponta do roupão de lã que se arrastava no chão e caminhou
para a porta. Era uma das poucas mulheres do mundo que apresentava um
ar digno, mesmo descalça e usando um roupão vários tamanhos acima do
seu.
Pousou a mão no puxador e, sem se virar, declarou:
– Um dia perceberás que não sou criança nem parva. – Abriu a porta e
saiu do quarto.
Stephen encaminhou-se para a porta mas a voz de Raine deteve-o.
– Senta-te e deixa-a em paz – disse Raine com resignação.
Stephen olhou para a porta por mais um instante, mas virou-se e ocupou
uma cadeira em frente de Raine. Alisou o cabelo sujo, com ar cansado.
– Ela não está ferida? Vai ficar bem?
– Claro que sim – respondeu Raine com confiança. – É forte e saudável, e
pelo que contas dos modos escoceses, está habituada à vida ao ar livre.
Stephen encarou a lareira.
– Eu sei – disse com pesar.
– O que te incomoda? – perguntou Raine. – Não és o Stephen que eu
conheço.
– A Bronwyn – sussurrou ele. – Vai acabar comigo. Na Escócia, uma
noite, decidiu chefiar os homens num ataque ao inimigo do clã. Para
assegurar que eu não me intrometia, drogou-me.
– Ela o quê? – explodiu Raine, compreendendo o perigo da decisão de
Bronwyn.
Stephen sorriu.
– Um dos homens dela descobriu e ajudou-me a acordar. Quando a
encontrei, estava pendurada numa falésia por uma corda atada à cintura.
– Santo Deus! – exclamou Raine.
– Não sei se deva espancá-la ou prendê-la para a proteger de si mesma.
– E o que fizeste?
Stephen recostou-se na cadeira, a voz desagradada.
– O que acabo sempre por fazer: amor com ela.
Raine riu-se profundamente.
– Parece-me que terias um problema se ela fosse egoísta, preocupada
apenas consigo.
Stephen levantou-se e avançou para a lareira.
– Preocupa-se de menos. Às vezes sinto-me envergonhado perante ela.
No que toca ao seu clã, faz o que julga ser melhor para eles e não tem em
consideração a sua segurança.
– E preocupas-te com ela? – perguntou Raine.
– Obviamente! Podia ficar em casa e ter bebés e cuidar deles, e de mim,
como uma esposa normal, porque tem de chefiar assaltos ao gado, gravar a
inicial no peito de um homem, enrolar-se na manta e dormir ao relento
como se fosse confortável? Não poder ser uma… uma…
– Uma rapariga pequenina e humilde que olharia para ti com admiração e
bordaria os colarinhos das tuas camisas? – sugeriu Raine.
Stephen tombou na cadeira.
– Não quero isso, mas tem de haver um meio-termo.
– E pretendes realmente mudá-la? – perguntou Raine. – O que há nela
que despertou inicialmente a tua paixão? E não me digas que é a beleza. Já
foste para a cama com várias mulheres lindas mas não te apaixonaste por
elas.
– É assim tão óbvio?
– Será para mim e talvez para o Gavin e o Miles. Para a Bronwyn, penso
que não. Ela não acredita que gostes sequer dela.
Stephen suspirou.
– Nunca conheci ninguém como ela, homem ou mulher. É forte, nobre,
parece um homem. Devias ver como o clã a trata. Os escoceses são
diferentes de nós. Os filhos dos servos correm para a abraçarem, e ela beija
todos os bebés. Não compra comida nem roupas para que o clã tenha mais.
Uma noite, cerca de um mês após o casamento, apanhei-a a enrolar pão e
queijo na manta. Ela ignorou-me mas continuou a olhar para o Tam. É o
homem que lhe serve de pai. Percebi que fazia algo que não queria que ele
soubesse. Portanto, após a ceia, segui-a até à península. Ela levava a comida
para o filho de um camponês, um rapaz amuado que fugira de casa.
– E que lhe disseste? – perguntou Raine.
Stephen abanou a cabeça ao recordar.
– Eu, o grande sábio, disse-lhe para devolver o miúdo aos pais ao invés
de encorajá-lo a fugir de casa.
– E o que respondeu ela?
– Disse que o miúdo era tão importante para ela quanto os pais, e que não
podia traí-lo só por ser uma criança. Disse que voltaria para casa dali a dias
e aceitaria o castigo como um homenzinho.
Raine soltou um assobio de admiração.
– Tu podias aprender com ela.
– E achas que não aprendi? Ela mudou a minha vida. Quando fui para a
Escócia, era inglês, e agora, olha para mim, não suporto usar as roupas
inglesas. Sinto-me como Sansão depois de cortar o cabelo. Olho para o
campo inglês e penso que é seco e quente, comparativamente a casa. Casa!
Juro que tenho saudades de um lugar que não conhecia até há poucos
meses.
– Conta-me – pediu Raine –, contaste à Bronwyn o que sentes? Contaste-
lhe que a amas e que só te preocupas com a segurança dela?
– Tentei. Já tentei dizer-lhe que a amava e ela respondeu que não
importava, que a honra e o respeito para ela contam mais.
– Mas pelo que afirmas, sentes isso por ela. – Stephen começou a sorrir.
– Não é fácil dizer nada a Bronwyn. Tivemos… digamos que um arrufo
antes de chegarmos. – Contou a Raine rapidamente a partida na casa de
Hugh Lasco.
– O Hugh! – desdenhou Raine. – Nunca gostei muito do homem, com
aqueles modos arrastados.
– A Bronwyn não se importou – comentou Stephen, com desagrado.
Raine riu-se.
– Não me digas que a ciumeira do Gavin também te aflige?
Stephen virou-se para o irmão.
– Espera até andares obcecado por uma mulher! Aposto que não vais ter a
cabeça tão fria.
Raine levantou a mão.
– Espero obter alegria do amor e não uma doença que me consome, como
a vocês.
Stephen desviou o olhar, fitando a lareira. Por vezes o seu amor por
Bronwyn era como uma doença. Sentia que ela lhe devorava a alma e o
coração.

Quando Bronwyn saiu do quarto, entrou no de Mary. A rapariga estava


deitada, e Judith atarefava-se à sua volta, depositando tijolos aquecidos ao
longo da cama.
– Judith – disse Mary baixinho. – Não vou morrer por causa de um pouco
de água fria. – O olhar varreu o quarto e encontrou Bronwyn. – Ajuda-me a
convencer a Judith que a nossa aventura não foi letal.
Bronwyn sorriu às mulheres e examinou Mary. A pele pálida estava ainda
mais pálida e viam-se manchas rosadas nas faces.
– Não foi nada – disse Bronwyn. – Mas invejo o teu controlo dos nervos,
para poderes descansar. – O olhar reluziu. – Estou tão entusiasmada com o
novo vestido que a Judith me prometeu que não consigo descansar. Talvez o
possamos ver agora – indicou sugestivamente a Judith.
Esta percebeu de imediato e as duas mulheres abandonaram o quarto.
– Julgas que ela ficará bem? – perguntou Judith mal se encontraram no
corredor.
– Sim, só precisa de descanso. Não acredito que a nossa Mary exista
completamente neste mundo. O Céu tem parte dela. Talvez venha daí a sua
fraqueza.
– Sim – concordou Judith. – Quanto ao vestido…
Bronwyn abanou a mão.
– Era apenas uma desculpa para ela poder descansar.
Judith riu-se.
– O roupão de Stephen pode ficar-te bem mas não substitui o vestido de
que precisas. Anda, e nada de desculpas.
Uma hora mais tarde Bronwyn apareceu num exuberante vestido de
veludo verde-escuro. A cor imitava o tom da floresta ao lusco-fusco. As
mangas interiores eram de seda verde brilhante e as mangas exteriores,
soltas e penduradas, tinham uma faixa de pele de raposa vermelha. Cordões
dourados pendiam dos ombros até ao decote pronunciado e quadrado.
– É lindo, Judith – sussurrou Bronwyn. – Não sei como hei de agradecer-
te. Vocês são tão generosos.
Judith beijou o rosto da amiga.
– Tenho de ir, o trabalho espera-me. Talvez o Stephen gostasse de ver o
novo vestido – sugeriu.
Bronwyn desviou a vista. Stephen ia queixar-se de que o decote era
demasiado grande ou de outro defeito qualquer.
Após Judith sair, Bronwyn desceu para o pátio frio. Atirou uma capa
orlada com pele de raposa sobre os ombros e avançou para a estrebaria.
– Bronwyn – disse uma voz familiar, quando entrou no lugar escuro.
Espreitou para as sombras e viu o homem que lutara contra o George de
Stephen pela manhã.
– Sim – disse rispidamente. – O que foi?
Os olhos do homem brilhavam na parca luz.
– O vestido condiz contigo. – Antes de ela poder responder, ele ficou
mais formal. – Soube que os vossos escoceses são muito ágeis com arco e
flecha. Talvez vós – a ideia pareceu diverti-lo – pudésseis ensinar-me uma
forma melhor de utilizá-lo.
Ela ignorou o riso subjacente à voz do homem. Talvez fosse um
mecanismo de defesa caso ela recusasse o pedido. Mas Bronwyn passara
muitas horas a treinar o uso de um arco, e costumava ensinar os homens.
Era bom ver este inglês interessado nos costumes escoceses.
– Teria muito gosto em ensinar-te – disse, e passou pelo homem,
embatendo no peito duro de Stephen. O homem abandonou prontamente a
estrebaria.
– O que estavas a dizer ao homem? – perguntou Stephen diretamente.
Ela soltou-se do aperto.
– Não consegues falar comigo sem ser num tom zangado? Porque não és
como os outros maridos e cumprimentas a tua esposa com modos amáveis?
Não te vejo há dias e só ralhas comigo.
Agarrou-lhe no pulso.
– Bronwyn – murmurou ele. – Acabarás comigo. Porque tiveste de saltar
para um lago gelado em pleno inverno?
Ela afastou-se dele.
– Recuso responder a tais perguntas.
Ele agarrou-a novamente, puxou a boca para a dele, magoando-a, com os
dentes esmagando-lhe os lábios. Parecia querer mais do que um beijo.
– Tive saudades tuas – murmurou. – Pensei em ti todos os minutos.
O coração dela batia acelerado. Sentia-se derreter contra ele. Mas o que
disse a seguir quebrou a magia.
– Falavas com um dos homens do Miles, quando entrei?
Ela tentou libertar-se.
– Outro ataque de ciúmes? Bem noto na tua voz.
– Bronwyn, ouve-me. Só quero avisar-te de que os ingleses são diferentes
dos teus escoceses. Não podes dirigir-te a eles como se fossem teus irmãos,
ao contrário dos teus homens. Na Inglaterra é comum as senhoras dormirem
com os soldados dos maridos.
Os olhos de Bronwyn esbugalharam-se.
– Acusas-me de dormir com os teus homens? – arquejou de indignação.
– Claro que não, mas...
– Mas acusaste-me do mesmo com o Hugh Lasco.
– O Hugh Lasco é um cavalheiro! – retorquiu Stephen.
Bronwyn quase se afastou dele num salto.
– Ah! – Fervia de raiva. – Ao menos esta meretriz sabe diferenciá-los! –
Virou-lhe as costas e avançou rapidamente para a porta.
Stephen agarrou-lhe o braço.
– Não te acusei de nada. Só tentei explicar que as coisas na Inglaterra são
diferentes da Escócia.
– Ah! Então agora sou demasiado estúpida para perceber a diferença entre
os dois países. Tu podes adaptar-te, mas eu não!
Ele fitou-a.
– Que se passa contigo? Não pareces tu.
Ela afastou-se dele.
– E o que conheces tu a meu respeito? Passas o tempo a amaldiçoar-me
desde que nos conhecemos. Nada que eu faça fora do quarto é do teu
agrado. Se chefio os meus homens, ficas zangado. Se tento salvar um dos
servos do teu irmão, ficas irritado. Se trato os teus homens com simpatia,
acusas-me de dormir com eles. Dizei-me, o que posso fazer para vos
satisfazer?
Stephen encarou-a com olhar frio.
– Não fazia ideia que eu era tão detestável a teus olhos. Não te incomodo
mais, então. – Deu meia-volta, tenso, e partiu.
Bronwyn ficou a vê-lo desaparecer, com lágrimas formando-se nos olhos.
Que se passava com ela? Stephen não a acusara sequer de dormir com o
homem, e ele tinha todo o direito de avisá-la sobre a expectativa dos seus
homens. Porque não era ela capaz de o receber de volta como pretendia? Só
lhe apetecia que ele a abraçasse, a amasse. E, no entanto, sempre que se
aproximava ela começava uma discussão.
Subitamente sentiu o corpo todo dorido. Levou a mão à testa. Não estava
acostumava às más disposições, e notara subitamente que ignorava aquela
sensação há dias. Claro que os serões que passava com Judith e o lago
semigelado pela manhã não ajudavam. Amaldiçoou o campo inglês
infestado de doenças e saiu da estrebaria.
– Bronwyn – chamou Judith. – Apetece-te pão fresquinho?
Bronwyn encostou-se à parede de pedra da estrebaria. A discussão
perturbara-lhe o estômago. Pensar em comida dava-lhe náuseas.
– Não – murmurou, mão na barriga.
– Bronwyn, que se passa? – perguntou Judith, pousando o cesto. – Não te
sentes bem? – Levou a mão à testa da cunhada. – Senta-te, é melhor. –
Conduziu-a para um barril junto à parede. – Respira fundo, que já passa.
– O quê? – perguntou Bronwyn num tom acutilante.
– A náusea.
– A quê? – arfou Bronwyn. – De que falas tu?
Judith fez uma pausa.
– Ou muito me engano, ou vais ter um bebé. – Sorriu abertamente ao ver
a expressão de Bronwyn. – Não deixa de ser curioso – afagou a própria
barriga. – Vamos dar à luz quase ao mesmo tempo.
– Tu! Também estás grávida?
Judith ostentou um sorriso distante.
– Sim. Perdi... o primeiro num aborto espontâneo. Com este vou ter mais
cuidado. Nem sequer contarei a ninguém. A não ser ao Gavin, obviamente.
– Obviamente – disse Bronwyn, desviando o olhar mas voltando a fitá-la.
– Quando nasce?
– Daqui a sete meses – soltou Judith um riso abafado.
– Porque te ris? – perguntou Bronwyn. – Também precisava de me
descontrair.
– Lembrei-me que a minha mãe vai poder ajudar-me durante o resguardo
após o parto. – Fez uma pausa, e explicou: – Pensei que não podia vir, pois
também ia ter um bebé.
– A tua mãe! Que sorte a tua, teres ainda pais vivos!
– Não. – Judith sorriu. – O meu pai faleceu há vários meses.
– E o filho não é dele? – perguntou Bronwyn delicadamente.
– Ah, não, e ainda bem. O meu pai batia na minha mãe. Ela foi
aprisionada por um jovem, este era o John Basset, o guarda pessoal do
Gavin. Parece que ele e a minha mãe encontraram uma extraordinária forma
de passarem o tempo.
Bronwyn riu-se.
– Sim – prosseguiu Judith. – Quando o Gavin descobriu que havia um
bebé a caminho, ele deu permissão ao John e à minha mãe para casarem.
– E ela já teve o bebé?
– Nasce daqui a dois meses, pelo que já deve ter recuperado quando for a
minha vez. Tenho de voltar ao trabalho. Fica aqui a descansar.
– Judith, disseste que a tua mãe foi aprisionada. Como conseguiu
escapar?
O olhar dourado de Judith ensombrou-se com a recordação.
– Matei o raptor dela e os homens de Stephen derrubaram o muro do
velho forte.
Bronwyn notou a mágoa no olhar de Judith. Não fez mais perguntas.
Judith virou-se e caminhou em direção ao portão que separava as duas
secções do complexo do castelo.
Bronwyn ficou sentada, quieta, durante algum tempo. Um bebé!, pensou.
Uma coisinha linda e fofa, como o de Kirsty. A mente vagueou, e mal
reparou que já se tinha endireitado e começado a caminhar. Lembrou-se de
Tam e do orgulho que teria nela. Sorriu com ar sonhador ao pensar na
reação de Stephen quando lhe contasse. Ficaria tão feliz! Iria agarrá-la e
levantá-la no ar e rir-se com delícia. Depois discutiriam sobre o nome da
criança: MacArran ou Montgomery. Obviamente, só podia ser MacArran.
Ela continuou a andar como se num transe, sem reparar que tinha
alcançado o portão aberto. Os homens na muralha que guardavam a entrada
não a impediram de modo algum nem a chamaram à atenção.
Que nome daria à criança?, pensou. James por causa do pai, e talvez
outro nome para a família de Stephen. E se fosse menina?, pensou, sorrindo
calorosamente. O clã MacArran teria duas senhoras de seguida. Havia de
ensinar à filha tudo o que era preciso saber para se tornar senhora.
– Minha senhora – disse uma voz.
Bronwyn mal ouviu. Encontrava-se num transe, e pouco registava do
exterior. Aliás, nem estava realmente ciente de que caminhava há algum
tempo e de que se encontrava longe da vista dos guardas do castelo.
– Lady – repetiu a voz. – Sente-se bem?
Bronwyn fitou o homem com um sorriso angélico de grande alegria.
– Muito bem – disse de forma vaga. – Mais do que bem.
O homem desmontou e acercou-se dela.
– Já percebi – disse numa voz baixa, lábios contra o ouvido de Bronwyn.
Ela continuou desatenta. Só pensava no filho. Morag adoraria criar outro
bebé – era o pensamento que a encantava quando os lábios do homem lhe
acariciaram a orelha. O toque despertou-a da letargia.
Ela recuou num salto.
– Mas que ousadia é esta? – exclamou. Ninguém a não ser o Stephen a
tinha tocado sem permissão dela. Lançou um olhar em volta, e só então
percebeu a distância a que estava do castelo.
Richard interpretou erradamente aquele olhar.
– Não tens de preocupar-te. Estamos longe de tudo, O Lorde Gavin
acabou de voltar da Escócia e estão todos ocupados. Temos tempo.
Afastou-se dele. Mil pensamentos percorreram-lhe a mente. Os avisos de
Stephen gritaram com força. Mas o que realmente a preocupava era o bebé.
Por favor, não faças mal ao meu filho!
– Não precisas de ter medo de mim – disse Richard com voz melíflua. –
Vamos divertir-nos um pouco.
Bronwyn endireitou as costas.
– Sou a Bronwyn MacArran e tu vais voltar para o castelo.
– MacArran! – riu-se ele. – Os homens disseram que eras muito
independente, mas não que renegarias o teu marido.
– Insultas-me. Desaparece e deixa-me em paz.
O sorriso de Richard apagou-se do rosto.
– Julgas que te largo depois de todas as tuas provocações? Escolheste-me
para te acompanhar hoje pela manhã. Aposto que ficaste com pena de não
termos tido tempo a sós.
Ela ficou boquiaberta.
– Foi isso que pensaste? Que eu queria estar a sós contigo?
Ele tocou-lhe no cabelo, o dedo mindinho viajando pelo seio.
Bronwyn esbugalhou a vista, em busca de Rab. O cão não a largava.
– Por precaução, tranquei o teu cão no celeiro. – Richard sorriu. – Vá,
para com os joguinhos. Sabes que me desejas tanto quanto te desejo. –
Agarrou em Bronwyn, a mão enrolando o cabelo dela. Esmagou os lábios
contra os seus.
Bronwyn sentiu-se assolada por ondas de raiva. Descontraiu os braços,
inclinou-se para trás, e quando ele se debruçou para se forçar contra ela,
Bronwyn levantou o joelho.
Richard gemeu de dor e soltou-a abruptamente.
Bronwyn tentou manter-se de pé, mas tropeçou na pesada saia de veludo.
Praguejou, levantando o tecido e desatando a correr. Mas o tecido não
parava de soltar-se, atrapalhando-a. Tropeçou novamente, e por fim lançou
o veludo por cima do braço. Ao tropeçar pela terceira vez, Richard tinha-a
alcançado. Agarrou-lhe o tornozelo, e ela caiu para diante, de cara na terra
dura e fria. Arfou a precisar de ar.
Richard fez deslizar as mãos pelas suas pernas acima.
– Agora, minha escocesa flamejante, vamos dar uso a esse fogo.
Bronwyn tentou pontapeá-lo mas ele prendeu-a ao chão. Agarrou-lhe o
vestido e rasgou-o, expondo-lhe a pele das costas ao ar frio de inverno.
– Agora – disse, pousando os lábios na nuca dela.
No instante seguinte Richard gritou, ante o ataque de uma massa de pelo
cinzento e dentes aguçados. Bronwyn afastou-se a rolar, enquanto Richard
tentava levantar-se e lutar contra Rab.
Um braço fê-la erguer-se. Miles abraçou-a, susteve-a com o braço, a
espada apontada no outro.
– Chama o teu cão – disse Miles baixinho.
A voz de Bronwyn tremia-lhe.
– Rab! – ordenou.
O cão abandonou o ataque a contragosto e aproximou-se dela.
Richard tentou endireitar-se. Havia sangue no braço e na perna. Tinha
rasgões na roupa e no corpo.
– O raio do cão atacou-me sem motivo! – começou.
Miles afastou-se da cunhada. O olhar era duro como aço.
– Ninguém toca nas mulheres Montgomery – disse num tom letal.
– Ela é que se meteu comigo! – disse o homem. – Andava a pedi-las…
Foram as últimas palavras que disse em vida. A espada de Miles entrou
diretamente no coração do homem. Miles mal olhou para o morto, um dos
seus. Virou-se para Bronwyn e pareceu sentir o mesmo que ela: indefeso,
violado.
Abraçou-a gentilmente e cingiu-a contra si.
– Agora estás a salvo – disse. – Mais ninguém te fará mal.
Subitamente Bronwyn sentiu o corpo tremer, e Miles apertou-a mais.
– Ele disse que eu o incitei – murmurou ela.
– Calma – disse Miles. – Eu andava de olho nele. Não compreendia os
teus modos escoceses.
Bronwyn afastou-se e fitou-o.
– Foi o que o Stephen disse. Avisou-me dos perigos de falar com os
homens. Disse que os ingleses não compreendiam que falasse com eles.
Miles afastou a madeixa da testa.
– Existe uma atitude formal entre uma senhora inglesa e os homens do
marido dela, que a tua cultura não pratica. Regressemos. Estou certo que me
terão visto sair atrás do teu cão.
Ela lançou um olhar ao cadáver a seu lado.
– Ele prendeu o Rab e eu nem sequer reparei. Estava... – Não podia
contar a ninguém sobre o bebé antes de Stephen saber.
– Ouvi o animal ladrar. Quando o soltei, ele ficou louco, latindo,
farejando o solo. – Fitou com admiração o canzarrão. – Sabia que estavas
em apuros.
Ajoelhou-se e esfregou a cara na pele áspera de Rab.
Viraram-se ambos ao escutarem cavalos a galope. Gavin e Stephen
aproximavam-se a toda a velocidade. Stephen deslizou do cimo do selim
antes de o cavalo parar por completo.
– O que aconteceu aqui? – exigiu saber.
– O homem tentou atacar a Bronwyn – informou Miles.
Stephen observou a esposa, reparando na pele raspada do rosto e no
vestido rasgado.
– Eu disse-te – comentou com dentes cerrados. – Nunca me dás ouvidos.
– Stephen – adiantou Gavin, a mão pousada no braço do irmão. – Não é o
momento certo.
– O momento certo! – Stephen explodiu de raiva diante da esposa. – Há
menos de uma hora indicaste todas as minhas falhas. Encontraste outra
pessoa com menos falhas? Deste-lhe algum encorajamento propositado?
Antes de se poderem manifestar, Stephen voltou a montar o cavalo.
Bronwyn, Miles e Gavin ficaram a vê-lo sem reação.
– Ele merecia uns açoites! – comentou Miles sarcasticamente.
– Cala-te! – ordenou Gavin. Virou-se para Bronwyn. – Ficou perturbado e
confuso. Tens de perdoar-lhe.
– Está é com ciúmes! – sussurrou Bronwyn com firmeza. – Aquela
ciumeira toda enlouquece-o. – Sentia-se fraca e derrotada. Ele só se
importava com os ciúmes que sentia.
Gavin pousou o braço em torno dela num gesto protetor.
– Vem para casa. A Judith prepara-te uma bebida. O sumo de maçã dela é
delicioso.
Bronwyn anuiu, entorpecida, e deixou-se ser erguida para o cavalo de
Miles.
Capítulo Dezasseis

Judith deu uma mistura a beber a Bronwyn que a fez adormecer de


imediato. Para ela fora um dia repleto de acontecimentos – salvara uma
criança e quase fora violada. Bronwyn sonhou que se perdia e procurava
Stephen, mas não o encontrava.
Acordou subitamente, com o corpo coberto de suor e procurou Stephen.
A cama estava vazia. Endireitou-se e perscrutou as trevas à sua procura.
Sentia-se insuportavelmente sozinha. Porque discutia com Stephen
constantemente? Quando Miles lhe dissera que os escoceses tinham
costumes diferentes, não ficara frustrada, mas tivera um ataque de fúria
quando o mesmo comentário partiu da boca de Stephen.
Afastou as cobertas e pegou no roupão que Judith lhe emprestara.
Precisava de encontrar Stephen e dizer-lhe que estava errada. Tinha de lhe
contar sobre o bebé e pedir que lhe perdoasse o mau humor.
Rab seguiu-a enquanto ela abria o baú e retirava a manta. O cão não quis
largá-la de vista.
Ela vestiu-se rapidamente e saiu do quarto. A casa encontrava-se
silenciosa e às escuras. Desceu para o piso térreo. Uma única vela grossa
aparecia pela porta entreaberta da sala invernal. A lareira estava
praticamente extinta.
Empurrou a porta, e ouviu risinhos femininos. Bronwyn deteve-se,
percebendo que teria interrompido Raine ou Miles com uma das criadas.
Virou-se para partir, mas as palavras da mulher travaram-na.
– Oh, Stephen. – A mulher soltou risinhos. – Tive tantas saudades. Não
há homens com mãos como as tuas.
Bronwyn ouviu o troar de um riso familiar.
Não era tímida a ponto de fugir da sala a chorar. Estava saturada de
insultos naquele dia. Abriu a porta pesada com um empurrão cruel e
avançou decidida para a lareira.
Stephen encontrava-se sentado numa cadeira larga, completamente
vestido, uma rapariga cheiinha, nua da cintura para cima, de pernas abertas
no seu colo. Ele tinha uma mão pousada no peito dela, descontraidamente; a
outra segurava um garrafão de vinho.
Rab mostrou os dentes à rapariga, e ela lançou um relance, entre
Bronwyn e o cão, gritou e saiu da sala a correr.
Stephen mal olhou para a esposa.
– Bem-vinda – disse com a fala arrastada e estendeu-lhe o copo.
Bronwyn sentiu o coração aos saltos. Ver Stephen a tocar noutra mulher!
A pele parecia arder, e a cabeça latejava.
Stephen encarou-a.
– Como te sentes agora, querida esposa? – Tinha os olhos raiados de
sangue, os movimentos lentos. Estava nitidamente bêbado. – Tive de ficar à
parte e ver-te brincares com vários homens. Sabes como me senti quando
deixaste o Hugh tocar-te?
– Fizeste isto de propósito – murmurou ela. – Para me castigares. –
Endireitou os ombros. Queria bater-lhe, causar-lhe a mesma dor que sentia.
– Estava certa quando disse ao Sir Thomas Crichton que não podia casar
contigo. Não és digno de estares casado com uma escocesa. Aguentei
durante meses a ver-te imitares os nossos modos como um macaco. E vi-te
fracassares em tudo.
Apesar da embriaguez, ele reagiu rapidamente. Atirou o garrafa para o
chão, pôs-se de pé e agarrou-lhe o decote do vestido.
– E o que me deste tu? – perguntou. – Fiz todos os esforços possíveis para
aprender contigo, mas dás-me tu ouvidos? Combates-me constantemente.
Ris-te de mim diante dos teus homens, escarneces do meu conselho diante
dos meus próprios irmãos. E aceito tudo porque sou um parvo e penso que
te amo. Mas amar alguém tão egoísta como tu? Quando é que cresces e
paras de esconder-te atrás do teu clã? Não te importas nada com eles; só te
preocupas com o que tu queres e precisas.
Afastou-a como se estivesse subitamente farto dela.
– Estou cansado de querer agradar a uma mulher fria. Vou procurar quem
me dê o que eu preciso.
Virou-se e saiu da sala com andar trôpego.
Bronwyn manteve-se no mesmo lugar, pensativa. Não fazia ideia que ele
a desprezasse tanto. Quantas vezes Stephen quase lhe confessara o seu
amor, e ela ignorara-o? Oh, mas ela mostrara-se feroz e orgulhosa quando
respondeu que, sim, até gostavam um do outro mas ela queria algo mais que
amor.
Algo era mais importante para ela do que o amor de Stephen? Percebia
agora que nada era mais imprescindível. Tivera esse amor na palma da mão
e atirara-o de volta. Na Escócia, ele fizera das tripas coração para ser justo e
aprender a viver no país dela. E no entanto ela fizera alguma tentativa de se
encaixar no modo de vida inglês? A sua maior concessão era vestir os
luxuosos trajes ingleses, e até disso se queixava.
Cerrou o punho. Stephen estava certo! Era uma pessoa egoísta. Exigiu
que ele se tornasse escocês, mudasse todo o seu ser, e nada lhe dera em
troca. Desde o primeiro instante, fizera-o pagar pelo privilégio de casar com
ela.
– Privilégio! – exclamou em voz alta. Ela fê-lo lutar por si no dia do
casamento. Espetara-lhe uma faca na noite de núpcias. Que dissera ele?
«Um dia saberás que uma gota do meu sangue é mais valiosa que os
sentimentos de ira dentro de ti.»
Como podia ter ferido o corpo lindo que conhecia tão bem? Como fora
capaz de o fazer sangrar?
As lágrimas escorreram pela cara. Ele já não a amava. Tivera o amor dele
e descartara-o como lixo.
Piscou os olhos para afastar as lágrimas e olhou em redor. Stephen era
bom e a família era boa. Odiava-o por ser inglês tal como odiava todos os
MacGregors. Mas Stephen demonstrara haver bons MacGregors e ingleses
calorosos e generosos.
Stephen mostrara-lhe! Ensinara-lhe tanto, e contudo ela não lhe facilitara
a vida. Quando fora ela amável? Tinha-o drogado, amaldiçoado, desafiado –
tudo por despeito.
Tudo para evitar amá-lo, percebeu. Não queria fazer amor com um inglês.
Receava que o clã a considerasse fraca, que não merecesse o papel de chefe.
E contudo Tam adorava-o, tal como a maior parte dos homens, ao final de
algum tempo.
Ela virou-se para a porta e entrou silenciosa no Salão Grande, e saiu para
o pátio. Procurava-o. Talvez o conseguisse encontrar. Sabia que não teria
subido para o quarto.
– O Stephen saiu a cavalo há minutos – indicou Miles com voz suave
atrás de si.
Ela virou-se lentamente. O homem também era simpático consigo. Tinha-
a reconfortado depois do ataque.
Subitamente um vento frio assolou-a, e ela teve uma visão da Escócia.
Mais do que tudo no mundo, queria voltar para casa. Talvez em casa
pensasse no que havia de fazer para recuperar o amor de Stephen. Talvez
pudesse imaginar como fazê-lo entender que ela o amava também e que
estava disposta a ceder por igual.
Fitou Miles como se não o visse realmente, depois virou-se e avançou
para a estrebaria.
– Bronwyn – disse ele, agarrando-lhe o braço. – Que foi?
– Vou para casa – disse ela, baixinho.
– Para a Escócia? – perguntou com assombro.
– Sim – sussurrou, usando o sotaque escocês. – Para a casa que tenho na
Escócia. – Sorriu. – Transmites as minhas desculpas à Judith?
Miles perscrutou-lhe a expressão.
– A Judith compreende sem necessitar que lhe expliquem. Anda, vamos.
Bronwyn começou a protestar mas fechou a boca. Sabia que não podia
impedir Miles de acompanhá-la, tal como ele não podia impedir a sua
vontade de voltar para casa.
Cavalgaram naquela noite terrível e longa sem trocarem palavras.
Bronwyn sentia apenas a dor de ter perdido Stephen. Talvez fosse mais feliz
em Inglaterra com a família, onde não teria de lutar para sobreviver. Levava
a mão ao estômago, perguntando-se quando começaria a crescer. Queria um
sinal exterior de que o filho dele vinha a caminho.
Atravessaram a fronteira da Escócia ao início da manhã. Subitamente
ocorreu-lhe que fora egoísta da sua parte permitir que Miles a
acompanhasse. Havia muitos escoceses como o velho Harben que
adorariam matar um inglês. Sugeriu a Miles que, uma vez que cavalgavam
sem guardas, estariam mais seguros se se vestisse como um habitante das
Terras Altas. Miles lançou-lhe um olhar estranho que não compreendeu.
Mais tarde, percorrendo o território a norte, ela começou a compreender
por fim. Miles estaria sempre a salvo onde houvesse mulheres. As raparigas
bonitas paravam e ofereciam-lhes conchas de leite, e os olhos ofereciam a
Miles muito mais. Uma mulher, caminhando com a filha de quatro anos,
parou e dirigiu-se a eles. A menina correu e saltou para os braços de Miles.
Este não encontrou nada invulgar nesta reação e limitou-se a pô-la às
cavalitas. Caminharam algum tempo assim.
Caía a noite quando alcançaram a velha casa de um camponês, da qual
saiu uma velha – feia, desdentada – também ao encontro deles. Sorriu
deleitada ao ver Miles e pegou-lhe na mão. Esfregou-a entre as suas e
esticou-a, palma virada para cima, à luz do sol minguante.
– O que vê? – perguntou Miles gentilmente.
– Anjos – riu-se ela. – Dois anjos. Um anjo belo e um querubim.
Miles sorriu docemente e a mulher riu-se com mais vigor.
– Para outros são anjos; para ti, são demónios. – Um relâmpago iluminou
os céus. – Ah, sim, é o que são. São anjos de chuva e relâmpagos para ti. –
Riu-se novamente, virando-se para Bronwyn. – Agora, mostra-me a tua
palma da mão.
Bronwyn recuou.
– É melhor não – disse sem hesitar.
A velha encolheu os ombros e convidou-os para passarem a noite
consigo.
Pela manhã, agarrou a palma de Bronwyn e o rosto ensombrou-se.
– Cautela com um louro – avisou.
Bronwyn puxou a mão para si.
– Infelizmente, os teus avisos chegam demasiado tarde – disse,
recordando o cabelo de Stephen beijado pelo sol, e abandonou a casinha.
Cavalgaram o dia inteiro e pararam ao final da tarde no abrigo sem teto
de um castelo derrubado.
Foi Miles quem se lembrou que era véspera de Natal. Celebraram como
puderam, mas Miles apercebeu-se da tristeza de Bronwyn e não a
incomodou. Ocorreu a Bronwyn que parte do fascínio de Miles consistia no
facto de entender os sentimentos de uma mulher. Não pedia dela nada, ao
contrário de Stephen, nem tentava conversar, como Raines. Apenas
entendia e deixava-a em paz. Ela não duvidava que, se lhe apetecesse falar,
Miles seria um excelente ouvinte.
Sorriu-lhe e aceitou o biscoito de aveia que ele ofereceu.
– Fui a causa de não passares o Natal junto da tua família.
– Tu és da minha família – vincou ele. Fitou o céu negro por cima das
ruínas em volta. – Espero que, desta vez, não chova.
Bronwyn riu-se.
– Estás habituado ao teu país seco. – Ela sorriu, recordando. – A chuva
não incomodava o Stephen. Ele… – Calou-se e desviou o olhar.
– Acho que o Stephen era capaz de aprender a respirar debaixo de água
para estar contigo.
Ela olhou para cima, recordando a criada da cozinha de pernas abertas no
colo do marido. Pestanejou várias vezes para afastar a visão.
– Vou deitar-me.
Miles observou com espanto a forma como se enrolava na manta e
descontraía prontamente. Ele suspirou, e apertou a capa orlada de pele
contra o corpo. Não daria um bom escocês.
Alcançaram a colina com vista para Larenston ao final da manhã. Miles
ficou calado, de assombro, ao contemplar a fortaleza sobre a península.
Bronwyn incitou o cavalo em diante, até saltar para os braços de um
homenzarrão.
– Tam! – exclamou, enterrando a cara no pescoço familiar.
Tam segurou-a à distância.
– Fazes-me crescer cabelos brancos – murmurou. – Como é que uma
coisinha tão pequena dá tanto trabalho? – perguntou, ignorando o facto de
ela ser mais alta do que ele. Bem, ao lado da sua grande massa, ela era
pequena.
– Sabias que o MacGregor quer falar contigo? Mandou uma mensagem
sobre uma bebida e uma criadita atrevida que se riu dele. Bronwyn, o que
fizeste?
Bronwyn fitou-o com assombro por instantes. O MacGregor pediu para
se encontrar com ela! Talvez pudesse agora provar a Stephen que ela não
era egoísta.
Abraçou Tam mais uma vez.
– Há tempo para te contar tudo. Agora só quero ir para casa. Estou
cansada da viagem.
– Cansada? – perguntou Tam, alarmado. Ela nunca usara essa palavra.
– Não me olhes como se fosse uma palerma – sorriu. – Não é fácil
transportar outra pessoa.
Tam percebeu imediatamente e o rosto quase se dividiu em dois com o
sorriso.
– Sabia que o inglês era capaz de acertar numa coisa sem treino. Onde
está ele, afinal? E quem é este?
Bronwyn respondeu a todas as perguntas enquanto percorriam a faixa de
terra a caminho de Larenston. Os homens dela juntaram-se ao grupo e
dispararam centenas de perguntas. Os criados e serviçais de Bronwyn
reagiram mais como uma grande família e não como membros de classes
sociais a que pertenciam. Os homens cumprimentaram Miles
afetuosamente, falando constantemente sobre o Stephen isto, o Stephen
aquilo.
Bronwyn abandonou os homens e subiu as escadas até ao quarto. Morag
saudou-a.
– Trocaste de irmãos? – acusou-a.
– Então, não me cumprimentas sequer? – perguntou Bronwyn com ar
cansado, encaminhando-se para a cama. – Trago uma nova criança e nem
me acolhes devidamente?
A face enrugada de Morag fez um esgar.
– Eis o meu querido Stephen. Eu sabia que era um homem.
Bronwyn ficou deitada na cama. Não lhe apetecia discutir com Morag.
– Vai ao encontro do outro inglês que eu te trouxe. Hás de gostar dele. –
Tapou-se com a colcha. Só queria dormir.

As semanas passaram-se, e Bronwyn dormiu sem parar. Sentia o corpo


exausto com o turbilhão e as mudanças causadas pelo bebé. Um dia, Miles
apareceu para lhe dizer que regressava a Inglaterra. Agradeceu-lhe a
hospitalidade e prometeu que transmitiria as suas desculpas a Judith e
Gavin. Nenhum deles mencionou Stephen.
Bronwyn tentou manter o pensamento afastado do marido, mas não era
fácil. Toda a gente perguntava por ele. Tam quis saber por que raio ela
partira de Inglaterra tão subitamente. Porque não ficou e lutou por ele?
Ficou boquiaberto ao ver Bronwyn desfazer-se subitamente em lágrimas e
sair da sala a correr. Depois desse acontecimento evitaram fazer-lhe
perguntas que ela não podia responder.
Três semanas após o regresso a casa, um dos seus homens informou-a de
que um grupo de ingleses se acercava de Larenston.
– Gavin! – exclamou Bronwyn e subiu as escadas para trocar de roupa.
Envergou o vestido prateado que Stephen lhe oferecera e prontificou-se
para saudar o cunhado. Tinha a certeza de que se tratava de Gavin. Já
visitara a Escócia, e traria notícias de Stephen. Talvez a tivesse perdoado e
viesse buscá-la. Não, seria pedir muito.
O sorriso desvaneceu-se ao entrar Roger Chatworth no Salão Grande.
Ficou atónita com a sua própria reação: autorizar o visitante a entrar em
Larenston sem determinar primeiramente quem era. E os homens tinham-
lhe obedecido sem hesitações. Fitou os rostos dos homens, e encontrou
preocupação pela sua pessoa.
Procurando disfarçar o seu desapontamento, estendeu a mão.
– Lorde Roger, que bom encontrar-vos novamente.
Roger dobrou a perna para se ajoelhar e pegou-lhe na mão, levando-a aos
lábios. O cabelo louro escurecera desde a última vez, e a cicatriz junto ao
olho estava mais saliente. Ele despertou-lhe recordações dos dias na casa de
Sir Thomas Crichton. Sentira-se tão sozinha e ele fora afável e
compreensivo. Até se dispôs a arriscar a vida para cumprir a vontade dela.
– Estais mais linda do que me recordava – disse ele baixinho.
– Ora, Lorde Roger, não me lembro de vós tão galanteador.
Ele endireitou-se e fitou-a.
– E de que vos lembrais a meu respeito?
– Apenas que estáveis disposto a ajudar-me quando precisei de ajuda.
Douglas – chamou –, acolhe devidamente o Lorde Roger e os seus homens.
Roger viu o homem obedecer-lhe sem hesitação. Olhou em redor das
paredes despidas e simples de Larenston. O caminho para a península
estava pejado de casinhas muito pobres. Seria esta a riqueza total dos
MacArrans?
– Lorde Roger, vinde comigo ao salão de inverno para pormos a conversa
em dia. O que vos traz à Escócia? Oh, tem família neste país, não é
verdade?
Roger arqueou uma sobrancelha.
– Sim, tenho. – Seguiu-a pelas escadas acima, entrando noutra divisão
espartana, na qual um pequeno fogo ardia alegre e contente na lareira.
– Sentai-vos – Bronwyn lançou um breve olhar a Morag, e pediu à
mulherzinha reprovadora que lhes trouxesse vinho e refrescos.
Quando se encontraram sozinhos e sentados, Roger debruçou-se para ela.
– Serei sincero convosco. Vim saber se precisáveis de apoio. Quando
encontrei o Stephen na corte do rei Henrique e…
– Encontrastes o Stephen na corte! – exclamou Bronwyn.
Ele examinou-lhe a expressão.
– Julguei que soubésseis. Estava rodeado de mulheres e…
Bronwyn ergueu-se, acercando-se da lareira.
– Preferia não ouvir o resto do que contais – disse ela friamente.
Recordava agora tudo a respeito de Roger Chatworth. Não era a primeira
vez que espetava uma faca nas costas de Stephen.
– Lady Bronwyn – comentou ele em desespero. – Não o disse por mal.
Julguei que soubésseis.
Ela virou-se para ele.
– Cresci muito desde a última vez que vos vi. Já fui presa fácil para as
vossas maneiras elegantes, e já estive infantilmente irritada com o atraso do
meu marido para a nossa boda. Mas estou mais velha e muito, muito mais
sensata. Como tereis percebido, certamente, o meu marido e eu brigámos.
Se resolveremos ou não o assunto, ignoro, mas a disputa ficará entre nós.
Os olhos escuros de Roger semicerraram-se. Tinha um modo estranho de
inclinar a cabeça, como se espreitasse por entre o nariz estreito e aquilino.
– Julgais que vim espalhar boatos como a mulher de um pescador?
– Assim parece. Já haveis mencionado as mulheres que Stephen tinha à
sua volta.
Roger começou a sorrir lentamente.
– É possível que tenha mencionado. Perdoai-me. Fiquei apenas espantado
pela vossa ausência.
– E portanto quisestes contar-me as suas… leviandades?
Ele fitou-a com uma expressão corada e desperta.
– Sentai-vos, peço-vos. Não éreis assim hostil para comigo. Em tempos
dissestes que devíamos casar.
Ela ocupou a cadeira ao lado dele.
– Isso aconteceu há muito tempo. Foi pelo menos, há tempo suficiente
para as vidas e os sentimentos mudarem drasticamente. – Encarou a lareira,
calando-se.
– E não tendes curiosidade de saber qual é a real finalidade da minha
presença aqui? – Uma vez que ela não respondeu, ele prosseguiu. – Trago
uma mensagem de alguém chamada Kirsty.
A cabeça de Bronwyn ergueu-se subitamente, mas antes de responder,
Morag entrou com um tabuleiro cheio de comida. Parecia ter saído há
horas. A velha insistiu em deitar mais lenha na lareira e colocar perguntas a
Roger.
Bronwyn também tinha perguntas a fazer. Como conhecia ele Kirsty?
Que mensagem trazia? Estava relacionada com a mensagem que o
MacGregor enviara a Tam para se encontrar com Bronwyn?
– Já chega, Morag! – disse Bronwyn com impaciência, ignorando o olhar
da velha ao sair da sala. – Vamos! Que sabeis vós sobre a Kirsty?
Roger recostou-se na cadeira. Não esperava esta Bronwyn. Talvez por
estar de volta ao seu país, ou podia ser a influência de Stephen, mas não
encontrava a rapariga facilmente manipulável da última vez. Soubera parte
da história de Bronwyn e Stephen nas terras do MacGregor por acaso. Um
homem, pobre e esfomeado, pedira para se juntar à guarnição. Um dia,
Roger escutara acidentalmente o homem contar as suas aventuras na
Escócia com a arrebatadora senhora dos MacArrans. Roger levara consigo o
homem para casa e extraíra-lhe a história completa. Mas era apenas uma
parte, e Roger gastara um valor avultado para descobrir o resto.
Quando uniu por fim todas as peças, sabia que podia usá-las. Riu-se de
Stephen por se pavonear diante destes rudes escoceses com um traje e uma
forma de ser igualmente rude. Tragou o vinho, recordando com ódio a
injúria que sofrera às mãos de Stephen no campo de batalha. A história
daquela luta espalhara-se aos sete ventos, a ponto de ouvir sussurros de
«esta ataca pelas costas». Vingar-se-ia de Stephen pelo seu novo apodo.
Viera com a intenção de seduzir a esposa de Stephen e recuperar aquilo
pelo qual lutara. Mas Bronwyn frustrava-lhe os planos. Era nitidamente
uma mulher que jamais seguiria facilmente um homem. Talvez se tivesse
tempo… Mas não fazia ideia de quanto tempo Stephen se manteria ausente.
Começou então a congeminar um plano novo. Ah, sim, pensou, eis uma
forma de se vingar plenamente de Stephen.
– Então! – perguntou Bronwyn. – Qual era a mensagem? Ela precisa de
mim?
– Sim, muito – sorriu Roger. E eu preciso de ti mais ainda, pensou.
Capítulo Dezassete

Bronwyn jazia na cama e fitava a cobertura do dossel, completamente tensa


de entusiasmo. Pela primeira vez em semanas, sentia-se viva. Perdera a
sonolência, passaram as náuseas, e agora estava satisfeita com o que ia
acontecer.
Quando voltara para casa e Tam a informara da mensagem do
MacGregor, ela tinha-o ignorado, sentindo-se demasiado envolvida nos seus
problemas, na sua tristeza, para pensar em mais alguém. Stephen chamara-
lhe egoísta, acusando-a de nunca lhe dar ouvidos nem seguir os
ensinamentos. Agora tinha oportunidade de agir para o agradar. Stephen
sempre quisera que Bronwyn resolvesse de vez as diferenças com o
MacGregor, e agora Kirsty encontrara uma via.
Quando Tam lhe contara a mensagem do MacGregor, ela pensara sem
convicção, em encontrar-se com ele. O protesto dos homens abalara as
paredes. Bronwyn desconsiderara então o assunto e voltara a ter pena de si
mesma.
Agora isso terminara. Viu uma forma de reconquistar o coração de
Stephen. Tinha de demonstrar-lhe que aprendera algo com ele, e que não
era egoísta.
Roger Chatworth contara-lhe uma narrativa incrível: encontrara Kirsty e
esta pedira-lhe para informar Bronwyn de que organizara um encontro. O
MacGregor e a MacArran iriam encontrar-se a sós, apenas os dois, amanhã
à noite. Kirsty indicou que os MacGregors estavam tão contra o encontro
como deviam estar os MacArrans. Portanto, envidara esforços para montar
um encontro privado. Mandava saudades a Bronwyn e a Stephen e pediu
que fizesse isto pela paz entre os clãs.
Bronwyn afastou as cobertas e aproximou-se da janela. A lua ainda
brilhava no céu e havia, portanto, muito tempo. Iria encontrar-se com Roger
Chatworth à saída de Larenston Hall, junto aos estábulos, e ela conduzi-lo-
ia pelo caminho da península. Havia cavalos à espera deles, e juntos iriam
ao encontro de Kirsty e Donald.
Não foi fácil esperar. Aprontou-se muito antes de tempo. Por instantes
manteve-se ao lado da cama, afagou a almofada que Stephen usava para
dormir.
– Em breve, meu amor, em breve – murmurou. Logo que houvesse paz
entre os clãs, poderia andar de cabeça erguida novamente junto de Stephen.
Talvez assim pensasse que valia a pena o amor dela.
Foi fácil fugir do quarto. Ela e Davey, quando eram crianças, várias vezes
se tinham esgueirado para a estrebaria, ao encontro de Tam ou um dos
filhos deste. Rab seguiu-a pelos degraus de pedra gastos, pressentindo pela
dona que não podia fazer ruído.
Roger Chatworth emergiu das sombras, calado como um escocês.
Bronwyn anuiu-lhe rapidamente, e indicou a Rab que ficasse quieto. O
cão não gostava de Roger e manifestava bem este descontentamento. Roger
acompanhou-a pelo caminho íngreme e escuro. Ela sentia a tensão do corpo
dele, e várias vezes se agarrou à mão de Bronwyn em busca de apoio.
Agarrou-se a ela e parou até recuperar o fôlego.
Bronwyn tentou disfarçar o seu desagrado. Ainda bem que nem todos os
ingleses eram iguais a este. Agora sabia que havia homens corajosos, como
o marido e os seus irmãos. Homens aos quais uma mulher se podia apoiar, e
não o inverso.
Roger começou a respirar mais calmamente ao alcançarem o continente e
os cavalos. Mas não trocaram uma palavra até saírem do vale dos
MacArrans. Bronwyn contornou o vale ao longo da costa marítima.
Cavalgou devagar para Roger conseguir controlar o animal dele. A noite
estava negra e ela orientou-se mais por instinto do que pela visão.
Era praticamente manhã quando fizeram uma paragem no cume que
encimava as suas terras. Parou para que Roger pudesse descansar.
– Senti-vos cansada, Lady Bronwyn? – perguntou ele, com a voz trémula.
Para ele, o percurso era obviamente uma provação. Desceu do cavalo.
– Não devíamos continuar? – urgiu ela. – Não estamos muito longe de
Larenston. Quando os meus homens…
Parou porque não acreditava no que via. Roger Chatworth, com um gesto
fluido, tirou um machado pesado de guerra da sacola e golpeou Rab. O cão
observava a dona, mais preocupado com ela do que com Roger, e não
reagiu a tempo de se desviar do ataque fatal.
De imediato Bronwyn saltou da sela. Ajoelhou-se junto a Rab. Mesmo no
escuro, viu o enorme corte aberto no flanco do animal.
– Rab? – conseguiu dizer com uma garganta apertada. O cão mal mexeu a
cabeça.
– Está morto – disse Roger. – Levanta-te!
Bronwyn virou-se para ele.
– Tu! – Não desperdiçou mais energia com palavras. Num segundo estava
no chão, no seguinte voava pelo ar, faca na mão apontada ao pescoço de
Roger.
Ele não esperava aquela reação e cambaleou para trás com o peso dela. A
faca enterrou-se no ombro, e quase lhe cortava o pescoço. Ele agarrou o
cabelo de Bronwyn e puxou-lhe a cabeça para trás, no instante em que ela
levantava o joelho entre as pernas dele. Roger cambaleou novamente, mas
não a soltou, e ao cair no chão, arrastou-a consigo. Ela virou a cabeça para
o lado, mordendo-o até a soltar. Quando se viu livre, voltou a atacar com a
faca.
Mas esta nunca estabeleceu contacto pois quatro pares de mãos
agarraram-na e afastaram-na.
– Vocês demoraram! – admoestou Roger aos homens que seguravam
Bronwyn. – Mais um minuto e seria tarde de mais.
Bronwyn observou Rab, imóvel no chão, e depois Roger.
– Não há mensagem nenhuma da Kirsty, pois não? – Roger passou a mão
pelo corte no ombro.
– Que me interessam a mim os escoceses? Achas que entregaria
mensagens de um servo? Sou um conde, já te esqueceste?
– Já tinha esquecido – disse Bronwyn pausadamente – o que tu és.
Alguém que ataca pelas costas.
Foram as últimas palavras que disse durante algum tempo, pois o punho
de Roger voou na direção do seu maxilar. Bronwyn conseguiu desviar-se a
tempo para que o punho atingisse a face e não o nariz, como tencionava.
Ela caiu para a frente, inconsciente.
Quando Bronwyn acordou, não sabia onde estava. A cabeça latejava de
fúria, com uma intensidade jamais sentida, e tinha os pensamentos
desorientados. O corpo doía-lhe e a boca estava imóvel. Fez poucas
tentativas para raciocinar e adormeceu prontamente.
Sentia-se melhor quando voltou a acordar. Estava deitada, imobilizada, e
percebeu que metade da dor provinha da mordaça na boca. As mãos e pés
também se encontravam atados. Ouviu, e percebeu que estava numa
carruagem em cima de fardos de palha. Era de noite, pelo que teria passado
o dia inconsciente.
Estar imobilizada causava-lhe dores que lhe traziam lágrimas aos olhos.
As cordas cortavam-lhe a pele, e a boca encontrava-se seca e inchada da
mordaça.
– Já acordou. – Ouviu um homem dizer.
A carruagem parou, e Roger Chatworth debruçou-se sobre ela.
– Se prometeres que não gritas, dou-te água a beber. Estamos na floresta e
ninguém te ouve, mas quero a tua palavra.
Tinha o pescoço tão tenso que mal conseguiu mexê-lo. Deu-lhe a sua
palavra.
Ele endireitou-a e desatou a mordaça.
Bronwyn soube que era a sensação mais celestial da sua vida. Massajou o
queixo, retraindo-se ao tocar na zona ferida pelo punho de Roger.
– Toma – disse ele com impaciência, atirando-lhe uma caneca com água.
– Não temos a noite toda.
Ela bebeu profusamente.
– Para onde me levas? – arfou.
Roger tirou-lhe a caneca da mão.
– O Montgomery pode tolerar a tua insolência, mas eu não. Se quisesse
que soubesses, já te tinha dito. – Antes que ela deixasse de olhar com desejo
a caneca, Roger agarrou-lhe o cabelo, atirou fora a caneca meio cheia e
voltou a colocar a mordaça. Empurrou-a de volta à palha.
Bronwyn dormiu durante o dia seguinte. Roger atirou sacas de
serapilheira para cima dela, para a esconder. A falta de ar e movimento deu-
lhe tonturas. Delirou, meio acordada, meio adormecida.
Por duas vezes foi tirada da carruagem, para comer e beber, e teve
privacidade para as necessidades físicas.
Na terceira noite a carruagem parou. As sacas saíram de cima dela, e foi
levantada em peso. O ar frio da noite golpeou-a, como se tivesse caído na
água.
– Levem-na para cima – ordenou Roger. – Tranquem-na na sala de leste.
O homem levantou a forma inerte de Bronwyn com gentileza.
– Desamarro-a?
– Pode ser. Ela que berre o quanto quiser. Ninguém a ouvirá.
Bronwyn manteve os olhos fechados e o corpo inerte, mas procurou
recuperar a consciência. Começou a contar, enumerou todos os filhos de
Tam, e esforçou-se por recordar as respetivas idades. Quando o homem a
depositou na cama, já a mente funcionava em pleno. Tinha de fugir! E
agora, antes que o castelo iniciasse a rotina do dia, era a sua melhor
oportunidade.
Foi difícil manter-se imóvel e inerte enquanto o homem lhe desatava os
pés. Usando a mente e não os tornozelos, forçou o sangue para as
extremidades. Concentrou-se nos pés e tentou ignorar os milhares de
picadas dolorosas que subiam pelos pulsos.
A mordaça saiu por último, e ela fechou a boca, movendo a língua pela
secura interna. Manteve-se quieta, a mente veloz enquanto o homem lhe
tocava no rosto e no cabelo. Amaldiçoou aquele toque, mas dava ao menos
tempo ao corpo para se ajustar ao sangue que voltara a fluir.
– Há homens que têm tudo – comentou o homem com um suspiro de
desânimo, levantando-se da cama.
Bronwyn aguardou até ouvir passos e esperou que o homem se afastasse.
Abriu ligeiramente os olhos e viu-o à porta. Virou-se rapidamente e
descobriu um jarro sobre a mesa ao lado da cama. Rodou para o objeto,
agarrou-o e atirou-o pelo quarto. O jarro desfez-se ruidosamente contra a
parede.
Voltou a deitar-se, imóvel, olhos semicerrados, enquanto o homem acorria
ao ruído. Bronwyn saiu da cama em segundos e correu para a porta. O
tornozelo cedeu uma vez mas ela continuou sem olhar para o homem.
Agarrou a maçaneta da porta pesada e fechou-a com estrondo, correndo
então o ferrolho. Já ouvia o homem aos murros, mas o som era abafado pela
madeira grossa de carvalho.
Ouviu passos e mal teve tempo para se enfiar numa alcova com janela
escura, antes de Roger Chatworth se manifestar. Parou diante da porta,
ouvindo os murros do homem e a voz indistinta. Bronwyn susteve a
respiração. Roger sorriu, satisfeito e passou por ela em direção às escadas.
Bronwyn permitiu-se apenas segundos para acalmar o coração galopante,
e pela primeira vez esfregar os pulsos e tornozelos doridos. Mexeu o queixo
magoado repetidamente, avançando sorrateira pelas sombras atrás de Roger,
que descia as escadas.
Ele virou para a esquerda ao fundo da escadaria e entrou numa divisão.
Bronwyn escondeu-se na sombra ao lado da porta entreaberta. Espreitou
para o interior. Havia uma mesa, quatro cadeiras, uma vela grossa no meio
da mesa.
Uma mulher lindíssima sentava-se de perfil para Bronwyn. Usava um
vestido brilhante de cetim púrpura e verde. Os traços delicados do rosto
eram perfeitos, desde a boquinha aos olhos azuis que pareciam amêndoas.
– Porque a trouxeste contigo para a nossa casa? Pensei que a podias ter
sempre que quisesses – dizia a mulher num tom irritado e sarcástico,
incompatível com o rosto adorável.
Roger mantinha-se de costas para Bronwyn, sentado numa cadeira diante
da mulher.
– Não tinha alternativa. Ela não quis escutar o que tinha para lhe dizer a
respeito do Stephen.
– Não quis escutar? – zombou a mulher. – Raios partam os Montgomery!
O que fazia o Stephen na corte do rei Henrique, afinal?
Roger agitou a mão.
– Algo relativo a pedir ao rei que pare de atacar a Escócia. Devias tê-lo
visto! A corte estava quase em lágrimas com as suas histórias dos bravos
escoceses e os problemas que atravessavam.
Bronwyn cerrou os olhos por instantes e sorriu. Stephen!, pensou. O seu
doce, querido Stephen. Regressou ao momento presente e percebeu que
perdia tempo a ouvir aqueles dois. Tinha de fugir!
Mas as palavras seguintes de Roger detiveram-na.
– Como sabia eu que raptarias a Mary Montgomery ao mesmo tempo?
Bronwyn ficou totalmente imóvel, o corpo inteiro à escuta.
A mulher manteve o rosto virado ao sorrir alegremente, exibindo dentes
tortos.
– Queria raptar a mulher dele – disse ela com ar sonhador.
– Referes-te à mulher do Gavin, a Judith.
– Sim, a rameira que roubou o meu Gavin!
– Desconfio que nunca foi teu, e se foi, tu é que o despachaste quando
decidiste casar com o meu querido irmão, que já não está entre nós.
A mulher ignorou-o.
– Porque trouxeste a Mary em vez dela? – prosseguiu Roger. Parecia que
falavam do clima.
– Regressava ao convento em que vive, e estava à mão. Quero matar os
Montgomerys, um por um. Não interessa com qual comece. Conta-me sobre
esta que capturaste. É a esposa do Stephen? – A mulher continuou virada de
lado, mantendo o perfil para Roger e Bronwyn em simultâneo.
– A mulher mudou. Na Inglaterra, antes de casar, era facilmente
manipulável. Contei-lhe uma história revoltante sobre ter família escocesa.
– Fez uma pausa, soltando um riso sarcástico. – E ela acreditou que eu teria
familiares entre os porcos escoceses.
– Conseguiste fazê-la pedir que lutassem pela sua mão – disse a mulher
bonita.
– Era fácil colocar ideias na cabecinha oca – disse Roger. – E o
Montgomery estava disposto a lutar por ela. Estava com tanta tesão que os
olhos queriam saltar das órbitas.
– Disseram-me que é linda – comentou a mulher com grande amargura.
– Mais bela é toda a terra que possui. Se tivesse casado comigo, enchia-a
de agricultores ingleses e tirava proveito da terra. Os escoceses acreditam
que têm de partilhar a terra com os servos.
– Mas perdeste-a e à luta – disse a mulher, baixinho.
Roger levantou-se, quase derrubando a cadeira pesada.
– Aquele filho da mãe! – praguejou. – Humilhou-me. Riu-se de mim… e
com ele, a Inglaterra inteira.
– Preferias que te tivesse matado? – perguntou ela.
Roger colocou-se diante dela.
– E tu não preferias ter morrido? – perguntou.
A mulher baixou a cabeça.
– Ah, sim, sim – murmurou, mas depois levantou a cabeça. – Vão pagá-
las, não vão? Temos a esposa do Stephen e a irmã do Gavin. Diz-me, que
planos tens para elas?
Roger sorriu.
– A Bronwyn é minha. Se não poder ter as terras, aproveito-me da
mulher. A Mary é tua, obviamente.
A mulher levantou a mão.
– Ela não serve para nada. Tem medo de tudo e de todos. Talvez a mande
de volta para casa neste estado – disse com ódio puro, virando a cara, que
ficou completamente exposta a Bronwyn.
Foi uma combinação da face horrivelmente desfigurada da mulher com as
suas palavras a respeito de Mary que fez Bronwyn soltar uma exclamação.
Antes de conseguir mexer-se, já Roger alcançara a porta e prendia-lhe a
mão. Puxou-a para o interior do quarto.
Bronwyn fez uma careta de dor. Os dedos de Roger morderam-lhe a pele.
– Então! Eis a senhora que capturaste – disse a mulher com sarcasmo.
Bronwyn observou-a. O rosto outrora lindo ficara distorcido num dos
lados, sulcos profundos de cicatrizes horrendas fazendo descair o olho e
puxando a boca. Dava-lhe um ar maléfico.
– Olha bem! – guinchou a mulher. – Deves ver, pois um dia ajudarás a
pagar o que fizeste.
Roger soltou Bronwyn e agarrou as mãos da mulher.
– Senta-te! – ordenou. – Temos mais assuntos por resolver do que os teus
ódios imediatos.
A mulher sentou-se mas continuou a fitar Bronwyn.
– Onde está a Mary? – perguntou Bronwyn em tom baixo. – Se a
soltarem, não tentarei fugir novamente. Podem fazer comigo o que
quiserem.
Roger riu-se dela.
– É muito nobre da tua parte. Mas nada tens para dar em troca. Não vai
haver uma segunda oportunidade para fugires.
– Mas para que vos serve a Mary? Ela não fez mal a ninguém.
– Isto não é mal suficiente? – berrou a mulher, mostrando as cicatrizes.
– A Mary não fez isso – disse Bronwyn com convicção. Começava a crer
que as cicatrizes mostravam a verdadeira natureza daquela mulher.
– Caladas! – disse Roger. Virou-se para Bronwyn. – Apresento-te a minha
cunhada, Lady Alice Chatworth. Ambos temos motivos para odiarmos os
Montgomerys, e jurámos destruí-los.
– Destruí-los! – exclamou Bronwyn. – Mas a Mary…
Roger agarrou-lhe o braço.
– Não te preocupas sequer contigo?
– Sei o que querem os homens como tu – cuspiu. – Não consegues
arranjar mulher sem mentiras e traições?
Roger alçou a mão para a esbofetear, mas parou ao ouvir o riso de
cacarejo de Alice.
– Foi para isto que viajaste para a Escócia, Roger? – riu-se. – Tiveste de
trazê-la atada à carruagem?
Roger passou o olhar de uma mulher para outra. Agarrou então em
Bronwyn e puxou-a para fora da sala, arrastando-a pelas escadas acima,
parou diante da porta trancada e puxou-a então mais para o fundo do
corredor. Atirou-a para a ampla cama no meio do quarto. Cortinas de
veludo castanho-escuro caiam do dossel. Cortinados do mesmo tecido e cor
tapavam as janelas. Bordado dourado acompanhava elegantemente o
castanho.
– Despe-te! – ordenou.
Bronwyn sorriu-lhe.
– Jamais – disse com tom amigável.
Ele retribuiu o sorriso.
– Se dás valor à vida da Mary, vais obedecer-me. Há de custar-lhe um
dedo por cada segundo de hesitação.
Bronwyn soltou uma exclamação, e começou a desprender o broche.
Roger encostou-se a um baú alto e entalhado com gravuras, observando
com real interesse.
– Sabias que me embebedei na noite em que casaste? – perguntou. – Não,
claro que não sabias. Aposto que nunca mais pensaste em mim. Não gosto
de ser usado. E tu usaste-me num joguinho com o Stephen Montgomery.
Ela deteve-se, com a mão nos botões da camisa.
– Nunca te usei. Se tivesses ganho a luta, teria casado contigo. Julgava
que eras sincero quando disseste que tomarias conta do meu clã.
Ele fungou de desdém.
– Não empates. Quero ver o que me custou tanta dor e desonra.
Bronwyn mordeu as palavras. Queria dizer-lhe que ele causara a sua
própria desonra.
As mãos tremiam enquanto se desabotoava. Nunca se despira perante um
homem que não fosse Stephen. Piscou os olhos para impedir as lágrimas.
Stephen não voltaria a amá-la se outro homem a possuísse. Os ciúmes dele
faziam-no desconfiar de todos os atos de Bronwyn. Como ficaria depois de
Roger Chatworth se aproveitar dela?
Levantou-se, desatou o cinto e a saia, e deixou-os escorregar para o chão.
E como reagiria ao toque de Roger? Stephen só precisava de olhar para ela,
ficava logo com vontade de devorá-lo. O mero toque dele despertava-lhe
uma paixão avassaladora. Roger provocaria igual reação?
– Despacha-te! – ordenou Roger. – Há meses que aguardo isto.
Bronwyn fechou os olhos por instantes e respirou fundo, largando a
camisa no chão. Manteve o queixo erguido e os ombros esticados para trás.
Roger pegou numa vela e aproximou-se.
Observou-a, o olhar percorrendo a pele acetinada, os seios orgulhosos e
direitos. Tocou-lhe gentilmente na anca, passou o dedo pela suavidade em
volta do umbigo.
– Linda – murmurou. – O Montgomery fez bem em lutar por ti.
Uma pancada súbita na porta sobressaltou-os a ambos.
– Nem um pio! – alertou Roger, fitando a porta.
– Roger – disse a voz do outro lado da porta, a voz de um jovem. – Estás
acordado?
– Mete-te na cama! – disse Roger em surdina. – Esconde-te debaixo dos
lençóis e não faças barulho. Preciso de te ameaçar?
Bronwyn obedeceu rapidamente, feliz pela desculpa para esconder a sua
nudez da vista dele. Enterrou-se debaixo das peles e cobertores enquanto
Roger puxava apressado as cortinas em volta da cama.
– Brian, o que foi? – perguntou Roger numa voz mansa e totalmente
distinta, abrindo a porta. – Tiveste outro pesadelo?
Bronwyn deslocou-se silenciosa para espreitar pelas cortinas. Roger
acendeu várias velas sobre a mesa ao lado da cama. Afastou-se e ela
reparou no jovem que entrava.
Brian teria os seus vinte anos, mas o porte esquálido tornava-o em
aparência um mero miúdo. Avançava com um passo hesitante, como se
tivesse uma perna presa, mas aprendesse a andar coxeando ligeiramente.
Era sem dúvida irmão de Roger, uma versão mais fraca, jovem e delicada
deste irmão mais velho, forte e saudável.
– Devias estar na cama – comentou Roger num tom bondoso, uma voz
que Bronwyn não lhe conhecia. O amor de Roger pelo rapaz estava patente
em todas as palavras.
Brian sentou-se na cadeira.
– Esperava o teu retorno. Não consegui descobrir onde estavas. A Alice
disse… – Calou-se.
– Ela incomodou-te? – perguntou Roger, interessado. – Se assim foi…
– Claro que não – disse Brian. – A Alice é uma infeliz. Continua triste
com a morte de Edmund.
– Sim, deve ser isso – comentou Roger sarcasticamente, e mudou de
assunto. – Fui fazer uma visita às minhas outras propriedades, para garantir
que os servos não nos roubam.
– Roger, quem é a mulher que não para de chorar?
A cabeça de Roger esticou-se para cima.
– Eu… não sei a quem te referes. Não há mulher alguma a chorar.
– Há três noites que ouço um choro contínuo. Mesmo durante o dia
consigo ouvi-lo.
Roger sorriu.
– Talvez haja um fantasma na casa. Ou o Edmund… – Calou-se
abruptamente.
– Eu sei a que te referes – disse Brian sem hesitar. – Sei mais do nosso
irmão do que julgas. Ias dizer que o fantasma pode ser uma das mulheres de
Edmund. Talvez aquela que se matou na noite em que o assassinaram.
– Brian! Como é que sabes essas coisas? É tarde, e devias estar na cama.
Brian suspirou, mas aceitou a ajuda de Roger para se levantar.
– Vou para a cama. Vemo-nos pela manhã? A Alice fica mais bem-
disposta quando estás presente, e já tenho saudades da Elizabeth. O Natal é
curto.
– Sim, obviamente, cá estarei. Boa noite, maninho. Bons sonhos. – Ficou
parado por instantes depois de a porta se fechar.
Bronwyn não se mexeu, observando Roger. Podia ser mentiroso, podia
atacar um homem pelas costas mas adorava o irmão mais novo.
Roger virou-se e abriu as cortinas da cama.
– Esperavas que me tivesse esquecido de ti? – A voz era novamente fria.
Bronwyn esticou os lençóis até ao pescoço e recuou ate ao findo da
cama.
– Quem é a Elizabeth?
Roger lançou-lhe um olhar trocista.
– A Elizabeth é minha irmã. Vem cá.
– Mais nova ou mais velha do que o Brian? – Falava rapidamente.
– Mas queres ver a minha árvore genealógica? – Agarrou-lhe no braço,
puxou-a para si. – A Elizabeth é três anos mais nova que o Brian.
– Ela é… – Calou-se quando Roger a puxou para os seus braços e a
começou a beijar com sofreguidão.
Manteve-se muito quieta durante o beijo. Os lábios dele eram firmes e
agradáveis, o hálito doce, mas não havia chama. Passou a boca pelo
pescoço dela, acariciou-lhe as costas. Os dedos brincaram com a espinha de
Bronwyn, depois agarrou-a pelas nádegas e puxou-a contra si. Encontrava-
se totalmente vestido, e o veludo com enchimento da roupa era acolhedor
contra a pele desnuda.
Mas, para além da sensação agradável, nada havia. Sentia-se uma
estranha, observando o que acontecia sem participar.
– Não ofereces resistência? – perguntou Roger num sussurro roufenho,
um traço de humor na voz.
– Não – disse ela com sinceridade. – Eu…
Calou-a novamente com um beijo. Deitou-a na cama com gentileza, e
começou a beijar-lhe o pescoço enquanto as mãos acariciavam livremente
os seios. Os lábios seguiram para o lugar das mãos.
– Não, Roger, não ofereço resistência – disse ela, a voz completamente
sincera. – A bem dizer, não vejo que haja necessidade de resistir. Admito
que estava curiosa em descobrir como reagiria ao toque de outro homem. O
Stephen afirma que o quero tantas vezes que nem consegue recuperar.
Soltou um risinho, fitou o dossel, e pousou as mãos atrás da cabeça.
– Embora o Stephen nem sempre diga a verdade – riu-se. – Mas não é o
mesmo. Tocas-me nos mesmos lugares que o Stephen mas contigo nada
sinto. Estranho, não é?
Fitou Roger com olhos inocentes, que se debruçava sobre ela, as mãos
quietas, os olhos arregalados.
– Lamento imenso, não quero ofender-te. As mulheres devem gostar de ti.
Mas eu pertenço a um só homem.
Roger levantou a mão para lhe bater, mas o olhar de Bronwyn endureceu.
– Não luto contra ti nem reajo às tuas carícias. Perturba-te que não sejas
nem metade do homem que é o Stephen Montgomery? Na cama ou fora
dela?
– Hei de matar-te por causa disso! – rosnou Roger, atacando-a.
Bronwyn desviou-se, e ele aterrou de cara no colchão macio. Ela saltou
da cama e procurou uma arma, sem encontrar nenhuma.
Roger parou ao persegui-la. Raios, a mulher era mesmo uma figura
admirável. O cabelo preto rodava à volta dela como uma nuvem demoníaca.
O corpo seguro e orgulhoso provocava-o, qual rainha antiga e primitiva,
arrogante, insolente, ameaçando-o com a sua força menor.
Tudo o que ela dissera sobre o marido assolava-o. Ela conhecia bem os
homens… Cada palavra dita encolhera-lhe a paixão. Que homem a
possuiria, sabendo que ela se riria dele? Se o temesse, conseguiria violá-la,
mas aquele riso era arrasador.
– Guardas! – berrou.
Bronwyn sabia que ele pensava libertá-la do dever da sua cama. Apanhou
as roupas e quando a porta se abriu, já se enrolara na manta e tinha o resto
das vestes debaixo do braço.
– Leva-a para o quarto de leste – disse Roger com ar cansado –, e corto a
cabeça do homem que a deixar fugir.
Bronwyn não libertou a tensão até ouvir o ferrolho trancar a porta e se
encontrar a sós no quarto. Os guardas tinham libertado o homem que ela
trancara no quarto há horas.
Afundou-se na cama e imediatamente começou a tremer. Doía-lhe o
corpo após três dias atada na carruagem. Atormentava-a o medo por Mary e
agora o episódio com Roger tinha-a abalado ainda mais.
Outrora, ainda miúda, fora cavalgar com um dos homens do pai. Ao
pararem para dar descanso aos cavalos, o homem lançara-a por terra e
começara a despi-la. Bronwyn era extremamente inocente e ficou
aterrorizada. O homem também se despiu e quando se colocou por cima
dela, mostrou-lhe o membro como se estivesse tremendamente orgulhoso.
Bronwyn, que só tinha visto cavalos e touros, começou a rir-se, e ele perdeu
o vigor diante dela. Aprendera várias lições nesse dia. Primeira, nunca
passear sozinha com um homem, e segunda, o homem excitara-se com o
medo mas cedera perante o riso.
Ela não contou ao pai sobre o sucedido e três meses depois o homem foi
morto durante um assalto ao gado.
Devia sentir-se bem por ter magoado Roger, mas não se sentia. Tombou
no cobertores do leito, e escondeu o rosto, enterrando a cabeça. Sentia
tantas saudades de Stephen, precisava tanto dele. Era a fundação da sua
pessoa. Impedia-a de agir estúpida e impulsivamente. Jamais teria saído de
Larenston, se estivesse com ele. Rab continuaria vivo e Bronwyn não se
encontraria prisioneira de Roger Chatworth.
Stephen estava com o rei, pedindo ao homem para parar com os ataques à
Escócia. Ao país dela! Não era prova suficiente de que Stephen se tornara
escocês? Merecia o título acima dos outros.
Bronwyn não se apercebera de que chorava. As lágrimas começaram a
brotar silenciosamente mas depois tornaram-se soluços violentos. Jurou
que, se conseguisse salvar-se desta situação, seria sincera com Stephen. Dir-
lhe-ia que o amava que precisava dele. Ah, sim! Que precisava muito,
muito dele.
Ela chorou por Mary, Rab e Stephen, e acima de tudo por si mesma.
Tivera algo belo e desperdiçara tudo.
– Stephen – murmurou, chorando mais.
Quando o corpo secou e não conseguia chorar mais, adormeceu.
Capítulo Dezoito

Brian Chatworth manteve-se muito calado enquanto descia as escadas para


a adega. A mansão Chatworth fora erguida sobre um antigo castelo,
conquistado e destruído pelo avô. Havia quem dissesse ser má ideia montar
a casa sobre a do inimigo.
Brian recordou as palavras do irmão sobre o fantasma e sorriu. Roger
gostava de proteger a irmã e irmão mais novos. Em crianças, precisavam da
guarida do mais velho. Mas agora, desde a morte de Edmund, já não
precisavam de esconder-se nem de mentir. Uma mulher chorava algures e
Brian quis encontrá-la. Talvez uma ajudante de cozinha apaixonada por
Roger e a quem este não retribuiu o amor. Roger devia pensar que Brian
nada sabia do que se passava entre homens e mulheres, pois para ele, o
irmãozinho era ainda um miúdo tímido.
Deteve-se ao fundo das escadas. As adegas eram escuras e cheias de pipas
de vinho e barris de peixe em salmoura. Escutando com atenção, chegou-
lhe o indício de guardas a rir e praguejar. Enfiou-se entre os barris e dirigiu-
se para as traseiras, onde havia uma cela trancada. Avançava calado por
instinto, sem saber porquê, pois aprendera a fazê-lo quando Edmund era
vivo. Além disso, preferia que Roger não julgasse que faltava a Brian
confiança no irmão.
O pranto cresceu de volume ao aproximar-se da porta da cela. Era uma
lamúria baixa, provinda de um coração feminino. Eis o motivo de os
guardas se terem afastado para o fundo: não queriam ouvir o lamento
constante.
Brian espreitou para o interior da cela. Numa forma disforme ao canto,
via-se uma mulher com um hábito de freira.
Brian soltou uma exclamação ligeira ao retirar a chave pendurada no
prego da porta e destrancá-la. Abriu-se sem ruídos: as dobradiças estavam
bem oleadas.
– Irmã – murmurou Brian, ajoelhando-se ao lado dela. – Deixe-me ajudá-
la.
Mary fitou-o com medo no olhar.
– Solte-me, por favor – murmurou ela. – Os meus irmãos começarão uma
guerra por causa disto. Por favor! Não aguentaria vê-los feridos.
Brian fitou-a, atónito.
– Os seus irmãos? Quem é você? O que fez para o Roger a ter
prisioneira?
– O Roger? – perguntou Mary. – É ele o meu captor? Onde estou? Quem
é você?
Brian observou-a. O rosto oval apresentava-se inchado, os olhos
castanhos suaves estavam vermelhos e irritados. Recordou-lhe subitamente
a irmã, Elizabeth. Elizabeth era perfeita e adorável como um anjo, e esta
mulher parecia a Nossa Senhora.
– Sou o Brian Chatworth, e estamos na minha casa, a propriedade
Chatworth. O meu irmão Roger é o dono da casa.
– Chatworth? – perguntou Mary, endireitando-se. – O meu irmão esteve
em tempos apaixonado por uma mulher adorável casada com um
Chatworth.
Brian sentou-se sobre os calcanhares. Começava a entender o motivo do
cativeiro da mulher.
– Você é uma Montgomery! – exclamou. – Só conhecia os quatro irmãos.
Não sabia que havia uma irmã também.
– Sou a filha mais velha, Mary Montgomery.
Brian não reagiu durante minutos.
– Diga-me o que sabe. Os meus irmãos costumam proteger-me em
demasia. Porque estou presa? Porque odeia o seu irmão a minha família?
Brian sentiu uma proximidade com Mary.
– O meu irmão também me protege demais. Mas eu ouço e vejo coisas.
Contarei o que descobri. Uma rapariga de nome Alice Valence esteve em
tempos apaixonada pelo seu irmão, o mais velho, o Gavin, certo? – Mary
anuiu. – Mas por um motivo que desconheço, não se casaram. A Alice
casou com o meu irmão mais velho, o Edmund, e o Gavin casou com…
– A Judith – informou Mary.
– Sim, a Judith – prosseguiu Brian. – Uma certa noite, o meu irmão foi
morto. – Calou-se por instantes. Não referiu que era um homem malvado, o
irmão mais velho, nem como viviam todos com pavor dele. Nem referiu a
adorável jovem que cortou os pulsos na noite em que Edmund foi
assassinado.
– E a Alice ficou viúva – disse Mary baixinho.
– Sim, ficou. Acredito que terá tentado reatar com o Gavin. Houve um
acidente e apanhou com azeite a ferver no rosto. Ficou com cicatrizes
horríveis.
– E existirá uma relação entre isso e o facto de me encontrar aqui? Onde
para essa Alice?
– Vive connosco. Nunca teve mais ninguém. – Recordou a bondade do
irmão Roger. – No passado outono, o Roger lutou publicamente contra
outro irmão seu. Por causa de uma mulher.
– Deve ter sido o Stephen. Bronwyn… não contou nada. – Mary esfregou
a cara. – Não sabia de nada disto. Oh, Brian, o que vamos nós fazer? Não
podemos deixar que as nossas famílias entrem em guerra.
Brian sobressaltou-se com aquelas palavras. Como assim, «nós»? Como é
que ela podia assumir que ele ficaria do lado dela? Roger era irmão dele.
Claro que tomaria o lado de Roger. Devia haver um bom motivo para Roger
manter esta mulher calada e gentil na prisão.
Antes de Brian se poder manifestar, Mary disse:
– Porque coxeia? – perguntou delicadamente.
Brian sobressaltou-se novamente. Há muito que não lhe era colocada a
pergunta.
– A perna foi esmagada por um cavalo – disse sem emoção. Mary
encarou-o como se esperasse mais detalhes. Brian viu-se transportado para
uma época que preferia não recordar.
– Elizabeth tinha cinco anos – disse com uma voz distante. – Mesmo
então parecia um anjo. Um dos entalhadores usou-a como modelo para os
querubins da capela. Eu tinha oito anos. Brincávamos na areia do campo de
justas. O nosso irmão Edmund já era crescido e tinha vinte e um anos.
Fez uma breve pausa.
– Não me lembro de tudo. Posteriormente, dizia-se que o Edmund estava
bêbado. Não viu a Elizabeth nem me viu a mim ao entrar em carga no
campo. – Mary soltou uma exclamação de horror.
– Teríamos morrido se não fosse a intervenção do Roger. Tinha catorze
anos, era grande e forte. Correu para a frente do cavalo do Edmund e
agarrou em nós dois. Mas o casco do cavalo atingiu-lhe o braço esquerdo e
deixou-me cair. – Brian desviou o olhar. – O cavalo esmagou-me a perna do
joelho para baixo. – Soltou um sorriso débil. – Foi uma sorte não a ter
perdido. A Elizabeth disse que foram os cuidados do Roger que salvaram a
perna. Ficou ao meu lado durante meses.
– Adoras o teu irmão.
– Sim – respondeu Brian, simplesmente. – Ele… sempre nos protegeu, à
Elizabeth e a mim, enquanto crescíamos. Colocou a Elizabeth num
convento quando fez seis anos.
– E lá continua até hoje.
Brian sorriu.
– O Roger diz que procura um homem adequado para ela mas ainda não
encontrou ninguém. Onde estará o marido de um anjo? – Riu-se com a
memória de um comentário de Elizabeth. Sugeriu a Roger que lhe
encontrasse um demónio. Roger não gostou. Raramente se ria dos
comentários acutilantes de Elizabeth. A língua dela nem sempre condizia
com o seu ar doce.
– Não podemos permitir que as nossas famílias lutem entre si – dizia
Mary. – Já me disseste que o teu irmão é um homem bom e carinhoso. Está
apenas zangado com o Stephen. E sem dúvida que a tua cunhada também
estará zangada.
Brian quase se riu. Os ataques de loucura de Alice ultrapassavam a raiva.
Ficava por vezes completamente ensandecida, e precisava de ervas
soporíferas para acalmar. Berrava os nomes de Judith e Gavin Montgomery
constantemente.
– Falas tão pouco de ti – comentou Brian, delicadamente. – Aqui estás,
aprisionada, choras há dias, e contudo queres saber de mim. Conta-me,
porque choras? Por ti ou pelos teus irmãos.
Mary observou as mãos.
– Sou cobarde e fraca. Oxalá pudesse rezar como devia, mas os meus
irmãos ensinaram-me a ser realista. Quando descobrirem que desapareci,
ficarão furibundos. O Gavin e o Stephen farão preparativos para a guerra
sem alaridos, mas o Raine ou o Miles não serão nada calmos.
– O que farão?
– Ninguém sabe. Fazem o que for melhor a cada instante. O Raine é
normalmente gentil, um homem possante, mas não aguenta ver injustiças. E
o Miles tem um feitio terrível! Ninguém sabe o que fará.
– Temos de impedir isto – disse Brian, erguendo-se. – Eu falarei com o
Roger e exigirei que te liberte.
Mary levantou-se, era muito pequena ao pé dele.
– Será que as tuas exigências não o irritarão? Será que deves fazê-las?
Brian fitou-a, rechonchuda e macia, de olhos grandes e líquidos.
Sentia-se forte como uma montanha ao pé dela. Nunca pedira nada a
Roger… a não ser a sua própria vida. Ela tinha razão. Como fazer
exigências a quem adorava tanto?
Tocou no rosto de Mary.
– Irei tirar-te deste local. Assim prometo.
– E eu acredito em ti – disse Mary com grande confiança. – Agora tens de
ir.
Brian olhou em volta da cela atarracada e húmida. Havia palha no chão e
pouco limpa. A única mobília era um catre duro e um balde no canto.
– Este lugar é imundo. Tens de sair comigo.
– Não! – Ela recuou. – Temos de ter cuidado. Não podemos despertar a
ira do teu irmão. Se for como o meu, dirá coisas de que mais tarde se vai
arrepender, mas tendo-as dito terá de cumpri-las. Tens de esperar até ser
manhã, e falares com ele quando estiver repousado.
– Como podes tu preocupar-te com o meu irmão, quando implica mais
uma noite para ti nesta pocilga?
Respondeu-lhe apenas com um olhar.
– Vai em paz agora. Não tens de te preocupar comigo.
Brian fitou-a por instantes, depois pegou-lhe na mão e beijou-a.
– És uma boa mulher, Mary Montgomery. – Virou-se e partiu.
Mary desviou o olhar ao ouvir a porta ser novamente trancada. Esperava
não ter mostrado a Brian o pavor que a assolava. Algo correu pelo chão e
ela deu um pulo de susto. Não devia chorar, mas era terrivelmente cobarde.

Roger encarou o irmão mais novo com ar chocado.


– Quero que ela saia daquela cela – disse Brian baixinho. Fez tal qual
Mary tinha indicado, aguardando até nascer a manhã para enfrentar Roger.
Embora ele, Brian, não tivesse pregado olho, e Roger também não, a
deduzir pelas olheiras.
– Brian, por favor… – começou Roger naquele tom usado apenas para os
irmãos mais novos.
Brian não desistiu.
– Ainda não me disseste por que razão ela se encontra prisioneira, mas
independentemente disso, quero que a tires daquela cela.
Roger desviou o olhar para Brian não notar a mágoa que sentia. Como
explicar a sua humilhação às mãos dos Montgomerys? Magoara-o ver a
cunhada lançar-se a Gavin e ser rejeitada por ele. Depois Bronwyn
escolhera-o e ele sentira-se redimido, mas Stephen vencera com um golpe
de sorte que derrubara Roger. A raiva fê-lo atacar Stephen pelas costas.
Agora só queria que os Montgomerys soubessem que ele também ganhava.
– Ninguém lhe fará mal – disse Roger. – Prometo que não lhe faço mal.
– Mas porquê mantê-la cá? Solta-a antes que se torne uma guerra.
– Já é demasiado tarde para isso.
– Como assim?
Roger fitou o irmão mais novo.
– O Raine Montgomery conduzia várias centenas dos soldados do rei para
Gales, quando soube que eu tinha a Mary cativa. Então decidiu usar os
homens para nos atacarem.
– O quê! Vamos ser atacados? Não temos defesas. Não sabe que não pode
usar assim os homens, hoje em dia? Temos tribunais e leis que nos
protegem dos ataques.
– O rei falou com o Raine antes de chegar até nós. Estava tão furioso com
o Raine por usar os seus homens num conflito pessoal que o declarou fora-
da-lei. O Raine foi obrigado a refugiar-se na floresta.
– Santo Deus! – Brian respirou fundo, descaindo para uma cadeira. – Não
temos defesas como a fortaleza maciça dos Montgomerys. Se soltarmos a
Mary…
Roger fitou indignado o irmão.
– Não quis incluir-te nesta contenda. Tens de partir. Muda-te para uma
das minhas outras propriedades. Em breve irei juntar-me a ti.
– Não! – disse Brian com firmeza. – Temos de resolver esta disputa.
Enviaremos mensagens ao rei e aos Montgomerys. Até lá, cuidarei
pessoalmente da Mary. – Levantou-se e saiu a coxear da sala.
Roger fitou a porta depois de Brian a fechar. Rangeu os dentes, raivoso.
Depois tirou um machado de guerra da parede. Atirou a arma pela sala,
enterrando-se na porta de carvalho.
– Malditos sejam, Montgomerys – praguejou. Estava contente pela
decisão do rei. Só tiravam, os Montgomerys. Tinham tirado a beleza e
também a sanidade à cunhada. Tinham tirado a si todas as terras da Escócia
que deviam ser suas. E agora tentavam tirar a admiração do irmão. Brian
nunca antes desafiara Roger, nunca o contradissera em nada. Mas agora
Brian julgava-se capaz de tomar decisões e dar ordens a Roger.
A porta abriu-se e Alice entrou. O vestido era feito de cetim verde-
esmeralda orlado com pele de coelho pintada de amarelo. Um véu de seda
fina tapava-lhe o rosto.
– Acabei de passar pelo Brian – disse ela num tom conflituoso. – Estava a
ajudar a Montgomery a subir as escadas. Porque ordenaste que saísse da
cave? Uma mulher daquelas deve viver no meio dos animais.
– O Brian encontrou-a por iniciativa própria. Foi decisão sua cuidar dela.
– Cuidar dela! – guinchou Alice. – Vais tratá-la como uma convidada,
como aquela no piso de cima? – riu-se sarcasticamente. – Ou já não dás
ordens nesta casa? Parece que o Brian é o homem da casa.
– Tu deves conhecer todos os homens, certo? O que se dizia é que tinhas
ido com todos para a cama.
Alice sorriu-lhe.
– Tens ciúmes? Disseram-me que expulsaste a mulher do Stephen do teu
quarto, ontem à noite. Não foste capaz de «desempenhar» com ela? –
zombou. – Talvez seja melhor mandares o Brian cumprir essa tarefa,
também.
– Sai daqui! – disse Roger em voz baixa, que não deixava dúvidas sobre a
intenção.

***

Bronwyn contemplou a neve no pátio através da janela. Era prisioneira de


Roger Chatworth há um mês, e nesse período só conhecera uma ou duas
criadas. Traziam-lhe comida, lenha, roupa de cama lavada. O quarto era
limpo, o penico esvaziado, mas não falava com ninguém. Tentou fazer
perguntas às criadas, mas olharam-na com pavor e saíram aos bicos dos pés
do quarto.
Não havia método que não tivesse usado ao tentar fugir. Atara lençóis
entre si e descera pela parede exterior. Mas os guardas de Roger
capturaram-na de novo ao alcançar o chão. No dia seguinte, apareceu um
homem para montar grades na janela.
Até tentara atear fogo para criar uma diversão, mas os guardas
seguraram-na enquanto apagavam o fogo. Fizera uma arma a partir do cabo
de um atiçador da lareira, e ferira um guarda. Os dois guardas foram
substituídos por três, e Roger surgiu para lhe comunicar que a ataria se
causasse mais problemas. Ela suplicou a Roger que lhe desse notícias de
Mary. Os irmãos Montgomery sabiam ao menos que a irmã fora raptada?
Roger não lhe respondeu a nenhuma pergunta.
Bronwyn afundou-se na solidão. Para se ocupar, pensava em Stephen.
Teve tempo de sobra para rever todos os momentos da vida em conjunto e
identificou onde teria de mudar. Devia ter percebido que um povo inteiro
não podia ser tão mau como os homens que lhe lançavam olhares na casa de
Sir Thomas. Não devia ter ficado furiosa por Stephen se mostrar interessado
nela e não no clã. Não devia ter confiado tão completamente nas histórias
de Roger.
Não admirava que Stephen a chamasse de egoísta. Sempre parecia ver um
único lado do problema. Imaginava Stephen com o rei e sabia que quando –
e se – deixasse Roger Chatworth com vida, procuraria Kirsty para realizar
um acordo de paz com o MacGregor. Devia isso a Stephen.

– Brian, são adoráveis – Mary sorriu, aceitando os sapatinhos de couro. –


Estragas-me com mimos.
Brian contemplou-a, e jorrou amor do seu olhar. Tinham passado o último
mês juntos. Não voltara a pedir a Roger que a soltasse, porque Brian não
queria que partisse. Mary afastava a solidão da sua vida. Era habitual que
Roger se ausentasse em torneios e Elizabeth continuava confinada ao
convento. Quanto a outras mulheres, Brian descobrira há muito que se
sentia tímido e constrangido na presença feminina. Mary tinha mais dez
anos do que ele e igual inexperiência do mundo. Mary nunca se ria nem lhe
pedia para dançar ou esperava que a perseguisse pelo roseiral. Era calada e
simples, nada pedindo dele. Passaram os dias tocando o alaúde, e por vezes
Brian contava histórias, histórias que viviam dentro de si e que ele nunca
contara a ninguém. Mary escutava com atenção e fazia-o sentir-se forte e
protetor, um pouco mais do que um mero irmão mais novo.
Foi este novo sentimento protetor que o impedia de revelar que Bronwyn
também se encontrava prisioneira. Já não confiava cegamente no irmão
como no passado, e fazia perguntas aos criados, querendo descobrir o que
se passava na sua casa. Exigira imediatamente a libertação de Bronwyn, e
Roger acedera de imediato. Agora só Mary se mantinha aprisionada.
– É impossível estragar-te com mimos – sorriu ele.
Mary corou, e baixou as pestanas.
– Vem, senta-te ao meu lado. Sabes de alguma novidade?
– Não, nada – mentiu Brian. Sabia que Raine continuava a monte,
escondido numa floresta algures, chefe de um bando de rufias, a crer em
Alice. Mas Brian nunca contou a Mary os maus lençóis em que Raine se
metera.
– Ontem à noite chegou o frio – disse ele, aquecendo as mãos na lareira
do quarto. Por acordo mútuo, não falavam de Roger nem de Alice. Eram
duas pessoas solitárias que se uniram por acordo mútuo. O mundo deles
consistia num quarto grande e acolhedor no piso superior da propriedade
Chatworth. Tinham música, arte e alegria um no outro, e nenhum deles se
sentira tão feliz.
Brian recostou-se aos almofadões da cadeira diante da lareira e pensou
pela milésima vez que adoraria ficar assim para sempre. Não queria que
Mary regressasse à «outra» família.
Foi nessa noite que Brian contou os seus sonhos a Roger.
– Queres o quê? – exclamou Roger, com os olhos muito abertos.
– Casar com a Mary Montgomery.
– Casar! – Roger caiu na cadeira. Aliar-se com a família que ele
considerava inimiga sua! –A mulher pertence à Igreja, não podes…
Brian sorriu.
– Não fez ainda os votos. Vive com as freiras como sendo uma delas e
nada mais. A Mary é tão boa pessoa. Só quer ajudar o mundo.
Os dois homens foram interrompidos pelo riso agudo de Alice.
– Bem, Roger, agora é que foi. O teu maninho quer tomar por esposa a
irmã mais velha dos Montgomerys. Diz-me, Brian, que idade tem ela?
Idade para ser a mãe que sempre desejaste ter?
Brian nunca antes sentira raiva. Sempre fora protegido por Roger dos
problemas do mundo. Mas desta vez quis virar-se contra Alice.
Roger agarrou-o.
– Não é preciso nada disso.
Brian fitou Roger. Pela primeira vez na vida, Brian não considerou o
irmão como uma pessoa perfeita.
– Vais deixá-la dizer aquelas coisas? – perguntou baixinho.
Roger franziu o cenho. Não apreciava a forma como Brian o olhava, com
ar frio, como se não fossem amigos chegados.
– É óbvio que está errada. Mas diria que ainda não ponderaste bem no
assunto. Sei que és jovem e queres uma esposa e…
Brian esquivou-se a Roger.
– Sou demasiado estúpido para saber o que quero, é isso que julgas?
Alice berrou de riso.
– Responde-lhe, Roger! Vais deixar o teu irmão casar com uma
Montgomery? Já ouço os boatos em Inglaterra. Vão dizer que, se não lhe
espetaste a faca nas costas, espetaste-lhe outra coisa. Dirão que os
Chatworths apanham apenas os restos dos Montgomery. Não fiquei com o
Gavin. Tu não ficaste com a Bronwyn, e portanto enviaste o teu irmão
aleijado atrás da irmã beata.
– Cala-te! – vociferou Roger.
– A verdade dói, não dói? – provocou Alice.
Roger cerrou o queixo.
– O meu irmão não se casará com uma Montgomery.
Brian empertigou-se. Tinha metade da altura de Roger.
– Irei casar com a Mary – disse com firmeza.
Alice riu-se novamente.
– Devias tê-lo posto a cargo da outra. Podia tê-la aproveitado mas não
falaria de casamento.
– De que falas tu, bruxa? – perguntou Brian. – Qual outra?
Alice encarou-o através do véu.
– Como te atreves? – exclamou. – Como te atreves a chamar-me bruxa?
A minha beleza era tão grande que em tempos nem prestaria atenção a uma
coisa fraca e aleijada como tu.
Roger deu um passo em frente.
– Sai daqui antes que fiques com uma cicatriz no outro lado.
Alice arreganhou os lábios como resposta e virou-se para sair.
– Pergunta-lhe sobre a Bronwyn no piso de cima. – Riu-se antes de
abandonar o quarto.
Roger virou-se e encontrou o olhar frio de Brian. Desagradava-lhe aquele
olhar. Era como se o rapaz já não venerasse o irmão mais velho.
– Disseste que a tinhas libertado – comentou Brian. – Quantas mais
mentiras me contaste?
– Bem, Brian – começou Roger no tom de voz que aplicava aos irmãos
mais novos.
Brian afastou-se dele.
– Não sou uma criança e não serei tratado como tal! Que idiota fui! Não
admira que os Montgomerys não nos ataquem. Tens duas mulheres deles
em cativeiro. Porque te dei ouvidos? Nunca questionei o que fazias, pois era
o correto. Sentia-me demasiado feliz com a Mary para pensar pela minha
cabeça. Mas sempre tive a minha atenção noutro lado, certo?
– Brian, por favor…
– Não! – berrou o rapaz. – Desta vez vais escutar-me. Amanhã pela
manhã vou levar a Mary e a Bronwyn de volta para a família delas.
Roger sentiu os pelos eriçarem-se na nuca.
– São minhas prisioneiras e não farás nada disso.
– São tuas prisioneiras por que motivo? – perguntou Brian. – Porque
atacaste o Stephen Montgomery pelas costas? Porque ele te derrotou?
Roger cambaleou para trás.
– Brian, porque me falas assim? Depois de tudo o que fiz por ti?
– Estou farto de ouvir como salvaste a minha vida e a da Elizabeth! Farto
de agradecer-te todos os minutos da minha vida. Servi-te por ser o teu
maninho pequeno. Agora sou adulto e posso tomar as minhas decisões.
– Brian – murmurou Roger – nunca tentei pedir a tua gratidão. Tu e a
Elizabeth são a minha vida. Não tenho mais ninguém. Nem quis mais
ninguém.
Brian suspirou e a raiva abandonou-o.
– Sei que não. Sempre foste bom para nós, mas é hora de deixar-te e ter a
minha vida. Quero casar com a Mary, a sério. – Virou as costas. – Amanhã
levarei as mulheres para a casa delas.
Roger começou a tremer mal Brian saiu da sala. Nenhuma batalha nem
torneio o tinham deixado desgastado como este confronto com Brian. Aos
poucos, vira o irmãozinho querido e doce alterar-se. Vira a adoração cega
de Brian pelo irmão abandoná-lo.
Roger colapsou na cadeira e fitou o chão de mosaicos. Só tinha Brian e
Elizabeth. Os três tinham-se mantido juntos, uma força impugnável contra a
maldade de Edmund. Elizabeth fora sempre independente. A expressão
angélica escondia uma natureza forte e costumava fazer frente a Edmund.
Mas Brian sempre procurara em Roger o amor e a proteção. Brian ficava
contente se Roger tomasse as decisões por ele. E Roger adorava esse papel.
Adorava ser adorado por Brian.
Naquela noite a adoração tinha desaparecido. Brian passara de jovem
doce e afável a um homem arrogante, hostil e exigente.
E tudo por causa dos Montgomerys!
Roger não sabia quando começara a beber. O vinho estava ao seu dispor,
e ele bebeu sem pensar nas consequências. Só recordava o olhar frio de
Brian e que os Montgomerys até o amor do seu irmão lhe tinham roubado.
Quanto mais bebia, mais pensava nos problemas que os Montgomerys lhe
tinham causado. A beleza perdida de Alice era quase um insulto direto à sua
pessoa. Afinal, era parente dele. Judith e Gavin tinham brincado com ela;
pior ainda, riram-se da rapariga – tal como se riram de Roger. Ouvia as
zombarias dos homens da corte, quando lá aparecera depois da batalha com
Stephen. «Contaram-me que tentaste ficar com a capitãzinha do
Montgomery. Não te censuro, mas estavas tão interessado nela que atacaste
o Stephen pelas costas?»
As palavras atacavam-no vezes sem fim. O filho do rei Henrique
desposara uma princesa espanhola, e o rei não queria a boa disposição
arruinada pelas atividades pouco nobres de Roger.
Roger pousou com um estrondo a caneca de peltre sobre a mesa, e soltou-
se um pedaço do entalhe.
– Raios os partam! – praguejou. Brian ia desperdiçar anos de amor e
lealdade por uma mulher que mal conhecia. Recordou o truque de Bronwyn
quando se riu dele ao tentar fazer amor com ela. O truque de uma meretriz!
Tal como o truque de Mary que contou a Brian que não pertencia à Igreja.
Brian parecia julgar que Mary era pura, pronta para casar, mas ela era
esperta, capaz de seduzir um miúdo inocente dez anos mais novo. Esperaria
usá-lo para alcançar a liberdade, ou teria olho posto na riqueza dos
Chatworth? Os Montgomerys tinham por hábito casarem com as grandes
fortunas.
Roger levantou-se, hesitante. Era dever dele, enquanto tutor de Brian, de
mostrar ao irmão que as mulheres eram todas umas cabras mentirosas.
Eram como Alice ou Bronwyn. Não as havia doces e gentis, e decerto
nenhuma mereceria o irmão Brian.
Saiu da sala a cambalear e subiu as escadas. Não fazia ideia do seu
destino. Só parou quando chegou ao quarto de Bronwyn. A visão do cabelo
negro e dos olhos azuis pairava diante de si. Recordou todas as curvas do
corpo voluptuoso. Colocou a mão no ferrolho da porta antes de se recordar
da covinha do queixo, sempre esticada para ele em jeito de desafio.
Afastou-se da porta. Não, não estava assim tão bêbado, que suportasse ser
ridicularizado por ela. Não era possível ficar assim tão bêbado!
Subiu mais um lance de escadas, para o piso mais alto. Os problemas dele
foram causados pela vaca vestida de freira que espicaçava o irmãozinho. A
sua maldade provocava a divisão na família. Brian tinha dito que amanhã
abandonaria a propriedade Chatworth para casar com uma Montgomery e
deixar Roger sozinho. Como se os Montgomerys não tivessem família
suficiente, ainda tirariam a de Roger!
Roger levantou o ferrolho da porta do quarto de Mary. O luar entrava pela
janela, e uma vela noturna ardia ao lado da cama.
– Quem é? – murmurou Mary, endireitando-se na cama. A voz continha
medo.
Roger tropeçou numa cadeira e atirou-a contra a parede.
– Quem é? – perguntou Mary num tom mais alto, a voz já tremendo.
– Um Chatworth – rosnou Roger. – Um dos teus carcereiros. – Olhou do
cimo da sua altura para a mulher na cama. O cabelo castanho estava atado
numa trança. Os olhos abriram-se de medo.
– Lorde Roger, eu…
– Tu o quê? – perguntou ele. – Não vais receber-me na tua cama? Os
Chatworths não são todos bons? Se o Brian te pode soltar, eu também
posso. Vá, vamos ver o que tens tu para pores o meu irmão maluco.
Roger agarrou nos cobertores que Mary puxara até ao pescoço e
arrancou-os das mãos dela. Fitou com olhar vidrado a camisa de noite de
algodão. A maioria das mulheres não vestia nada ao deitar, mas esta, a
maior das prostitutas, tinha uma camisa de noite. Este facto enfureceu-o
ainda mais. Agarrou no colarinho da camisa e arrancou-o do corpo dela.
Não reparou no corpo nem escutou os gritos de terror. Só conseguia ouvir
Brian anunciar que abandonaria a sua casa por esta mulher. Iria mostrar a
Brian que era uma rameira e que não merecia o afeto do seu querido irmão.
Caiu por cima do corpo rechonchudo e inocente de Mary num estado
semiconsciente. Despiu o suficiente em si para realizar o feito. As pernas
dela estavam rígidas e unidas, e teve de forçá-las a abrirem-se. Os gritos
dela transformaram-se em lamúrias de terror. O corpo estava rígido como se
feito de metal.
Não teve prazer algum em violá-la. Estava seca e tensa, e Roger teve de
forçar a entrada. Segundos depois já tinha terminado. A bebida e o esforço
despendido derrubaram-no. Tombou de cima dela e caiu na cama. Agora
Brian não o abandonaria, pensou ao fechar os olhos. No Natal seguinte,
Brian, Elizabeth e ele estariam juntos, como sempre.
Mary ficou muito quieta enquanto Roger rolava para o lado. Sentia o
corpo violado, conspurcado. Pensou imediatamente nos irmãos. Como seria
capaz de encará-los, agora que se tornara o que Roger lhe tinha chamado,
uma rameira? Brian não voltaria a sentar-se com ela a conversar.
Calmamente, levantou-se da cama. Ignorou a dor no corpo e o sangue nas
coxas. Com extrema cautela, enfiou o seu único vestido. Era uma peça
simples de lã azul-escura, oferecida pelas irmãs. Olhou em volta do quarto
pela última vez e avançou para a janela.
O frio ar da noite golpeou-lhe o rosto, e ela encheu com ele os pulmões.
Levantou os olhos ao Céu. Sabia que o Senhor não a perdoaria pelo que fez,
mas nem ela se perdoaria a si mesma pelo que acontecera.
– Adeus, meus irmãos – murmurou ao vento. – Adeus, meu Brian.
Benzeu-se, cruzou os braços ao peito e saltou para as pedras lá em baixo.

Os animais da propriedade Chatworth pressentiram que algo acontecera,


antes dos seres humanos. Os cães começaram a ladrar; os cavalos ficaram
irrequietos.
Brian, perturbado e incapaz de dormir, vestiu um roupão e saiu para o
exterior.
– Que se passa? – perguntou a um moço da estrebaria que passou por ele
a correr.
– Uma mulher atirou-se da janela do último piso – disse este por cima do
ombro. – Vou acordar o Lorde Roger.
O coração de Brian parou ao ouvir as palavras do rapaz. Tinha de ser uma
das mulheres aprisionadas. Que fosse aquela que não conhecia, Bronwyn –
rezou. Mas sabia quem tinha morrido.
Avançou calmo para o lado da casa onde ficava a janela do quarto de
Mary. Abriu caminho pela multidão de criados que observavam o corpo.
– Ela foi violada – disse uma mulher, baixinho. – Está cheia de sangue!
– Até parece os tempos do Lorde Edmund. E eu que pensei que este seria
melhor.
– Desapareçam! – berrou Brian. Dava-lhe voltas ao estômago, vê-los
apreciar o espetáculo da sua amada Mary. – Ouviram? Saiam daqui!
Os criados não estavam habituados a receber ordens de Brian mas sabiam
reconhecer o tom de voz da autoridade. Deram meia-volta apressados e
foram esconder-se nos cantos escuros, de onde observaram Brian e esta
mulher que nunca tinham visto.
Brian alisou com ternura as roupas de Mary. Endireitou-lhe o pescoço do
ângulo não natural. Queria levá-la para dentro de casa e até fez algumas
tentativas, mas não tinha força suficiente. Mesmo a fraqueza alimentou a
raiva dentro de si. Os criados tinham assumido que Roger a violara, mas
Brian não acreditou neles. Um dos guardas!, pensou.
Erguendo-se, começou a imaginar torturas para o homem, como se isto
ajudasse a trazer Mary à vida.
Como se num transe, subiu as escadas para o quarto de Mary. Os guardas
tentaram impedi-lo mas recuaram ao ver-lhe a expressão. Abriu a porta e
entrou no quarto de Mary.
Fitou por instantes a figura de Roger, profundamente adormecido,
ressonando, deitado na cama de Mary. Não teve pensamentos, apenas um
sentimento que o assolou. Parecia crescer e ficar mais forte a cada minuto.
Com grande calma virou-se e pegou num jarro de água fria pousado na
mesa. Verteu-o sobre a cabeça de Roger.
Roger soltou um queixume e olhou para cima.
– Brian – disse com voz entaramelada e um débil sorriso. – Sonhava
contigo.
– Levanta-te! – ordenou Brian letalmente.
Roger despertou por completo. O treino da guerra permitia-lhe controlar
os sentidos na presença do perigo.
– O que se passa? É a Elizabeth… – Calou-se, quando se endireitou e
percebeu onde estava. – O que é feito da Montgomery?
Brian não mudou de expressão, feita de aço.
– Jaz morta nas pedras do pátio.
Um relampejo trespassou o rosto de Roger.
– Queria provar-te como era realmente aquela mulher. Queria mostrar-
te…
A voz baixa de Brian interrompeu-o.
– Onde está a mulher do Stephen Montgomery?
– Brian, tens de dar-me ouvidos – suplicou Roger.
– Ouvidos! – exclamou Brian. – Ouviste tu os gritos da Mary? Sei que era
uma mulher tímida e aposto que gritou imenso. Gostaste?
– Brian…
– Cala-te! Disseste-me as tuas últimas palavras. Vou buscar a outra
mulher que tens prisioneira e partirei com ela. – Os olhos estreitaram-se. –
Se te voltar a ver, mato-te!
Roger tombou para trás como se tivesse sido golpeado. Viu Brian
desaparecer num torpor. Fitou a mancha de sangue nos lençóis a seu lado e
pensou na mulher morta. Que tinha ele feito?
Brian não perdeu tempo a encontrar Bronwyn. Sabia que estaria no quarto
onde Edmund mantinha as suas mulheres. Mais uma vez, os guardas à porta
não o impediram. Sentia-se os efeitos da tragédia daquela noite até do outro
lado da parede.
Bronwyn estava acordada e preparada quando Brian entrou no quarto
dela.
– O que aconteceu? – perguntou baixinho ao rapaz com ar duro diante de
si.
– Sou o Brian Chatworth – anunciou. – Vou levá-la para a sua família.
Está pronta?
– A minha cunhada também se encontra prisioneira. Não parto sem ela.
Brian retesou o maxilar.
– O meu irmão violou a sua irmã e ela matou-se.
Disse-o sem emoção como se nada significasse para si, mas Bronwyn
pressentiu algo mais profundo. Mary, pensou, minha doce, querida,
adorável Mary!
– Não podemos deixá-la aqui. Temos de devolvê-la aos irmãos.
– Não se preocupe com a Mary. Eu tomo conta dela.
A forma como ele disse o nome da rapariga foi bastante reveladora para
Bronwyn.
– Estou pronta – disse ela baixinho e seguiu atrás dele.
Saindo para o frio ar da noite, Brian voltou-se para ela.
– Vou chamar um guarda para a acompanhar. Irá levá-la para onde quiser.
Ou pode regressar comigo para o castelo dos Montgomery.
Bronwyn não perdeu tempo a tomar uma decisão. Tivera um mês inteiro
para pensar no assunto, trancada a sós no quarto. Tinha de fazer as pazes
com os MacGregors antes de rever Stephen. Tinha de provar que o amor
dela era merecido.
– Preciso de regressar à Escócia, e sem guardas ingleses. Será mais fácil
viajar sozinha.
Brian não discutiu com ela, imerso no seu ódio e amargura. Fez um aceno
rápido.
– Terá um cavalo e os mantimentos de que necessitar. – Virou-se para
partir, mas ela segurou-o pelo braço.
– Tomará conta da Mary?
– Com a minha vida – disse ele do fundo da alma – e também vingarei a
sua morte. – Afastou-se.
Bronwyn franziu o cenho. Mary detestaria vinganças. Subitamente olhou
em volta e apercebeu-se pela primeira vez que estava em liberdade. Tinha
de se despachar, antes de despertar a violência. Havia muito por fazer.
Quem sabe se salvar vidas, mesmo sendo escocesas, satisfaria o espírito de
Mary. Virou para as cavalariças.
Capítulo Dezanove

Bronwyn encostou a cabeça ao dorso quente da vaca, enquanto a


ordenhava. Estava contente por ter vindo para a casa dos pais de Kirsty ao
invés de regressar a Larenston. Kirsty e Donald tinham levado o pequeno
Rory de volta para casa, no norte. Bronwyn virou-se para o cavalo,
preparando-se para montar quando Harben a agarrou.
– Fica connosco, moça, até falares com o MacGregor. Se quiseres, claro.
Ela fitou Harben, depois Nesta e novamente Harben.
– Há quanto tempo sabem?
– O Donald contou-me quando te foste embora. Eu já desconfiava. Não
falas como uma mulher qualquer. Tens mais…
– Confiança em mim mesma? – perguntou Bronwyn esperançosa.
Harben fungou.
– É mais insolência. – Fitou-a intensamente. – O MacGregor vai gostar de
ti. – Os olhos desceram à barriga que crescia. – Já percebi que o teu homem
gostou da minha cerveja.
Ela riu-se dele.
Harben conduziu-a para o casebre.
– Uma coisa que não entendo. És a chefe MacArran, isto vejo eu, mas não
vejo o teu homem como inglês. Parece mais um MacArran do que inglês.
Entraram na casa, a rirem-se. Nesta sorriu-lhes. Ela cuidava da quinta, e
viu que Bronwyn e Harben trabalhavam sem pararem de discutir.
Demoraram dias a combinarem um encontro com o MacGregor. Ele
concordou que não contaria a ninguém nem traria homens consigo, tal
como Bronwyn. Na manhã seguinte, ao raiar do dia, na neblina da charneca,
reunir-se-iam.
Ela trabalhou a vaca mais intensamente, e afastou uma madeixa de cabelo
que a incomodava. Acabou de ordenhar, enxotou o cabelo, e levou o balde
para o fundo do celeiro, notando que a noite caía. Ao caírem as últimas
gotas do balde, ouviu um ruído que a faz parar de imediato.
Era um latido pequeno, um som minúsculo, mas algo a fizera recordar
vivamente o Rab e vieram-lhe lágrimas aos olhos. Recordou nitidamente a
imagem de Rab no chão, a ferida aberta no flanco.
Ouviu-se novamente o som, e ela virou-se, com o balde ainda na não. Ali,
calado, de olhos brilhantes e cauda agitada, encontrava-se o Rab.
Mal teve tempo de largar o balde, porque no instante seguinte setenta
quilos caninos tombaram sobre ela. O cão atirou-a contra a manjedoura e
quase a partiu ao meio.
– Rab! – murmurou, abraçando o cão em resposta. – Rab! – riu-se
enquanto ele ameaçava afogá-la na sua exuberância. – Oh, meu querido cão
– exclamou. – Onde estiveste? Pensei que tinhas morrido! – Enterrou a cara
no pelo.
Subitamente, ouviu-se um assobio agudo e Rab ficou hirto. No instante
seguinte caiu por terra, diante dela.
– O que foi, meu querido?
Olhou para cima e descobriu Stephen. Tinha o cabelo mais curto mas
trajava ao modo escocês. Examinou-o de cima a baixo. Era como se tivesse
esquecido a sua altura, a sua força e os seus músculos. Os olhos azuis
fitaram-na com intensidade.
– Posso ter a mesma receção que o Rab? – perguntou Stephen, baixinho.
Ela nem pensou duas vezes: limitou-se a saltar para ele, braços em torno
do pescoço, pés levantados do chão.
Stephen não disse nada. Apenas começou a beijá-la com toda a ânsia que
sentia. Decorrera tanto tempo desde que lhe tinha tocado. Deu um passo
atrás, carregando-a, e caiu numa meda de feno.
Mesmo enquanto caiam, as mãos dele procuraram os botões da camisa de
Bronwyn.
– Não podemos… – Bronwyn murmurou ao encontro dos lábios dele. –
Harben…
Stephen mordeu-lhe o lóbulo da orelha.
– Disse-lhe que tínhamos planeado uma orgia até ao fim do dia.
– Não disseste nada!
– Claro que sim! – brincou ele, com riso nos olhos. Depois a expressão
alterou-se. Os olhos abriram-se muito enquanto a observava com espanto.
No momento seguinte rasgava-lhe as roupas e fitava a curva dura do
ventre.
Virou-se para ela com uma pergunta.
Ela sorriu e indicou que sim.
O berro de Stephen de pura felicidade espantou as galinhas.
– Um bebé! – riu-se. – O Harben bem tinha razão que a infusão caseira
fazia efeito.
– Já estava de bebé antes de encontrarmos a Kirsty, foi o que a Morag
disse. – Ele deitou-se ao lado dela e apertou contra si o corpo nu da esposa.

– Bem, então terei sido eu a causa e não o Harben – indicou ele com uma
alegria íntima e muito profunda.
Bronwyn encostou-se a ele e esfregou a perna contra a dele.
– Talvez tenha sido a infusão – disse triste. – Não me lembro de mais
nada que me tenha posto grávida.
Ele riu-se, e mexeu-se rapidamente, puxando-a de barriga para baixo no
feno. Prontamente se livrou da manta escocesa. Manteve o joelho na curva
dorsal da rapariga. Ficando nu, dobrou-se e beijou-lhe a dobra dos joelhos.
– Não me esqueci totalmente de ti – murmurou, e passou os dentes pelos
tendões da perna. As mãos acariciaram-lhe as pernas, e a boca atormentou-
a. Ela gemeu sob ele e tentou virar-se, mas ele impediu-a e continuou a
torturá-la docemente.
A pele dele contra a sua causou arrepios em todo o corpo de Bronwyn. A
boca dele subiu pela espinha dorsal, as suas pernas contra as dela. A rigidez
das pernas cabeludas excitou-a ainda mais. Grandes mãos acariciaram-lhe
as costas, brincando com a sua macia figura.
Por fim, ela percebeu que não aguentaria mais e ele virou-a. Beijou-a, e
com a mão esfregava a barriga redonda, subindo depois para os peitos. Ela
arqueou-se contra o corpo masculino quando Stephen levou a boca aos
seios.
Ele voltou a subir, dentes percorrendo o pescoço dela. Bronwyn agarrou-
o, puxou-o para cima dela.
– Tendes fome, minha senhora? – rosnou no ouvido dela.
Ela mordeu-o, quase com força excessiva, e no instante seguinte Stephen
penetrou-a. Há tanto tempo que não estavam juntos, e a boca de Stephen
nos joelhos dela excitara-a febrilmente. Ao fim de poucos impulsos ambos
tremiam em espasmos amorosos.
– Oh, Stephen – murmurou ela, agarrando-o contra si. Era bom sentir-se
novamente segura, não estar só. Não notou que chorava.
Stephen saiu de cima dela e puxou-a para o refúgio dos seus braços
fortes. Tapou-os com a manta, e Rab encostou-se às costas da dona.
A segurança que sentia fê-la chorar ainda mais.
– Foi horrível? – perguntou Stephen, baixinho. – Estávamos tão
impotentes, mas não podíamos fazer muito mais.
Ela enxaguou as lágrimas e fitou-o.
– A Mary?
Ele baixou a cabeça.
– O Brian Chatworth trouxe-a para nós. – Ficou calado por instantes. Não
era o momento certo para falar da sua dor, e raiva, que lhe causava a morte
da irmã. A doce e terna Mary, que na vida só praticara o bem, não merecia
aquela morte tão vil. Miles quase tinha matado Brian antes de Gavin e
Stephen o impedirem. Quando Brian contou a história, reconheceram que,
mesmo cativa, Mary conseguiu transmitir amor. A miséria de Brian era
óbvia, ao carregar o corpo inerte da mulher que amava.

***

– O Brian foi à procura do Raine, seja onde for que esteja – prosseguiu
Stephen. – Disseram-nos que se escondia na floresta. Porque não voltaste
para Larenston? O Tam envelheceu vinte anos no último mês. Sabe tão
pouco do que aconteceu. Encontraram o Rab pela manhã e o Tam estava
certo de que tinhas morrido.
– Quis honrar a Mary.
– A Mary? Vieste para a casa do Harben por causa da Mary?
Bronwyn desatou a chorar com força.
– Tinhas razão. Pensei nisso durante tanto tempo. Sou muito egoísta e não
mereço o teu amor.
– Mas de que raios falas tu? – perguntou ele.
– O que disseste. Quando abraçavas aquela mulher. – Ela fungou
desajeitadamente.
Stephen franziu a testa, procurando entender a que se referia ela. Desde
que casaram, ele não tocara noutra mulher. Todas as outras nada
representavam, quando comparadas com a beleza e alma de Bronwyn.
Sorriu ao recordar a noite no castelo de Gavin.
– Aggie! – riu-se. – É a meretriz do castelo. Estava eu ali sentado com ar
triste e miserável, e ela entra-me pelo quarto, abre a blusa e atira-se para o
meu colo.
– Mas não a afastaste! Quando entrei, estavas a apreciá-la bem.
– Apreciá-la? – perguntou, encolhendo os ombros. – Sou homem, e posso
estar zangado e perturbado, mas ainda não morri.
Bronwyn agarrou num pedaço de feno e atirou-lho à cabeça.
Ele prendeu-lhe os braços de cada lado.
– Conta-me o que eu disse nessa noite – insistiu ele.
– Não te lembras! – Como seria possível esquecer-se de um assunto tão
importante para ela?
– Só me lembro de berrarmos um com o outro, depois de montar o
cavalo. Nem me recordo do meu destino. Durante a cavalgada, caí por terra
e adormeci. Pela manhã percebi que tinha feito uma parvoíce e que te tinha
perdido, e portanto decidi fazer algo para te reconquistar.
– Foi por isso que quiseste falar com o rei Henrique? Para me
reconquistares?
– Não foi por nenhum outro motivo – disse ele. – Odeio a corte. Tanto
desperdício!
Ela fitou-o, e riu-se.
– Agora pareces um escocês a falar.
– O rei Henrique também afirmou que eu já não parecia inglês mas
escocês.
Ela riu-se e começou a beijá-lo.
Ele afastou-a.
– Ainda não me deste resposta. Durante a minha estadia na corte, julguei-
te com os meus irmãos. O Gavin ficou tão zangado que não quis escrever-
me. Deve ter assumido que eu sabia que tinhas saído de casa nessa mesma
noite. Tu e o Miles pregaram-lhes um susto de morte, sabias?
– Mas tu, não? – perguntou ela. – O que pensaste quando descobriste que
eu regressara para a Escócia?
– Nem tive tempo para pensar! – comentou com desagrado. – O Gavin, o
Raine, o Miles e a Judith pregaram-me sermões intermináveis. Quando
acabaram, deixaram de falar comigo.
– E durante esse tempo todo eu encontrava-me na Escócia, e tu nem
sequer me mandaste uma mensagem!
– Mas tinhas-me deixado! – quase berrou. – Tu é que devias enviar-me
uma mensagem!
– Stephen Montgomery! – exclamou ela. – Não te deixei. Tu disseste que
tinhas partido para a corte do rei Henrique. Ficaria eu à espera que
voltasses? O que diria à tua família, que me trocaste por uma meretriz
gorda? E aquilo que disseste! – Desviou o olhar.
Ele pousou os dedos no queixo dela e voltou-lhe o rosto para si.
– Quero saber o que disse. Porque me deixaste? Conheço-te, e se fosse
apenas o caso da meretriz, não terias partido. O mais certo é que a
perseguisses com um ferro de marcar gado.
– Ela merecia a tortura! – comentou Bronwyn com fervor.
O tom de Stephen era firme, quase frio.
– Quero ouvir o que tens para dizer.
Embora ele se encontrasse por cima dela, Bronwyn desviou o olhar. As
lágrimas surgiam sem dificuldade. Nunca chorara tanto na vida, pensou
com repulsa.
– Disseste que eu era egoísta, demasiado egoísta para amar. Disseste que
me escondia atrás do clã porque tinha medo de crescer. Disseste… que ias à
procura de uma mulher que não fosse fria e que te desse o que precisavas.
A boca de Stephen abriu-se de espanto, e começou a rir.
Ela fitou-o chocada.
– Não vejo que as minhas fraquezas sejam motivo de riso – disse
friamente.
– Fraquezas! – exclamou ele, entre gargalhadas. – Céus! Devia estar
mesmo bêbado! Nem sabia que era possível ficar assim tão bêbado.
Ela tentou sair de debaixo dele.
– Não te rias de mim! Talvez seja a minha natureza egoísta que me
impede de ver o humor nas tuas palavras.
Stephen puxou-a de volta para si. Ela empurrou-o, e por instantes ele
deixou-a vencer a luta, rindo, e a puxá-la para debaixo de si.
– Bronwyn – disse com seriedade –, ouve-me. És a pessoa mais altruísta
que conheço. Nunca vi ninguém preocupar-se tão pouco consigo e tanto
com os outros, como tu. Não percebes que é por isso que fiquei tão zangado
quando te vi descer pela falésia? Tinhas o poder para ordenares a outro que
fizesse o salvamento, ou até seguires o conselho do Douglas e dares o Alex
como morto. Mas tu, nunca! Nunca a minha querida, doce senhora.
Pensaste apenas na vida de um dos teus membros do clã, e não em ti.
– Mas tive tanto medo – confessou ela.
– Claro que tiveste! Isso só enaltece a tua coragem, e o teu altruísmo.
– Mas porquê?… – começou ela.
– Porque te chamei de egoísta? Talvez porque estava magoado, por te
amar tanto e tu não me amares. E para dizer a verdade, fazes-me sentir
muito mortal. Receio não ter metade da tua coragem.
– Oh, Stephen, não é verdade. És muito corajoso. Derrubaste quatro
ingleses apenas armado com um arco e flecha, quando estivemos na casa da
Kirsty pela primeira vez. E foi preciso coragem para largares as roupas
inglesas e tornares-te escocês.
– Tornar-me escocês? – perguntou ele, um cenho erguido. Estava muito
sério. – Disseste em tempos que só me amarias se eu me tornasse escocês.
Aguardou mas ela não reagiu.
– Bronwyn, amo-te, e o meu maior desejo é que me ames também. –
Levou o dedo aos lábios dela e fez um olhar ameaçador. – E se tu repetires
«claro que gostamos um do outro» ainda parto o teu pescocinho.
– Claro que te amo, palerma! Porque julgas que me dói o estômago e a
minha cabeça fica mareada quando estás por perto? E piora quando te
afastas. A única razão para ter acompanhado o Roger Chatworth foi para te
provar que eu não era egoísta. Teria feito de tudo para me amares.
– Fugires com o meu inimigo não é prova do teu amor por mim – disse
ele friamente, antes de se abrir num sorriso. – Então, afinal amas-me ou por
minha causa ficas maldisposta?
– Oh, Stephen – riu-se Bronwyn, percebendo que acreditava nela. Não a
acusou de ter dormido com o Roger Chatworth. Começava a controlar os
seus ciúmes!
Subitamente calaram-se ambos. Tinham os dois sentido um movimento
abrupto na barriga dela.
– O que foi isso? – perguntou ele.
– Talvez um pontapé – respondeu ela, espantada. – O teu filho deu-nos
um pontapé.
Stephen saiu de cima dela e acariciou-lhe a barriga com reverência.
– Já sabias que estavas grávida quando me deixaste?
– Não te deixei – sublinhou ela –, mas sim, sabia.
Ele ficou calado, mantendo a mão quente pousada na barriga nua.
– Estás contente por termos um filho? – murmurou ela.
– Um pouco assustado, talvez. A Judith perdeu o primeiro. Não quero que
isso te aconteça.
Ela sorriu-lhe.
– Como pode acontecer-me seja o que for, enquanto estiveres por perto
para me protegeres?
– Proteger-te! – explodiu ele. – Nunca me dás ouvidos, nunca segues o
que eu digo. Drogas-me. Abandonas a proteção da minha família a meio da
noite. E…
Ela levou um dedo aos lábios dele.
– Mas amo-te. Amo-te muito, muito e preciso de ti. Da tua força, da tua
sensatez, da tua lealdade, e dos teus modos apaziguadores. Impedes-me e ao
meu clã de declararmos guerra aos nossos inimigos. E fazes-nos ver que os
ingleses não são todos ignorantes, gananciosos e mentirosos…
Ele acalmou-a com um beijo suave.
– Não estragues tudo – disse ele sarcasticamente. – Também te amo.
Amo-te desde o instante em que te vi com o teu clã. Nunca conhecera uma
mulher bonita, exceto a Judith, que fosse mais do que um ornamento. Foi
um choque descobrir que os teus homens te davam ouvidos e ver a forma
como te respeitavam. Foi a primeira vez que te vi para além de…
Os olhos dela brilharam.
– Uma boa diversão na cama?
Ele riu-se.
– Sim, sem dúvida. – Começou a beijá-la com intenções mais sérias,
explorando com as mãos o corpo dela.
– Stephen – murmurou ela, quando a beijava atrás da orelha. – Amanhã
encontro-me com o MacGregor.
– Ainda bem – murmurou ele, descendo para o pescoço. – Muito bem.
Ela virou a cabeça para ser beijada na boca.
Subitamente ele afastou-se dela. Rab soltou um latido de alerta. Stephen
fitou a mulher, horrorizado.
– Estás a brincar!
Ela sorriu com ar doce.
– Amanhã pela madrugada encontro-me com o MacGregor. – Levantou a
cabeça e recomeçou a beijá-lo.
Ele afastou-se e pôs-se direito.
– Maldita sejas! – disse por entredentes. – Vais voltar ao mesmo? Sem
dúvida, vão sozinhos para um local secreto.
– Sozinhos, sim. Não posso pedir ao meu clã para me acompanhar.
Tenciono acabar com esta guerra antes de mergulhar nela a sério.
Stephen cerrou os olhos por instantes e tentou acalmar-se.
– Não podes encontrar-te com o homem a sós. Estás proibida.
O rosto de Bronwyn ficou incrédulo de imediato.
– O quê? Proíbes-me! Como te atreves! Esqueces-te que sou líder
MacArran? Lá por te amar, não tens direitos sobre os meus deveres de
chefe.
– Calas-te por um instante, por favor? – pediu ele. – Pensas sempre que
fico contra ti. Escuta-me. Quem mais sabe do encontro?
– Só o Harben. Tratou de tudo. Até nem contámos à Nesta que se tinha
marcado a hora, para não lhe criar expectativas.
– Expectativas! – exclamou ele. – Só pensas nisso? Nos outros?
– Como se fosse mau.
– No teu caso, às vezes é. – Tentou acalmar-se novamente. – Bronwyn,
não percebes que tens de pensar em ti também?
– Mas penso! Quero que o meu clã tenha paz.
Stephen fitou-a com grande amor.
– Tudo bem, ouve. Imagina isto. Tu e o MacGregor encontram-se num
lugar solitário, sem dúvida com nevoeiro, e a única pessoa que sabe do
encontro é o Harben. E se o MacGregor decide terminar a rivalidade com os
MacArrans matando a chefe deles?
– Que insulto! – exclamou ela. – Trata-se de um encontro pacífico. O
MacGregor não faria isso.
Ele levou as mãos ao céu, como se a pedir ajuda.
– Não admites nada contrário ao que pensas, pois não? Há seis meses
odiavas tudo no MacGregor e hoje queres entregar a tua vida ao homem.
– Que alternativa me resta? Se o MacGregor e eu alcançarmos um acordo
de paz, podemos parar as mortes. Não é o que tu querias? Não disseste
sempre que a contenda devia terminar? A nossa guerra privada causou a
morte do teu amigo.
Ele agarrou-a e apertou-a contra si.
– Sim, concordo contigo. Quero tudo isso… mas quando penso no custo!
Devo deixar-te ir ao encontro de um homem com o dobro do teu tamanho
sozinha? Mata-te com um golpe.
Ela levantou a cabeça mas ele fê-la baixar-se novamente.
– Sozinha não vais. Eu acompanho-te.
– Mas não podes! – explodiu ela. – A mensagem destinava-se unicamente
a mim.
– Já transportas outra pessoa, que mal faz mais uma?
– Stephen… – suplicou ela.
– Não! – Lançou-lhe um olhar sério. – Desta vez vais obedecer-me,
compreendes?
Ela tentou contrapor, mas sabia que não valia a pena. A bem dizer, estava
contente por o ter ao lado. Ergueu a cabeça para receber um beijo.
Ele encostou os lábios aos dela e afastou-se.
Ela encarou-o com espanto.
Stephen apontou para a janela.
– Ou muito me engano, ou falta uma hora para o nascer do Sol. Temos de
partir.
– Mais uns minutos, pelo menos? – perguntou, esperançosa.
– És mesmo traquinas – brincou ele. – Vamos vestir-nos e conquistar o
MacGregor como me conquistaste a mim.
Ela ficou deitada no feno, vendo-o vestir-se apressadamente. O corpo
forte ficou tapado demasiado depressa. E pensar que em tempos o
considerava seu inimigo!
– Vós, senhor, sois o meu conquistador! – suspirou ela, e começou a
vestir-se sem vontade.

***

Quando equiparam os cavalos, ficaram mais sérios e prepararam-se para a


curta viagem até ao local do encontro. Stephen ainda pensou em trancar
Bronwyn no celeiro e ir sozinho, mas ela, pressentindo estas ideias, recusou
dizer-lhe onde ficava o local.
O local do encontro correspondia à suposição de Stephen – recôndito,
cercado por pedras, solitário com uma cobertura de neblina.
Mal desmontou, Stephen sentiu a ponta de uma espada na base do
pescoço.
– E tu quem és? – rosnou o MacGregor.
– O protetor dela – respondeu Stephen. – Ela pode ser a chefe, mas não se
encontra com homens sem guarda.
O MacGregor fitou Bronwyn, alta, esguia, bela. Continha o cão, que
ameaçava atirar-se ao homem volumoso. O MacGregor riu-se e guardou a
espada na bainha.
– Não te censuro, rapaz. Embora ela precise de proteção por outros
motivos e não esse que referes.
Stephen virou-se e fitou o homem nos olhos.
– Protejo-a de todas as maneiras – disse com intenção.
O MacGregor riu-se novamente.
– Vem cá e senta-te. Pensei bem nesta coisa da paz e a única forma que
encontro é unirmos os clãs. – Fitou Bronwyn que ocupou um pedregulho. –
Já não estou casado. Se tivesse conhecido a MacArran mais cedo, teria feito
uma proposta.
Stephen colocou-se atrás da esposa e pousou a mão possessivamente no
ombro dela.
– Ela está tomada e lutarei…
– Parem, vocês os dois! – exigiu Bronwyn, enxotando a mão de Stephen.
– Parecem dois veados às marradas. Stephen, se não te comportas, vais
voltar para a casa do Harben. – O MacGregor riu-se. – E tu, Lachlan! Ficas
a saber que a MacArran não é só um rosto! Se não me tratas como uma
pessoa inteligente, manda um dos teus capitães em vez de ti.
Foi a vez de Stephen rir-se. Lachlan MacGregor arqueou uma
sobrancelha.
– Afinal, talvez não te inveje nada, rapaz.
– Ela tem algumas contrapartidas – acrescentou Stephen com ar
convencido.
Bronwyn não lhe deu ouvidos.
– Davey – murmurou.
Stephen fitou-a, compreendendo finalmente.
– Tentou matar-nos – disse baixinho, mas o olhar de Bronwyn calou-o.
Ele percebeu: os laços de sangue são os mais importantes.
Ele virou-se para o MacGregor.
– É o irmão dela mais velho, terá vinte anos. O rapaz enlouqueceu de
inveja. Preferiu refugiar-se nas colinas do que ficar no clã em que a irmã é
chefe. E recentemente atentou contra as nossas vidas.
O MacGregor franziu a testa, anuiu.
– Compreendo o rapaz. Teria feito o mesmo.
– Compreende-o? – exclamou Bronwyn. – Eu sou a líder dele. Só tinha
de aceitar a decisão do nosso pai. Se a situação se invertesse, eu teria
aceitado.
– Claro – Lachlan abanou a mão. – És mulher. – Ignorou a indignação
dela.
Stephen sorriu afavelmente ao MacGregor.
– Tenho uma filha – continuou Lachlan. – Dezasseis anos, bonita, doce e
maleável como só uma mulher sabe ser. – Lançou um olhar a Bronwyn. –
Podíamos arranjar um casamento.
– E o que tens para oferecer, além da tua filha insípida? – perguntou
Bronwyn sem hesitar.
Lachlan retraiu-se, antes de responder.
– Ele não se tornará chefe mas pode ser capitão. É mais do que tem hoje,
e pode ser o genro do senhor.
– É um rapaz impetuoso – disse Stephen. – Foi por essa razão que o
Jamie MacArran não o designou senhor.
– Nunca o viste! – disse Bronwyn. – Como é que podes chamar-lhe isso?
– Porque ouvi o que diziam dele – respondeu Stephen em jeito de
conclusão.
– Eu consigo dar conta dele – assegurou Lachlan. – Não morrerei com a
tenra idade do Jamie, deixando o rapaz sem ninguém. Vou mantê-lo debaixo
de olho e ensinar-lhe como deve ser. Prefiro alguém com verve do que um
plácido. Não aguento homens, nem mulheres – sorriu para Bronwyn – sem
genica.
– Eu confirmo que os MacArrans têm bastante genica – riu-se Stephen.
– Aposto que sim – riu-se também o MacGregor. – Este Davey fará a
minha filha feliz, se for igual à irmã.
Stephen ficou sério.
– O que dirá o seu clã quando aparecer com um MacArran?
– A mim, nada, mas dirão muito ao jovem Davey. Oxalá se
desenvencilhe.
Bronwyn ficou hirta.
– O meu irmão consegue desenvencilhar-se com qualquer MacGregor.
Lachlan riu-se, estendendo a mão para Stephen.
– Está combinado.
O MacGregor virou-se para ela.
– Agora, jovem, devo-te um B que ainda trago ao ombro. – Agarrou-a e
beijou-a na boca com gosto.
Bronwyn lançou um olhar ao marido, preocupada com os ciúmes dele,
mas Stephen observava-os com afeição. Mantiveram-se lado a lado, vendo
Lachlan afastar-se. Bronwyn olhou para ele.
– No futuro, espero que te lembres que eu sou uma MacArran, como te
mostrei esta noite.
Stephen sorriu indolentemente.
– Penso mudar isso.
– Como assim?
– Não te disse que pedi ao rei para mudar de nome? – Bronwyn fitou-o
com ar aparvalhado. – Agora sou o Stephen MacArran. Estás contente?
Ela atirou os braços em volta do pescoço de Stephen e banhou-lhe o rosto
com beijos.
– Amo-te, amo-te, amo-te! És um MacArran! Isto provará ao meu clã que
pode confiar em ti.
Stephen riu-se e abraçou-a.
– Nunca duvidaram de mim. Tu é que duvidaste. – Cingiu-a contra si. –
Bronwyn, já não somos inimigos. Tentemos manter-nos do mesmo lado.
– És um MacArran – murmurou ela de admiração.
Ele afagou-lhe o cabelo.
– Vai correr tudo bem. Descobrirei o Davey e…
– Tu! – Ela afastou-se dele. – É meu irmão!
– Da última vez que o encontraste, tentou matar-te.
Bronwyn ignorou o comentário.
– Estava zangado. A minha família sempre teve mau feitio. Isso passa-lhe
quando ouvir o meu plano.
– Teu! Acho que foi uma ideia conjunta.
– Talvez, mas o Davey só dará ouvidos a mim.
Stephen ia falar mas acabou por beijá-la.
– Podemos continuar mais tarde? Sinto que algo se intrometeu entre nós.
Ela fitou-o com ar inocente.
– O meu estômago?
Ele agarrou-lhe o cabelo e puxou-lhe a cabeça para trás.
– Qual a sensação de beijares o MacArran?
– A MacArran sou eu! – disse ela. – Eu…
Não disse mais nada porque a mão de Stephen descera para a dobra dos
seus joelhos.
Nota da autora

Sempre que este livro era lido antes da publicação, confrontavam-me com
as mesmas perguntas: porque não falo do saiote escocês (kilt) e quais são as
cores do tartã do clã MacArran?
Os primeiros habitantes das Terras Altas usavam uma veste simples
(plaide significa manta em gaélico), que abriam sobre o solo e nela se
deitavam, puxando depois as pontas que atavam à cintura. Formava um
saiote em baixo, e a parte superior do tecido, ou da manta, era presa no
ombro.
Contam-se várias histórias sobre a origem do kilt. Uma delas fala de um
inglês que simplificou o traje para maior conforto dos seus ferreiros nas
Terras Altas. Obviamente, os escoceses negam a veracidade desta história.
Qualquer que seja a verdade, o kilt moderno não surgiu antes de 1700.
Quanto às cores dos tartãs, os membros do clã usavam as que mais lhes
agradavam ou que pudessem ser tingidas a partir das plantas locais. Os clãs
eram identificados pelos laços coloridos dos gorros.
Também a origem dos tartãs dos clãs é alvo de várias histórias. Uma
indica que os nomes dos clãs eram atribuídos pelos mercadores que
exportavam tecidos axadrezados, para melhor identificarem a mercadoria
fabricada. Outra atribui a origem ao exército britânico, com o seu pendor
para a uniformidade, ao insistir que cada companhia escocesa usasse um
tartã da mesma cor e padrão. Seja como for, os clãs não tinham tartãs
próprios anteriormente a 1700.

Jude Deveraux, 1981


Santa Fé, Novo México
Table of Contents
CAPA
Ficha Técnica
Prólogo
Capítulo Um
Capítulo Dois
Capítulo Três
Capítulo Quatro
Capítulo Cinco
Capítulo Seis
Capítulo Sete
Capítulo Oito
Capítulo Nove
Capítulo Dez
Capítulo Onze
Capítulo Doze
Capítulo Treze
Capítulo Catorze
Capítulo Quinze
Capítulo Dezasseis
Capítulo Dezassete
Capítulo Dezoito
Capítulo Dezanove

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