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A Minha Prima Rachel

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A PRIMA RAQUEL

DAPHNE DU MAURIER

Tradução de Eduardo Saló

Título Original: MY COUSIN RACHEL

Círculo de Leitores, 1993

ISBN 972-42-0828-1

© 1951, Du Maurier, Daphne

Sumário

Capa

Rosto

Ficha

Capítulo Primeiro

Capítulo Segundo

Capítulo Terceiro

Capítulo Quarto

Capítulo Quinto

Capítulo Sexto

Capítulo Sétimo

Capítulo Oitavo

Capítulo Nono
Capítulo Décimo

Capítulo Décimo Primeiro

Capítulo Décimo Segundo

Capítulo Décimo Terceiro

Capítulo Décimo Quarto

Capitulo Décimo Quinto

Capítulo Décimo Sexto

Capítulo Décimo Sétimo

Capitulo Décimo Oitavo

Capítulo Décimo Nono

Capítulo Vigésimo

Capítulo Vigésimo Primeiro

Capítulo Vigésimo Segundo

Capítulo Vigésimo Terceiro

Capítulo Vigésimo Quarto

Capítulo Vigésimo Quinto

O Autor e a Obra

Capítulo Primeiro

Antigamente, costumavam enforcar homens em Four Turnings.

Mas agora já não. Hoje em dia, quando um assassino é punido pelo


seu crime, acontece em Bodmin, após julgamento imparcial nos A
ssizes. I sto se a lei o condena antes de a consciência o matar. É
preferível assim. Como uma intervenção cirúrgica. E o corpo tem um
enterro decente, embora numa sepultura anônima.

Q uando eu era pequeno, as coisas não se passavam assim.


Recordo-me, na adolescência, de ver um indivíduo pendurado em
correntes no local onde as quatro estradas se encontram. O rosto e
corpo tinham sido enegrecidos com alcatrão para os preservar.
Esteve lá suspenso durante cinco semanas antes de o apearem, e
foi na quarta que o vi.

O scilava entre o céu e a terra sobre o estrado de madeira ou, como


o meu primo A mbrose referiu, entre o Céu e o I nferno. O Céu
nunca ele alcançaria e, quanto ao inferno que conhecera, achava-se
fora do seu alcance. A mbrose tocou no corpo com a bengala. A
inda consigo imaginá-lo, a mover-se com a deslocação do ar como
um catavento num eixo enferrujado, um triste espantalho daquilo
que fora um homem.

A chuva apodrecera-lhe os calções, senão o corpo, e tiras de tecido


pendiam dos membros inchados como papel polposo.

Era inverno, e um brincalhão qualquer que passara colocara um


ramo de azevinho na jaqueta rasgada, para celebração.

A os meus sete anos, aquilo afigurou-se o ultraje final, mas não me


pronunciei.

A mbrose devia ter-me levado lá com alguma ideia em mente; talvez


para testar a minha coragem, ver se eu fugiria, riria ou choraria.
Como meu tutor, pai, irmão e conselheiro —

na realidade, como todo o meu mundo —, estava sempre a pôr-me


à prova. Lembro-me de que contornamos o estrado, enquanto ele
explorava o corpo com a bengala, até que se deteve, acendeu o
cachimbo e pousou-me a mão no ombro.
— A qui tens no que todos acabamos, Philip. Uns no campo de
batalha, outros na cama e outros ainda em conformidade com o seu
destino. N ão há fuga possível. N ão podes aprender a lição
demasiado cedo. Mas é assim que um assassino morre. Uma
advertência para ti e para mim, no sentido de levarmos uma vida
direita. —

Conservávamo-nos lado a lado, a ver o corpo oscilar, como se


estivéssemos de visita à feira de Bodmin e o cadáver fosse um alvo
para visar com bolas.

— O bserva o que um momento de exaltação pode provocar numa


pessoa —

continuou. — A qui tens Tom J enkyn, honesto e estúpido, exceto


quando bebia de mais.

S em dúvida que a esposa era rezingona, mas isso não justifica que
a matasse. S e começássemos a eliminar as mulheres por causa
das suas línguas aguçadas, quase todos os homens seriam
assassinos.

Eu preferia que ele não tivesse mencionado o nome do homem. Até


então, o corpo fora uma coisa morta, sem identidade. S urgiria nos
meus sonhos, sem vida e horrível, como me apercebi perfeitamente
a partir do momento em que pousei a vista no cadafalso. A gora,
relacionar-se-ia com a realidade e com o homem de olhos aguados
que vendia lagostas no cais da cidade. Costumava encontrar-se
junto dos degraus nos meses de verão, com a cesta a seu lado, e
punha os crustáceos a rastejar pelo chão numa corrida fantástica,
para gáudio das crianças. Não havia muito tempo que eu o vira.

— Então? — perguntou Ambrose, observando-me a expressão. —


Que te parece?

Encolhi os ombros e dei um pontapé na base do estrado.


N ão queria que ele reparasse no meu estado de espírito, que me
percorria um misto de amargura e terror. D e contrário, desprezar-
me-ia. A os vinte e sete anos, A mbrose era o deus de toda a
criação, pelo menos de todo o meu reduzido mundo, e o único
objetivo da minha vida consistia em emulá-lo.

— O Tom tinha um ar sorridente a última vez que o vi repliquei. —A


gora, nem tem frescura suficiente para servir de engodo às suas
lagostas.

Soltou uma gargalhada e puxou-me levemente a orelha.

— A ssim é que gosto de te ouvir. Falaste como um verdadeiro


filósofo. — E, com um súbito lampejo de percepção, acrescentou: —
S e estás agoniado, vai vomitar atrás daquela sebe e lembra-te de
que não me dei conta de nada.

Voltou as costas ao cadafalso e à encruzilhada e afastou-se pela


alameda que construía na altura, a qual atravessava o bosque e
serviria de segunda via de acesso de carruagens à casa.

Fiquei satisfeito ao vê-lo retirar-se, porque não alcancei a sebe a


tempo. D epois, senti-me melhor, embora os dentes chocalhassem e
tivesse muito frio. Tom J enkyn voltou a perder identidade e
converteu-se numa coisa sem vida, como um saco velho. Foi
mesmo um alvo para a pedra que atirei. I nvulgarmente temerário,
observei o corpo oscilante. Mas não aconteceu nada. A pedra
atingiu o vestuário molhado com um som abafado e saltitou no chão.
Envergonhado com o gesto, abandonei o local apressadamente pela
nova alameda, à procura de Ambrose.

Bem, isto passou-se há dezoito anos, e não me recordo de ter


pensado muito no assunto desde então. Até os dias mais recentes.
É curioso como nos momentos de crise aguda a mente faz
reaparecer a infância. Recomecei a pensar no infortunado Tom,
suspenso nas suas correntes. N unca ouvira a sua história, e
poucas pessoas se lembrariam dela agora. A mbrose dissera que
tinha matado a mulher. E nada mais. Era rezingona, mas isso não
constituía motivo suficiente para recorrer ao homicídio.

Possivelmente, como manifestava inclinação especial para a bebida,


matara-a sob o efeito do álcool. Mas como?

E com que arma? Uma faca ou as próprias mãos? Talvez tivesse


saído do bar da pousada para o cais a cambalear, naquela noite de
inverno, inflamado de amor e febre. E

a maré estava alta, com a água a lamber os degraus de pedra e a


lua cheia a refletir-se no mar. Q uem sabe que sonhos de conquista
lhe acudiam à mente perturbada, que súbita erupção de fantasia?

Talvez se arrastasse em direção a casa, no pequeno chalé atrás da


igreja, um indivíduo pálido, de olhar congestionado, a tresandar a
lagosta, e a mulher invectivara-o por entrar com os pés molhados, o
que pusera termo ao sonho e o levara a matá-la. A s coisas podiam
perfeitamente ter-se passado assim. S e existe sobrevivência depois
da morte, como nos ensinaram a crer, procurarei o coitado do Tom
para o interrogar.

S onharemos no Purgatório juntos. N o entanto, ele era um homem


de meia-idade, com cerca de sessenta anos, e eu ainda só tenho
vinte e cinco. O s nossos sonhos não seriam os mesmos. Por
conseguinte, volta para as tuas sombras, Tom, e deixa-me alguma
medida de paz. O cadafalso há muito que desapareceu, e tu com
ele. Atirei-te uma pedra por ignorância. Perdoa-me.

A verdade é que a vida tem de ser suportada e vivida. Mas o


problema consiste em como vivê-la. O trabalho do dia a dia não
apresenta dificuldades. Tornar-me-ei juiz de paz, como Ambrose foi,
e também frequentarei, um dia, o Parlamento.

Continuarei a ser honrado e respeitado, como toda a família antes


de mim.

Cultivarei bem a terra e velarei pelas pessoas.


N inguém suspeitará do fardo de culpa que me pesa nos ombros,
nem saberá que todos os dias, ainda atormentado pela dúvida, faço
a mim próprio uma pergunta a que não posso responder. Raquel
estava inocente ou culpada? Talvez também me inteire disso no
Purgatório.

Como soa terno e suave o seu nome quando o murmuro!

Perdura na língua, insidioso e lento, quase como veneno, que é de


fato apropriado. Passa da língua aos lábios ressequidos e destes
regressa ao coração. E o coração governa o corpo, assim como a
mente. Libertar-me-ei disso, um dia? D entro de quarenta, cinquenta
anos? O u porventura algum persistente vestígio de matéria no
cérebro subsistirá, pálido e doentio? A lguma minúscula célula do
sistema circulatório deixará de correr com as outras em direção ao
coração-fonte? É possível que, quando tudo tiver sido dito e feito, eu
não deseje ser livre. Por enquanto, não o posso determinar.

Ainda tenho a casa para estimar, como Ambrose desejaria.

Posso restaurar as paredes onde a umidade se infiltra e manter tudo


devidamente em ordem. Continuar a plantar árvores e arbustos,
cobrir as colinas despidas por onde o vento circula uivando,
proveniente de leste. D eixar algum legado de beleza quando

partir, se não puder ser nada mais. Mas um homem solitário é


contranatural, e não tarda a enfrentar a perplexidade.

D a perplexidade passa à fantasia. D a fantasia à loucura. E


regresso assim a Tom Jenkyn, suspenso nas suas correntes.

É possível que ele também sofresse.

Há dezoito anos, A mbrose afastou-se pela alameda e eu fui no seu


encalço. Ele talvez usasse a jaqueta que visto agora. Esta velha
jaqueta de caça verde, com proteção de cabedal nos cotovelos.
Tornei-me tanto como ele que quase poderia ser o seu fantasma. O
s meus olhos são os seus, e os traços fisionômicos também.

O homem que assobiou aos seus cães e voltou as costas à


encruzilhada das quatro estradas e ao cadafalso podia ser eu. Bem,
era o que sempre desejara. S er como ele. Ter a sua altura, os seus
ombros, a maneira de se encurvar, até os braços compridos, mãos
de aspecto algo desajeitado, o sorriso repentino, o acanhamento no
primeiro encontro com um desconhecido, a aversão ao rebuliço, ao
cerimonial.

A cordialidade de maneiras com aqueles que o serviam e


estimavam — lisonjeiam-me aqueles que dizem que também
possuo essa característica. E a resistência que se revelou ilusória,
pelo que tombamos ambos na mesma calamidade.

Tenho-me interrogado ultimamente se, quando morreu, a mente


enevoada e torturada pela dúvida e temor, ao sentir-se abandonado
e só naquela maldita vivenda onde eu não podia estabelecer contato
com ele, se o seu espírito se desprendeu do corpo e se juntou ao
meu, para tomar posse, pelo que voltou a viver em mim e repetir os
seus erros, tornou a contrair a doença e pereceu pela segunda vez.
Pode ter sido assim.

S ó sei que a minha parecença com ele, de que tanto me orgulhava,


constituiu um inconveniente. Em virtude dela, surgiu o desaire. S e
eu fosse outro, ágil e rápido, com uma língua aguçada e ideias
lúcidas para os negócios, o ano agora terminado não teria passado
de mais doze meses surgidos e deixados eventualmente para trás.
Preparar-me-ia para um futuro ativo e satisfatório. Para o
casamento, possivelmente, e para uma jovem família.

Mas eu não era nada disso, e Ambrose tampouco.

Éramos sonhadores, desprovidos de sentido prático, reservados,


cheios de grandes teorias nunca testadas e, como todos os
sonhadores, adormecidos perante o mundo acordado. A
ntipatizando com o nosso semelhante, ansiávamos por afeto, porém
a timidez manteve o impulso dormente até que o coração foi
afetado. Q uando isso aconteceu, os céus abriram-se e sentimos
que dispúnhamos de toda a riqueza do universo para dar. Teríamos
sobrevivido se fôssemos outros. Raquel teria vindo do mesmo
modo. Permaneceria conosco uma ou duas noites e partiria.

D iscutiríamos questões de negócios, resolveríamos alguns


assuntos, escutaríamos

a leitura do testamento em torno de uma mesa e eu — abarcando a


situação num relance

— conceder-lhe-ia uma anuidade vitalícia e livrar-me-ia dela.

Não aconteceu assim porque me parecia com Ambrose.

Não aconteceu assim porque pensava como ele.

Q uando me dirigi ao quarto dela, na sua primeira noite, e, depois de


bater à porta, e entrar, inclinei a cabeça levemente por causa do
lintel baixo e ela se levantou da cadeira em que se sentava junto da
janela, para me olhar, eu devia ter compreendido então, pela
expressão de reconhecimento que exibiu, que não era a mim que
via, mas A mbrose. N ão Philip, mas um fantasma.

D evia ter partido naquele momento, feito as malas e desaparecido,


regressado ao lugar a que pertencia, à vivenda das persianas
corridas, bafienta de recordações, ao jardim formal com terraço e
fonte gotejante no centro; regressado ao seu país, ressequido em
pleno verão e brumoso de calor, austero no inverno sob o frio e céu
brilhante. Um instinto qualquer devia tê-la prevenido de que se
ficasse comigo acarretaria destruição, não só para o fantasma que
encontrara, mas, em última análise, no final, também para ela.

Q uando me vira de pé na sua frente, acanhado e embaraçado,


angustiado de ressentimento pela sua presença, embora
perfeitamente consciente da minha qualidade de anfitrião e dos
meus pés grandes e braços e pernas deselegantes, angulosos, será
que pensara "O A mbrose devia ser assim quando jovem; antes do
meu tempo. N ão o conheci quando tinha este aspecto", e, por isso,
decidira ficar?

Talvez fosse essa a razão pela qual, quando tive o breve encontro
com o italiano Rainaldi, pela primeira vez, também me olhou com o
mesmo ar chocado de reconhecimento, dissimulado com prontidão,
moveu os dedos na caneta em cima da secretária por uns instantes
e acabou por perguntar:

— Chegou só hoje? Nesse caso, a sua prima Raquel não o viu.

O instinto também o prevenira. Mas demasiado tarde.

N ão se pode voltar atrás na vida. N ão há regresso ao passado. N


unca uma segunda oportunidade. N ão posso apagar a palavra
pronunciada ou o fato consumado, aqui sentado, vivo e em minha
própria casa, tal como o infortunado Tom J enkyn não podia,
suspenso das suas correntes.

Foi o meu padrinho N ick Kendall quem, no seu estilo direto e


brusco, me disse na véspera do meu vigésimo quinto aniversário (há
apenas uns escassos meses, meu D eus, mas um lapso de tempo
tão longo!):

— Há mulheres, Philip, boas pessoas muito possivelmente, que,


sem a mínima culpa própria, provocam uma calamidade. Tudo no
que tocam transforma-se em tragédia.

Não sei por que te digo isto, mas sinto que o devo fazer.

Em seguida, testemunhou a minha assinatura no documento que eu


lhe colocara

na frente.

N ão, não se pode voltar atrás. O rapaz que se encontrava debaixo


da janela dela na véspera do aniversário, o mesmo que surgiu à
entrada do seu quarto na noite em que chegou, já não existe, à
semelhança da criança que atirou uma pedra a um homem morto
num cadafalso para se incutir falsa coragem. Tom J enkyn,
espécime andrajoso da humanidade, irreconhecível e não chorado,
porventura, ao longo de todos estes anos, me contemplaste com
compaixão, enquanto eu percorria o bosque em direção ao futuro?

S e olhasse para ti, por cima do ombro, não te veria a oscilar nas
tuas correntes, mas a minha própria sombra.

Capítulo Segundo

N ão me acudia a menor sensação de presságio quando


conversávamos, naquela última noite, antes de A mbrose partir para
a sua derradeira viagem. N enhuma premonição de que jamais
voltaríamos a estar juntos.

D ecorria o terceiro outono em que os médicos lhe haviam ordenado


que passasse o inverno no estrangeiro, e eu habituara-me à sua
ausência e a olhar pela propriedade até ao seu regresso. N o
primeiro em que o fez, ainda me encontrava em O xford, pelo que o
seu afastamento pouca diferença exercera em mim, mas no
segundo voltei definitivamente e permaneci sempre em casa, que
era o que ele desejava de mim. N ão fiquei com saudades da vida
gregária na Universidade, e na realidade até me congratulei por lhe
voltar as costas.

N unca me acudia vontade de estar em parte alguma senão no lar. À


parte os tempos do liceu em Harrow e mais tarde em O xford, não
vivera em lugar algum exceto naquela casa, onde me fixara aos
dezoito meses, na sequência da morte de meus jovens pais.

A mbrose, à sua curiosa maneira generosa, foi dominado pela


compaixão por aquele pequeno primo órfão, pelo que me foi buscar
pessoalmente, como faria em relação a um cachorro, um gato ou
qualquer ser frágil e solitário necessitado de proteção.
O nosso lar foi estranho desde o princípio. Ele despediu a minha
ama quando eu tinha três anos, porque me batia nas nádegas com
uma escova do cabelo. Não me recordo do incidente, mas
descreveu-me mais tarde.

— Fiquei furioso quando vi a mulher a zurzir o teu pequeno corpo


com as suas enormes e grosseiras mãos por causa de um lapso
insignificante, cuja inteligência limitadíssima não lhe permitia
compreender — explicou. — A partir de então, os corretivos
tornaram-se responsabilidade minha.

N unca tive motivo para o deplorar. N ão podia existir um homem


mais imparcial, mais justo, mais simpático, mais pleno de
compreensão. Ensinou-me o alfabeto da maneira mais simples
possível, recorrendo às iniciais de cada imprecação. A pesquisa das
vinte e seis letras exigiu não pouco trabalho, mas ele conseguiu-o, e
advertiu-me de que não devia empregar as palavras que as
acompanhavam.

Embora invariavelmente cortês, revelava-se retraído perante as


mulheres, assim como desconfiado, com o comentário de que
provocavam problemas num lar. N essa conformidade, só admitia
pessoal doméstico do sexo masculino, tribo controlada pelo velho
Seecombe, que fora mordomo do meu tio.

Talvez excêntrico, heterodoxo — a região oeste do país sempre se


caracterizou pelos temperamentos singulares —, mas, apesar das
suas opiniões individuais sobre as mulheres e a educação de
rapazes, A mbrose não era maníaco, nem nada do gênero.

Desfrutava da simpatia e respeito dos vizinhos e da estima do


pessoal. Dedicava-se à caça no inverno, antes de o reumatismo o
atacar, pescava no verão num pequeno barco que conservava
ancorado no estuário, jantava fora e recebia amigos quando lhe
apetecia, ia à missa aos domingos, embora me olhasse com uma
ruga na fronte se o sermão se alongava demasiado, e conseguiu
contagiar-me com a paixão para plantar arbustos raros.
— É uma forma de criação como outra qualquer —costumava dizer.
— Há quem se incline para a reprodução. Eu prefiro ver coisas a
desenvolverem-se na terra. Exigem menos de nós, e o resultado é
muito mais gratificante.

Chocava o meu padrinho, N ick Kendall, Hubert Pascoe, o vigário, e


outros seus amigos, que costumavam aconselhá-lo a criar raízes na
paz doméstica e uma família em vez de rododendros.

— Criei um rebento, o que consumiu vinte anos do meu período de


vida, ou enriqueceu, conforme o ponto de vista com que se encare a
situação — argumentava, puxando-me levemente a orelha. — A lém
disso, o Philip é um herdeiro pronto a exercer essas funções, pelo
que não se levanta a questão de ter de cumprir o meu dever. Ele se
ocupará de o fazer quando o momento se apresentar. E agora,
reclinem-se nas poltronas e estejam o mais confortáveis possível,
meus senhores. Como não há mulheres em casa, podemos pousar
os pés na mesa e cuspir no carpete, se nos apetecer.

N ão fazíamos nada disso, naturalmente. A mbrose era meticuloso


em tudo, sem omitir a higiene e asseio, mas encantava-o proferir
observações jocosas do gênero diante do vigário, pobre homem,
com um regimento de filhas, e o vinho do Porto circulava em torno
da mesa após o jantar de domingo, com A mbrose a piscar-me o
olho do seu lugar à minha frente.

Parece que ainda o estou a ver, semicurvado, meio refestelado na


cadeira — hábito que adquiri dele —, estremecendo com hilaridade
silenciosa quando o vigário proferia a habitual, tímida e ineficiente
advertência, após o que, receando ter melindrado o homem, se
apressava a mudar de assunto, rumando para temas em que o
clérigo se acharia mais à vontade e esforçando-se por proceder de
modo que se sentisse como em sua casa.

Eu apreciava sobretudo as suas qualidades quando estudava em


Harrow. A s férias passavam rapidamente, enquanto comparava as
suas maneiras e companhia com as dos garotos irresponsáveis
meus condiscípulos e dos professores, circunspectos e arrogantes,
destituídos, a meu ver, de toda e qualquer humanidade.

— N ão te preocupes — recomendava-me, com uma palmada no


ombro, antes de eu sair, pálido, de olhos algo úmidos, para apanhar
o comboio de Londres. — É apenas um processo de treino, como
domar um cavalo: tem de se enfrentar. Q uando os teus

tempos de colégio terminarem, como acontecerá inevitavelmente,


ficarás aqui para sempre e passarei eu a treinar-te.

— Treinar-me para quê?

— Não és o meu herdeiro? Só isso já é uma profissão.

E eu partia, conduzido por Wellington, o cocheiro, para apanhar o


comboio de Londres em Bodmin, não sem me voltar, a fim de ver A
mbrose pela última vez, apoiado à bengala, com os cães ao lado, os
olhos semicerrados numa expressão de compreensão e cabelo
anelado que começava a tornar-se grisalho. E quando ele assobiava
aos animais e voltava para dentro, eu engolia o nó na garganta e
sentia as rodas da carruagem levarem-me para longe, inevitável e
fatalmente, ao longo da passagem de saibro que atravessava o
parque, para em seguida transpor o portão, a caminho do colégio e
da separação.

N o entanto, A mbrose não incluíra a saúde nos seus planos, e


quando o colégio e a Universidade ficaram para trás de mim, foi a
sua vez de partir.

— D izem-me que, se passo mais um inverno debaixo desta chuva


persistente, terminarei os meus dias numa cadeira de rodas —
explicou-me. — Tenho de procurar o sol. A s praias de Espanha ou
o Egito, qualquer lugar no Mediterrâneo que seja seco e quente.
Confesso que não estou muito empenhado em ir, mas, por outro
lado, demônios me levem se vou acabar a minha vida paralítico. A
liás, o projeto tem uma vantagem.
Trarei plantas que mais ninguém possui. Veremos como se darão no
solo da Cornualha.

O primeiro inverno chegou e partiu, assim como o segundo. Ele


divertiu-se à sua maneira e não creio que se sentisse só.

Regressou acompanhado de uma infinidade de árvores, arbustos,


flores e plantas de todas as formas e cores. A s camélias eram a
sua paixão. I niciou uma plantação exclusivamente delas e não sei
se possuía algum condão especial para o fazer, mas floresceram à
primeira tentativa e não se perdeu uma única.

A ssim se foram sucedendo os meses até ao terceiro inverno. D


esta vez, optou pela I tália. D esejava ver alguns dos jardins de
Florença e Roma. N enhuma dessas cidades era quente naquela
época do ano, porém o fato não o preocupava. A lguém lhe
garantira que o ar era seco, embora frio, e não necessitava de temer
a chuva. Conversamos até tarde, naquele último serão.

N unca se deitava cedo e acontecia com frequência sentarmo-nos


juntos na biblioteca até à uma ou duas da madrugada, umas vezes
calados, outras a trocar impressões, ambos com as longas pernas
estendidas na nossa frente diante do lume e os cães enroscados
aos pés. Referi atrás que não me acudira qualquer premonição,
porém agora pergunto-me, ao rememorar aqueles dias, se tal não
sucedeu com ele. Com efeito, olhava-me com uma expressão de
perplexidade meditativa, para de vez em quando desviar a vista
para as paredes em volta, onde se encontravam retratos da família,
depois para a lareira e em seguida para os cães adormecidos.

— Gostava que viesses comigo — declarou subitamente.

— Não demorava muito a fazer as malas.

Abanou a cabeça e sorriu.

— Estava a brincar. N ão podemos ausentar-nos ambos


simultaneamente durante meses. Um proprietário rural tem certas
responsabilidades, embora nem todos pensem como eu.

— Podia acompanhá-lo a Roma — aventurei, excitado com a ideia.


— D epois, desde que o tempo não me retivesse, estava de volta
pelo Natal.

— N ão — articulou pausadamente. — Foi apenas uma fantasia de


minha parte.

Esquece-a.

— Suponho que se sente bem... Não tem dores?

— D ecerto que não. Tomas-me por um inválido? Há meses que não


tenho nem vestígios de reumatismo. O pior, meu caro Philip, é o
atrativo que o lar exerce em mim.

Quando chegares à minha idade, talvez sintas o mesmo.

Levantou-se da poltrona e aproximou-se da janela. A fastou os


pesados cortinados e contemplou o relvado durante uns momentos.
Fazia uma noite calma e silenciosa. A s gralhas haviam recolhido
aos poleiros e, por uma vez, até os mochos permaneciam calados.

— A inda bem que eliminamos as passagens e fizemos a relva


chegar até aqui —

murmurou. — Em todo o caso, podíamos melhorar o aspecto geral


se prosseguisse até o cercado dos pôneis. Um dia, tens de mandar
aparar os arbustos do outro lado, para haver uma vista do mar.

— Eu? — Estranhei. — Porque não o primo?

Não respondeu imediatamente.

— Tanto faz — acabou por dizer. — Não te esqueças, em todo o


caso.

O meu velho perdigueiro, Don, ergueu a cabeça e olhou-o.


Vira a bagagem no átrio e pressentira a partida iminente. Levantou-
se e foi-se postar ao lado de A mbrose, de cauda baixada. Chamei-o
a meia voz, mas ignorou-me.

S acudi a cinza do cachimbo no lume. O relógio do campanário


badalou. N o setor do pessoal doméstico, ouvi a voz rouca de
Seecombe a admoestar o ajudante de cozinha.

— Deixe-me ir consigo, Ambrose — solicitei.

— Não digas disparates, Philip — foi a réplica pronta. — Vai mas é


para a cama.

Apenas isto. Não voltamos a ventilar o assunto.

N a manhã seguinte, durante o café da manhã, transmitiu-me as


últimas instruções sobre o plantio da primavera e várias coisas que
desejava que eu fizesse antes do seu regresso. A cudiu-lhe o
capricho repentino de construir um lago para cisnes numa área
pantanosa do parque junto da entrada do caminho de acesso
oriental, pelo que necessitaria de iniciar os trabalhos sem demora,
se o inverno contivesse alguns dias

sofríveis.

O momento da partida surgiu com uma prontidão que nenhum dos


dois acolheu com satisfação. O café da manhã terminou às sete,
porque ele tinha de sair cedo.

Pernoitaria em Plymouth e partiria de manhã à hora da maré


favorável. O barco, uma unidade da marinha mercante, deixá-lo-ia
em Marselha, de onde seguiria para a Itália.

Fazia uma manhã úmida, de temperatura cortante. Wellington levou


a carruagem para a entrada e carregou a bagagem sem demora. O
s cavalos mostravam-se irrequietos, ansiosos por iniciar a viagem.
Ambrose virou-se para mim e pousou-me a mão no ombro.
— Olha por tudo. Não me desapontes.

— Isso é um golpe baixo — retruquei. — Que eu saiba, nunca o


desapontei.

— És muito jovem. D elego em ti uma carga pesada. D e qualquer


modo, tudo o que possuo é teu, como sabes.

Creio que, se insistisse, me deixaria acompanhá-lo. N o entanto,


não o fiz.

S eecombe e eu ajudamo-lo a subir para a carruagem, com os seus


tapetes e bengalas, e depois sorriu-nos pela janela aberta.

— Pronto, Wellington. Podemos ir.

E afastaram-se pelo caminho que comunicava com a estrada,


precisamente quando principiava a chover.

A s semanas sucederam-se mais ou menos como durante os dois


invernos anteriores. Eu sentia a ausência dele, como sempre, mas
havia muita coisa para me entreter. S e desejava companhia,
visitava o meu padrinho, N ick Kendall, cuja única filha, Louise, era
alguns anos mais nova que eu e companheira de infância. Tratava-
se de uma moça delicada, despretensiosa e bonita. A mbrose
gostava de observar, maliciosamente, que acabaríamos por casar,
mas confesso que nunca a encarei com semelhantes intenções em
mente.

A primeira carta dele chegou em meados de novembro, trazida pelo


mesmo navio que o deixara em Marselha. A viagem decorrera sem
nada de especial a assinalar, com bom tempo, apesar de uma certa
agitação do mar na baía da Biscaia.

Encontrava-se bem de saúde, bem-humorado, e aguardava com


ansiedade a passagem pelos diferentes pontos de escala na I tália.
N ão se atrevera a viajar numa diligência, o que, de qualquer modo,
o obrigaria a deslocar-se a Lion, e preferira alugar uma carruagem,
na qual tencionava seguir ao longo da costa em direção a Florença.

Wellington meneou a cabeça ao inteirar-se e previu um acidente.


Manifestava a firme opinião de que nenhum francês era capaz de
conduzir uma carruagem devidamente e todos os italianos
revelavam tendência para o roubo.

N o entanto, A mbrose sobreviveu à tenebrosa previsão, e a missiva


seguinte proveio de Florença. Conservei todas as suas cartas e
tenho-as neste momento na minha frente. Li-as numerosas vezes
nos meses seguintes e manuseava-as com insistência, como

se a pressão dos meus dedos pudesse extrair-lhes informações


mais completas do que as fornecidas pelas palavras escritas.

Foi perto do final daquela epístola de Florença, onde, segundo


parecia, passara o Natal, que aludiu pela primeira vez à prima
Raquel.

"Encontrei uma nossa parente. D eves recordar-te de me ouvir falar


dos Coryn, que possuíam uma vivenda no Tamar e acabaram por
vendê-la. Um deles casou com uma A shley, há duas gerações,
como podes verificar na árvore genealógica, e uma descendente
desse ramo nasceu e foi criada na I tália por um pai sem dinheiro e
mãe italiana, para vir a desposar um nobre chamado S angalle i, o
qual abandonou este mundo na sequência de um duelo, no
estrangeiro, deixando à mulher uma carga de dívidas e uma vivenda
enorme e vazia. N ão tiveram filhos. A condessa S angalle i, ou,
como insiste em se intitular a minha prima Raquel, é uma mulher
sensata, boa companheira, que decidiu oferecer-se para me mostrar
os jardins de Florença e, mais tarde, de Roma, pois estaremos na
capital na mesma altura."

Congratulei-me pelo fato de ele ter encontrado uma pessoa amiga e,


em particular, alguém capaz de partilhar a sua paixão pelos jardins.
Como não sabia absolutamente nada acerca da sociedade florentina
ou romana, eu receara que se lhe deparassem poucos, ou mesmo
nenhum, compatriotas, mas afinal surgira ao menos uma pessoa
cuja família viera originariamente da Cornualha, pelo que existia
também esse elemento comum.

A carta seguinte consistia quase inteiramente em listas de jardins,


que, embora não apresentassem o seu melhor aspecto naquela
época do ano, pareciam tê-lo impressionado profundamente. Tal
como a nossa parente.

“Começo a nutrir um afeto especial pela nossa prima Raquel —,


escreveu no princípio da primavera. — S into-me impressionado
com o que deve ter sofrido com esse S angalle i. O s I talianos são
traiçoeiros por natureza, fato impossível de refutar. Ela é tão inglesa
como tu ou eu no aspecto e maneiras, e dir-se-ia que ainda ontem
vivia junto do Tamar. N ão se cansa de me ouvir falar da pátria e de
tudo o que tenho para lhe contar. É

extremamente inteligente, mas, graças a D eus, sabe quando se


deve calar. N ada de tagarelices, como é vulgar nas mulheres. I
ndicou-me aposentos excelentes em Fiesole, perto da sua vivenda,
e tenciono passar uma boa parte do meu tempo junto dela, sentado
no terraço ou a percorrer os seus jardins, que são, segundo parece,
famosos pela sua concepção e estatuetas, apesar de não me
considerar uma autoridade nestas últimas.

I gnoro de que vive a nossa prima Raquel, mas depreendi das suas
palavras que teve de vender uma grande parte dos bens para pagar
as dívidas do marido.”

Perguntei ao meu padrinho se se recordava dos Coryn e respondeu


que sim, mas não emitiu uma opinião concreta a seu respeito.

— Eram pessoas instáveis, nos meus tempos de adolescente —


salientou. —

Perderam ao jogo o dinheiro e propriedades, e atualmente a casa, à


beira do Tamar, não passa de pouco mais que uma herdade em
ruínas. Entrou em declínio há uns quarenta anos. O pai dessa
mulher devia ser A lexander Coryn, que julgo ter desaparecido no
continente, segundo filho de um segundo filho. N ão sei o que foi
feito dele. O A mbrose referiu a idade da condessa?

— N ão. S ó diz que casou muito jovem, mas não quando. S uponho
que é de meia-idade.

— D e qualquer modo, deve ser muito atraente, para lhe despertar


tanto entusiasmo — comentou Louise. — Nunca o tinha ouvido
admirar uma mulher.

— Talvez o segredo resida precisamente aí — aventei. — É feia e


banal e ele não se sente na obrigação de lhe dirigir galanteios. A
hipótese encanta-me.

Chegaram mais duas ou três cartas, sem qualquer novidade


especial. A mbrose acabava de regressar aos seus aposentos
depois de jantar com a nossa prima Raquel ou preparava-se para se
encontrar com ela. Explicava que havia muito poucas pessoas em
Florença capazes de lhe dar conselhos desinteressados sobre os
seus assuntos e sentia-se lisonjeado por lhe poder ser útil. E Raquel
mostrava-se extremamente grata. N ão obstante os seus numerosos
interesses, parecia singularmente só. D ecerto nunca tivera nada em
comum com S angalle i, e confessava que toda a vida ansiara por
dispor de amigos ingleses. "Penso que alcancei algo de positivo,
além de adquirir centenas de novas plantas que regressarão a casa
comigo", revelava numa das missivas.

S eguiu-se um período de silêncio epistolar. Embora não


mencionasse a data do regresso, costumava ser perto do final de
abril. O inverno parecera mais prolongado entre nós, com geada —
raramente forte na área ocidental do país — de uma intensidade e
persistência excepcionais. A lgumas das jovens camélias dele
haviam sido afetadas pela intempérie, e eu acalentava a esperança
de que não regressasse prematuramente e tivesse de suportar
ventos agrestes e chuvas copiosas.

Pouco depois da Páscoa, recebi a carta.


"D eves estar admirado com o meu silêncio e, para ser franco,
nunca esperei vir um dia a escrever-te o que a seguir lerás. A
Providência atua das formas mais estranhas.

Viveste sempre junto de mim, pelo que decerto te apercebeste da


agitação que se me instalou no espírito nas últimas semanas. N a
verdade, 'agitação’, talvez não seja o termo apropriado. O mais
correto seria falar de 'excitação de felicidade’, que se converteu
numa certeza. N ão tomei uma decisão precipitada. Como sabes,
sou demasiadamente um homem de hábitos para alterar o meu
modo de vida por um capricho. N o entanto, compreendi, há
semanas, que não se me deparava outro rumo possível. Encontrei
algo que nunca vislumbrara, nem imaginava que existisse. Mesmo
agora, ainda me custa a crer que aconteceu. O s meus
pensamentos dirigiram-se para ti com frequência, mas só hoje
consegui reunir a calma e coragem suficientes para te escrever. Q
uero comunicar-te

que a tua prima Raquel e eu casamos há duas semanas. Estamos


agora em N ápoles, em plena lua de mel, e tencionamos regressar a
Florença dentro de pouco tempo. N ão te posso dizer mais do que
isto. N ão traçamos quaisquer planos e nenhum dos dois deseja,
para já, viver fora do momento presente.

Espero que um dia, não muito distante, a possas conhecer. Eu


poderia alongar-me numa descrição pessoal que te aborreceria, a
par das suas características nos campos da ternura e bondade, mas
prefiro que te certifiques diretamente, na ocasião oportuna. N ão
entendo por que me escolheu de entre todos os homens, um cínico
avesso às mulheres, empedernido, por assim dizer.

Ela graceja a esse respeito e eu admito a derrota. A liás, ser


derrotado por alguém como a Raquel equivale, de certo modo, a
uma vitória. Poder-me-ia considerar vencedor, e não vencido, se
não constituísse uma afirmação a todos os títulos presunçosa.

Transmite a nova a todos, com as minhas saudades e os


cumprimentos dela, e lembra-te, meu caro rapaz, de que este
casamento, tardio na vida, não alterará um átomo do afeto que me
mereces e até o reforçará, e agora que me julgo o mais feliz dos
homens procurarei fazer ainda mais por ti do que até aqui, com a
ajuda de minha esposa. N ão tardes a escrever e, se achares que o
deves fazer, inclui uma palavra de boas-vindas à tua prima Raquel.

O teu sempre dedicado

Ambrose."

A inesperada comunicação chegou por volta das cinco e meia,


quando eu acabava de jantar. Por sorte, encontrava-me só, pois S
eecombe entregara-me a correspondência e retirara-se em seguida.
Guardei a carta na algibeira e saí para cruzar os campos em direção
ao mar.

O sobrinho de S eecombe, que ocupava a pequena casa perto da


praia, saudou-me.

Tinha as redes estendidas na muralha de pedra, para as secar


aproveitando os derradeiros raios solares. Respondi com um
grunhido entre dentes, e decerto considerou que a minha atitude
não primava pela boa educação. Trepei a umas rochas até alcançar
um rebordo estreito sobranceiro à pequena baía, sentei-me, puxei
da carta e voltei a lê-la.

S e conseguisse experimentar uma ponta de simpatia, de alegria,


um simples raio de ternura pelo casal que partilhava um período de
felicidade em N ápoles, teria ficado com a consciência aliviada.
Envergonhado comigo próprio e irritado com o meu egoísmo, não
era capaz de notar a menor sensação de afeto no coração.
Conservava-me sentado, aturdido pela amargura, o olhar perdido no
mar calmo. A cabava de completar vinte e três anos, malgrado o
que me sentia tão só e perdido como acontecera num passado
remoto, instalado num banco em Fourth Farm, sem ninguém para
me dispensar amizade e nada na minha frente — apenas um mundo
novo de experiência estranha que não desejava.
Capítulo Terceiro

Creio que o que mais me envergonhava era a satisfação dos amigos


dele, o verdadeiro prazer pelo seu bem-estar. O s parabéns caíam-
me em cima às catadupas, como se me considerassem uma
espécie de mensageiro de A mbrose, e no meio de tudo eu tinha de
sorrir, inclinar a cabeça e tentar convencê-los de que previra que
aquilo acabaria por acontecer. S entia-me como um homem de duas
caras, um traidor. O meu primo esforçara-se por me fazer detestar a
falsidade, nas pessoas e nos animais, e, de súbito, descobria-me a
fingir que não me achava à beira de uma angústia excruciante.

"O melhor que lhe podia ter acontecido." Q uantas vezes ouvi
pronunciar estas palavras e tive de as ecoar! Comecei a evitar os
vizinhos e regressar a casa através do bosque, para não enfrentar
os rostos ansiosos e línguas aguçadas. S e passava nas
proximidades das herdades ou visitava a aldeia, não havia fuga
possível. Bastava que alguém me descortinasse para me crivar de
perguntas ou trocar impressões entusiásticas.

Como um ator indiferente, exibia um sorriso forçado e via-me


obrigado a replicar com um calor que me desagradava, como o que
o mundo espera que se fale de uma boda.

"Quando voltam?"

Para isto, não havia resposta senão: "Não sei. O Ambrose não diz".

Havia larga especulação sobre o aspecto, idade e natureza geral da


noiva, a que me limitava a replicar: "É viúva e também adora a
jardinagem".

A s cabeças dos interessados inclinavam-se em aprovação: muito


apropriado, não podia ser melhor, a mulher indicada para ele. S
eguia-se então uma fase de comentários maliciosos, aparentemente
inofensivos, relativos à interrupção de um longo celibato de quem
parecia um solteirão inveterado. A arguta Mrs. Pascoe, esposa do
vigário, perorou acerca do tópico, como se ao fazê-lo se vingasse de
insultos passados sobre o matrimônio.

— Como vai ser tudo diferente agora, Mr. A shley! — proclamava


em todas as oportunidades possíveis. — A cabou-se a indiferença
pela arrumação em sua casa. E

ainda bem. Passará a imperar uma certa organização entre o


pessoal doméstico, o que decerto não agradará ao Seecombe, que
fazia praticamente o que queria.

N este aspecto, falava verdade. Penso que S eecombe era o meu


único aliado, mas eu tinha o cuidado de não enfileirar a seu lado e
interrompia-o quando tentava revelar-me o que lhe ia no íntimo.

— N ão sei o que dizer, Mr. A shley — murmurava, sombrio e


resignado. —Uma senhora cá em casa voltará tudo do avesso e
ficaremos sem saber a quantas andamos.

Primeiro uma coisa, depois outra, e provavelmente ninguém


conseguirá agradar-lhe por mais que se esforce. J ulgo chegado o
momento de me aposentar e ceder o lugar a alguém mais jovem.
Talvez não fosse má ideia mencionar o fato a Mr. A mbrose, quando
lhe escrever.

I ndicava-lhe que não fosse pateta e A mbrose e eu estaríamos


perdidos sem ele, mas abanava a cabeça e continuava a executar
as suas tarefas com uma expressão grave, sem deixar escapar uma
oportunidade para pronunciar uma alusão amargurada ao futuro, à
inevitável alteração das horas das refeições, modificação profunda
na disposição do mobiliário, uma interminável operação de limpeza
que se prolongaria da alvorada ao anoitecer sem repouso para
ninguém e, como tirada final, até os infortunados cães sofreriam as
consequências. Estas profecias, emitidas em tons sepulcrais,
permitiram-me recuperar uma certa medida do perdido sentido do
humor, e soltei uma gargalhada pela primeira vez desde que lera a
carta de Ambrose.
Q ue quadro pintava o fiel S eecombe! A cudiu-me uma visão de um
regimento de empregadas domésticas, munidas de panos e
espanadores, atarefadas a eliminar até à última teia de aranha, sob
o olhar desaprovador do velho mordomo. A sua melancolia divertia-
me, mas quando outros principiaram a afinar pelo mesmo diapasão
— a própria Louise Kendall, a qual, por me conhecer bem, devia ter
percepção suficiente para dominar os impulsos da língua —-, passei
a irritar-me.

— A o menos, vai haver novas coberturas para os móveis da


biblioteca —

declarou alegremente. — A s atuais tornaram-se cinzentas com o


tempo e uso, mas aposto que vocês nunca repararam. E flores
dentro de casa, o que será um progresso de monta. A sala de estar
cumprirá finalmente as suas funções, pois sempre me pareceu
lamentável que não a utilizassem. Calculo que Mrs. A shley a
decorará com livros e quadros da sua vivenda na Itália.

Continuou a desbobinar o seu rosário, enumerando toda uma lista


de

“progressos”, até que perdi a paciência e disse com certa aspereza:

— Com a breca, Louise, deixa o assunto em paz! Estou farto de


tudo isso até a raiz dos cabelos.

Interrompeu-se e olhou-me com curiosidade.

— Não estarás, porventura, com inveja?

— Não sejas pateta.

Haveria, sem dúvida, adjetivos menos inconvenientes para lhe


dirigir, mas conhecíamo-nos tão bem que a encarava como uma
irmã mais jovem, sem lhe conceder respeito especial.
A partir daí, não insistiu, e reparei que, quando o estafado tema
voltava à baila na conversa geral, me olhava e tentava passar a
outro. O fato mereceu a minha gratidão e fiquei a gostar mais dela.

Foi o seu pai e meu padrinho, N ick Kendall, que deu a estocada
final, inconsciente de que o fazia, naturalmente, no habitual tom
brusco e sem rodeios.

— J á efetuaste planos para o futuro, Philip? — perguntou-me, uma


noite, quando me apresentei em sua casa para jantar.

— Planos? — repeti, sem compreender. — Não.

— A inda é cedo, claro — admitiu —, e suponho que não os poderás


fazer até que o A mbrose e a esposa cheguem. Perguntei apenas
para saber se encaraste a hipótese de procurar uma pequena
propriedade nas imediações.

— Com que intuito? — D ecididamente, custava-me a abarcar o


sentido da sua curiosidade.

— Bem, a situação alterou-se um pouco, não achas? -- Volveu com


desprendimento. — Eles desejarão sem dúvida estar sós. E, se
surgir um filho, as coisas não serão iguais para ti, hem? Penso que
o A mbrose não permitirá que sofras com o novo panorama e te
comprará qualquer propriedade que escolheres. Existe, decerto, a
possibilidade de não terem descendentes, mas, por outro lado,
subsiste sempre essa eventualidade. Talvez prefiras construir. Às
vezes, resulta mais satisfatório do que adquirir uma casa já pronta.

Continuou a falar e mencionar locais num raio de cerca de trinta


quilômetros suscetíveis de me agradar, e fiquei aliviado ao verificar
que não esperava que me pronunciasse imediatamente. O que ele
sugeria era tão abrupto e inesperado que eu experimentava
dificuldade em raciocinar com clareza, e, na primeira oportunidade,
despedi-me. S im, tinha inveja. A final, Louise devia falar verdade. A
inveja de uma criança que se encontrava repentinamente obrigada a
partilhar a única pessoa da sua vida com uma estranha.
À semelhança de S eecombe, eu vira-me a desenvolver todos os
esforços para me adaptar a uma situação nova e desconfortável. A
pagar o cachimbo na presença dela, pôr-me de pé à sua entrada,
diligenciar, embora contrariado, participar na conversa, resignar-me
aos rigores e tédio da sociedade feminina. E ver A mbrose
comportar-se como um imbecil, até me sentir na obrigação de
abandonar o aposento em virtude do profundo embaraço. N unca
me considerara um intruso. J á não desejado, expulso do lar e
alojado em qualquer recanto, como um criado. A aparição de um
filho, que chamaria pai a A mbrose, pelo que eu deixaria de ser
necessitado. S e tivesse sido Mrs. Pascoe que me chamasse a
atenção para semelhante possibilidade, atribuiria o fato a malícia e
esquecê-

lo-ia. Mas o meu próprio padrinho, um homem reservado e calmo, a


expor uma hipótese tão cruel, era diferente.

Regressei a casa atormentado pela incerteza e tristeza. Q uase não


sabia o que fazer. D everia traçar planos, como N ick Kendall
sugerira? Procurar uma nova residência?

Efetuar os preparativos para partir? N ão queria viver em qualquer


outro lugar ou possuir

outra casa. A mbrose criara-me e educara-me somente para aquela.


Era minha. E dele.

Pertencia a ambos.

Mas agora tudo se modificara. Recordo-me de vaguear pela


vivenda, quando regressei da visita aos Kendall, e contemplá-la com
um olhar novo, e os cães, pressentindo a minha perturbação,
seguiam-me, tão inquietos como eu. O meu antigo quarto quando
criança, desocupado desde longa data, e agora o local onde a
sobrinha de S eecombe se instalava uma vez por semana para
cuidar da roupa da casa, adquiria um novo significado.
Vi-o pintado de fresco, e o meu pequeno taco de críquete, que ainda
se encontrava, debaixo de teias de aranha, numa prateleira entre
livros cobertos de pó, deitado fora como mero lixo.

N ão me ocorrera até então que o aposento continha numerosas


recordações.

A gora, desejava recuperá-lo, um oásis de refúgio do mundo


exterior. A o invés, converter-se-ia num lugar estranho, abafado, a
cheirar a leite fervido e cobertores postos a secar, como as salas de
casas pequenas que visitava com frequência, onde viviam crianças.
A imaginação as mostrava a gatinhar pelo chão com gritos agudos e
colidir para se magoarem, no meio de uma confusão indescritível. S
anto D eus! Estaria tudo aquilo, ou mesmo pior, reservado a
Ambrose?

Até então, quando pensava na minha prima Raquel — o que só


fazia esporadicamente, para afastar em seguida o nome da mente,
como se faz perante uma coisa desagradável —, concebera-a como
parecida com Mrs. Pascoe. D e traços fisionômicos mais ou menos
grosseiros, olhar perscrutador para detectar o mínimo grão de pó,
como S eecombe profetizara, e risadas demasiado agudas,
sobretudo quando houvesse convidados para jantar.

A gora, assumia novas proporções. N um momento monstruosa,


como a infeliz Molly Bates, membro do pessoal doméstico, que
obrigava as pessoas a desviar a vista por uma questão de
delicadeza, e no seguinte pálida e retraída, coberta com um xale
numa cadeira dominada por uma petulância de inválida, enquanto
uma enfermeira permanecia alerta para lhe acudir e, entretanto,
misturava medicamentos com uma colher.

N um momento, de meia-idade e enérgica, e no seguinte afetada e


mais jovem do que Louise, a minha prima Raquel tinha uma dúzia,
pelo menos, de personalidades, cada uma mais odiosa que a
anterior.
I maginei-a a obrigar A mbrose a ajoelhar para brincar com os filhos
encavalitados nas costas e ele a submeter-se com humilde
graciosidade por ter perdido toda a dignidade. N o entanto, via-a
igualmente envolta em musselina, com uma fita no cabelo, sacudir
os caracóis com uma expressão pretensiosa, enquanto A mbrose se
reclinava na poltrona a observá-la, um sorriso de pateta a alterar-lhe
o rosto.

Q uando, em meados de março, chegou a carta a anunciar que


afinal tinham decidido continuar no estrangeiro durante o verão, o
meu alívio foi tão intenso que me contive com dificuldade de soltar
um grito de satisfação. S entia-me mais traiçoeiro que nunca, mas
não o podia evitar.

"A tua prima Raquel está ainda tão assoberbada pela resolução dos
seus assuntos antes de partir para a I nglaterra que decidimos,
embora contrariados, como deves calcular, protelar o regresso para
já", revelava A mbrose. "Esforço-me tanto quanto possível, mas as
leis italianas diferem radicalmente das nossas, e é uma carga de
trabalhos tentar harmonizá-las. Farto-me de gastar dinheiro, mas
faço-o por uma boa causa de que me não arrependo. Falamos de ti
com frequência, meu rapaz, e lamento que não estejas conosco."

Prosseguia com perguntas sobre a situação no lar e estado dos


jardins, com o habitual fervor de interesse, pelo que se me afigurava
que eu devia estar louco para imaginar por um momento que fosse
que ele podia mudar.

A vizinhança não deixou, evidentemente, de se mostrar


desapontada pelo fato de eles não regressarem antes do final do
verão.

— Talvez o estado de saúde de Mrs. A shley a impeça de viajar —


observou Mrs.

Pascoe, com um sorriso malicioso.


— I sso não sei — repliquei. — O A mbrose refere na carta que
passaram uma semana em Veneza e voltaram de lá com
reumatismo.

— Reumatismo? — O sorriso extinguiu-se. — A esposa também? Q


ue pena... — E, com uma expressão pensativa:

— Deve ser mais velha do que eu supunha.

Uma mulher apatetada, com o raciocínio orientado invariavelmente


para um único rumo. Eu sofrera de reumatismo nos joelhos aos dois
anos de idade. Com dores incomodativas, segundo os meus pais
me haviam explicado. Às vezes, quando a umidade do ar
aumentava, ainda me acudiam.

A pesar disso, existia alguma similaridade entre os meus


pensamentos e os de Mrs.

Pascoe. A minha prima Raquel envelheceu subitamente vinte anos.


Voltava a ter cabelo grisalho, apoiava-se a uma bengala, e eu via-a,
quando não plantava rosas no jardim italiano que me era impossível
configurar, sentada a uma mesa, a bater impacientemente com a
bengala no chão, rodeada por meia dúzia de advogados que
palravam em italiano, enquanto o infortunado Ambrose permanecia
resignadamente a seu lado.

Por que não regressava ele a casa e a deixava resolver os seus


problemas?

O meu estado de espírito melhorou, todavia, a partir do instante em


que a noiva afetada cedeu o lugar à matrona idosa, flagelada por
lumbago. O quarto das crianças retrocedeu para segundo, ou
mesmo terceiro, plano, e a sala converteu-se num boudoir,
circundado por cortinados, uma ampla lareira acesa em pleno verão
e alguém a chamar

S eecombe em tom irritado para que trouxesse mais carvão, porque


o frio a incomodava profundamente. Readquiri o hábito de cantar
quando montava a cavalo, incitava os cães para perseguirem
coelhos jovens, nadava antes do café da manhã, passeava na
embarcação de A mbrose até o estuário se o vento soprava de
feição e gracejava com Louise acerca das modas impostas por
Londres, quando ela ia lá passar a época do ano apropriada.

A os vinte e três anos, não é preciso muito para que o espírito


assuma um estado quase de euforia. A casa continuava a ser o meu
lar. Ninguém o arrebatara de mim.

Até que, no inverno, o tom geral das cartas dele se alterou. D e


modo imperceptível, a princípio, e quase não me dei conta.

Porém, ao reler as suas palavras detectei uma aragem de tensão,


como que uma nota de ansiedade subjacente que o dominava
gradualmente. D epreendi que, em parte, se tratava de saudades de
casa. Uma nostalgia da pátria e de bens que lhe pertenciam, mas,
sobretudo, uma espécie de solidão que me parecia estranha num
homem casado havia apenas dez meses.

A dmitia que o verão e o outono tinham sido muito cansativos, e


agora o inverno encontrava-se invulgarmente perto.

Embora a vivenda se situasse num ponto elevado, a atmosfera era


opressiva, e ele dizia que costumava mover-se de um aposento
para outro como um cão antes de uma tormenta, sem que, contudo,
se registasse qualquer trovão. O ar persistia pesado, e daria a
própria alma por uma boa chuvada, ainda que lhe agudizasse o
reumatismo. "N unca fui atreito a enxaquecas, mas agora acodem-
me com frequência”, escrevia. “Às vezes, quase me privam da
visão. Estou farto de ver o S ol. N ão encontro palavras para
exprimir as saudades que tenho de ti. Há muitas coisas para
abordarmos, mas não por carta. A minha mulher foi hoje à cidade, e
daí a oportunidade que se me depara para traçar estas linhas". Era
a primeira vez que empregava a expressão ‘minha mulher’. Até
então, mencionara-a como ‘Raquel’, ou ’a tua prima Raquel’, pelo
que ‘minha mulher’ parecia formal e mesmo fria.
N essas epístolas do inverno, não aludia ao regresso, mas
manifestava sempre um desejo apaixonado de conhecer as
novidades, e comentava qualquer pequena ocorrência que eu lhe
comunicara em cartas anteriores, como se não possuísse outro
interesse.

Como não chegassem notícias na Páscoa ou no Pentecostes,


comecei a preocupar-me. Falei disso ao meu padrinho, que aventou
a possibilidade de o mau tempo ter atrasado o correio. Verificavam-
se intensas nevascas na Europa Central, pelo que eu não devia
contar com a chegada de correspondência de Florença antes de fins
de maio.

Havia já um ano que Ambrose casara e dezoito meses que partira


para a Itália.

O meu alívio inicial pela sua ausência, após o enlace, transformou-


se em temor de que jamais voltasse. Era óbvio que um verão no
continente lhe afetara a saúde. Q ue

aconteceria após o segundo? Por fim, em julho, chegou uma carta,


breve e incoerente, totalmente imprópria dele. Até a letra, em geral
bem legível, estendia-se no papel como se lhe fosse difícil pegar na
caneta.

“N ão estou a passar bem”, reconhecia. “D eves ter-te apercebido


pela minha carta anterior. Em todo o caso, convém guardar silêncio,
pois ela vigia-me constantemente.

Escrevi-te diversas vezes, mas não há ninguém que me mereça


confiança, e a menos que eu próprio saia para enviar estas linhas,
há o perigo de não te chegarem às mãos. D esde que adoeci, não
posso ausentar-me para muito longe. Q uanto aos médicos, nenhum
me proporciona o mínimo alívio. S ão uma corja de mentirosos. O
mais recente, recomendado por Rainaldi, tem ares de assassino, o
que não admira, atendendo à sua proveniência. N o entanto, eles
nem sabem no que se meteram ao desafiar-me, e acabarei por
vencê-los." S eguia-se um espaço em branco e a anteceder a
assinatura umas garatujas que não consegui decifrar.

Mandei selar o cavalo e fui mostrar a missiva ao meu padrinho, que


ficou tão apreensivo como eu.

— D á a impressão de um colapso mental — declarou sem hesitar.


— Confesso que não me agrada nada. N ão é uma carta própria e
um homem em plena posse das suas faculdades. Deus queira que...
— Interrompeu-se e mordeu o lábio inferior.

— Deus queira o quê? — perguntei.

— O teu tio Philip, pai do A mbrose, morreu de um tumor no cérebro


— declarou secamente. — Suponho que não o ignoras?

Era a primeira vez que ouvia mencionar o fato e o disse.

— A conteceu antes de nasceres, claro — acrescentou. — O


assunto nunca foi muito ventilado na família. N ão sei se essas
coisas são hereditárias, e os médicos creio que também não. A
medicina não está suficientemente avançada. — Tornou a ler a
carta, recorrendo aos óculos. — Existe, sem dúvida, outra
possibilidade, extremamente improvável, mas que eu preferiria...

— Qual?

— Ele estar embriagado quando escreveu isto.

S e não tivesse mais de sessenta anos e não fosse meu padrinho,


eu não teria hesitado em esbofeteá-lo pelo arrojo da sugestão.

— Nunca o vi embriagado — afirmei com veemência.

— N em eu — admitiu com prontidão. — Limito-me a tentar escolher


o menor de dois males. Acho que deves partir para a Itália.

— Já tinha decidido fazê-lo, antes de o procurar — anunciei.


Regressei a casa, sem a mais remota ideia das providências a
tomar para empreender a viagem.

N ão partia de Plymouth qualquer barco que me pudesse ser útil,


pelo que seria

obrigado a seguir para Londres, daí para D over, embarcar no


paquete para Bolonha e depois atravessar a França, rumo à I tália
na diligência usual. A dmitindo que não se verificariam atrasos
imprevistos, encontrar-me-ia em Florença dentro de cerca de três
semanas. O meu francês era fraco e o italiano inexistente, mas nada
disso me preocupava, desde que pudesse chegar até A mbrose. D
espedi-me de S eecombe e do pessoal, com a única explicação de
que tencionava efetuar uma breve visita ao amo, sem todavia
mencionar a doença, e parti para Londres numa bela manhã de
julho, com a perspectiva de uma viagem de cerca de três semanas
em território desconhecido no meu horizonte.

Q uando a carruagem enveredava pela estrada de Bodmin, avistei o


nosso empregado que costumava ir buscar a correspondência. I
ndiquei a Wellington que parasse e o rapaz entregou-me a mala.
Existia uma possibilidade muito remota de haver nova carta de A
mbrose, mas foi o que aconteceu. S eparei-a das restantes, devolvi
a mala ao rapaz e mandei-o seguir para casa. Enquanto reatávamos
a marcha, extraí a folha de papel do sobrescrito e aproximei-a da
janela para ver melhor.

As palavras estavam garatujadas, quase ilegíveis:

"Vem depressa, por amor de D eus. Ela acabou por se desmascarar,


Raquel, o meu tormento. Se não me acudires imediatamente,
poderá ser demasiado tarde. Ambrose."

A penas isto. N ão havia qualquer data, nem marca no sobrescrito,


selado com o anel dele.

Conservei-me imóvel, com a folha de papel na mão, consciente de


que nenhum poder do Céu ou da Terra me permitiria chegar junto
dele antes de meados de agosto.

Capítulo Quarto

Q uando a diligência chegou a Florença e nos largou à entrada da


estalagem à beira do A rno, afigurava-se-me que passara toda a
vida na estrada. N enhum viajante que pousasse os pés no
continente europeu pela primeira vez se sentiria menos
impressionado do que eu.

O s caminhos que percorremos, os montes e vales, as cidades,


francesas ou italianas, onde nos detivemos para pernoitar,
pareciam-me todos iguais. Em toda a parte imperava a sujidade, e o
ruído era ensurdecedor. Habituado ao silêncio da vivenda quase
vazia — pois o pessoal dormia nas suas instalações junto da torre
do relógio —, onde eu não ouvia qualquer som ao longo da noite, à
parte o vento nas árvores e o bater da chuva nas vidraças quando a
circulação era de sudoeste, a confusão e pandemônio das cidades
estrangeiras quase me aturdiam.

É verdade que dormi — quem não se deixa vencer pelo sono após
longas horas de trepidação na estrada? —, porém os sonhos
estavam povoados por todos os ruídos estranhos: o bater de portas,
vozes agudas, passos junto da janela, carroças pesadas que
percorriam a rua empedrada e, sempre, cada quarto de hora, o
badalar do relógio do campanário. S e me encontrasse no
estrangeiro com qualquer outra missão, talvez tudo fosse diferente.
Poderia então assomar à janela pela manhã com o espírito
despreocupado, observar as crianças descalças a brincar no
passeio e até talvez lhes atirasse moedas, enquanto escutaria os
novos sons com fascinação, para à noite passear pelas ruas
estreitas e sinuosas com agrado perante um ambiente diferente do
habitual.

N o entanto, a atual situação obrigava-me a encarar tudo com


indiferença e até hostilidade. O meu único objetivo consistia em
entrar em contato com A mbrose, e o fato de o saber enfermo num
país estranho fazia com que a minha ansiedade se convertesse em
ódio por tudo o que era estrangeiro, até o próprio solo.

A temperatura era quase sufocante. O céu apresentava uma


tonalidade azul-clara e, enquanto percorria as estradas poeirentas
da Toscana, dir-se-ia que os raios solares tinham absorvido toda a
umidade da atmosfera. O s vales achavam-se cobertos por um
tapete pardo e as pequenas povoações encontravam-se desertas,
pois os habitantes refugiavam-se debaixo dos seus tetos para obviar
o calor.

O meu primeiro instinto, ao apear-me da diligência em Florença,


enquanto descarregavam a bagagem coberta de pó e a levavam
para a estalagem, consistiu em cruzar a rua empedrada e postar-me
diante do rio.

S entia-me extenuado e coberto de pó da cabeça aos pés. N os dois


últimos dias,

preferira sentar-me ao lado do condutor para não morrer sufocado


dentro da pequena cabina, e, à semelhança dos infortunados
animais que percorriam a estrada, ansiava por uma paisagem em
que a água ocupasse um lugar privilegiado. A gora, tinha-a na
minha frente. N ão se tratava do estuário azul das proximidades de
casa, mas de uma corrente caudalosa acastanhada como o leito
pelo qual circulava, a superfície sulcada de detritos, apesar do que,
para a minha imaginação, quase febril de cansaço e sede,
representava um espetáculo maravilhoso, como quem se sente
disposto a tragar veneno, desde que lhe mitigue a secura das
entranhas.

Continuei a contemplar a água em movimento, fascinado, enquanto


o sol incidia na ponte próxima, até que, de súbito, atrás de mim, na
cidade, soaram as badaladas solenes das quatro horas. O eco foi
retomado por outros campanários e o som misturou-se com as
águas castanhas do rio.
N otei a meu lado uma mulher, com uma criança soluçante nos
braços e outra agarrada às saias rasgadas, a qual estendeu a mão
na minha direção, os olhos negros dominados por uma expressão
de súplica. D ei-lhe uma moeda, mas tocou-me no cotovelo,
murmurando, até que um dos passageiros da diligência, ainda junto
desta, lhe dirigiu algumas palavras incisivas em italiano e ela
afastou-se para a ponte de onde viera. Era jovem; pouco mais de
dezenove anos, porém os traços do semblante podiam considerar-
se intemporais, perseverantes, como se albergasse no pequeno
corpo uma alma velha que se recusava a morrer. Mais tarde, já no
quarto que me atribuíram, assomei à pequena varanda sobranceira
à praça e vi-a mover-se entre as carroças, furtivamente, como uma
gata a coberto da noite.

Lavei-me e mudei de roupa com uma apatia invulgar em mim. A


gora que chegara ao termo da viagem, assolava-me uma espécie de
alheamento, e o ânimo que me impelira a efetuar a longa
peregrinação parecia ter-se dissipado, substituído por uma
indiferença inexplicável. A própria realidade da folha de papel na
minha algibeira perdera toda a substância. Fora escrita há muitas
semanas, e tornava-se difícil determinar o que podia ter acontecido
desde então. Talvez ela tivesse levado A mbrose de Florença, em
direção a Roma ou Veneza, e imaginei-me encafuado de novo na
diligência, atrás deles, para percorrer cidade após cidade ao longo
do tórrido país, sem jamais os encontrar, sempre vencido pelo
tempo e estradas poeirentas.

Por outro lado, as minhas deduções podiam estar erradas, com as


cartas escritas apressadamente, e daí a irregularidade da letra,
resultado de uma das partidas a que o A mbrose de outrora se
dedicava de vez em quando. N essa conformidade, apresentar-me-
ia na vivenda e descobri-lo-ia a meio de uma recepção, abrilhantada
por trepidante música italiana.

D esci à praça diante da estalagem. A s carroças já não se achavam


lá. O período da sesta terminara e as ruas voltavam a estar cheias
de gente. Enveredei por elas e perdi-me
quase imediatamente. Rodeavam-me pátios e travessas sombrios,
casas altas que dir-se-ia tocarem-se, varandas protuberantes, e, à
medida que as percorria, vislumbrava rostos desconfiados ou
curiosos que me acompanhavam com os olhos e expressões de
sofrimento. A lgumas pessoas aventuraram-se a seguir-me,
murmurando, como fizera a mendiga com dois filhos de tenra idade,
e estendendo as mãos, mas quando eu lhes falava com aspereza, à
semelhança do meu companheiro de viagem, retrocediam,
apreensivas.

O s sinos recomeçaram a atroar os ares e desemboquei numa larga


piazza, onde numerosos indivíduos, em grupos, falavam e
gesticulavam animadamente, sem o menor elemento de ligação, a
meu ver, com os edifícios em redor, austeros e belos, ou com as
estátuas que os contemplavam remotamente com olhos cegos ou
mesmo com o som dos sinos, que vibravam intensa e lugubremente
sob o céu quase plúmbeo.

Chamei uma carrozza que ia passando e, quando articulei em tom


hesitante as palavras "Villa S angalle i”, o condutor respondeu algo
que não compreendi, embora detectasse o termo “Fiesole", ao
mesmo tempo que inclinava a cabeça e apontava com o chicote. S
eguimos pelas artérias estreitas apinhadas de gente, enquanto ele
vociferava para o cavalo e as pessoas se desviavam
apressadamente. O s sinos calaram-se, todavia o eco pareceu
perdurar nos meus ouvidos, solene, sonoro, dobrando, não pela
minha missão, insignificante e pequena, nem pelas vidas dos
transeuntes, mas pelas almas de homens e mulheres há muito
falecidos e pela eternidade.

S ubimos uma estrada longa e sinuosa em direção às colinas


distantes e deixamos Florença para trás. A s casas começaram a
rarear e atravessamos uma área pacífica, silenciosa, sem o calor
sufocante de pouco antes. A s construções que agora nos ladeavam
apresentavam um aspecto menos formal, mais acolhedor.
Entretanto, a vegetação aumentava, com mais tendência para o
verde do que para o castanho das regiões flageladas pelas
temperaturas escaldantes.

O condutor deteve a carrozza diante de um portão fechado


embutido num muro alto, voltou-se no banco e olhou-me por cima
do ombro.

— Villa Sangalletti — anunciou simplesmente. O termo da minha


peregrinação.

Fiz-lhe sinal para que aguardasse, apeei-me, avancei para o portão


e puxei a corrente da sineta a um lado. O uvi-a retinir no interior da
propriedade. O condutor levou a carrozza para a berma da estrada,
saltou do banco e permaneceu junto dela, ao mesmo tempo que
enxotava as moscas com o chapéu.

O cavalo inclinou-se entre os varais e assumiu a melhor posição


possível para recuperar as energias, após a longa e íngreme subida.
Como não acudisse ninguém, tornei a puxar a corrente da sineta. D
esta vez, registou-se o latido surdo de um cão, que aumentou de
intensidade no momento em que se abriu uma porta algures. O grito
de uma criança foi abafado, enérgica e irritadamente, por uma voz
feminina, e distingui

passos que se acercavam. Registrou-se o ruído de um ferrolho e o


ranger dos gonzos do portão à medida que se abria. S urgiu uma
mulher com ares de camponesa, que me olhou em silêncio.

— Villa Sangalletti? — proferi. — Signor Ashley?

O cão, preso por uma corrente à entrada de um anexo onde ela


decerto vivia, pôs-se a ladrar mais furiosamente que antes.
Estendia-se uma alameda à minha frente, ao fundo da qual avistei a
villa, com aspecto decrépito e destituída de vida.

A mulher fez menção de me fechar o portão na cara, enquanto o


animal persistia nos latidos e a criança chorava. O rosto daquela
estava inchado, como se sofresse de dor de dentes, e conservava a
ponta do xale pousado nele, como que para atenuar o tormento.

Transpus o portão e repeti as palavras "Signor Ashley".

D esta vez, ela estremeceu, como se visse os meus traços


fisionômicos pela primeira vez, e pôs-se a falar rapidamente, com
uma espécie de agitação nervosa, ao mesmo tempo que gesticulava
em direção à vivenda. D e repente, voltou-se e chamou alguém que
se encontrava no anexo. Um homem, presumivelmente o marido,
apareceu à porta aberta, com uma criança equilibrada no ombro,
reduziu o cão ao silêncio e aproximou-se de mim, enquanto
increpava a mulher. Esta prosseguiu a torrente de palavras, das
quais distingui “A shley” e “I nglese”, e foi a vez dele de me olhar
com estranheza. Tinha um aspecto menos desagradável que ela —
mais asseado e olhos de expressão sincera —, até que a expressão
se alterou para profunda apreensão e murmurou algumas palavras
para a mulher, a qual desapareceu no interior do anexo com a
criança, para assomar quase imediatamente, ainda com a ponta do
xale pousada no rosto.

— Eu falo algum inglês, signore — articulou o homem. — Em que o


posso servir?

— Procuro Mr. Ashley — informei. — Ele e Mrs. Ashley encontram-


se na villa?

A expressão apreensiva acentuou-se e ele engoliu com nervosismo,


antes de perguntar:

— É filho de Mr. Ashley, signore?

— Não — redargui com impaciência. — Sou primo. Eles estão em


casa?

Meneou a cabeça, mais acabrunhado que nunca.


— N esse caso, vem da I nglaterra e não sabe o que aconteceu? Q
ue posso dizer? É

um assunto muito triste, não sei como explicar-lhe. O S ignor A


shley morreu há três semanas. D e repente. Uma pena... A
condessa fechou a villa, mal o enterraram, e partiu.

Há quase duas semanas que não se encontra cá. Ignoramos se


voltará.

O cão reatou os latidos e ele voltou-se para o mandar calar.

S enti o sangue esvair-se do rosto, absolutamente estupefato. O


homem observava-me com pesar e disse algo à mulher, que foi
buscar um banco e o colocou a meu lado.

— Sente-se, signore — indicou ele. — Lamento. Lamento


profundamente.

A banei a cabeça, impossibilitado de falar. N ão havia nada que


pudesse dizer. O

homem, preocupado, dirigiu-se à mulher em tom agreste, para


desanuviar a tensão, e virou-se de novo para mim.

— Se deseja entrar na villa, eu abro-a. Poderá ver onde o Signor


Ashley morreu.

Era-me indiferente o que fazia ou aonde ia. A minha mente ainda se


achava demasiado aturdida para raciocinar. Ele começou a afastar-
se pela alameda, ao mesmo tempo que puxava de umas chaves da
algibeira, e acompanhei-o, com as pernas subitamente pesadas
como chumbo. A mulher e a criança seguiram-nos.

O s ciprestes que nos ladeavam lembravam sentinelas tenebrosas,


e a decrépita vivenda, como um sepulcro, aguardava ao fundo da
alameda. À medida que nos aproximávamos, vi que era grande,
com muitas janelas, todas fechadas, e, diante da entrada, o caminho
de acesso descrevia um círculo, para as carruagens poderem
inverter a marcha. Estátuas, nos respectivos pedestais, erguiam-se
entre os ciprestes.

O homem abriu a pesada porta com uma das chaves que possuía e
fez-me sinal para que entrasse. A mulher e a criança também
vieram e eles começaram a subir os estores, passando de aposento
a aposento, decerto convencidos de que a entrada da luz me
atenuaria a amargura. A s dependências comunicavam todas umas
com as outras, grandes e arejadas, com frescos no teto e chão de
pedra, num ambiente vagamente medieval. N umas, as paredes
eram lisas, enquanto outras exibiam tapeçarias e, noutra ainda,
mais escura e opressiva, havia uma longa mesa de refeitório
circundada por cadeiras monásticas lavradas, com candelabros
enormes em cada extremidade.

— A Villa S angalle i é muito bonita e antiga, signore — disse o


homem. — O

S ignor A shley costumava sentar-se aqui quando o sol era muito


forte para ele. Esta era a sua cadeira.

A pontou, quase com reverência para uma de espaldar elevado a


um lado da mesa.

Eu observava tudo como que imerso num sonho. N ada daquilo


possuía realidade. Era-me impossível imaginar A mbrose naquela
casa ou naquela sala. N unca poderia entrar ali com o à vontade
que eu tão bem lhe conhecia, a assobiar e conversar com ar
despreocupado.

Persistentemente, em ritmo monótono, marido e mulher moviam-se


em torno do aposento para abrir janelas e subir estores. Lá fora,
havia um pequeno pátio, uma espécie de claustro quadrangular,
aberto ao céu, mas protegido do sol. N o centro, via-se uma fonte,
com a estátua de bronze de um rapaz, que segurava uma concha
nas duas mãos.
Atrás da fonte, um laburno entre duas áreas pavimentadas, que
produzia uma abóbada de sombra. A s flores douradas há muito que
tinham murchado e caído no chão poeirento e cinzento. O homem
murmurou à mulher, que se dirigiu a um canto do pátio e fez rodar
uma torneira. Com lentidão, suavemente, a água começou a jorrar
entre as mãos do rapaz.

— O S ignor A shley sentava-se aqui todos os dias, para observar a


fonte — explicou ele. — Gostava de ver a água. Colocava-se
debaixo da árvore. É muito bonita, na primavera, coberta de flores.
A contessa chamava-o do quarto por cima.

A pontou para as colunas de pedra da balaustrada. A mulher


desapareceu dentro de casa e, momentos depois, aparecia na
varanda que o marido indicara, depois de subir os estores.

Entretanto, a água continuava a jorrar entre as mãos do rapaz.

— N o verão, sentavam-se sempre aqui — prosseguiu o homem. —


O S ignor A shlev e a contessa. Comiam ao som da água da fonte.
Era eu que os servia. Trazia dois tabuleiros e pousava-os na mesa.
— A pontou para a mesa de pedra e duas cadeiras que ainda ali se
encontravam. — A pós o jantar, tomavam a tisana, dia após dia,
sempre da mesma maneira.

Fez uma pausa e tocou numa cadeira com a mão. A cudiu-me uma
sensação de opressão. A temperatura era agradável no pequeno
pátio, fresca quase como numa sepultura, apesar do que a
atmosfera dir-se-ia estagnada, como a do interior da casa antes de
ventilada.

Pensei em A mbrose em nossa casa. Percorria a propriedade em


mangas de camisa durante o verão, apenas com a proteção de um
chapéu de palha. Revi esse chapéu, puxado para os olhos,
enquanto ele se sentava na embarcação e apontava para algo ao
longe, no mar. Recordava-me de como estendia os braços, a fim de
me puxar para bordo, quando eu nadava na sua esteira.
— S im — volveu o homem, como que para consigo. — O S ignor A
shley sentava-se nesta cadeira para olhar a água.

A mulher reapareceu, cruzou o pátio e fechou a torneira. A água


parou de correr.

Tudo ficou imóvel, silencioso. A criança, que estivera a contemplar a


fonte de olhar arregalado, agachou-se repentinamente e pôs-se a
apanhar vagens do laburno, que em seguida se entreteve a atirar à
água da fonte.

A mulher ralhou-lhe, puxou-o para a parede e pegou numa vassoura


aí apoiada, com a qual principiou a varrer o pátio.

O fato quebrou o silêncio, e o marido tocou-me no braço.

— Quer ver o quarto onde o signore morreu? — perguntou com


brandura.

Possuído pela mesma sensação de irrealidade, segui-o pela


escadaria de acesso ao piso superior. Atravessamos aposentos
menos abundantemente mobilados que os de baixo, e um, virado a
norte, sobranceiro à alameda dos ciprestes, achava-se desnudo
como uma cela monástica, à parte a simples armação de ferro de
uma cama encostada à parede, junto da qual se viam um jarro de
água, uma bacia e um biombo. Havia tapeçarias na parede acima
da lareira e, num nicho ao canto, encontrava-se uma estatueta que
representava uma Virgem ajoelhada, as mãos unidas em prece.

D irigi o olhar para a cama. O s cobertores estavam


meticulosamente dobrados aos pés. Duas almofadas, sem fronhas,
achavam-se colocadas à cabeceira, sobrepostas.

— O fim foi muito rápido — informou o homem, a meia voz. — É


certo que ele estava fraco, muito mesmo, mas ainda na véspera se
arrastara até ao pátio, para se sentar diante da fonte. A contessa
bem lhe recomendou que voltasse para a cama, devido à fraqueza,
mas o S ignor A shley não quis escutá-la. E os médicos entravam e
saíam constantemente. O Signor Rainaldi também veio para o
convencer a ter cuidado, mas ele reagia com violência, como uma
criança. Era aflitivo ver um homem definhar daquela maneira. Até
que, de manhã cedo, a contessa foi chamar-me ao quarto, pois eu
tinha passado a dormir cá em casa. Branca como um lençol,
exclamou: “Ele está a morrer, Giuseppe! Pressinto que não passa
de hoje!”. S egui-a e vi-o na cama, de olhos fechados, ainda a
respirar, embora pesadamente, não como se dormisse. Mandamos
chamar o médico, mas o S ignor A shley não voltou a acordar.
Estava em coma, o sono da morte. Eu próprio acendi as velas com
a contessa e, depois de as freiras se retirarem, fiquei a velar o
corpo. A violência tinha desaparecido completamente e ele
apresentava uma expressão serena. Gostava que o tivesse visto,
signore.

N otei-lhe os olhos marejados. D esviei a vista e fixei-a na cama. N o


entanto, não sentia nada. A apatia dissipara-se e deixara-me frio e
duro.

— A que violência se refere? — acabei por perguntar.

— À que surgiu com a febre. Tive de o manter na cama à força por


duas ou três vezes, a seguir aos ataques. Com a violência veio a
fraqueza, aqui. — Pousou a mão no estômago. — Tinha muitas
dores. E quando elas desapareciam, ficava aturdido e sonolento,
com o espírito a vaguear. Garanto-lhe que foi horrível, signore.
Horrível ver um homem tão forte incapacitado.

A bandonei o quarto frio e desolador e ouvi-o fechar a janela e


baixar o estore atrás de mim.

— Porque não se fez nada? — persisti. — O s médicos não lhe


podiam aliviar as dores? E Mrs. Ashley limitou-se a deixá-lo morrer?

— Desculpe, signore? — proferiu, perplexo.

— Que espécie de doença era, quanto tempo durou?


— Como disse há pouco, o final foi muito rápido, mas precedido de
um ou dois ataques. E, durante todo o inverno, o signore não se
sentia bem; triste, diferente do habitual. Pelo menos, muito diferente
do ano anterior. Q uando veio viver para a villa, era feliz, alegre.

Ele ia abrindo mais janelas enquanto falava, e saímos para um


espaçoso terraço, com algumas estátuas dispersas. N a
extremidade mais distante, havia uma longa balaustrada de pedra,
da qual nos aproximamos. Em baixo, via-se um jardim de aspecto
formal que exalava o odor de rosas e jasmins e, ao longe, outra
fonte, e ainda outra, com

degraus de pedra de acesso a cada jardim, até que, ao fundo, se


erguia o muro que rodeava toda a propriedade.

Voltamo-nos para oeste, na direção do sol poente, que projetava


uma luminosidade suave no terraço e jardins, e afigurou-se-me que
pairava uma estranha serenidade que anteriormente não se achava
presente.

A pedra ainda estava quente debaixo da minha mão, e uma


lagartixa surgiu de uma greta e rastejou ao longo da parede.

— N as tardes calmas, isto é muito bonito, signore — disse o


homem, que permanecia um ou dois passos atrás de mim, como
que por deferência. — Às vezes, a contessa mandava abrir a água
das fontes e, nas noites de lua cheia, ela e o S ignor A shley vinham
para o terraço depois de jantar. O ano passado, antes de ele
adoecer.

Conservei-me imóvel e silencioso, a contemplar as fontes e os lagos


por baixo, com os nenúfares.

— Creio que a contessa não voltará — acrescentou o homem,


pausadamente. —I sto tornou-se muito triste para ela. Há
demasiadas recordações amargas. O S ignor Rainaldi disse-nos que
a villa vai ser alugada e possivelmente vendida.
Estas palavras fizeram-me regressar à realidade. O sortilégio do
jardim silencioso dominara-me por um breve momento, com a
fragrância das rosas e o clarão do sol poente, mas o efeito agora
extinguira-se.

— Quem é o Signor Rainaldi?

— O cupa-se de todos os assuntos da contessa: negócios, questões


de dinheiro, tudo. Conhecem-se há muito tempo. — Enrugou a
fronte e acenou com a mão para a mulher, a qual, com o filho nos
braços, cruzava o terraço. A visão desagradava-lhe, pois não
deviam estar ali. Ela apressou-se a desaparecer na villa e começou
a baixar os estores.

— Quero falar com ele — declarei.

— Eu dou-lhe o endereço. Fala inglês perfeitamente.

Entramos igualmente e, quando percorria os diversos aposentos em


direção ao átrio, verifiquei que os estores eram fechados, um a um,
atrás de mim. Explorei as algibeiras em busca de trocos. S entia-me
uma pessoa anônima qualquer, um turista de visita ao continente,
atraído pela curiosidade a uma villa com a possível intenção de a
comprar, e não eu próprio, a olhar pela primeira e última vez o lugar
onde A mbrose vivera e morrera.

— Agradeço-lhe tudo o que fez por Mr. Ashley. — Com isto,


depositei-lhe algumas moedas na mão.

— Lamento, signore. — A s lágrimas surgiram novamente. —


Lamento profundamente.

O s últimos estores encontravam-se baixados. A mulher e a criança


achavam-se no átrio ao nosso lado e a atmosfera voltara a
escurecer, como a entrada de um subterrâneo.

— Que aconteceu à sua roupa, bens pessoais, livros, documentos?


— inquiri.
O homem pareceu embaraçado. Virou-se para a mulher, com a qual
dialogou por um momento. Registrou-se um vaivém de perguntas e
respostas. O rosto dela assumiu uma expressão de ignorância e
encolheu os ombros.

— A minha mulher ajudou a contessa, antes de partir — disse ele,


voltando-se de novo para mim. — Parece que ela levou tudo. A
roupa, livros e outras coisas de Mr.

Ashley foram guardados num baú. Não ficou nada na villa.

O lhei ambos com intensidade, mas não vacilaram, e compreendi


que falavam verdade.

— E não fazem a menor ideia do destino de Mrs. Ashley?

O homem meneou a cabeça.

— Só sabemos que abandonou Florença no dia a seguir ao funeral.

Abriu a pesada porta principal e a transpus.

— Onde está sepultado? — perguntei em tom impessoal, como um


estranho.

— N o novo cemitério protestante de Florença, signore, como muitos


ingleses que morreram aqui. O Signor Ashley não se encontra só.

D ir-se-ia que pretendia assegurar-me de que A mbrose teria


companhia e, no mundo das trevas para além da sepultura,
receberia consolação de compatriotas seus.

Pela primeira vez, não consegui sustentar o olhar do homem. Exibia


a expressão de um cão, sincero e dedicado.

Voltei-me e, no mesmo instante, ouvi a mulher soltar uma


exclamação para o marido. A ntes que ele tivesse tempo de fechar a
porta, precipitou-se para dentro e abriu uma pesada arca que estava
encostada à parede. Regressou com algo na mão, que entregou ao
homem, o qual se virou para mim. O rosto apresentava-se
descontraído, como que aliviado.

— A contessa esqueceu isto. Leve-o, signore, pois é só para si.

Era o chapéu de A mbrose, de abas largas, viradas para baixo. O


que ele costumava usar para proteger a cabeça do sol, nos jardins
de casa. N ão servia a mais ninguém, por ser muito grande. S enti
os olhos ansiosos deles pousados em mim, à espera de que
dissesse alguma coisa, enquanto o voltava repetidamente nas
mãos.

Capítulo Quinto

N ão me recordo de nada do percurso de regresso a Florença, à


exceção de que o S ol se pusera e anoitecera. O crepúsculo não era
tão prolongado como na I nglaterra. N os arbustos que ladeavam a
estrada, insetos, porventura grilos, tinham iniciado os habituais sons
monótonos e, de vez em quando, a carrozza cruzava-se com
camponeses descalços, com pesadas cestas às costas.

Q uando entramos na cidade, o ar fresco e límpido das colinas


circundantes foi de novo substituído pelo calor. N ão como o que
fizera durante o dia, ardente, escaldante, mas abafado, proveniente
das paredes e chão, que o haviam armazenado ao longo de horas.
A lassidão da tarde e a atividade do lapso de tempo entre a sesta e
o pôr do S ol tinham cedido o lugar a uma certa animação. O s
homens e as mulheres que percorriam as piazzas e ruas estreitas
achavam-se dominados por certa vivacidade, como se acabassem
de passar o dia escondidos, adormecidos, nas suas casas
silenciosas e agora surgissem como gatos vadios dispostos a
explorar a cidade. O s mercados ambulantes estavam superlotados
de compradores ruidosos, no que emulavam os vendedores,
enquanto outros acudiam à chamada dos sinos e enchiam as
igrejas.

Paguei ao condutor junto da catedral, na piazza, e entrei, quase sem


me dar conta do que fazia, no templo, onde o sacerdote entoava
num murmúrio palavras velhas de séculos que não me era possível
entender, até que, de súbito, me apercebi da imensidão da perda
que acabava de sofrer. A mbrose morrera. N ão o tornaria a ver. D
eixara-me para sempre. A figura e sorriso familiares não voltariam a
beneficiar-me com a sua presença.

Pensei no quarto frio e ermo onde morrera, na Villa S angalle i e na


Virgem no seu nicho, e ocorreu-me a ideia de que quando partira
não fazia parte daquele aposento, ou sequer da casa, ou mesmo do
país, e o seu espírito regressara ao lugar a que pertencia, entre as
suas colinas, os seus bosques, no jardim que estimava, rodeado
pelo som do mar.

S aí da catedral e, na piazza, ao erguer os olhos para o imponente


zimbório, lembrei-me pela primeira vez de que não comera nada em
todo o dia, com a compreensão repentina que surge após um abalo
e tensão profundos. A ssim, transferi os pensamentos da morte para
a vida e, ao descobrir um local aparentemente sofrível nas
proximidades, entrei para satisfazer o apetite, após o que me dispus
a procurar o S ignor Rainaldi.

Giuseppe, o homem que me recebera na villa, escrevera o endereço


num pedaço de papel e, esforçando-me por pronunciar as palavras
o mais compreensivelmente

possível, encontrei a casa, do outro lado da ponte nas cercanias da


estalagem, na margem esquerda do A rno, onde havia menos ruído
que no coração de Florença. Viam-se poucas pessoas nas ruas. As
portas achavam-se fechadas e os estores das janelas baixados.

Os meus passos ecoavam com algo de sinistro no pavimento.

Cheguei por fim ao endereço que me interessava e puxei o cordão


da sineta. Um criado abriu a porta passado um momento e, sem
perguntar como me chamava, conduziu-me ao primeiro piso e ao
longo de um corredor, ao fundo do qual bateu a uma porta e
introduziu-me numa sala. Pestanejei ante a luz intensa e súbita e vi
um homem numa cadeira junto de uma mesa, que consultava um
maço de documentos. Levantou-se à minha entrada e fitou-me com
uma expressão de curiosidade. Era um pouco mais baixo do que eu,
com cerca de quarenta anos, rosto pálido, quase totalmente
desprovido de cor e feições aquilinas. Havia algo de arrogante,
desdenhoso, na sua atitude, como de quem manifesta pouca
tolerância para com os imbecis... ou os inimigos. N o entanto, creio
que o que mais me atraiu a atenção foram os olhos, negros e
encovados, os quais, à primeira vista, deixaram transparecer uma
expressão de reconhecimento, prontamente dominada.

— Signor Rainaldi? — perguntei. — Chamo-me Philip Ashley.

—- Queira sentar-se.

A voz era fria e dura e o sotaque italiano pouco vincado.

— D eve estar surpreendido de me ver — volvi, instalando-me na


cadeira que indicava. — Não sabia que me encontrava em
Florença?

— Não — admitiu. — Na verdade, não fazia a menor ideia.

A s palavras continham uma inflexão de prudência, que, todavia, se


podia dever ao seu fraco domínio da língua inglesa.

— Sabe quem sou? — prossegui.

— Creio que estou bem elucidado quanto ao grau exato de


parentesco. É, salvo erro, primo ou sobrinho do extinto Ambrose
Ashley.

— Primo — precisei — e herdeiro.

Pegou numa caneta e tamborilou com ela no tampo da mesa, como


se pretendesse ganhar tempo, ou procurasse uma distração.

— Estive na Villa S angalle i e vi o quarto onde ele morreu. O


empregado, Giuseppe, foi muito atencioso. Forneceu-me todos os
pormenores, mas sugeriu que o procurasse, Signor Rainaldi.
Seria impressão minha, ou os olhos negros toldaram-se de fato?

— Há quanto tempo se encontra em Florença?

— Algumas horas. Desde o meio da tarde.

— Chegou só hoje? — A mão que segurava a caneta perdeu a


tensão. — N esse caso, a sua prima Raquel não o viu.

— N ão, com efeito. Giuseppe deu-me a entender que ela


abandonou Florença no

dia seguinte ao do funeral.

— Abandonou a Villa Sangalletti, mas não Florença.

— Quer dizer que ainda está na cidade?

— N ão, agora já partiu. Confiou-me o encargo de alugar a villa.


Vendê-la, se possível.

O s seus modos eram algo rígidos, como se toda a informação que


me revelava tivesse de ser ponderada previamente.

— Sabe onde se encontra neste momento? — perguntei.

— N ão. Partiu quase repentinamente, sem traçar planos. Prometeu


escrever quando tomasse uma decisão sobre o futuro.

— Está, porventura, em casa de pessoas amigas?

— É possível, embora me custe a crer.

A cudiu-me a sensação de que, naquele próprio dia, ou na véspera,


estivera com ele, o qual sabia muito mais do que confessava.

— D ecerto compreenderá, S ignor Rainaldi, que sofri um forte abalo


ao inteirar-me da morte do meu primo através de empregados
domésticos. Tenho vivido numa espécie de pesadelo. Que
aconteceu? Porque não fui informado de que se encontrava
enfermo?

Observou-me em silêncio por uns instantes e, por fim, disse:

— Creia que nós também sofremos um abalo profundo com a morte


repentina do seu primo. Estava doente, sem dúvida, mas não
supúnhamos que fosse tão gravemente.

A febre habitual que afeta muitos estrangeiros no verão provocara-


lhe certa debilidade, e queixava-se com frequência de enxaquecas.
A contessa... talvez deva dizer antes Mrs.

A shley... achava-se muito preocupada, além de que ele não se


podia considerar um enfermo fácil. Criou animosidade instantânea
contra os nossos médicos, por razões difíceis de determinar. Mrs. A
shley ansiava constantemente por sinais de melhoras, pelo que se
absteve de lhe escrever, Mr. A shley, para não o apoquentar sem
necessidade, segundo imaginava.

— Mas estávamos todos inquietos — retruquei. — Foi por isso que


me desloquei a Florença. A s cartas que recebi dele obrigaram-me a
efetuar a viagem. Tratava-se, provavelmente, de uma diligência
arrojada e, de certo modo, irrefletida, mas era-me indiferente. —
Estendi ao meu interlocutor as duas últimas missivas de Ambrose.

Leu-as atentamente, embora a expressão não se alterasse, após o


que as devolveu.

— Sim — articulou calmamente, sem a mínima surpresa —, Mrs.


Ashley temia que ele tivesse escrito algo do gênero. S ó nas últimas
semanas, quando começou a mostrar-se reservado e estranho, os
médicos recearam o pior e preveniram-na.

— Preveniram-na? — ecoei. — De quê?

— D a possibilidade de se verificar uma pressão estranha no


cérebro. Um tumor, ou excrescência, que aumentava rapidamente
de volume, justificativo da sua condição.

N ão pude evitar um estremecimento. Um tumor? N esse caso, a


suposição do meu padrinho confirmava-se. Primeiro o tio Philip e
agora A mbrose. N ão obstante... Por que continuaria o italiano a
observar-me com tanto interesse?

— Os médicos declararam que a morte se deveu a um tumor?

— I ndiscutivelmente. A isso e à intensificação da fraqueza


resultante da febre.

A ssistiram-no dois. O meu e outro que ele indicou. Caso queira,


posso mandá-los chamar, para que os interrogue. Um fala inglês,
embora não com fluência.

— Não me parece necessário — declarei, pausadamente.

Abriu uma gaveta e puxou de uma folha de papel.

— Tenho aqui uma cópia da certidão de óbito, assinada pelos dois


médicos. Leia-a.

S eguiu já outra pelo correio para a Cornualha e uma terceira para o


testamenteiro do seu primo, Nicholas Kendall, perto de Lostwithiel,
também naquela região de Inglaterra.

Baixei os olhos para o documento, mas não senti interesse em o ler.

— Como soube que Nicholas Kendall é o testamenteiro dele?

— O seu primo A mbrose tinha uma cópia do testamento consigo.


Eu próprio a li várias vezes.

— Leu o testamento do meu primo? — proferi com incredulidade.

— N aturalmente — admitiu, sem pestanejar. — N a minha


qualidade de administrador dos bens da contessa, de Mrs. A shley,
competia-me tomar conhecimento do testamento do marido. N ão há
nada de estranho nisso. Ele próprio mostrou-o a mim, pouco depois
do casamento. N a verdade, até possuo uma cópia. N o entanto,
não a devo divulgar. Isso é da alçada do seu tutor, Mr. Kendall, que
decerto o fará quando regressar à Inglaterra.

Rainaldi também sabia que o meu padrinho era igualmente o meu


tutor, pormenor que eu desconhecera até aquele momento. N ão
acontecia com frequência um homem com mais de vinte e um anos
ter um tutor, e eu já completara vinte e quatro. Em todo o caso, o
pormenor carecia de importância.

O que me interessava era Ambrose e a sua doença. Ambrose e a


sua morte.

— Estas duas cartas não são próprias de um homem enfermo ou


afetado por perturbações mentais — persisti. — Parecem mais as
que escreveria alguém com inimigos, rodeado de pessoas que não
lhe merecem confiança.

Voltou a observar-me em silêncio, por um momento, antes de


replicar:

— S ão cartas de um homem mentalmente doente, A shley. Perdoe-


me a franqueza abrupta, mas eu vi-o nas suas últimas semanas e o
senhor não. Creia que a experiência não foi agradável para qualquer
de nós, em particular para a esposa. Como vê na primeira dessas
cartas, ela não o abandonou, e posso confirmá-lo. Com efeito, não
saía do seu lado, dia e noite. O utra mulher recorreria a freiras para
cuidar dele. A o invés, prestou-lhe toda a assistência humanamente
possível.

— Que veio a não servir para nada — comentei secamente.

— Repare nesta passagem final: "Ela acabou por se desmascarar,


Raquel, o meu tormento..." Que depreende disto, Signor Rainaldi?

Creio que levantei a voz, arrastado pelo entusiasmo. Ele ergueu-se


da cadeira e tocou uma sineta. Q uando surgiu o empregado,
transmitiu-lhe uma ordem e o homem reapareceu com um copo e
uma garrafa de vinho.

— Então? — insisti, ignorando a oferta.

Rainaldi não voltou a sentar-se. D irigiu-se à seção da sala onde


havia várias prateleiras com livros e retirou um.

— Está familiarizado com a história da medicina, Mr. Ashley?

— Não.

— Encontrará aqui a informação que procura, ou pode interrogar os


médicos, cujos endereços lhe fornecerei com todo o gosto. Existe
uma afecção especial do cérebro, presente sobretudo quando
ocorre um tumor ou excrescência, em que o doente é assolado por
visões, ilusões. I magina, por exemplo, que o vigiam. Q ue a pessoa
mais próxima, a esposa, digamos, se voltou contra ele, lhe é infiel
ou procura apoderar-se do seu dinheiro. N ão há amor ou persuasão
capaz de neutralizar semelhante suspeita. S e não acredita em mim
ou nos médicos de cá, consulte compatriotas seus ou leia este livro.

Revelava uma segurança, plausibilidade e serenidade sem dúvida


convincentes.

I maginei A mbrose deitado na cama de ferro da Villa S angalle i,


torturado, desesperado, com aquele homem a observá-lo, a
analisar-lhe os sintomas um a um, postado porventura atrás do
biombo que eu vira. Era-me impossível determinar se ele tinha ou
não razão. S ó sabia que o detestava profundamente.

— Como se explica que ela não me mandasse vir? — inquiri. — S e


A mbrose suspeitava dos seus manejos, por que não exigiu a minha
presença? N inguém o conhecia melhor do que eu.

Fechou o livro com um som seco e tornou a colocá-lo na prateleira.

— É muito jovem, Mr. Ashlev.


— Q ue quer dizer com isso? — retorqui, arregalando os olhos, sem
compreender aonde pretendia chegar.

— Uma mulher apaixonada não renuncia com facilidade. Chame-lhe


amor-próprio, tenacidade ou o que quiser. A pesar de toda a
evidência em contrário, as emoções delas são mais primitivas que
as nossas. A pegam-se àquilo que desejam e nunca se rendem.

Nós temos as nossas guerras e batalhas, mas as mulheres também


sabem combater.

Fitou-me friamente com os olhos negros encovados, e concluí que


nada mais tinha para lhe dizer.

— Se eu estivesse aqui, ele não teria morrido — asseverei.

Levantei-me e movi-me em direção à porta. Ele voltou a tocar a


sineta e o

empregado apareceu para me acompanhar à saída.

— Escrevi ao seu tutor, Mr. Kendall — informou Rainaldi. —


Expliquei-lhe pormenorizadamente tudo o que aconteceu. N
ecessita de algo mais de mim? Tenciona permanecer em Florença
muito tempo?

—- Para quê? Já nada me retém neste país.

— S e deseja visitar a sepultura, dar-lhe-ei um bilhete para o guarda


do cemitério protestante. É claro que ainda não houve tempo para
colocar uma lápide, mas ela não faltará.

Voltou-se para a mesa e escreveu algo num pedaço de papel, que


me entregou.

— Que dizeres serão inscritos na laje?

D eixou transcorrer um momento, como se refletisse, enquanto o


empregado, que aguardava junto da porta aberta, me estendia o
chapéu de Ambrose.

— Creio que as minhas instruções consistiam em gravar as palavras


“Em memória de Ambrose Ashley, estimado marido de Raquel
Coryn Ashley”, com a data, é claro.

Compreendi então que não desejava visitar o cemitério e muito


menos a sepultura.

N ão sentia a mínima vontade de ver o lugar onde o tinham


enterrado. Eles podiam colocar a lápide e levar flores mais tarde, se
quisessem, mas A mbrose nunca o saberia, nem se preocuparia
com isso. Estaria comigo na Cornualha, debaixo do seu próprio solo,
da sua própria terra.

— Q uando Mrs. A shley regressar, comunique-lhe que estive aqui


— articulei, pausadamente. — Q ue visitei a Villa S angalle i e vi o
quarto onde A mbrose morreu.

Pode, também, falar-lhe das cartas que ele me escreveu.

Estendeu-me a mão, fria e rígida como ele próprio, continuando a


observar-me com intensidade.

— A sua prima Raquel é uma mulher impulsiva. Q uando partiu de


Florença, levou todas as suas posses. Receio muito que não volte.

A bandonei a casa e tornei a percorrer as ruas estreitas e escuras,


com a sensação de que os seus olhos me seguiam. A ntes de entrar
na estalagem, para tentar dormir, por pouco que fosse, detive-me
mais uma vez diante do Arno.

A cidade dormia. A parentemente, eu era notívago solitário. Até os


sinos solenes se achavam reduzidos ao silêncio, e o único ruído
provinha da água que corria sob a ponte. Parecia que agora
deslizava mais depressa do que durante o dia, como se também
tivesse sofrido da indolência provocada pelo calor e pudesse
finalmente, com o fresco da noite, dar livre curso à sua
impetuosidade.

D e súbito, no meio da corrente, inteiriçado e rodando com lentidão,


com as quatro patas inertes, descortinei o corpo de um cão, que
passou debaixo da ponte e desapareceu na escuridão.

Fiz então um juramento a mim próprio, na margem do Arno.

D esenvolveria todos os esforços para infligir as dores e sofrimentos


que A mbrose conhecera à mulher que os causara, pois não
acreditava na versão de Rainaldi. I nclinava-me antes para a
verdade daquelas duas cartas que conservava na algibeira. A s
últimas que ele me escrevera.

Um dia, de uma maneira ou de outra, faria a minha prima Raquel


expiar o mal que praticara.

Capítulo Sexto

Regressei a casa na primeira semana de setembro. A s tristes


novas haviam-me precedido, pois o italiano não mentira quando
dissera que escrevera a N ick Kendall. Este encarregara-se de
informar o pessoal e os caseiros da propriedade. Wellington
aguardava-me em Bodmin, com a carruagem. O s cavalos estavam
cobertos com crepes, assim como ele e o moço da estrebaria, de
expressões solenes.

O meu alívio por estar de novo no meu país era tão grande que por
momentos o pesar permaneceu dormente, ou possivelmente a longa
permanência na Europa endurecera-me os sentimentos, mas
recordo-me de que o meu primeiro instinto me obrigou a sorrir ao
ver os dois rostos familiares, acariciar os cavalos e perguntar se
tudo se encontrava em ordem. Era quase como se tivesse voltado à
adolescência e regressasse das aulas.

N o entanto, o velho cocheiro assumia uma atitude rígida, com uma


nova formalidade, e o moço de estrebaria abriu a portinhola da
carruagem com deferência.

“Um triste regresso a casa, Mr. Philip", disse Wellington. E quando


perguntei por S eecombe e o resto do pessoal, meneou a cabeça e
revelou que se achavam todos amargurados com o sucedido. A
crescentou que não se falava de outra coisa em toda a região desde
que a pungente nova se tornara conhecida. A igreja estivera
enlutada todo o domingo, assim como a capela da propriedade,
porém o golpe mais rude verificara-se quando N ick Kendall lhes
anunciara que o amo fora sepultado na I tália e não seria
transladado para a pátria, a fim de repousar no jazigo de família.

— N ão nos parece certo, Mr. Philip — declarou o cocheiro. — E


pensamos que o próprio Mr. Ashley não concordaria.

N ão havia nada que eu pudesse responder. A ssim, subi para a


carruagem, que em seguida se pôs em marcha.

Curiosamente, a emoção e fadiga das últimas semanas dissiparam-


se à vista da casa. Toda a sensação de tensão me abandonou e,
apesar das longas horas na estrada, senti-me descontraído e em
paz. Era de tarde e o sol incidia nas janelas da ala oeste e nas
paredes cinzentas, enquanto rolávamos através do segundo portão
e subíamos a encosta em direção à vivenda.

O s cães estavam presentes para me saudar, e S eecombe, com um


fumo negro no braço direito, como o resto do pessoal, não pôde
conter as lágrimas quando lhe estendi a mão.

— Foi uma longa ausência, Mr. Philip — soluçou. — Muito longa. E


quem nos

garantia que não contrairia também a febre maligna?

Ele próprio me serviu o jantar, solícito, ansioso pelo meu bem-estar,


e congratulei-me por não lhe ocorrer fazer perguntas sobre a minha
viagem ou a doença e morte de A mbrose, embora não poupasse as
palavras para descrever outros pormenores: os sinos tinham
dobrado durante um dia inteiro, o vigário mencionara a ocorrência
no púlpito e haviam sido oferecidas numerosas coroas de flores. E
todo o seu arrazoado era salpicado de uma nova fórmula: “Mr.
Philip” a cada passo, em vez de “menino Philip”. A liás, eu
apercebera-me do mesmo pormenor no cocheiro e no moço de
estrebaria. A pesar de inesperado, resultava reconfortante.

D epois de jantar, subi ao meu quarto, olhei em volta e a seguir


desci à biblioteca e passei aos jardins, percorrido por uma estranha
sensação de felicidade que nunca imaginei que me ocorreria com A
mbrose morto, pois quando abandonara Florença atingira o grau
mais baixo de solidão e não experimentava qualquer desejo.
Enquanto atravessava a I tália e a França, acudiam-me imagens
obsessivas que não conseguia afugentar. Via A mbrose sentado à
sombra, no pátio da Villa S angalle i, junto do laburno, a observar a
fonte; na cela monástica, reclinado em duas almofadas, esforçando-
se por respirar. E, sempre no seu campo auditivo, sempre sob as
suas vistas, o vulto sombrio e detestado da mulher que eu nunca
vira.

Tinha numerosos rostos e disfarces, e a designação de contessa,


empregada por Giuseppe e Rainaldi, de preferência a Mrs. A shley,
conferia-lhe uma espécie de aura que eu nunca lhe atribuíra a
princípio, quando a vira como outra Mrs. Pascoe.

D esde a minha visita à villa, convertera-se num monstro em


tamanho natural.

Tinha olhos tão negros como abrunhos, feições tão aquilinas como
as de Rainaldi, e movia-se nos aposentos da úmida e sombria casa
sinuosa e silenciosa como uma serpente. Vi-a, quando já não existia
uma réstia de alento no corpo dele, recolher todas as suas posses e
partir, porventura para Roma ou N ápoles, ou talvez oculta naquela
estalagem na margem do A rno, sorridente, atrás dos estores. Essas
imagens acompanharam-me até que cruzei o mar e desembarquei
em Dover.
E agora que regressara ao lar, haviam-se extinguido como os
pesadelos ao romper do dia. E a minha amargura também. A
mbrose encontrava-se de novo comigo e não era torturado nem
sofria. N unca estivera em Florença ou sequer na I tália. D ir-se-ia
que morrera em casa e fora sepultado ao lado dos pais e outros
familiares, pelo que a dor se convertera em algo que me era
possível suportar. O pesar persistia, mas sem vislumbres de
tragédia. Eu regressara igualmente ao lugar a que pertencia, com a
sua fragrância especial que me circundava.

Percorri os campos, onde o pessoal procedia à safra. O trigo era


carregado em carroças. Q uando me viam, eles interrompiam o
trabalho e trocávamos algumas palavras.

O velho Billy Rowe, que era caseiro das terras de Barton desde que
eu me conhecia e

sempre me tratara por “menino Philip”, levou a mão ao chapéu


quando me aproximei, e a esposa e a filha, que o ajudavam com os
outros, saudaram-me igualmente. “Tínhamos muitas saudades
suas”, disse ele. “Custava-nos principiar a colheita sem a sua
presença.

Alegra-nos que tenha voltado."

Um ano atrás, eu teria arregaçado as mangas e participado nos


trabalhos, mas agora algo me impedia de o fazer, a vaga ideia de
que eles não considerariam apropriado.

— Também estou contente por ter voltado — afirmei.

— A morte de Mr. A shley constituiu uma perda profunda para todos,


mas temos de prosseguir a sua obra.

Conversamos durante mais alguns minutos, até que chamei os cães


e reatei o percurso. Ele aguardou que me encontrasse para além da
sebe antes de mandar continuar o trabalho.
Q uando alcancei o cercado dos pôneis, a meio caminho entre a
casa e os campos ao longo da encosta suave, fiz uma pausa e
voltei-me para trás, a fim de contemplar a aprazível paisagem.

A s espigas de trigo adquiriam uma tonalidade dourada sob os


derradeiros raios solares. O mar apresentava-se invulgarmente azul,
quase arroxeado onde cobria as rochas. A frota pesqueira achava-
se ancorada, à espera da hora para o início de mais uma faina. A
vivenda encontrava-se agora imersa na sombra e somente o cata-
vento no topo do campanário era ainda beneficiado por um pouco
mais de luminosidade. Recomecei a caminhar, com lentidão, em
direção à porta aberta.

O s estores das janelas estavam levantados, porque S eecombe


ainda não ordenara ao pessoal que os baixasse. Havia algo de
acolhedor no aspecto das ripas recolhidas, com as cortinas a oscilar
levemente, e no pensamento de todos os aposentos por detrás
dessas janelas, que me eram familiares e queridos. O fumo
desprendia-se das chaminés, altas e estreitas. O perdigueiro, o
velho D on, demasiado pesado e rígido para me acompanhar e aos
cães mais jovens, espreguiçou-se no chão por baixo das janelas da
biblioteca e em seguida volveu a cabeça para mim e começou a
agitar a cauda lentamente.

A cudiu-me, súbita e intensamente, pela primeira vez desde a morte


de A mbrose, a ideia de que tudo o que existia à minha volta me
pertencia. J amais teria de o partilhar com vivalma.

A s paredes e janelas, o telhado, o sino que badalou as sete horas


naquele momento, toda a entidade viva da casa eram meus, e só
meus. A relva sob os meus pés, as árvores circundantes, os
bosques, e até os homens e mulheres que trabalhavam a terra da
propriedade, faziam parte da minha herança.

Entrei e visitei a biblioteca, postando-me de costas para a lareira, as


mãos enfiadas nos bolsos. O s cães seguiram-me, como era seu
hábito, e deitaram-se a meus pés.
S eecombe apareceu para perguntar se tinha alguma ordem para
Wellington, na manhã

seguinte. N ecessitaria da carruagem ou preferia que selasse o


Cigano para eu dar uma volta? Repliquei que não tencionava dar-
lhe quaisquer ordens naquela noite. Eu próprio me avistaria com
Wellington após o café da manhã, e desejava que me acordassem à
hora habitual. Respondeu “Perfeitamente, senhor”, e retirou-se.

O “menino Philip” desaparecera para sempre, substituído por “Mr. A


shley”. Era uma sensação estranha. Tornava-me de certo modo
humilde e, ao mesmo tempo, singularmente orgulhoso. A percebia-
me de uma espécie de confiança e força que até então não
conhecera, a par de uma nova euforia. A figurava-se-me que reagia
como um militar a quem acabassem de confiar o comando de um
batalhão.

O sentimento de posse, amor-próprio, assolava-me como a um


major após muitos anos numa posição secundária, guindado a uma
situação de responsabilidade nova para ele. Mas, ao contrário de
um militar, eu nunca teria de renunciar ao comando. Pertencia-me
para toda a vida. Ao abarcar toda a extensão da minha situação,
conheci um momento de felicidade que nunca me visitara no
passado. N o entanto, à semelhança de todos esses lapsos de
tempo, foi de breve duração. Um som qualquer quebrou o encanto:
talvez um dos cães se movesse, uma acha se deslocasse no lume
ou um empregado percorresse um dos aposentos do piso superior
para fechar subitamente uma janela. Confesso que não me recordo,
mas continuo a ter bem presente no espírito a emoção estranha,
porém aprazível, que me acudiu. Deitei-me cedo e dormi sem um
único sonho.

O meu padrinho procurou-me no dia seguinte, acompanhado de


Louise. Como não havia familiares próximos para convocar, e
apenas legados a S eecombe e outros empregados, além dos
usuais donativos aos pobres da paróquia, e toda a propriedade se
me destinava, N ick Kendall leu o testamento apenas na minha
presença, na biblioteca, enquanto Louise passeava pelas
imediações. A pesar da terminologia legal, tudo parecia simples e
claro. À exceção de um pormenor. Ele era nomeado meu tutor,
porque os bens só seriam virtualmente meus quando completasse
vinte e cinco anos.

— A mbrose estava convencido de que um jovem não tinha a mente


formada solidamente antes dessa idade — explicou, tirando os
óculos, ao mesmo tempo que me entregava o documento para que
o lesse. — Podias ter criado um fraco para a bebida, o jogo ou as
mulheres, e a cláusula acerca dos vinte e cinco anos representa
uma espécie de salvaguarda. A judei-o a redigir o testamento
quando ainda estudavas em Harrow, e, embora ambos
soubéssemos que não se desenvolvera qualquer dessas
tendências, ele preferiu manter o estipulado. “N ão prejudicará o
Philip e ensina-lo-á a ser prudente”, confidenciou-me mais de uma
vez. Por conseguinte, não há nada a fazer quanto a isso.

N a realidade não te afetará, à parte o fato de teres de me pedir o


dinheiro de que necessitares, como sempre aconteceu, durante
mais sete meses. O teu aniversário é em abril, salvo erro?

— Sabe-o perfeitamente, como meu padrinho.

— Eras um vermezinho muito engraçado — comentou, com um


sorriso. —

O lhavas o padre como se pretendesse devorar-te. O A mbrose


acabava de sair de O xford e beliscou-te o nariz para que
chorasses, o que indignou a tia, tua mãe. D epois, desafiou o teu
infortunado pai para uma regata e remaram do castelo até
Lostwithiel, acabando por cair ambos à água. Nunca sentiste a falta
dos teus pais?

— Bem, não sei... Confesso que não pensei muito nisso. N unca
desejei outra companhia que não fosse o meu primo.

— O s cuidados de uma mãe fazem sempre falta. Falei disso ao A


mbrose por diversas vezes, mas nunca me deu ouvidos. D evia ter
havido alguém em casa: uma preceptora, uma parente distante.
Cresceste ignorante no que se refere a mulheres, e, se vieres a
casar, isso há de refletir-se na tua companheira, como referi à
Louise o outro dia.

I nterrompeu-se, com uma ponta de embaraço, se porventura o meu


padrinho podia exprimir semelhante emoção, como se tivesse dito
mais do que pretendia.

— N ão se preocupe —repliquei com desprendimento. — A minha


mulher superará todas as dificuldades quando surgir o momento. O
u melhor, se surgir, o que me parece pouco provável. Creio que sou
demasiado como o A mbrose, e agora compreendo como o
matrimônio o deve ter afetado.

Conservou-se silencioso. Em seguida, descrevi a visita à villa e o


encontro com Rainaldi, após o que ele me mostrou a carta que este
último lhe escrevera. Correspondia mais ou menos ao que eu
previra: a revelação, em termos secos, da doença e morte de
Ambrose e da amargura da viúva, a qual, segundo ele, estava
inconsolável.

— Tão inconsolável — salientei — que partiu como uma ladra, no


dia após o funeral, levando todos os bens do meu primo, à exceção
do chapéu, de que se esqueceu.

Decerto por estar coçado e carecer de todo e qualquer valor.

O meu padrinho tossiu discretamente e enrugou a fronte.

— Suponho que não lhe invejas os livros e roupa que levou?


Francamente, Philip, é tudo o que lhe resta.

— Tudo o que lhe resta? — repeti, perplexo.

— A cabo de te ler o testamento e tem-lo na tua frente. É o mesmo


que redigi há dez anos. N ão contém qualquer codicilo acrescentado
depois do casamento. N ão existe a mínima provisão para a esposa.
D urante os últimos meses, esperei receber notícias dele nesse
sentido. É costume em casos similares. Calculo que a ausência no
estrangeiro o levou a descurar a possibilidade, e talvez tencionasse
introduzir a alteração quando regressasse. N o entanto, a doença
alterou a situação radicalmente. Estranho que esse italiano, o S
ignor Rainaldi, com quem tanto antipatizas, não mencione qualquer
pretensão do gênero por parte de Mrs. Ashley. Revela um tato
admirável do homem.

— Pretensão? — exclamei. — Fala em semelhante hipótese,


quando sabemos perfeitamente que foi ela que o conduziu à morte?

— N ão sabemos nada do gênero, e, se pensas continuar a referir-te


nesse tom à viúva do teu primo, não estou disposto a escutar-te.

Com estas palavras, N ick Kendall levantou-se e começou a


recolher os documentos.

— Quer dizer que acredita na versão do tumor?

— Naturalmente. Temos aqui a carta de Rainaldi e a certidão de


óbito assinada por dois médicos. Recordo-me da morte do teu tio
Philip. O s sintomas eram muito similares.

Foi exatamente o que receei, quando chegou aquela carta do A


mbrose e partiste para Florença. O fato de teres chegado
demasiado tarde para lhe poderes prestar qualquer assistência
constituiu uma daquelas calamidades que ninguém pode remediar.
Pensando bem, talvez nem fosse uma calamidade, mas um ato de
misericórdia. J ulgo que não desejarias vê-lo sofrer.

Contive com dificuldade a irritação que a sua peroração me


provocava, ditada por uma obstinação e cegueira insensatas.

— N ão chegou a ver a segunda carta — lembrei-lhe. — A que


recebi na manhã em que parti para a Itália. Ei-la.
Voltou a pôr os óculos para ler a missiva em causa, que eu
conservava sempre comigo. No final, declarou:

— Lamento, Philip, mas estas garatujas são insuficientes para


alterar a minha opinião. D eves encarar os fatos. Estimavas o A
mbrose e eu também. Q uando morreu, perdi o meu melhor amigo.
S into-me tão amargurado como tu quando penso no seu sofrimento
mental, talvez ainda mais, porque o vi noutra pessoa. O teu mal é
não aceitares a realidade de que o homem que conhecemos,
admiramos e amamos não era o mesmo na altura da morte. Estava
mental e fisicamente enfermo e, por conseguinte, irresponsável pelo
que escrevia ou dizia.

— Não acredito. Não posso acreditar.

— D iz antes que não queres, e nesse caso nada mais temos a


dizer sobre o assunto. N o entanto, em atenção a ele e a todas as
pessoas que o conheceram e estimaram, aqui, na propriedade e no
condado, devo pedir-te que não divulgues o teu ponto de vista. S ó
conseguirias desgostá-las e, se chegasse aos ouvidos da viúva,
onde quer que se encontre, ficaria com uma ideia muito triste a teu
respeito e não me surpreenderia que te movesse um processo por
difamação. S e eu fosse o seu representante legal, como Rainaldi
parece ser, não hesitaria em fazê-lo.

Eu nunca ouvira o meu padrinho exprimir-se com tanta veemência.


Tinha razão ao afirmar que estava tudo dito sobre o assunto. Eu
aprendera a lição e não voltaria a abordá-lo.

— E se chamássemos a Louise? — sugeri. — S uponho que já se


terá cansado de percorrer os jardins. Gostava que jantassem
comigo.

Ele mostrou-se pouco comunicativo durante a refeição e pressenti


que ainda estava chocado com o que eu dissera. Entretanto, Louise
crivava-me de perguntas sobre as minhas viagens, o que pensava
de Paris, da França em geral, dos A lpes, de Florença, e as minhas
respostas, embora vagas, serviram para preencher as soluções de
continuidade na conversa geral.

N ão obstante, ela era perspicaz e compreendeu que se passava


algo de errado.

A pós o jantar, quando o meu padrinho chamou S eecombe e o


pessoal doméstico para lhes anunciar os legados, fomos sentar-nos
na sala de estar.

— O teu pai está aborrecido — informei, e expus-lhe a situação.

Ela observou-me com curiosidade por um momento, a cabeça um


pouco inclinada, como era seu hábito, e disse:

— Talvez tenhas razão. Creio que o infortunado Mr. A shley e a


esposa não eram felizes, mas o amor-próprio impediu-o de revelar-
te por escrito antes de adoecer. D epois, provavelmente tiveram
uma briga, os acontecimentos precipitaram-se e enviou-te aquelas
cartas. Q ue disseram os dois empregados italianos acerca dela?
Era jovem, de meia-idade, ou quê?

— N ão perguntei. D e resto, não vejo o que isso possa interessar. A


única coisa importante é que o Ambrose não confiava nela quando
morreu.

— Devia sentir-se muito só -—murmurou, com uma réstia de


amargura.

N aquele momento, o afeto que sempre me inspirara aumentou.


Talvez por ser jovem, praticamente da minha idade, e parecer
possuidora de mais bom senso que o pai.

— D evias ter perguntado ao tal italiano, Rainaldi, como ela era —


acrescentou. —

Eu perguntava, de certeza. N a verdade, seria a primeira coisa que


desejaria saber. E o que acontecera ao conde, seu primeiro marido.
N ão disseste uma vez que tinha perdido a vida num duelo? I sso
também se reflete negativamente na mulher. Era capaz de ter
montes de amantes.

Essa faceta da minha prima Raquel não me ocorrera. I maginava-a


apenas como uma criatura malevolente, uma espécie de aranha. A
pesar da animosidade que me percorria, não pude evitar um sorriso.

— Essa de lhe atribuir amantes é mesmo próprio de uma mulher.


Punhais num átrio escuro. Escadas secretas. Fiz mal em não te
levar comigo a Florença. Tinhas averiguado muito mais do que eu.

N aquele momento, o meu padrinho reuniu-se a nós e não voltei a


pronunciar-me sobre o assunto. A gora, ele parecia mais bem-
humorado. S eecombe, Wellington e os outros decerto se haviam
mostrado gratos pelos pequenos legados, e N ick Kendall, no seu
habitual estilo condescendente, sentia-se atingido por isso.

— Volta em breve — solicitei a Louise, quando a ajudava a subir


para a carruagem.

— A tua presença faz-me bem. Gosto da tua companhia.

Ela corou e dirigiu um olhar de través ao pai, para observar a reação


das minhas palavras, como se até então não nos visitássemos com
regularidade e frequência. Talvez também estivesse impressionada
com a minha nova situação e não tardasse a tratar-me por “Mr. A
shley”, em vez de Philip. Voltei para dentro, sorrindo com a ideia de
Louise Kendall, cujos cabelos eu costumava puxar poucos anos
atrás, me olhar respeitosamente, mas em breve me esqueci dela e
do meu padrinho, porque tinha muito que fazer em casa após dois
meses de ausência.

N ão contava voltar a ver o meu padrinho nas duas semanas mais


próximas, em virtude das numerosas ocupações que exigiam a
minha participação, mas ainda não se tinham escoado oito dias
quando um seu empregado apareceu, por volta do meio-dia, com
uma mensagem verbal de N ick Kendall. Pedia a minha
comparência em sua casa, porque se achava impossibilitado de sair
devido a um leve resfriado e necessitava de me comunicar uma
novidade.

O assunto não se me afigurava urgente, pelo que só compareci na


tarde seguinte, sobretudo porque desejava assistir aos derradeiros
trabalhos relacionados com a safra.

Fui encontrá-lo no seu gabinete, só. D epreendi que Louise fora


visitar uma amiga.

O meu padrinho exibia uma expressão estranha comparência — um


misto de embaraço e perplexidade, que também me intrigou.

— Precisamos tomar uma atitude e tens de decidir exatamente qual


— começou.

— Ela acaba de desembarcar em Plymouth.

— Quem? — perguntei, embora fizesse uma ideia muito concreta.

Mostrou-me uma folha de papel que tinha na mão.

— Recebi carta da tua prima Raquel.

Capítulo Sétimo

O bservei a letra da carta. Confesso que não sei o que esperava ver.
Talvez um estendal de arabescos com floreados caprichosos ou
então, pelo contrário, uma série de garatujas. N o entanto, as
palavras na minha frente não apresentavam qualquer característica
especial, à exceção de pequenos traços no final de cada uma, o que
as tornava um pouco difícil de decifrar.

— D á a impressão de que não sabe que estamos ao corrente da


situação — disse o meu padrinho. — D ecerto partiu de Florença
antes de Rainaldi me escrever. Lê e dá-me a tua opinião. Depois
revelo-te a minha.
Encimava-a o nome de uma estalagem em Plymouth e apresentava
a data de 13 de setembro.

"Prezado Mr. Kendall:

Q uando o A mbrose me falava do senhor, como acontecia com


frequência, mal sabia eu que o nosso primeiro contato se revestiria
de tanta amargura. Cheguei a Plymouth, procedente de Gênova,
esta manhã, imersa em profunda apreensão e, infelizmente, só.

O meu querido faleceu em Florença a 20 de julho, após um breve


período de doença, que, não obstante, se revelou particularmente
violenta. Fez-se tudo o que foi possível, porém os melhores médicos
a que consegui recorrer revelaram-se impotentes para o salvar.
Verificou-se uma recaída de uma febre estranha que o atacou no
princípio da primavera, agravada por uma pressão no cérebro
incubada ao longo dos últimos meses, até que se declarou com toda
a sua virulência. Foi sepultado no cemitério protestante de Florença,
num setor que eu própria escolhi, um pouco afastado das campas
inglesas, com árvores em volta, como ele desejaria. N ão me
referirei à dor e solidão em que o passamento me mergulhou, pois
não me conhece, nem pretendo importuná-lo com os meus
sentimentos pessoais.

O meu primeiro pensamento foi para Philip, que o A mbrose tanto


estimava e cujo pesar decerto não será inferior ao meu. O S ignor
Rainaldi, de Florença, meu particular amigo e conselheiro, prometeu
escrever-lhe para o pôr ao corrente da situação e poder informar
Philip, mas não confio muito no serviço postal de I tália para a I
nglaterra e receei que acabasse por se inteirar através de rumores
que circulassem em bocas estranhas. D aí a minha visita a este
país. Trouxe comigo todos os bens do A mbrose —

livros, roupa; em suma, tudo o que ele gostaria que ficasse em sua
casa, a qual agora

decerto passou a pertencer ao seu jovem primo. A ssim, ficar-lhe-ia


profundamente grata se me indicasse a melhor maneira de fazê-los
chegar às mãos e se devo ou não escrever a Philip.

A bandonei Florença subitamente, em obediência a um impulso,


mas quase com satisfação. Sentia-me impossibilitada de continuar
lá sem o Ambrose a meu lado.

Para já, não tenho quaisquer planos. A pós um abalo tão amargo,
necessito de algum tempo para refletir. Esperava chegar à I
nglaterra há mais tempo, todavia uma avaria qualquer não permitiu
que o navio iniciasse a viagem de Gênova antes. Creio que ainda
existem familiares meus, os Coryn, dispersos pela Cornualha, mas
como não os conheço pessoalmente não me atrevo a procurá-los.
Prefiro permanecer só. É possível que, após uns dias de repouso,
siga para Londres e trace então as linhas gerais do meu futuro.

Fico a aguardar instruções suas, Mr. Kendall, sobre o destino a dar


aos bens do meu marido.

Cordialmente,

Raquel Ashley."

Li a carta duas, possivelmente três vezes, e devolvi-a ao meu


padrinho, o qual aguardou que me pronunciasse, mas conservei-me
calado.

— Como vês, ela não quer ficar com nada — acabou por dizer. — N
em sequer um livro ou um par de luvas. É tudo para ti.

Continuei imerso em silêncio.

— N em pede para ver a casa — prosseguiu. — A casa que


constituiria o seu lar, se o A mbrose vivesse. Esta viagem tê-la-iam
efetuado juntos. Q ue diferença, hem? Todos os nossos amigos a
dar-lhe as boas-vindas e, ao invés, vê-se relegada para uma
estalagem solitária em Plymouth. Pode tratar-se de uma mulher
agradável ou desagradável, mas na verdade não exige nada. N ão
obstante, é Mrs. A shley. Embora compreenda o teu ponto de vista,
não posso, como amigo do A mbrose e administrador dos seus
bens, manter-me indiferente à situação. A sua viúva acaba de
chegar, só e sem amigos, pelo que considero meu dever oferecer-
lhe o quarto de hóspedes que existe nesta casa.

A proximei-me da janela. A final, ao contrário do que supusera,


Louise não se ausentara, pois avistei-a no jardim, entretida a
recolher as flores murchas caídas nos canteiros. Ergueu os olhos,
viu-me e acenou. Perguntei-me vagamente se o pai lhe teria
mostrado a carta de Raquel.

— Então, Philip? — perguntou Kendall. -— Podes escrever-lhe ou


não, como preferires. S uponho que não desejas vê-la e, se ela
aceitar o meu convite, decerto não nos visitarás durante a sua
permanência. Em todo o caso, creio que esperará de ti alguma
espécie de mensagem, para agradeceres as coisas que trouxe.
Posso incluí-la, à guisa de

pós-escrito, na minha carta.

Voltei-me da janela e olhei-o.

— Porque pensa que não a quero ver? Pelo contrário, quero e


muito. S e é uma mulher de impulsos, como admite na carta, e
Rainaldi também referiu, não lhe ficarei atrás nesse aspecto. De
resto, foi um impulso que me levou a Florença.

— Então? — repetiu, enrugando a fronte, com uma expressão


desconfiada.

— Q uando lhe escrever, diga que Philip A shley já se achava ao


corrente da morte de A mbrose. Visitou Florença na sequência de
duas cartas que ele enviou, esteve na Villa S angalle i, conversou
com dois empregados domésticos de lá e com o seu amigo e
conselheiro Rainaldi, e agora está de regresso. A crescente que é
um homem simples que vive com simplicidade. Possuidor de boas
maneiras, pessoa de poucas palavras e nada habituado a conviver
com mulheres. S e, no entanto, desejar conhecê-lo e à vivenda do
falecido marido, a casa de Philip A shley encontra-se à disposição
da prima Raquel. —

Pousei a mão no coração e efetuei uma ligeira vênia.

— Nunca imaginei que te veria tão empedernido. Que te aconteceu?

— N ada de especial. A penas isto: à semelhança de um jovem


cavalo de guerra, farejo o sangue. Esqueceu-se de que o meu pai
era militar?

D irigi-me ao jardim, à procura de Louise. A sua preocupação era


mais profunda que a minha. Peguei-lhe na mão e conduzi-a ao
pavilhão de verão junto do relvado, onde nos sentamos, como
conspiradores.

— A tua casa não está em condições de receber ninguém, e muito


menos uma pessoa como a contessa... como Mrs. A shley —
declarou imediatamente. - N ão posso deixar de lhe chamar
contessa, parece-me mais natural. J á pensaste que há mais de
vinte anos que não vive lá uma mulher? Em que quarto a
instalarias? E lembra-te do pó! Não só no andar de cima, mas na
própria sala, como notei o outro dia.

— I sso não interessa — repliquei, com impaciência. — Ela que


limpe o pó, se lhe apetecer um ambiente mais imaculado. Q uanto
menos lhe agradar, mais satisfeito me sentirei. Q ue se inteire da
vida desregrada que o A mbrose e eu levávamos. N ada parecida
com o que se passava naquela villa...

— Laboras num erro grave, Philip. N ão acredito que queiras


parecer um labrego, um ignorante, como um campônio. Colocavas-
te em desvantagem ainda antes de trocarem uma palavra. D eves
ter presente que ela viveu quase sempre no continente, em meios
requintados, com muitos lacaios, e aposto que trouxe um guarda-
roupa variado e elegante, para não falar de joias e outros adereços,
chamemos-lhes assim. O teu primo decerto teceu tantos encômios à
casa que ela esperará ver um ambiente admirável, muito
semelhante ao da sua villa. I maginas o efeito negativo que
exerceria uma espécie da Babilônia de desarrumação e lixo?

— D esarrumação e lixo? — repeti, enxofrado. — É uma casa de um


homem,

simples e banal, e queira D eus que não se modifique. Tanto o A


mbrose como eu nunca nos preocupamos com esses requintes a
que te referes.

— D esculpa — proferiu, embaraçada. — N ão pretendi melindrar-te.


S abes que adoro a tua casa, mas não podes levar a mal que diga o
que penso sobre a maneira como é assistida. Não há nada de novo
desde longa data, não existe o mínimo conforto...

Lembrei-me da sala de estar imaculadamente arrumada e decorada


onde estivera com o meu padrinho e reconheci para comigo que não
me desagradaria desfrutar de uma atmosfera similar em minha
casa.

— Bem, esqueçamos a minha falta de conforto. A gradava ao A


mbrose e agora a mim e, durante os dias (poucos, espero) que se
conservar conosco, à minha prima Raquel.

— És incorrigível — acusou, meneando a cabeça. — S e Mrs. A


shley corresponde àquilo que julgo, bastar-lhe-á uma olhadela à
casa para procurar refúgio em S aint Austell, ou conosco.

— Veremos.

— Vais mesmo atrever-te a interrogá-la? — perguntou , olhando-me


com curiosidade. — Por onde começarás?

Encolhi os ombros.

— S ó o saberei quando a vir. N ão duvido de que tentará sair-se


airosamente da situação. O u talvez opte por uma tirada emocional,
com uns borrifos de histeria. N ão conseguirá impressionar-me.
Assistirei impávido e sereno.

— N ão acredito que recorra a esses meios. Limitar-se-á a entrar e


assumir o comando. Não esqueças que deve estar habituada a dar
ordens.

— Em minha casa, garanto-te que não dará uma única.

— Coitado do S eecombe! Gostava de lhe ver a cara. Ela é capaz


de lhe atirar coisas se não aparecer imediatamente, quando tocar a
sineta. O s italianos são muito arrebatados, como deves saber. Pelo
menos, é o que consta.

— Ela é apenas parcialmente italiana — lembrei-lhe — e, de


qualquer modo, penso que o S eecombe saberá enfrentá-la. Talvez
chova durante três dias consecutivos e seja obrigada a ficar de
cama com reumatismo.

Rimos em uníssono, como crianças, embora não me achasse tão


despreocupado como pretendia deixar transparecer.

O convite fora lançado ao ar como um desafio e começava a


arrepender-me, apesar de me abster de o confessar a Louise.

E ainda me arrependi mais quando entrei em casa e olhei à minha


volta. Reconheci que cometera uma imprudência e, se não fosse por
uma questão de amor-próprio, creio que teria procurado novamente
o meu padrinho, para lhe pedir que não incluísse qualquer pós-
escrito a meu respeito quando escrevesse à minha prima Raquel.

Como deveria proceder com aquela mulher em minha casa? Q ue


lhe diria, que

medidas conviria tomar? S e Rainaldi se revelara plausível, ela sê-


lo-ia dez vezes mais. O
ataque direto poderia não resultar, e que dissera o italiano acerca de
tenacidade e de mulheres que travavam batalhas? S e a viúva se
mostrasse agressiva, ordinária mesmo, eu saberia como fazê-la
calar. Mas os modos açucarados, insidiosos, com peitos arfantes e
olhos de expressão angelical estariam ao alcance da minha
capacidade de contra-ataque?

Procurei convencer-me disso.

D e resto, tinham-se-me deparado alguns casos similares em O


xford, e sempre lograra triunfar, com o recurso à linguagem clara e
contundente, atingindo mesmo, por vezes, as raias da brutalidade. N
a verdade, consideradas todas as ramificações do assunto, estava
persuadido de que a confrontação com a minha prima Raquel se
traduziria numa vitória retumbante dos meus métodos. Mas, para já,
havia que cuidar dos preparativos da visita, a fachada de cortesia
antes de recorrer às armas.

N ão fiquei pouco surpreendido quando vi S eecombe acolher a


informação sem desagrado. Parecia até que já a esperava.

Expliquei-lhe rapidamente que Mrs. A shley chegara à I nglaterra,


com os bens do meu falecido primo, e era possível que nos fizesse
uma breve visita, dentro de uma semana. O lábio inferior não se
tornou protuberante, como costumava acontecer quando se lhe
deparava um problema, e escutou-me com uma expressão grave.

— Perfeitamente, senhor — acabou por articular. — Parece-me uma


ideia muito acertada e apropriada. O pessoal terá o maior prazer em
dar as boas-vindas a Mrs.

Ashley.

Olhei-o por cima do cachimbo, divertido com a sua pomposidade.

— J ulgava que eras como eu e não desejavas a presença de


mulheres aqui em casa.
A ssumiste uma atitude muito diferente quando te comuniquei o
casamento de Mr.

Ashley e que ela passaria a dar-te ordens.

Revelou-se chocado, e desta vez o lábio inferior salientou-se de fato


do outro.

— N ão era a mesma coisa — alegou. — D esde então, aconteceu


uma tragédia. A pobre senhora enviuvou. Mr. A mbrose desejaria
que fizéssemos o que pudéssemos por ela, em especial porque... —
tossiu discretamente — parece que não foi minimamente
beneficiada com o seu novo estado.

Estranhei que estivesse a par do fato e perguntei-lhe como se


inteirara.

— É do conhecimento geral — esclareceu. — Mr. A shley deixou-lhe


tudo, Mr.

Philip, e absolutamente nada à viúva. D e um modo geral, numa


família, importante ou não, existe sempre uma provisão para a
esposa enlutada.

— Estou admirado contigo — admiti. — Não costumas dar ouvidos a


mexericos.

— N ão se trata de mexericos, senhor — asseverou, com dignidade.


— O que diz respeito à família A shley interessa a todos. N ós,
servidores da casa, não fomos esquecidos.

A cudiu-me uma visão de ele sentado no seu quarto, rodeado,


diante de canecas de cerveja, por Wellington, o velho cocheiro
Tamlyn e o chefe dos jardineiros, a comentar pormenores do
testamento, que eu supunha secretos.

— N ão houve qualquer esquecimento — declarei, secamente. — O


fato de Mr.
A shley se encontrar no estrangeiro, e não no seu país,
impossibilitou a introdução de novas cláusulas. N o fundo, convém
ter presente que ele não esperava morrer na I tália. S e expirasse
aqui, tudo se passaria de maneira diferente.

— Foi o que nós pensamos — murmurou, diplomaticamente.

Enfim, que dissessem o que quisessem acerca do testamento.

Por outro lado, porém, eu tentava determinar como reagiria se não


tivesse herdado a propriedade. A deferência achar-se-ia presente?
O respeito? A lealdade? O u ver-me-ia reduzido ao menino Philip,
um parente pobre, com um quarto situado num recanto das traseiras
da casa? Esvaziei o cachimbo, de súbito desagradável entre os
lábios. Perguntei a mim próprio quantas pessoas haveria que
gostavam de mim e me serviam desinteressadamente.

— Bem, nada mais de momento, S eecombe — declarei. — S e


Mrs. A shley decidir visitar-nos, tratarei de te prevenir com a
necessária antecedência. A escolha do quarto ficará ao teu critério.

— Mas não lhe parece correto instalá-la nos aposentos que Mr. A
shley ocupava? —

argumentou, surpreendido.

O lhei-o em silêncio, chocado com as suas palavras. Em seguida,


receoso de que o meu estado de espírito se refletisse no rosto,
voltei-o para o lado.

— N ão vai ser possível, porque tenciono mudar-me para lá. A liás,


era para te ter dito antes, pois tomei a decisão há dois ou três dias.

Era falso, pois a ideia acabava de me ocorrer.

— Muito bem, senhor. N esse caso, o quarto azul e o aposento


anexo são os mais apropriados para Mrs. Ashley.

Afastou-se com uma ligeira mesura e entreguei-me a reflexões.


Encafuar aquela mulher no quarto de A mbrose constituiria um
autêntico sacrilégio. A fundei-me na minha poltrona usual e mordi o
tubo do cachimbo. S entia-me irritado e revoltado com a situação.
Fora autêntica loucura enviar aquela mensagem por intermédio do
meu padrinho e considerar sequer a visita da mulher a minha casa.
Em que demoníaca embrulhada me envolvera? E, ainda por cima,
havia S eecombe, com as suas ideias do que estava certo ou
errado.

O convite foi aceite. Ela escreveu uma carta a N ick Kendall e não a
mim. O que, como o mordomo decerto não deixaria de pensar,
estava certo e apropriado. Como eu não a convidara diretamente, a
resposta tinha de seguir pelas vias competentes. I nformava que
estaria preparada quando fosse julgado oportuno mandá-la chamar.
Comuniquei-lhe,

mais uma vez por intermédio do meu padrinho, que enviaria a


carruagem na sexta-feira.

O dia surgiu com excessiva prontidão, chuvoso, fustigado por vento


forte. A situação meteorológica não era inédita, muito pelo contrário,
na terceira semana de setembro, com as marés vivas. A s nuvens
negras percorriam o céu velozmente e prometiam chuva intensa
antes de anoitecer. N uma palavra, o cenário próprio da região
ocidental do país do princípio do outono. N ada que se parecesse
com o que predominava na parte meridional de Itália.

Eu enviara Wellington com a carruagem na véspera e ele pernoitaria


em Plymouth, para regressar com a minha prima Raquel. D esde
que eu anunciara a visita iminente da viúva, instalara-se uma
espécie de agitação na casa. O s próprios cães se apercebiam disso
e seguiam-me de aposento para aposento.

S eecombe lembrava-me um velho sacerdote que, após anos de


abstinência de todas as celebrações religiosas, voltava subitamente
a confrontar-se com o ritual esquecido. Movia-se de um lado para o
outro, misterioso e solene, com passos abafados
— foi ao ponto de comprar um par de pantufas de sola de borracha
—, para transferir de lugar diferentes artigos de prata, alguns dos
quais eu via pela primeira vez. Calculei que se tratava de relíquias
dos tempos do meu tio Philip. Candelabros enormes, açucareiros,
taças e até uma saladeira — pelo menos, era o que me parecia —
cheia de rosas.

— Deste em acólito? — perguntei. — Só faltam o incenso e a água


benta.

N ão se lhe alterou um único músculo do rosto enquanto recuava


um passo para olhar as “relíquias”. — Pedi ao Tamlyn que trouxesse
rosas do jardim murado. O s rapazes estão neste momento a
selecioná-las nas traseiras. Vamos precisar de flores na sala de
estar, no quarto azul e no boudoir.

Enrugou a fronte ao ver o jovem J ohn, ajudante de cozinha,


escorregar, e quase cair, sob o peso de mais um par de volumosos
candelabros.

O s cães olhavam-me, consternados. Um deles foi esconder-se


debaixo de um dos longos bancos do corredor. Resolvi ir para o piso
superior. N ão me recordava da última vez que entrara no quarto
azul.

N unca recebíamos visitas e achava-se ligado, na minha memória,


ao jogo das escondidas, num passado remoto, quando Louise
acompanhava o pai para passarem o N atal conosco. Lembrava-me
de penetrar no aposento silencioso e ocultar-me atrás da cama, no
meio do pó.

Tinha a vaga ideia de A mbrose dizer, uma ocasião, que fora


ocupado pela tia Phoebe, a qual se mudara para Kent pouco antes
de falecer.

N ão perdurava o mínimo traço dela. O s rapazes, sob a batuta de S


eecombe, tinham trabalhado com afinco, e a tia Phoebe fora varrida
com o pó dos anos. A s janelas estavam abertas, sobranceiras aos
jardins, e de manhã o sol incidia nos tapetes assaz coçados.
Lençóis de linho, de uma qualidade desconhecida para mim,
guarneciam a

cama. O lavatório e respectivo jarro teriam estado sempre no quarto


de vestir contíguo? E

aquela poltrona? N ão me recordava deles, mas na verdade também


não conservava a menor recordação da tia Phoebe, que se
transferira para Kent antes de eu nascer. Enfim, o que servira para
ela teria igualmente de satisfazer as necessidades da minha prima
Raquel.

O terceiro aposento, sob a arcada, que completava a suíte, fora o


boudoir da tia Phoebe, igualmente submetido a uma limpeza
meticulosa e de janelas abertas.

Havia um retrato de A mbrose na parede por cima da lareira, pintado


na sua juventude, de que eu nem conhecia a existência, e ele
provavelmente esquecera-o há muito. S e procedesse do pincel de
um autor de renome, encontrar-se-ia no piso térreo com os outros
retratos da família. Tratava-se de uma reprodução a três quartos, e
ele tinha a espingarda debaixo do braço e segurava uma perdiz
morta na mão esquerda. O s olhos fitavam em frente, diretamente
nos meus, e os lábios esboçavam um sorriso. O

cabelo era mais comprido do que eu o recordava. O conjunto não


apresentava nada de extraordinário. Com uma exceção.

O rosto parecia-se singularmente com o meu. Vi-me ao espelho e


tornei a concentrar-me no retrato. Cheguei à conclusão de que a
única diferença residia na inclinação dos olhos, um pouco mais
estreitos que os meus, e na cor mais escura do cabelo. N o entanto,
poderiam tomar-nos por irmãos, quase gêmeos. A súbita descoberta
da parecença animou um pouco o meu espírito enevoado. Era como
se o jovem A mbrose me dirigisse um sorriso tranquilizador e
dissesse: “Estou a teu lado.” E o A mbrose mais velho também me
parecia muito próximo. Por fim, fechei a porta atrás de mim e dirigi-
me para a escada.

O uvi o som de rodas no caminho de acesso à casa. Era Louise, na


carruagem, com ramos enormes de margaridas-do-outono e dálias
no banco a seu lado.

— Para a sala — explicou ao ver-me. — Pensei que o Seecombe


ficaria satisfeito.

O mordomo, que naquele momento cruzava o átrio, com o batalhão


de subordinados, pareceu ofendido e assumiu uma atitude rígida
enquanto ela entrava com as flores.

— N ão merecia a pena incomodar-se, Miss Louise — articulou ele.


— Eu já tinha tratado disso com o Tamlyn. Trouxemos flores em
quantidade suficiente do jardim murado.

— Então, eu faço os arranjos, antes que os teus homens comecem


a partir vasos.

Suponho que há vasos? Ou têm estado a colocar as flores em


boiões de compota?

O semblante de S eecombe podia considerar-se um estudo de


dignidade penalizada, e considerei prudente impelir Louise para a
biblioteca, cuja porta fechei.

— J ulguei que ele gostaria que me ocupasse dos preparativos e


estivesse presente quando Mrs. A shley chegar — explicou ela em
voz baixa. — O pai não me acompanhou

porque não se sentia bem e, com toda esta chuva, achei preferível
que ficasse em casa.

Que dizes? Fico ou não? As flores não passaram de um pretexto.

S entia-me vagamente contrariado pelo fato de ela e o meu padrinho


me julgarem tão incompetente, assim como o velho S eecombe, que
trabalhara como um escravo nos últimos três dias.

— É uma boa ideia, embora desnecessária — repliquei. —


Conseguimos perfeitamente dar conta do recado.

Mostrou-se desapontada. Era óbvio que ardia de curiosidade por


conhecer a viúva.

Abstive-me de referir que não tencionava encontrar-me em casa


quando chegasse.

Louise observou a sala em volta com uma expressão de crítica, mas


não emitiu qualquer comentário. Embora decerto se apercebesse de
numerosas lacunas, revelava o tato suficiente para não as
mencionar.

— S e quiseres, podes ir lá acima ver o quarto azul — indiquei, para


descargo de consciência.

— O quarto azul? N ão é o que dá para nascente, por cima da sala


de estar? Então, ela não fica no de Mr. Ashley?

— Não, pela simples razão de que o ocupo eu.

A insistência com que todos estranhavam que a minha prima Raquel


não fosse instalada no quarto de Ambrose começava a arrasar-me a
paciência.

— S e queres mesmo cuidar das flores, pede ao S eecombe os


vasos de que precisares — esclareci, dirigindo-me para a porta. —
Tenho uma carrada de coisas para fazer lá fora e estarei ausente a
maior parte do dia.

Começou a pegar nas flores, sem afastar os olhos de mim.

— Acho-te enervado.

— Enganas-te. Quero meramente estar só.


Corou e desviou a vista, ao mesmo tempo que me acudia o rebate
de consciência que conhecia sempre que magoava alguém.

— D esculpa — murmurei, com uma leve palmada no ombro. — N


ão faças caso do que digo. Agradeço-te teres vindo com as flores e
ofereceres-te para ficar.

— Q uando voltarei a ver-te, para saber novas acerca de Mrs. A


shley? D eves calcular que anseio por me inteirar de tudo. É claro
que, se o meu pai melhorar, apareceremos na igreja, domingo, mas
passarei todo o dia de amanhã a matutar...

— A matutar em quê? Receias que atire a minha prima Raquel pela


janela? S ou capaz disso se me irritar muito. Para descanso do teu
espírito, fica sabendo que amanhã à tarde passarei por tua casa
para proceder a um relato minucioso da situação. De acordo?

— Combinado — assentiu, com um sorriso, e foi à procura de S


eecombe e dos vasos.

Ausentei-me durante toda a manhã, para regressar cerca das duas


da tarde, com

fome e sede, após um longo percurso a cavalo. A ntes de uma


refeição de carnes frias e cerveja, inteirei-me de que Louise se
retirara. A seguir, entrei na biblioteca, sentei-me e refleti que me
encontrava só pela última vez.

À noite, ela já estaria debaixo do mesmo teto, naquele aposento ou


na sala, uma presença desconhecida e hostil, disposta a entranhar a
sua personalidade em minha casa.

S urgia como uma intrusa no meu lar. Eu não a desejava a meu


lado. A ela ou a qualquer outra mulher, de olhar perscrutador e
indiscreto, a insinuar-se na atmosfera, íntima e pessoal, que só a
mim pertencia. O ambiente era sossegado e silencioso, e eu fazia
parte dele, pertencia-lhe, como A mbrose, no passado e ainda
atualmente. N ão precisávamos de ninguém para alterar a quietude.
Olhei em volta, quase numa despedida, saí de casa e embrenhei-
me no bosque.

A figurava-se-me que Wellington não chegaria com a carruagem e a


indesejável passageira antes das cinco, pelo que decidi conservar-
me cá fora até depois das seis. Q ue aguardassem a minha
aparição para jantar. S eecombe recebera instruções bem claras. S
e ela vinha faminta, que contivesse a vontade de comer até a
chegada do dono da casa.

S uscitava-me um prazer especial imaginá-la sentada, só, na sala


de estar, trajada com ostentação, cheia de importância, sem
ninguém para a receber.

Continuei a caminhar ao vento e à chuva, ao longo da alameda


onde as quatro estradas se cruzavam e para leste, em direção ao
limite da propriedade; depois, de novo através do bosque para
norte, onde se situavam várias herdades, para me deter a trocar
impressões com os caseiros, com a única intenção de gastar tempo.
J á estava encharcado até aos ossos, mas era-me indiferente.

A bri a porta do átrio e entrei em casa. Esperava ver malas, baús,


montes de caixas e cestas, mas, como habitualmente, não se me
deparou nada de anormal.

A lareira da biblioteca fora acesa, porém não havia ninguém. N a


sala de jantar, a mesa estava posta para uma pessoa.

Cada vez mais perplexo, toquei a sineta para chamar Seecombe.

— Então? — inquiri.

Exibia a recuperada expressão de autoimportância, e a voz era


abafada quando anunciou:

— A senhora já chegou.
— I sso já eu calculava, visto que são quase sete horas. N ão trouxe
bagagem? Q ue lhe fizeram?

— A senhora trouxe muito pouca coisa. A s caixas e os baús


pertenciam a Mr.

Ambrose e colocamo-los no seu antigo quarto, senhor.

— A h... — A proximei-me do lume e dei um pontapé numa acha,


empenhado em evitar que ele se apercebesse do tremor das minhas
mãos. — Onde está Mrs. Ashley?

— Recolheu-se ao quarto. D isse que estava cansada e pediu-me


que explicasse a

sua ausência ao jantar. Mandei levar-lhe um tabuleiro há cerca de


uma hora.

O esclarecimento produziu-me indiscutível alívio. N o entanto, até


certo ponto, constituía uma espécie de anticlímax.

— Como decorreu a viagem?

— O Wellington diz que a estrada estava péssima a partir de


Liskeard e soprava vento quase ciclônico. Um dos cavalos perdeu
uma ferradura e houve necessidade de efetuar uma paragem num
ferreiro, perto de Lostwithiel.

— Hum... — Voltei-me de costas para o lume, a fim de as aquecer,


assim como as pernas.

— Está encharcado, senhor — observou S eecombe. — É melhor


mudar de roupa antes que contraia um resfriado.

— É o que vou fazer a seguir — prometi, enquanto olhava em redor.


— O nde estão os cães?

— Creio que seguiram a senhora ao quarto. Pelo menos, o Don.


Quanto aos outros, não tenho a certeza.
Continuei a aquecer as costas e as pernas junto da lareira e o
mordomo permanecia à entrada, como se esperasse que eu
reatasse o diálogo.

— Bem, vou tomar banho e mudar de roupa — decidi, por fim. — D


iz a um dos rapazes que encha a banheira. Jantarei dentro de meia
hora.

N aquela noite, sentei-me sem companhia para jantar, diante dos


candelabros acabados de polir e da saladeira de prata cheia de
rosas. S eecombe conservava-se atrás da minha cadeira, mas não
falávamos. O silêncio devia constituir uma tortura para ele, naquela
ocasião especial, pois eu estava ciente de como ansiava por tecer
comentários sobre a recém-chegada. Enfim, que contivesse o
ímpeto e despejasse depois o saco na sala do pessoal.

Q uando acabava de comer, J ohn entrou na sala de jantar e


murmurou algo ao mordomo, que se acercou de mim e murmurou:

— A senhora manda dizer que, se deseja vê-la quando acabar de


jantar, terá muito gosto em recebê-lo, senhor.

— Obrigado, Seecombe.

Q uando se retiraram, fiz uma coisa muito rara em mim somente


devido à extrema exaustão, após uma longa cavalgada, por
exemplo, ou uma caçada particularmente movimentada.

Dirigi-me ao aparador e tomei uma generosa dose de brande.

A seguir, subi a escada e bati à porta do pequeno boudoir.

Capítulo Oitavo

Uma voz fraca, quase inaudível, convidou-me a entrar.

Embora tivesse anoitecido e as velas estivessem acesas, os


cortinados permaneciam afastados e ela sentava-se junto do peitoril
da janela, a contemplar o jardim. A chava-se de costas para mim, as
mãos unidas sobre o regaço. D evia supor que era um dos criados,
pois não se moveu quando entrei. D on estava deitado diante do
lume, o focinho entre as patas, com os dois cães mais jovens a seu
lado. N ada fora alterado, não se via qualquer gaveta aberta da
pequena escrivaninha, nem objetos dispersos pelo chão; em suma,
nada de comum com a confusão produzida por uma pessoa recém-
chegada de uma viagem.

— Boa noite — proferi, e a voz pareceu-me tensa e irreal, no


pequeno aposento.

Ela voltou a cabeça e pôs-se imediatamente de pé, para se


aproximar de mim.

D esenvolvia-se tudo tão depressa que eu não dispunha de tempo,


nem um mero instante para refletir sobre as centenas de imagens
dela que conjurara durante os últimos dezoito meses. A mulher que
me perseguira através de noites e dias, pairara sobre as horas
conscientes e perturbara os sonhos achara-se finalmente diante de
mim. A minha primeira sensação foi de choque, quase de
estupefação, por ser tão baixa. Q uase não me chegava aos
ombros. Não tinha nada que se comparasse com a altura e figura de
Louise.

Trajava de preto, o que lhe absorvia a cor do rosto, e havia rendas


em torno da garganta e dos pulsos. O cabelo era castanho,
separado ao meio, com um nó baixo atrás, e as feições
irrepreensíveis e regulares. A s únicas coisas grandes nela
resumiam-se aos olhos, que, ao verem-me, se arregalaram em
reconhecimento súbito, surpreendidos, como os de uma gazela; do
reconhecimento passaram a confusão e desta a dor, quase
apreensão. Vi a cor acudir às faces e tornar a desaparecer, e creio
que constituí um abalo tão profundo para ela como vice-versa. Era
difícil determinar qual dos dois estava mais nervoso e menos à
vontade.

O lhamo-nos — eu para baixo e ela para cima —, e transcorreu um


momento antes que quebrássemos o silêncio.
Quando o fizemos, foi simultaneamente.

“Espero que tenha descansado", foi a minha contribuição, e a sua


“Tenho de lhe pedir desculpa”. Fez seguir a minha abertura das
palavras “S im, Philip, obrigada", após o que se acercou do lume,
sentou-se num banco baixo e indicou-me a cadeira em frente. O

velho perdigueiro, D on, espreguiçou-se, bocejou e, apoiando-se


nas patas posteriores, pousou-lhe a cabeça no regaço.

— S uponho que este é o D on? — disse ela, afagando-lhe a


cabeça. — J á fez de fato catorze anos?

— Exatamente. O seu aniversário é uma semana antes do meu.

— Encontrou-o num cesto à hora do café da manhã. O A mbrose


espreitava atrás do cortinado da sala de jantar, para lhe observar a
reação quando o abriu. D isse-me que nunca esqueceria a alegria
no seu rosto no momento em que retirou a tampa e o D on saltou
para fora. Você tinha dez anos e era o primeiro de abril.

Ergueu os olhos e sorriu-me e, não sem uma ponta de embaraço, vi


indícios de lágrimas, prontamente extintos.

— Tenho de lhe pedir desculpa por não comparecer ao jantar.


Efetuou preparativos só para mim, e decerto regressou a casa antes
do que desejava. Mas é que me sentia muito cansada e teria sido
uma horrível companheira à mesa. Pareceu-me preferível para si
que jantasse sozinho.

Recordei que me fartara de caminhar pela propriedade, para a


obrigar a esperar, mas conservei-me silencioso. Um dos cães
menores acordou e pôs-se a lamber-me a mão.

Puxei-lhe as orelhas com brandura para me concentrar em alguma


coisa.
— O S eecombe disse-me que estava ocupado e havia muito que
fazer. N ão quero que a minha visita inesperada o desvie das suas
obrigações. Posso orientar-me por aí sozinha, e até terei o maior
prazer nisso. Espero que por minha causa não introduza qualquer
alteração na sua rotina de amanhã. D esejo apenas dizer uma coisa.
O brigada por me ter convidado, Philip. Calculo que não deve ter
sido fácil para si.

Levantou-se e aproximou-se da janela para correr os cortinados. A


chuva alagava as vidraças, e refleti que eu talvez devesse ter
tomado a iniciativa de o fazer. Pus-me igualmente de pé, não sem
algum embaraço, mas era demasiado tarde para me antecipar.

Ela voltou para junto do lume e tornamos a sentar-nos.

— Foi uma sensação estranha cruzar o parque em direção à casa,


com o S eecombe a aguardar-me à entrada. Era uma cena que eu
tinha imaginado diversas vezes, e a realidade não se desviou dela.
O átrio, a biblioteca, os quadros nas paredes. O relógio do
campanário bateu as quatro horas no momento em que a
carruagem parou diante da porta. Até esse som me pareceu familiar.

Eu entretinha-me a puxar as orelhas do cão, sem me atrever a olhá-


la.

— A o serão, em Florença, no verão e inverno passados antes de o


A mbrose adoecer, costumávamos falar da viagem de regresso ao
lar — prosseguiu ela. — Eram os seus momentos mais felizes. Ele
falava-me dos jardins, do bosque e do caminho até o mar.
Tencionávamos vir pelo percurso que utilizei, razão pela qual o fiz.
Por Gênova e Plymouth. E na carruagem conduzida pelo Wellington
no resto da viagem. Foi perspicaz e atencioso da sua parte
providenciar nesse sentido, Philip.

Apesar de me sentir algo desnorteado, consegui recuperar o uso da


fala.
— Sei que a viagem não foi agradável, e o Seecombe disse-me que
tiveram de parar num ferreiro. Lamento o contratempo.

— N ão me preocupei com isso. N a verdade, até me senti muito


confortável junto do lume, a conversar com o Wellington, enquanto o
homem ferrava o cavalo.

As maneiras dela revelavam-se agora mais descontraídas.

O nervosismo inicial desaparecera, se porventura se tratara disso.


Era-me impossível ter a certeza. A cabei por me convencer de que,
se alguém estava em falta, era eu, pois sentia-me singularmente
grande e desajeitado num aposento tão pequeno, com a impressão
de que a cadeira que ocupava se destinava a um anão. N ão há
nada mais contraproducente para uma pessoa se sentir à vontade
do que estar sentado com desconforto, e perguntava-me que
espécie de figura seria a minha, encolhido na exígua peça de
mobiliário, com os pés enormes pousados no chão e os braços
compridos suspensos de cada lado do corpo.

— O Wellington indicou-me a casa de Mr. Kendall e, por um


momento, pensei se seria oportuno e cortês ir apresentar-lhe
cumprimentos — continuou. — Mas era tarde, os cavalos estavam
extenuados e eu ansiava por chegar... aqui. — Fez uma breve
pausa antes de dizer “aqui”, e ocorreu-me a possibilidade de
pretender referir-se a “casa" e acabar por se conter no último
momento. — O A mbrose descreveu-me tudo minuciosamente,
desde o átrio a todos os aposentos vazios. Até traçou um diagrama
de tudo, pelo que creio que poderia percorrê-los todos de olhos
fechados. — Fez uma breve pausa.

— A gradeço-lhe a gentileza de me conceder esta pequena suíte,


pois era a que utilizaríamos se o destino não pusesse termo abrupto
ao nosso casamento. Q ueria que você se mudasse para o quarto
dele, e o S eecombe explicou-me que já se tinha instalado lá. O seu
primo ficaria muito contente se soubesse.
— Espero que esteja confortável — articulei. — Creio que ninguém
voltou a ocupar estas instalações desde que uma familiar, a tia
Phoebe, que não conheci, as deixou.

— Ela enamorou-se de um cura e partiu para Tonbridge, a fim de


consolar o coração despedaçado. N o entanto, o coração revelou-se
obstinado e a paixoneta prolongou-se por vinte anos. Nunca lhe
contaram a história dela?

— Não.

O lhei-a dissimuladamente e vi que fitava o lume, com um leve


sorriso, provavelmente por pensar nas desventuras românticas da
tia Phoebe. A s mãos achavam-se pousadas no regaço.

Reconheci para comigo que nunca vira mãos tão pequenas numa
pessoa adulta.

Eram esguias e estreitas, como as de alguém num retrato pintado


por um velho mestre e deixado inacabado.

— Que lhe aconteceu, afinal? — perguntei.

— O coração recompôs-se, passadas duas décadas, quando


conheceu outro cura.

Mas entretanto ela contava quarenta e cinco anos e via o comboio


passar sem que tivesse lugar. Resultado: subiu para a última
carruagem. Por outras palavras, casou com ele.

— O matrimônio foi feliz?

— Não. Ela morreu na noite de núpcias... de comoção.

Voltou-se e olhou-me, com um trejeito levemente malicioso nos


lábios, e de súbito acudiu-me uma visão de A mbrose a contar-lhe a
história, como decerto acontecera, encolhido na cadeira, os ombros
trêmulos, enquanto ela o olhava precisamente com aquela
expressão, contendo a vontade de rir. N ão pude reprimir o impulso.
S orri à prima Raquel, e o ar solene que persistia no seu olhar
dissipou-se, enquanto o sorriso se alargava.

— D esconfio que acaba de inventar esse desenlace — acusei-a,


arrependido do meu sorriso.

— De modo algum. O Seecombe deve conhecer a história.


Pergunte-lhe.

— Ele não acharia próprio. — Meneei a cabeça com veemência. —


E ficaria chocado se soubesse que você a revelou-me. A propósito,
esqueci-me de perguntar se lhe trouxe algo para comer.

— Trouxe. S opa, uma perna de frango e uma fatia de pudim.


Estava tudo excelente.

— Como decerto já sabe, não há mulheres entre o nosso pessoal


doméstico.

N inguém para cuidar de si, arrumar-lhe os vestidos no roupeiro,


mas apenas o jovem John ou Arthur para lhe preparar o banho.

— Prefiro assim. A s mulheres falam pelos cotovelos. Q uanto aos


meus vestidos, apenas trouxe este e mais um. Fiz-me igualmente
acompanhar de sapatos resistentes para percorrer as imediações.

— S e amanhã chover como hoje, não poderá sair de casa. A


biblioteca está bem abastecida, se desejar ler. N ão sou muito dado
a leituras, mas espero que encontre obras do seu agrado.

O s lábios voltaram a comprimir-se num trejeito malicioso,


prontamente retificado com uma expressão grave.

— S e me aborrecer, posso entreter-me a arear as pratas. N ão


esperava ver uma quantidade tão grande. O A mbrose disse mais
de uma vez que a proximidade do mar as afetava.

Eu juraria pela sua expressão que suspeitava de que o estendal de


relíquias provinha de um armário fechado desde longa data e, por
detrás do ar circunspecto, me desfrutava.

D esviei os olhos. S orrira-lhe uma vez, mas poder algum do mundo


me obrigaria a

fazê-lo de novo.

— N a villa, quando fazia muito calor, sentávamo-nos à sombra, no


pátio em que há uma fonte — prosseguiu. — O A mbrose dizia-me
que fechasse os olhos e escutasse a água, para imaginar que era a
chuva daqui. A garrara-se à teoria de que eu mirraria no clima
britânico, em particular na umidade da Cornualha. Chamava-me flor
de estufa, própria apenas para ser cultivada por um perito,
absolutamente inútil no solo vulgar.

A firmava que eu tinha crescido na cidade e era, portanto,


supercivilizada. Recordo-me de, uma ocasião, ter comparecido à
mesa com um vestido novo e ele queixar-se de que tresandava a
Roma. “A ssim, morrias de frio, em casa”, garantiu-me. “N ão
poderás fugir da flanela e xale de lã”. Não me esqueci da
advertência e trouxe um xale.

Ergui a vista e verifiquei que, com efeito, havia um, preto como o
vestido, em cima do banco a seu lado.

— N a I nglaterra, sobretudo nesta região, dependemos muito das


condições meteorológicas — expliquei. — N ão há outro remédio,
devido à proximidade do mar. A nossa terra não é muito rica para a
agricultura, pelo menos como na parte norte do país.

Habituado como estou ao que se passa aqui, creio poder afirmar


que amanhã surgirá o sol e você poderá dar um bom passeio.

— Assim espero. Até perto do farol e ao longo de Twenty Acres e


West Hills.

— Sabe os nomes das terras de Barton? — estranhei.


— Há mais de dois anos que os conheço de cor.

Guardei silêncio por um momento, sem me ocorrer coisa alguma,


para replicar.

Por fim, aventurei em voz rouca:

— E terreno áspero para uma mulher.

— Trouxe sapatos resistentes.

O pé que surgiu de baixo da longa saia afigurou-se-me


inadequadamente preparado para uma longa caminhada, pois
envolvia-o um chinelo de veludo.

— Refere-se a isso?

— É claro que não. Tenho calçado mais forte.

N ão consegui imaginá-la a calcorrear os campos, por muito que se


mostrasse convencida do contrário.

— Sabe montar a cavalo?

— Não.

— Ou equilibrar-se no dorso de um, se alguém tomar conta das


rédeas?

— Talvez, mas precisaria de me agarrar à sela com ambas as mãos.


N ão há uma coisa qualquer chamada maçaneta a que uma pessoa
se pode segurar?

Formulou a pergunta com gravidade, o olhar dominado por uma


expressão solene, mas convenci-me mais uma vez de que me
desfrutava.

— N ão sei ao certo se há por aí alguma sela de amazona —


articulei com
relutância. — Hei de perguntar ao Wellington, embora não me
recorde de ver nenhuma na sala dos arreios.

— É possível que a tia Phoebe costumasse andar a cavalo —


observou. — Para se distrair, quando perdeu o cura. Seria a sua
única consolação.

Era inútil insistir. Havia algo de subjacente na voz dela que me


intrigava. E o pior é que me vira sorrir. Desviei mais uma vez os
olhos e disse:

— Está bem. Tratarei disso, de manhã. Q uer que diga ao S


eecombe que vasculhe os armários para ver se ela também deixou
ficar um traje de equitação?

— N ão creio que precise dele se você me orientar com brandura e


eu me agarrar bem à maçaneta.

N aquele momento, o mordomo bateu à porta e entrou, com uma


chaleira de prata numa bandeja monstruosa, além de um bule e
uma caixa do mesmo metal. Era a primeira vez que eu via aqueles
objetos e perguntei-me nas entranhas de que arrecadação os teria
descoberto. E com que objetivo os trazia? A minha prima Raquel leu
a perplexidade nos meus olhos. Por nada deste mundo me atreveria
a ferir a suscetibilidade de S eecombe, que pousou a bandeja na
mesa com a maior dignidade, mas acudiu-me uma maré crescente
de algo semelhante a histeria, pelo que me levantei e aproximei da
janela, com o pretexto de observar a chuva.

— O chá está servido, minha senhora — anunciou ele.

— Obrigada, Seecombe — proferiu ela solenemente.

O s cães ergueram-se, fungando e apontando os focinhos ao


tabuleiro, sem dúvida tão intrigados como eu. O mordomo fez
estalar a língua e chamou:
— Venham comigo, D on e companhia. A cho conveniente levá-los,
minha senhora.

Podiam derrubar a bandeja.

— Pois sim, Seecombe. Talvez tenha razão.

Mais uma vez a inflexão maliciosa subjacente. Congratulei-me por


estar de costas para ela.

— E quanto ao café da manhã, minha senhora? — volveu S


eecombe. — Mr. Philip costuma tomá-lo na sala de jantar, às oito
horas.

— Preferia tomar o meu no quarto. Mr. A shley dizia com frequência


que nenhuma mulher está apresentável antes das onze da manhã.
É muito incômodo?

— De modo algum, minha senhora.

— Então, obrigada e boa noite.

— Boa noite, minha senhora. Boa noite, senhor. Vamos, meninos.

Fez estalar os dedos, desta vez, e os animais seguiram-no, embora


com relutância.

N os momentos imediatos, imperou silêncio, até que ela perguntou


quase num murmúrio:

— Toma chá comigo? Sei que é um costume da Cornualha.

A minha dignidade extinguiu-se. A liás, mantinha-a com uma tensão


quase insuportável. Voltei para junto do lume e sentei-me no banco
ao lado da mesa.

— Vou confiar-lhe um segredo. É a primeira vez que vejo estes


apetrechos.
— Calculei isso mesmo pela sua expressão, quando o S eecombe
entrou. Creio que ele também nunca os tinha visto. Fazem parte de
um tesouro enterrado nas caves.

— É mesmo costume tomar chá depois do jantar?

— Sem dúvida — assentiu. — Na alta sociedade, quando há


senhoras presentes.

— Nunca o fizemos aos domingos, quando os Kendall e os Pascoe


vêm jantar.

— Talvez o S eecombe não os considere membros da alta


sociedade. Confesso que me sinto lisonjeada. Aprecio muito o chá.
Você pode comer o pão com manteiga.

I sso também constituía uma inovação. Fatias finas de pão


enroladas como pequenas salsichas.

— N ão compreendo como se lembraram disto na cozinha, mas o


sabor é excelente

— admiti, tragando uma.

— A lguma inspiração repentina, que decerto se repetirá no seu café


da manhã.

O lhe que a manteiga está a derreter-se. A conselho-o a chupar os


dedos. — Levou a chávena aos lábios, sem afastar os olhos de
mim. — Pode acender o cachimbo, se quiser.

— N o boudoir de uma senhora? — exclamei, estupefato. — Tem a


certeza? A os domingos, quando Mrs. Pascoe vem com o vigário,
nunca fumamos na sala de estar.

— Não nos encontramos na sala de estar e eu não sou Mrs.


Pascoe.

Encolhi os ombros e puxei do cachimbo.


— O Seecombe não aprovará. Há de notar o cheiro, de manhã.

— Abrirei a janela antes de me deitar. Desaparecerá com a chuva e


o vento.

— A chuva entrará e estragará o carpete, o que será pior que o


cheiro de tabaco.

— Seca-se com um pano — retrucou. — É miudinho como um


velhote.

— Supus que as mulheres se preocupassem com essas coisas.

— E preocupam-se quando não têm mais nada em que pensar.

Enquanto chupava o cachimbo, sentado no antigo boudoir da tia


Phoebe, assolou-me subitamente a suspeita de que aquilo não
correspondia de modo algum à maneira como tencionara passar o
serão. Tivera em mente umas breves palavras corteses, tanto
quanto possível glaciais, e uma despedida abrupta, para que a
intrusa ficasse perturbada.

O bservei-a dissimuladamente. A cabara de tomar o chá e pousara


a chávena e o pires na bandeja. A percebi-me mais uma vez das
suas mãos, esguias, pequenas e muito brancas, e perguntei-me se
A mbrose lhes chamaria citadinas. Usava dois anéis, ambos com
pedras valiosas, que não pareciam destoar do luto ou da sua própria
personalidade.

Congratulei-me por ter o fornilho do cachimbo para segurar e o tubo


para morder, pois faziam-me sentir mais como eu próprio e menos
como um sonâmbulo, aturdido por um sonho. Havia coisas que eu
devia fazer e dizer e, ao invés, permanecia ali sentado como

um pateta diante do lume, incapaz de coordenar as ideias.

O dia tão temido chegara ao fim e sentia-me impossibilitado de


determinar se me resultara vantajoso ou prejudicial. S e, ao menos,
ela possuísse alguma semelhança com a imagem que eu criara,
saberia melhor como proceder, mas agora que a tinha na minha
frente, em carne e osso, as visões anteriores afiguravam-se-me
meras fantasias de um espírito alucinado que se haviam fundido
umas nas outras e desaparecido nas trevas.

A lgures, havia uma criatura amargurada, encarquilhada e idosa,


rodeada de advogados, uma Mrs. Pascoe mais possante, de voz
incisiva e arrogante, uma boneca mimada petulante, uma víbora
sinuosa e silenciosa. Mas nenhuma delas se encontrava comigo
naquele aposento. A animosidade parecia agora fútil. Com efeito,
como podia eu recear alguém que nem me chegava ao ombro e não
possuía nada de notável além de um velado sentido de humor e
mãos pequenas? Teria sido por aquela mulher que um homem
participara num duelo e outro, moribundo, me escrevera “Ela acabou
por se desmascarar, Raquel, o meu tormento”? Era como se eu
tivesse soprado uma bola de sabão no ar e a visse bailar, até que
rebentara subitamente.

Tomei nota no meu íntimo para não tornar a beber brande após uma
caminhada de mais de quinze quilômetros à chuva, pois o álcool
embotava os sentidos e dificultava o raciocínio.

D ecidira combater aquela mulher e ainda nem sequer esboçara


uma escaramuça.

Que fora que ela dissera acerca da sela da tia Phoebe?

— Está quase a adormecer, Philip — sussurrou. — Q uer fazer-me o


favor de se levantar e ir para a cama?

A bri os olhos com um sobressalto. Ela observava-me com


curiosidade, as mãos pousadas no regaço. Pus-me de pé não sem
certa falta de firmeza e quase derrubei a bandeja.

— D esculpe, mas deve ter sido do calor do lume — balbuciei. —


Em regra, vou estender as pernas para a biblioteca.
— Fez hoje muito exercício, segundo julgo.

A inflexão parecia inocente, mas... Haveria um segundo sentido nas


suas palavras?

Enruguei a fronte e olhei-a em silêncio. D e resto, não sabia muito


bem o que poderia dizer.

— N esse caso, de manhã, se fizer bom tempo, arranja-me um


cavalo manso, para poder visitar as imediações? — lembrou.

— Pois sim, se está tão empenhada.

— Não precisa de se incomodar. Pedirei ao Wellington que me


acompanhe.

— Não, irei eu. Aliás, não tenho mais nada que fazer.

—A h, mas não pode ser! Esquecíamo-nos de que é sábado. N ão


costuma pagar ao pessoal nessa manhã? Fica para a parte da
tarde.

— Com a breca! — O lhei-a assombrado. — Como sabe que


costumo pagar ao pessoal na manhã de sábado?

Verifiquei com perplexidade crescente e não pouco embaraço que


os seus olhos se tornavam subitamente brilhantes e algo úmidos,
como quando se referira ao meu décimo aniversário. E a voz
adquiriu uma dureza singular.

— S e não adivinha, tem menos discernimento do que eu supunha.


A guarde um momento, por favor. Trouxe uma coisa para si. — A
briu a porta e passou ao quarto azul contíguo, para reaparecer com
uma bengala. — É sua. Pode ver e separar todo o resto mais tarde,
mas queria ser eu própria a entregar-lhe isto, esta noite.

Tratava-se da bengala de A mbrose. A que sempre usara e à qual


se apoiava. A da faixa dourada, com uma cabeça de cão de
mármore no castão.
— Obrigado — articulei impressionado. — Estou-lhe muito grato.

S aí e detive-me, com ela nas mãos. Raquel não me dera tempo


para me despedir.

N ão notei qualquer som proveniente do boudoir, e afastei-me


lentamente pelo corredor em direção ao meu quarto. Pensei na
expressão dela quando me entregara a bengala.

Uma ocasião, não muito tempo atrás, vira outros olhos com a
mesma expressão de sofrimento. Também continham reserva e
orgulho, aliados à idêntica humilhação, à mesma agonia de
suplicação. Q uando entrava no quarto de A mbrose, agora meu, e
examinava a bengala, refleti que devia ser porque os olhos eram de
cor similar e pertenciam à mesma raça. A parte isso, não possuíam
nada de comum — a pedinte na margem do Arno e a minha prima
Raquel.

Capítulo Nono

Levantei-me cedo na manhã seguinte, e logo após o café da manhã


dirigi-me ao estábulo e chamei Wellington, com o qual visitei a sala
dos arreios.

S im, havia cerca de meia dúzia de selas de amazona entre várias


outras, embora eu nunca tivesse reparado nelas.

— Mrs. A shley não sabe montar — expliquei. — I nteressa-lhe


apenas uma coisa para se sentar e agarrar.

— É melhor dar-lhe o S alomão — sugeriu o velho condutor. —


Talvez nunca tenha transportado uma senhora, mas não a fará cair.
É o único cavalo pelo qual ponho as mãos no fogo.

S alomão fora domado por A mbrose, alguns anos antes, e agora


comportava-se sem margem para reparos. A s selas de amazona
encontravam-se dependuradas num lugar alto da parede, pelo que
Wellington teve de chamar o moço de estrebaria, que, com uma
escada, as trouxe para baixo. A escolha da mais apropriada
consumiu longos minutos. Por fim, optamos por uma cujo único
óbice consistia no aspecto pouco atraente.

Recomendei que a polissem devidamente, e a prima Raquel julgaria


que acabava de chegar de Londres.

— A que horas deseja a senhora partir? — perguntou Wellington.

— Pouco depois do meio-dia, suponho. Traz o Salomão para a


entrada e eu próprio a acompanharei.

Em seguida, entrei no escritório, a fim de consultar os livros e


determinar a quantia que competia a cada um dos meus homens,
antes que se apresentassem para receber. A maneira como
Wellington dissera “a senhora” ficara-me atravessada na garganta.
S eria assim que a consideravam? N o fundo, talvez fosse uma
reação natural, conquanto eu não deixasse de estranhar a prontidão
com que o pessoal da casa parecia ter-se rendido àquela que
continuava a afigurar-se-me uma intrusa.

A expressão de reverência nos olhos de S eecombe quando


comparecera no boudoir com o chá e o pousara diante dela e,
naquela manhã, fora o jovem J ohn que me servira o café da
manhã, porque “Mr. S eecombe foi lá acima com um tabuleiro para a
senhora" contribuíam para que a minha inquietação se acentuasse.
D ebrucei-me sobre os livros, esforçando-me por afastar do
pensamento a realidade de que uma mulher dormira debaixo
daquele teto pela primeira vez desde que A mbrose despedira a
minha ama. N o entanto, não pude deixar de me recordar, com um
estremecimento de pavor, que ela me mandara quase
maternalmente para a cama, no momento em que o sono começava
a

vencer-me, no boudoir.

Q uando, por volta do meio-dia, apareceu o pessoal do serviço


externo para receber, reparei que o chefe dos jardineiros, Tamlyn,
não se encontrava entre os colegas.

Indaguei o motivo e fui informado de que se achava algures com “a


senhora”.

A bstive-me de emitir qualquer comentário, paguei-lhes e retiraram-


se. N o entanto, tinha uma vaga ideia de onde Tamlyn e Raquel
podiam estar. E não me equivoquei. D escobri-os num recanto da
propriedade, onde armazenáramos as camélias, oleandros e outras
plantas que Ambrose trouxera das suas viagens.

Eu nunca fora perito na matéria —delegava essas funções em


Tamlyn — e agora, ao dobrar a esquina que antecedia o local, ouvi
Raquel falar de enxertos e situação mais favorável em termos
meteorológicos, enquanto o chefe dos jardineiros escutava com a
mesma expressão de reverência que eu notara nos olhos de S
eecombe e Wellington. A o ver-me, ela endireitou-se, com um
sorriso.

— Estou aqui desde as dez e meia — informou. — Procurei-o para


pedir autorização, mas como não o encontrei tive o arrojo de chamar
o Tamlyn para me ajudar.

Não é verdade? — perguntou, virando-se para ele.

— Com certeza, minha senhora — assentiu o interpelado, com


olhos de carneiro mal morto.

— É que eu trouxe para Plymouth, onde ficaram por não caberem


na carruagem, mas chegarão por portador especial, todas as
plantas que o A mbrose e eu adquirimos nos últimos dois anos.
Tenho a lista comigo, com a indicação dos lugares em que ele as
desejava, e pensei que pouparia tempo se trocasse já impressões
com o Tamlyn sobre o assunto. Com efeito, talvez tenha partido
quando o portador chegar.

— Não tem importância — declarei, magnânimo. — Vocês


entendem dessas coisas muito mais do que eu. Continuem, por
favor.

— J á terminamos, não é assim, Tamlyn? N ão se esqueça de


agradecer a Mrs.

Tamlyn o chá que me ofereceu, e espero que a irritação na garganta


lhe passe depressa.

— O brigado, minha senhora — murmurou o chefe dos jardineiros,


que em seguida se voltou para mim. — A prendi algumas coisas
esta manhã, Mr. Philip —

revelou, com uma ponta de desafio na voz. — Confesso que nunca


esperei aprender nada de uma senhora. Pelo menos, no que se
refere à minha profissão. Mrs. A shley sabe de jardinagem muito
mais do que eu. Fez-me sentir totalmente ignorante.

— N ão diga disparates — obtemperou ela. — S ó percebo um


pouco de árvores e arbustos. Lembre-se de que ainda não me
mostrou o jardim murado. Fica para amanhã.

— Quando desejar, minha senhora.

Tamlyn ficou entregue às suas plantas e encaminhamo-nos para a


casa.

— S e tem andado por aí desde as dez da manhã, deve precisar de


descansar —

observei. — Vou dizer ao Wellington que não sele o cavalo.

— D escansar? Q ue ideia! Estou ansiosa por dar uma volta a


cavalo e nada me fará desistir. N ão quero perder esta manhã sem
chuva e com algum sol. É o Wellington que me acompanha?

— N ão, eu. E previno-a desde já do seguinte: talvez dê lições sobre


camélias ao Tamlyn, mas não conseguirá fazer o mesmo comigo no
que se refere a equitação e agricultura.
— S ei distinguir o trigo da cevada — aventurou, em tom
aparentemente submisso.

— Isso não o impressiona?

— N em um átomo. D e resto, não encontrará nem um nem outro,


porque já terminamos a safra deste ano.

Q uando entramos em casa, descobri que S eecombe servira um


almoço frio de carne e salada na sala de jantar, com tortas e pudins,
como se fôssemos sentar-nos para comer. Raquel olhou-me com
uma expressão solene, por detrás da qual pressenti uma réstia de
malícia.

— Você é jovem e ainda não acabou de crescer — salientou. —


Coma e esteja grato à Providência. Guarde um pedaço de torta na
algibeira e eu pedir-lhe-ei quando estivermos nos montes.
Entretanto, vou lá acima vestir-me apropriadamente para montar.

"Pelo menos", cogitei, enquanto atacava a carne fria com


considerável apetite, "não exige que a sirvam nem parece esperar
atenções especiais, e possui um espírito de independência
indiscutível. O único inconveniente é que a minha atitude, que eu
tencionava tornar encorajadora de iniciativas, não exerce o menor
efeito. O meu sarcasmo foi encarado como jovialidade".

Eu acabara de comer quando S alomão foi levado para a entrada, e


verifiquei que o velho e possante cavalo sofrera um tratamento
ímpar na sua existência. Até as ferraduras tinham sido polidas,
atenção que nunca fora concedida ao meu Cigano.

Fui comunicar a S eecombe que deveríamos regressar depois das


quatro e, quando voltei a sair, Raquel já descera do quarto e estava
equilibrada no dorso de S alomão, enquanto Wellington lhe ajustava
o estribo. Ela mudara de vestido, também de luto, e, em vez de
chapéu, cobrira a cabeça com o xale, preso com um alfinete debaixo
do queixo.
N aquele momento, conversava com Wellington, de perfil para mim,
e, por qualquer razão indeterminada, lembrei-me do que dissera na
véspera acerca do comentário jocoso de A mbrose, que a acusara
de tresandar a Roma. J ulguei compreender ao que se referira.

A s suas feições recordavam as gravadas numa moeda romana,


bem vincadas, porém pequenas. E agora, com o xale à cabeça,
fazia-me pensar nas mulheres que vira ajoelhadas na Catedral de
Florença ou dissimuladas às entradas das casas silenciosas.

Empertigada na sela, tornava-se difícil acreditar que era baixa no


chão. A mulher que eu considerava banal, à parte as mãos,
expressão mutável do olhar e riso que uma vez lhe

notara na voz, assumia um aspecto diferente, agora que se


encontrava sentada acima de mim. Dir-se-ia mais distante, mais
remota e mais... italiana.

O uviu os meus passos e voltou-se — e tudo desapareceu: a


expressão distante que dominara a fisionomia em repouso. Agora,
reassumira a aparência inicial.

— Está pronta? — perguntei. — Ou tem medo de cair?

— Deposito a minha confiança em si e no Salomão.

— Muito bem. Vamos.

Peguei na brida e partimos para a digressão às terras de Barton.

O vento do dia anterior abrandara sensivelmente e o céu


apresentava-se agora quase limpo. Pairava uma certa maresia na
atmosfera e ouvia-se a rebentação do mar ao longe. Aquele tipo de
tempo era frequente no outono.

A nossa peregrinação era de algum modo estranha. Começamos


por visitar as terras de Barton, e tive de desenvolver esforços para
impedir Billy Rowe e a esposa de nos convidarem a entrar em sua
casa, para tomar chá.

A s chamadas terras de Barton formavam uma espécie de


península, com os campos do farol na extremidade mais afastada e
o mar a constituir baías, a leste e oeste, em cada lado.

Como eu referira a Raquel, o trigo fora levado na sua totalidade,


pelo que podia conduzir S alomão por onde quisesse, sem o risco
de produzir estragos. Chegamos assim às proximidades do farol, de
onde, virando-se para trás, ela tinha ensejo de contemplar toda a
propriedade, limitada, na parte ocidental, pela longa extensão de
areal da baía e, cinco quilômetros para oriente, pelo estuário. A
herdade Barton e a própria casa — a mansão, como S eecombe lhe
chamava — situavam-se numa espécie de pires, porém as árvores
plantadas por A mbrose e o meu tio Philip já apresentavam uma
altura e espessura apreciáveis, para proporcionarem mais abrigo ao
edifício, e, para norte, a nova alameda atravessava o bosque e
seguia pela encosta suave em direção à encruzilhada das quatro
estradas.

Recordando-me da conversa da véspera, tentei testar Raquel


acerca dos nomes dos campos de Barton, mas não consegui
apanhá-la em falso, pois conhecia-os todos. E a memória também
não a traiu quando começou a mencionar as outras herdades da
propriedade, com as identidades de quem as ocupavam.

— D e que acha que o A mbrose e eu conversávamos mais? —


acabou por perguntar quando descíamos da colina do farol para os
campos a leste. — I sto era a sua paixão, pelo que o tornei também
na minha. N ão desejaria que a sua eventual esposa fizesse o
mesmo?

— Como não sou casado, não me posso pronunciar — repliquei


secamente. — Em todo o caso, pensei que, como viveu sempre no
continente, os seus interesses seriam inteiramente diferentes.

— E eram, até conhecer o Ambrose.


— À exceção da jardinagem.

— À exceção da jardinagem — concordou. — A liás, foi assim que


tudo principiou, como ele decerto lhe revelou. O meu jardim na villa
era adorável, mas isto... — Fez uma pausa e puxou as rédeas,
enquanto eu conservava a mão na brida — isto corresponde ao que
sempre desejei ver. É diferente. — Conservou-se silenciosa por uns
instantes, com o olhar fixo na baía. — N a villa, quando eu era
jovem e recém-casada (não me refiro ao A mbrose), não me sentia
muito feliz, pelo que me distraía com as plantas, procedendo a
enxertias e outras atividades do gênero. Li muitas obras da
especialidade, com resultados altamente compensadores. D e
qualquer modo, era o que eu supunha e me diziam. N ão sei qual
seria a sua opinião.

Ergui os olhos para a observar. Tinha o perfil voltado para o mar,


alheia ao meu exame. Q ue quereria dizer? Porventura o meu
padrinho não lhe comunicara que eu visitara a villa?

A cudiu-me uma ponta de desconfiança. Evoquei a sua serenidade


da véspera, após o nervosismo inicial, assim como a facilidade com
que a conversa se desenrolara, o que, ao recordá-la durante o café
da manhã, atribuíra à sua compostura social e minha apatia por
efeito do brande que ingerira.

A figurava-se-me agora estranho que não tivesse feito a menor


alusão à minha visita a Florença e, sobretudo, à maneira singular
como me inteirara da morte de A mbrose. D ar-se-ia o caso de o
meu padrinho haver omitido essa faceta da situação, para que eu
me incumbisse de a elucidar? A maldiçoei-o intimamente pelo
inqualificável gesto de covardia, embora, ao mesmo tempo,
reconhecesse que o covarde agora era eu. N a noite anterior, com o
brande a encorajar-me, não sentiria rebuço em informá-la, mas
presentemente o empreendimento apresentava-se-me muito mais
difícil. Ela ficaria intrigada por não ter falado antes. O momento era o
mais indicado, evidentemente, para anunciar: “N a realidade,
conheço os jardins da Villa S angalle i. N ão sabia?" N o entanto,
Raquel agitou as rédeas e Salomão reatou a marcha.
— Podemos ir até ao moinho e atravessar o bosque para o outro
lado? —

perguntou.

A oportunidade perdera-se e encaminhamo-nos para casa.

Enquanto avançávamos através do bosque, ela emitia comentários


ocasionais acerca de árvores, a sequência de colinas ou qualquer
outra característica, mas para mim a descontração da tarde
dissipara-se, pois, de uma maneira ou de outra, necessitava de lhe
falar da minha visita a Florença. D e contrário, inteirar-se-ia por
intermédio de S eecombe ou do meu padrinho, quando
comparecesse para jantar, no domingo. Tornei-me menos
comunicativo à medida que nos aproximávamos de casa.

— Cansei-o — observou ela. — Tenho permanecido na sela,


importante como uma

rainha, enquanto você percorre quilômetros, ao estilo de um


peregrino. Perdoe-me, Philip, mas a felicidade que sinto fez-me
esquecer outras realidades. N em imagina como estou feliz.

— Não estou cansado — repliquei — , e alegra-me que desfrutasse


com o passeio.

Wellington aguardava-nos e ajudou-a a desmontar. Raquel subiu ao


quarto, a fim de repousar um pouco antes do jantar, e eu sentei-me
na biblioteca, enrugando a fronte por cima do cachimbo e
perguntando-me como demônio lhe falaria de Florença. O pior de
tudo era que, se o meu padrinho a tivesse elucidado na sua carta,
competiria agora a ela abordar o assunto em primeiro lugar,
enquanto eu permaneceria descontraído, à espera do que dissesse.
A ssim, a iniciativa devia partir de mim. Mas mesmo isso careceria
de importância especial se se tratasse da mulher que eu antevira.
Por que tenebrosa razão tinha de ser tão diferente e transtornar os
meus planos profundamente?
Capítulo Décimo

Lavei as mãos, mudei de casaco para jantar e meti na algibeira as


duas cartas que A mbrose me escrevera, mas quando entrei na
sala, esperançado em vê-la sentada no sofá ou numa poltrona,
encontrei-a deserta. S eecombe, que passava naquele momento no
corredor, informou-me de que “a senhora” estava na biblioteca.

A gora, que não se sentava na sela acima de mim e se


desembaraçara do xale, parecia ainda mais baixa que
anteriormente, mais indefesa. E também mais pálida, o que
proporcionava a ilusão de que o luto era mais carregado.

— I mporta-se que me sente aqui? A sala é encantadora durante o


dia, mas agora, à noite, com os cortinados corridos e as velas
acesas, este aposento parece mais confortável. De resto, era onde
você e o Ambrose se instalavam sempre.

Talvez fosse aquela a minha oportunidade para dizer:

"É verdade. N ão há nada como isto na villa". A o invés, conservei-


me calado, e a aparição dos cães naquele momento constituiu uma
diversão. Prometi a mim mesmo que falaria a seguir ao jantar, e até
lá não beberia vinho do Porto nem brande.

À mesa, S eecombe colocou-a à minha direita e ele e J ohn


incumbiram-se de nos servir. Raquel admirou a saladeira com rosas
e os candelabros e conversava com o mordomo, enquanto ele ia
velando pelas nossas necessidades e eu transpirava com receio de
que ele pronunciasse algo como "I sso passou-se, minha senhora,
quando Mr. Philip se encontrava na Itália".

Foi com profundo alívio que vi a refeição chegar ao fim e voltamos a


ficar sós, embora isso me acercasse mais da minha tarefa. S
entamo-nos diante do lume da biblioteca e Raquel puxou de um
trabalho de renda de que se fizera acompanhar, enquanto eu
observava a destreza das pequenas mãos.
— Diga-me o que o preocupa — solicitou, transcorridos alguns
minutos. — Sei que tem alguma coisa, pressinto-o. O A mbrose
observava que eu possuía um instinto animal para antever
problemas, e é o que me acontece neste momento. N a verdade,
noto-lhe algo de diferente desde esta tarde. Disse alguma coisa que
o contrariasse?

Pronto. A bola fora posta a rolar. Ao menos, proporcionava-me uma


jogada fácil.

— N ão disse nada que me contrariasse, mas proferiu determinadas


palavras que me intrigaram — repliquei. — Pode revelar-me o
conteúdo da carta que N ick Kendall lhe escreveu para Plymouth?

— Com certeza. A gradecia a minha e explicava que ambos


conheciam os fatos relacionados com a morte do A mbrose, o S
ignor Rainaldi lhe enviara cópias da certidão

de óbito e outros documentos e você me convidava a passar uns


dias aqui, até eu traçar planos para o futuro. S ugeria mesmo que
seguisse para Pelyn no final da minha visita, o que considerei uma
gentileza especial.

— Nada mais?

— Só isso. Era uma carta muito breve.

— Não fazia a mínima alusão à minha viagem ao estrangeiro?

— Não.

— Então, compreendo. — S enti-me corar com intensidade,


enquanto ela voltava a concentrar-se no trabalho de renda.

A pós uma pausa, acrescentei: — O meu padrinho cingiu-se à


verdade ao referir que ele e o pessoal da casa tomaram
conhecimento da morte do A mbrose através de Rainaldi. Mas o
meu caso foi diferente. I nteirei-me em Florença, na villa, por
intermédio dos seus criados.

Ergueu a cabeça e olhou-me com curiosidade. D esta vez, não


havia vestígios de lágrimas nos olhos, nem sugestão de malícia na
expressão. O olhar era perscrutador, e pareceu-me ler nele
compaixão e censura.

— Esteve em Florença? — perguntou. — Quando, há quanto


tempo?

— Voltei há cerca de três semanas. Fui e vim pela França. Passei


apenas uma noite em Florença. A de quinze de agosto.

— D e quinze de agosto? — A percebi-me da nova inflexão na voz


dela, enquanto enrugava a fronte para esquadrinhar a memória,
sem dúvida. — Mas eu tinha partido para Gênova na véspera. Não é
possível.

— É possível e verdade — asseverei. — Foi o que aconteceu.

O trabalho de renda deslizou-lhe das mãos, e a expressão estranha,


quase de apreensão, reapareceu nos olhos.

— Por que não me disse? Por que me deixou permanecer aqui,


nesta casa, vinte e quatro horas sem pronunciar uma única palavra
a esse respeito? D evia ter-me revelado ontem à noite.

— Pensava que sabia, pois pedi ao meu padrinho que a informasse


na carta. D e qualquer modo, agora ficou a saber.

Uma fibra de covardia num recanto do meu ser acalentava a


esperança de que o assunto terminasse aí, mas tal não aconteceu.

— Você esteve na villa - articulou, como se falasse para consigo. —


S uponho que conversou com o Giuseppe. A o abrir o portão e vê-lo,
deve ter pensado... — I nterrompeu-se, o olhar enevoou-se e voltou
a cabeça para o lume. — Explique-me o que aconteceu, Philip.
Introduzi a mão na algibeira e os dedos pousaram nas cartas.

— Havia muito tempo que não tinha notícias do A mbrose, desde a


Páscoa ou

talvez desde o Pentecostes... N ão me recordo da data exata, mas


tenho todas as cartas lá em cima. Estava cada vez mais
preocupado, à medida que as semanas passavam. Até que, em
julho, chegou uma. A penas uma página. Uma série de garatujas,
coisa que nem parecia dele. Mostrei-a ao meu padrinho, o qual
concordou que eu devia seguir para Florença, como fiz um ou dois
dias mais tarde. N o momento da partida, veio outra carta, muito
resumida e seca. Tenho ambas aqui, no bolso. Quer vê-las?

N ão respondeu imediatamente. A chava-se de costas para a lareira


e voltava a olhar-me com curiosidade. N aqueles olhos havia algo
de compulsivo, nem arrogante nem autoritário, mas estranhamente
profundo, terno, como se dispusesse do poder de detectar e
compreender a minha relutância em continuar, consciente do
motivo, o que a levava a urgir que prosseguisse.

— De momento, não. Depois.

Transferi a minha atenção dos olhos para as mãos, unidas na sua


frente, aparentemente menores que nunca, imóveis. A figurava-se-
me mais fácil falar sem a olhar diretamente.

— Q uando cheguei a Florença, aluguei uma carrozza e dirigi-me


para a villa.

A cudiu uma mulher a abrir a porta e perguntei pelo A mbrose.


Pareceu assustada e chamou o marido, o qual me comunicou que o
meu primo tinha morrido e você partido.

A seguir, mostrou-me a residência e entrei no quarto onde o A


mbrose faleceu. Q uando me retirava, ela abriu uma arca, de onde
tirou o chapéu dele, que me entregou. Era a única coisa que você se
tinha esquecido de levar consigo.
Calei-me, sem desviar os olhos dela. O s dedos da mão direita
pousavam na aliança da esquerda e vi que exerciam pressão.

— Continue — solicitou.

— Voltei para Florença. Giuseppe tinha-me dado o endereço de


Rainaldi e fui procurá-lo. Pareceu surpreendido de me ver, mas
recompôs-se com prontidão. D escreveu pormenores da doença e
morte do A mbrose e forneceu-me indicações para visitar o
cemitério protestante, mas não o fiz. Quando o interroguei sobre o
seu paradeiro, Raquel, alegou que o ignorava. Nada mais. No dia
seguinte, iniciei a viagem de regresso a casa.

Registrou-se nova pausa. Os dedos aliviaram a pressão na aliança.

— Posso ver agora as cartas?

Extraí-as da algibeira e as entreguei. Volvi os olhos para o lume e


ouvi o ruído produzido pelo papel quando ela o desdobrava. S
eguiu-se um longo silêncio. Por fim, perguntou:

— Só estas duas?

— Só estas duas — confirmei.

— Disse que não recebeu qualquer outra depois da Páscoa ou do


Pentecostes?

— Exato.

Creio que as leu e releu várias vezes até as saber de cor. Por
último, devolveu-me, ao mesmo tempo que pronunciava em tom
pausado:

— Como me deve ter odiado...

Ergui os olhos, surpreendido, e afigurou-se-me que ela conhecia


todas as minhas fantasias, todos os meus sonhos, e via, um a um,
os rostos das mulheres que eu conjurara ao longo daqueles meses.
Negar resultaria inútil, e protestar absurdo.

A s barreiras tinham sido baixadas. Era uma sensação singular,


como se estivesse sentado, desnudo, diante dela.

— É verdade — murmurei.

Era mais fácil, depois de dito. “Talvez seja assim que um católico se
sente após a confissão”, refleti. “Um peso retirado dos ombros e
substituído por uma impressão de vazio."

— Por que me convidou para o visitar?

— Para a acusar.

— De quê?

— N ão sei bem. Talvez de desgostar o A mbrose, o que se poderia


considerar homicídio, atendendo ao estado do seu coração.

— E depois?

— N ão tinha traçado planos a mais longo prazo. Q ueria, sobretudo,


fazê-la sofrer.

Assistir ao seu sofrimento. Depois, é natural que a deixasse partir.

— S eria muito generoso de sua parte. Mais do que eu merecia.


Mesmo assim, foi bem sucedido. Conseguiu o que queria. Vigiou-me
até à saciedade.

Operava-se uma transformação qualquer nos seus olhos.

O rosto estava pálido, quase lívido, e imóvel, como até ali.

S e eu dispusesse de poderes, ou insensibilidade, para o reduzir a


pó com o pé, os olhos perdurariam, com as lágrimas que nunca
deslizavam para as faces.
Levantei-me e cruzei a sala.

— É inútil — desabafei. — O A mbrose sempre disse que eu daria


um péssimo militar. N ão posso fazer fogo a sangue-frio. Por favor,
vá lá para cima ou qualquer lugar menos aqui. A minha mãe faleceu
numa data que não consigo recordar, e nunca vi uma mulher chorar.
— A bri a porta, porém ela continuou sentada junto do lume, sem
efetuar o mínimo movimento. — Vá lá para cima, prima Raquel.

N ão sei como a minha voz soava — áspera ou mesmo elevada e


ríspida —, mas o velho D on, deitado no chão, ergueu a cabeça,
olhou-me, como que intrigado, acabou por se espreguiçar e bocejar
e voltou a estender-se diante da lareira. Ela moveu-se finalmente.
Baixou a mão e tocou na cabeça do cão.

Fechei a porta, peguei nas duas cartas e atirei-as ao lume.

— N ão servem de nada, uma vez que nos recordamos do que ele


escreveu —

observou ela.

— Posso esquecê-lo, se você também o fizer. O fogo tem algo de


limpo. N ão subsiste nada. As cinzas não contam.

— S e você fosse um pouco mais velho ou a sua vida tivesse sido


diferente ou ainda se se tratasse de outra pessoa e não o amasse
tanto, eu podia falar-lhe destas cartas e do A mbrose. Mas não o
farei. Prefiro que me condene. A longo prazo, torna a situação mais
fácil para ambos. S e me deixar ficar até segunda-feira, partirei logo
a seguir e não necessitará de pensar mais em mim. Embora você
não os planeasse assim, a noite de ontem e o dia de hoje foram
muito felizes. Que Deus o abençoe, Philip.

Espevitei o lume com a biqueira da bota e algumas brasas


desprenderam-se.
— N ão a condeno. N ada funcionou como eu tinha pensado ou
planeado. N ão posso continuar a odiar uma mulher que não existe.

— Mas eu existo.

— Não é a mulher que eu detestava. A questão cinge-se a isso.

Ela continuou a afagar a cabeça de D on, que naquele momento a


ergueu e apoiou no seu joelho.

— Essa criatura que concebeu na mente assumiu forma quando leu


as cartas ou antes?

Ponderei a pergunta por uns instantes. D e súbito, revelei tudo numa


torrente de palavras. Para que guardar algo para mim e deixá-lo
apodrecer?

— A ntes — declarei com firmeza. — Fiquei, de certo modo, aliviado


quando as cartas chegaram. Forneceram-me um motivo para a
odiar. Até então, não tinha nada em que me basear, o que me
envergonhava.

— Envergonhava, por quê?

— Porque estou convencido de que não existe nada de mais


autodestrutivo e nenhuma emoção tão desprezível como a inveja.

— Tinha inveja?...

— S im, agora posso dizê-lo, por muito que me custe. D esde o


princípio, quando ele escreveu para anunciar o casamento. É
mesmo possível que antes disso houvesse uma espécie de sombra,
não sei... Todos esperavam ver-me tão encantado como eles, e não
era possível. D eve parecer-lhe altamente emocional e absurdo que
experimentasse semelhante estado de espírito. Como uma criança
mimada. N o fundo, talvez fosse, sou, isso mesmo. O caso é que
nunca conheci nem estimei ninguém como o Ambrose.
Eu começava a pensar em voz alta, sem me preocupar com o que
ela considerasse a meu respeito. Traduzia coisas por palavras que
até então não admitira a mim próprio.

— Não seria também a situação dele? — observou.

— Não compreendo.

Retirou a mão da cabeça de D on e, pousando o queixo nas mãos


abertas e

inclinadas para cima, com os cotovelos nos joelhos, fixou o olhar no


lume.

— Tem apenas vinte e quatro anos, Philip, e toda a vida à sua


frente, provavelmente muitos anos de felicidades, casado sem
dúvida, com a esposa amada e filhos. O seu afeto pelo A mbrose
nunca diminuirá, mas recuará para o lugar que lhe compete. O amor
de qualquer filho por qualquer pai. N ão era esse o caso dele. O

matrimônio surgiu demasiado tarde.

Pousei um joelho no chão diante da lareira, para acender o


cachimbo. D esta vez, não pedi autorização para fumar, por saber
que não se importava.

— Por que demasiado tarde? — inquiri.

— Tinha quarenta e três anos, há apenas dois, quando chegou a


Florença e nos vimos pela primeira vez. Você conhecia o seu
aspecto, o modo de falar, as maneiras, o sorriso. Representava a
sua vida desde a infância. Mas não podia saber o efeito que exerceu
numa mulher cuja vida não fora feliz e conhecera homens... muito
diferentes.

Conservei-me calado, embora julgasse compreender o sentido das


suas palavras.
— N ão sei porque se interessou por mim, mas a verdade é que isso
aconteceu.

Essas coisas nunca se podem explicar, acontecem. A razão pela


qual esse homem veio a amar esta mulher, que estranha reação
química no nosso sangue nos atraiu, torna-se impossível de
determinar. Para mim, só, ansiosa e sobrevivente de numerosos
naufrágios emocionais, surgiu como um salvador, a resposta a uma
prece. N unca se me deparara uma pessoa forte como ele e, ao
mesmo tempo, terna, desprovida de presunção pessoal.

Foi uma revelação. Sei o que constituiu para mim. Mas eu para ele...

Fez uma pausa e enrugou a fronte, sem desviar os olhos do lume. O


s dedos voltaram a fazer rodar a aliança na mão esquerda.

— O A mbrose era como alguém que acorda subitamente de um


sono profundo e repara pela primeira vez em todas as coisas belas
do mundo. E nas tristes, também. N a fome e na sede. Tudo aquilo
em que nunca pensara nem imaginara que existisse encontrava-se
na sua frente e concentrava-se e ampliava-se numa mulher, que
quis o acaso, ou o destino, chame-lhe o que quiser, que fosse eu.
Rainaldi (que ele detestava, diga-se a talhe de foice) afirmou que
despertara para mim como algumas pessoas para a religião.
Tornou-se obcecado, do mesmo modo. Mas quem mergulha na
religião pode entrar para um mosteiro e orar todo o dia perante o
altar da Virgem Maria, imagem de barro ou pedra imutável. A s
mulheres não são assim, Philip. O s seus estados de espírito variam
com os dias e as noites, às vezes até com as horas, como os dos
homens. S omos humanos, o que constitui a nossa imperfeição.

N ão entendi a passagem sobre a religião. A penas me ocorria o


velho I saías, da I greja de S t. Blazey, que se tornara metodista e
passeava pelos campos, descalço, a predicar. I nvocava J eová e
proclamava que ele e todos nós éramos míseros pecadores aos
olhos do S enhor e devíamos acudir às portas de uma nova J
erusalém. N a realidade, não
vislumbrava como esse estado de coisas se aplicava a A mbrose. N
o entanto, os católicos eram diferentes, sem dúvida. Raquel devia
querer dizer que ele a encarara como uma imagem gravada nos
Dez Mandamentos. Não te curvarás perante eles, nem os adorarás.

— Q uer dizer que ele esperava excessivamente de si? —


perguntei. — Colocou-a numa espécie de pedestal?

— N ão. Eu teria acolhido com satisfação um pedestal, depois da


minha vida rude.

Uma auréola pode ser uma coisa muito agradável, desde que
consigamos tirá-la, de vez em quando, para nos tornarmos
humanos.

— Então, que se passou?

S uspirou e as mãos deslizaram para os lados do corpo. Parecia


repentinamente extenuada. Reclinou-se na cadeira e, pousando a
cabeça no espaldar, fechou os olhos.

— O fato de encontrar a religião nem sempre melhora uma pessoa.


A ssim, despertar para o mundo não serviu de nada ao Ambrose. A
sua natureza modificou-se.

A voz também parecia cansada e estranhamente átona. Era


possível que, se eu falara no confessionário, ela igualmente o fizera.
Continuou reclinada no espaldar e levou a mão à fronte, para pousar
os dedos nas pálpebras.

— Modificou-se? — estranhei. — Como se lhe alterou a natureza?

— O s médicos explicaram-me mais tarde que se deveu à doença,


não o pôde evitar, e qualidades adormecidas até então tinham
acabado por aflorar, através da dor e do medo. Mas nunca terei a
certeza do que na verdade aconteceu. N unca me certificarei do que
necessitava de ter sucedido. A lgo em mim estimulou essas
qualidades. A minha aparição na sua vida representou o êxtase por
um breve momento e depois a catástrofe.

Você teve razão ao odiar-me. S e o A mbrose não visitasse a I tália,


talvez continuasse a viver aqui consigo, neste momento. Não
morreria naquela altura.

Sentia-me cada vez mais envergonhado, embaraçado, sem saber


que dizer.

— Podia ter adoecido igualmente - aventurei, como se pretendesse


acudir em seu auxílio. — O peso da culpa repousaria agora nos
meus ombros e não nos seus.

Retirou a mão da fronte e, sem mover a cabeça, olhou-me e


declarou:

— Ele amava-o muito. Você podia ter sido o seu filho, tal o orgulho
que lhe consagrava. Era sempre o meu Philip faria assim, o meu
rapaz faria assado. S e teve ciúmes de mim nestes últimos dezoito
meses, estamos quites. D eus sabe como eu dispensaria de bom
agrado as alusões constantes a seu respeito.

Observei-a por um momento e sorri.

— Também conjurou imagens?

— Q uase sem interrupção. "A quele menino mimado, sempre a


escrever-lhe cartas de que o Ambrose me lê passagens, mas nunca
mostra", pensava com frequência. "Só tem virtudes e nenhum
defeito. O menino que o compreende, quando eu não consigo. Q ue
possui três quartos do seu coração e todas as atenções, enquanto
para mim ficam um

quarto e a parte pior do seu caráter", O h, Philip... — I nterrompeu-


se e conseguiu tentar um sorriso. — Você fala de inveja, ciúme. A
inveja de um homem é como a da criança, caprichosa e insensata,
sem profundidade. A de uma mulher é adulta, portanto muito
diferente. — A jeitou a posição da almofada sob a cabeça e
empertigou-se. — A cho que já falei demasiado, por uma noite. — I
nclinou-se para a frente e recolheu o trabalho de renda que
deslizara para o chão.

— N ão estou cansado — repliquei. — Podia continuar aqui horas e


horas. N ão a falar, entenda-se, mas a escutá-la.

— Ainda resta o dia de amanhã.

— Por que só amanhã?

— Porque parto na segunda-feira. Vim para passar apenas o fim de


semana. O seu padrinho convidou-me para uma estada em Pelyn.

Parecia-me absurdo, e a todos os títulos injustificado, que se


transferisse de pouso tão cedo.

— N ão necessita de se mudar para lá, quando acaba apenas de


chegar — objetei.

— D ispõe de muito tempo para visitar Pelyn. A inda nem viu


metade da propriedade.

N em quero imaginar o que o pessoal doméstico ou os caseiros


pensariam. Ficavam, pelo menos, melindrados.

— Acha?

— D e resto, convém não esquecer o portador das plantas e


rebentos proveniente de Plymouth. Tem de discutir o assunto com o
Tamlyn. E há as coisas do A mbrose para examinar e separar.

— Julgava que era capaz de se encarregar disso sozinho.

— Para que, se o podemos fazer ambos?

Levantei-me e estendi os braços acima da cabeça. Em seguida,


toquei em D on com a biqueira da bota.
— A corda. S ão horas de parares de roncar e ires para o canil com
os outros. —

Espreguiçou-se igualmente e emitiu uma espécie de grunhido. —


Madraço. — Volvi os olhos para Raquel e vi que me observava com
uma expressão estranha, quase como se, através de mim, olhasse
outra pessoa. — Que se passa? — perguntei.

— N ada. A bsolutamente nada. Pode procurar uma vela e alumiar-


me até ao quarto?

— Está bem. Levarei depois o Don ao canil.

O s castiçais encontravam-se à nossa espera em cima da mesa


junto da porta.

Raquel pegou num e eu acendi a vela.

O átrio achava-se às escuras, mas em cima, no patamar, S


eecombe deixara luz para o respectivo corredor.

— I sto basta — declarou ela. — Posso seguir para o quarto


sozinha. — D eteve-se

por um momento no primeiro degrau da escada, o rosto na sombra.


Uma das mãos segurava o castiçal e a outra o vestido. — Já não
me odeia?

— Não. Não era a você, como lhe expliquei, mas outra mulher.

— Tem a certeza de que era outra?

— Absoluta.

— Então, boa noite. E durma bem.

Fez menção de subir, mas pousei-lhe a mão no braço e retive-a.


— Um momento — solicitei. — É a minha vez de fazer uma
pergunta.

— De que se trata?

— A inda tem ciúmes de mim, ou também se tratava de outro


homem e nunca de mim?

S oltou uma risada e estendeu-me a mão, e, como se encontrava a


um nível mais elevado do que eu no degrau, dir-se-ia existir como
que uma graciosidade nova nela de que até então não me
apercebera. Os olhos pareciam maiores ao clarão incerto da vela.

— A quele menino horrível, mimado e presunçoso? — redarguiu. —


D issipou-se ontem, no instante em que você entrou no boudoir da
tia Phoebe. — D e súbito, inclinou-se e beijou-me na face. — O
primeiro que lhe dou e, se não lhe agradou, finja que não fui eu, mas
a outra mulher.

Recomeçou a subir a escada, enquanto o clarão da vela produzia


uma sombra, obscura e distante, na parede.

Capítulo Décimo Primeiro

O bservávamos uma rotina rigorosa aos domingos. O café da


manhã era servido mais tarde, às nove, e, às dez e um quarto, a
carruagem levava-me, com A mbrose, à igreja, enquanto o pessoal
doméstico nos seguia no breque. Terminada a missa, verificava-se o
regresso para almoçar, igualmente mais tarde, à uma. I sto no caso
dos empregados, porque a nossa refeição ocorria às quatro, com a
presença do vigário e Mrs.

Pascoe, possivelmente uma ou duas das suas filhas solteiras e, em


geral, o meu padrinho e Louise. D esde que A mbrose se ausentara,
eu não tornara a utilizar a carruagem e preferira o Cigano, o que,
segundo suspeitava, suscitava alguns comentários críticos, embora
não compreendesse porquê.
N aquele domingo, em honra da minha visitante, transmiti instruções
para que a carruagem fosse preparada como anteriormente, e
Raquel, preparada para o evento por S eecombe, quando lhe levou
o café da manhã aos aposentos, desceu ao átrio às dez em ponto. A
ssolava-me uma espécie de descontração desde a noite anterior e
afigurava-se-me, ao contemplá-la, que, de futuro, conseguiria dizer-
lhe o que quisesse.

Nada me conteria — ansiedade, ressentimento ou mesmo a mera


cortesia.

— Uma palavra de advertência — segredei-lhe, depois de nos


cumprimentarmos.

— N a igreja, todos os olhos estarão postos em si. O s próprios


retardatários, que por vezes aproveitam o pretexto para ficar na
cama, serão hoje pontuais. Permanecerão de pé nas naves laterais,
à espreita da ocasião especial da sua aparição.

— Aterroriza-me. O melhor é eu não ir.

— I sso representaria uma catástrofe, pela qual nenhum dos dois


seria jamais perdoado.

Olhou-me com ar solene por uns instantes.

— N ão sei bem como devo comportar-me — admitiu. — Fui


educada segundo a religião católica.

— Guarde essa revelação para si. O s papistas, neste setor do


mundo, só servem para arder no inferno. Pelo menos, é o que me
constou. Preste muita atenção a todos os seus movimentos.
Observe os meus e imite-os.

N aquele momento, a carruagem apresentou-se à entrada.


Wellington, devidamente uniformizado, com o moço de estrebaria ao
lado, estava inchado de importância como uma pomba-papo-de-
vento. S eecombe, por seu turno, de fato domingueiro, postava-se
diante da porta com não inferior dignidade. Tratava-se da ocasião
de uma vida inteira.

A judei a minha prima Raquel a subir para a carruagem e instalei-me


a seu lado.

Ela tinha um manto preto sobre os ombros, e o véu do chapéu


encobria-lhe o rosto.

— As pessoas desejarão ver-lhe a cara — observei.

— Então, vão ter de se contentar com o desejo.

— N ão está a compreender — insisti. — N unca tinha acontecido


nada disto nas suas vidas. Pelo menos, há bem uns trinta anos. O s
mais velhos recordam-se de minha tia, suponho, e de minha mãe,
mas para os mais novos nunca houve uma Mrs. A shley que
frequentasse a igreja. A liás, você deve elucidar-lhes a ignorância. S
abem que vem aquilo a que chamam terras remotas. Podem até
imaginar que os italianos são negros.

— Fale mais baixo — murmurou. — N oto pela rigidez das costas do


Wellington que está a ouvir.

— N ão tenho nada que falar mais baixo, porque o assunto se


reveste de importância, e gravidade. S ei como os rumores se
espalham. Toda a gente se retirará para o seu almoço de domingo a
abanar a cabeça e dizer que Mrs. Ashley é de raça negra.

— Levantarei o véu na igreja, mas não antes, quando me ajoelhar


— transigiu. —

Q ue olhem então, se quiserem, embora me pareça que não o


deviam fazer e concentrar antes a atenção no livro de orações.

— Uma vedação elevada rodeia os bancos, com cortinas. Uma vez


ajoelhada, ficará oculta dos restantes fiéis. Até se pode jogar o
berlinde, se se quiser. Era o que eu fazia em criança.
— Conheço a sua meninice praticamente de cor. S ei que o A
mbrose dispensou a ama quando você tinha três anos. A idade com
que começou a usar calções de rapaz. A maneira monstruosa como
aprendeu o alfabeto. Por conseguinte, não me admira que jogasse o
berlinde na igreja. Surpreende-me é que não fizesse coisas piores.

— E fiz, uma ocasião. Levei ratos brancos na algibeira, que se


puseram a correr debaixo do banco. Provocaram o terror a uma
senhora atrás de nós. D esmaiou e tiveram de a levar para o ar livre.

— O Ambrose não lhe aplicou o corretivo apropriado?

— Nem pensar. Foi ele que os largou no chão.

Raquel apontou para as costas de Wellington. O s ombros


assumiam uma posição rígida e as orelhas pareciam ao rubro.

— Hoje, vai ter de se portar bem, de contrário abandono a igreja —


ameaçou ela.

— S e o fizer, pensarão que viu um rato, e o meu padrinho e a


Louise acudirão em seu auxílio. Com a breca! — exclamei, ao
mesmo tempo que desferia uma palmada no joelho, consternado.

— Que foi?

— Passou-me por completo. Prometi deslocar-me de cavalo a


Pelyn, ontem, para falar com a Louise, e esqueci-me. É capaz de ter
ficado toda a tarde à minha espera.

— Não foi muito galante de sua parte. Espero que o chame


severamente à pedra.

— Atribuir-lhe-ei a culpa a si, o que corresponde inteiramente à


verdade.

Explicarei que me pediu que a acompanhasse na visita às terras de


Barton.
— N ão o teria pedido se soubesse que devia estar noutro lugar. Por
que não me disse?

— Porque me esqueci totalmente.

— N o lugar dela, eu melindrava-me ainda mais com uma desculpa


desse gênero, imprópria para apresentar a uma mulher.

— A Louise não é uma mulher, mas uma moça mais jovem do que
eu. Conheço-a desde muito miúda.

— Isso não é razão. Possui sentimentos como qualquer outra


pessoa.

— Bem, há de passar. Vai sentar-se a meu lado à mesa e hei de


felicitá-la pela forma como arranjou as flores.

— Quais flores?

— A s de casa. D o seu boudoir e do quarto. D eslocou-se lá


expressamente para isso.

— Que gentil...

— Não confiava na perícia do Seecombe para o efeito.

— Penso que é uma atitude que se justifica. Revelou grande


intuição e gosto. A s minhas preferidas são as do jarrão na prateleira
da chaminé do boudoir e os crocos-de-outono junto da janela.

— Confesso que não reparei nessas. Mas de qualquer modo hei de


felicitá-la, e espero que não me peça que descreva os arranjos.

Entreolhamo-nos e rimos, e vi-lhe os olhos sorrir sob o véu. Porém,


meneou a cabeça.

D escemos a encosta íngreme, percorremos a alameda e


desembocamos na aldeia, em direção à igreja. Como eu previra,
havia uma concorrência pouco vulgar. Eu conhecia a maior parte
das pessoas presentes, mas muitas tinham vindo atraídas apenas
pela curiosidade. Verificou-se uma espécie de pressão entre elas no
momento em que a carruagem parou e nos apeamos. Tirei o chapéu
e ofereci o braço à minha prima Raquel, como vira o meu padrinho
fazer numerosas vezes com Louise.

Percorremos o caminho de acesso ao templo, sob os olhares ávidos


da assistência.

Eu receara sentir-me embaraçado e a representar um papel


impróprio de mim, mas passava-se exatamente o contrário. I nvadia-
me uma confiança e orgulho bem firmes, a par de uma secreta
satisfação. Fixava o olhar na minha frente, sem o desviar para a
direita nem para a esquerda, e, à medida que passávamos, os
homens descobriam-se e as mulheres efetuavam uma ligeira vênia.
N ão me recordava de os ver proceder assim para comigo uma
única vez. Tratava-se, no fundo, de uma ocasião invulgar.

Q uando transpusemos a entrada, os sinos repicavam e os fiéis já


sentados voltaram-se para nos observar. Registrou-se um arrastar
de pés entre os homens e um ruge-ruge por parte das mulheres.
Avançamos pelo corredor central e ocupamos os nossos lugares à
frente dos Kendall. N otei que o meu padrinho franzia o sobrolho,
com uma expressão pensativa no rosto. D ecerto perguntava a si
próprio como me comportara nas últimas quarenta e oito horas. A
boa educação impedia-o de nos olhar diretamente.

Louise sentava-se a seu lado, empertigada e quase rígida. Exibia


um ar altivo, o que me levou a depreender que estava ofendida
comigo. Todavia, quando me desviei para que Raquel me
precedesse, a curiosidade dominou-a. Ergueu os olhos para a
minha prima e em seguida fitou-me, enquanto arqueava as
sobrancelhas, como se formulasse uma pergunta. Fingi que não me
apercebia e ocupei o meu lugar. A congregação ajoelhou em prece.

A presença de uma mulher a meu lado na igreja produzia-me uma


sensação singular. A minha memória retrocedeu até a infância,
quando Ambrose me levou consigo pela primeira vez e tive de me
pôr de pé num banco para olhar em volta. Eu imitava-o, com o livro
de orações nas mãos, mas na maioria das vezes ao contrário, e
quando chegava o momento de murmurar os responsos, ecoava os
dele sem a mínima ideia do seu significado. À medida que crescia,
contemplava a assistência já sem o auxílio do banco e, mais tarde,
em Harrow, sentava-me de braços cruzados sobre o peito, como o
meu primo, e passava pelas brasas se o sermão se alongava. A
gora que atingira a fase adulta, a ida à igreja tornara-se num período
de reflexão.

N ão, lamento admiti-lo, acerca dos meus defeitos ou omissões,


mas dos meus planos para a semana seguinte, o que se devia fazer
nos campos ou nos bosques, o que eu tinha de dizer ao sobrinho de
S eecombe na casa de pesca da baía, que ordem esquecida havia
para transmitir a Tamlyn. Conservava-me sentado, só, fechado em
mim próprio, sem nada ou alguém para me distrair. Entoava os
salmos e proferia os responsos em obediência a um hábito antigo. N
aquele domingo, porém, era diferente. Eu estava consciente dela a
meu lado constantemente. A s minhas preocupações quanto à sua
maneira de se comportar careciam de fundamento. D ir-se-ia que
frequentava o serviço religioso da Igreja da Inglaterra todos os
domingos.

Mantinha-se imóvel, olhos fixos gravemente no vigário, e quando


ajoelhava fazia-o por completo e não se conservava sentada
parcialmente no banco, como A mbrose e eu costumávamos fazer.
Tampouco voltava a cabeça para um lado e para o outro, à
semelhança de Mrs. Pascoe e respectivas filhas, no setor lateral da
igreja, onde o sacerdote não as podia ver.

Chegado o momento de entoar os hinos, Raquel levantou o véu e vi-


lhe os lábios acompanhar as palavras, embora não as ouvisse.
Voltou a baixá-lo, ao sentarmo-nos para escutar o sermão.

Perguntei-me quem teria sido a última mulher a sentar-se no setor


reservado aos A shley. A tia Phoebe, possivelmente, a suspirar pelo
seu cura, ou a esposa do tio Philip, mãe de A mbrose, que eu nunca
vira. Talvez o meu pai tivesse estado ali, antes de partir para
combater contra os Franceses e perder a vida, e a minha mãe,
jovem e delicada, que lhe sobrevivera apenas cinco meses,
segundo Ambrose me revelara.

Na verdade, eu nunca pensara muito neles ou sentira a sua falta,


pois o meu primo exercera as funções de ambos. Contudo, agora,
ao observar a minha prima Raquel, detive-me a evocar minha mãe.
Teria ajoelhado ali, ao lado de meu pai, as mãos unidas no regaço,
para escutar o sermão? E, depois, regressaria a casa para me
erguer do berço.

Enquanto a voz de Mr. Pascoe ecoava na sala, eu perguntava-me o


que teria sentido, ou acontecido, quando me achava nos braços
dela. Ter-me-ia acariciado a cabeça e beijado a face, para em
seguida, com um sorriso de ternura, voltar a depositar-me no berço.
Lamentei subitamente a minha memória não remontar até tão longe.
Por que seria que as recordações não podiam retroceder no tempo
para além de um certo limite? Eu era um garoto, que corria no
encalço de A mbrose e lhe pedia que esperasse por mim.

Nada antes disso. Absolutamente nada...

— Em nome do Pai, do Filho e do Espírito Santo.

A s palavras do vigário fizeram-me pôr de pé. N ão escutara uma


única sílaba do seu sermão. E também não traçara planos para a
semana seguinte. Limitara-me a permanecer sentado, entregue a
divagações e a observar a minha prima Raquel.

— Portou-se muito bem — murmurei, pegando no chapéu e


tocando-lhe no braço

—, mas a verdadeira provação vai ser agora.

— E a sua também - replicou no mesmo tom. — Tem de justificar o


não cumprimento da promessa.
A bandonamos a igreja, e cá fora ao sol aguardava-nos uma
pequena multidão de pessoal da propriedade, conhecidos e amigos,
entre os quais a esposa do vigário, Mrs.

Pascoe, com as filhas, assim como o meu padrinho e Louise, que se


aproximaram, um a um, para as apresentações, quase como se
estivéssemos na Corte. Raquel levantou o véu e tomei mentalmente
nota para lhe dirigir um comentário sarcástico sobre o fato, quando
nos encontrássemos sós.

Enquanto percorríamos o caminho em direção às carruagens que


nos aguardavam, ela propôs-me, diante dos outros, para que eu não
pudesse objetar (e verifiquei pela expressão do olhar e inflexão da
voz que o fazia propositadamente):

— N ão prefere ter a companhia de Miss Kendall na sua carruagem,


Philip, e eu seguirei na de Mr. Kendall?

— Se assim o deseja... — assenti.

— Parece-me o mais apropriado — volveu, com um sorriso ao meu


padrinho, o qual, com uma vênia, lhe ofereceu o braço.

Voltaram-se, como que de comum acordo para a carruagem dos


Kendall, pelo que não me restou qualquer alternativa senão subir
para a minha com Louise. S entia-me como um colegial que
acabassem de esbofetear. Wellington fez estalar o chicote no ar e
partimos.

— Q ueria pedir-te desculpa daquilo de ontem, Louise — comecei


—, mas tive toda a tarde ocupada. A Raquel quis que a
acompanhasse numa visita às terras de Barton, pelo que não pude
esquivar-me. N ão houve tempo para te prevenir, de contrário
mandava um dos rapazes levar-te um bilhete.

— N ão tens nada que pedir desculpa. Estive à tua espera mais de


duas horas, mas não tem importância. Como fazia um tempo
estupendo, aproveitei para encher uma cesta de groselhas.
— Foi uma coincidência deplorável. Acredita que lamento
profundamente.

— Calculei que te retivera algo do gênero e congratulo-me por não


ter sido nada de grave. Conhecedora do teu estado de espírito
acerca dessa visita, receei que cometesses algum ato violento,
tivessem um desentendimento mais azedo, e ela viesse bater-nos à
porta. Q ue se passou, afinal? Conseguiste de fato sobreviver até
agora sem uma confrontação? Conta-me tudo.

Puxei a aba do chapéu para os olhos e cruzei os braços sobre o


peito.

— Que queres dizer com "tudo"?

— Tintim por tintim. O que lhe disseste, como reagiu etc. Mostrou-se
embaraçada com as tuas palavras, ou não deixou transparecer o
menor sinal de culpa?

Ela exprimia-se em voz baixa e Wellington não tinha possibilidade


de ouvir, apesar do que me sentia irritado e de modo algum bem-
humorado. Escolhera um lugar e altura bizarros para uma conversa
de semelhante natureza e, de qualquer modo, por que se lhe teria
metido na cabeça tentar catequizar-me?

— A inda não dispusemos de muito tempo para trocar impressões


— aleguei. —

N a primeira noite, estava cansada e foi-se deitar cedo. O ntem,


deu-lhe para visitar a propriedade. Os jardins de manhã e as terras
de Barton à tarde.

— Nesse caso, ainda não tiveram uma discussão a sério?

— D epende do que entendes por "a sério". S ó posso dizer que é


uma pessoa muito diferente do que eu esperava. A liás, tu própria o
terás verificado nos breves momentos que esteve na tua frente.
Conservou-se silenciosa por uns instantes. A bstendo-se de se
reclinar no banco como eu, mantinha-se empertigada, as mãos
enfiadas no regalo.

— Ela é muito bonita — acabou por declarar.

Retirei os pés do banco em frente e voltei a cabeça para a


contemplar com perplexidade.

— Bonita? — ecoei. — Deves estar louca.

— D e modo algum. Pergunta ao meu pai. N ão reparaste que as


pessoas arregalaram os olhos quando ela levantou o véu? S ó um
homem tão cego em relação às mulheres como tu não se
aperceberia.

— Q ue monumental disparate! Talvez tenha uns olhos um pouco


fora do vulgar, mas quanto ao resto não sai da banalidade. A pessoa
mais banal que conheci até hoje, para ser mais preciso. Posso
dizer-lhe o que quiser, abordar qualquer assunto, sem necessidade
de adotar uma maneira especial de me comportar na sua frente, e
não sinto o menor embaraço em fumar de cachimbo na sua
presença.

— Pareceu-me teres dito que ainda não dispuseras de tempo para


uma conversa mais demorada.

— N ão exageres. É claro que não nos mantivemos sentados


durante o jantar e quando percorremos a propriedade. Por outro
lado, acho natural que as pessoas a olhem com curiosidade. Não
esqueças que é Mrs. Ashley.

— Talvez tenhas razão, mas só em parte. D e qualquer modo,


mulher vulgar ou não, parece que te causou uma impressão
profunda. E de meia-idade, claro. Aparenta uns trinta e cinco anos.
Ou acha-a mais jovem?
— N ão faço a menor ideia, nem me interessa. N unca me preocupei
com essas coisas. Pela parte que me toca, até pode ter noventa.

— D eixa-te de patetices. A os noventa anos, as mulheres não têm


olhos assim, nem aquela frescura de pele. A lém disso, traja com
gosto. A quele vestido preto é elegantíssimo, assim como o manto.
O luto não a desfavorece nada.

— Falas como Mrs. Pascoe. Nunca te tinha ouvido dizer


imbecilidades dessas.

— N em eu a ti. Estamos, portanto, quites. Q ue modificação em


vinte e quatro horas! Enfim, ao menos, uma pessoa vai ficar
aliviada. O meu pai, que receava derramamento de sangue, depois
da vossa última conversa.

Congratulei-me com a aparição da longa e íngreme encosta da


colina, pretexto para me apear e percorrê-la a pé, com o moço de
estrebaria, a fim de aliviar o esforço dos cavalos.

Q ue atitude mais extraordinária a assumida por Louise! Em vez de


se mostrar aliviada com o fato de a visita da minha prima Raquel se
desenrolar de modo satisfatório, parecia contrariada, quase irritada,
o que se me afigurava uma maneira singular de revelar amizade.

Atingido o topo da colina, tornei a subir para a carruagem e não


voltamos a trocar uma única palavra até o final do percurso. Era
ridículo, mas se ela não tomava a iniciativa de quebrar o silêncio, eu
ainda menos o faria. N ão pude deixar de ponderar que o trajeto no
sentido contrário se desenrolara em clima muito mais agradável.

A o invés, os ocupantes da segunda carruagem tinham viajado em


ambiente mais cordial, a avaliar pelo seu aspecto. Com efeito,
Raquel e N ick Kendall apearam-se

sorridentes e a conversar como velhos amigos. Consegui detectar


as expressões
"deplorável" e "o país não admitirá uma coisa dessas", o que me
permitiu concluir que o meu padrinho abordava o seu tópico favorito:
o governo e a oposição.

— Fizeram boa viagem? — perguntou a minha prima, dirigindo-me


uma mirada levemente perscrutadora, e eu quase juraria que
deduziu das nossas expressões a natureza do diálogo que
traváramos.

— Perfeita, obrigada — replicou Louise, desviando-se para que


Raquel nos precedesse.

No entanto, esta última segurou-lhe o braço e proferiu:

— S uba ao meu quarto, para tirar o chapéu e despir o casaco. Q


uero agradecer-lhe os belos arranjos de flores.

O meu padrinho e eu mal tivéramos tempo para lavar as mãos e


trocar meia dúzia de palavras, quando nos vimos rodeados por toda
a família Pascoe, e competiu-me a discutível honra de escoltar o
vigário e filhas nos jardins. Ele era uma pessoa inofensiva, mas eu
prescindiria sem relutância da presença das raparigas. Q uanto à
esposa, fora juntar-se às outras mulheres, como um perdigueiro no
encalço da presa. N unca vira o quarto azul sem as coberturas dos
móveis... Por seu turno, as filhas não se cansavam de tecer
encômios à minha prima Raquel e considerá-la bonita, à
semelhança de Louise.

A colhi, pois, com satisfação a oportunidade para dizer que a


achava a todos os títulos banal, o que suscitou exclamações de
protesto.

— D e modo algum— articulou Mr. Pascoe, sacudindo uma


hortênsia com a bengala —, de modo algum. Talvez não me
aventure ao ponto de a julgar excepcionalmente bonita. "Feminina"
parece-me o termo mais adequado.
— Mas decerto não seria de esperar que Mrs. A shley fosse outra
coisa — interpôs uma das filhas.

— N em fazes uma ideia da quantidade de mulheres que carecem


dessa qualidade

— foi a resposta.

Pensei em Mrs. Pascoe, com a sua cabeça equina, e apressei-me a


indicar as jovens palmeiras que A mbrose trouxera do Egito, que
eles decerto já haviam visto uma centena de vezes, desviando
assim, com tato segundo me pareceu, o rumo da conversa.

Q uando voltamos para dentro e penetramos na sala de estar,


deparou-se-nos Mrs.

Pascoe a informar Raquel, em voz particularmente alta, como era


seu hábito, do problema grave provocado à sua ajudante de cozinha
pelo filho do jardineiro.

— O que mais me custa a compreender é onde o fizeram —


confessava no momento em que entramos. — Ela dorme no quarto
da cozinheira e, tanto quanto sabemos, nunca se ausenta de casa.

— Não seria na cave? — sugeriu a minha prima.

À nossa aparição, o diálogo foi prontamente prosseguido em tom


confidencial.

D esde que A mbrose se ausentara, dois anos atrás, eu não


conhecera um domingo que passasse tão rapidamente. E mesmo
quando se achava presente por vezes arrastava-se penosamente.
Como antipatizava com Mrs. Pascoe, as filhas desta lhe eram
meramente indiferentes e suportava Louise por ser filha do seu mais
velho amigo, sempre providenciara para desfrutar da companhia do
vigário e do meu padrinho, altura em que nós os quatro nos
podíamos descontrair. Q uando as mulheres os acompanhavam, as
horas pareciam dias. Agora, tudo era diferente.
Q uando o jantar foi servido, com as iguarias na mesa e as pratas
areadas, como num banquete, instalei-me à cabeceira, lugar que A
mbrose sempre ocupava, com Raquel na extremidade oposta. Esta
distribuição proporcionava-me Mrs. Pascoe como vizinha, mas, por
uma vez, não lhe servi de alvo para as habituais abordagens
irritantes. A maior parte do tempo, o seu rosto alongado voltava-se
para o outro lado da mesa — ria, comia e até se esquecia de dirigir
miradas aceradas ao marido, o vigário, o qual, fora da casca
possivelmente pela primeira vez na vida, corado, de olhar ardente,
houve por bem pôr-se a citar poetas célebres. Toda a família Pascoe
florescia como rosas, e eu nunca vira o meu padrinho tão bem
disposto.

S omente Louise se mostrava pouco comunicativa e meditativa. Eu


esforçava-me por animá-la, sem resultado. S entava-se rigidamente
à minha esquerda, debicava a comida com movimentos automáticos
e mantinha uma expressão fixa, como se tivesse tragado um
berlinde. Enfim, se optara por amuar, que o fizesse sozinha. A
chava-me demasiado bem-humorado para perder tempo com ela.
Entretinha-me a escutar e a observar Raquel, empenhada em
encorajar o vigário com a sua poesia.

"É o jantar de domingo mais fantástico em que participei, e daria


tudo para que Ambrose estivesse presente", admitia para comigo.

Q uando acabamos de comer e foi servido o vinho do Porto, fiquei


sem saber se devia levantar-me, como habitualmente, para abrir a
porta, ou conceder a iniciativa a Raquel, na sua qualidade de
anfitriã. Registrou-se uma pausa nas conversas. D e súbito, ela
olhou-me e sorriu. Retribuí-lhe o sorriso em resposta à interrogação
sem palavras.

Pareceu estabelecer-se um elo de comunicação momentâneo,


curioso, estranho, uma sensação nova para mim.

Por fim, o meu padrinho perguntou, na usual voz rouca:

— Diga-me, Mrs. Ashley, o Philip não lhe recorda o Ambrose?


Seguiu-se breve silêncio, até que ela pousou o guardanapo na mesa
e declarou:

— A tal ponto que me pergunto se existe alguma diferença.

Levantou-se, as outras mulheres imitaram-na e eu cruzei a sala de


jantar para abrir a porta. Mas quando elas saíram e regressei ao
meu lugar, a sensação persistia.

Capítulo Décimo Segundo

Retiraram-se por volta das seis da tarde, porque o vigário ainda


tinha de ir presidir às vésperas noutra paróquia. O uvi Mrs. Pascoe
convidar Raquel para ir passar uma tarde com ela durante a
semana, e cada uma das filhas invocou razões para usufruir de
idênticos direitos. Uma queria inteirar-se da sua opinião sobre
determinada aquarela, outra pretendia iniciar uma colcha e desejava
aconselhar-se acerca da combinação de tons e a terceira, que
costumava visitar uma anciã inválida na aldeia, insistia em que a
acompanhasse, pois a mulher ansiava por conhecê-la.

— N a verdade — disse Mrs. Pascoe, quando cruzávamos o átrio


em direção à porta principal —, há tantas pessoas desejosas de a
conhecer, Mrs. A shley, que pode contar com compromissos nas
próximas quatro semanas.

— A nossa residência em Pelyn está idealmente situada para


efetuar visitas —

acudiu o meu padrinho. — Melhor do que esta. E penso que


teremos o prazer da sua companhia dentro de um ou dois dias.

Volveu os olhos para mim e apressei-me a sufocar a ideia à


nascença, antes que se estabelecesse um compromisso
irreversível.

— D e modo algum. A prima Raquel continuará aqui. A ntes de se


envolver em quaisquer convites do exterior, tem toda a propriedade
para visitar. Começamos amanhã, tomando chá nas terras de
Barton. A s restantes herdades figurarão a seguir no programa.

Haveria suscetibilidades melindradas se ela não fosse saudar cada


um dos rendeiros.

Vi Louise olhar-me com estranheza, mas não lhe prestei atenção.

— S im, tens razão — concordou o meu padrinho, também


surpreendido. — É o mais apropriado. Tencionava propor-me para a
escoltar nessa digressão, mas se desejas fazê-lo retiro a
candidatura. — Virou-se de novo para Raquel. — S e, por qualquer
razão, se sentir desconfortável aqui , o Philip decerto me perdoará
por dizer isto, mas há muitos anos que uma mulher não pisava o
chão desta casa, e o atendimento pode, por conseguinte, deixar um
pouco a desejar, por falta de prática, ou preferir companhia feminina,
estou certo de que a minha filha a receberá com prazer.

— Temos um quarto de hóspedes, no vicariato — anunciou Mrs.


Pascoe. — S e, em qualquer altura, se sentir só, Mrs. Ashley,
lembre-se de que se encontra à sua disposição.

— Com certeza, com certeza — apoiou o vigário.

— S ão todos muito amáveis e inexcedivelmente generosos —


replicou Raquel. —

Voltaremos a falar disso quando tiver cumprido o meu dever aqui.


Para já, considerem-me profundamente grata.

S eguiu-se a habitual e confusa troca de palavras de despedida, e


as carruagens partiram com destinos diferentes.

Voltamos para a sala de estar. A tarde escoara-se num clima


extremamente agradável, porém congratulava-me por se terem
retirado e a casa regressar ao silêncio do costume. S uponho que
Raquel raciocinava em termos muito similares, porque se conservou
de pé no centro do aposento por um momento, olhou em redor e
declarou:

— A doro a tranquilidade de uma sala, após uma reunião. A s


cadeiras estão fora dos lugares, as almofadas desarrumadas, o
ambiente denuncia que os seus ocupantes viveram algumas horas
de boa disposição, e uma pessoa sente-se depois satisfeita por tudo
haver terminado, poder descontrair-se e dizer "Voltamos a estar
finalmente sós". O

A mbrose costumava afirmar que merecia a pena sujeitarmo-nos ao


tédio das visitas para em seguida experimentar a satisfação da sua
partida. Tinha toda a razão.

O bservei-a em silêncio, enquanto alisava a cobertura de uma


poltrona e pousava os dedos numa almofada.

— N ão precisa de fazer isso — lembrei-lhe. — S eecombe e o seu


pessoal ocupar-se-ão de tudo amanhã.

- I nstinto feminino. N ão fique aí especado a olhar para mim. S


ente-se e acenda o cachimbo. Divertiu-se?

— Muito. — Reclinei-me no sofá. — N ão compreendo o porquê,


pois costumo achar os domingos aborrecidos. Talvez por não ser um
conversador. A única coisa que tive de fazer hoje foi permanecer
sentado e deixá-los falar livremente.

— É nisso que uma mulher se pode revelar útil. Faz parte do seu
treino. O instinto adverte-a de como deve proceder, se as conversas
esmorecem.

— S im, mas você atua com discrição — argumentei. — Mrs.


Pascoe é muito diferente. Fala interminavelmente, pelos cotovelos,
até que uma pessoa tem vontade de soltar um grito. Um homem
nunca tinha oportunidade de se exprimir, nos outros domingos. Não
consigo descortinar o que fez para tornar o ambiente tão agradável.
— Acha, então, que foi agradável?

— Sem dúvida. Já o disse.

— N esse caso, não perca tempo e case com a sua Louise, para
dispor de uma verdadeira anfitriã e não de uma ave de arribação.

Endireitei-me no sofá e olhei-a com perplexidade, enquanto ela


ajeitava o cabelo diante do espelho.

— Casar com a Louise? N ão diga tolices. N ão quero contrair


matrimônio com ninguém. Além disso, ela não é minha, como
sugere.

— D esculpe, pensava que fosse. Pelo menos, o seu padrinho


levou-me a ficar com essa impressão.

Sentou-se numa poltrona e pegou no trabalho de renda.

N aquele momento, J ohn entrou para correr os cortinados, pelo que


me mantive silencioso, embora interiormente espumasse de
indignação. Com que direito se permitira o meu padrinho formular
semelhante sugestão? Quando voltamos a ficar sós, perguntei:

— Que disse ele?

— N ão me recordo das palavras exatas. N o entanto, penso que


está convencido de que é uma coisa assente. Q uando
regressávamos da igreja na carruagem, referiu que a filha tinha
vindo para se ocupar dos arranjos de flores, pois você crescera num
ambiente de homens e não entendia desses assuntos. Q uanto mais
depressa casasse e houvesse uma esposa para velar por si melhor.
A crescentou que a Louise o compreendia muito bem e vice-versa.
Espero que lhe pedisses desculpa pela sua falta de maneiras do
sábado.

— S im, pedi, mas o efeito foi aparentemente nulo. N unca a vi tão


mal-humorada.
A propósito, ela considera-a bonita. E as filhas dos Pascoe afinam
pelo mesmo diapasão.

— Sinto-me lisonjeada.

— Mas o vigário não concorda com elas.

— Agora, sinto-me desolada.

— Em todo o caso, acha-a feminina. Decididamente feminina.

— Em que sentido?

— Muito diferente do de Mrs. Pascoe, imagino.

Desprendeu-se-lhe uma risada de entre os lábios e ergueu os olhos


do trabalho.

— Como a definiria, Philip?

— O quê?

— A diferença na nossa feminidade, a dela e a minha.

— S ei lá. É um assunto em que navego na ignorância quase total.


S ó posso dizer que gosto de olhar para si, e para Mrs. Pascoe não.

— É uma resposta simples e agradável. Obrigada, Philip.

Eu poderia afirmar o mesmo acerca das suas mãos. A gradava-me


observá-las. Em contrapartida, as de Mrs. Pascoe pareciam
presuntos mal curados .

— D e qualquer modo, isso a respeito da Louise não passa de mera


fantasia, pelo que é melhor esquecê-lo. N unca a encarei como
minha futura mulher, nem tenciono fazê-

lo.
— Coitada da Louise...

— Considero ridículo do meu padrinho aventar sequer semelhante


possibilidade.

— N ão concordo. Q uando dois jovens de sexos opostos e da


mesma idade convivem regularmente e gostam da companhia um
do outro, é muito natural que um observador pense num eventual
casamento. D e resto, a Louise é uma moça muito atraente e
inteligente. Daria uma excelente esposa.

— I mporta-se de não insistir no tema, prima Raquel? — Fiz uma


pausa, enquanto tornava a olhar-me e sorrir. — E outra coisa em
que não deve insistir é no disparate de

visitar toda a gente, ficar no vicariato, em Pelyn etc. Q ue tem a


censurar a esta casa e à minha companhia?

— Nada, até agora.

— Então...

— Continuarei aqui até que o Seecombe se farte de mim.

— O S eecombe não é para aqui chamado, tal como o Wellington, o


Tamlyn ou qualquer dos outros. Sou o dono da casa, e o assunto só
a mim diz respeito.

— N esse caso, farei o que me ordenar. I sso também está incluído


no treino de uma mulher.

O lhei-a com desconfiança, para ver se sorria, mas concentrara-se


no trabalho e não consegui descortinar-lhe os olhos.

— A manhã, elaborarei a lista dos caseiros, por ordem de


antiguidade. S erão visitados em primeiro lugar aqueles que
trabalham para a família há mais tempo.
Principiaremos pelas terras de Barton, como combinamos no
sábado. Partiremos às duas, todas as tardes, até não haver
ninguém na propriedade que não a conheça.

— Muito bem, Philip.

— Terá de escrever um bilhete a Mrs. Pascoe e às raparigas, para


explicar que lhe surgiram outros compromissos.

— Tratarei disso logo pela manhã.

— Terminadas as visitas ao nosso pessoal externo, deverá


permanecer em casa três tardes por semana (às terças-feiras,
quintas e sextas, salvo erro), para a eventualidade de alguém do
condado a procurar.

— Como sabe que são esses os dias indicados?

— Ouvi-os mencionar com frequência pelos Pascoe e Louise.

— Muito bem. Aguardo sozinha na sala, ou você faz-me


companhia?

— S ozinha. Eles virão visitá-la e não a mim. Receber habitantes do


condado não faz parte dos deveres de um homem.

— Se me convidarem para jantar, devo aceitar?

— N ão a convidarão. Lembre-se de que está de luto. S e houver


necessidade de promover uma recepção, será aqui. Mas nunca
mais de dois casais de cada vez.

— Existe etiqueta neste recanto do mundo?

— A o diabo com a etiqueta. O A mbrose e eu nunca nos sujeitamos


a princípios rígidos impostos do exterior. Regíamo-nos pelos nossos
próprios.
Vi-a curvar mais a cabeça sobre o trabalho, e acudiu-me a suspeita
de que o fazia para encobrir o riso, embora não descortinasse a
causa da hilaridade, pois não pretendia ser engraçado.

— S eria impertinência excessiva de minha parte pedir-lhe que me


fornecesse uma lista das regras em vigor? — aventurou,
transcorrido um momento. — Uma espécie de

código de conduta. Poderia estudá-lo enquanto aguardava a


primeira visita. Custar-me-ia efetuar um faux pas social, segundo a
sua óptica, e incorrer em desagrado.

— Pode dizer o que lhe apetecer a quem quiser — expliquei. — A


única coisa que lhe peço é que o faça aqui, na sala de estar. N unca
permita que entrem estranhos na biblioteca, seja com que pretexto
for.

— Por quê? Que acontecerá na biblioteca?

— Eu estarei lá. Com os pés pousados na cornija da lareira.

— Às terças, quintas e sextas também?

— Às quintas não. Nesse dia, vou ao banco da aldeia.

A proximou o trabalho do clarão das velas para examinar a


combinação de cores, após o que o dobrou e pousou a seu lado.

Lancei uma olhadela ao relógio. A inda era cedo. Tencionaria ela


recolher já ao quarto? Invadiu-me uma sensação de
desapontamento.

— Depois de o condado completar as suas visitas, que acontecerá?

— É obrigada a retribuir as visitas, sem uma única exceção. Tomarei


as providências necessárias para que a carruagem esteja à sua
disposição todas as tardes, às duas horas. Perdão, todas não. Só às
terças, quintas e sextas-feiras.
— E vou sozinha?

— Vai sozinha.

— Que tenho de fazer às segundas e quartas?

— Às segundas e quartas? D eixe-me ver... — Refleti rapidamente,


mas a minha imaginação não revelava espírito de colaboração. — S
abe desenhar ou cantar? Como as meninas Pascoe. Podia entreter-
se a cantar às segundas e desenhar ou pintar às quartas.

— N ão desenho nem canto, e receio que esteja a preparar-me um


programa de lazer para o qual não me sinto minimamente
preparada. S e, em vez de ficar à espera de que o condado me
procurasse, eu o visitasse com o objetivo de dar lições de italiano,
agradar-me-ia muito mais.

Levantou-se e apagou as velas do seu lado, enquanto eu me erguia


igualmente do sofá.

— Mrs. A shley a dar lições de italiano? — articulei, fingindo-me


horrorizado. —

Q ue desgraça para o nosso venerado nome! S ó as solteironas dão


lições, quando não têm ninguém que as sustente.

— E que fazem as viúvas que se encontram em circunstâncias


similares?

— A s viúvas? — proferi, sem refletir. — Bem, voltam a casar o mais


depressa possível, ou então vendem as joias.

— Pois não tenciono fazer nem uma coisa nem outra. Prefiro dar
lições de italiano.

Com uma leve palmada no meu braço, encaminhou-se para a porta,


enquanto me desejava as boas-noites por cima do ombro.
S enti um calor desconfortável nas faces. Q ue demônio fora eu
dizer? Falara sem pensar na sua condição, esquecendo-me de
quem ela era e do que acontecera. Envolvera-me no divertimento da
conversa com a minha prima como fazia com A mbrose no passado,
em consequência do que dera livre curso à língua. Voltar a casar.
Vender as joias. Que ficaria a pensar de mim?

Como lhe devia ter parecido pateta, insensível e desprovido de um


mínimo de maneiras! O calor propagou-se ao pescoço e, no sentido
contrário, às raízes dos cabelos.

I nferno e maldição! N ão adiantaria pedir desculpa. S ó serviria para


incrementar a importância do caso. Era preferível não insistir e
acalentar a esperança de que tombasse no esquecimento.
Congratulava-me por não haver testemunhas, como, por exemplo, o
meu padrinho, para me chamar à parte e verberar a falta, ausência
mesmo, de tato. O u, pior, a cena podia ter-se passado à mesa, sob
as vistas de S eecombe. Voltar a casar.

Vender as joias. Que influência maligna me teria dominado o


espírito?

D epois daquilo, dificilmente conseguiria dormir. Passaria a noite às


voltas na cama, ao mesmo tempo que, repetitivamente, escutaria a
réplica dela, pronta como o relâmpago: “Pois não tenciono fazer
nem uma coisa nem outra. Prefiro dar lições de italiano”.

Chamei o velho D on e saí por uma porta lateral, a fim de percorrer


as imediações.

À medida que caminhava, a minha ofensa afigurava-se-me cada vez


mais grave, em vez de se reduzir em volume. O rdinário, irrefletido,
cabeça vazia... Por outro lado, qual o verdadeiro significado das
palavras dela?

S eria possível que dispusesse de pouco dinheiro e houvesse forte


percentagem de verdade no que dissera? Mrs. A shley a dar lições
de italiano? Evoquei a sua carta ao meu padrinho, enviada de
Plymouth, segundo a qual tencionava seguir para Londres depois de
um breve período de repouso. Recordei-me igualmente do que
Rainaldi dissera sobre a sua necessidade de vender a villa de
Florença. A o mesmo tempo, tinha presente no espírito que
Ambrose não lhe deixara nada em testamento.

Tudo, até ao último pêni, na sua propriedade me pertencia.

Lembrei-me também dos rumores entre o pessoal doméstico.

N enhuma cláusula respeitante à viúva. Q ue pensariam, na sala


comum, nas habitações dos rendeiros, em todo o condado, se Mrs.
A shley decidisse dar lições de italiano?

D ois ou três dias atrás, não me teria preocupado com a situação. A


outra mulher produto da minha excitada imaginação poderia morrer
merecidamente de fome. Mas agora não. Tudo se alterara. E
radicalmente. I mpunha-se que algo fosse feito para o remediar, e
eu não tinha a menor ideia do quê. D e modo algum podia discutir o
assunto com ela. A simples ideia obrigou-me a corar de novo, de
vergonha e embaraço. D e repente, com uma sensação de alívio,
recordei-me de que o dinheiro e a propriedade

ainda não eram legalmente meus, o que só aconteceria à data do


próximo aniversário, dentro de seis meses. Por conseguinte, o caso
achava-se fora das minhas mãos. A responsabilidade incidia no meu
padrinho. Era administrador da herança e meu tutor.

Competia-lhe, pois, abordar a minha prima Raquel e elaborar


qualquer espécie de provisão para ela. D ecidi procurá-lo nesse
sentido na primeira oportunidade. D e resto, o meu nome não
necessitava de figurar no que se combinasse. Podia conferir-se-lhe
o aspecto de um trâmite legal que, de qualquer modo, viria a
consumar-se, em obediência a um costume do país. Estava
encontrada a solução. Graças a D eus que me acudira. Lições de
italiano... Que vergonhoso e inconcebível!
Voltei para dentro menos acabrunhado, embora ainda não tivesse
esquecido a gafe originária. Tornar a casar, vender as joias...
Preparava-me para transpor a porta, quando ouvi uma voz abafada
na escuridão:

— Costuma percorrer o bosque à noite?

Era Raquel, sentada, às escuras, junto da janela aberta da sala


azul. O meu erro acudiu-me à mente em toda a sua extensão, e
agradeci aos Céus o fato de ela não me poder ver o rosto.

— Às vezes, quando tenho alguma preocupação.

— Isso significa que alguma coisa o preocupa neste momento?

— Exato. Cheguei a uma conclusão grave, entre o arvoredo.

— Pode saber-se em que consiste?

— Concluí que você tinha toda a razão em antipatizar comigo, antes


de me ver, e considerar-me presunçoso e mimado. Sou tudo isso, e
pior.

Ela inclinou-se para a frente e pousou os braços no peitoril.

— N esse caso, os passeios no bosque fazem-lhe mal e as suas


conclusões pecam por estupidez.

— Prima Raquel.

— Sim?

Mas eu não sabia como apresentar o pedido de desculpa.

A s palavras que tão facilmente me haviam acudido na sala de estar


para dizer disparates achavam-se arredias agora que desejava
retificar o lapso. Conservei-me diante da janela imóvel, calado e
envergonhado. D e repente, vi-a voltar-se, estender os braços para
dentro, tornar a debruçar-se e atirar-me algo, que me atingiu no
rosto e caiu no chão. Agachei-me para o recolher. Era uma flor da
sua jarra, um croco-de-outono.

— Não seja tonto, Philip. Vá-se deitar.

Fechou a janela e correu os cortinados. Curiosamente, a


perturbação abandonou-me, assim como o peso na consciência
resultante do lapso cometido, e experimentei uma espécie de
euforia.

N ão tive possibilidade de me deslocar a Pelyn na primeira parte da


semana,

devido ao programa que elaborara para visitar os caseiros. D e


resto, não poderia invocar o pretexto de procurar o meu padrinho
sem levar Raquel para conversar com Louise. N o entanto, a
oportunidade surgiu na quinta-feira. Chegou o portador de Plymouth,
com as plantas que a minha prima trouxera de I tália e, mal S
eecombe a informou do fato (na altura eu acabava de tomar o café
da manhã), tratou de se vestir e descer apressadamente, o xale em
torno da cabeça e preso sob o queixo, disposta a dirigir-se ao
jardim.

Como a porta da sala de jantar estava aberta, eu vi-a passar e fui


cumprimentá-la.

— S e bem entendi, o A mbrose disse-lhe que nenhuma mulher


merecia que lhe olhassem para a cara antes das onze da manhã —
observei. — Por conseguinte, que faz cá em baixo às oito e meia?

— O portador acaba de chegar e, às oito e meia da última manhã de


setembro, não sou uma mulher, mas uma jardineira. O Tamlyn e eu
temos muito que fazer.

Tinha um aspecto alegre e feliz como uma criança na iminência de


receber um brinquedo novo.

— Vão contar as plantas? — insisti.


— Contá-las? N ão. Q uero ver quantas sobreviveram à viagem e
quais convêm dispor na terra imediatamente. O Tamlyn ignora-o,
mas eu sei. N ão há pressa, no caso das árvores, embora convenha
dar uma olhadela a tudo, para descargo de consciência.

N otei que calçara luvas coçadas, em absoluta discordância com o


resto da indumentária, impecável.

— Não me diga que vai esgaravatar na terra! — observei , perplexo.

— Com certeza que vou. Venha ver. Trabalharei mais depressa que
o Tamlyn e os seus homens. Não me espere para almoçar.

— E à tarde? — protestei. — Esperam-nos em Lankelly e Coombe.

— Mande preveni-los de que a visita fica adiada. N ão me


comprometo com nada ou ninguém quando há plantações a efetuar.
Até logo.

Acenou-me em despedida e saiu.

— Prima Raquel! — chamei da janela da sala de jantar.

— Que mais temos? — perguntou por cima do ombro.

— O A mbrose enganou-se no que disse acerca das mulheres. Às


oito e meia da manhã, têm um aspecto muito satisfatório.

— Ele não se referia às oito e meia, mas às seis e meia, e no quarto


e não cá fora.

Voltei-me para dentro, com uma gargalhada, e vi S eecombe junto


de mim, de lábios comprimidos. Com uma expressão de
desaprovação, aproximou-se do aparador e fez sinal ao jovem John
para que levantasse a mesa do café da manhã.

Havia, ao menos, uma coisa boa naquele dia dedicado às


plantações. A minha presença não seria necessária. A ssim, alterei
o meu programa para a manhã, dei
instruções para que selassem o Cigano e, às dez horas, encontrava-
me na estrada a caminho de Pelyn. Fui encontrar o meu padrinho no
escritório da residência e, sem qualquer preâmbulo, expus o motivo
da visita.

— Compreende, pois, que se tem de fazer alguma coisa, e sem


demora — concluí.

— S e chegasse ao conhecimento de Mrs. Pascoe que Mrs. A shley


tenciona dar lições de italiano, o fato espalhava-se por toda a região
em menos de vinte e quatro horas.

Como eu previra, Nick Kendall mostrou-se altamente chocado e


penalizado.

— N em pensar numa coisa dessas. O assunto reveste-se,


evidentemente, de certa delicadeza. Preciso de refletir para tentar
descobrir a solução mais conveniente.

Comecei a impacientar-me. Estava familiarizado com a forma


prudente como abordava as questões legais e sabia que cismaria no
caso durante dias.

— N ão há tempo a perder — volvi. — O padrinho não conhece a


prima Raquel tão bem como eu. É muito capaz de perguntar a um
dos caseiros: “Conhece alguém que gostasse de aprender italiano”?
I magine uma coisa dessas e diga-me em que situação ficaríamos.
A liás, já me chegaram rumores aos ouvidos, através do S
eecombe. Toda a gente sabe que não lhe foi deixado nada em
testamento. Por conseguinte, a situação tem de ser retificada sem
demora.

Exibiu uma expressão meditativa, ao mesmo tempo que mordia a


caneta.

— A quele conselheiro italiano não disse uma palavra sobre as


circunstâncias dela.
É pena eu não poder trocar impressões com ele sobre o assunto. N
ão temos meios para determinar a extensão do rendimento pessoal
dela ou o que ficou acordado nesse sentido em resultado do seu
casamento anterior.

— J ulgo que se destinou tudo ao pagamento das dívidas de S


angalle i. Recordo-me de o A mbrose mencionar o fato nas suas
cartas. Foi uma das razões pelas quais eles não vieram para a I
nglaterra o ano passado: a resolução dos problemas financeiros
dela.

Pode muito bem dar-se o caso de não ter um pêni de seu. I mpõe-se
que se faça alguma coisa, e hoje mesmo.

O meu padrinho pôs-se subitamente a arrumar a papelada em cima


da secretária.

— Congratulo-me por teres mudado de atitude — declarou, olhando-


me por cima dos óculos. — Confesso que estava muito
desconfortável antes da chegada da tua prima.

Parecias disposto a tratá-la com rudeza e não fazer nada por ela, o
que teria causado escândalo. Ao menos, agora parece que ouviste a
voz da razão.

— Estava equivocado — admiti, secamente. — Podemos esquecer


tudo isso.

— N esse caso, enviarei uma carta a Mrs. A shley e outra ao banco,


em que explicarei as nossas intenções. O plano mais conveniente
afigura-se-me ser o depósito trimestral, numa conta que abrirei em
nome dela. Q uando se mudar para Londres, ou qualquer outro
lugar, a respectiva delegação receberá instruções para o efeito. D
entro de seis meses, quando completares vinte e cinco anos de
idade, poderás ocupar-te

pessoalmente do assunto. Passemos agora à quantia envolvida.


Quanto sugeres?
Refleti por um momento e indiquei um número.

— É muito generoso da tua parte, Philip. D uvido que ela necessite


de tanto. Para já, em todo o caso.

— N ão sejamos mesquinhos, com a breca! O u procedemos como


o A mbrose faria ou então mais vale estarmos quietos.

— Hum... — grunhiu, inscrevendo algo no bloco de apontamentos.


— Espero que fique contente — acrescentou. — Compensá-la-á de
algum desapontamento que o testamento lhe provocasse.

N ão havia dúvida de que a mente legal era dura e insensível. O


meu padrinho dedicava-se a cálculos complexos para se inteirar de
quanto se podia gastar sem provocar um rombo importante na
herança. Naquele momento, odiei o dinheiro solenemente.

— D espache-se e escreva a carta, para a levar comigo — indiquei.


— D e caminho, posso passar pelo banco e entregar a que lhe diz
respeito. A ssim, a minha prima Raquel poderá efetuar
levantamentos imediatamente.

— N ão acredito que ela esteja em situação financeira tão aflitiva


como se pode depreender das tuas palavras. Passas de um
extremo ao outro. — S uspirou e pegou numa folha de papel em
branco. — N ão se enganou quando disse que eras parecidíssimo
com o Ambrose.

A proximei-me para ter a certeza de que escrevia o que me


interessava. N ão mencionava o meu nome. Referia-se somente à
herança. O s “administradores" dos bens deixados por A mbrose
tinham decidido estabelecer um legado para ela, dividido por
quantias pagas trimestralmente.

— S e não te queres envolver pessoalmente no assunto, é melhor


não levares tu a carta — advertiu. — O Dobson tem de ir para os
teus lados, esta tarde, e pode encarregar-se disso. O assunto
assumirá assim um aspecto mais verosímil.
— Ótimo — aprovei. — E eu visitarei o banco. Obrigado, padrinho.

— Não te esqueças de falar à Louise, antes de saíres. Creio que


está algures por aí.

Eu teria prescindido perfeitamente de cumprimentá-la, em virtude da


impaciência que me dominava, mas não me podia esquivar. Fui
encontrá-la na saleta contígua ao escritório.

— Pareceu-me ter ouvido a tua voz — declarou. — Vieste para


passar o dia conosco? Prova este bolo ou come uma peça de fruta.
Deves estar com fome.

— O brigado, mas tenho de me retirar imediatamente. Vim apenas


para trocar impressões com o teu pai sobre um assunto legal.

— A h, compreendo... — murmurou, enquanto a expressão jovial se


toldava e reassumia o aspecto do domingo anterior.

— Como está Mrs. Ashley?

— A minha prima Raquel está bem e muito ocupada. A s plantas


que trouxe da Itália chegaram esta manhã e ela insistiu em dispô-las
no jardim com o Tamlyn.

— Admira-me que não ficasses em casa a ajudá-la.

Tornava-se-me difícil interpretar a atitude da moça, mas a nova


inflexão da voz resultava particularmente irritante. Recordei-me do
seu comportamento nos velhos tempos, quando fazíamos corridas
no jardim e, de um momento para o outro, sem motivo aparente,
estacava, sacudia a cabeça emoldurada pelos caracóis, dizia “N ão
quero brincar mais” e olhava-me com a mesma expressão
obstinada.

— S abes perfeitamente que não entendo nada de jardinagem —


repliquei. E

acrescentei maliciosamente: — O mau humor ainda não te passou?


— Mau humor? — repetiu, empertigando-se e corando. — N ão
percebo ao que te referes.

— Percebes, sim. Estiveste de trombas todo o domingo. Via-se à


distância. N em sei como as filhas dos Pascoe não comentaram o
fato.

— A s filhas dos Pascoe, como todos os outros, deviam ter a


atenção concentrada noutra coisa.

— Em quê, pode-se saber?

— Como deve ser fácil para uma mulher com experiência do mundo,
como Mrs.

Ashley, manobrar um jovem como tu a seu bel-prazer!

D ei meia volta e retirei-me apressadamente, receoso de que não


conseguisse dominar a vontade de a esbofetear.

Capítulo Décimo Terceiro

Q uando me encontrei de novo em casa, depois de percorrer a


estrada desde Pelyn e cruzar a aldeia, devia ter coberto uns trinta
quilômetros. D etivera-me para tomar um copo de cidra no bar da
estalagem, mas não comera nada, pelo que me achava
positivamente faminto às quatro da tarde.

N a realidade, o relógio do nosso campanário acabava de as


badalar quando me dirigia para o estábulo, onde quis o infortúnio
que Wellington, e não o moço de estrebaria, se encontrasse naquele
momento.

— I sto assim não pode ser, Mr. Philip — articulou, meneando a


cabeça ao ver o Cigano coberto de espuma de transpiração,
enquanto eu desmontava com uma sensação de culpa.

— S abe perfeitamente que o animal pode resfriar-se se aquecer


demasiado, e trá-lo transformado numa caldeira. N ão está em
condições de perseguir raposas, se porventura se dedicou a
semelhante atividade.

— S e tivesse estado a perseguir raposas, não usava esta


indumentária nem tentaria apanhá-las com as mãos — retorqui,
agastado. — N ão digas disparates, homem.

Fui a casa de Mr. Kendall e no regresso dei uma volta maior do que
pretendia. D e qualquer modo, não creio que aconteça nada de mal
ao Cigano.

— Oxalá que não — grunhiu, começando a passar as mãos pelos


flancos do cavalo.

Entrei em casa e refugiei-me na biblioteca. O lume estava aceso,


mas não havia vestígios da minha prima Raquel, pelo que chamei
Seecombe.

— Onde está Mrs. Ashley?

— A senhora entrou pouco depois das três, após ter estado a


trabalhar lá fora com os jardineiros desde que o senhor saiu. O
Tamlyn encontra-se agora comigo na sala comum do pessoal. D iz
que nunca tinha visto nada assim. A senhora é uma autêntica
autoridade na matéria. Uma maravilha, segundo ele.

— Deve estar exausta.

— Também tive esse receio e sugeri que fosse descansar, mas nem
quis ouvir falar nisso. “D iga aos rapazes que tragam água quente.
Q uero tomar um bom banho", foram as suas palavras. “D e
caminho, lavarei a cabeça." Propus que a minha sobrinha a
ajudasse, mas recusou com firmeza.

— D epois, que me preparem também um banho. Tive um dia


esgotante. E morro de fome. Quero jantar cedo.

— Muito bem, Mr. Philip. As cinco menos um quarto?


— Sim, se achas que é possível.

S ubi ao quarto a assobiar, para me instalar na banheira fumegante


diante da lareira. O s cães seguiram-me, provenientes dos
aposentos de Raquel. Haviam-se acostumado totalmente à sua
presença e acompanhavam-na a toda a parte. O velho D on
aguardava-me no topo da escada e agitava a cauda de
contentamento.

— O lá, amigo. És-me infiel, sabias? Trocaste a minha companhia


pela de uma senhora.

Lambeu-me a mão com a língua áspera e olhou-me com o habitual


ar submisso.

N ão tardaram a vir encher a banheira, e foi agradável permanecer


sentado na água quente e lavar-me lentamente, ao mesmo tempo
que assobiava com notável desafinação.

Q uando me secava com a toalha, vi que havia uma jarra com flores
em cima da mesa de cabeceira. Era a primeira vez que alguém se
lembrava de me distinguir com aquela gentileza. Seecombe não
tomaria semelhante iniciativa, e o restante pessoal ainda menos.

Só podia ter sido a minha prima Raquel.

A presença das flores contribuiu para me acentuar a boa disposição.


Por muito tempo que ela tivesse consagrado à jardinagem, ainda lhe
sobrara o suficiente para se lembrar de mim. Vesti-me para jantar,
enquanto continuava a assobiar. Por fim, atravessei o corredor e bati
à porta do boudoir.

— Quem é? — perguntou Raquel.

— Eu, o Philip. Vim avisá-la de que hoje jantamos mais cedo. Estou
faminto e você também, suponho, a avaliar pelos rumores que
circulam. Q ue demônio esteve a fazer com o Tamlyn para precisar
de tomar banho e lavar a cabeça?
A resposta foi precedida de uma risada divertida.

— Abrimos subterrâneos, como as toupeiras.

— Enterraram-se até aos cabelos?

— Estava cheia de terra. J á tomei banho e agora seco o cabelo. J


ulgo-me suficientemente apresentável e até me pareço com a tia
Phoebe. Pode entrar.

A bri a porta e entrei no boudoir. Ela encontrava-se sentada no


banco diante do lume e, por instantes, quase não a reconheci, de tal
modo estava diferente, sem o luto.

Envolvia-a um roupão branco e tinha o cabelo puxado para o alto da


cabeça, em vez de meticulosamente separado ao meio.

D ecidi para comigo que nunca vira ninguém tão pouco parecido
com a tia Phoebe ou qualquer outra tia.

— Sente-se — convidou. — E não faça uma cara tão assombrada.

Fechei a porta atrás de mim e ocupei uma poltrona, enquanto dizia:

— Desculpe, mas nunca tinha visto uma mulher de roupão.

— É o trajo com que costumo tomar o café da manhã. O A mbrose


chamava-lhe roupão de freira. — Ergueu os braços e começou a
colocar ganchos no cabelo. — A os

vinte e quatro anos de idade, é altura de assistir a uma agradável


cena doméstica, como a da tia Phoebe a arranjar o cabelo. Está
embaraçado?

Cruzei os braços sobre o peito, tracei a perna e continuei a observá-


la.

— Nem por sombras — asseverei. — Apenas surpreendido.


Tornou a rir sem interromper a aparentemente delicada e
complicada tarefa, que, não obstante, completou em poucos
minutos.

— Faz isso todos os dias e em tão pouco tempo? — perguntei,


admirado.

— Tem muito que aprender, Philip. Nunca viu a sua Louise cuidar do
cabelo?

— N ão, nem quero ver — apressei-me a replicar, com a recordação


súbita das palavras de despedida da moça quando me retirava de
Pelyn.

Raquel soltou nova risada e largou um gancho em cima do meu


joelho.

— Uma recordação. Ponha-o debaixo do travesseiro e observe a


expressão do S eecombe de manhã, durante o café da manhã. —
Passou do boudoir ao quarto contíguo, mas deixou a porta aberta.
— Pode continuar aí sentado e levantar a voz para conversar
comigo, enquanto me visto.

D irigi uma mirada furtiva à pequena escrivaninha, para ver se havia


algum sinal da carta do meu padrinho, mas não descortinei nada.
Talvez a tivesse no quarto. Era possível que decidisse não a
mencionar e considerasse o assunto de interesse exclusivo de
ambos. Pelo menos, eu acalentava essa esperança.

— Onde esteve todo o dia? — perguntou, do quarto.

— Tive de ir à vila tratar de uns assuntos — informei, consciente de


que não necessitava de aludir ao banco.

— O tempo passou-se agradavelmente, com o Tamlyn e os


jardineiros. Foram pouquíssimas as plantas que não se
aproveitaram. Mas ainda há muito para fazer: limpar o solo de ervas
daninhas, abrir uma passagem entre os canteiros etc. D entro de
menos de vinte anos, pode dispor de um jardim de primavera que a
Cornualha em peso virá admirar.

— Sim, era essa a intenção do Ambrose.

— N o entanto, a plantação exige cuidados especiais, que se não


podem deixar ao sabor do acaso e do Tamlyn. Ele esforça-se com
dedicação, mas os seus conhecimentos na matéria são limitados.
Porque não se interessa você mais pelo jardim?

— N ão possuo a bagagem necessária. A liás, o A mbrose tinha


plena consciência disso.

— D eve haver alguém que o possa ajudar. Podia, por exemplo,


mandar vir um perito de Londres.

A bstive-me de replicar. N ão desejava chamar um perito de


Londres. Tinha a certeza de que ela dispunha de conhecimentos
mais do que suficientes.

Naquele momento, bateram à porta do boudoir e assomou a cabeça


do mordomo.

— Que há, Seecombe? — perguntei. — O jantar está pronto?

— N ão, senhor. O D obson acaba de chegar com um bilhete de Mr.


Kendall para a senhora.

S enti o coração cair-me aos pés. O miserável decerto efetuara uma


paragem num botequim do caminho, para se apresentar tão tarde. A
gora, ver-me-ia forçado a assistir, enquanto Raquel lia a mensagem.
O uvi S eecombe bater à porta aberta do quarto e entregar a carta.

— Vou esperar por si lá em baixo, na biblioteca — anunciei.

— N ão, deixe-se estar. J á falta pouco e poderemos descer juntos.


A carta é de Mr.

Kendall. Talvez se trate de um convite para visitarmos Pelyn.


Entretanto, o mordomo desaparecera no corredor e, levantando-me,
lamentei não poder seguir-lhe o exemplo. S entia-me subitamente
enervado. N ão transpirava o mínimo som do quarto azul. Ela devia
estar a ler a carta. Pareceu escoar-se uma eternidade. Por último,
surgiu à porta de comunicação, com a missiva aberta na mão. A
chava-se devidamente trajada para jantar. Talvez fosse o contraste
da tez com o luto que a fazia parecer tão pálida.

— Que andou a fazer? — inquiriu, numa inflexão diferente, tensa


mesmo.

— A fazer? — ecoei. — Nada. Por quê?

— Não minta, Philip, que não é capaz.

Conservei-me imóvel diante do lume, preocupado em fixar a vista


em qualquer lugar menos nos olhos acusadores dela.

— Esteve em Pelyn — acrescentou. — Foi lá para se avistar com o


seu tutor.

Tinha razão. Eu era o pior dos mentirosos. Pelo menos, no que lhe
dizia respeito.

— E depois? — balbuciei.

— Convenceu-o a escrever esta carta.

— N ão fiz nada do gênero — aleguei, engolindo em seco. — Ele


escreveu-a espontaneamente. Tínhamos uns assuntos a tratar e
aconteceu virem à baila vários pormenores legais...

— E você disse-lhe que a sua prima Raquel tinha decidido dar lições
de italiano, não foi?

— Não exatamente — protestei em voz débil.

— Devia ter compreendido que estava a brincar consigo.


N ão pude deixar de refletir que, se fora mera brincadeira, por que
se mostrava tão enxofrada comigo?

— N em imagina o que fez — volveu. — O briga-me a estar


profundamente envergonhada. — A cercou-se da janela, de costas
para mim. — S e pretendia humilhar-me, não podia ter escolhido
uma maneira mais eficiente.

— Não compreendo porque tem de ser tão orgulhosa.

— O rgulhosa? — Voltou-se e olhou-me com uma expressão quase


furiosa. —

Como se atreve a chamar-me isso?

A gora, encontrava-me literalmente embasbacado, sobretudo


porque uma pessoa que, momentos antes, gracejara comigo se
apresentava irritada a um grau inconcebível.

D e repente, descobri que o nervosismo me abandonava. Avancei


para ela e estaquei a dois passos.

— I nsisto em chamar-lhe orgulhosa. Vou mesmo mais longe e


considero-a horrivelmente orgulhosa. S ou eu que corro o risco de
me humilhar e não você. N ão foi a brincar que anunciou a intenção
de dar lições de italiano. A afirmação surgiu com demasiada
prontidão para se tratar de um gracejo. Disse-o com absoluta
sinceridade.

— E se o disse? — retrucou, com uma expressão de desafio. — Há


algo de vergonhoso no fato de dar lições de italiano?

— D e um modo geral não, mas a situação muda de aspecto no seu


caso. Mrs.

A mbrose A shley a dar lições de italiano é vergonhoso, reflete-se no


marido, que se absteve de a incluir no testamento. E eu, Philip A
shley, seu herdeiro, não o permitirei.
Receberá esse rendimento até ao último pêni, prima Raquel, e
quando for levantar o dinheiro ao banco queira ter presente no
espírito que não provém da propriedade, nem do herdeiro da
mesma, mas do seu falecido marido, Ambrose Ashley.

À medida que falava, apoderava-se de mim uma cólera não inferior


à dela.

D emônios me levassem se permitiria que qualquer criatura


pequena e frágil me acusasse de a humilhar e, ainda mais,
recusasse o dinheiro que lhe pertencia por direito próprio.

— Entendeu o que acabo de lhe dizer? — perguntei.

Por instantes, pensei que me agrediria. Manteve-se imóvel, como


que petrificada, a olhar para mim. D e súbito, os olhos marejaram-se
e precipitou-se para o quarto, cuja porta fechou ruidosamente. D
esci à sala de jantar, toquei a sineta e comuniquei a S eecombe que
duvidava de que Mrs. A shley comparecesse para comer. Em
seguida, verti clarete num copo e sentei-me à cabeceira da mesa.
“Com que então, é assim que as mulheres se comportam!”, refleti.

N unca me sentira tão enfurecido e esgotado. Longos dias ao ar


livre, a trabalhar com o pessoal na época da colheita; discussões
com os caseiros atrasados no pagamento da renda ou envolvidos
em desavenças com vizinhos que eu tinha de solucionar — nada
disso se comparava com cinco minutos perante uma mulher cuja
boa disposição se convertera, num mero instante, em aberta
hostilidade. A arma final consistiria sempre nas lágrimas? Por que
elas conheciam perfeitamente o efeito no sexo oposto? S ervi-me
novamente do clarete. Q uanto a S eecombe, na expectativa atrás
de mim, desejava-o a quilômetros dali.

— A senhora está indisposta? — acabou por perguntar.

Eu podia ter-lhe explicado que a senhora estava menos indisposta


do que furiosa e
provavelmente tocaria a campainha a todo o momento, a fim de
pedir a Wellington que a transportasse na carruagem para
Plymouth.

— N ão, mas ainda não acabou de secar o cabelo. É melhor dizeres


ao J ohn que lhe leve qualquer coisa no tabuleiro.

D epreendi que era àquilo que os homens se expunham quando


casavam. Portas fechadas estrondosamente e depois silêncio. J
antar sem companhia. Por conseguinte, o apetite, estimulado pelas
numerosas horas ao ar livre, descontração na banheira e antevisão
do prazer de um serão calmo junto da lareira, passado em diálogo
intermitente, a observar as mãos brancas e pequenas a moverem-
se com eficiência no trabalho de renda, tinha forçosamente de se
extinguir.

Com que euforia me vestira para jantar, atravessara o corredor,


batera à porta do boudoir e a encontrara sentada diante do lume,
envolta num belo roupão branco, com o cabelo puxado para o topo
da cabeça! Com que facilidade havíamos partilhado a boa
disposição, numa espécie de intimidade que proporcionava uma
aura de beatitude à perspectiva do serão a sós! E agora, desterrado
na sala de jantar, com um bife que me suscitava tanto apetite como
se fosse um pedaço de sola. E que estaria ela a fazer?

Encontrar-se-ia deitada na cama? A char-se-iam as velas apagadas,


os cortinados corridos e o quarto imerso na escuridão? O u a
agressividade ter-se-ia dissipado e permanecia sentada no boudoir,
de olhos secos, a comer com voracidade, para impressionar S
eecombe? Era-me impossível determiná-lo. N em me interessava.

A mbrose não se equivocava quando afirmava que as mulheres


constituíam uma raça à parte. Para já, uma coisa era certa: eu
nunca casaria...

Terminado o jantar, fui sentar-me na biblioteca. A cendi o cachimbo,


estendi as pernas à minha frente e preparei-me para a sonolência
pós-refeição, que se pode revelar agradável e calmante em
circunstâncias normais, mas naquela altura carecia de todo o
atrativo. Habituara-me à presença dela na poltrona diante de mim,
os ombros voltados ligeiramente para que a luz incidisse no seu
trabalho, com o velho D on aos pés, porém agora o seu lugar
parecia singularmente vazio. Enfim, ao diabo com tudo aquilo, com
a possibilidade de uma mulher poder perturbar o final de um dia.

Levantei-me, procurei um livro na estante e folheei-o. Creio que


adormeci, porque quando ergui os olhos o relógio da parede
indicava quase nove horas. Chegara, pois, o momento de ir para a
cama e dormir. N ão merecia a pena continuar a pé, com o lume
apagado. Levei os cães para o canil — o tempo mudara e chovia,
com vento forte —, tranquei as portas e subi ao meu quarto.

Preparava-me para colocar o casaco no espaldar da cadeira,


quando vi um bilhete, apoiado à jarra de flores em cima da mesa de
cabeceira. D esdobrei-o e verifiquei que era de Raquel.

“Caro Philip: se lhe for possível, agradecia que perdoasse a minha


grosseria desta

noite. É a todos os títulos imperdoável comportar-me assim em sua


casa. N ão tenho qualquer justificação, salvo que não estou
inteiramente em mim nos últimos tempos e a emoção persiste muito
perto da superfície. Escrevi ao seu tutor para lhe agradecer a carta e
aceitei a oferta pecuniária. Foram ambos extremamente generosos.
Boa noite, Raquel.”

Voltei a lê-lo e guardei-o na algibeira. Poderia concluir-se que o


orgulho fora dominado, juntamente com a irritação? O s sentimentos
dissolver-se-iam com as lágrimas? A aceitação do dinheiro tirava-
me um peso dos ombros. Com efeito, previra nova visita ao banco,
com mais explicações e anulação das ordens anteriores, a que se
seguiriam reuniões com o meu padrinho, argumentações e um
desenlace que se traduziria com a partida da minha prima Raquel
para Londres, onde se sustentaria dos proventos que as lições de
italiano lhe proporcionassem.
Ter-lhe-ia custado muito escrever aquelas linhas? O salto do orgulho
para a humildade? D esagradava-me admitir o fato de que tivera de
proceder assim. Pela primeira vez desde a sua morte, descobri-me
a atribuir a A mbrose a culpa do que acontecera. Podia
perfeitamente ter tomado providências para assegurar o futuro da
esposa. Uma doença súbita e morte imprevista aconteciam a
qualquer pessoa. D ecerto sabia que, assim, deixava Raquel ao
sabor da nossa comiseração e mesmo da nossa caridade. Uma
simples carta endereçada ao meu padrinho evitaria tudo aquilo. A
cudiu-me a visão dela sentada no boudoir da tia Phoebe a redigir
aquele bilhete. Perguntei-me se ainda lá se encontraria ou já se
deitara.

Hesitei por um momento e atravessei o corredor até à arcada junto


dos seus aposentos. A porta do boudoir estava aberta, mas a do
quarto fechada. Bati a esta última e, por uns instantes, obtive o
silêncio como única resposta, até que ela perguntou:

— Quem é?

A bri e entrei, sem me identificar previamente. O quarto estava


imerso na escuridão, e o clarão da minha vela revelou-me que as
cortinas da cama se achavam entreabertas e os contornos dela sob
o edredom.

— A cabo de ler o seu bilhete — informei. — Q ueria agradecer-lhe


e desejar as boas-noites.

Pensei que se soergueria e acenderia a vela do castiçal da mesa de


cabeceira, mas não o fez. Conservou-se deitada, a cabeça pousada
na almofada, atrás das cortinas.

— Q ueria também que soubesse que não tive a menor intenção de


armar em paternalista — acrescentei. — Acredite, por favor.

A voz proveniente detrás das cortinas era singularmente calma e


abafada:
— N unca me passou pela cabeça que tivesse. — Fez uma breve
pausa. — N ão me preocuparia ter de dar lições de italiano. N ão
possuo qualquer preconceito a esse respeito. O que não pude
suportar foi você dizer que se refletiria negativamente no Ambrose.

— E é verdade — reiterei —, mas deixemos isso agora.

— Foi extrema gentileza e bondade de sua parte ir a Pelyn avistar-


se com o seu padrinho. D eve ter-me julgado inconcebivelmente
ingrata. N unca me perdoarei semelhante atitude.

N otei que se achava sinceramente emocionada e acudiu-me uma


sensação penosa na garganta e no estômago.

— Preferia que me batesse a vê-la chorar — murmurei.

Ouvi-a mover-se na cama, procurar um lenço e assoar-se.

O gesto e o som, tão vulgares e simples, verificados atrás das


cortinas, tornaram a sensação ainda mais aguda.

— A ceito a mesada, ou como lhe quiser chamar, Philip, mas não


posso abusar da sua hospitalidade para além desta semana. N a
próxima segunda-feira, se não vir inconveniente, abandonarei esta
casa, possivelmente rumo a Londres.

Estas palavras produziram-me como que um abalo.

— Londres? Por quê? Com que objetivo?

— Vim passar apenas uns dias e já excedi o período que me


impusera.

— Mas ainda não conhece toda a gente. Não fez tudo o que se
esperaria de si.

— Que importa? No fundo, parece tudo inútil.


A inflexão da voz alterara-se ao ponto de não parecer a sua, como
se carecesse de vida.

— S upus que lhe agradava percorrer a propriedade e visitar os


caseiros. N as vezes que o fizemos juntos parecia contente. E hoje,
ao proceder à plantação com o Tamlyn...

Não passava de simulação e limitava-se a manifestar delicadeza?

Não respondeu imediatamente, até que articulou pausadamente:

— Às vezes, penso que lhe falta toda e qualquer compreensão.

Talvez fosse verdade. S entia-me acabrunhado e magoado, e


preocupava-me pouco com o resto.

— Muito bem — acedi. — S e quer partir, faça-o. S uscitará


comentários, mas paciência.

— Estava convencida de que suscitaria mais se ficasse.

— S e ficasse?! Q ue quer dizer com isso? N ão compreende que


pertence aqui por direito próprio e, se o Ambrose não fosse tão
imprevidente, seria o seu lar?

— Meu D eus! — exclamou, subitamente irritada. — Por que outra


razão julga que vim?

Eu tornara a cometer uma gafe. I nconsciente e desprovido de fato,


dissera tudo o que não devia. S entia-me exasperado e aproximei-
me da cama, afastei as cortinas e contemplei-a. Encontrava-se
reclinada na almofada, as mãos unidas sobre o peito. Usava algo de
indefinido devido à penumbra, branco, com rendas em torno do
pescoço como

uma sobrepeliz, o cabelo solto atado sobre a nuca com uma fita, o
que me fez pensar em Louise quando criança. O fato impressionou-
me e, ao mesmo tempo, produziu certa surpresa: parecia
curiosamente jovem.
— N ão sei por que veio ou a meta de tudo o que fez. Posso
considerar-me um ignorante a seu respeito e das mulheres em
geral. A única coisa de que tenho a certeza é que a sua presença
me agrada e não quero que parta. Acha isto complicado?

Levou as mãos ao rosto, num gesto quase defensivo, como se


receasse que a agredisse.

— Acho — assentiu. — Muito.

— Nesse caso, é você que o complica e não eu.

Cruzei os braços sobre o peito e olhei-a, assumindo uma serenidade


que estava longe de sentir. N ão obstante, de certo modo,
desfrutava de uma posição vantajosa, dadas as circunstâncias. N ão
compreendia como uma mulher de cabelo solto, o que a tornava
numa jovem, podia estar encolerizada.

Vi os olhos marejarem-se. Enquanto ela procurava no espírito um


pretexto plausível, uma nova razão para partir, acudiu-me uma
inspiração repentina.

— D isse esta tarde que devia chamar um perito de Londres para se


ocupar do jardim. S ei que era também a intenção do A mbrose. A
contece que não conheço nenhum e, de qualquer modo,
enlouqueceria de irritação se tivesse um indivíduo desses à minha
volta. S e você sente alguma atração por isto, sabendo o que
representava para ele, continuará cá por uns meses, a fim de tratar
do assunto.

O tiro atingiu o alvo. Raquel fixou o olhar na sua frente, enquanto


movia os dedos em torno da aliança. Como eu tivera oportunidade
de observar, tratava-se de um gesto instintivo sempre que estava
preocupada. A proveitei a vantagem momentânea para prosseguir:

— N unca consegui, e o Tamlyn tampouco, diga-se de passagem,


entender os planos que o A mbrose costumava traçar. O chefe dos
jardineiros tem-me consultado com frequência a respeito de dúvidas
que não sou capaz de esclarecer. S e você ficasse , nem que fosse
apenas durante o outono, época mais apropriada para a plantação,
seria uma grande ajuda.

— Penso que deve pedir a opinião ao seu padrinho — sugeriu,


continuando a mover os dedos na aliança.

— Ele não tem nada a ver com isto. J ulga-me um colegial


inconsciente? Existe somente um fator a considerar: saber se você
deseja ficar. S e quiser realmente partir, não a poderei impedir.

— Por que me pergunta isso? — proferiu em voz curiosamente


submissa. — S abe que quero ficar.

Como podia eu saber, santo D eus, se ela deixara transparecer


precisamente o

contrário?

— N esse caso, adiará a partida por uns tempos, para cuidar do


jardim? É ponto assente e não voltará com a palavra atrás?

— Sim, ficarei por uns tempos.

Tive dificuldade em me abster de sorrir. O seu olhar exibia uma


expressão grave e acudiu-me o receio de que, se o fizesse, ela
mudasse de ideias. Contentei-me, pois, com celebrar o triunfo
intimamente.

— Muito bem. S endo assim, desejo-lhe uma boa noite. E quanto à


sua carta para o meu padrinho? Quer que a faça seguir?

— Já a entreguei ao Seecombe.

— Nesse caso, deixou de estar zangada comigo?

— Não estava zangada consigo, Philip.

— Pareceu-me o contrário. Receei mesmo que me agredisse.


— Às vezes, é tão estúpido... — murmurou, depois de me olhar em
silêncio por um momento. — Um dia, sou muito capaz de o fazer.
Venha cá. — A proximei-me e o meu joelho contatou com o
edredom. — I ncline-se. — S egurou-me o rosto entre as mãos e
beijou-me. — A gora, vá-se deitar como um bom rapaz e durma
bem. — I mpeliu-me para fora das cortinas, que uniu.

Q uase cambaleei, com o castiçal na mão, enquanto abandonava o


quarto, eufórico e aturdido simultaneamente, como se tivesse
exagerado o consumo de brande, e afigurou-se-me que a vantagem
que julgara ter sobre ela se perdera por completo. O

aspecto de jovem indefesa e a sobrepeliz haviam-me iludido. N ão


deixara de ser mulher um único instante. A pesar disso, sentia-me
contente. O mal-entendido dissipara-se e a minha prima Raquel
prometera ficar. Não houvera mais lágrimas.

Em vez de ir imediatamente para a cama, tornei a entrar na


biblioteca, a fim de escrever duas ou três linhas ao meu padrinho,
para lhe assegurar que tudo correra bem.

N ão necessitava de se inteirar do serão mais ou menos


tempestuoso que acabávamos de atravessar. D epois, introduzi a
missiva num sobrescrito e levei-a para a mala da correspondência
que se encontrava no átrio e seguiria pela manhã.

Como era hábito, S eecombe deixara-a em cima da mesa, com a


chave ao lado.

Q uando a abri, tombaram-me na mão duas cartas, ambas do punho


de Raquel. Uma destinava-se a N ick Kendall, como ela me dissera.
A segunda exibia o nome e o endereço de Rainaldi, em Florença.
Enruguei a fronte por uns instantes e voltei a colocá-las na mala.
Por que não havia a minha prima de escrever a um amigo? N ada
mais natural e compreensível. N o entanto, enquanto subia em
direção ao meu quarto, assolava-me a suspeita, indefinida sem
dúvida, de que me ludibriara.
Capítulo Décimo Quarto

N o dia seguinte, quando desceu e fui ter com ela ao jardim, Raquel
parecia tão contente e despreocupada como se nunca se tivesse
registrado o mínimo atrito entre nós.

A única diferença na sua atitude para comigo era que se mostrava


mais atenciosa e cordial. I mplicava menos, ria comigo e não de
mim e pedia-me a opinião sobre a plantação das flores, não em
virtude de conhecimentos na matéria, que não possuía, mas tendo
em conta o meu prazer futuro quando as contemplasse.

— Proceda como lhe parecer melhor — indiquei. — Mande os


homens alterar tudo radicalmente, se quiser, porque sou uma
nulidade na matéria.

— Mas desejo que o resultado lhe agrade, Philip. Tudo isto


pertence-lhe e um dia será dos seus filhos. S uponha que introduzo
alterações que depois não lhe agradam, já sem possibilidade de
remediar o mal?

— Hão de me agradar, estou certo. E pare de falar dos meus filhos,


pois estou firmemente decidido a permanecer solteiro.

— O que representa uma atitude essencialmente egoísta e uma


estupidez da sua parte.

— Discordo. Creio que, mantendo-me solteiro, evitarei muitas


preocupações.

— Nunca pensou no que perderá?

— Tenho a não muito vaga impressão de que as vantagens do


matrimônio não correspondem totalmente ao que se apregoa. S e é
ternura e conforto que um homem procura, e algo de belo para
contemplar, pode obter tudo isso em sua própria casa, se a estima o
suficiente.
S oltou uma gargalhada tão ruidosa que Tamlyn e os jardineiros
ergueram a cabeça para nos olhar com perplexidade.

— Um dia, quando se apaixonar, recordar-lhe-ei essas palavras —


advertiu ela. —

Ternura e conforto fornecidos por paredes frias, aos vinte e quatro


anos. Francamente, Philip! — E a hilaridade repetiu-se.

Quanto a mim, não descortinava o mínimo motivo para rir, e


repliquei:

— Compreendo perfeitamente ao que se refere. S ucede apenas


que nunca senti qualquer inclinação nesse sentido.

— Vê-se com clareza. D eve ser o despedaçador de corações da


região. Coitada da Louise...

Mas não estava disposto a deixar-me arrastar para uma discussão


acerca de Louise ou uma dissertação sobre o amor e o casamento. I
nteressava-me muito mais vê-la

trabalhar no jardim.

O mês de outubro apresentava-se excepcionalmente benigno e, nas


primeiras três semanas, praticamente não choveu, pelo que Tamlyn
e os seus homens, sob a orientação de Raquel, puderam adiantar
os trabalhos de forma notável. Conseguimos igualmente arranjar
tempo para visitar todos os caseiros da propriedade, o que lhes
proporcionou grande satisfação, como eu previra. Conhecia-os
desde a infância e procurava-os com regularidade, consciente de
que me competia fazê-lo. Tratava-se, todavia, de uma experiência
nova para a minha prima, que crescera na I tália num sistema de
vida muito diferente. A s suas maneiras eram impecáveis e
produziram-me particular satisfação.

Fazia as perguntas apropriadas e dava as respostas convenientes.


Por outro lado —
pormenor que mais contribuiu para a aceitação de que foi alvo —,
dir-se-ia achar-se familiarizada com todos os seus problemas e
meios necessários para os solucionar.

"J untamente com os conhecimentos de jardinagem, sou entendida


em ervas medicinais", esclareceu. "N a I tália, é vulgar estudarem-se
essas coisas." E fornecia indicações sobre a maneira mais eficaz de
debelar, ou mesmo pôr termo, aos seus achaques.

— I magino que está a antever o que acontecerá — observei. —


Vão tomá-la pela parteira do distrito. Prepare-se para ser chamada a
meio da noite para trazer bebês ao mundo.

— Também existe uma tisana para isso, feita de folhas de amoreira


e cardos —

replicou. — S e uma mulher a tomar durante os seis meses


anteriores ao parto, terá a criança sem dor.

— Isso é bruxaria. Elas não aceitariam um tratamento dessa


natureza.

— Que disparate! Por que hão de as mulheres sofrer


desnecessariamente?

Por vezes, à tarde, procuravam-na, como eu previra. E revelava-se


tão eficiente com a "nobreza", segundo a terminologia de S
eecombe, como com a plebe. N ão tardei a inteirar-me de que ele
vivia nas suas sete quintas, por assim dizer.

Q uando as carruagens paravam à nossa porta, às terças ou


quintas-feiras, às três horas da tarde, encontrava-se à espera no
átrio.

A inda trajava de luto, mas a jaqueta era nova, reservada para


essas ocasiões. O
infortunado J ohn tinha a seu cargo a missão de introduzir os
visitantes e confiá-los ao seu superior hierárquico, o qual, com
passos lentos e solenes, os precedia em direção à sala de estar,
cuja porta abria para anunciar os nomes, como numa recepção
formal.

A ntes disso, discutia com Raquel a possibilidade de uma ou outra


pessoa aparecer e fornecia-lhe um breve resumo da história da
respectiva família até ao momento presente.

D e um modo geral, acertava na profecia de quem viria, e nós


perguntávamo-nos se haveria algum método de enviar mensagens
de uma casa para outra através das instalações do pessoal
doméstico para proporcionar as informações necessárias, como os
tambores dos selvagens na floresta. Por exemplo, S eecombe
comunicava a Raquel que

tinha a certeza de que Mrs. Tremayne mandara aprontar a


carruagem para a tarde de quinta-feira e levaria consigo a filha
casada, Mrs. Gough, e a solteira, Miss I sobel, e a minha prima
devia precaver-se quando se dirigisse a esta última, porquanto a
jovem sofria de uma deficiência na fala. O u então, que, em
determinada terça-feira, a velha Lady Penryn decerto apareceria,
porque costumava visitar a neta nesse dia, a qual vivia apenas a
quinze quilômetros de nós, e Raquel devia abster-se de aludir a
raposas na sua frente, porque a anciã sofrera um susto profundo
provocado por um daqueles animais pouco antes do nascimento do
filho mais velho e o rapaz adquirira o estigma sob a forma de um
sinal congênito no ombro esquerdo.

— D urante todo o tempo em que ela esteve cá, tive de me esforçar


por evitar que a conversa abordasse o tema da caça — explicou-me
Raquel, mais tarde. — A pesar disso, parecia empenhada em não
falar de outra coisa. Foram momentos particularmente difíceis.

Havia sempre um ou outro episódio relacionado com as visitantes


com que me acolhia quando eu regressava a casa, depois de vir
pelo bosque, a fim de não me cruzar com elas. A s pessoas e
respectivas vidas revestiam-se sempre de um interesse especial, e
costumava dizer, ante as minhas objecções: “I sto é tudo muito
diferente da sociedade em Florença. S empre desejei conhecer os
hábitos da vida no campo, na I nglaterra. A gora, começo a fazer
uma ideia. E cada vez me agrada mais."

— N ão concebo nada de mais monótono do que discutir


generalidades com alguém, em Florença ou na Cornualha —
observei uma ocasião.

— Você é um caso perdido e acabará por se tornar num homem de


vistas estreitas, que só pensará em nabos e couves.

Às vezes, afundava-me numa poltrona da sala e pousava as botas


enlameadas no banco, para a provocar, mas se o fato lhe
desagradava nunca o deixava transparecer.

— Vá, conte-me o último escândalo da aldeia — solicitava-lhe


noutras alturas.

— Para que, se sei que não lhe interessa? — replicava.

— Porque gosto de a ouvir falar.

Por conseguinte, antes de subir ao quarto para se vestir para o


jantar, regalava-me com os mexericos da região: os últimos
casamentos e mortes, os bebês de nascimento iminente etc. Raquel
parecia desfrutar mais com uma conversa de vinte minutos com
uma desconhecida do que se se tratasse de uma amizade de
tempos imemoriais.

— Como eu suspeitava — informou —, você constitui o desespero


de todas as mães num raio de oitenta quilômetros.

— Como assim?

— N ão se digna olhar para as suas filhas. Um homem tão alto,


apresentável e disponível em todos os aspectos... “Por favor, Mrs. A
shley, convença o seu primo a conviver mais."

— E qual é a sua resposta?

— Q ue você encontra toda a ternura e distração de que necessita


dentro destas quatro paredes. Pensando melhor — acrescentou —,
a frase talvez não esteja devidamente construída. Preciso de ter
mais cuidado com a língua.

— É-me indiferente o que lhes diz, desde que não envolva um


convite. N ão tenho o mínimo desejo de procurar a filha de ninguém.

— A s apostas concentram-se pesadamente na Louise. S ão


numerosas as vozes convencidas de que ela acabará por caçá-lo. A
terceira Miss Pascoe também ocupa um lugar cimeiro nos
prognósticos.

— Com a breca! — bradei, escandalizado. — Belinda Pascoe?


Preferia casar com a Katie S earle, que ganha a vida a lavar roupa.
A qui para nós, prima Raquel, devia fazer um esforço para me
proteger. Por que não diz a essas almas caridosas que sou um lobo
solitário e passo o tempo a escrevinhar versos latinos? Creio que
isso bastaria para as desencorajar.

— N ada as desencorajará. A ideia de que um jovem e bem-


parecido homem solteiro prefere a solidão e a poesia latina só
serviria para lhe conferir um aspecto mais romântico. Essas coisas
estimulam o apetite.

— Então, que o satisfaçam noutro lugar. O que mais me intriga é as


mentes das mulheres desta parte do mundo (talvez seja o mesmo
em todos os lados) só se concentrarem no matrimônio.

— Pouco mais têm em que pensar. A s possibilidades de escolha


são muito limitadas. Eu própria não escapo, pode crer, e
forneceram-me uma lista de viúvos disponíveis. Há um par do reino
que vive no O este da Cornualha e reúne as condições ideais:
cinquenta anos, herdeiro, com as duas filhas casadas.
— Não me diga que é o velho Saint Ives? — articulei, abismado.

— Esse mesmo. Uma pessoa encantadora, segundo me


asseguraram.

— Uma pessoa encantadora, hem? A o meio-dia já está bêbado


como um cacho e frequenta os caminhos solitários atrás das
serviçais. Billy Rowe, das terras de Barton, teve uma sobrinha a
trabalhar em casa do S aint I ves, e um dia ficou tão apavorada que
fugiu sem ter tempo de levar a bagagem.

— Q uem é que está agora a acreditar em mexericos? Coitado do


homem... S e tivesse uma esposa, não necessitava de frequentar os
caminhos solitários atrás das serviçais. É claro que tudo dependeria
da companheira.

— Seja como for, com esse é que você não casa — declarei com
firmeza.

— Por que, ao menos, não o convida para jantar? — sugeriu, os


olhos dominados por uma expressão solene que eu aprendera a
interpretar como malícia. — Podíamos promover uma festa, Philip. A
s moças mais bonitas para si e os viúvos mais favorecidos pela
fortuna para mim. Mas creio que já escolhi. S e, um dia, me decidir,
optarei pelo seu

padrinho, Mr. Kendall. Tem uma maneira desassombrada de falar


que muito aprecio.

É possível que ela o fizesse propositadamente, mas mordi o anzol e


explodi:

— N ão acredito que fale a sério! Casar com o meu padrinho? Mas


ele tem quase sessenta anos e é raro não estar resfriado ou sofrer
de qualquer outra coisa.

— I sso significa que não encontra em sua casa o calor e conforto


que existem nesta.
Compreendi então que tentava desfrutar-me e rimos em uníssono,
mas mais tarde, ao ponderar o assunto, invadiu-me uma ponta de
desconfiança. N ão subsistiam dúvidas de que o meu padrinho se
mostrava extremamente cortês nas suas visitas dominicais, e eles
pareciam dar-se muito bem. Tínhamos jantado em casa dele duas
ou três vezes e revelara atenções que eu lhe desconhecia. Mas
havia dez anos que enviuvara e decerto não acalentava a ideia
fantástica de tentar a sorte junto da minha prima Raquel. D e
qualquer modo, ela não o aceitaria.

A ideia indignou-me. A minha prima Raquel em Pelyn? A minha


prima Raquel, Mrs. Ashley, convertida em Mrs. Kendall?

S implesmente monstruoso! S e um objetivo tão presunçoso cruzava


o espírito do velho, apressar-me-ia a cancelar os convites para o
jantar de domingo. Por outro lado, isso representaria a interrupção
de uma rotina de numerosos anos. I mpossível, portanto.

A ssim, o costume tinha de se manter, mas, na vez seguinte,


quando ele, sentado à direita de Raquel, inclinou ligeiramente a
cabeça para ela e, de súbito, soltou uma gargalhada e disse
"Excelente, excelente!", perguntei-me que tema estariam a abordar
e porque riam tanto juntos. "Trata-se de mais um ardil de mulher",
refleti. "A ssumir uma atitude que permita as conclusões mais
obscuras."

Raquel sentava-se em perfeito à vontade, durante o jantar de


domingo, bem-humorada, com o meu padrinho à sua direita e o
vigário à esquerda, ambos aparentemente munidos de tópicos
inesgotáveis para alimentar a conversa, e, sem motivo aparente,
tornei-me meditativo e silencioso, como Louise fizera naquele
primeiro domingo, e o nosso setor da mesa lembrava uma reunião
de quacres. Ela fixava o olhar no seu prato e eu no meu e, de
repente, ergui a vista e surpreendi Belinda Pascoe com os olhos
cravados em mim, o que me acabrunhou ainda mais, ao recordar os
rumores a nosso respeito que circulavam na região.
O nosso silêncio obrigava Raquel a maiores esforços, numa
tentativa para o neutralizar, pelo que ela, o meu padrinho e o vigário
procuravam exceder-se mutuamente, citando versos de autores
célebres, enquanto o meu acabrunhamento se intensificava, embora
em parte me congratulasse com a ausência de Mrs. Pascoe, graças
a uma indisposição passageira. Louise não interessava. N ão era
obrigado a conversar com ela.

No entanto, quando todos se retiraram, Raquel chamou-me à pedra:

— Q uando recebo os seus amigos, conto com um certo apoio de


sua parte, Philip.

Q ue aconteceu? Passou todo o tempo com uma cara horrível, sem


dirigir uma única palavra às suas vizinhas, coitadas. — E meneou a
cabeça, num gesto de desaprovação.

— Reinava tanta alegria no vosso lado, que me pareceu


desnecessário contribuir.

Todos aqueles disparates sobre "A mo-te" em grego... E o vigário a


proclamar que “o prazer do meu coração”, soava melhor em
hebraico!

— E é verdade. A expressão brotou-lhe suavemente dos lábios e


fiquei muito impressionada. O seu padrinho prometeu mostrar-me o
promontório do farol ao luar.

Diz que é um cenário inesquecível.

— Escusa de contar com isso — determinei. — O farol situa-se na


minha propriedade. Há uma antiga olaria, de data indefinida, na
propriedade dele. Q ue lhe mostre isso. O acesso está coberto de
cardos e espinhos.

— Confesso que não compreendo o que se passa consigo. Está a


perder o sentido do humor.
D eu-me uma palmada amigável (protecionista?) no ombro e seguiu
para o quarto.

Era isso o que mais me enfurecia numa mulher. A última palavra


tinha de lhe pertencer sempre, deixando o interlocutor imerso em
indignação ou, pelo menos, perplexidade.

S egundo parecia, uma mulher nunca se equivocava. O u, se


laborava em erro, manipulava-o em seu proveito e conferia-lhe um
aspecto diferente. Referia-se a um eventual passeio ao luar com o
meu padrinho, ou qualquer outra expedição com a mesma escolta
— uma visita ao mercado de Lostwithiel, por exemplo — e
perguntava- me, imperturbável, se devia usar o novo chapéu que
encomendara a um estabelecimento de Londres e chegara por
portador especial ou um véu de malha mais larga que permitia uma
melhor observação do rosto. E se eu amuava, replicando que me
era indiferente mesmo que ocultasse as feições com uma máscara,
exibia um sorriso malicioso.

Mais tarde, sós na biblioteca, sem a presença ou proximidade de S


eecombe, a atitude alterava-se ligeiramente. N ão me encarava com
uma expressão divertida e manifestava, por exemplo, a intenção de
confeccionar uma cobertura para a minha cadeira do escritório. D
epois, serenamente, sem modos ou palavras irritantes, fazia-me
perguntas sobre o meu dia — com quem estivera, o que fizera —,
pelo que todo o meu amuo se esvaía. Entretanto, a situação não
deixava de me intrigar.

Para que começar por me espicaçar e depois esforçar-se por me


tranquilizar? D ir-se-ia que as alterações do meu estado de espírito
lhe proporcionavam prazer, embora a causa escapasse à minha
compreensão. S ó sabia que no primeiro caso experimentava
profundo desconforto e no segundo felicidade e paz.

Perto do final do mês, o bom tempo terminou. Choveu


ininterruptamente durante três dias, o que não permitiu a
continuação dos trabalhos de jardinagem, as minhas digressões a
cavalo ou (e ainda bem) as visitas das terças e quintas-feiras.
Foi S eecombe quem sugeriu aquilo que, inconscientemente, nós
protelávamos: o exame aos bens de A mbrose. A bordou o assunto
numa manhã em que Raquel e eu nos encontrávamos atrás dos
vidros da janela da biblioteca, entretidos a contemplar a chuva
torrencial.

— O escritório para mim e o dia metida no boudoir para si —


decretei. — Q ue contêm as caixas acabadas de chegar de
Londres? Mais vestidos para escolher, provar e devolver?

— É tecido para cortinados — explicou ela. — Creio que a visão da


tia Phoebe carecia de discernimento. O quarto azul acabou por se
tornar cinzento. E a colcha da cama apresenta picaduras de traças,
mas não diga nada ao S eecombe. A traça dos anos.

Também tenciono renová-la.

Foi naquele momento que Seecombe entrou e, ao ver-nos inativos,


propôs:

— D ada a inclemência do tempo, achei que os rapazes podiam


proceder a uma limpeza extraordinária. O seu quarto carece de
atenção especial, senhor. Mas eles não podem fazer nada enquanto
os baús e caixas de Mrs. Ashley inundarem o chão.

D irigi uma mirada de través à minha prima, receoso de que a falta


de tato do mordomo a melindrasse, mas verifiquei, surpreendido,
que reagia satisfatoriamente.

— Tem toda a razão, S eecombe. O s rapazes não podem proceder


à limpeza do quarto até que as caixas sejam esvaziadas. J á
adiamos a tarefa demasiado. Q ue diz, Philip?

— Concordo, se é esse o seu desejo. Manda acender o lume, S


eecombe, e quando o quarto estiver devidamente aquecido
subiremos.
Creio que ambos procurávamos ocultar um ao outro o que
pensávamos, e introduzimos uma espécie de jovialidade na nossa
atitude e conversa. Ela estava empenhada, por minha causa, em
não denunciar apreensão. E eu, igualmente desejoso de lhe poupar
aborrecimentos, exteriorizava uma euforia em absoluto estranha ao
meu temperamento. A chuva fustigava as janelas do meu antigo
quarto e surgira uma camada de umidade no teto. O lume, que não
era aceso desde o inverno anterior, ardia com um crepitar que
parecia alheio ao ambiente.

A s caixas achavam-se alinhadas no chão, à espera de que as


abrissem e, no topo de uma, via-se o familiar rótulo azul-escuro,
com o monograma “A .A .”, em largas maiúsculas, a um canto. A
cudiu-me subitamente à memória que a depositara sobre os joelhos
dele, no dia em que partira na carruagem.

Raquel quebrou o silêncio que se estabelecera:

— Começamos pelo baú da roupa?

Exprimia-se em tom propositadamente duro e prático, e estendi-lhe


as chaves que confiara a Seecombe, à chegada.

— Como queira — repliquei.

I ntroduziu a chave apropriada na fechadura, fê-la girar e levantou a


tampa. O seu velho roupão encontrava-se em cima.

Eu conhecia-o bem — era de seda espessa vermelho-escura.

O s chinelos também estavam aí, alongados e abaulados. O lhei-os


pensativamente, e foi como um regresso ao passado. Lembrava-me
de, certa manhã, ele entrar no meu quarto, quando se barbeava, o
rosto coberto de espuma. "Sabes uma coisa; rapaz? Estive a
pensar...,". A seguir, passara ao seu, onde agora nos
encontrávamos. Com o roupão e chinelos acabados de expor.
Raquel retirou-os do baú e, em tom suave, perguntou:
— Que lhes faremos?

— Não sei. É a si que compete decidi-lo.

— Usava-os, se eu os oferecesse?

Era estranho. Eu ficara com o seu chapéu. Com a sua bengala.


Com a jaqueta de caça provida de proteção de cabedal nos
cotovelos que A mbrose deixara em casa, quando partira para a sua
derradeira viagem. E não sentia a menor relutância em usá-los. N o
entanto, aquelas outras coisas — o roupão e os chinelos —
infundiam-me a impressão de que abríramos a urna e o víamos
morto na nossa frente.

— Não me parece.

Conservou-se silenciosa. Pousou-os na cama e a seguir extraiu um


traje leve, que ele decerto vestira no clima mais quente. N ão me era
familiar, porém ela devia conhecê-

lo bem.

Estava amarrotado de permanecer tanto tempo no baú, e colocou-o


ao lado dos outros objetos, murmurando algo que me pareceu ser: “
Precisa de ser engomado.” D e repente, começou a tirar o resto
rapidamente e amontoá-lo em cima da cama, quase sem o olhar.

— Penso que, se nada disto lhe interessa, Philip, o pessoal, que o


estimava, talvez o aceite. Você saberá melhor do que eu o que deve
dar e a quem.

S uponho que não via o que fazia. Extraía as peças de vestuário do


baú numa espécie de frenesi, enquanto eu a observava com
curiosidade.

— E o baú? — acabou por perguntar. — Um baú é sempre útil. S


erve-lhe para alguma coisa? — Olhou-me e a voz tremeu
levemente.
De repente, encontrou-se nos meus braços, a cabeça pousada no
meu peito.

— O h, Philip, perdoe-me — sussurrou. — D evia tê-lo deixado tratar


disto com o Seecombe. Foi loucura minha vir cá acima.

Era curioso. Como abraçar uma criança. O u um animal ferido.


Toquei-lhe no cabelo e pousei a face na sua cabeça.

— A calme-se, não chore — proferi no mesmo tom. — Vá para a


biblioteca. O cupo-me disto sozinho.

— N ão. Foi uma manifestação de fraqueza de minha parte. Uma


estupidez. É tão

penoso para si como para mim. Queria-lhe tanto...

Movi os lábios pelo seu cabelo. Era uma sensação estranha. E ela
parecia tão pequena, colada a mim...

— N ão me importo — assegurei-lhe. — Um homem é capaz de


tratar destas coisas. Para uma mulher, é mais difícil. Vá para baixo,
por favor, Raquel.

Afastou-se um pouco e secou as lágrimas com o lenço.

— J á me sinto melhor. N ão voltará a acontecer. — E retirou a


roupa, o mais íntimo dele. — S e se encarregar de a distribuir pelo
pessoal, ficar-lhe-ei grata. E guarde para si aquilo que desejar.

Nunca receie usá-lo, que não me importarei.

A s caixas com os livros encontravam-se mais perto da lareira.


Peguei numa cadeira, ofereci-a, para que se instalasse junto do
calor, ajoelhei diante dos outros baús e abri-os, um a um.

Estava esperançado em que não tivesse reparado — eu próprio


quase não me dera conta — de que a tratara pela primeira vez por
Raquel e não por prima simplesmente.
Confesso que não sei como aconteceu. J ulgo que foi porque,
tendo-a nos braços, parecera muito menor do que eu.

O s livros não possuíam o toque pessoal do vestuário. Havia velhas


obras favoritas que eu conhecia e sempre o acompanhavam nas
viagens, que Raquel me ofereceu para ter junto da cama. D
epararam-se-me igualmente os botões de punho, o relógio e a
caneta, que também insistiu que aceitasse. A lguns volumes eram-
me totalmente estranhos, todavia ela explicou: um fora adquirido em
Roma, por um preço de ocasião, apesar de se tratar de uma
primeira edição, outro em Florença, e descreveu o local da compra e
o vendedor. Entretanto, à medida que falava, afigurava-se-me que a
tensão se dissipara com as lágrimas vertidas. Pousamo-los no chão
e fui buscar um espanador, com que lhes limpou o pó. D e vez em
quando, lia-me uma passagem de um e esclarecia que agradava
particularmente a Ambrose, ou mostrava-me uma ilustração.

Q uando chegamos a uma obra com gravuras de disposição de


jardins, salientou que nos seria útil, levantou-se da cadeira e levou-a
para junto da janela, a fim de aproveitar a luz do dia.

A bri outro livro ao acaso, e um pedaço de papel caiu de entre as


folhas. Vi que continha a caligrafia de A mbrose e pareceu-me parte
de uma carta, retirada do contexto geral e esquecida.

"É uma doença, sem dúvida. O uvi falar dela com frequência, como
a cleptomania ou qualquer outra moléstia, e decerto lhe foi
transmitida pelo devasso do pai, A lexander Coryn. N ão posso
determinar há quanto tempo é vítima de semelhante anomalia.
Talvez desde sempre. Em todo o caso, explica grande parte do que
até agora me intrigava. Uma coisa é certa, meu rapaz: já não posso,
ou, melhor, já não me atrevo a deixá-la tomar conta

da minha bolsa, sob pena de me conduzir à penúria e a propriedade


sofrer as consequências. É imperioso que previnas o Kendall, se
porventura...".
A frase não fora concluída e o texto não estava datado. A letra
parecia normal.

Naquele momento, Raquel regressou da janela e amarfanhei o


papel na mão.

— Que tem aí? — perguntou.

— Nada de especial.

Atirei-o ao lume. Ela viu-o arder, enquanto as palavras manuscritas


se deformavam e desapareciam, pasto das chamas.

— Era a letra do Ambrose — articulou. — Que dizia? Tratava-se de


uma carta?

— Uns apontamentos quaisquer, sem interesse — declarei,


esperançado em que não reparasse no calor que me acudia às
faces.

Peguei noutro volume e ela imitou-me. Continuamos a amontoá-los


no chão, mas agora estabelecera-se um pesado silêncio entre nós.

Capitulo Décimo Quinto

Completamos a separação dos livros cerca do meio-dia.

S eecombe enviou J ohn e o jovem A rthur ao primeiro andar, para


saber se havia alguma coisa para transportar, antes de irem
almoçar.

— D eixa ficar a roupa na cama e arranja um pano para a cobrir, J


ohn — indiquei.

— Precisarei do S eecombe para me ajudar a embrulhá-la, mas


mais tarde. Para já, leva este monte de livros para a biblioteca.

— E estes para o boudoir, Arthur, por favor — disse Raquel.


Eram as primeiras palavras que pronunciava desde que eu
queimara o pedaço de papel.

— Posso guardar os de jardinagem no meu quarto, Philip? —


acrescentou.

— Com certeza. Aliás, são todos seus, como sabe.

— De modo algum. O Ambrose desejaria os outros na sua


biblioteca.

Endireitou-se, alisou o vestido e entregou o espanador a John.

— Há uma refeição fria na sala de jantar, minha senhora — informou


ele.

— Obrigada, John, mas não me apetece comer.

Hesitei, postado junto da porta aberta, depois de os dois rapazes


saírem com os volumes.

— A companha-me à biblioteca, para ajudar a arrumar os livros? —


acabei por perguntar.

— Acho que não.

Pareceu disposta a acrescentar algo, mas não o fez e afastou-se em


direção ao seu quarto.

A lmocei sem companhia, com o olhar perdido na chuva intensa


através da janela da sala de jantar. N ão merecia a pena tentar sair,
porque não poderia fazer nada. S eria preferível que completasse a
tarefa de separar a roupa de A mbrose, com a ajuda de S eecombe,
o qual decerto ficaria satisfeito por o consultar. A que se destinaria
aos diferentes caseiros deveria ser escolhida cuidadosamente para
que ninguém se melindrasse.

D esse modo, estaríamos ocupados toda a tarde. Embora me


esforçasse por pensar exclusivamente nisso, o estranho pedaço de
papel persistia em se intrometer nas minhas cogitações.

Q ue fazia entre as páginas daquele livro e há quanto tempo se


encontraria lá esquecido? Seis meses, um ano, mais tempo?

Teria A mbrose iniciado uma carta para mim que nunca chegara ao
seu destino ou haveria outros pedaços de papel, pertencentes à
mesma missiva, entre as páginas de diferentes volumes? A quelas
palavras deviam ter sido traçadas antes da sua doença, pois a letra
revelava-se firme e bem legível. Por conseguinte, no inverno ou
outono anterior.

A cudiu-me uma ponta de embaraço. Q ue direito me assistia de


tentar explorar o passado, entregar-me a conjeturas sobre uma
carta que nunca me chegara às mãos? N ão me dizia respeito, e
começava a deplorar tê-la encontrado.

S eecombe e eu passamos a tarde a separar a roupa, que ele


acondicionava em embrulhos, enquanto eu escrevia bilhetes
explicativos que os acompanhariam. S ugeriu que fossem entregues
pelo N atal, o que me pareceu boa ideia, decerto do agrado dos
caseiros. Q uando terminamos, voltei à biblioteca para continuar a
arrumar livros nas estantes. D escobri-me a mover as folhas de
cada um, antes de o colocar na prateleira, ao mesmo tempo que
experimentava uma sensação de embaraço, como se cometesse
um pequeno delito. “...como a cleptomania, ou qualquer outra
moléstia...". Por que recordava em particular essas palavras? Que
quereria Ambrose dizer?

Peguei num dicionário e procurei o vocábulo "cleptomania": "?


Tendência irresistível para o roubo em pessoas não tentadas a fazê-
lo por necessidade." A acusação dele não era essa, mas de
esbanjamento, extravagância. Como podia esta última constituir
uma doença? Era totalmente impróprio de A mbrose, o mais
generoso dos homens, acusar alguém de semelhante hábito. N o
momento em que restituía o dicionário ao seu lugar, a porta abriu-se
para dar passagem à minha prima Raquel.
Fiquei tão perturbado como se me tivesse surpreendido a assaltar a
lata das bolachas à socapa.

— A cabei agora mesmo de arrumar os livros — expliquei, e


perguntava-me se a minha voz lhe soava tão falso como a mim.

— Estou a ver — proferiu, indo sentar-se diante do lume.

N otei que já se vestira para o jantar, o que me deixou perplexo, pois


não me apercebera de que fosse tão tarde.

— Também separamos a roupa. O S eecombe foi muito prestável. A


chamos preferível, se você não se opuser, distribuí-la pelo Natal.

— Sim, ele falou-me disso há instantes e concordo plenamente.

Conquanto não soubesse determinar se se devia à minha atitude ou


à dela, detectei um certo constrangimento entre nós.

— Não parou de chover em todo o dia — observei.

— Pois não — articulou a meia voz.

Baixei os olhos para as minhas mãos, cheias de pó dos livros.

— Se me dá licença, vou lavar-me e mudar de roupa para o jantar.

S ubi ao quarto e quando voltei ao piso térreo o jantar estava na


mesa. O cupamos

os nossos lugares em silêncio. S eecombe, em obediência a um


hábito antigo, interrompia a nossa conversa com frequência, durante
a refeição, quando tinha algo para comunicar, e naquela noite, perto
do final, perguntou a Raquel:

— Já mostrou a Mr. Philip as novas coberturas, minha senhora?

— A inda não tive tempo — respondeu ela. — Mas se lhe interessa


vê-las, posso fazê-lo quando acabarmos de comer. Diga ao John
que as leve para a biblioteca.

— Coberturas? — estranhei. — De quais se trata?

— Não se recorda? Disse-lhe que as tinha encomendado para o


quarto azul.

— Ah, tem razão!

— N unca tinha visto outras iguais, senhor — interpôs S eecombe.


— N ão deve haver nenhuma mansão nestas redondezas com algo
que se lhes compare.

— N ão esqueçamos que o tecido é importado da I tália — salientou


ela. — S ó há uma loja em Londres onde se pode encontrar,
segundo me indicaram em Florença. Q uer de fato ver as
coberturas, Philip, ou não lhe interessam?

D irigiu-me a pergunta com um misto de esperança e ansiedade,


como se desejasse conhecer a minha opinião, mas temesse que me
aborrecesse.

— Com certeza que quero — assenti, corando, sem compreender o


porquê. —

Terei o maior prazer.

Levantamo-nos da mesa e dirigimo-nos à biblioteca. S eecombe


seguiu-nos e, momentos depois, ele e J ohn reuniam-se-nos com as
coberturas, que estenderam sobre os móveis.

O mordomo não se equivocara. D ificilmente se encontrariam outras


iguais em toda a Cornualha. Eu próprio não vira quaisquer que se
assemelhassem, mesmo em O xford ou Londres. Eram numerosas.
Brocados deslumbrantes e sedas de cores mais discretas. N a
realidade, apresentavam certa similaridade com as que se podiam
observar num museu.
— S ão de alta qualidade, senhor — declarou em voz baixa, como
se estivesse numa igreja.

— S ugiro este azul para as cortinas da cama, o tom mais escuro e


ouro para os cortinados e tecido acolchoado para a colcha — disse
Raquel. — Q ue lhe parece, Philip?

— Olhou-me com ansiedade, enquanto eu não sabia como


responder.

— Não lhe agradam?

— Pelo contrário, agradam-me muito, mas — tornei a sentir que


corava — não serão muito caras?

— Lá caras são de certeza, como qualquer artigo de qualidade, mas


durarão muitos anos. Estou convencida de que o seu neto e até o
bisneto poderão dormir no quarto azul, com esta colcha na cama,
rodeados por estes cortinados. Não é verdade, Seecombe?

— Sem dúvida, minha senhora.

— A única coisa que interessa é saber se gosta ou não, Philip.

— É claro que gosto.

— N esse caso, as coberturas pertencem-lhe. S ão uma oferta


minha. Pode levá-las, Seecombe. Tratarei de escrever à loja de
Londres para comunicar que ficamos com elas.

O mordomo e John enrolaram o tecido e levaram-no.

Pressenti que os olhos de Raquel se fixavam em mim e, para os


evitar, puxei do cachimbo e acendi-o com maior lentidão do que
habitualmente.

— Passa-se alguma coisa — murmurou. — De que se trata?


Tornava-se-me difícil responder sem a melindrar, mas reuni coragem
suficiente para declarar:

— Não devia dar-me presentes destes. São muito dispendiosos.

— Representam a ínfima parte do que tem feito por mim.

A sua voz era suave, quase implorativa, e apercebi-me de uma


expressão de mágoa no olhar.

— É extrema gentileza de sua parte, mas acho que não o devia ter
feito.

— D eixe ser eu a decidi-lo. Q uando o tecido for aplicado, ficará


encantado com o efeito.

N a verdade, sentia-me embaraçado e desconfortável, e não por


desejar oferecer-me algo, o que se me afigurava generoso e
impulsivo de sua parte, que eu aceitaria sem hesitar no dia anterior.
Mas agora, depois de ler o infernal pedaço de papel, assolava-me a
dúvida de que o que ela pretendia fazer por mim redundasse em
sua desvantagem, e, ao assumir uma atitude mais ou menos
passiva, envolvia-me em qualquer coisa que não entendia
totalmente.

— A quele livro sobre jardinagem vai ser-nos muito útil — disse ela
após uma pausa. — J á não me lembrava que o tinha oferecido ao A
mbrose. N ão deixe de observar as ilustrações. É claro que algumas
não servem para aqui, mas outras podem adaptar-se perfeitamente.
Um caminho empedrado, por exemplo, sobranceiro ao mar através
dos campos e, do lado oposto, um jardim imerso na água, como
havia nas villas de Roma que eu costumava visitar.

N ão sei como o consegui, mas surpreendi-me a perguntar-lhe com


aparente desprendimento:

— Viveu sempre na Itália?


— Exato. O A mbrose não lhe disse? A família de minha mãe era de
Roma, e o meu pai, A lexander Coryn, tinha dificuldade em criar
raízes num lugar. N ão suportava a I nglaterra, e creio que não se
dava muito bem com os seus familiares da Cornualha.

Preferia a vida em Roma, e ele e a minha mãe pareciam feitos um


para o outro. Mas levavam uma existência precária, sempre com
dificuldades materiais. Eu suportava-a em criança, mas à medida
que crescia a realidade tornou-se-me insustentável.

— Já não vivem?

— N ão. O meu pai morreu quando eu tinha dezesseis anos. A


minha mãe e eu vivemos sós durante cinco anos. Até que casei com
Cosimo S angalle i. E foram cinco anos terríveis, a saltitar de cidade
para cidade, nem sempre com uma ideia concreta de onde viria a
refeição seguinte. A minha juventude não foi um mar de rosas,
Philip.

D omingo passado, quando jantávamos juntos, não pude deixar de


pensar como fora diferente da de Louise.

Por conseguinte, casara aos vinte e um anos. A mesma idade de


Louise atualmente. Especulei mentalmente em como teria vivido
com a mãe até que conhecera S angalle i. Talvez dessem ambas
lições de italiano, como agora Raquel se prontificara a fazer.

— A minha mãe era muito bonita, diferente de mim, exceto na cor


da pele. A lta, quase corpulenta. E, à semelhança de grande parte
das mulheres do seu tipo, tornou-se subitamente desleixada, perdeu
a formosura e engordou. Congratulei-me por o meu pai já não viver
para assistir à metamorfose e a muitas das coisas que ela, e eu,
diga-se de passagem, fez.

Embora se exprimisse com naturalidade, sem azedume, eu refletia


que, no fundo, a conhecia muito pouco e mal. Chamara menina
protegida ou algo do gênero a Louise, o que cor respondia à
verdade, e acudiu-me subitamente a ideia de que se me podia
aplicar o mesmo. Com vinte e quatro anos, à parte os que passara
em Harrow e O xford, a única coisa do mundo que sabia limitava-se
à propriedade que me circundava.

Q uando uma pessoa como a minha prima Raquel se transferia de


um lugar para outro, trocava um lar por um segundo e depois por
um terceiro, casava e a seguir pela segunda vez, como se sentiria?
Fecharia o passado atrás de si como uma porta e não voltaria a
pensar nele ou seria assolada por recordações constantes?

— Ele era muito mais velho que você? — aventurei-me a perguntar.

— O Cosimo? A penas um ano. Foi apresentado a minha mãe em


Florença, pois ela sempre desejara conhecer os S angalle i. Ele
levou um ano a decidir-se entre as duas, até que ela perdeu a
beleza, coitada, e, simultaneamente, o interesse dele. Mas suponho
que o Ambrose lhe descreveu tudo por carta. A história não é das
mais agradáveis.

Estive quase a replicar: “Ele mostrou-se mais reservado do que


você supõe. S e havia alguma coisa que o magoava ou chocava,
fingia que não existia, que não acontecera.

N unca me falou da sua vida antes de casarem, à exceção de que S


angalle i perdeu a vida num duelo." A o invés, não aludi a um único
desses pormenores. E cheguei repentinamente à conclusão de que
não queria inteirar-me de nada referente ao primeiro marido, à mãe
e à vida em Florença. Desejava fechar a porta a tudo aquilo. E
trancá-la.

— Sim, ele escreveu-me a mencionar tudo isso.

Suspirou e ajeitou a almofada a que apoiava a cabeça.

— Parece que foi há muito tempo. A jovem que suportou aqueles


anos era outra pessoa. A guentei quase dez anos de vida em
comum com Cosimo S angalle i. N ão quereria voltar à juventude,
ainda que me oferecessem o mundo. Mas é claro que a minha
posição pode estar influenciada por preconceitos.

— Fala como se tivesse noventa e nove anos.

— Para uma mulher, quase os tenho. Já cumpri trinta e cinco.

Olhou-me, com um leve sorriso.

— Julgava-a mais velha.

— A ceito como um cumprimento aquilo que a maioria das mulheres


encararia como um insulto. Obrigada, Philip.

A ntes que eu pudesse dizer alguma coisa, inquiriu: — Q ue


continha realmente o pedaço de papel que queimou esta manhã?

A brusquidão do ataque apanhou-me desprevenido. O lhei-a sem


conseguir proferir palavra e engoli em seco.

— Qual papel? — acabei por replicar.

— S abe perfeitamente ao que me refiro. O que tinha sido escrito


pelo A mbrose e você queimou para que eu não o lesse.

D ecidi que meia-verdade era preferível a uma mentira. Embora


sentisse o calor acudir-me às faces, enfrentei-lhe o olhar.

— Creio que era parte de uma carta que me escrevera. Mostrava-se


simplesmente preocupado com as despesas. Eram apenas duas ou
três linhas e não me recordo bem das palavras exatas. Queimei-a
porque receei que você ficasse triste se a lesse.

Verifiquei com alívio que a expressão dela perdia parte da tensão. A


s mãos, cujos dedos pousavam nos anéis, baixaram para o regaço.

— S ó isso? Estava tão intrigada... N ão conseguia compreender. —


Fez uma pausa, enquanto eu agradecia aos Céus o fato de ter
aceitado a explicação. — A quilo a que chamava as minhas
extravagâncias constituía sempre motivo de preocupação para o A
mbrose. A dmira-me que não lhe falasse disso mais vezes. A vida
na I tália diferia radicalmente da que conhecera aqui, e nunca
conseguiu aclimatar-se. S ei do fundo do coração que guardava
ressentimento contra a existência que eu tivera de suportar antes de
nos conhecermos. Pagou todas aquelas horríveis dívidas.

N ão me pronunciei, mas enquanto a observava sentia a ansiedade


dissipar-se. A meia-verdade resultara eficiente, e ela agora
exprimia-se quase com desprendimento.

— Era muito generoso nos primeiros meses — prosseguiu. — N ão


imagina o que isso significava para mim, Philip. D ispunha
finalmente de alguém em quem podia confiar e, sobretudo, amar.
Creio que me daria tudo o que lhe pedisse. Foi por isso que, quando
adoeceu... — I nterrompeu-se e o olhar enevoou-se. — Foi por isso
que me custou tanto assistir à transformação que sofreu.

— Quer dizer que deixou de ser generoso?

— N ão, continuou a sê-lo, mas de uma maneira diferente.


Comprava-me coisas, presentes, joias , como se tentasse submeter-
me a um teste. Mas se lhe pedia dinheiro para uma necessidade da
casa, algo de que não podíamos prescindir, recusava-o. O lhava-me
com uma expressão de desconfiança, perguntava para que o queria,
se o destinava a alguém. A cabei por ter de procurar Rainaldi e
solicitar-lhe o suficiente para pagar ao pessoal.

— O Ambrose inteirou-se disso?

— I nteirou-se. N unca simpatizara com o Rainaldi, mas quando


descobriu que eu recorrera a ele foi o fim. Proibiu-me de voltar a
admiti-lo na villa. Custa-me confessar isto, mas tinha de me
ausentar de casa furtivamente, quando ele repousava, para ir pedir-
lhe o dinheiro de que necessitava para a casa. — Gesticulou e
levantou-se. — D eus é testemunha de que não desejava revelar-lhe
isto.
A proximou-se da janela, afastou o cortinado e olhou a chuva com
uma expressão pensativa.

— Por quê?

— Porque queria que o recordasse como era aqui. Há o retrato dele


nesta casa. O

seu A mbrose era aquele. D eixe-o permanecer assim. O s seus


últimos meses foram meus, e não os quero partilhar com ninguém.
Consigo menos do que com qualquer outra pessoa.

E eu não o queria partilhar com ela. D esejava que fechasse todas


aquelas portas pertencentes ao passado, uma a uma.

— S abe o que aconteceu? — persistiu, virando-se da janela e


fitando-me. - Fizemos mal em abrir aqueles baús. D evíamos tê-los
deixado como estavam, sem tocar nos objetos que lhe pertenceram.
Pressenti-o no instante em que abrimos o primeiro e vi o roupão e
os chinelos. Libertamos algo que até então não se encontrava
conosco. Uma espécie de sentimento amargo. — Empalidecera e
entrelaçava os dedos na sua frente. —

N ão me esqueci das cartas que atirou ao lume e arderam. Tentei


não voltar a pensar nelas, mas hoje, desde que abrimos a bagagem,
foi como se as tivesse voltado a ler.

Levantei-me e conservei-me de costas para a chaminé, sem saber o


que lhe dizer, enquanto ela percorria o aposento em cadenciado
vaivém.

— O A mbrose escreveu que eu o vigiava — continuou. — S em


dúvida que o fazia, receosa de que se molestasse de algum modo.
Rainaldi aconselhou-me a recorrer às freiras do convento para me
ajudarem, mas recusei, de contrário ele suporia que se destinavam
a espiá-lo. Chegara ao ponto de não confiar em ninguém. Às vezes,
até recusava receber os médicos, apesar de se revelarem pacientes
e compreensivos. D epois, pediu-me que despedisse os
empregados domésticos, um a um, até que só ficou o Giuseppe.
Nesse confiava inteiramente. Dizia que tinha olhos de cão...

I nterrompeu-se e voltou o rosto para o outro lado. Recordei-me do


empregado que me recebera à entrada da villa e do seu desejo de
me poupar sofrimento. Era estranho que A mbrose também
acreditasse naqueles olhos sinceros e fiéis. E eu só vira o homem
uma vez.

— N ão interessa evocar tudo isso agora — declarei. — N ão


adianta nada ao A mbrose e apenas serve para a torturar. Pela parte
que me toca, o que aconteceu entre vocês não me diz respeito.
Pertence tudo ao passado e deve ser esquecido. A villa não era o
lar dele. Nem o seu, Raquel, quando casaram. O seu lar é aqui.

— Às vezes, — murmurou, detendo-se na minha frente, — parece-


se tanto com ele que me assusta. Vejo os seus olhos, com a mesma
expressão, cravados em mim, e é como se não tivesse morrido e
tudo o que suportei reaparecesse para nova provação. N ão
conseguiria aguentar aquele clima de suspeita, dia após dia, noite
após noite.

Enquanto ela falava, eu conjurava uma imagem clara da Villa S


angalle i. Revia o pequeno pátio e o laburno com o aspecto que
decerto apresentaria na primavera, a cadeira em que A mbrose se
sentava e a bengala a seu lado. N otava o silêncio do local, aspirava
o ar úmido, observava a fonte gotejante.

E, pela primeira vez, a mulher que olhava para baixo, da varanda,


não constituía um produto da minha imaginação e era Raquel.
Contemplava A mbrose com a mesma expressão implorativa, de
sofrimento, de súplica. S enti-me de súbito muito velho, assolado
por um novo vigor que não compreendia.

Obedecendo a um impulso, estendi-lhe as mãos.

— Venha cá, Raquel.


Cruzou o aposento e pousou as suas nelas.

— Não existe qualquer clima de suspeita nesta casa — acrescentei.


— Ela pertence-me. A suspeita que uma pessoa acalenta parte com
ela quando morre. A roupa foi toda dividida por embrulhos, que se
guardaram. J á não tem nada de comum conosco.

D oravante, você vai recordar o A mbrose da mesma maneira que


eu. Conservaremos o seu velho chapéu no cabide do átrio. E a
bengala, com as outras, no respectivo lugar.

Passou a pertencer aqui, Raquel, como ele no passado e eu


atualmente. Fazemos os três parte de tudo isto. Compreende?

Olhou-me em silêncio por um momento, sem retirar as mãos das


minhas.

— Compreendo — sussurrou.

S entia-me curiosamente comovido, como se tudo o que fazia e


dizia tivesse sido planeado para meu uso exclusivo, ao mesmo
tempo que uma voz débil me segredava:

“N unca poderás regressar a este momento. N unca... nunca...,”


Continuamos de mãos unidas, e ela acabou por perguntar:

— Por que é tão bondoso para mim, Philip?

Lembrei-me de que, de manhã, quando chorara, repousara a


cabeça sobre o meu

coração, e eu beijara-lhe o cabelo. A gora, ansiava por que a cena


se repetisse. Mais do que tudo neste mundo. Mas desta vez a minha
prima não vertia lágrimas nem apoiava a cabeça no meu peito.
Limitava-se a permanecer diante de mim, com as minhas mãos
entre as suas.

— N ão sou bondoso para consigo — asseverei. — Pretendo


apenas que se sinta feliz.
D esprendeu as mãos, pegou no castiçal para se recolher ao quarto
e, antes de sair, proferiu:

— Boa noite, Philip, e que D eus o abençoe. Um dia, é possível que


venha a conhecer a felicidade que eu outrora experimentei.

O uvi os seus passos na escada e sentei-me, para fixar os olhos no


lume da biblioteca. A figurava-se-me que, se subsistia alguma
amargura na casa, não provinha dela, nem de A mbrose, mas
consistia numa semente alojada no meu coração, de que nunca lhe
falaria. O velho pecado da inveja que supunha sepultado e
esquecido voltava a achar-se presente. Contudo, agora não invejava
Raquel, mas A mbrose, a pessoa que até então mais amara no
mundo.

Capítulo Décimo Sexto

N ovembro e dezembro passaram com extraordinária rapidez, ou ao


menos assim me pareceu. Usualmente, à medida que os dias se
tornavam mais curtos e as condições meteorológicas se agravavam,
quando havia pouco que fazer no exterior e anoitecia às quatro e
meia da tarde, os serões afiguravam-se-me monótonos. Como
nunca fora grande amante de leituras e professava escassa
inclinação para a vida social, pelo que não ia à caça com vizinhos
nem aceitava convites para jantar, ansiava pelo novo ano, com a
perspectiva de um tempo menos agreste e dias mais longos. E a
primavera chega cedo na área ocidental. Surgem as primeiras flores
ainda antes do primeiro de janeiro.

N o entanto, aquele outono escoou-se sem monotonia. A s árvores


despiram-se, as terras de Barton apresentavam um aspecto
acastanhado e barrento, devido às chuvas, enquanto o vento
soprava com intensidade. Porém, eu não encarava nada daquilo
com acabrunhamento.

Raquel e eu estabelecemos uma rotina que raramente variava e nos


satisfazia.
Q uando o tempo o permitia, ela passava as manhãs com Tamlyn e
os jardineiros, aos quais transmitia instruções sobre a plantação, ou
a observar a construção do caminho empedrado, que exigira o
recurso a mão de obra exterior, enquanto eu percorria a propriedade
para me inteirar das necessidades dos caseiros, ou visitava as
áreas mais distantes onde também possuía terras. Encontrávamo-
nos ao meio-dia e trinta para uma breve refeição, em geral fria.
Como se tratava da hora do almoço do pessoal, nós próprios nos
servíamos.

Era a primeira vez que a via nesse dia, pois costumava tomar o café
da manhã no seu quarto.

Q uando me encontrava no exterior e ouvia o relógio do campanário


bater as doze badaladas, seguidas quase imediatamente da sineta
que convocava o pessoal para almoçar, invadia-me uma excitação
crescente e dir-se-ia que as palpitações do coração se aceleravam.

A quilo a que me dedicava parecia de súbito destituído de


importância, e conduzia o Cigano para casa com impaciência, como
se receasse que o mínimo atraso me obrigasse a comer sem
companhia. A reação não diferia se me encontrava no escritório. A
carta importante, por vezes urgente, era prontamente relegada para
segundo plano e abandonada, em favor da partida imediata para as
imediações da sala de jantar.

Raquel costumava chegar primeiro, para me dar as boas-vindas e


os bons-dias.

A contecia com frequência pousar um galho novo ao lado do meu


talher, que eu colocava

na botoeira da lapela, ou então havia um licor novo para provar,


confeccionado com algumas das suas ervas, de que parecia
conhecer dezenas de receitas. A lgumas semanas depois da sua
vinda, S eecombe segredou-me, um dia, que o cozinheiro a
consultava para receber ordens, razão pela qual o nível da
alimentação se elevara notavelmente.
— A senhora não queria que Mr. A shley soubesse, por recear que
considerasse presunção de sua parte — confidenciou-me o
mordomo.

A chei graça e não disse nada a Raquel, mas às vezes, só para


observar o efeito, comentava:

— N ão sei o que se passa ultimamente na cozinha. O cozinheiro e


respectivos ajudantes estão a tornar-se autênticos chefs franceses.

Ao que ela perguntava, com uma expressão inocente:

— Acha tudo mais satisfatório que dantes?

A gora, já todos a tratavam por "senhora", e eu não me importava. A


o invés, até me agradava e infundia uma espécie de orgulho.

A pós o almoço, a minha prima costumava ir repousar ou, se era


terça ou quinta-feira, eu mandava aparelhar a carruagem e
Wellington levava-a a retribuir visitas. Em algumas ocasiões, se
tinha assuntos a tratar para os mesmos lados, acompanhava-a
durante uma parte do caminho. Ela esmerava-se sempre com o
aspecto geral e escolhia os trajes mais irrepreensíveis, embora
virtualmente todos o fossem.

— D eixo-a entregue aos seus mexericos — observava eu,


maliciosamente, no momento da separação. — Gostava de me
poder transformar numa mosca e pousar a um canto das salas que
visita, para poder ouvir.

— Por que não vem comigo? O convívio só lhe faria bem.

— Nem pensar. Pode contar-me tudo durante o jantar.

Conservava-me na estrada até que a carruagem desaparecia ao


longe, enquanto um lenço assomava à janela, num gesto de
despedida trocista. N ão a voltava a ver até ao jantar, às cinco da
tarde, e as horas intermédias escoavam-se, para mim, com uma
lentidão enervante. N o regresso, entrava em casa pelo lado dos
estábulos, para me certificar de que tudo se encontrava em ordem
naquele setor.

Raquel repousava sempre um pouco antes de se apresentar à


mesa. Por meu turno, eu tomava banho, mudava de roupa e descia
à biblioteca, onde a aguardava.

A minha impaciência acentuava-se, à medida que as cinco horas se


aproximavam, e em regra deixava a porta aberta para lhe ouvir os
passos.

Primeiro, surgiam os sons produzidos pelos cães e a seguir o ruge-


ruge do vestido ao longo dos degraus. Creio que era o momento
que mais apreciava em todo o dia. O

murmúrio do tecido provocava-me um choque de antecipação, uma


tal sensação de expectativa que quase não sabia o que fazer ou
dizer no momento em que ela aparecia à entrada do aposento.

Envolvia-a uma suavidade nova ao clarão das velas que não se


achava presente durante o dia. D ir-se-ia que a claridade matinal e
as primeiras sombras da tarde se empenhavam em lhe realçar todos
os atributos, como se, sem isso, alguns pudessem passar
despercebidos. A gora, havia mais cor nas faces e no cabelo, uma
maior profundeza nos olhos, e todos os seus movimentos,
independentemente da sua finalidade, se revestiam de uma
graciosidade fácil, fascinante.

S eecombe anunciava o jantar e nós transferíamo-nos para a outra


sala, a fim de ocuparmos os lugares habituais — eu à cabeceira da
mesa e ela à minha direita —, e afigurava-se-me que fora sempre
assim e não havia nada de novo na situação, nada de estranho.

A excitação não se atenuou com o rolar das semanas — talvez até


aumentasse —, pelo que me descobria a inventar pretextos para me
conservar nas imediações da casa, durante alguns minutos, e dispor
de uma oportunidade suplementar de a ver.
S e nos cruzávamos, antes de partir para uma das suas visitas ou a
caminho do jardim, sorria-me e exclamava, surpreendida: “Q ue o
traz por cá a estas horas?", o que me obrigava a recorrer à
imaginação para encontrar uma justificação plausível. Q uanto ao
jardim, a minha aversão dos tempos de A mbrose convertera-se em
profundo interesse, e debruçava-me com entusiasmo sobre o
andamento da construção do caminho empedrado e aprovava todas
as sugestões de Raquel na matéria; creio mesmo que, se
propusesse uma réplica do Foro Romano na propriedade, eu não
hesitaria em tomar as providências necessárias para que o
empreendimento se iniciasse com prontidão.

N ão nos reuníamos sempre na biblioteca. Às vezes, ela pedia que a


acompanhasse ao boudoir da tia Phoebe, onde abríamos livros de
jardinagem e estendíamos os projetos dos melhoramentos no chão.
As minhas funções de anfitrião eram-lhe então transferidas, sem
que isso me causasse a mínima contrariedade. Passamos a
prescindir das formalidades. S eecombe não nos interrompia — não
sem tato apreciável, a minha prima convencera-o a dispensar a
solenidade do chá servido num tabuleiro de prata — e ela preparava
tisana para ambos, que afirmava constituir um costume continental,
de efeitos muito mais satisfatórios para a pele e os olhos.

A quelas horas pós-jantar escoavam-se com deplorável rapidez, e


eu acalentava sempre a esperança de que ela se esquecesse de as
perguntar, porém o malfadado relógio do campanário intervinha
invariavelmente para perturbar a paz.

“N ão sabia que era tão tarde", costumava Raquel dizer, levantando-


se e começando a fechar os livros.

Eu compreendia que aquilo era o sinal para as despedidas.

O próprio ardil de permanecer junto da porta em derradeira troca de


palavras resultava inútil. Tinham badalado as dez horas e eu devia
retirar-me. Por vezes, estendia-me a mão para que a beijasse,
enquanto noutros casos me oferecia a face. N a maioria das
ocasiões, todavia, dava-me uma palmada no ombro, como faria a
um cachorro de estimação.

N ão voltou a acercar-se de mim ou segurar-me o rosto entre as


mãos, como fizera naquela noite em que se encontrava deitada. Eu
não procurava nem acalentava a esperança de que isso se
repetisse, mas quando me despedia, atravessava o corredor em
direção ao meu quarto, subia os estores, contemplava o jardim
silencioso e ouvia o murmúrio distante da rebentação do mar na
baía aos pés do bosque, sentia-me singularmente só, como uma
criança no final de um dia feriado.

A tarde, que se desenrolara paulatinamente, hora após hora, em


ansiedade febril, terminara. D ir-se-ia que passaria uma eternidade
até que voltasse. E tanto a minha mente como o corpo não se
achavam preparados para repousar. O utrora, antes de Raquel
surgir, eu costumava dormitar diante do lume, no inverno, após o
jantar, e depois, espreguiçando-me e bocejando, recolhia-me ao
quarto, aliviado por me afundar na cama e dormir até as sete da
manhã. A gora, era o inverso. A petecia-me caminhar toda a noite.

O u conversar até o romper da alva. O primeiro caso resultaria


ridículo e o segundo impossível.

Por conseguinte, refestelava-me numa cadeira junto da janela


aberta e fumava e olhava o jardim. Por vezes, eram duas horas da
madrugada antes que me deitasse, sem que tivesse feito outra coisa
além de meditar em nada de concreto e desperdiçar o período de
silêncio.

Em dezembro, formaram-se as primeiras geadas com a lua cheia, e


as minhas noites de vigília adquiriram uma qualidade mais fácil de
suportar. Continham uma espécie de beleza, fria e límpida, que me
envolvia o coração e obrigava a arregalar os olhos, maravilhado. O
bservado da minha janela, o extenso relvado mergulhava no prado e
este prosseguia até ao mar, tudo embranquecido pela geada e pelo
luar. A s árvores circundantes apresentavam-se negras, imóveis e
silenciosas. D e vez em quando, assomava um coelho, que
mordiscava a relva e regressava à toca, e, de repente, ouvi o som
inconfundível de uma raposa, que precedeu a aparição de um corpo
peludo e alongado. Mais tarde, tornei a detectar o grito, embora já
longe.

Perguntei-me se Raquel estaria a dormir no quarto azul ou, como


diz, deixava a janela aberta. O relógio que me mandara para a cama
às dez badalou as duas da madrugada, e refleti que me rodeava
uma riqueza de pormenores belos que podíamos ter partilhado.

A s pessoas que não importavam podiam aceitar o mundo


monótono. N o entanto, aquilo na minha frente não era o mundo,
mas encanto, e todo meu. O ra, não o desejava só para mim.

À semelhança de um cata-vento, eu oscilava entre fases de


exultação e excitação e um nível mais baixo por vezes de apatia e
depressão, quando, ao recordar-me da sua

promessa de se conservar em minha casa apenas durante um breve


período, especulei sobre quanto tempo mais seria. S e, por
exemplo, a seguir ao N atal, se viraria para mim e anunciaria: “Bem,
Philip, na próxima semana sigo para Londres.”

A fase de mau tempo pusera termo aos trabalhos no jardim, e pouco


mais se conseguiria fazer até a primavera. O terraço poderia ser
terminado. Porém, graças ao plano, o pessoal estaria em condições
de continuar sem a assistência de Raquel. A ssim, qualquer dia ela
decidiria partir e eu não disporia de um pretexto para retê-la.

O utrora, quando se encontrava em casa, A mbrose oferecia um


jantar aos caseiros na véspera do N atal. Eu interrompera o hábito,
nos últimos invernos da sua ausência, pelo que, quando regressava
das viagens, promovia a refeição em meados do verão.

Agora, eu decidira reatá-lo, ainda que fosse apenas porque Raquel


estaria presente.
N a minha infância, a ocasião constituíra o ponto alto do meu N atal.
O s homens costumavam trazer um abeto de dimensões apreciáveis
com cerca de uma semana de antecedência e colocá-lo na sala
longa por cima da cocheira, onde o jantar se celebraria, e eu devia
ignorar a sua existência. Mas quando não havia ninguém nas
proximidades, esgueirava-me até lá para admirá-lo. S ó comecei a
ajudar a decorá-lo nas minhas primeiras férias de N atal de Harrow.
A promoção foi espetacular e nunca me sentira tão orgulhoso. Q
uando garoto, sentara-me ao lado de A mbrose, à cabeceira da
mesa, todavia a alteração da minha posição valeu-me o lugar de
honra de uma mesa separada.

A gora, dei mais uma vez ordem aos lenhadores para abater uma
árvore satisfatória e acompanhei-os para escolhê-la.

Entretanto, Raquel mostrava-se encantada com os preparativos. N


enhuma outra celebração lhe poderia agradar mais. Mantinha
contato permanente com S eecombe e o cozinheiro, visitava a copa
com regularidade e até mandou chamar duas jovens das terras de
Barton para se dedicarem aos trabalhos de pastelaria, sob as suas
vistas, bem entendido. I mperava a excitação, e o mistério, diga-se
de passagem, pois eu insistira em que não visse a árvore e, em
contrapartida, ela decretou que eu só saberia em que consistiria a
ementa quando me sentasse à mesa.

Chegavam encomendas para ela, que eram despachadas para os


seus aposentos.

Q uando eu batia à porta do boudoir, ouvia o ranger de papel e, uma


eternidade mais tarde, segundo me parecia, mandava-me entrar.
Encontrava-a ajoelhada no chão, de olhos brilhantes e faces
coradas, com uma cobertura estendida sobre vários objetos
dispersos no carpete, e recomendava-me que não olhasse.

Eu regressava à infância, à velha febre de, em camisa de dormir,


assomar, em bicos dos pés, ao topo da escada, para escutar o
murmúrio de vozes em baixo e A mbrose surgir repentinamente da
biblioteca e rir-se de mim. “Volta para a cama, mariola, ou levas um
par de açoites!”

Havia uma coisa que me provocava particular ansiedade. Q ue


ofereceria a Raquel?

Passei um dia em Truro, de visita a livrarias em busca de um livro


sobre jardinagem, mas não encontrei nada de interessante. D e
resto, as obras que ela trouxera da I tália eram melhores do que
qualquer que eu pudesse encontrar. A lém do mais, não fazia a
menor ideia do gênero de presente que poderia agradar a uma
mulher. O meu padrinho costumava comprar tecido para um vestido,
quando oferecia algo a Louise, porém Raquel só trajava de luto.
Recordei-me de uma ocasião em que a filha de Kendall se mostrara
encantada com um medalhão que ele comprara em Londres. D e
súbito, acudiu-me a solução.

D evia haver alguma joia valiosa entre as pertencentes à família


suscetível de agradar à minha prima, as quais eram guardadas num
cofre do banco. Eu não fazia a menor ideia da sua natureza.
Lembrava-me apenas vagamente de, uma ocasião, ter
acompanhado A mbrose numa visita ao estabelecimento, onde me
mostrara um colar e explicara, sorrindo, que pertencera à nossa avó
e a minha mãe o usara no dia do casamento, mas só nessa ocasião,
como um empréstimo, pois o meu pai não se situava na linha direta
de sucessão e, num futuro distante, se me comportasse
devidamente, ele permitiria que o oferecesse a minha mulher. A
gora, como eu tinha plena consciência, tudo o que se encontrava no
banco pertencia-me. Ou pertenceria, dentro de três meses.

É claro que o meu padrinho saberia que joias se achavam no cofre,


mas deslocara-se a Exeter em serviço e só regressaria na véspera
do N atal, para cujo jantar ele e Louise estavam convidados. Decidi,
por conseguinte, visitar o banco e pedir para as ver.

Mr. Couch recebeu-me com a habitual cortesia no seu gabinete


sobranceiro ao porto e escutou atentamente a minha pretensão.
— Suponho que Mr. Kendall não terá nada a objetar? — perguntou
por fim.

— Decerto que não — repliquei com impaciência. — Isso


subentende-se.

O que não correspondia à verdade, mas aos vinte e quatro anos, a


poucos meses dos vinte e cinco, pedir autorização ao meu padrinho
para uma coisa tão insignificante afigurava-se-me absurdo. E
irritava-me.

Mr. Couch mandou buscar as joias, que se encontravam em caixas


seladas. Ele quebrou o selo e, depois de estender um pano no
tampo da secretária, pousou-as nele, uma a uma.

Eu não imaginara que se tratava de uma coleção tão valiosa. Havia


anéis, pulseiras, brincos, medalhões, alguns pertencentes a
conjuntos. N o entanto, enquanto os contemplava, sem me atrever a
tocar-lhes, recordei-me, com desapontamento, que Raquel estava
de luto e não usava joias de cor. S e lhe oferecesse, por exemplo, o
conjunto de pulseira, medalhão e anel de safiras, serviria apenas
para o guardar numa gaveta.

Finalmente, Mr. Couch abriu a última caixa e extraiu dela um colar


de pérolas de quatro voltas com um único diamante no fecho, que
reconheci imediatamente. Tratava-se do que Ambrose me mostrara.

— Gosto dele — declarei. — É a melhor peça de toda a coleção.


Lembro-me de o meu primo Ambrose mostrá-lo.

— A s nossas opiniões não coincidem. Eu inclinar-me-ia antes para


os rubis. N o entanto, o colar de pérolas reveste-se de
características especiais. A sua avó, Mrs.

Ambrose Ashley, usou-o na Corte de Saint James. Depois, a sua tia,


Mrs. Philip, ofereceu-o, quando os bens passaram para as mãos do
seu tio. Vários membros da família o usaram no dia de casamento,
entre os quais a sua própria mãe. J ulgo mesmo que foi a última. O
seu primo A mbrose nunca permitiu que abandonasse o condado,
quando se realizavam enlaces noutro lugar. — Mr. Couch pegou
nele e aproximou-o da janela, para que a claridade do dia incidisse
nas pérolas imaculadas. — N a verdade, é belo. E há vinte e cinco
anos que ninguém o usa. Estive presente no casamento de sua
mãe. Era uma mulher linda e o colar assentava-lhe
maravilhosamente.

Estendi a mão e peguei nele para contemplá-lo.

— Quero levá-lo — anunciei, e depositei-o na caixa.

O meu interlocutor hesitou.

— N ão sei se será uma decisão prudente, Mr. A shley. S e se


perdesse ou extraviasse...

— Não se perderá nem extraviará — asseverei secamente.

Não pareceu convencido, e tratei de me retirar sem demora, antes


que lhe acudisse algum argumento de peso para me dissuadir.

— S e está preocupado com o que o meu tutor possa dizer,


tranquilize-se —

acrescentei. — Explicar-lhe-ei tudo quando regressar de Exeter.

— O xalá que sim, embora eu preferisse que estivesse presente. É


claro que em abril, quando tomar legalmente posse da herança, não
haverá inconveniente, mesmo que leve toda a coleção e lhe dê o
destino que entender, embora eu não aconselhasse semelhante
decisão.

D espedi-me dele, desejei-lhe um bom N atal e segui para casa,


particularmente satisfeito comigo próprio. N ão encontraria melhor
presente para Raquel, mesmo que vasculhasse todo o país. A s
pérolas eram brancas, graças a D eus. E estabelecia uma espécie
de elo o fato de a minha mãe ter sido a última pessoa a usá-las,
como não deixaria de salientar à minha prima. A gora, podia encarar
a perspectiva do N atal com toda a serenidade.

Faltavam dois dias. Fazia bom tempo, a geada matinal não era forte
e tudo, parecia prometer ausência de chuva para a noite do jantar. À
medida que a data se aproximava, o pessoal mostrava-se excitado,
e na manhã da véspera do N atal, pedi a S eecombe que me
ajudasse a decorar a árvore com os rapazes.

O mordomo assumiu as funções de mestre de cerimônias.


Conservava-se um pouco afastado de nós, a fim de observar melhor
o conjunto, e transmitia instruções se

algum pormenor não lhe parecia totalmente satisfatório.

Por fim, declarou, com uma expressão solene:

— Creio que atingimos a perfeição, Mr. Philip.

O início do jantar estava marcado para as cinco da tarde.

O s Kendall e os Pascoe seriam os únicos transportados em


carruagens. O s restantes viriam de breque ou coche ou mesmo a
pé, os que viviam mais perto. Eu inscrevera os respectivos nomes
em retângulos de papel, que colocara na mesa para indicar os
lugares. Q uem tivesse dificuldade em ler, ou não soubesse,
recorreria a outros convivas mais esclarecidos nesse particular.
Havia três mesas. Eu ocuparia a cabeceira de uma, com Raquel na
outra extremidade. O lugar de honra da segunda competiria a Billy
Rowe, das terras de Barton, e o da terceira a Peter Johns, de
Coombe.

S egundo o costume vigente, reuniam-se todos na sala longa, pouco


depois das cinco, e em seguida nós fazíamos a nossa aparição. N o
final do jantar, A mbrose e eu distribuíamos os presentes da árvore,
sempre dinheiro para os homens e xales para as mulheres e
embalagens com comida para todos. O s presentes nunca variavam.
A mínima alteração na rotina teria chocado toda a gente. N aquele N
atal, porém, eu pedira a Raquel que me ajudasse a proceder à
distribuição.

A ntes de me vestir para o jantar, eu mandara levar-lhe ao quarto o


colar de pérolas. Mantivera-o no estojo, mas juntara-lhe um breve
bilhete:

“A minha mãe foi a última a usá-lo. A gora, pertence-lhe, Raquel. Q


uero que o ponha esta noite, e sempre.

Philip.”

O s Kendall e os Pascoe não nos procurariam na residência, pois,


em obediência à tradição, seguiriam diretamente para a sala onde o
jantar se realizaria e conversariam com os caseiros, como medida
preliminar para dissipar algum eventual constrangimento.

O pessoal doméstico também se encontraria lá.

Por fim, desci ao piso térreo e aguardei na sala de estar.

Percorria-me um certo nervosismo, porque nunca tinha dado um


presente a uma mulher. Podia acontecer tratar-se de uma infracção
à etiqueta, que só permitia oferecer flores, livros ou quadros. E se se
irritasse, como acontecera com a atribuição da mesada, e
encarasse o meu gesto como um insulto? Era uma hipótese
alarmante, e os minutos que se escoavam uma tortura crescente.

D e repente, ouvi os seus passos na escada. D esta vez, os cães


não a precediam, pois haviam sido encerrados no canil. A
proximava-se com lentidão, o ruge-ruge familiar cada vez mais
perto.

A porta estava aberta e ela entrou e deteve-se diante de mim.


Trajava de negro, como eu previra, mas o vestido era novo. O s
ombros achavam-se expostos. O cabelo encontrava-se puxado mais
para cima do que habitualmente, com as orelhas descobertas.
Rodeava-lhe o pescoço o colar de pérolas, única joia que usava,
num contraste peculiar com a pele bronzeada.

Eu nunca a vira tão radiosa e, aparentemente, feliz. A final, Louise e


os Pascoe tinham razão. A minha prima era bonita.

Conservou-se imóvel por um momento, a observar-me, até que me


estendeu as mãos e proferiu: “Philip.” A cerquei-me dela. Parei na
sua frente. Colocou os braços à minha volta e puxou-me para si.
Havia lágrimas nos seus olhos, mas naquela noite não me
provocavam preocupação. Ergueu as mãos para a minha nuca e
pousou os dedos no cabelo. Por último, beijou-me. Não como nas
ocasiões anteriores.

E, enquanto a abraçava, eu refletia: "N ão foi com saudades do lar,


de doença no sangue ou de febre cerebral, mas por isto que o
Ambrose morreu."?

Retribuí-lhe o beijo. O relógio do campanário badalou as cinco


horas. Raquel não me disse nada, nem eu a ela. Estendeu-me a
mão e encaminhamo-nos para a sala longa por cima da estrebaria,
cujas janelas estavam brilhantemente iluminadas.

Para imergirmos na atmosfera alegre e nos apresentarmos perante


os rostos ansiosos.

Capítulo Décimo Sétimo

Todos se levantaram quando entramos. A s cadeiras foram


impelidas para trás, houve um arrastar de pés e as vozes
atenuaram-se, enquanto todas as cabeças se voltavam para nos
contemplar. Raquel imobilizou-se à entrada por uns instantes, e
admiti a possibilidade de ela não contar com uma presença tão
numerosa. D e súbito, viu a árvore de N atal na extremidade oposta
da sala e soltou uma exclamação de prazer. A pausa foi quebrada e
brotou um murmúrio de simpatia e satisfação de todas as bocas.
D irigimo-nos para os respectivos lugares às cabeceiras das mesas
e Raquel sentou-se. Eu e os outros imitamo-la e seguiu-se a
atividade usual em semelhantes circunstâncias. Eu tinha à minha
direita Mrs. Billy Rowe, das terras de Barton, trajada
irrepreensivelmente, e notei que Mrs. Johns, de Coombe, à minha
esquerda, a olhava com uma expressão de censura.

O meu desejo de observar o protocolo impedira-me de ter presente


no espírito que se achavam de relações cortadas desde longa data,
devido a qualquer divergência a meu ver banal, embora elas
pensassem sem dúvida de maneira diferente. D ecidi, pois, esforçar-
me por intervir diplomaticamente se se gerasse algum atrito. O setor
da cozinha comportara-se à altura da sua fama, e as variadas e
abundantes iguarias e bebidas contribuíam para o clima jovial e
cordial que não tardou a predominar.

J á começáramos a comer (e a beber), quando me apercebi de que


cada um de nós tinha um pequeno embrulho junto do talher,
endereçado na caligrafia regular e clara de Raquel.

D ir-se-ia que todos nos demos conta ao mesmo tempo e, por um


breve momento, o repasto foi esquecido, enquanto os envoltórios
eram retirados. Mantive-me na expectativa, antes de desembrulhar
o meu, consciente, com uma contração no coração, do que ela
fizera. D era um presente a todos os convidados e incumbira-se
pessoalmente de embrulhá-los e incluir um bilhete. N ada de
espetacular ou particularmente dispendioso, mas, não obstante,
uma lembrança que não podia deixar de agradar aos destinatários.

Estava explicado o misterioso ranger de papel que eu detectara do


outro lado da porta do boudoir.

S ó me concentrei na minha quando os outros voltaram a debruçar-


se sobre os pratos. Retirei o invólucro em cima dos joelhos, abaixo
do nível da mesa, para ser o único a inteirar-me de que se tratava.
Era uma corrente de ouro para o chaveiro, com um disco que
continha as iniciais P.A .R.A . e a data. Conservei-a nas mãos por
uns instantes e acabei por guardá-la furtivamente na algibeira do
colete. A seguir, ergui os olhos para

Raquel e sorri, após o que peguei no copo num gesto significativo,


que se apressou a imitar. Como me sentia feliz, meu Deus!

O jantar prosseguiu, ruidoso e alegre. Em dada altura, alguém a


meio da mesa começou a cantar, em breve secundado por vários
outros. Mrs. J ohns de Coombe confidenciou-me que as minhas
pestanas eram demasiado longas para um homem, e tratei de lhe
reabastecer o copo de cidra.

Por fim, recordando que A mbrose escolhia o momento apropriado


com precisão meticulosa, bati com o cabo da faca no tampo e
estabeleceu-se silêncio.

— O s que desejarem e necessitarem podem ir lá fora e voltar em


seguida. D entro de cinco minutos, Mrs. A shley e eu distribuiremos
os presentes da árvore. Muito obrigado, senhoras e senhores.

O movimento em direção às portas correspondeu ao que eu


calculava. Com um sorriso nos lábios, vi S eecombe incorporar-se
no volumoso grupo. O s que ficaram impeliram as mesas e cadeiras
para junto das paredes. A pós a distribuição dos presentes da
árvore e a nossa retirada, aqueles que ainda se sentissem com
energias suficientes, ignorando o peso no estômago e a leveza na
cabeça, entregar-se-iam à dança, possivelmente até por volta da
meia-noite.

A proximei-me do pequeno grupo que se encontrava em redor da


árvore: o vigário, Mrs. Pascoe, com as três filhas, e um cura, o meu
padrinho e Louise, com excelente aspecto, embora algo pálida. A
pertei-lhes a mão e Mrs. Pascoe, expondo os dentes, proferiu:

— Mr. A shley, excedeu os seus próprios recursos. N unca me senti


tão bem numa reunião desta natureza. As moças estão
positivamente extasiadas.
De fato, pareciam extasiadas, com um único cura a dividir pelas
três.

— A inda bem que lhe agradou — repliquei, e virei-me para Raquel,


que me acompanhara. — Está contente?

— Q ue acha? — O s nossos olhares cruzaram-se e sorriu. — A tal


ponto que contenho as lágrimas de alegria com dificuldade.

Voltei-me para o meu padrinho.

— Feliz Natal. Como encontrou Exeter?

— Fria — grunhiu. — Fria e triste.

A sua atitude quase se podia considerar abrupta. Conservava uma


das mãos atrás das costas e os dedos da outra cofiavam o bigode.
Perguntei-me se algo ocorrido durante o jantar lhe desagradara. A
cidra teria jorrado com abundância excessiva para o seu gosto? D e
repente, notei que fixava o olhar em Raquel e, mais
especificamente, no colar que lhe rodeava o pescoço. Q uando viu
que me apercebera, desviou a vista. Por instantes, senti-me
regressado a Harrow, com o professor a descobrir a cábula debaixo
do compêndio de latim.

N o entanto, acabei por encolher intimamente os ombros. Eu era


Philip A shley, de vinte e quatro anos a quem ninguém do mundo,
nem mesmo o meu padrinho, podia ditar ordens, sobre o
destinatário dos presentes de N atal ou qualquer outra coisa. N ão
me surpreenderia que a intrometida Mrs. Pascoe lhe tivesse
soprado ao ouvido. E daí talvez não, pois decerto desconhecia a
existência do colar. Todavia, Louise dera-se conta, sem margem
para dúvidas. Vi os seus olhos azuis desviarem-se
momentaneamente para Raquel e comprimir os lábios.

O s convivas regressaram ruidosamente à sala. Rindo,


murmurando, acotovelando-se, aproximaram-se da árvore,
enquanto Raquel e eu ocupávamos uma posição estratégica para
proceder à operação seguinte. Em seguida, inclinei-me para os
presentes e, lendo os nomes em voz alta, fui-os passando à minha
prima, que se encarregava de os entregar aos destinatários, no
meio de um vendaval de palavras de agradecimento.

N o final, transcorridos cerca de trinta minutos, retrocederam para


um dos lados da sala e aguardaram aquilo que sabiam que se
seguiria. D eixei escoar-se um momento e, no meu tom mais solene
e cordial, desejei-lhes um feliz N atal. Como um coro bem ensaiado,
replicaram:

— Um bom Natal para si e para Mrs. Ashley.

D epois, Billy Rowe sugeriu com ardor "Três vivas pelo generoso e
simpático par", e as paredes pareceram estremecer por uns
momentos. O bservei que as lágrimas tinham acabado por vencer e
assomar aos olhos de Raquel e meneei a cabeça.

Sorriu, pestanejou para as repelir e estendeu-me a mão.

Reparei que o meu padrinho nos olhava com gravidade e, em novo


regresso aos tempos de estudante, embora a atitude íntima fosse
indesculpável, cogitei: "S e não te agrada, mete-o no...",

Por último, puxei a mão de Raquel para o cavado do meu braço e


encaminhamo-nos para a residência.

A lguém, provavelmente o jovem J ohn, levara bolos secos e uma


garrafa de vinho para a sala de estar, mas estávamos demasiado
cheios para comer ou beber mais.

Verifiquei, todavia, que o cura não resistia à tentação e se servia de


um dos primeiros.

Depois de todos instalados, Mrs. Pascoe, decerto vinda ao mundo


para não permitir que a harmonia perdurasse por muito tempo,
virou-se para Raquel e disse:
— Perdoe-me, Mrs. A shley, mas não posso resistir a emitir um
comentário. Q ue belo colar de pérolas! Não tive olhos para outra
coisa desde que cheguei.

A minha prima sorriu e pousou os dedos nas pérolas.

— Sim, orgulha qualquer mulher que o use.

— E com forte razão — interveio o meu padrinho. — Vale uma


pequena fortuna.

Creio que somente Raquel e eu nos apercebemos do seu tom de


voz. Ela olhou-o, intrigada. Em seguida dirigiu-me uma interrogação
muda e preparava-se para dizer algo,

quando anunciei:

— Creio que as carruagens acabam de chegar.

A seguir, postei-me à entrada do aposento. A própria Mrs. Pascoe,


em geral cega e surda às minhas sugestões de retirada,
compreendeu que a recepção chegara ao fim.

— Vamos, meninas. D evem estar cansadas e aguarda-nos um dia


trabalhoso. A família de um clérigo não conhece um momento de
repouso no dia de Natal.

A companhei a família Pascoe à porta. Por sorte, a minha previsão


resultou acertada, e a carruagem deles aguardava diante da
entrada. O cura aproveitou o transporte e instalou-se entre duas das
jovens. A dos Kendall surgiu quase imediatamente. Regressei à sala
e encontrei-a deserta, à exceção do meu padrinho.

— Onde estão elas? — perguntei.

— A Louise e Mrs. A shley foram lá acima, mas não tardam.


Congratulo-me com esta oportunidade para trocar uma palavrinha
contigo.
Aproximei-me da chaminé e, de costas para o lume, inquiri:

— De que se trata?

Não respondeu imediatamente, algo embaraçado.

— N ão tive ensejo de falar contigo, antes de partir para Exeter, de


contrário abordaria então o assunto — acabou por declarar. — A
verdade é que recebi uma informação do banco a todos os títulos
preocupante.

“O colar”, refleti. No entanto, o assunto só a mim dizia respeito.

— De Mr. Couch, suponho?

— Exato. I nformou-me de que Mrs. A shley já excedeu a sua conta


bancária em várias centenas de libras.

Experimentei uma sensação de frio, apesar da proximidade do lume.


O lhei-o em silêncio por instantes, até que a tensão irrompeu e senti
um ardor desconfortável nas faces.

— Sim? — limitei-me a articular.

— Confesso que não compreendo. Ela não deve ter muitas


despesas aqui. Vive como tua hóspede e as suas necessidades
decerto são poucas. A única explicação que me ocorre é que envia
dinheiro para fora do país.

— É uma mulher muito generosa, como sem dúvida já reparou —


argumentei, esforçando-me por ignorar o palpitar intenso do
coração. — Um presente para cada um de nós não se consegue
com um punhado de xelins.

— Várias centenas de libras chegam e sobejam para comprar uma


carrada deles.

N ão ponho em dúvida a generosidade dela, mas só os presentes


não justificam esses levantamentos avultados.
— D ecidiu gastar dinheiro com a casa. Entre outras coisas, adquiriu
tecido para redecorar o quarto azul. Temos de tomar isso em
consideração.

— Talvez, mas subsiste o fato de que a quantia que estipulamos


conceder-lhe cada trimestre já atingiu o dobro, quase o triplo. Que
vamos decidir para o futuro?

— Duplicar, triplicar, a soma inicial. Tudo indica que não era


suficiente.

— Mas isso é absurdo — insistiu. — Mulher alguma que vivesse


como ela aqui poderia desejar gastar tanto.

— Pode ter dívidas que ignoramos. Credores de Florença que


exigem o pagamento. O assunto não nos diz respeito. Q uero que
aumente o quantitativo e salde o excesso do dinheiro levantado.

O lhou-me com incredulidade e uma ponta de animosidade, mas eu


desejava o assunto resolvido com prontidão. Entretanto, apurava os
ouvidos para tentar detectar passos na escada.

— O utra coisa, Philip. Procedeste mal ao retirar aquele colar do


banco. D eves compreender que faz parte da coleção, da herança, e
não te assiste o direito de dispor dele.

— Pertence-me —retorqui. — Posso dispor do que é meu como me


aprouver.

— Ainda faltam três meses para poderes falar assim.

— O ra! — Gesticulei com desprendimento. — Três meses passam


depressa. N ão acontecerá nada de mal ao colar em poder dela.

— Gostava de estar tão seguro disso como tu.

A implicação subjacente a estas palavras fez-me explodir.

— Que demônio está a insinuar? Receia que o venda?


Por um momento, conservou-se silencioso, enquanto cofiava o
bigode.

— A viagem a Exeter permitiu-me ampliar os meus conhecimentos


acerca da tua prima Raquel.

— Que diabo quer dizer com isso?

Desviou os olhos para a porta e concentrou-se de novo em mim.

— Encontrei casualmente uns velhos amigos, pessoas que não


conheces e viajam muito. Passam o inverno na I tália e na França
há vários anos. S egundo afirmaram, conheceram a tua prima
quando estava casada com o primeiro marido, Sangalletti.

— E daí?

— Eram ambos personagens de fama pouco recomendável. D evido


a extravagâncias desregradas e um modo de vida demasiado livre.
O duelo em que S angalle i perdeu a vida deveu-se à presença de
outro homem. O s meus amigos garantem que quando se inteiraram
do casamento de A mbrose A shley com a condessa S angalle i
ficaram horrorizados e predisseram que lhe esbanjaria a fortuna em
poucos meses. Felizmente, tal não aconteceu. Ele morreu antes que
ela o conseguisse. Lamento, Philip, mas essas informações
deixaram-me desolado.

— N ão o julgava tão crédulo a histórias de viajantes. Q uem são


essas pessoas,

afinal? Como se atrevem a repetir mexericos sobre acontecimentos


de há dez anos?

Aposto que não o fariam diante da Raquel.

— D eixemos isso, de momento. A minha principal preocupação é o


colar. Por muito que me custe e na qualidade de teu tutor ainda
durante três meses, vejo-me obrigado a pedir-te que exijas a sua
devolução. Voltarei a guardá-lo no cofre-forte do banco, juntamente
com o resto das joias.

Comecei a percorrer o aposento em excitado vaivém, quase sem


saber o que fazia.

— A devolução do colar? — bradei. — Como quer que lhe peça uma


coisa dessas?

O fereci-o esta noite, como prenda de N atal. É a última coisa do


mundo que me aventuraria a fazer.

— Nesse caso, eu o farei.

D etestei repentinamente aquele velho obstinado, com a sua


indiferença pelos sentimentos alheios.

— Demônios me levem, se o permitir!

— Então, Philip! — persistiu, com ares paternalistas. — És muito


jovem e impressionável, e compreendo perfeitamente que quisesses
oferecer um objeto de estimação à tua prima. Mas as joias de
família são algo mais do que isso.

— A Raquel tem o direito a elas. D eus sabe que se alguém tem o


direito de as usar é ela.

— S e o A mbrose vivesse, com certeza, mas não agora. Ficarão na


posse de tua esposa, quando casares. E isso é muito diferente.
Esse colar possui uma significação própria, que alguns dos caseiros
mais velhos presentes esta noite no jantar talvez recordem. Um A
shley, quando do casamento, permite à esposa que o use, nesse
dia, como único ornamento. Trata-se de uma superstição de família
com que as más-línguas da região se deliciam. É deplorável e
daquelas coisas de que os mexeriqueiros se alimentam. Estou
convencido de que a tua prima, na sua atual situação, é a última
pessoa a desejar semelhante ocorrência.
— O s convidados desta noite pensarão, se porventura ficaram em
condições de pensar seja o que for, que o colar faz parte dos
objetos pertencentes a Raquel. A figura-se-me totalmente absurdo
que o simples fato de usá-lo suscite mexericos.

— N ão é a mim que compete decidi-lo. D ecerto não tardarei a


inteirar-me, se circularem comentários cáusticos. N o entanto, tenho
de ser firme num aspecto, Philip. O

colar deve regressar ao cofre-forte do banco. A inda não te pertence


e não tinhas o mínimo direito de o retirar de lá sem a minha
autorização. Repito, portanto: se não exigires a sua devolução a
Mrs. Ashley, eu próprio o farei.

N a intensidade da nossa argumentação, não ouvíramos o ruge-


ruge dos vestidos na escada. Agora, era demasiado tarde.

Raquel aparecera à entrada, com Louise a seu lado. Permaneceu


imóvel por um

momento, a cabeça voltada para o meu padrinho, que, postado no


meio da sala, me olhava com intensidade.

— N ão pude deixar de ouvir o que diziam. Peço-lhes que não


fiquem embaraçados por minha causa. Foi muito gentil da parte do
Philip deixar-me usar o colar esta noite, e Mr. Kendall tem todo o
direito de exigir que o devolva.

Levou as mãos ao pescoço, abriu o fecho e fê-lo deslizar para a


palma da mão.

— Por que demônio tem de fazer uma coisa dessas? — protestei.

— Por favor, Philip... — murmurou.

Entregou as pérolas ao meu padrinho, que teve ao menos o decoro


de se mostrar embaraçado, embora igualmente aliviado.

Vi Louise olhar-me com compaixão e desviei a vista.


— O brigado, Mrs. A shley — disse ele. — Como deve
compreender, este colar faz parte da herança que me foi confiada, e
o Philip não tinha o direito de o retirar do banco.

Cometeu um ato estouvado, irrefletido. Mas os jovens são


casmurros.

— Compreendo perfeitamente e sugiro que não se fale mais no


assunto —

redarguiu Raquel. — Quer que procure algo para o envolver?

— N ão, obrigado. O meu lenço é suficiente. — Puxou-o da algibeira


do peito e depositou o colar no meio, com cautela infinita. — E
agora, a Louise e eu vamos despedir-nos. Obrigado pelo excelente
jantar, Philip, e desejo a ambos um feliz Natal.

N ão respondi. Encaminhei-me para o átrio e aguardei junto da


porta, para em seguida ajudar Louise a subir para a carruagem, sem
uma palavra. Ela exerceu pressão na minha mão em sinal de
simpatia, mas achava-me demasiado indignado para a retribuir.

O meu padrinho entrou atrás da filha e partiram.

Regressei à sala de estar em passos lentos e vi que Raquel se


mantinha de pé, com o olhar fixo no lume. O seu pescoço parecia
desnudo sem o colar. Conservei-me com os olhos cravados nela,
silencioso, irritado e exasperado. A o ver-me, estendeu os braços e
aproximei-me. O meu coração achava-se demasiado cheio para que
pudesse dizer algo.

S entia-me como um garoto de dez anos, e não seria necessário


muito para me fazer chorar.

— N ão se preocupe, Philip — murmurou numa inflexão de ternura


que lhe era peculiar. — Orgulho-me de ter usado o colar, ainda que
fosse uma única vez.
— Eu queria que o usasse e guardasse para sempre. D emônios
levem o meu padrinho!

— Não diga essas coisas, por favor.

Estava tão enfurecido e alucinado que me apetecia visitar o banco


naquele instante, forçar o cofre-forte e retirar todas as joias da
herança, para as oferecer à minha prima. Na realidade, desejava
oferecer-lhe o mundo inteiro.

— A noite ficou completamente estragada — articulei. — Todo o


Natal. Tudo.

— É como uma criança que me procurou de mãos vazias --


observou com uma risada.

Recuei um passo e contemplei-a.

— N ão sou uma criança. Faltam três meses para completar vinte e


cinco anos. A minha mãe usou esse colar no dia do casamento, e a
minha tia e a minha avó antes dela.

Não compreende que eu desejava vê-lo também no seu pescoço?

Pousou-me as mãos nos meus ombros e beijou-me.

— E eu estava muito contente e orgulhosa por isso. Q uis que o


usasse porque sabe que, se tivesse casado aqui e não em Florença,
o A mbrose o ofereceria a mim no dia da cerimônia.

Conservei-me calado. Ela dissera, algumas semanas atrás, que eu


carecia de percepção. A gora, eu poderia dizer o mesmo a seu
respeito. Momentos depois, despediu-se e foi-se deitar.

I ntroduzi a mão na algibeira e pousei os dedos na corrente de ouro


que me oferecera. Aquilo ao menos era só meu.

Capitulo Décimo Oitavo


O nosso N atal foi alegre. Raquel providenciou nesse sentido.
Visitamos as herdades da propriedade e distribuímos a roupa que
pertencera a A mbrose. E, sob cada teto, fomos obrigados a comer
uma fatia de torta ou de pudim, pelo que ao fim da tarde estávamos
demasiado cheios para jantar.

D epois de regressarmos a casa, como se eu tivesse retrocedido no


tempo duas dezenas de anos, ela indicou-me que fechasse os olhos
e, rindo, dirigiu-se ao boudoir e reapareceu com uma pequena
árvore, que me depositou nas mãos. O rnamentara-a com uma
imaginação fantástica, numa reprodução em miniatura dos
presentes pendurados, e compreendi que o fizera por mim, para que
esquecesse o drama da véspera de N atal e o fiasco do colar.

Mas eu não podia esquecê-los. N em perdoar. E, a partir daquela


data, estabeleceu-se uma profunda frieza entre mim e o meu
padrinho. Como se não fosse suficientemente deplorável que
tivesse dado ouvidos a mexericos, repisara o pormenor técnico de
que só poderia dispor da herança dentro de três meses. Até lá,
necessitaria de obter a sua autorização em tudo o que se lhe
relacionasse. Q ue interessava que Raquel gastasse mais do que
prevíramos? N ão passávamos dificuldades por causa disso. Tanto
A mbrose como o meu padrinho desconheciam o estilo de vida em
Florença. Mesmo que ela se revelasse um pouco extravagante,
constituiria um crime? Q uanto à sociedade, não a podíamos julgar.

Kendall permanecera toda a existência num clima doméstico mais


ou menos espartano e, como A mbrose nunca se preocupara em
gastar muito consigo próprio, tomara como ponto assente que esse
estado de coisas continuaria depois de a herança passar para as
minhas mãos. N a verdade, as necessidades que me acudiam não
se podiam considerar exorbitantes, mas a atual mesquinhez do meu
padrinho provocava-me uma indignação que encorajava a fazer
vingar o meu ponto de vista e despender o dinheiro que me
pertencia como me aprouvesse.

Ele acusara Raquel de esbanjar a mesada. N esse caso, podia


acusar-me de dispêndios irresponsáveis com a minha casa.
D ecidi que, após o A no N ovo, introduziria melhoramentos na
propriedade que seria minha. Mas não apenas nos jardins.

A pavimentação do caminho prosseguiria, assim como a escavação


e preparação do terreno junto dele, que se converteria no jardim
aquático, copiado da gravura do livro de Raquel.

Estava igualmente resolvido a reparar a casa. A figurava-se-me que


não me podia contentar com as visitas mensais do pedreiro da
propriedade para proceder a pequenos consertos.

Chegara o momento de efetuar obras de maior envergadura,


sobretudo no capítulo da erosão provocada pela intempérie ao longo
dos anos.

A ntes de o mês de janeiro terminar havia cerca de vinte homens a


trabalhar, tanto no exterior como dentro de casa, estes últimos para
se incumbirem da decoração.

Entretanto, divertia-me secreta e antecipadamente com a ideia da


cara que o meu padrinho faria quando lhe apresentasse a fatura.

A proveitei-me da situação para suspender as visitas semanais e


jantar de domingo. A ssim, evitava a presença regular dos Pascoe e
dos Kendall e nunca me avistava com o meu padrinho, o que
constituía parte da minha intenção. A o mesmo tempo, encarreguei
S eecombe de fazer circular o rumor, graças às suas vias de
comunicação habituais, de que Mrs. A shley não podia receber as
visitantes habituais, até nova ordem.

N essa conformidade, vivemos ao estilo dos eremitas, durante


aqueles dias de inverno e princípios da primavera, não sem
particular satisfação. O boudoir da tia Phoebe, como Raquel insistia
em lhe chamar, tornara-se o nosso local de habitação.

A í, no final do dia, ela sentava-se a ler ou a fazer renda e eu


entretinha-me a observá-la. D esde o incidente do colar de pérolas
na véspera do N atal, apoderara-se dela uma nova brandura de
atitude, que, embora profundamente agradável, por vezes se
tornava difícil de suportar.

Creio que Raquel não fazia a menor ideia do efeito em mim. A


quelas mãos, pousadas por um momento nos meus ombros ou a
tocar-me a cabeça numa carícia, quando passava junto da cadeira
em que me sentava, enquanto falava do jardim ou de qualquer
assunto prático, aceleravam-me as palpitações do coração de forma
desordenada.

Observar-lhe os movimentos constituía um prazer infinito, e às


vezes perguntava a mim próprio se se levantava propositadamente
por saber que os meus olhos a acompanhavam com persistência.
Pronunciava o meu nome numa inflexão muito sua quando se me
dirigia. Em criança, sempre desejara que fosse A mbrose em vez de
Philip, porém agora congratulava-me por tal não acontecer.

Q uando os operários instalaram a nova canalização para


escoamento da água da chuva do telhado e afixaram uma placa
com as iniciais P.A . e a data por baixo, a anteceder o leão que
formava o brasão de minha mãe, invadiu-me um orgulho estranho,
como se acabasse de contribuir de algum modo para o futuro.

Raquel, que se encontrava a meu lado, murmurou:

— N unca o imaginei orgulhoso, Philip, até este momento, e ainda o


estimo mais

por isso.

S im, sentia-me orgulhoso... mas a sensação era acompanhada de


um vazio desconfortável.

O s primeiros dias da primavera surgiram envoltos numa mescla de


tormento e prazer. O s melros e os tentilhões cantavam junto das
nossas janelas ao romper do dia e interrompiam-nos o sono, o que
representava tema obrigatório da conversa quando nos
encontrávamos. O s raios solares visitavam-na em primeiro lugar e a
mim mais tarde, quando me vestia. A ntes de abandonar o quarto,
assomava à janela para contemplar o cenário aprazível, que todos
os dias parecia renovado.

Certa manhã, S eecombe procurou-me para comunicar que um dos


caseiros, S am Bate, retido na cama devido a doença de certa
gravidade, pedia que o visitasse, pois tinha algo de importante para
me entregar. A parentemente, tratava-se de uma coisa demasiado
valiosa para confiar a um portador. Por conseguinte, à tarde, segui
pela alameda que desembocava na encruzilhada das quatro
estradas, em direção à casa do enfermo.

Fui encontrá-lo sentado na cama, com um dos casacos que


pertencera a A mbrose, oferecido pelo Natal, em cima da colcha.

— Lamento vê-lo doente, Sam — declarei. — Que tem?

— A mesma tosse persistente que me visita todas as primaveras,


senhor. J á era velha conhecida do meu pai e acabará por me
acompanhar à cova, como aconteceu a ele.

— Não diga disparates, homem. Isso são histórias para assustar


incautos.

— Gostava de me convencer disso — articulou, meneando a


cabeça. — Há males que nos são transmitidos pelos pais. Lembre-
se de Mr. A mbrose e do pai dele. Uma doença cerebral vitimou
ambos. N ão se podem combater os meios empregados pela
Natureza. Vi suceder o mesmo entre o gado.

N ão repliquei, enquanto estranhava que ele estivesse ao corrente


do tipo de enfermidade que vitimara A mbrose, pois eu não o
revelara a ninguém. Era incrível como os rumores se propagavam
na região.

— Tem de dizer a sua filha que procure Mrs. A shley, para que lhe
dê um xarope para a tosse — acabei por recomendar. — Ela possui
larga experiência dessas coisas. Óleo de eucalipto é um dos seus
remédios.

— A ssim farei, Mr. Philip, assim farei, mas primeiro quero resolver o
assunto da carta, razão pela qual lhe pedi que viesse — declarou,
baixando a voz.

— Qual carta?

— N o dia de N atal, o senhor e Mrs. A shley tiveram a gentileza de


nos oferecer roupa que pertencera ao nosso falecido patrão. O ra, o
casaco que vê aqui, em cima da cama, foi-me então entregue. A
chei o presente tão valioso que não tive coragem de o usar e
guardei-o no armário. N o entanto, quando adoeci e fiquei retido em
casa, resolvi vesti-

lo, mais para me proteger do frio que outra coisa, o que aconteceu
ontem. Foi então que encontrei a carta.

Fez uma pausa, introduziu a mão debaixo da almofada e retirou-a


com um pequeno embrulho.

— Creio que não se deram conta dela, porque havia um rasgão no


forro por onde deslizou. Q uando me apercebi disso, peguei num
canivete para alargar a abertura e retirei a carta. A qui a tem,
senhor. É-lhe endereçada pelo punho de Mr. A mbrose.

Reconheci a letra perfeitamente. A descoberta abalou-me, como se


se tratasse de uma mensagem do Além.

Entregou-a e verifiquei que de fato se tratava da caligrafia de A


mbrose e me era dirigida.

— Procedeu como devia — assenti, impressionado. —Obrigado.

— N ão me agradeça, por favor. Fiquei preocupado ao pensar que


esteve aí esquecida durante todos estes meses. D aí a razão pela
qual preferi entregá-la pessoalmente, em vez de enviar a minha filha
à mansão.

Tornei a agradecer-lhe, guardei a carta na algibeira e conversamos


de assuntos banais por uns minutos, até que me retirei. Uma
intuição inexplicável levou-me a pedir-lhe que guardasse segredo da
ocorrência, ao que aquiesceu com prontidão.

N ão regressei a casa imediatamente e decidi efetuar um passeio


pela propriedade, como A mbrose gostava de fazer sempre que se
lhe deparava uma oportunidade. N um ponto isolado raramente
visitado, mandara colocar uma laje de granito explicando, com uma
ponta de gravidade não totalmente isenta de sarcasmo, que o local
lhe serviria de sepultura, preferindo-o ao jazigo de família.

N ão podia adivinhar nem prever que os seus restos mortais não


jazeriam ali nem entre os outros Ashley já falecidos, mas no
cemitério protestante de Florença.

A gora, conservei-me imóvel por uns momentos, consciente de que


tinha de tomar uma decisão penosa. Entretanto, o aspecto inicial do
dia deteriorara-se gradualmente e a temperatura descera, enquanto
nuvens espessas avançavam do horizonte e o vento aumentava de
intensidade.

S entei-me ao lado da laje, tirei a carta da algibeira e pousei-a no


joelho, com o endereço voltado para baixo. N o verso do sobrescrito
havia o lacre em que A mbrose apusera o seu anel.

O conteúdo não era volumoso. A penas uma carta, que eu não


desejava abrir. N ão consigo explicar que força me desencorajava
de o fazer, que instinto covarde me impelia a ocultar a cabeça na
areia como um avestruz. A mbrose morrera e o seu passado fora
sepultado com ele. Eu tinha a minha vida para organizar e seguir.
Existia a possibilidade de a missiva conter novos elementos sobre o
outro assunto que eu resolvera esquecer. S e o meu primo acusara
Raquel de se dedicar a extravagâncias, decerto me atribuiria agora
as mesmas tendências, se vivesse.

Mas, não ler a carta... Como classificaria esse meu gesto?

Se a rasgasse sem me inteirar do conteúdo, condenar-me-ia?

S opesei-a pensativamente. Ler ou não ler... D esejava


ardentemente que a decisão não me competisse. À semelhança de
um garoto que deseja que faça bom tempo no dia do seu
aniversário, eu suplicava a D eus que o sobrescrito não contivesse
nada de preocupante, e acabei por abri-lo. A carta estava datada de
abril do ano anterior, pelo que fora escrita três meses antes da
morte.

"Meu caro rapaz:

S e as minhas cartas têm sido pouco frequentes, isso não significa


que não pense em ti. Tens permanecido na minha mente, nos
últimos meses, talvez mais do que nunca.

Mas uma carta pode extraviar-se ou ser lida por estranhos, e não
quero que tal aconteça.

Por conseguinte, não tenho escrito, ou quando o fiz abordei


assuntos banais. Tenho estado doente, com febre e fortes
enxaquecas. Agora, sinto-me melhor, embora não possa prever por
quanto tempo. A febre pode reaparecer, assim como a dor de
cabeça, e nessas fases não sou responsável pelos meus atos ou
palavras. D isto não subsiste a menor dúvida.

A inda não estou certo da causa. Atravesso um período de extrema


tensão, meu caro rapaz. Escrevi-te no inverno, salvo erro, mas
adoeci pouco depois e não me recordo do que aconteceu à carta.
Posso muito bem tê-la destruído no período de desorientação que
se seguiu.

J ulgo que te falava do defeito dela, que tanta preocupação me


produziu. I gnoro se é ou não hereditário, mas penso que sim, e
estou convencido de que a perda do nosso filho, nos primeiros
meses da gravidez, a afetou de modo irreparável.

Pela parte que me toca, tenho-te a ti e sinto-me consolado. Mas, no


caso da mulher, os efeitos são mais profundos. Ela tinha traçado
planos e projetos, como deves calcular, e, no momento em que o
médico lhe anunciou que não poderia voltar a engravidar, a sua
atitude alterou-se radicalmente. O esbanjamento de dinheiro tornou-
se progressivo e detectei-lhe uma tendência para a dissimulação,
para a mentira, completamente contrária à sua natureza terna de
quando casamos. À medida que os meses se sucediam, apercebi-
me de que cada vez se voltava mais para o homem que mencionei
em cartas anteriores, um tal S ignor Rainaldi, amigo e, segundo
creio, advogado dos S angalle i, a fim de se aconselhar, e não para
mim, seu marido. Creio que a ama desde longa data, ainda em vida
de S angalle i, e agora que o estado de espírito dela se modificou,
não posso afirmar a inexistência de reciprocidade do afeto. Registra-
se uma névoa no seu olhar, uma inflexão na voz, quando o nome
dele é mencionado, que me desperta a mais terrível das suspeitas.

Porventura em virtude de ter sido criada por pais pouco enérgicos e


da vida que se

viu obrigada a conhecer antes e mesmo durante o primeiro


casamento, cada vez me convenço mais de que o seu código de
comportamento difere do nosso. A ssim, os laços do matrimônio
talvez não sejam sagrados. S uspeito (tenho mesmo quase a
certeza) de que ele lhe dá dinheiro. Lamento ver-me forçado a
reconhecer que, atualmente, o vil metal constitui a única via de
acesso ao seu coração.

Há ocasiões em que ela parece no seu estado normal, ao ponto de


quase me convencer de que atravessei um pesadelo e despertei
nos primeiros tempos do nosso casamento. D e repente, porém,
com uma palavra ou um gesto, tudo regressa ao mesmo.

S e saio ao terraço e a encontro a conversar com Rainaldi, calam-se


subitamente, o que me redobra as suspeitas. Certa vez em que
fiquei só com ele, aludiu ao meu testamento, que vira por ocasião do
casamento, e comentou que, se morresse, deixaria a minha mulher
sem recursos. A chava-me ao corrente do fato e já redigira outro em
que corrigia a omissão, o qual assinaria, com as testemunhas
exigidas por lei, se me convencesse de que a tendência para o
dispêndio desregrado de dinheiro era temporária e não
profundamente enraizada.

Q uero salientar, a propósito, que o novo documento lhe atribuiria a


casa e a propriedade apenas enquanto vivesse, pelo que
transitariam para ti por sua morte, com a cláusula de que a
administração de tudo permaneceria nas tuas mãos.

Mantém-se por assinar pela razão que acabo de expor.

Repara que foi Rainaldi quem me fez perguntas sobre o testamento


e chamou a atenção para as omissões.

Ela abstém-se de me falar no assunto. Mas trocarão impressões a


esse respeito?

Que dirão um ao outro quando não estou presente?

Esta questão do testamento ocorreu em março. Reconheço que


estava adoentado, com dores de cabeça excruciantes, e a
abordagem do assunto por parte de Rainaldi pode dever-se ao fato
de supor que eu morreria.

Talvez fosse isso, e não o abordem entre si. N ão disponho de


meios para averiguá-

lo. Surpreendo-a com frequência a olhar-me com uma expressão


estranha.

E quando a abraço, dá a impressão de que tem medo.

Mas de quê ou de quem?


Há dois dias, e esta é a razão principal da presente, sofri novo
acesso febril, como o que me prostrou em março. O ataque é
repentino. A codem-me dores e náuseas, que passam rapidamente
a uma enorme excitação cerebral, a qual me suscita uma tendência
irresistível para a violência, impedindo-me de permanecer de pé. Em
seguida, surge um desejo intolerável de dormir, pelo que caio no
chão ou na cama, consoante o lugar onde me encontro. N ão me
recordo de o meu pai sofrer de nada do gênero. D as dores de
cabeça e certa irritação sem dúvida, mas nunca os outros sintomas.

D iz-me o que tudo isto significa, Philip, meu caro rapaz, única
pessoa no mundo

em quem posso confiar, e, se puderes, procura-me. N ão digas nada


a N ick Kendall. O u a quem quer que seja. E, sobretudo, não
escrevas a responder. Limita-te a vir.

Há uma ideia que me domina e não permite um instante de paz.


Pretenderão envenenar-me?

Ambrose."

Guardei a carta no sobrescrito pensativamente, mas não a rasguei.


Escavei debaixo de uma das extremidades da laje e ocultei-a aí,
dentro do porta-moedas. Em seguida, alisei a terra com a mão e
afastei-me. Entrei em casa pelas traseiras, e S eecombe, ao ouvir-
me, surgiu da sala do pessoal, com uma expressão consternada.

— A inda bem que chegou, senhor. A senhora tem estado a


perguntar por si. O

Don sofreu um acidente e ela está muito preocupada.

— Um acidente? — repeti. — Que aconteceu?

— Caiu-lhe em cima uma pedra enorme do telhado. Como sabe,


senhor, ele tornou-se um pouco duro de ouvido ultimamente e
costuma estender-se ao sol junto da janela da biblioteca. Creio que
foi atingido no dorso e não pode mover-se.

Precipitei-me para a biblioteca. Raquel encontrava-se ajoelhada no


chão, com a cabeça de Don pousada no regaço.

— Mataram-no — murmurou, erguendo os olhos para mim. — Está


moribundo.

Por que tardou tanto? Se se encontrasse em casa, isto não teria


acontecido.

A s suas palavras soavam como um eco de algo há muito esquecido


na minha memória. N o entanto, não conseguia determinar de que
se tratava. S eecombe, que me seguira, deixou-nos sós. A s
lágrimas que inundavam os olhos de minha prima deslizavam pelas
faces.

— O Don era seu amigo de infância. Cresceram juntos. Não suporto


vê-lo morrer.

A joelhei por meu turno junto do animal e descobri que não pensava
na carta enterrada debaixo da laje de granito ou no infortunado D on
moribundo, deitado entre ambos, o corpo rígido e imóvel, mas
apenas numa coisa. Pela primeira vez desde que entrara em minha
casa, a mágoa de Raquel era por mim e não por Ambrose.

Capítulo Décimo Nono

Conservamo-nos junto de D on ao longo do serão. Eu ausentara-me


para jantar, porém Raquel recusara-se a comer.

O cão morreu pouco antes da meia-noite. Levei-o e envolvi-o num


cobertor, para o sepultar na plantação, na manhã seguinte. Q uando
regressei à biblioteca, encontrei-a deserta. Subi ao boudoir e vi-a
sentada diante da chaminé, com o olhar fixo no lume.
— Creio que não sofreu — murmurei, sentando-me a seu lado e
pegando-lhe nas mãos. — Duvido que sentisse dores.

— Q uinze longos anos, o garoto de dez, que abriu o seu bolo de


aniversário —

proferiu a meia voz. — O episódio acudiu-me várias vezes ao


espírito quando mantinha a cabeça dele pousada no regaço.

— Dentro de três semanas, haverá mais um aniversário — lembrei.


— Completarei vinte e cinco anos. Sabe o que acontecerá nesse
dia?

— D evem conceder-se todos os desejos, como a minha mãe


costumava dizer, quando eu era jovem. Que desejará, Philip?

Não respondi imediatamente. Fixava os olhos no lume, como ela.

— S ó o saberei quando a data chegar. — Fiz uma pausa, enquanto


a mão dela, branca e imóvel, com os habituais anéis, se mantinha
pousada na minha. — Q uando atingir os vinte e cinco anos, o meu
padrinho deixará de ter poderes sobre a herança. S erá minha, para
utilizá-la como quiser. Poderei oferecer-lhe o colar de pérolas e as
outras joias guardadas no banco, Raquel.

— N ão as aceitaria. D evem continuar lá, para a sua esposa,


quando casar. S ei que, por enquanto, não tenciona contrair
matrimônio, mas acabará por mudar de ideias.

Eu sabia perfeitamente o que desejava dizer-lhe, mas não me


atrevia. A o invés, inclinei a cabeça para lhe beijar a mão e levantei-
me.

— D eve-se apenas a um erro o fato de elas não serem suas hoje. E


não só as joias, mas tudo. Esta casa, o dinheiro, a propriedade.
Você sabe-o perfeitamente.
Mostrou-se perturbada. D esviou os olhos do lume e reclinou-se na
cadeira. O s dedos começaram a mover-se em torno dos anéis.

— N ão há necessidade de discutir isso — argumentou. — S e


ocorreu um erro, já me habituei a ele.

— Talvez, mas eu não.

Postei-me de costas para a chaminé e olhei Raquel com firmeza. D


escobrira o que podia fazer e ninguém conseguiria impedir-me.

— Q ue quer dizer com isso? — perguntou, ainda com a expressão


perturbada no olhar.

— Não interessa, de momento. Saberá dentro de três semanas.

— Daqui a três semanas, após o seu aniversário, partirei.

Acabava de pronunciar as palavras que eu esperava ouvir.

N o entanto, agora que se me formara um plano no espírito,


poderiam carecer de importância.

— Por quê?

—Já cá estou há demasiado tempo.

—D iga-me uma coisa — solicitei. — S e o A mbrose tivesse feito


um testamento em que lhe deixava a propriedade e bens durante a
sua vida, com a cláusula de que eu os administraria em seu nome,
que faria?

Os olhos voltaram a fixar-se no lume.

— Que faria? Não compreendo.

— Viveria aqui? Expulsar-me-ia?


— Eu, expulsá-lo de sua própria casa? Como é possível que me
faça uma pergunta dessas, Philip?

— N esse caso, ficaria? Viveria nesta casa e, de certo modo,


empregar-me-ia?

Continuaríamos debaixo do mesmo teto, como agora?

— S uponho que sim. Confesso que nunca pensei nisso. A situação


seria, porém, diferente. Não é possível estabelecer uma
comparação.

— Diferente em que sentido?

— Como lhe posso explicar? — Gesticulou com as mãos. — N ão


vê que a minha posição é, mesmo assim, insustentável, devido à
minha condição de mulher? O seu padrinho seria o primeiro a
concordar comigo. Embora não se pronunciasse, estou certa de que
reconhece que chegou a altura de eu partir. Tudo se modificaria se a
casa fosse minha e você, no sentido que refere, meu empregado.
Eu como Mrs. A shley e você o meu herdeiro. A final, é Philip A
shley e eu uma mera parente dependente da sua bondade.

Existe um oceano de diferença entre as duas situações.

— Exatamente.

— Então, não falemos mais no assunto.

— Continuaremos a falar, porque se reveste de suprema


importância. Q ue aconteceu ao testamento?

— Qual testamento?

— O que o A mbrose redigiu e não chegou a assinar, em que lhe


deixava a propriedade e bens.

Notei que lhe perpassava pelos olhos uma névoa de ansiedade.


— Como sabe que ele existe? Eu nunca toquei no assunto.

Refleti que uma mentira serviria de desculpa e apressei-me a


proferi-la.

— S empre supus que haveria um testamento, embora sem


assinatura e, portanto, sem validade legal. Vou mesmo mais longe e
admito que o tem cá, entre as suas coisas.

Tratava-se de um disparo ao acaso, mas acertou no alvo.

O s seus olhos desviaram-se instintivamente, por um instante fugaz,


para a escrivaninha ao canto e voltaram a pousar em mim.

— Que pretende obrigar-me a dizer?

— Apenas a confirmação da sua existência.

Hesitou e acabou por encolher os ombros.

— Pois bem, existe, mas não altera nada. Não chegou a ser
assinado.

— Posso vê-lo?

— Para quê?

— Por uma razão de natureza pessoal. Julgo que pode confiar em


mim.

Tornou a olhar-me, agora mais demoradamente. A chava-se


perturbada, sem margem para dúvidas, e, segundo me pareceu,
apreensiva. Por fim, levantou-se, encaminhou-se para a
escrivaninha e, hesitante, olhou-me mais uma vez.

— A que propósito veio isto, assim de repente? — perguntou. — Por


que não podemos deixar o passado em paz? Prometeu-me que
assim seria, naquele dia, na biblioteca.
— E você prometeu que ficaria — contrapus.

Mostrar-me ou não, a escolha era dela. Pensei na que eu fizera,


aquela tarde, junto da laje de granito. D ecidira ler a carta,
indiferente às consequências. A gora, era a sua vez de tomar uma
decisão.

Puxou de uma pequena chave a abriu uma gaveta da escrivaninha,


da qual extraiu uma folha de papel, que me estendeu.

— Leia, se está tão empenhado.

A ceitei o documento e acerquei-me do candelabro. A letra era na


verdade de A mbrose, bem legível e firme, mais do que na carta que
eu lera naquela tarde. Estava datada de novembro do ano anterior,
quando havia sete meses que ele e Raquel tinham casado.
Encimavam-no o título "Últimas vontades e testamento de A mbrose
A shley". O

conteúdo correspondia exatamente ao que era referido na missiva.


A propriedade e bens destinavam-se a Raquel, enquanto vivesse,
após o que passariam ao mais velho dos filhos que eles tivessem, e,
na sua inexistência, seria eu o beneficiado, com a cláusula
específica de que a administração dos mesmos ficaria a meu cargo
até a morte dela.

— Posso copiá-lo? — inquiri.

— Faça o que quiser. — A presentava-se pálida e apática, como se


tudo lhe fosse indiferente. — O assunto pertence ao passado, Philip.
Não adianta repisá-lo agora.

S entei-me à escrivaninha e peguei numa folha de papel e caneta


para reproduzir

os dizeres, enquanto ela se sentava, com uma expressão


meditativa.
Eu sabia que necessitava de obter confirmação de tudo o que A
mbrose me revelava na carta e, conquanto detestasse cada uma
das palavras que tinha de pronunciar, reuni coragem suficiente para
a interrogar. Continuei a escrever persistentemente, embora a cópia
do testamento constituísse mais um pretexto do que outra coisa
para não ter de a olhar.

— Vejo que o A mbrose apôs a data de novembro passado —


observei. — Faz alguma ideia do motivo por que escolheu esse mês
para redigir um novo testamento?

Vocês tinham casado em abril.

A resposta tardou a surgir, e compreendi subitamente o que um


cirurgião devia sentir quando inspecionava uma costura no corpo
que tardava a sarar.

— N ão sei por que o fez em novembro, pois nenhum de nós


pensava na morte nessa altura. Muito pelo contrário. Foi o período
mais feliz dos dezoito meses que vivemos juntos.

— Sim, ele referia-se a isso numa carta — admiti, puxando de nova


folha de papel.

— O A mbrose falou-lhe disso? Mas pedi-lhe que não o fizesse, com


receio de que você não compreendesse e se sentisse, de certo
modo, despeitado, o que, de resto, seria natural, e ele prometeu
guardar segredo.

Exprimia-se em voz átona, sem a mínima emoção. Era possível,


afinal, que quando o cirurgião inspecionasse a costura o paciente
referisse vagamente que não tinha dores.

N a carta enterrada sob a laje, A mbrose dizia: “N o caso da mulher,


os efeitos são mais profundos.”

— E o testamento acabou por não ser assinado — comentei.


— Exato. Ele deixou-o como o vê neste momento.

A cabei de escrever. D obrei o documento e a cópia que acabava de


completar e guardei-os no bolso interior do casaco, onde, naquela
tarde, estivera a carta, antes de a enterrar. Em seguida, aproximei-
me da cadeira, ajoelhei e, rodeando Raquel com os braços, apertei-
a com ternura — não como se fosse uma mulher, mas uma criança.

— Por que foi que o A mbrose não assinou o testamento? —


Mantinha-se imóvel, sem contudo deixar transparecer contrariedade
com o meu gesto. S omente a mão que pousara no meu ombro
acentuou levemente a pressão. — Diga-me, por favor.

A voz que respondeu era débil, distante, um simples murmúrio ao


meu ouvido.

— I gnoro-o, pois não voltamos a abordar o assunto. N o entanto,


penso que, quando se inteirou de que eu não podia ter filhos,
perdeu a confiança em mim. D issipou-se uma espécie de fé,
embora ele nunca tivesse consciência disso.

Tornei a evocar a carta enterrada, que continha aquela mesma


acusação por outras palavras, e perguntei-me como era possível
que duas pessoas que se amavam tivessem um conceito tão errado
uma da outra e acabassem, com uma amargura comum, por se

separar gradualmente. D evia existir algo na natureza do amor entre


um homem e uma mulher que os conduzisse ao tormento e à
suspeita.

— Você foi, pois, infeliz?

— Infeliz? — ecoou. — Que lhe parece? Quase enlouqueci.

I maginei-os sentados no terraço da villa, com a sombra ominosa


entre ambos, originada apenas pelas suas próprias dúvidas e
temores, e afigurava-se-me que as sementes remontavam a um
passado indefinido que nunca conseguiriam determinar. Era
possível que, inconsciente desse rancor, A mbrose acalentasse
suspeitas acerca da vida dela com S angalle i e antes dele,
censurando-a pela existência que não partilhara, e Raquel, com
igual ressentimento, receasse que a perda do amor se devia à
impossibilidade de engravidar. A final, ela compreendera-o muito
pouco. E vice-versa. Eu poderia divulgar o conteúdo da carta, mas
não serviria de nada. A incompreensão estava demasiado
entranhada.

— Foi, portanto, devido a um erro que o testamento ficou por


assinar e esquecido?

— Chame-lhe erro, se quiser. A gora, já não faz diferença. Mas a


atitude dele alterou-se pouco depois, assim como o seu próprio
temperamento. Começaram as dores de cabeça, que quase o
cegavam e conduziram à beira da violência, uma ou duas ocasiões.

Eu perguntava-me até que ponto era a causa daquilo e estava com


medo.

— Não tinha amigos?

— Apenas o Rainaldi, que nunca se inteirou do que eu lhe revelei


esta noite.

Eu compreendia que A mbrose não confiasse naquele rosto duro e


olhos perscrutadores. Em todo o caso, como se explicava que ele, o
marido, se mostrasse tão inseguro de si? Um homem decerto sabia
quando uma mulher o amava. Por outro lado, talvez nem sempre
fosse possível determiná-lo.

— Quando o Ambrose adoeceu, você não voltou a convidar o


Rainaldi a visitá-los?

— N ão me atrevia. É difícil, para quem não estava presente,


compreender como o seu primo se modificou, e prefiro não dizer.
Por favor, Philip, não me faça mais perguntas.
— Ele suspeitava de si... de quê?

— De tudo. Infidelidade e coisas piores.

— Que pode haver pior que a infidelidade?

De súbito, levantou-se, encaminhou-se para a porta e abriu-a.

— Nada, nada neste mundo. E agora deixe-me só.

Aproximei-me com lentidão e detive-me na sua frente.

— Desculpe. Não a queria irritar.

— Não estou irritada.

— Foi a última vez que lhe fiz perguntas. Prometo-o solenemente.

— Obrigada — murmurou.

A palidez acentuara-se, juntamente com uma expressão tensa, e a


voz era fria.

— Tinha uma razão para as fazer — acrescentei. — I rá conhecê-la


dentro de três semanas.

— Não exijo uma razão. A única coisa que lhe peço neste momento
é que saia.

N ão me beijou nem estendeu a mão. I nclinei-me numa leve vênia e


afastei-me.

N ão obstante, poucos momentos antes, permitira que ajoelhasse a


seu lado e a cingisse.

Por que mudara de atitude tão bruscamente? S e A mbrose


conhecia mal as mulheres, eu conhecia-as pior. A quela ternura tão
inesperada, que apanhava um homem desprevenido e o elevava
aos píncaros do êxtase e, de repente, sem motivo aparente,
projetava para a posição apagada que ocupara. Q ue espécie de
raciocínio, confuso e indireto, cruzava a mente delas para lhes
enevoar o discernimento? Q ue ondas de impulsos lhes varriam o
ser e arrastavam para a cólera e indiferença, ou então para a
generosidade inesperada?

Nós éramos sem dúvida diferentes.

Com a nossa compreensão embotada, movíamo-nos mais devagar,


enquanto elas, imprevisíveis e instáveis, se deixavam transportar
por ventos de fantasia.

N a manhã seguinte, quando desceu, a sua atitude não diferia da


dos outros dias —

atenciosa e cordial —, sem qualquer alusão à nossa conversa da


véspera. Enterramos D on na plantação, num setor à parte, onde
principiava o caminho das camélias, e construí um pequeno círculo
de pedras em volta da sepultura. N ão falamos do meu décimo
aniversário, em que A mbrose oferecera-o a mim, nem do vigésimo
quinto que se aproximava a passos largos.

Todavia, no dia seguinte, mandei selar Cigano e dirigi-me para


Bodmin, onde procurei um advogado chamado Wilfred Tewin, que
se ocupava de grande parte dos assuntos do condado, mas nunca
dos referentes aos A shley, porque o meu padrinho costumava tratar
com causídicos de S aint Austell. Expliquei-lhe que me levava à sua
presença uma questão de particular urgência e confidencialidade e
desejava que redigisse um documento em termos legais que me
permitisse transferir todos os meus bens e a propriedade para as
mãos da minha prima, Raquel A shley, a partir do dia um de abril,
data em que passariam a pertencer-me.

Mostrei-lhe o testamento que A mbrose não assinara e esclareci que


a ausência do seu nome se devia unicamente à doença súbita que o
acometera, seguida da morte.
I ndiquei que incluísse no meu documento praticamente tudo o que
ele determinara no seu, em especial a parte referente à transmissão
da propriedade e bens. S e eu morresse, passaria tudo para uns
primos afastados que viviam em Kent, mas somente após o
falecimento de Raquel, e nunca antes. Tewin apercebeu-se com
prontidão do que eu desejava e, segundo me pareceu, como não
nutria simpatia digna de menção pelo meu padrinho — principal
motivo por que eu o procurara —, congratulava-se por ver uma
incumbência tão importante nas suas mãos.

— Pretende introduzir alguma cláusula relativa à salvaguarda das


terras? —

perguntou. — D o modo como o rascunho está redigido, Mrs. A


shley poderá vender os hectares que desejar, o que não me parece
prudente se o senhor quer que tudo seja transmitido aos seus
herdeiros.

— S im — assenti pausadamente —, é conveniente figurar um


parágrafo que proíba a venda. O mesmo se aplica à casa,
evidentemente.

— Suponho que há joias e outros bens pessoais... Que decide a


esse respeito?

— Serão dela, para lhes dar o destino que entender.

Leu o rascunho em voz alta e não descortinei a mínima omissão.

— Falta uma coisa — salientou de repente. — N ão há qualquer


cláusula referente à eventualidade de Mrs. Ashley voltar a casar.

— É pouco provável que tal venha a acontecer.

— Mesmo assim, penso que a possibilidade deve ser contemplada.


— E olhou-me na expectativa, com a caneta suspensa sobre o
papel. — A sua prima é ainda relativamente jovem, segundo julgo
saber. N essa conformidade, o fato tem de ser considerado.
Lembrei-me de súbito, numa ocorrência monstruosa, do velho S aint
I ves e dos comentários que Raquel proferira ironicamente.

— N a eventualidade de novo casamento — anunciei


apressadamente —, a propriedade e os bens voltam para a minha
posse. Quero que isto fique bem claro.

— E deseja o documento pronto, na sua forma legal, até ao dia um


de abril?

— Exato. É o meu aniversário. N essa data, passa tudo a ser meu,


sem qualquer exceção. Ninguém poderá apresentar a mínima
objeção.

— Procede com uma generosidade admirável — declarou, sorrindo.


— Vai ceder tudo no momento em que passa a pertencer-lhe.

— N unca me pertenceria se o meu primo A mbrose A shley


assinasse esse testamento.

— D e qualquer modo, duvido que algo do gênero se tenha feito até


hoje. Pelo menos, que eu saiba. D eseja, sem dúvida, que o assunto
não seja ventilado antes dessa data...

— Nem uma palavra. Insisto no maior sigilo.

— Muito bem, Mr. A shley. A gradeço ter-me honrado com a sua


confiança. Estarei sempre à sua disposição para qualquer assunto
legal que deseje.

A ntes de me retirar, prometeu que o documento me seria entregue


a trinta e um de março.

S egui para casa, com uma sensação penosa no coração. A o


mesmo tempo, perguntava-me se o meu padrinho teria um ataque
apoplético quando se inteirasse da novidade. N o fundo, era-me
indiferente. N ão lhe desejava qualquer mal, uma vez liberto
da sua jurisdição, mas reconhecia que invertera a situação quase
com perfeição. Q uanto a Raquel, agora não poderia transferir-se
para Londres e abandonar a propriedade.

O argumento que invocara na noite anterior deixaria de ter validade.


Se objetasse à minha presença na casa, instalar-me-ia num dos
anexos e procurá-la-ia diariamente para receber ordens. A
companharia Wellington, Tamlyn e os outros e aguardaria que me
chamasse, de chapéu na mão. A euforia que me percorria fazia com
que tudo me parecesse belo.

Q uando regressei, após uma digressão pelos campos, a meio da


tarde, avistei uma mala-posta imobilizada à entrada.

Tratava-se de um fato invulgar, pois as pessoas que visitavam


Raquel costumavam utilizar as suas próprias carruagens.

A viatura achava-se coberta de pó, como se acabasse de efetuar


um longo percurso, e não consegui identificá-la, assim como ao
cocheiro. S egui para os estábulos, porém o rapaz que acudiu para
tomar conta do Cigano não se achava mais elucidado do que eu
sobre o visitante ou visitantes, e Wellington ausentara-se.

N ão vi ninguém no átrio, mas quando avançava em silêncio para a


sala de estar ouvi vozes, do outro lado da porta fechada. D ecidi
subir ao meu quarto pela escada de serviço nas traseiras, em vez
de utilizar a principal. Começava a encaminhar-me para lá, quando
a porta da sala se abriu e Raquel, sorridente, saiu para o corredor.
Parecia particularmente bem-disposta. Na realidade, eu não me
recordava de a ver tão eufórica.

— A h, chegou, Philip! — exclamou. — I mporta-se de cumprimentar


este meu visitante, que veio de muito longe expressamente para nos
ver?

Pegou-me no braço e levou-me, não sem relutância de minha parte,


para dentro.
Avistei um homem sentado junto do lume, que ao ver-me se
levantou e aproximou de mão estendida.

— S ei que não me esperava e quero desde já apresentar


desculpas. Em todo o caso, eu tampouco o esperava quando nos
encontramos pela primeira vez.

Era Rainaldi.

Capítulo Vigésimo

N ão sei se deixei transparecer os meus sentimentos com a clareza


que revelavam no meu coração, mas penso que sim, porque Raquel
começou a falar apressadamente, para explicar ao italiano que eu
passava a maior parte do tempo ao ar livre e não tinha hora certa de
regressar.

— O Philip trabalha mais arduamente que o seu pessoal — concluiu


— e conhece cada centímetro quadrado da sua propriedade melhor
do que ninguém.

Conservava a mão no meu braço, como se pretendesse exibir-me


perante o visitante, mais ou menos no estilo de uma professora que
apresenta um aluno pouco comunicativo.

— Permita-me que o felicite pela admirável propriedade que possui


— disse Rainaldi. — N ão me surpreende que a sua prima Raquel
lhe criasse tanto afeto. N unca a tinha visto tão contente. — O s
olhos perscrutadores e inexpressivos desviaram-se para ela e
concentraram-se de novo em mim. — O ar daqui deve ser mais
conducente ao repouso do espírito e do corpo do que o de Florença.

— A minha prima é oriunda da área ocidental do país — repliquei.


— Limitou-se a regressar ao lugar a que pertence.

Sorriu, se se podia falar assim da leve contração das faces, e


dirigiu-se a Raquel.
— Tudo depende do laço de sangue que é mais forte. O seu jovem
parente esquece-se de que a sua mãe era romana. E, diga-se de
passagem, cada vez se parece mais com ela.

— A penas nas feições e não na figura ou caráter — retrucou ela.


Virou-se para mim. — O Rainaldi diz que se instalará em qualquer
estalagem que lhe indicarmos, mas não concordo. Decerto não
existe inconveniente em que fique conosco, não é assim?

Experimentei uma sensação de revolta, mas reconheci que não me


podia opor.

— S em dúvida. Vou transmitir instruções nesse sentido,


imediatamente, e mandarei embora a mala-posta, uma vez que
deixa de necessitar dela.

— Trouxe-me de Exeter — explicou Rainaldi. — Vou pagar ao


cocheiro e dizer-lhe que recorrerei de novo aos seus préstimos
quando regressar a Londres.

— Há muito tempo para decidir isso — declarou Raquel. — Uma vez


que veio, deve ficar conosco alguns dias, para poder ver tudo. A lém
disso, temos muitos assuntos para analisar.

A fastei-me, a fim de providenciar para que preparassem um quarto,


e em seguida subi a escada com lentidão, para me dirigir ao meu,
tomar banho e mudar de roupa para

o jantar.

Da janela, vi Rainaldi surgir à entrada para pagar ao cocheiro, após


o que olhou em volta, como se avaliasse as potencialidades da
propriedade. A cudiu-me a sensação de que, num simples relance,
determinava a quantia que a madeira das árvores poderia
proporcionar, e até o vi examinar as figuras esculpidas na porta.
Raquel reuniu-se-lhe e ouvi-os conversar e rir, antes de voltarem
para dentro.
Estava meio tentado a permanecer no quarto e pedir a J ohn que
me levasse o jantar num tabuleiro. S e eles tinham tanto para dizer
um ao outro, a minha presença só serviria de empecilho. Por outro
lado, dada a minha qualidade de anfitrião, a ausência representaria
uma descortesia. A ssim, tomei banho sem pressa, vesti-me, desci a
escada com relutância e fui encontrar S eecombe e J ohn
atarefados na sala de jantar, que não voltáramos a utilizar desde
que sofrera algumas reparações nas paredes e no teto. Avistei as
melhores pratas em cima da mesa, juntamente com todos os
apetrechos especiais destinados aos hóspedes.

— N ão havia necessidade de todo este aparato — observei ao


mordomo. —

Podíamos ter comido na biblioteca.

—Ordens da senhora—articulou ele com uma ponta de dignidade


melindrada.

Acendi o cachimbo e fui dar uma volta pelas imediações.

O final de tarde primaveril ainda proporcionava luz suficiente e o


crepúsculo só surgiria dentro de uma hora, pelo menos.

N o entanto, as velas já estavam acesas na sala, com as cortinas


ainda não corridas, assim como as do quarto azul, e vi Raquel
mover-se de um lado para o outro diante da janela. Passaríamos o
serão no boudoir, se estivéssemos sós, eu a congratular-me
intimamente com o que conseguira em Bodmin e ela a descrever em
que empregara o dia. A ssim, não haveria nada de similar. Ruído na
sala de estar, animação na de jantar, diálogo entre eles sobre
assuntos que me não diziam respeito e, a sobrepor-se a tudo isso, a
sensação instintiva de repulsa que o homem me produzia, de que a
sua presença não se devia a um mero acaso, mas a um objetivo
bem definido. S aberia Raquel que ele chegara à I nglaterra e a
visitaria? Todo o prazer da minha digressão a Bodmin se dissipara.
Voltei para dentro, acabrunhado e cheio de pressentimentos
tenebrosos. O
italiano achava-se só na sala de estar, de pé próximo do lume.
Trocara o fato da viagem pela indumentária própria para jantar e
examinava o retrato da minha avó numa das paredes.

— Um rosto encantador, de olhos belos e tez irrepreensível —


comentou. —

Pertence a uma família bem-parecida. O retrato em si não possui


valor especial.

— É provável que não — concedi. — O s Lely e os Kneller


encontram-se na escada, se deseja dar-lhes uma olhadela.

— Reparei neles quando descia. O Lely está bem situado, mas o


Kneller não. D evo

acrescentar que este último não revela o seu melhor estilo, mas foi
executado num dos seus momentos mais floridos. Possivelmente
terminado por um discípulo. — Eu mantinha-me calado, à escuta
dos passos de Raquel nos degraus. — Em Florença, pouco antes
de partir, consegui vender um Furini da sua primeira fase para
Raquel, pertencente à coleção S angalle i, agora infelizmente
dispersa. Uma peça extraordinária. Costumava estar pendurado na
parede da escada da villa, onde a luz do dia incidia no ângulo mais
favorável. Suponho que não reparou nele quando esteve lá.

— É natural que não — articulei vagamente.

Raquel surgiu à entrada. Usava o mesmo vestido da véspera de N


atal, mas notei que cobrira os ombros com um xale, com o que me
congratulei. Moveu os olhos de um para o outro, como se quisesse
deduzir das nossas expressões a natureza do diálogo que
mantínhamos.

— Estava a explicar ao seu primo que tive a sorte de vender a


Madonna de Furini

— disse Rainaldi. — Mas foi pena não o poder conservar...


— J á estamos habituados — volveu ela. — Muitos dos tesouros
não puderam ser preservados.

N ão pude deixar de me insurgir intimamente por ouvi-la empregar o


plural em semelhante contexto.

— Conseguiu vender a villa? —perguntei quase bruscamente.

— A inda não — replicou Rainaldi. — N a verdade, é esse, em


parte, o motivo da minha visita. Estamos mais inclinados para a
alugar por um período de três ou quatro anos. S eria mais vantajoso,
e o aluguel não representa um ato tão definitivo como vender.

A sua prima pode querer voltar para Florença. Aliás, foi o seu lar
durante muitos anos.

— Para já, não tenciono regressar — declarou Raquel.

— Talvez, mas veremos.

O s olhos do homem seguiam-na enquanto ela se movia pela sala, e


eu implorava-lhe mentalmente que se sentasse, para que ele não o
pudesse fazer. O fereci-lhe uma cadeira, mas ignorou-a.

— I magine que o Rainaldi se encontrava em Londres há uma


semana e não mandou dizer nada. N unca fiquei tão surpreendida
em toda a vida como no momento em que o S eecombe anunciou
que acabava de chegar. A cho que foi um mauzão em não me
prevenir.

Raquel sorriu-lhe e ele limitou-se a encolher os ombros.

— Pensei que a surpresa da minha aparição repentina lhe daria


maior prazer —

observou. — O imprevisto pode ser agradável ou o inverso,


consoante as circunstâncias.
Recorda-se daquela vez em Roma, quando o Cosimo e eu
aparecemos no momento em que se vestia para uma recepção em
casa dos Castelucci? Ficou visivelmente aborrecida conosco.

— Mas tinha motivo para isso — redarguiu ela com uma risada. — S
e já o esqueceu, não lhe recordarei.

— N ão, não o esqueci. Até me lembro da cor do seu vestido.


Parecia ambarino. O

Benito Castelucci enviara-lhe flores. Vi o bilhete que as


acompanhava, embora o Cosimo não se desse conta.

S eecombe assomou à porta para anunciar o jantar, e Raquel


encabeçou o pequeno cortejo em direção à outra sala, ainda a rir e
evocar ocorrências em Roma com Rainaldi.

Eu nunca me sentira tão melancólico e deslocado. Continuaram a


falar de personalidades e lugares e, de vez em quando, ela
estendia-me a mão por cima da mesa, como a uma criança, e
proferia:

— Tem de nos desculpar, Philip. Há muito tempo que eu não via o


Rainaldi.

Uma ou duas vezes, dialogaram em italiano. Ele dizia-lhe algo, de


súbito procurava o termo que lhe escapava e, com uma vênia na
minha direção, exprimia-se no seu idioma. Raquel respondia com
palavras que me eram estranhas, mais rapidamente do que quando
falávamos inglês, e nessas ocasiões tornava-se mais animada e
também mais dura, de certo modo, com uma energia que não me
agradava totalmente.

A figurava-se-me que não se sentiam no seu meio próprio à minha


mesa e deveriam achar-se antes noutro lugar, em Florença ou
Roma, num ambiente requintado de sociedade. N ão deviam estar
ali, com S eecombe à sua volta em gestos deferentes, porém não
esmerados como os de um nível mais elevado, e um dos cachorros
a circundá-

los com desconfiança. Conservava-me afundado na minha cadeira


e, uma vez por outra, estendia a mão para as nozes e esmagava-as
entre os dedos, para aliviar a tensão.

N o final da refeição, quando saboreávamos vinho do Porto ou


brande, Rainaldi acendeu um charuto e olhou-me com uma
expressão de tolerância, enquanto eu puxava do cachimbo.

— D á-me a impressão de que na I nglaterra todos os homens


fumam cachimbo —

observou. — A ideia consiste em que facilita a digestão, mas ouvi


dizer que deteriora o hálito.

— Como beber brande, que pode deteriorar o discernimento —


retorqui.

— S e nos dá licença, Philip — disse Raquel, levantando-se —, o


Rainaldi e eu precisamos de discutir vários assuntos, além de que
ele trouxe documentos que tenho de assinar. Parece-me preferível
fazê-lo lá em cima, no boudoir. Vai ter conosco mais tarde?

— N ão creio. Tenho umas cartas para escrever, além de que andei


todo o dia por aí e apetece-me ir para a cama cedo. Dou-lhes desde
já as boas-noites.

A bandonou a sala de jantar e ele seguiu-a. I nstantes depois, eu


ouvi-os subir a escada. Continuava sentado, quando John apareceu
para levantar a mesa.

Resolvi então dar uma volta nas proximidades da casa. Vi luz no


boudoir, mas os cortinados estavam corridos. A gora que se
encontravam sós, podiam exprimir-se
livremente em italiano. Raquel devia sentar-se na cadeira baixa
diante do lume e Rainaldi a seu lado. Ponderei se ela aludiria à
nossa conversa da noite precedente e à minha leitura e cópia do
testamento. Q ue lhe aconselharia ele e que documentos trouxera
para assinar? Terminada a parte consagrada aos negócios,
passariam a trocar impressões sobre pessoas e locais que ambos
conheciam? Raquel prepararia tisana para lhe oferecer, como fazia
comigo, e em seguida mover-se-ia pelo aposento, para que Rainaldi
a pudesse contemplar? Especulei acerca da hora a que ele se
despediria e iria para a cama e se ela lhe estenderia a mão. O
italiano permaneceria um momento junto da porta, retardando o
mais possível a separação, como era meu hábito?

Ou, pelo fato de o conhecer bem, ela permitiria que ficasse até mais
tarde?

Percorri a nova passagem empedrada até perto da praia, e quando


o relógio do campanário deu as dez badaladas, recordei que era a
hora a que costumávamos despedir-nos. Passar-se-ia o mesmo
com Rainaldi? Retrocedi até a orla do relvado e fixei o olhar na
janela. A luz do boudoir continuava acesa.

A guardei demorada e pacientemente, sem que a situação se


alterasse. Entretanto, a temperatura baixara e eu tinha as mãos e os
pés frios. Às onze, segundos depois de o relógio voltar a badalar, a
luz apagou-se finalmente, e surgiu a do quarto azul.

Hesitei por um momento e, obedecendo a um impulso, transferi-me


para a área diante da ala ocidental da casa e ergui os olhos para a
janela de Rainaldi. A cudiu-me profundo alívio.

A luz também estava acesa. Lobriguei o leve clarão amarelado


através de uma nesga nos cortinados.

Entrei e subi a escada em direção ao meu quarto. A cabava de


despir o casaco, tirar a gravata e pousá-los no espaldar de uma
cadeira, quando detectei o ruge-ruge do vestido dela no corredor e
em seguida uma leve pancada na porta. A pressei-me a abrir e vi-a
na minha frente, completamente vestida, sem faltar o xale sobre os
ombros.

— Venho dar-lhe as boas-noites — murmurou.

— Obrigado. Desejo-lhe o mesmo.

Baixou os olhos para os meus pés e notou a lama nos sapatos.

— Onde esteve todo este tempo?

— Às voltas por aí.

— Por que não veio ao boudoir, para a tisana habitual?

— Não me apetecia.

— É muito pateta, se me permite que o diga. A o jantar, portou-se


como um colegial merecedor de meia dúzia de chibatadas.

— Lamento.

— S abe perfeitamente que o Rainaldi é um velho amigo. Como


deve compreender, tínhamos muito que conversar.

— É por se tratar de um velho amigo que o deixa permanecer no


boudoir até às onze?

— Já era tão tarde? Confesso que não me apercebi.

— Quanto tempo o teremos entre nós?

— D epende de si, Philip. S e se comportar com correção e o


convidar, talvez fique três dias. Mais não é possível, pois tem de
regressar a Londres.

— Já que me pede que o convide, tenho de o fazer.


— O brigada. — D e repente, a expressão dos olhos suavizou-se e
descortinei a sugestão de um sorriso no canto dos lábios. — Por
que procede assim? Em que pensava quando andava às voltas por
aí?

Eu podia ter respondido centenas de coisas. Q ue Rainaldi não me


merecia a mínima confiança, detestava a sua presença em minha
casa e queria que esta voltasse ao que era anteriormente, apenas
com Raquel a fazer-me companhia. A o invés, sem motivo aparente,
salvo que me repugnava tudo o que fora abordado naquela noite,
inquiri:

— Quem é esse Benito Castelucci que lhe ofereceu flores?

Soltou uma risada e, erguendo os braços, rodeou-me o pescoço.

— Um sujeito idoso, muito gordo, cujo hálito tresanda a charutos... e


eu amo-o demasiado, Philip.

E, com estas inesperadas palavras, retirou-se.

N ão duvido de que adormecera vinte minutos depois de nos


separarmos, enquanto eu ouvia o relógio do campanário badalar até
as quatro horas. Por fim, imergi no intranquilo sono da madrugada,
que se torna mais pesado ao romper do dia, altura em que fui
acordado às sete por John, como habitualmente.

Rainaldi ficou conosco não três, mas sete dias, durante os quais não
encontrei qualquer razão para rever a minha opinião a seu respeito.
Creio que o que mais me desagradava era a atitude de tolerância
para comigo. Exibia um semissorriso cada vez que me olhava, como
se me considerasse uma criança que não convinha contrariar.

I mpus a mim mesmo a ausência às refeições do meio-dia, e


quando regressava a casa e entrava na sala, à tarde, pouco depois
das quatro, encontrava-os juntos, a conversar no seu inevitável
italiano, mas interrompiam-se à minha aparição.
— A h, o trabalhador regressou! — gostava Rainaldi de dizer,
instalado na minha poltrona preferida, demônios o levassem. — E
enquanto percorre os seus vastos hectares e verifica se os arados
penetraram suficientemente na terra, você e eu, Raquel,
calcorreamos muitas centenas de quilômetros em pensamento. N ão
saímos em todo o dia senão para desentorpecer as pernas no novo
caminho empedrado. A meia-idade tem as suas compensações.

— A sua presença é-me perniciosa — volveu ela. — D esde que


chegou, tenho descurado todas as minhas obrigações. N ão faço
visitas nem assisto à plantação. O Philip

acabará por me acusar de negligência.

— N ão tem estado inativa — discordou Rainaldi. — Percorremos


tantos quilômetros imaginariamente como o seu jovem primo em
terreno firme. A juventude inglesa manifesta a deplorável tendência
para martirizar o corpo até a exaustão.

Eu pressentia o seu sarcasmo — a cenoura à frente da cabeça do


jumento —, e a forma como Raquel acudiu em meu auxílio ainda me
irritou mais.

— Hoje é quarta-feira, dia da semana em que o Philip fica no


escritório imerso em contas. Tem uma excelente cabeça para os
números e sabe exatamente o que gasta. N ão é verdade?

— N em sempre — corrigi. — Hoje, por exemplo, assisti à reunião


dos juízes de paz em representação de um vizinho e fiz parte do júri
do julgamento de um indivíduo acusado de roubo. Foi-lhe atribuída
uma multa e saiu em liberdade.

Rainaldi observava-me, com o mesmo ar de tolerância.

— Um jovem S alomão, além de jovem agricultor — comentou. — I


nteiro-me constantemente de novos talentos. O seu primo não lhe
lembra o retrato do Baptista de Del Sarto, Raquel? A mesma
arrogância e inocência numa mescla enternecedora.
— É possível —admitiu ela. — Confesso que não tinha reparado. Q
uanto a mim, parece-se apenas com uma pessoa.

— S im, com essa também, mas não subsistem dúvidas de que os


traços de D el S arto estão igualmente presentes. Um dia, tem de o
arrancar dos seus hectares e mostrar-lhe o nosso país. A s viagens
expandem a mente, e eu gostaria de o ver vaguear por uma galeria
ou uma igreja.

— O A mbrose aborrecia-se com ambas e duvido que o Philip se


sentisse mais impressionado. — Raquel voltou-se para mim. — Viu
o seu padrinho entre os juízes de paz? Gostava de levar o Rainaldi
a visitá-lo, em Pelyn.

— Sim, estava lá e manda-lhe cumprimentos — declarei.

— Mr. Kendall tem uma filha encantadora. — D irigiu-se de novo ao


italiano. —

Um pouco mais jovem que o Philip.

— Uma filha? N esse caso, o seu jovem primo não está totalmente
isolado da sociedade feminina juvenil.

— Longe disso. — Exibiu um sorriso. — Num raio de cinquenta


quilômetros, todas as mães têm os olhos postos nele.

O lhei-a com intensidade, o que só serviu para que o sorriso se


alargasse, e, ao passar junto de mim, a caminho do quarto a fim de
mudar de roupa para o jantar, deu-me uma palmada no ombro, em
obediência ao seu enfurecedor hábito.

"O gesto da tia Phoebe", como eu o classificara, o que a encantara


como se se tratasse de um elogio.

Quando ficamos sós, Rainaldi disse:

— Foi muito generoso de sua parte e do seu padrinho concederem


uma mesada a Raquel. Escreveu-me revelando-me, profundamente
sensibilizada.

— Era o mínimo que se podia fazer por ela.

Exprimia-me num tom que esperava fosse desencorajador de


ulterior troca de impressões, pois não estava disposto a comunicar-
lhe o que aconteceria dentro de três semanas.

— Como talvez não ignore, à parte essa mesada, ela não dispõe de
outros meios de subsistência, salvo aquilo que lhe posso enviar de
vez em quando. A mudança de ares fez-lhe muito bem, mas penso
que não tardará a sentir a falta da convivência, como acontecia em
Florença. É essa a verdadeira razão pela qual tento desencorajá-la
de vender a villa. Os laços são muito fortes.

N ão respondi. S e eram muito fortes, a ele se deviam. Com efeito,


Raquel não fizera a menor alusão a laços até que Rainaldi chegara.
Perguntei-lhe qual seria a extensão da sua fortuna pessoal e se lhe
enviaria dinheiro seu e não apenas do produto do que vendia da
herança S angalle i. A mbrose achava-se dentro da razão ao não
confiar nele. Mas que ponto fraco de Raquel a obrigaria a mantê-lo
como conselheiro e amigo?

— É claro que seria mais sensato acabar por vendê-la e Raquel


alugar um pequeno apartamento em Florença, ou então mandar
construir uma pequena vivenda em Fiesole.

Tem muitos amigos que não desejam perder o contato, entre os


quais eu próprio.

— N o nosso primeiro encontro na I tália, disse que ela era uma


mulher impulsiva

— lembrei-lhe. — Decerto continuará a sê-lo e viverá onde lhe


aprouver.

— D e acordo, mas a natureza dos seus impulsos nem sempre a


conduziu à felicidade.
D epreendi que pretendia implicar que o casamento com A mbrose
constituíra um desses impulsos, assim como a vinda dela para a I
nglaterra, cujo resultado ainda se lhe apresentava pouco claro no
espírito. Exercia influência na minha prima, porque lhe administrava
os bens, e era esse poder que talvez acabasse por levá-la a
regressar a Florença. Convenci-me de que se situava aí o fulcro da
sua visita, acompanhado da insistência na tecla de que a mesada
que eu propusera e já vigorava não bastaria para a sustentar
indefinidamente. O ra, eu possuía um trunfo importante, que ele
ignorava.

D entro de três semanas, Raquel tornar-se-ia independente de


Rainaldi para toda a vida.

Q uase me apetecia rir, porém a antipatia que o homem me


provocava era mais forte que a hilaridade.

— D eve ser estranho para si, com a educação que recebeu, ver-se
de repente com uma mulher em casa por muitos meses — insistiu,
observando-me com curiosidade. —

Não se sente embaraçado?

— Pelo contrário. Acho a situação extremamente agradável.

— Em todo o caso, é um prato forte para um jovem inexperiente


como você.

Consumido numa dose tão abundante, pode provocar uma


indigestão.

— Prestes a completar vinte e cinco anos, sei exatamente a dieta


que me convém.

— O seu primo A mbrose também pensava assim, aos quarenta e


três, mas verificou que laborava em erro.

— Trata-se de um aviso ou de um conselho?


— D as duas coisas, se encarar as minhas palavras da maneira
apropriada —

asseverou, levantando-se. — Se me permite, vou vestir-me para o


jantar.

Calculei que constituía o seu método de introduzir uma cunha entre


mim e Raquel

— lançar uma palavra de advertência, pouco venenosa em si, mas


suficientemente carregada para empestar a atmosfera. S e sugeria
que devia ter cuidado com ela, que insinuaria a meu respeito? A
legaria que não passava de um moço ingênuo e impressionável sem
préstimo, nos seus tête-à-tête no boudoir? Pelo menos, dera provas
convincentes de que a imaginação para inventar argumentos não
lhe escasseava.

— O óbice dos homens muito altos — observou certa ocasião —


consiste na tendência fatal para se curvarem. — Eu encontrava-me
debaixo da bandeira da porta da sala e inclinava a cabeça para
dizer algo a Raquel. — A lém disso, os mais fortes acabam por
engordar.

— O Ambrose não era gordo — apressou-se ela a salientar.

— N ão fazia tanto exercício como aqui o nosso amigo. A s longas


cavalgadas, caminhadas a pé e natação contribuem para
desenvolver as partes erradas do corpo.

N otei-o com frequência, e quase sempre entre os ingleses. N ós, na


I tália, temos ossos menores e levamos vidas mais sedentárias. Por
conseguinte, mantemos a linha. Por outro lado, abusamos menos da
carne e dos farináceos. Q uanto aos doces... — Esboçou um gesto
de desdém. —Este rapaz não se faz rogado. Vi-o devorar uma torta
inteira, ontem ao jantar.

— Está a ouvir, Philip? — Raquel voltou-se para mim. — Ele


considera que come demais. — D irigiu-se ao mordomo, que se
conservava a uma distância respeitosa. —

Temos de racionar a comida a Mr. Philip, Seecombe.

— Espero bem que não, minha senhora. — A estupefação do


homem era inequívoca. — Comer menos do que come seria
prejudicial para a saúde. N ão podemos esquecer que é muito
possível que ainda esteja a crescer.

— Q ue ideia! — exclamou o italiano. — S e ainda estivesse a


crescer aos vinte e quatro anos, haveria motivos para suspeitar de
alguma perturbação glandular grave.

S orveu o brande com uma expressão meditativa, sem desviar os


olhos de mim, até que quase me supus com dois metros e meio de
altura e duas centenas de quilogramas de peso, exibido nas feiras
numa jaula.

— S uponho que goza de boa saúde... — acrescentou. — Teve


alguma doença grave em criança que possa explicar essa altura?

— Não me lembro sequer de ter estado doente — assegurei-lhe.

— I sso, em si, também é causa de preocupação. O s que nunca


conheceram uma enfermidade são os primeiros a baquear quando a
N atureza os ataca. N ão é verdade, Seecombe?

— Talvez, senhor — articulou o interpelado. — Confesso que não


sei.

Mas quando abandonava a sala, vi que me dirigia uma mirada de


dúvida, como se notasse indícios de um ataque de varíola.

— Este brande devia ter ficado a envelhecer pelo menos mais trinta
anos —

prosseguiu Rainaldi. — Estará em condições de ser consumido


quando os filhos do jovem Philip atingirem a maioridade. — Virou-se
para Raquel. — Lembra-se daquela noite na villa em que você e o
Cosimo receberam praticamente Florença em peso, e ele insistiu em
que nos apresentássemos trajados de dominós e mascarilhas, como
num carnaval veneziano? E a sua chorada mãe portou-se de forma
reprovável com o príncipe não-sei-quantos. Lorenzo Ammanati,
salvo erro.

— Com esse não foi de certeza, porque se concentrava inteiramente


em mim.

— Q ue noites de loucura... Éramos todos incrivelmente jovens e


totalmente irresponsáveis. Prefiro a calma e a moderação de agora.
Calculo que nunca promovem reuniões desse tipo na I nglaterra... O
clima não o permite, evidentemente. Em todo o caso, o nosso amigo
Philip decerto acharia divertido vestir-se de dominó e percorrer o
bosque atrás de Miss Kendall.

— Estou convencida de que a Louise ficaria encantada — disse


Raquel, comprimindo os lábios num trejeito malicioso.

Resolvi deixá-los sós, e passaram imediatamente a exprimir-se em


italiano, a voz dele interrogativa e a dela sorridente em resposta à
pergunta, e compreendi que falavam de mim e porventura também
de Louise, além dos rumores que circulavam acerca de um eventual
casamento. Por quanto mais tempo continuaria ele em minha casa?
Q uantos dias e noites mais teria eu de suportar a sua presença?

Por fim, no último dia da sua visita, o meu padrinho e Louise


compareceram para jantar. O serão desenrolou-se de modo
satisfatório, ou assim pareceu. Vi Rainaldi esmerar-se por tratar N
ick Kendall com razoável cortesia e os três — eles e Raquel —

formaram um grupo, o que me proporcionou a oportunidade de


entreter Louise. D e vez em quando, apercebia-me dos olhares
indulgentes que o italiano nos dirigia e, a dada altura, ouvi-o
murmurar: ”O s meus cumprimentos pela sua filha e o seu afilhado.

Formam um par encantador”. Louise também se inteirou e não pôde


deixar de corar.
Depois do jantar, Raquel anunciou:

— Espero visitar Londres em breve. S e nos encontrarmos lá —


acrescentou, dirigindo-se a Louise —, pedir-lhe-ei que me mostre os
lugares mais interessantes, porque não conheço a cidade.

O meu padrinho aproveitou a oportunidade para perguntar:

— Tenciona, pois, deixar-nos? D evo reconhecer que suportou


perfeitamente os rigores do inverno na Cornualha. Creio que achará
Londres mais divertida. — Voltou-se para Rainaldi. — Ainda estará
lá?

— O s assuntos que tenho de tratar na capital tomar-me-ão algumas


semanas, mas se ela me procurar colocar-me-ei naturalmente à sua
disposição. Conheço Londres razoavelmente. Espero que o senhor
e a sua filha nos concedam o prazer de jantar conosco quando a
visitarem.

— Teremos o maior prazer. Londres é muito agradável na


primavera.

A petecia-me chocalhar-lhes as cabeças umas contra as outras pela


certeza com que falavam de um eventual encontro, mas era o
emprego do plural por parte de Rainaldi que mais me irritava. O seu
plano não se tornava difícil de discernir.

Atrair Raquel a Londres, entretê-la enquanto levava a cabo os seus


misteriosos assuntos, e por último tentar persuadi-la a regressar à I
tália. E o meu padrinho, pelas suas próprias razões, encorajaria o
projeto. Mal sabiam eles que eu congeminara um esquema para
ludibriá-los.

O serão foi-se escoando, com numerosas expressões de boa


vontade de todas as partes, e Rainaldi aproveitou os últimos vinte
ou mais minutos para celebrar um colóquio com N ick Kendall, sem
dúvida para destilar novas gotas do veneno de que parecia possuir
uma reserva inesgotável.
Q uando os Kendall se retiraram, não voltei à sala. S egui para o
quarto, cuja porta deixei entreaberta para ouvir Raquel e Rainaldi
subir a escada, o que tardou a acontecer.

Soaram as badaladas da meia-noite e ainda continuavam lá em


baixo.

Aventurei-me a assomar ao patamar para escutar e detectei o


murmúrio das suas vozes. A poiando-me ao corrimão, desci até
meio da escada, descalço. A cudiram-me recordações da infância.
Procedera assim quando A mbrose tinha convidados para jantar.

A ssolava-me agora o mesmo sentimento de culpa. A s vozes


persistiam interminavelmente. Mas as minhas tentativas para as
escutar careciam de objetivo válido, pois exprimiam-se em italiano.
D e vez em quando, captava o meu nome e o do meu padrinho.
Trocavam impressões acerca dele ou de mim, ou mesmo de ambos.
A inflexão de Raquel continha uma urgência que se me afigurava
estranha, enquanto a de Rainaldi dava a entender que a
interrogava. Perguntei-me, com repulsa súbita, se o meu padrinho
falara a este último dos seus amigos viajantes de Florença e, por
seu turno, o italiano a informara. Como fora inútil a minha educação
em Harrow e o estudo de latim e grego!

D uas pessoas conversavam em italiano na minha própria casa,


discutindo assuntos porventura importantes para mim, e eu não
conseguia entender uma única palavra, à parte a alusão ao meu
nome.

Estabeleceu-se um silêncio repentino. N enhum deles falava. N ão


me chegava aos

ouvidos o mínimo movimento. E se Rainaldi tivesse avançado para


ela, que o beijara como fizera comigo na véspera do N atal? A
cudiu-me uma tal vaga de ódio contra o homem que quase
abandonei toda a prudência e desci a escada a correr para abrir a
porta. Por fim, tornei a ouvir a voz de Raquel e o ruge-ruge do
vestido e vislumbrei o clarão da sua vela. A longa sessão chegara
ao seu termo. Eles iam recolher aos respectivos quartos. E, como a
criança de outrora, regressei ao meu em bicos dos pés.

Ouvi Raquel passar no corredor em direção à sua suíte, enquanto


ele seguia noutro sentido para os seus aposentos.

Provavelmente, eu nunca saberia de que tinham falado durante


aquelas horas, mas pelo menos era a última noite que Rainaldi
dormia sob o meu teto e a partir do dia seguinte ver-me-ia liberto de
um peso cada vez mais opressivo.

N a manhã imediata, quase não conseguia tragar o café da manhã,


devido à ansiedade em vê-lo partir. O uvi o rodado da mala-posta no
caminho de acesso à casa, e Raquel surgiu devidamente trajada
para se ocupar do jardim, a fim de se despedir dele.

O italiano pegou-lhe na mão e beijou-a. D esta vez, numa atitude de


cortesia para comigo, seu anfitrião, exprimia-se em inglês.

— N ão se esqueça de escrever para informar dos seus planos. Q


uando estiver disposta a partir, encontrar-me-á à sua espera, em
Londres.

— N ão traçarei quaisquer planos antes do dia um de abril - retrucou


ela, que olhou por cima do ombro e me sorriu.

— Mas é o aniversário do seu primo — observou Rainaldi, enquanto


subia para a mala-posta. — Espero que ele passe um dia divertido e
não se empanturre de tortas. —

D epois de instalado, assomou à janela, para me dizer: — D eve


achar bizarro fazer anos numa data tão especial. O dia das
mentiras! N o entanto, com vinte e cinco anos, talvez se considere
demasiado velho para pensar nisso.

Fez sinal ao cocheiro e o veículo pôs-se em marcha, não tardando a


transpor o portão.
— N ão sei se fiz mal em não o convidar para vir cá passar esse dia
conosco —

murmurou Raquel. D e súbito, com um sorriso repentino que me


enterneceu, pegou na primavera que usava no vestido e colocou-a
na botoeira do meu casaco. — Portou-se muito bem nestes sete
dias. E eu descurei os meus deveres. Está contente por nos
encontrarmos de novo sós? — E, sem aguardar resposta,
encaminhou-se para a plantação com Tamlyn.

Capítulo Vigésimo Primeiro

A s restantes semanas de março escoaram-se muito rapidamente.


Em cada dia que surgia eu sentia maior confiança no futuro,
acompanhada de uma euforia crescente.

Raquel parecia pressentir o meu estado de espírito e partilhava-o.

— N unca vi ninguém tão entusiasmado com um aniversário —


comentou. — Você lembra-me uma criança que acha o mundo
mágico ao despertar. S ignifica assim tanto para si libertar-se de Mr.
Kendall e dos seus cuidados? D uvido que pudesse arranjar um
tutor mais generoso e competente. Que planeia para essa data?

— N ada de especial, à parte o fato de ter de lhe lembrar o que me


disse o outro dia. Devem conceder-se todos os desejos ao
celebrador de um aniversário.

— Apenas até aos dez anos de idade — salientou. — Nunca depois.

— Está a ser injusta — protestei. — N ão mencionou qualquer


estipulação acerca da idade.

— S e tenciona efetuar um piquenique junto do mar ou dar um


passeio de barco, não o acompanharei. A inda não estamos na
época própria para visitar a praia e, quanto a subir para uma
embarcação, mete-me mais medo do que montar a cavalo. Convide
antes a Louise.
— N ão convidarei a Louise, nem iremos a parte alguma imprópria
da sua dignidade.

N a realidade, não me detivera a planear os eventos para o dia em


causa. Limitara-me a decidir que ela encontraria os documentos no
tabuleiro do café da manhã, e o resto ficaria entregue ao sabor do
acaso. Havia outra coisa que também não queria deixar de fazer.
Lembrei-me das joias guardadas no banco e amaldiçoei-me por
ainda as não ter ido buscar. I mpunha-se, pois, que celebrasse duas
reuniões prévias. Uma com Mr. Couch e a outra com o meu
padrinho.

Comecei por Mr. Couch. Calculei que os embrulhos seriam


demasiado volumosos para levar no Cigano, mas não queria
mandar preparar a carruagem, com receio de que Raquel se
inteirasse e exprimisse o desejo de se deslocar à aldeia.

D e resto, a minha utilização daquele meio de transporte constituía


uma raridade em mim. Por conseguinte, desloquei-me a pé, depois
de recomendar ao moço de estrebaria que me fosse buscar mais
tarde no breque.

Q uis o infortúnio que, à primeira vista, parecesse que todas as


pessoas conhecidas tinham escolhido aquela manhã para fazer
compras na povoação, pelo que necessitei de mudar de rumo com
frequência para não dar de cara, por exemplo, com Mrs. Pascoe e
as

filhas. Tive mesmo de entrar na estalagem Rose and Crown antes


das onze horas da manhã, a fim de me esquivar à esposa do vigário
da paróquia vizinha, que acabava de surgir ao fundo da rua e
avançava na minha direção.

Por último, encontrei-me em lugar seguro, entre as quatro paredes


do banco, onde Mr. Couch me recebeu com a cordialidade habitual.

— Desta vez, quero levar tudo — anunciei, sem qualquer


preâmbulo.
Olhou-me com perplexidade e perguntou:

— Pretende transferir a sua conta para outro estabelecimento


bancário, Mr.

Ashley?

— Nada disso - tranquilizei-o. — Refiro-me às joias. Amanhã,


cumpro vinte e cinco anos de idade e tornam-se minha propriedade
legal. D esejo tê-las comigo quando acordar.

Decerto me considerou excêntrico ou, pelo menos, um pouco


transtornado.

— Q uer dizer que pretende satisfazer um capricho só nesse dia? S


e a memória não me atraiçoa, fez algo do gênero na véspera do N
atal. O seu tutor, Mr. Kendall, veio devolver o colar imediatamente.

— N ão se trata de um capricho, Mr. Couch. Q uero as joias em


casa, na minha posse. Não me ocorre outra maneira de ser mais
claro.

— Compreendo. — Fez uma pausa. — Bem, espero que tenha um


cofre ou, ao menos, um lugar seguro para guardá-las.

— I sso é comigo. A gradecia que as mandasse buscar. Lembre-se


de que não é apenas o colar, desta vez, mas toda a coleção.

Pela sua expressão, dir-se-ia que pretendia extorquir-lhe algo de


sua exclusiva propriedade.

— Muito bem. Vai demorar um pouco ir buscá-las ao cofre-forte e


embrulhá-las com as precauções convenientes. Se tem algumas
voltas a dar...

— Nenhuma — cortei. — Aguardarei aqui.

Reconheceu que não lucraria nada em protelar o penoso momento


da separação, pelo que transmitiu as instruções necessárias. Eu
munira-me de algo para levar as joias

— uma cesta de verga utilizada em casa para as couves —, e Mr.


Couch estremeceu de repulsa quando os preciosos objetos nos
seus estojos foram acondicionados nela.

— Teria sido preferível deixar-me enviá-las da maneira apropriada


— articulou a meia voz. — Dispomos de um transporte seguro para
casos desta natureza.

I maginei os comentários que a presença do referido transporte,


devidamente identificado, suscitaria à entrada de minha casa. A
figurava-se-me mais adequada a cesta das couves levada no
breque.

— Não se preocupe, Mr. Couch. Não lhes acontecerá nada.

A bandonei o banco profundamente satisfeito com o êxito da


diligência... e caí

virtualmente nos braços de Mrs. Pascoe, com a respectiva prole.

— S anto D eus, Mr. A shley! — exclamou. — N unca o vi tão


carregado —

acrescentou, apontando para a cesta, que eu transportava ao


ombro.

Segurei-a com uma das mãos e tirei o chapéu com a outra.

— S urpreendeu-me num dos meus dias tenebrosos — repliquei,


sem me desconcertar. — A s minhas finanças encontram-se tão em
baixo, que necessito de vender couves a Mr. Couch e restante
pessoal do banco. A s reparações a que mandei proceder em casa
quase me deixaram na penúria, pelo que tenho de transacionar os
meus produtos agrícolas na aldeia.

Fitou-me boquiaberta, enquanto as filhas arregalavam os olhos com


expressões de incredulidade.
— I nfelizmente — acrescentei —, as couves que trago aqui
destinam-se a outro cliente, de contrário teria o maior prazer em
vendê-las. D e futuro, quando precisar de legumes na reitoria,
lembre-se de mim.

A fastei-me para procurar o breque no local previamente combinado,


enquanto refletia que toda a região não tardaria a inteirar-se de que
Philip A shley, além de ser excêntrico, alcoólico e louco, estava
reduzido à miséria.

Regressamos pela alameda, entrei em casa pela porta de serviço,


guardei a cesta no guarda-roupa do meu quarto, que fechei à chave,
e voltei a descer para almoçar.

S e estivesse presente, Rainaldi fecharia os olhos e estremeceria de


repulsa ao verme devorar uma lauta refeição, que impeli com uma
quantidade apreciável de cerveja.

Raquel esperara por mim, mas, supondo que eu não almoçaria em


casa, resolvera comer e recolhera ao quarto, segundo revelava no
bilhete que me deixou. Por uma vez, não me senti contrariado com a
sua ausência, pois receava que a satisfação pelo êxito da missão se
tornasse visível com clareza no meu rosto.

A ssim que me levantei da mesa, voltei a ausentar-me, agora a


cavalo, em direção a Pelyn. Levava na algibeira o documento que o
advogado, Mr. Tewin, me enviara, como prometera, por mensageiro
especial. A companhava-me igualmente o testamento. A s
perspectivas referentes ao encontro não se podiam considerar
agradáveis, mas nada me dissuadiria do objetivo que me impusera.

Nick Kendall encontrava-se em casa e no escritório.

— O lá, Philip. Embora com algumas horas de antecedência,


desejo-te um aniversário feliz e que se repita ao longo dos anos.

— O brigado e aproveito a oportunidade para lhe agradecer


igualmente o afeto que sempre manifestou por mim e pelo Ambrose,
além da competência como tutor.

— Funções que terminam amanhã — observou com um sorriso.

— S im. O u melhor, hoje, à meia-noite. E como não o quero


arrancar da cama a essa hora, desejo que testemunhe a minha
assinatura num documento que entrará em vigor

nesse preciso momento.

— Hum... — grunhiu, pegando nos óculos. — Que espécie de


documento?

Extraí o testamento da algibeira.

— Em primeiro lugar, gostava que lesse isto. N ão me foi entregue


espontaneamente, mas só após alguma discussão. Há muito que
suspeitava da sua existência.

Entreguei-lhe. Ele equilibrou os óculos no nariz e leu-o em silêncio.

— Está datado, mas não assinado — observou.

— Exato. No entanto, reconhece a letra do Ambrose?

— S em dúvida. O que não compreendo é porque não o


testemunhou e enviou-me.

Aliás, eu esperava um testamento deste gênero quando casou,


como te disse na altura.

— N ão foi assinado porque adoeceu e esperava voltar para casa a


todo o momento e entregá-lo então. Posso garantir-lhe.

Pousou o documento na secretária e suspirou.

— Bem, temos de nos render à evidência. S ão coisas que


aconteceram noutras famílias. I nfelizmente para a viúva, não
podemos fazer mais do que já fizemos por ela.
Um testamento sem assinatura não tem valor.

— Eu sei, e ela está ciente disso. Como há pouco referi, foi apenas
graças a forte persuasão que lhe arranquei este documento. Tenho
de devolvê-lo, mas existe uma cópia.

Guardei o testamento original e entreguei-lhe a cópia que efetuara.

— E agora? — perguntou. — Veio à luz algo mais?

— N ão. S implesmente, a consciência indica-me que tenho estado


a desfrutar de algo que por direito não me pertence. O A mbrose
tencionava assinar este testamento, mas a morte, ou antes, a
doença em primeiro lugar, impediu-o. Q uero que leia um documento
que preparei. — E passei-lhe para as mãos as disposições redigidas
por Tewin, em Bodmin.

Leu-o lenta e atentamente, a expressão a toldar-se gradualmente, e


só passados longos momentos tirou os óculos e fixou o olhar em
mim.

— A tua prima Raquel tem conhecimento disto?

— A bsolutamente nenhum — asseverei. — N unca, por palavras ou


atitudes, exprimiu a mínima ideia relacionada com o que menciono
aí ou as minhas intenções.

Está profunda e inteiramente inocente da decisão que tomei. N ão


sabe sequer que me encontro aqui ou lhe mostrei o testamento.
Como a ouviu dizer há umas semanas, pretende partir para Londres
em breve.

Empertigou-se na cadeira, sem desviar os olhos de mim.

— Estás absolutamente decidido a seguir este rumo?

— Sem a menor hesitação.


— D ecerto te apercebes de que pode conduzir a abusos, há poucas
salvaguardas e

o total da fortuna, que mais tarde te pertencerá e aos teus herdeiros,


pode ser dissipado...

— Sim, estou resolvido a correr o risco.

Meneou a cabeça e voltou a suspirar. Por fim, levantou-se,


aproximou-se da janela e concentrou-se de novo em mim.

— O conselheiro dela, esse tal Signor Rainaldi, está ao corrente


deste documento?

— De modo algum.

— Foi pena não me teres dito nada, Philip. Podíamos analisar a


situação e eu talvez te convencesse a encará-la de outro modo. D e
qualquer maneira, trocaria impressões com ele, que me pareceu
uma pessoa sensata. N aquela noite, tive oportunidade de lhe falar
da minha preocupação sobre o excesso de levantamentos dela.

A dmitiu que a extravagância sempre constituíra um dos seus


defeitos e conduzira a problemas, não só com o A mbrose, mas
também com o primeiro marido, S angalle i.

Deu-me a entender que ele, Rainaldi, era a única pessoa capaz de


lidar com a tua prima.

— Estou-me nas tintas para o que lhe deu a entender. A ntipatizo


com o homem e penso que se serve desse argumento para seu
interesse pessoal. A calenta a esperança de convencê-la a voltar
para Florença.

O meu padrinho olhou-me em silêncio por uns segundos.

— D esculpa fazer-te uma pergunta de natureza pessoal, mas


conheço-te desde que vieste ao mundo, pelo que julgo que me
assiste esse direito. N ão é verdade que estás totalmente
perdidinho, como se costuma dizer, pela tua prima?

Senti um calor incomodativo nas faces, mas sustentei a sua mirada


incisiva.

— N ão compreendo aonde pretende chegar. “Perdidinho” é um


termo fútil e a todos os títulos hediondo. Respeito a minha prima
Raquel mais do que qualquer outra pessoa que conheço.

— Era para te falar disto antes. Começam a circular comentários


pouco agradáveis sobre a sua permanência prolongada em tua
casa. I rei mesmo mais longe, para te garantir que não se aborda
outro tema nos mexericos locais.

— Q ue continuem a abordá-lo. A partir de amanhã, as línguas


viperinas disporão de mais palha para saborear. A transferência da
propriedade e fortuna não poderá manter-se secreta.

— S e a tua prima tem algum discernimento e quer conservar o


autorrespeito, partirá para Londres ou pedir-te-á que vás viver para
outro lugar. A atual situação é perniciosa para ambos.

Conservei-me silencioso. S ó me interessava uma coisa: que ele


assinasse o documento.

— É claro que, a longo prazo, só existe uma saída para os


mexericos —

acrescentou. — E, segundo este documento, apenas uma maneira


de evitar a transferência da propriedade. Ela voltar a casar.

— Acho extremamente improvável.

— Suponho que não te ocorreu propores-lhe casamento tu próprio?

O calor no rosto acentuou-se.

— Não me atreveria, pois estou certo da sua recusa.


— N ada disto me causa satisfação, Philip. O xalá ela nunca tivesse
posto os pés na I nglaterra. I nfelizmente, é demasiado tarde para
perder tempo com lamentações dessa natureza. Muito bem, assina
lá isto, e prepara-te para enfrentar as consequências.

Peguei na caneta e apus o meu nome no documento, enquanto ele


me observava com uma expressão grave.

— Há mulheres, de índole irrepreensível possivelmente, que


precipitam as calamidades, embora não acalentem semelhantes
intenções. Tudo aquilo em que tocam converte-se em tragédia. N ão
sei por que te digo isto, mas sinto que devo prevenir-te. —

Fez uma pausa para assinar como testemunha.

— Vais falar à Louise?

— D e momento, não. S e estão ambos livres, porque não aparecem


amanhã lá em casa, para jantar e brindar pela minha saúde, no dia
do meu aniversário?

— A inda não tenho a certeza de estarmos disponíveis — declarou,


após breve hesitação. — De qualquer modo, mandarei avisar-te
mais tarde.

Compreendi que não tencionava comparecer, mas tinha relutância


em declinar abertamente o convite. N o entanto, encarara o assunto
da transferência muito melhor do que eu previra, sem admoestações
violentas, nem sermões intermináveis, mas decerto me conhecia o
suficiente para reconhecer que o efeito resultaria nulo. Em todo o
caso, a sua preocupação e contrariedade eram notórias. Por outro
lado, congratulava-me por não ter feito a menor alusão às joias da
família. A descoberta de que estavam escondidas na cesta da
hortaliça no meu guarda-roupa poderia ter constituído a gota de
água que faria transbordar o copo.

Regressei a casa tendo presente no espírito a euforia que me


dominava na ocasião anterior em que o fizera, depois de visitar o
advogado Tewin, em Bodmin, prontamente destruída ao descobrir
Rainaldi à chegada. A gora, não se me depararia qualquer visitante
do gênero.

N as últimas três semanas, a primavera instalara-se na região e a


temperatura era cálida como em maio. Todavia, à semelhança de
todos os profetas do tempo, os meus caseiros abanavam a cabeça
e prediziam calamidades. S urgiriam geadas tardias, que
comprometeriam o êxito das colheitas. Penso, porém, que, naquele
último dia de março, eu permaneceria impávido mesmo que se
verificasse um flagelo daquela natureza, ou até uma inundação ou
abalo de terra.

O sol descia para o horizonte além da baía a oeste, incendiava o


céu limpo e escurecia a água, e a lua despontava acima das colinas
a leste. Refleti que era assim que

um homem se devia sentir quando imerso num estado de elevada


embriaguez, aquele completo abandono à hora que passava. Eu via
as coisas não como que através de uma névoa, mas com a clareza
do ébrio absoluto. O parque, quando comecei a percorrê-lo, exibia
toda a graciosidade de um conto de fadas e o próprio gado disperso
apresentava-se-me como animais encantados, possuidores de uma
beleza especial. A pesar de tudo aquilo me ser familiar desde a
infância, revestia-se agora de uma nova magia.

Embora tivesse comido demais ao almoço para ter agora fome,


estava com sede e bebi água fresca do poço no pátio.

Gracejei com o pessoal que fechava as portas das traseiras e os


estores. Todos sabiam que o dia seguinte era o do meu aniversário.
Em dado momento, desapareceram na sala comum e regressaram
com um embrulho. J ohn, aparentemente nomeado seu porta-voz,
entregou-me, com estas palavras:

— I sto é oferecido por todo o pessoal, senhor. N ão conseguimos


conter a impaciência até amanhã.
Era um estojo com cachimbos, que decerto lhes custara o salário de
um mês.

A pertei-lhes a mão e afirmei que tencionava comprar um conjunto


similar na minha próxima visita a Bodmin ou Truro, o que contribuiu
para lhes acentuar a satisfação. N a realidade, só utilizava o
cachimbo que A mbrose me oferecera quando completara
dezessete anos, mas de futuro devia tomar a precaução de recorrer
àqueles, sob pena de desapontá-los.

Q uando entrei na sala de jantar, depois de tomar banho e mudar de


roupa, encontrei Raquel à minha espera.

— Cheira-me a travessura — observou imediatamente. — Passou


todo o dia fora de casa. Que andou a magicar?

— Não é de sua conta, Mrs. Ashley.

— N inguém lhe pôs a vista em cima desde o café da manhã. Tive


de almoçar sozinha.

— Devia ter ido comer com o Tamlyn. A mulher dele é uma


excelente cozinheira.

— Esteve na aldeia?

— Por acaso, estive.

— Viu alguém conhecido?

— Vi — admiti, contendo a vontade de rir. — Mrs. Pascoe e as


filhas, as quais ficaram muito chocadas com a minha aparência.

— Como assim?

— Levava uma cesta ao ombro e disse-lhes que andava a vender


hortaliça.
— Isso é verdade, ou visitou a Rose and Crown e bebeu cidra em
excesso?

— Não é verdade que vendia hortaliça nem estive na Rose and


Crown.

— Então, explique-se melhor.

Não estava disposto a elucidá-la e sentei-me à mesa, com um


sorriso.

— Creio que, quando a lua estiver alta no céu, irei nadar um pouco,
depois de jantar. S into-me invadido por toda a energia do mundo,
assim como por toda a inclinação para a aventura.

Olhou-me com uma expressão pensativa.

— S e quer passar o aniversário na cama com cataplasmas no peito


e tomar xarope a todas as horas, sob as vistas, não minhas, mas do
S eecombe, previno-o, vá nadar, que não tentarei impedi-lo.

Estendi os braços acima da cabeça e emiti um suspiro de profunda


satisfação. Em seguida, pedi autorização para fumar, que ela me
concedeu.

— O lhe o que os rapazes me ofereceram. — Mostrei-lhe o estojo


dos cachimbos. —

Não conseguiram conter a impaciência até amanhã.

— É tão criança como eles. — Fez uma pausa e acrescentou a meia


voz: -— N ão sabe o que o Seecombe lhe prepara.

— Julgo que faço uma ideia — repliquei no mesmo tom. — Viu-o?

Assentiu, com uma inclinação de cabeça.

— Está perfeito, com a sua melhor jaqueta, a verde, e tudo o resto.


Foi pintado pelo genro, que mora em Bath.
A pós o jantar, passamos à biblioteca, mas eu não mentira quando
dissera que sentia toda a energia do mundo. A chava-me em tal
estado de exultação que não conseguia permanecer quieto na
cadeira, ansioso por que a noite terminasse e surgisse o novo dia.

— Parece-me conveniente que vá espairecer, Philip — acabou


Raquel por sugerir.

— Corra até ao farol e volte, se acha suficiente para se curar. D e


qualquer modo, desconfio que enlouqueceu.

— S e isto é loucura, quero ficar assim para sempre. N unca supus


que a demência pudesse proporcionar tanto prazer.

Beijei-lhe a mão e saí. Fazia uma noite agradável para caminhar,


silenciosa e calma. S egui em direção ao farol, embora não a correr,
como ela indicara. A lua cheia iluminava a baía e parecia partilhar
do meu segredo.

Avistei um clarão para os lados das terras de Barton, acima do


prado, e quando alcancei o promontório do farol, com as baías a
espraiarem-se em cada um dos meus lados, verifiquei que se
tratava das luzes de povoações ao longo da costa ocidental, assim
como das do nosso porto, a leste. S e fazia uma noite agradável
para caminhar, não o era menos para nadar, e nenhuma ameaça de
eventuais cataplasmas ou xaropes me impediriam de o fazer. D esci
pelas rochas num dos meus pontos favoritos e, rindo para comigo
daquela loucura particularmente sublime, mergulhei na água. A final,
estava gelada. S acudi-me como um cachorro, tentando dominar o
chocalhar dos dentes, e

regressei ao local de partida após uns escassos quatro minutos, a


fim de me vestir apressadamente.

Loucura? Muito pior que isso. No entanto, era-me indiferente, e a


euforia persistia.
Enquanto empreendia o regresso a casa, o luar produzia sombras
caprichosas e algo sinistras do meu corpo. Avançando entre as
árvores do bosque, no ponto em que o caminho se dividia em dois
— um em direção à passagem ao longo dos cedros e o outro pela
pavimentada de construção recente —, acudiu-me às narinas o
cheiro inconfundível de uma raposa nas proximidades, mas não
vislumbrei nada indicativo da sua presença.

Já perto de casa, ergui os olhos para a janela de Raquel.

Estava aberta, mas não consegui determinar se conservava a vela


acesa ou a apagara. Consultei o relógio. Faltavam cinco minutos
para a meia-noite. A cudiu-me subitamente ao pensamento que, se
o pessoal não pudera conter a impaciência para me entregar a
prenda de anos, eu também não aguardaria pelo dia seguinte para
dar à minha prima a sua. Recordei-me de Mrs. Pascoe e das
couves, e a propensão para as medidas impulsivas intensificou-se.
Encaminhei-me para debaixo da janela do quarto azul e chamei-a.
Pronunciei o seu nome três vezes antes de obter resposta. Ela
assomou finalmente, envolta no roupão branco de freira.

— Que quer? Estava quase a adormecer.

— I mporta-se de protelar o sono por uns minutos? D esejava dar-


lhe uma coisa. O

embrulho que Mrs. Pascoe estava muito interessada em ver.

— Não tenho a curiosidade dela. Deixe isso para de manhã.

— Tem de ser agora.

Entrei pela porta lateral, subi ao meu quarto e voltei a descer, com a
cesta de hortaliça na mão, a cujas pegas atei um longo troço de
cordel. Tinha igualmente comigo o documento, que guardei na
algibeira do casaco. Raquel continuava à espera, na janela.
— Q ue tem nessa cesta? — perguntou em voz baixa. — S e se
trata de alguma das suas brincadeiras, não estou disposta a aturá-
la. N ão me diga que escondeu aí caranguejos ou lagostins!

— Mrs. Pascoe julgava que eram couves. D e qualquer modo,


garanto-lhe que não morde. Pegue na ponta do cordel. — Atirei a
extremidade solta à janela. — A gora, puxe, mas com ambas as
mãos, porque a cesta pesa um pouco.

Ela obedeceu e aguardei que a recolhesse. Por último, levou-a para


dentro e seguiu-se um silêncio.

Transcorrido um momento, Raquel reapareceu e olhou para baixo.

— N ão confio em si, Philip. O s embrulhos têm formas esquisitas.


Estou certa de que o que contêm morde.

Em vez de responder, comecei a subir pela trepadeira que se


estendia ao longo da parede, até que alcancei a janela.

— Tenha cautela, de contrário cai e fratura a espinha — advertiu. N


o instante imediato, encontrava-me no quarto, com um pé no
sobrado e a outra perna no peitoril. —

Tem a cabeça molhada! Mas não está a chover.

— Fui nadar, como lhe tinha dito. D esembrulha os pacotes, ou


prefere que o faça eu?

Havia uma única vela acesa. Ela encontrava-se descalça e tremia


de frio.

— Ponha qualquer coisa por cima — recomendei.

Retirei a colcha da cama, coloquei-a sobre os ombros e em seguida


ergui-a e depositei-a entre os cobertores.

— Desconfio que enlouqueceu por completo — murmurou.


— N ada disso. A cabo unicamente de completar vinte e cinco anos.
Escute. —

Levantei a mão para impor silêncio, enquanto o relógio do


campanário badalava a meia-noite. — I sto, pode lê-lo quando lhe
apetecer — expliquei, pousando o documento na mesa de
cabeceira, ao lado do castiçal. — Mas quero dar-lhe o resto já.

Coloquei os embrulhos em cima da cama, rasguei os envoltórios e


verti o conteúdo dos estojos no cobertor. Registrou-se uma pequena
chuva de safiras e esmeraldas, com o colar de pérolas e as
pulseiras.

— Tudo isto é seu — anunciei.

Num êxtase de loucura, peguei nas joias e larguei-as sobre ela.

— Agora, tenho a certeza de que perdeu o juízo, Philip! Que fez?

Em vez de replicar, peguei no colar e apertei-o em torno do


pescoço.

— Tenho vinte e cinco anos, como o relógio acaba de confirmar.


Terminou o impedimento que até agora vigorava. Tudo isto lhe
pertence, repito. S e eu possuísse o mundo, também o ofereceria.

N unca tinha visto tanta perplexidade e assombro concentrados


numa pessoa.

Moveu os olhos alternadamente para as joias e para mim por uns


instantes, e em seguida, talvez porque me via rir, abraçou-me
subitamente e soltou uma risada.

Continuamos abraçados, como se se tivesse deixado contagiar pela


minha loucura e a alucinação irreprimível da demência pertencesse
a ambos.

— Era isto que planeava ao longo das últimas semanas? — acabou


por perguntar.
— Era, e tencionava servir-lhe as joias com o café da manhã. Mas à
semelhança dos rapazes e o estojo dos cachimbos, não consegui
esperar.

— E eu que não tenho nada para si, além de um alfinete de gravata!


É o seu aniversário, e você cobre-me de vergonha. Existe alguma
outra coisa que deseje? D igame, e tê-la-á. Seja o que for.

O lhei-a, com os rubis e as esmeraldas à sua volta e o colar de


pérolas ao pescoço, e de repente a hilaridade abandonou-me ao
recordar o que este último significava.

— Sim, uma — aquiesci. — Mas não merece a pena pedi-la.

— Por quê?

— Porque me puxava as orelhas e mandava para a cama.

— Diga-me o que é — sussurrou, acariciando-me a face.

N ão sei como um homem pede uma mulher em casamento. Há, em


geral, um pai envolvido, cujo consentimento deve ser obtido em
primeiro lugar. O u, na sua ausência, um período de namoro e uma
longa conversa prévia. O ra, nada disto se aplicava a qualquer de
nós. Era meia-noite e nunca se verificara a mínima alusão ao amor
e casamento entre ambos. Eu podia dizer-lhe, sem rodeios: "A mo-
a, Raquel. Q uer ser minha mulher"? Recordei-me daquela manhã
no jardim, quando se referira ironicamente à minha aversão a
semelhante situação e eu replicara que bastava o meu lar para me
reconfortar.

— Expliquei-lhe uma ocasião que tinha toda a ternura e conforto de


que necessitava dentro destas quatro paredes — lembrei-lhe.

— Não me esqueci.

— Estava enganado. Compreendo agora o que me falta.


Tocou-me com os dedos a fronte, o lobo da orelha e a ponta do
queixo.

— Sim? — murmurou. — Está assim tão certo disso?

— Mais certo do que de qualquer outra coisa do mundo.

Fitou-me com intensidade. Os olhos pareciam mais escuros ao


clarão da vela.

— N aquela manhã mostrou-se muito seguro, e obstinado. O


conforto das casas...

— Com uma risada, estendeu a mão para apagar a vela.

Q uando me encontrava no relvado, ao nascer do S ol, antes de o


pessoal se levantar e descer para subir os estores e deixar entrar a
luz do dia, perguntei-me se algum homem antes de mim teria sido
aceite em casamento em circunstâncias tão singulares. Pouparia
muito tempo de namoro se tal acontecesse.

Até então, o amor, com todos seus meandros, não figurara no


cenário das minhas preocupações. Estivera convencido de que os
homens e as mulheres deviam proceder como lhes aprouvesse.
Fora cego e surdo e permanecera imerso num sono letárgico.

Agora, tudo isso se dissipara.

O que aconteceu naquelas primeiras horas do meu aniversário


perduraria. S e houve paixão, já a esqueci. S e existiu ternura, ainda
se alberga em mim. Continuarei persuadido de que uma mulher, ao
aceitar o amor, não tem qualquer defesa. Talvez seja esse o
segredo que possuem para nos unir a elas. Manifestam reservas a
esse respeito até ao fim.

Nunca o saberei, por me faltar um termo de comparação.

Ela foi a minha primeira e última.


Capítulo Vigésimo Segundo

Recordo-me de a casa despertar para o sol e ver o disco rubro


despontar acima das árvores que ladeavam o relvado.

O orvalho fora forte e o tapete verde apresentava uma tonalidade


prateada, como que afetado pela geada. Um melro começou a
cantar, seguido de um tentilhão, e em breve todo o coro primaveril
dominava a atmosfera. O cata-vento foi o primeiro a ficar sob a ação
dos raios solares. N o topo da torre do campanário, apontou para
noroeste e imobilizou-se, enquanto a fachada da casa principiava
igualmente a ser iluminada.

Entrei e subi ao meu quarto, onde puxei uma cadeira para junto da
janela e contemplei o mar. A minha mente achava-se vazia,
desprovida de pensamentos, o corpo sereno. N ão acudia qualquer
problema à superfície, nenhuma ansiedade tentava abrir caminho
das profundezas ocultas para alterar a paz beatífica. Era como se
todas as coisas da vida tivessem sido resolvidas e o caminho à
minha frente se encontrasse desimpedido.

O s anos passados não contavam para nada. O s vindouros


constituíam uma mera continuação de tudo o que eu agora sabia e
possuía. A ssim seria para todo o sempre, como o amém que
culminava uma litania. N o futuro, só haveria isto: Raquel e eu. Um
homem e a esposa numa existência unicamente sua, com a casa a
conter-nos e o mundo fora das nossas portas a desenrolar-se
despercebido. D ia após dia, noite após noite, enquanto vivêssemos.
Recordava-me pelo menos disso do livro de orações.

Fechei os olhos, e ela surgiu imediatamente a meu lado, e creio que


adormeci, porque quando descerrei as pálpebras o sol incidia na
janela aberta e J ohn entrara, para dispor a minha roupa no espaldar
da cadeira e trazer a água quente, sem que me apercebesse. Fiz a
barba, vesti-me e desci para tomar o café da manhã. D epois,
assobiei aos cães e saí, em direção ao jardim, onde colhi todas as
camélias em botão que vi e coloquei-as na cesta, a mesma em que
transportara as joias na véspera, após o que voltei para dentro e
subi ao quarto de Raquel.

Estava sentada na cama, a contas com o café da manhã, e, antes


que tivesse tempo de protestar e correr os cortinados, verti-lhe o
conteúdo da cesta em cima, cobrindo-a, e aos cobertores, de
camélias.

— Bom dia, mais uma vez — proferi. — Q uero recordar-te que o


meu aniversário continua.

— Aniversário ou não, é costume bater à porta antes de entrar.


Desaparece.

A dignidade tornava-se difícil, com as camélias no seu cabelo e


ombros e a caírem na chávena e no pão com manteiga, mas
consegui exibir uma expressão grave e transferi-

me para o canto mais distante do quarto.

— D esculpa, mas desde que me habituei a entrar pelas janelas,


tornei-me distraído acerca das portas. Na verdade, as boas
maneiras abandonaram-me.

— É melhor saíres, antes que o S eecombe venha buscar o


tabuleiro. Creio que ficaria chocado se te visse aqui, com ou sem
aniversário.

A quelas palavras constituíram um balde de água fria no meu


encantamento, mas reconheci que havia nelas uma certa lógica.
Talvez fosse arrojado de minha parte invadir os aposentos de uma
mulher que tomava o café da manhã, mesmo que em breve se
tornasse minha esposa, pormenor que Seecombe desconhecia.

— Saio já. Perdoa-me. Apenas queria dizer uma coisa. Amo-te.

A ntes de me retirar, notei que já não usava o colar de pérolas. D


evia tê-lo tirado depois de eu sair, de madrugada, além de que as
joias haviam sido guardadas. N o entanto, no tabuleiro do café da
manhã, encontrava-se o documento que eu assinara no dia anterior.

Seecombe aguardava-me no átrio, com um embrulho algo


volumoso.

— É uma data especial, Mr. Philip. Permita-me que lhe dê os


parabéns e deseje muitíssimas repetições deste dia.

— Muito obrigado, Seecombe.

— I sto não passa de uma ninharia. Uma pequena recordação dos


numerosos anos dedicados à família. Espero que não se sinta
ofendido, nem tomasse qualquer liberdade ao supor que o aceitaria
como uma prenda.

Retirei o envoltório do embrulho e deparou-se-me o rosto dele, de


perfil.

Porventura pouco favorecido, mas inconfundível.

— É uma bela prenda — declarei com gravidade. — Tão bela, na


verdade, que a pendurarei em lugar de honra junto da escada.
Arranja-me um martelo e pregos.

Puxou o cordão da sineta com dignidade, para incumbir J ohn da


tarefa, e colocamos o retrato na parede à saída da sala de jantar.

— A cha que a parecença me presta justiça, senhor? — perguntou.


— O u o artista terá conferido dureza excessiva às feições, em
particular ao nariz? Confesso que não estou totalmente satisfeito.

— A perfeição num retrato é impossível — assegurei-lhe. — Q uanto


a mim, considero-o inteiramente satisfatório.

— Nesse caso, é a única coisa que interessa.

A petecia-me anunciar-lhe imediatamente que Raquel e eu


tencionávamos casar, tal a alegria que me assolava, mas contive-
me devido a uma ponta de hesitação. O

assunto era demasiado solene e delicado para o divulgar de


rompante, e talvez conviesse que o fizéssemos juntos.

D irigi-me ao escritório, com a vaga intenção de trabalhar, mas a


única coisa que fiz

foi sentar-me à secretária e olhar vagamente na minha frente.


Continuava a ver Raquel, reclinada nas almofadas, a tomar o café
da manhã, com os botões de camélias dispersos à sua volta. A paz
do nascer do S ol dissipara-se do meu espírito e reaparecera o
estado febril da noite anterior. Cogitei que, quando estivéssemos
casados, não me afastaria da sua presença com tanta facilidade.
Tomaríamos o café da manhã juntos. A cabar-se-ia a primeira
refeição do dia na sala de jantar sem companhia. Iniciaríamos uma
nova rotina.

S oaram dez badaladas no relógio do campanário e peguei num


maço de faturas, para as pousar em seguida, após o que encetei
uma carta a um magistrado, mas não fui além da primeira linha. N
ão me acudiam palavras que formassem um sentido coerente, e
ainda faltavam duas horas para o meio-dia, altura em que Raquel
desceria do quarto. O

caseiro de Penhale, N at Bray, procurou-me com uma história


complicada e confusa de algumas cabeças de gado que tinham
invadido as terras de Trenant, mas a culpa era do vizinho, que não
conservava a vedação em bom estado, enquanto eu assentia com
movimentos de cabeça ocasionais, quase sem prestar atenção,
porque Raquel já se devia encontrar no jardim, a trocar impressões
com Tamlyn.

Por fim, interrompi-o e despedi-me, e, vendo que parecia


descoroçoado, indiquei-lhe que passasse pela sala comum do
pessoal e tomasse uma cerveja com S eecombe, esclarecendo que
não me ocupava de assuntos formais por ser dia do meu aniversário
e me considerar o mais feliz dos homens.
D epois, assomei à janela e chamei um dos empregados da
cozinha, a fim de lhe recomendar que preparasse uma refeição fria
para dois, porque me apetecia subitamente estar a sós com Raquel,
ao sol, sem o ambiente circunspecto da sala de jantar, após o que
me dirigi aos estábulos, para comunicar a Wellington que desejava o
S alomão selado para a senhora.

N ão o encontrei, e apercebi-me igualmente da ausência da


carruagem. Um dos moços, que varria o chão, não se mostrou muito
elucidativo:

— A senhora mandou aparelhar a carruagem pouco depois das dez


horas, mas não sei aonde foi. Talvez à aldeia.

Tornei a entrar em casa e chamei S eecombe, que todavia nada


pôde acrescentar além de explicar que Wellington levara a
carruagem para a entrada, pouco depois das dez, onde Raquel já se
achava à espera. Era a primeira vez que ela saía de manhã, e a
minha euforia desceu repentinamente vários furos. Tínhamos todo o
dia à nossa frente, e não fora nada daquilo que eu planeara.

Esforcei-me por aguardar calmamente o desenrolar dos


acontecimentos. O meio-dia chegou e soou a sineta para o almoço
do pessoal. A cesta do piquenique encontrava-se a meu lado e o
Salomão selado. Mas a carruagem não apareceu.

Finalmente, às duas, levei o cavalo para os estábulos e indiquei ao


moço que o desselasse. Atravessei o bosque em direção à nova
alameda, com a excitação matinal

totalmente dissipada e convertida em apatia. Mesmo que ela


regressasse naquele momento, seria demasiado tarde para pensar
num piquenique, pois o calor do sol de abril extinguir-se-ia às quatro
horas.

Q uase atingira a extremidade da alameda, em Four Turnings,


quando vi a carruagem transpor o portão. Fiquei à espera, a meio do
caminho, que os cavalos se aproximassem, e, ao avistar-me,
Wellington puxou as rédeas e o veículo imobilizou-se. O

peso do desapontamento, tão opressivo durante as últimas horas,


dissipou-se ao ver Raquel, que indicou ao cocheiro que reatasse a
marcha comigo sentado na sua frente.

Envolvia-a a capa negra e tinha o véu baixado, pelo que não me era
possível descortinar-lhe as feições.

— Andava à tua procura desde as onze horas — declarei. — Onde


estiveste?

— Em Pelyn, para falar com o teu padrinho.

Todas as preocupações e perplexidades, sepultadas nas


profundezas, acudiram ao primeiro plano do meu espírito e, com um
brusco pressentimento, perguntei-me que poderiam eles fazer, em
conjunto, para aniquilar os meus planos.

— Para quê? — insisti. — Q ue necessidade tinhas de lhe falar com


tanta urgência?

Ficou tudo resolvido há muito tempo.

— Não entendo bem o que queres dizer com “tudo”.

A carruagem sofreu um solavanco numa cova, e a minha prima


estendeu a mão enluvada para se segurar à correia a seu lado.
Como parecia remota, sentada na minha frente, de luto, o rosto
oculto pelo véu, a um mundo de distância da Raquel que me
apertara ao coração!

— O documento — expliquei. — Estás a pensar nisso. N ão é


possível alterá-lo.

Tenho a idade legal, e o meu padrinho não pode fazer nada. Foi
assinado, selado e testemunhado. É tudo teu.
— S im, agora compreendo. O fraseado era algo confuso e quis
certificar-me do que significava.

A inda a voz distante, fria, desprendida, enquanto nos meus ouvidos


e memória persistia a outra, a que me sussurrara à meia-noite.

— É tudo claro para ti agora?

— Muito claro.

— Nesse caso, nada mais há a dizer sobre o assunto?

— Nada — assentiu.

N ão obstante, subsistia uma ponta de dúvida no meu coração. D


esaparecera toda a espontaneidade, a alegria e sorrisos que
havíamos partilhado quando lhe dera as joias.

Demônios levassem o meu padrinho se tivesse dito alguma coisa


que a melindrara.

— Levanta o véu — pedi-lhe.

Por um momento, não se moveu. Em seguida, ergueu os olhos para


as costas

largas de Wellington e o moço a seu lado no banco do cocheiro. O


primeiro fez estalar o chicote, a fim de acelerar as passadas dos
cavalos no ponto em que as sinuosidades da alameda terminavam,
substituídas por uma longa reta.

Raquel levantou o véu, e os olhos que me fitaram não eram


sorridentes como eu esperara, ou marejados de lágrimas como
receara, mas firmes e serenos, de alguém que tratara de um
negócio e o resolvera a seu contento.

S em razão visível e, até certo ponto, frustrado, queria que os seus


olhos fossem como os vira ao nascer do sol. A figurara-se-me, por
mera insensatez porventura, que se devera ao fato de conservarem
a mesma expressão que os ocultara de trás do véu. Tal não
acontecia, porém. Ela decerto enfrentara assim o meu padrinho, do
outro lado da secretária no escritório dele, calma, determinada e
prática, enquanto eu a esperava em casa, atormentado pela dúvida.

— N ão voltei mais cedo porque eles insistiram em que ficasse para


almoçar, e não pude recusar — informou. — Tinhas traçado algum
plano?

Volveu o rosto para o cenário que deslizava diante da janela, e


perguntei a mim próprio como era possível que conseguisse assumir
uma atitude como se fôssemos duas pessoas que se haviam
encontrado por mera casualidade, quando na realidade dominava
com dificuldade o desejo de a apertar nos braços. Tudo se
modificara desde a véspera.

No entanto, ela não deixava transparecer que fosse assim.

— Tinha de fato traçado um plano — admiti —, mas já não


interessa.

— O s Kendall jantam hoje em casa de uns amigos, mas no


regresso irão ver-nos.

Creio que as minhas relações com a Louise melhoraram. Pelo


menos, não me tratou com tanta frieza.

— Ainda bem. Gostava que fossem amigas.

— Na verdade, continuo convencida de que ela te convém


perfeitamente.

S oltou uma risada, que eu não secundei. Parecia-me injusto tecer


comentários mais ou menos sarcásticos escolhendo Louise como
um dos alvos. Com efeito, eu não desejava o mínimo mal à rapariga
e esperava que encontrasse o marido mais apropriado.
— Penso que o teu padrinho não simpatizava particularmente
comigo, mas no final do almoço as nossas relações eram muito
mais cordiais. A tensão atenuou-se e o diálogo passou a desenrolar-
se com facilidade. Combinamos voltar a encontrar-nos em Londres.

— Em Londres? — estranhei. — Continuas decidida a partir para lá?

— Com certeza. Por que não?

N ão respondi. D e fato, tinha todo o direito de ir para Londres, se


lhe apetecia.

D evia haver lojas que pretendia visitar, compras a fazer, em


especial agora que dispunha de mais dinheiro, mas... Por que não
aguardaria algum tempo, até que pudéssemos efetuar a viagem
juntos? Precisávamos de discutir várias coisas, porém eu hesitava
em

abordá-las. A cudia-me agora, com todo o seu impacto, algo em que


até então não pensara. Havia nove meses que A mbrose falecera. O
mundo não aprovaria o nosso casamento antes de meados do
verão.

Com o romper do dia tinham surgido problemas ausentes do


horizonte à meia-noite, e eu não estava interessado em encará-los.

— N ão regressemos a casa imediatamente — propus. — Vamos


dar uma volta pelo bosque.

— Pois sim.

Paramos junto da casa do guarda da propriedade, no vale, apeamo-


nos e indiquei a Wellington que seguisse para casa com a
carruagem. Enveredamos por um dos caminhos à beira de um
ribeiro, que corria do topo de uma colina, e Raquel colheu algumas
primaveras, enquanto voltava a aludir ao tema de Louise, dizendo
que tinha uma inclinação natural para os jardins e, se escutasse os
conselhos adequados sobre a matéria, poderia tornar-se numa
autêntica autoridade. Todavia, a filha do meu padrinho podia
dedicar-se à jardinagem até ao dia do J uízo Final, pela parte que
me tocava, pois eu não sugerira o passeio no bosque para trocar
impressões sobre ela.

Retirei-lhe as primaveras da mão, pousei-as no chão, estendi a capa


debaixo de uma árvore e convidei-a a sentar-se.

— N ão estou cansada — replicou. — Passei mais de uma hora


sentada na carruagem.

— E eu estive sentado mais de três, à porta de casa, ansioso por


que chegasses.

D escalcei-lhe as luvas, beijei as mãos, coloquei o seu chapéu e véu


entre as flores e tornei os beijos extensivos ao rosto.

— Era este o meu plano, que estragaste ao almoçares com os


Kendall. . .

— Suspeitava disso, e foi a principal razão por que aceitei o


convite...

— Prometeste não me negar nada no dia do meu aniversário.

— A indulgência tem limites.

Contudo, eu não descortinava nenhum. Voltava a sentir-me feliz,


com toda a ansiedade dissipada.

— S e o guarda costuma passar por aqui, pode surpreender-nos e


ficaremos embaraçados — acrescentou.

— Ele ainda ficaria mais quando lhe pagasse o salário no sábado. O


u ocupar-te-ás também disso? Passei a ser o teu servo, mais ou
menos como o S eecombe, a aguardar ordens.

Pousei a cabeça no seu regaço e ela fez deslizar os dedos entre o


meu cabelo.
Fechei os olhos e desejei que o momento se prolongasse
eternamente.

— Estranhas que não te tenha agradecido — observou. — N otei a


tua expressão perplexa na carruagem. N ão há nada que eu possa
dizer. S empre me julguei impulsiva,

mas tu ainda o és mais. Vou necessitar de algum tempo para


abarcar toda a dimensão da tua generosidade.

— N ão fui generoso — asseverei. — Limitei-me a repor a verdade


da situação.

D eixa-me beijar-te, mais uma vez. Tenho de me desforrar das horas


de solidão à tua espera.

Seguiu-se um breve silêncio, que ela acabou por quebrar:

— A prendi, pelo menos, uma coisa. N ão voltar a passear no


bosque contigo.

Deixa-me levantar.

A judei-a a pôr-se de pé e, com uma vênia, entreguei-lhe as luvas e


o chapéu. Em seguida, ela abriu a bolsa, extraiu um pequeno
embrulho e retirou o envoltório.

— A qui tens a minha prenda de aniversário, que já te devia ter


dado. S e soubesse que herdaria uma fortuna, a pérola seria maior.
— Prendeu o alfinete na minha gravata.

— E agora, estou autorizada a regressar a casa?

Estendeu-me a mão, e recordei-me de que não almoçara, o que


contribuíra para criar um apetite devorador para o jantar.

Recomeçamos a caminhar — eu a pensar em frango assado e


bacon e na noite que se avizinhava —, até que se nos deparou a
laje de granito sobranceira ao vale, que, embora eu o tivesse
esquecido, nos aguardava ao fundo da passagem. Fiz menção de
me desviar para o arvoredo, a fim de a evitar, mas era demasiado
tarde. Raquel já a vira e, largando-me a mão, imobilizou-se, os olhos
fixos nela.

— Que é aquilo parecido com uma sepultura?

— Uma simples laje de granito — apressei-me a replicar, com


simulada indiferença. — Uma espécie de marco de referência. O
caminho entre as árvores é menos íngreme. Vamos.

— Aguarda um momento. Quero vê-la de perto. Nunca tinha


passado por aqui.

A cercou-se e olhou-a com curiosidade. Vi os lábios moverem-se


enquanto lia os dizeres, com apreensão crescente. Talvez fosse
impressão minha, mas pareceu-me que estremecia e a leitura se
prolongava mais do que o necessário. Por fim, voltou para junto de
mim, mas desta vez não me deu a mão. N ão emitiu qualquer
comentário sobre a laje, porém esta erguia-se entre nós como uma
barreira. N ão pude deixar de me lembrar do porta-moedas que
continha a carta enterrado debaixo da pedra. O silêncio da minha
companheira provava que estava emocionada. "S e eu não falar
agora, neste momento, a laje de granito opor-se-á sempre entre
nós", refleti. "Com o rolar dos anos, as suas dimensões
aumentarão".

— Fazia tenções de te levar aí — expliquei, numa voz que me


pareceu pouco natural. — Era a vista que o A mbrose preferia em
toda a propriedade. É a razão da pedra colocada nesse lugar.

— Mas não fazia parte dos teus planos do aniversário mostrá-la —


redarguiu

numa inflexão dura, que quase não reconheci.

— Pois não — aquiesci a meia voz.


O resto do caminho foi percorrido em silêncio e, uma vez em casa,
ela seguiu diretamente para o quarto.

Tomei banho e mudei de roupa, já sem a mínima euforia — apático


e acabrunhado. Q ue demônio nos conduzira à laje de granito, que
lapso de memória?

Raquel não sabia, como eu, que A mbrose costumava passar horas
naquele local, sorridente e apoiado à bengala, com uma expressão
de nostalgia por detrás do olhar divertido. A laje de granito, alta e
orgulhosa, receberia a substância do próprio homem que as
circunstâncias não tinham permitido que morresse no seu lar e, ao
invés, ficara sepultado a muitas centenas de quilômetros, no
cemitério protestante de Florença.

Tratava-se de uma sombra na minha noite de aniversário.

A o menos, ela ignorava a existência da carta, do que jamais se


inteiraria, e eu perguntava-me, enquanto me vestia para jantar, que
outro demônio me impelira a enterrá-la naquele lugar em vez de a
queimar, como se possuísse o instinto de um animal que voltaria um
dia para a retirar do esconderijo. Esquecera todo o seu conteúdo.

D ominara-o a doença quando a escrevera. Atormentado,


desconfiado, com as asas da morte tão próximas, não contara com
as suas palavras. D e súbito, como se bailasse diante de mim na
parede, revi a frase em que referia que o dinheiro constituía o único
caminho de acesso ao coração de Raquel.

A s palavras brotaram do espelho quando me detive na sua frente


para me pentear.

Continuavam presentes no momento em que colocava na gravata o


alfinete que ela me oferecera.

A companharam-me ao longo da escada e à sala de estar e


passaram da escrita para a voz dele, a salientar: “...o único caminho
de acesso ao coração de Raquel.”
Q uando apareceu para jantar, ela usava o colar de pérolas, como
que num gesto de perdão, um tributo ao meu aniversário. N o
entanto, por estranho que parecesse, o fato de o usar, em vez de a
aproximar de mim, tornava-a mais distante. N aquela noite, eu teria
preferido ver-lhe o pescoço sem aquele ornamento.

S entamo-nos à mesa, com S eecombe e J ohn incumbidos de nos


servir as variadas iguarias próprias de um jantar de aniversário.
Conversamos, rimos e brindamos numerosas vezes, mas, no fundo,
eu pressentia que se tratava de mera fachada da parte de ambos
em virtude de não nos encontrarmos sós, em cuja eventualidade
mergulharíamos em profundo e tenebroso silêncio.

A cudiu-me uma espécie de desespero imperioso para que me


tornasse jovial, eufórico mesmo, e a única solução para isso
consistia em beber sem restrições e insistir em encher igualmente o
copo de Raquel. N a noite anterior, eu caminhara até o farol, alegre,
excitado, como que imerso num sonho. A gora, apesar de, nas
horas intermédias,

ter despertado para a riqueza do mundo inteiro, também ficara


ciente das sombras que me rodeavam.

Levemente aturdido, eu observava-a do outro lado da mesa, via-a rir


por cima do ombro para S eecombe, e afigurava-se-me que nunca
estivera tão atraente. S e conseguisse recuperar a boa disposição
das primeiras horas daquele dia, a serenidade e a paz, e mesclá-las
com os momentos deliciosos entre as primaveras, sob as árvores
altaneiras, voltaria a sentir-me feliz.

E Raquel igualmente. E conservaríamos aquela disposição para


sempre, preciosa e sagrada, a fim de a transportarmos para o
futuro.

S eecombe tornou a encher-me o copo, e parte das sombras


atenuou-se, as dúvidas reduziram-se. “Q uando estivermos sós,
tudo correrá bem e perguntar-lhe-ei esta noite mesmo se podemos
casar em breve, dentro de semanas, um mês o máximo”, refleti.
Ansiava por comunicar a todos que ela manteria o seu atual apelido.

Continuaria a ser Mrs. Ashley, mas esposa de Philip Ashley.

Creio que nos conservamos sentados até tarde, pois ainda não
abandonáramos a mesa quando ouvimos o ruído de rodas de uma
carruagem no caminho de acesso à casa.

S oou a sineta da porta e os Kendall foram introduzidos na sala de


jantar, onde nos mantínhamos entre a confusão de restos da
sobremesa e garrafas de vinho.

Levantei-me, com pouca firmeza devo reconhecer, e puxei duas


cadeiras para a mesa, com o meu padrinho a protestar que já
tinham jantado e haviam passado por minha casa apenas para me
dar os parabéns.

S eecombe trouxe copos para ambos, e vi Louise, de vestido azul,


olhar-me com uma expressão interrogativa, sem dúvida convencida
de que eu bebera em excesso. Tinha razão, mas o fato não ocorria
com frequência e, de resto, ela devia habituar-se à ideia de que não
lhe competia criticar os meus atos.

E, de caminho, o pai devia igualmente inteirar-se disso.

I mpunha-se que, de uma vez por todas, pusesse termo aos seus
planos de um eventual casamento entre nós.

Voltamos a sentar-nos e estabeleceu-se imediatamente animada


conversa entre os três, enquanto eu permanecia silencioso na
minha extremidade da mesa, quase sem lhes prestar atenção, mais
preocupado com a revelação que estava decidido a fazer.

Por fim, Nick Kendall virou-se para mim, de copo na mão, e brindou:

— Aos teus vinte e cinco anos, Philip. Uma longa vida, cheia de
felicidades.
O trio concentrou-se em mim e, não sei se devido ao vinho que
ingerira ou à euforia, considerei que o meu padrinho e Louise eram
amigos nos quais podia confiar, enquanto Raquel, a minha amada,
de olhos marejados, exibia um sorriso de encorajamento.

O momento não podia, pois, ser mais oportuno. Como S eecombe e


J ohn não se

achavam presentes, o segredo ficaria encerrado entre nós os


quatro.

Levantei-me, agradeci as felicitações e, pegando no copo, anunciei:

— Também quero fazer um brinde. D esde esta manhã, julgo-me o


mais feliz dos homens. D esejo que o padrinho e a Louise bebam
em homenagem a Raquel, minha futura esposa.

Esvaziei-o e olhei-os, sorridente. N inguém se moveu. D ivisei


perplexidade na expressão do meu padrinho e, volvendo o olhar
para Raquel, notei que o sorriso desaparecera e me contemplava, o
rosto convertido numa máscara glacial.

— Enlouqueceste, Philip? — perguntou.

Pousei com mão trêmula, na borda da mesa, o copo, que resvalou


para o chão, onde se desfez em vários pedaços. S enti o coração
palpitar desordenadamente. N ão conseguia afastar os olhos do
rosto duro, que empalidecera.

— Lamento — articulei, por fim. — Precipitei-me ao mencionar o


evento. Mas não esqueças que é o meu aniversário e eles são os
meus melhores amigos.

Segurei-me à mesa para conservar o equilíbrio, ao mesmo tempo


que me apercebia de um latejar nos ouvidos. Raquel parecia não
abarcar a situação. D esviou os olhos de mim e fixou-os no meu
padrinho e em Louise.
— Receio que o aniversário e o vinho subissem à cabeça do Philip.
D esculpem-lhe a atitude de colegial e esqueçam-na, se puderem.
Estou certa de que pedirá perdão quando recuperar a sensatez.
Passamos à sala de estar?

Levantou-se e abriu caminho em direção à porta. Continuei imóvel,


de pé, o olhar perdido nos restos da refeição, sem qualquer
sensação, com uma espécie de vácuo onde se devia encontrar o
coração. A guardei uns minutos e, com passos incertos, antes que S
eecombe e J ohn reaparecessem para levantar a mesa, encaminhei-
me para a biblioteca e sentei-me na escuridão, diante da lareira,
onde ardiam algumas escassas brasas, sem que as velas tivessem
sido acesas. Através da porta entreaberta, ouvia o murmúrio de
vozes na sala. A pertei a cabeça agitada entre as mãos e senti o
gosto azedo do vinho na língua.

S e permanecesse ali, na penumbra, talvez recobrasse o equilíbrio


mental e o aturdimento se dissipasse. A bebida constituía a causa
da minha precipitação. Em todo o caso, por que se mostrara ela tão
escandalizada — era o termo adequado — com o que eu dissera?

Podíamos ter pedido ao meu padrinho e a Louise que guardassem


segredo. D ecerto não manifestariam dificuldade nem relutância em
compreender.

Conservei-me sentado, à espera de que se retirassem. Por último —


parecia que transcorrera uma eternidade, mas duvido que fosse
mais de uma dezena de minutos —, as vozes aumentaram
gradualmente de intensidade e transferiram-se para o átrio. O uvi S
eecombe abrir a porta, dar-lhes as boas-noites e em seguida trancá-
la, após o que soou o ruído do rodado da carruagem.

Entretanto, o meu cérebro desanuviara-se um pouco. Mantive-me à


escuta e

detectei o ruge-ruge do vestido de Raquel.


A proximou-se da porta entreaberta da biblioteca, parou por um
instante e afastou-se. Q uando distingui os seus passos na escada,
segui-a, para a alcançar à entrada do corredor do primeiro piso,
onde se detivera para apagar as velas do patamar.

Olhamo-nos por um momento em silêncio, ao clarão oscilante.

— Pensava que tinhas ido para a cama — murmurou. — A


conselho-te a fazê-lo, antes que produzas mais estragos.

— A gora que eles se retiraram, perdoas-me? A credita que podes


confiar nos Kendall. Não divulgarão o nosso segredo.

— A ssim espero, porque não estão ao corrente. Fazes-me pensar


numa criada de quarto que se refugia no sótão com um colega.
Conheci situações embaraçosas no passado, mas esta ultrapassa
tudo o admissível.

Conservava a expressão glacial que não era sua.

— N ão parecias embaraçada ontem à meia-noite. Prometeste, e


não estavas contrariada. Não hesitaria em me retirar imediatamente,
se me ordenasses.

— Mas que te prometi eu?

— Casar comigo, Raquel.

Ela tinha o castiçal na mão e ergueu-o, para que a chama me


iluminasse bem o rosto.

— Atreves-te a afirmar que prometi casar contigo? A cusei-te, diante


dos Kendall, de teres enlouquecido, e cada vez me convenço mais
disso. S abes perfeitamente que não te fiz qualquer promessa do
gênero.

A rregalei os olhos de incredulidade. N ão fora eu que enlouquecera,


mas ela. S entime invadido por um calor intenso nas faces.
— Perguntaste o que desejava para o meu aniversário. A única
coisa que me interessava, e continua a interessar, era que casasses
comigo. Que mais poderia desejar?

N ão respondeu. Persistiu com o olhar cravado em mim, incrédula,


perplexa, como se escutasse um idioma estrangeiro impossível de
traduzir ou compreender, e apercebi-me subitamente, com angústia
e desespero, de que era o que acontecia entre nós: tudo o que
ocorrera não passara de um equívoco.

Ela não entendera o que lhe pedira à meia-noite, nem eu, no meu
cego deslumbramento, o que me dera, pelo que aquilo que se me
afigurara uma afirmação de amor constituía algo de diferente, sem
significado, a que atribuíra a sua própria interpretação.

S e se sentia embaraçada, que diria eu, ao reconhecer que


cometera um erro tão clamoroso a meu respeito?

— Vou formular o pedido em linguagem clara — decidi. — Queres


casar comigo?

— N unca, Philip — replicou, com um gesto largo, como que para


pôr termo

definitivo ao assunto. — Considera esta resposta irrevogável. S e


acalentavas alguma esperança, lamento-o profundamente. N ão tive
a menor tenção de te induzir em erro.

Boa noite.

Deu meia volta para se afastar, mas segurei-lhe a mão com firmeza.

— N ão me amas, nesse caso? Foi tudo uma comédia? Porque não


me disseste a verdade, ontem à noite, e mandaste sair do quarto?

O s olhos tornaram a denunciar perplexidade, como se eu tivesse


aludido a um fato incompreensível. Éramos dois estranhos, sem o
mínimo elo comum. Ela provinha de outras terras, de outra raça.
— Atreves-te a recriminar-me pelo que aconteceu? Q uis apenas
agradecer-te.

Tinhas-me oferecido as joias.

Creio que abarquei naquele instante tudo o que se tornara claro aos
olhos de A mbrose. Compreendi o que vira nela e pelo que ansiara e
nunca obtivera. Entendi o tormento, a mágoa e o abismo que se
cavara entre ambos, cada vez mais profundo. O s olhos de Raquel,
tão negros e diferentes dos nossos, fitavam-nos, sem compreender.

A mbrose encontrava-se a meu lado, na sombra, à margem do


oscilante clarão da vela.

N ós a contemplávamos, torturados, sem esperança, enquanto nos


retribuía a mirada com uma expressão acusadora. O seu rosto
também era estrangeiro, na penumbra, pequeno e estreito, a face
de uma moeda. A mão que eu segurava já não irradiava calor. Fria e
frágil, os dedos debatiam-se para se soltar e os anéis cravavam-se-
me na palma. Larguei-a e, ao fazê-lo, desejei tornar a pegar-lhe.

— Por que me olhas assim? — murmurou. — Q ue mal te fiz? A tua


expressão alterou-se.

Tentei determinar intimamente que mais tinha para dar. Ela dispunha
da propriedade, dinheiro e joias. E possuía a minha mente, corpo e
coração. Restava apenas o meu nome, e já o usava. N ão faltava
nada. A menos que fosse o medo. Retirei-lhe o castiçal da mão e
pousei-o na mesinha no topo da escada. Em seguida, rodeei-lhe o
pescoço com os dedos e ficou impossibilitada de se mover,
limitando-se a observar-me, de olhos esgazeados. D ir-se-ia que
tinha uma ave assustada entre as mãos, a qual, com o intensificar
da pressão, bateria as asas por um momento e morreria,
alcançando assim a liberdade.

— N unca me abandones — proferi entredentes. — J ura que


nunca, mas mesmo nunca, o farás.
Tentou mover os lábios para responder, mas não conseguiu, em
virtude da pressão dos dedos. A liviei-a até a soltar, e ela recuou, ao
mesmo tempo que levava a mão à garganta. Havia dois vergões
avermelhados, um de cada lado do colar de pérolas.

— E agora, casas comigo? — insisti.

N ão respondeu e continuou a retroceder, ao longo do corredor, sem


desviar os

olhos do meu rosto, a mão ainda pousada na garganta. Vi a minha


sombra na parede, uma coisa monstruosa destituída de forma e
substância. Raquel acabou por desaparecer sob a arcada e ouvi a
porta fechar-se e a chave rodar na fechadura. Entrei no meu quarto
e, ao descortinar a minha imagem no espelho, detive-me de olhos
arregalados. S ó podia ser A mbrose o homem que se encontrava
na minha frente, a fronte perlada de transpiração e faces esvaídas
de toda a cor. Por fim, movi-me e voltei a ser eu, de ombros
encurvados, braços desajeitados e demasiado compridos, hesitante,
o Philip que se permitira uma loucura de colegial. Raquel pedira aos
Kendall que perdoassem e esquecessem.

A bri a janela, mas não havia luar e chovia com intensidade. O vento
agitou os cortinados, que atingiram o bloco-calendário em cima da
prateleira da chaminé e o atiraram ao chão. A gachei-me para o
recolher, arranquei a folha de cima, amarrotei-a e atirei-a ao lume. O
dia das mentiras chegara ao fim.

Capítulo Vigésimo Terceiro

D e manhã, quando me sentei à mesa para tomar o café da manhã


e fixei o olhar na fúria dos elementos através da janela, S eecombe
entrou com um bilhete numa salva de prata.

A o vê-lo, o meu coração experimentou um sobressalto. Talvez se


tratasse de um pedido para a procurar no quarto. Mas não era de
Raquel, como verifiquei pela caligrafia, mais volumosa e
arredondada. Provinha de Louise.
— O moço de Mr. Kendall acaba de o trazer — informou o
mordomo. — Ficou a aguardar a resposta.

Desdobrei o papel e li:

"Caro Philip:

Tenho estado muito preocupada com o que se passou ontem à


noite. Creio que compreendo o que sentiste, mais do que o meu pai.
Lembra-te de que sou, e sempre serei, tua amiga. Esta manhã,
tenho de me deslocar à aldeia. S e precisas de alguém com quem
conversar, podemos encontrar-nos no adro da igreja, por volta do
meio-dia.

Louise."

Guardei-o na algibeira e pedi a S eecombe que fosse buscar papel e


uma caneta. O

meu primeiro instinto, como sempre ante a sugestão de um encontro


com quem quer que fosse e, mais especificamente, naquela manhã,
consistiu em escrever umas palavras de agradecimento e recusar a
sugestão. N o entanto, quando o mordomo reapareceu com o que
lhe pedira, tinha mudado de ideias. A noite em claro e a agonia da
solidão que me assolava faziam ansiar por companhia. Por
conseguinte, tracei meia dúzia de palavras em que prometia
comparecer no local e hora propostos.

— D epois de entregares isto ao portador, diz ao Wellington que sele


o Cigano às onze horas.

Terminado o café da manhã, encerrei-me no escritório, dei


seguimento às faturas por saldar e completei a carta que iniciara na
véspera. A gora, afigurava-se-me mais fácil.

Uma seção do meu cérebro funcionava de um modo quase


impessoal: tomava nota dos fatos e números e armazenava-os para
utilização posterior, em obediência à força do hábito.
Concluído o trabalho, encaminhei-me para os estábulos, disposto a
afastar-me apressadamente da casa e de tudo o que representava
para mim. N ão segui pela alameda através do bosque, com as suas
recordações da véspera; cruzei o parque em direção à estrada.

O mau tempo, que se mantivera ausente em fevereiro e março,


surgira finalmente.

N uvens densas e negras cruzavam o céu a intervalos cada vez


menos espaçados, para despejarem aguaceiros diluvianos, com
fortes rajadas de vento, enquanto o mar apresentava ondulação
alterosa. N at Bray, de quem me desembaraçara tão
precipitadamente na véspera, conservava-se junto do portão quando
passei e deu-me os bons-dias com um gesto respeitoso, porém o
som da sua voz não me chegou aos ouvidos.

Havia pouca gente nas ruas quando desci a colina e entrei na


aldeia, e as pessoas que se aventuravam moviam-se
apressadamente, indicando que só uma necessidade imperiosa as
obrigaria a exporem-se à fúria dos elementos. D eixei o Cigano à
entrada da Rose and Crown e encaminhei-me para a igreja.

Louise encontrava-se abrigada à entrada e transpusemos a pesada


porta. O

silêncio e paz que imperavam constituíam um contraste


tranquilizador depois da implacável intempérie do exterior, embora
pairasse um leve cheiro a mofo e subsistisse a usual temperatura
baixa. Fomos sentar-nos junto da figura jacente de mármore do meu
antepassado, com os filhos lacrimosos a seus pés, e ponderei
quantos A shley estariam dispersos pela região, uns ali, outros na
minha própria paróquia, e como tinham amado, sofrido e depois
prosseguido o seu caminho.

O instinto impelia-nos a falar em surdina, em virtude da quietude


que nos envolvia.
— Há muito tempo que ando preocupada contigo — explicou ela. —
D esde antes do Natal, mas não me atrevia a tocar no assunto. De
qualquer modo, não farias caso.

— N ão havia necessidade — repliquei. — Tudo correu muito bem


até ontem à noite. A culpa foi minha, pelo que disse.

— Não o dirias se não acreditasses que correspondia à verdade.


Houve logro desde o princípio e foste preparado para ele, antes de
ela aparecer.

— O logro só ocorreu nas últimas horas. Se me equivoquei, sou o


único culpado.

N ovo aguaceiro torrencial sacudiu as janelas do lado sul do templo


e a escuridão no interior acentuou-se.

— Por que veio ela? — volveu Louise. — Por que percorreu uma
distância tão grande para te atormentar? N ão foi o sentimentalismo
ou a curiosidade que a trouxe.

Chegou à Inglaterra e à Cornualha com um objetivo bem definido.

O lhei-a com estranheza, mas a sua expressão revelava a maior


simplicidade, sem qualquer malícia.

— Não compreendo.

— Ficou com o dinheiro. Era esse o plano que tinha em mente antes
de iniciar a viagem.

Um dos professores de Harrow explicara-nos, uma ocasião, que a


verdade era uma coisa intangível, invisível, que por vezes se nos
deparava sem que a reconhecêssemos,

descoberta, e compreendida apenas pelos idosos perto da sua


morte ou, às vezes, pelas pessoas muito puras, muito jovens.
— Enganas-te — objetei. — N ão sabes nada a seu respeito. É uma
mulher impulsiva e emocional, com fases imprevisíveis e estranhas,
mas nada mais. Foi um impulso que a levou a vir de Florença e a
emoção que a reteve cá. Ficou porque se sentia feliz e tinha o
direito de permanecer aqui.

Olhou-me com compaixão e pousou a mão no meu joelho.

— S e fosses menos vulnerável, ela não teria ficado. Procuraria o


meu pai, tentaria chegar a um acordo razoável e partiria. I
nterpretaste mal as suas intenções desde o princípio.

Levantei-me e refleti que aguentaria melhor se Louise tivesse


agredido Raquel com as suas próprias mãos, cuspido na cara ou
tentado arrancar-lhe os cabelos. S eria uma atitude primitiva e
animal. Representaria uma luta leal. Mas aquilo, no silêncio da
igreja, com o alvo dos seus comentários ausente, constituía calúnia
pura e simples, quase blasfêmia.

— N ão quero continuar a escutar-te — declarei. — D esejava o teu


conforto e simpatia. Se não os tens para me transmitir, paciência.

— N ão compreendes que tento ajudar-te? — Pôs-se igualmente de


pé e segurou-me o braço. — És tão cego a tudo que não merece a
pena insistir. S e não está na natureza de Mrs. A shley traçar planos
com meses de antecedência, por que tem enviado a sua mesada
para o estrangeiro, semana a semana, mês a mês, ao longo do
inverno?

— Como o sabes?

— O meu pai tem meios para se inteirar. S ão coisas que não se


podiam ocultar entre Mr. Couch e ele, na sua qualidade de teu tutor.

— Muito bem. A dmitamos que o fez. Ela nunca me ocultou que


tinha dívidas em Florença. Os credores pressionavam-na cada vez
mais.
— D e um país para outro? A chas possível? D uvido. N ão será
mais plausível inferir que esperava reunir um fundo avultado para o
seu regresso e passou cá o verão por saber que a herança ficaria
legalmente nas tuas mãos no dia do vigésimo quinto aniversário,
que foi ontem? D epois, com as funções de tutor do meu pai
extintas, podia sugar-te o dinheiro a seu bel-prazer. S ó que não
houve necessidade de se esforçar tanto, pois ofereceste-lhe tudo.

Custava-me a crer que uma moça que conhecia desde a infância e


me merecia inteira confiança possuísse um espírito tão cáustico e
se exprimisse — esta era a faceta mais difícil de suportar — com
tanta lógica e senso comum, para deitar virtualmente por terra uma
mulher como ela.

— É a mente legal do teu pai que fala pela tua boca, ou tu própria?

— Conheces a reserva dele. A liás, pouco me revelou sobre o


assunto. S ei traçar

conclusões daquilo que vejo.

— Embirraste com ela desde o primeiro dia — acusei. — N um


domingo, salvo erro, na missa. Regressaste conosco para jantar e
não disseste uma palavra, sentada à mesa, empertigada e altiva.
Decidiste antipatizar com ela desde o princípio.

— E tu? — contrapôs. — Esqueceste o que disseste a seu respeito


antes de chegar?

Lembro-me perfeitamente da animosidade que lhe dispensavas. E


com boas razões.

A porta lateral rangeu, para dar passagem à mulher da limpeza, A


lice Tabb, de vassoura em punho. Olhou-nos furtivamente e
desapareceu atrás do púlpito, porém a sua presença achava-se
consciente nos nossos espíritos e a solidão terminara.
— É inútil, Louise, não me podes valer. S omos amigos de longa
data, mas se continuarmos a conversar acabaremos por nos
detestar.

Olhou-me em silêncio por uns instantes e soltou-me o braço.

— Ama-a assim tanto?

Voltei o rosto para o outro lado. Era mais jovem do que eu, uma
rapariga, pelo que não podia compreender. Ninguém poderia, à
exceção de Ambrose, que morrera.

— Que encerra o futuro para vocês? — persistiu.

O s nossos passos ecoavam, enquanto seguíamos pelo corredor


central. O

aguaceiro que alagara as janelas terminou quase bruscamente e os


raios solares, algo tímidos, iluminaram a cabeça de São Pedro por
uns instantes.

— Propus-lhe casamento — informei. — Fi-lo uma vez e mais tarde


outra. E

continuarei a propor. Aí tens o meu futuro.

Transpusemos a porta da igreja e detivemo-nos à entrada.

Um melro, indiferente ao tempo instável, cantava empoleirado numa


árvore próxima e um rapaz de um talho, com um saco às costas,
chapinhava no chão molhado no cumprimento de algum recado.

— Quando foi a primeira? — quis saber Louise.

O cenário de ternura voltou a acudir-me ao pensamento, com o


clarão das velas e a atmosfera de intimidade. D e repente, tudo se
dissipara à nossa volta. S ó restáramos Raquel e eu.
Q uase como numa paródia à meia-noite, o relógio do campanário
emitiu as doze badaladas do meio-dia.

— Na manhã do meu aniversário.

Aguardou que soasse a última, quase ensurdecedora sobre as


nossas cabeças.

— Que respondeu?

— Desentendemo-nos. Julguei que aceitava, quando na realidade


recusava.

— Tinha lido o documento?

— Não. Leu aquela carta. Mais tarde, na mesma manhã.

Avistei o breque dos Kendall, com o cocheiro, diante da igreja. Q


uando viu a filha

do patrão à entrada, o homem ergueu o chicote e desceu do banco.


Louise apertou a capa à sua volta e puxou o capuz para a fronte.

— N esse caso, ela não perdeu muito tempo com a sua leitura e
procurar o meu pai.

— Não compreendia bem as expressões empregadas.

— Mas ficou ciente quando se retirou de Pelyn. Lembro-me


perfeitamente de o meu pai lhe dizer, ao despedirmo-nos: "A
cláusula sobre um novo casamento poderá parecer-lhe um pouco
dura. D eve continuar viúva, se deseja conservar a fortuna." Ela
sorriu e respondeu: "Corresponde inteiramente ao meu desejo."

O cocheiro acercou-se com o guarda-chuva aberto antes que Louise


abandonasse a proteção da entrada da igreja, pois principiara mais
um aguaceiro.
— Essa cláusula foi introduzida para salvaguarda da herança —
expliquei — e impedir o seu esbanjamento por um estranho. Se ela
casasse comigo, não se aplicaria.

— A í é que te enganas. S e vocês casassem, voltava tudo para o


teu poder. A posto que não tinhas pensado nisso.

— E daí? — argumentei. — Partilharia o dinheiro até o último pêni


com ela. N ão acredito que recusasse casar comigo devido à
cláusula que referes. É isso que pretendes sugerir?

Embora o capuz dissimulasse o rosto, os olhos cinzentos


observaram-me com uma expressão grave.

— Uma mulher casada não pode enviar dinheiro do marido para fora
do país, nem regressar à terra de origem. Não sugiro coisa alguma.

O cocheiro levou dois dedos ao chapéu e segurou o guarda-chuva


sobre a cabeça dela. Segui-a até ao breque e ajudei-a a instalar-se.

— N ão te ajudei em nada e julgas-me dura e implacável —


murmurou. — Às vezes, uma mulher vê com mais clareza que um
homem. Perdoa-me se te magoei.

A penas desejo que voltes a ser como outrora. — Virou-se para o


cocheiro. — Voltemos para Pelyn, Thomas.

Mantive-me imóvel por uns momentos e fui sentar-me na pequena


sala da Rose and Crown. Louise falara verdade ao dizer que não me
ajudara. Procurara-a em busca de conforto e não o obtivera. A
penas fatos frios e duros, alterados até a distorção. Tudo o que
dissera se revestiria de sentido na mente de um advogado.

Eu sabia perfeitamente como o meu padrinho pesava as coisas na


sua balança, sem permitir a mínima interferência do coração. A filha
não podia evitar a herança da sua visão rigorosa e lógica das
situações.
Eu estava mais bem inteirado do que ela do que ocorrera entre mim
e Raquel.

Rainaldi dissera que ela era uma mulher impulsiva. Em virtude de


um desses impulsos, permitira que eu a amasse. E, graças a outro,
repelira-me.

Ambrose achava-se ao corrente disso. E compreendera.

Tanto para ele como para mim, não poderia existir outra mulher ou
outra esposa.

Conservei-me longamente na sala fria da Rose and Crown.

O dono serviu-me carneiro assado frio e cerveja, embora não me


apetecesse comer.

Mais tarde, encaminhei-me para o cais e olhei pensativamente a


ondulação que se desfazia nos degraus de pedra. A s embarcações
de pesca oscilavam nas suas amarras, e um homem despejava com
uma lata a água do fundo da sua.

A s nuvens ameaçadoras continuavam a sulcar o céu, cada vez


mais baixas, e as árvores da margem oposta achavam-se envoltas
em neblina. S e eu pretendia regressar a casa sem ficar encharcado
até aos ossos e o Cigano sem um resfriado, convinha que o fizesse
antes que o tempo se agravasse. A gora, não se via virtualmente
vivalma nas ruas.

S ubi para a sela, enveredei pela encosta da colina, alcancei Four


Turnings e segui pela ampla alameda. Cerca de uma centena de
metros adiante, o cavalo começou a coxear, pelo que decidi apear-
me e levá-lo pelas rédeas, para não o sobrecarregar com o meu
peso.

O vapor desprendia-se do vale pantanoso numa nuvem branca e


apercebi-me de súbito, com um arrepio, de que estivera longamente
exposto ao frio, desde que me sentara na igreja com Louise e
depois na sala sem aquecimento da Rose and Crown.

Decididamente, vivia num mundo diferente do da véspera.

Prossegui em frente pelo caminho que tomara com Raquel. A s


nossas pegadas ainda eram visíveis, onde estivéramos a colher
primaveras. O percurso parecia interminável, sobretudo com o
Cigano a coxear, e a chuva introduzia-se no colarinho da minha
camisa para me enregelar as costas.

Q uando cheguei a casa, sentia-me demasiado cansado para dar as


boas-tardes a Wellington e limitei-me a confiar-lhe as rédeas sem
uma palavra, deixando-o a olhar-me com perplexidade. D epois do
que se passara na véspera, só me apetecia beber água, mas como
tinha frio e estava encharcado considerei que um pouco de brande
contribuiria para me restituir parte do calor perdido. A ssim, entrei na
sala de jantar, onde J ohn punha a mesa. Pedi-lhe que fosse buscar
um cálice e, enquanto não reaparecia, vi que havia três talheres.
Quando regressou, perguntei:

— Temos convidados?

— Miss Pascoe, que está cá desde a uma hora. A senhora passou


por lá da parte da manhã, pouco depois de o senhor sair, e voltou
com ela. Veio para ficar.

— Miss Pascoe veio para ficar? — estranhei.

— S im, senhor. Miss Mary, a que ensina catecismo aos domingos.


Temos estado atarefados a preparar-lhe o quarto cor-de-rosa. Ela e
a senhora encontram-se no boudoir neste momento.

Continuou a pôr a mesa e eu dirigi-me ao primeiro piso, sem me


preocupar mais

com o brande. Havia um bilhete com a letra de Raquel, na mesa do


meu quarto. A bri-o e verifiquei que não continha qualquer forma de
endereço nem data.

"Pedi à Mary Pascoe que ficasse comigo para me fazer companhia.


D epois do que aconteceu ontem, não quero continuar sozinha
contigo. Podes ir ter conosco ao boudoir, se quiseres, antes e após
o jantar. Fico-te grata se revelares um pouco de cortesia.

Raquel."

Ela não podia estar a exprimir-se com sinceridade. A quilo não podia
ser verdade.

Q uantas vezes nos tínhamos rido à socapa das filhas dos Pascoe,
e muito em particular da logorreica Mary, uma edição mais jovem,
mas não menos fastidiosa, da mãe. Eu admitia que Raquel a
convidasse para nos divertirmos à sua custa, porém os termos do
breve bilhete não permitiam depreender que a situação contivesse a
menor parcela de divertimento.

A ssomei ao corredor e vi que a porta do quarto cor-de-rosa estava


aberta. N ão havia engano possível. A proximei-me e deparou-se-
me a lareira acesa, roupas e diversos objetos de uso pessoal. A o
mesmo tempo, detectei vozes na suíte de Raquel. Era, pois, aquele
o meu castigo. Mary Pascoe fora de fato convidada para estabelecer
uma divisão entre mim e a minha prima, a fim de não podermos
voltar a estar juntos.

A minha primeira reação consistiu num acesso de cólera que quase


me impeliu a puxar a rapariga pelo braço e conceder-lhe cinco
minutos para desaparecer daquela casa.

Como se atrevera Raquel a convidá-la, graças a um pretexto tão


inconcebível e insultuoso? Estaria, por conseguinte, condenado a
suportar a presença de Mary Pascoe na biblioteca, na sala de estar,
no boudoir, juntamente com a sua interminável loquacidade?

Avancei para o boudoir, com a roupa encharcada, pouco disposto a


perder tempo com a substituição por outra menos desconfortável.
Raquel sentava-se na cadeira habitual, com Mary Pascoe a seu lado
no banco, concentradas num pesado volume de ilustrações de
jardins italianos.

— A h, estás de volta? — proferiu a primeira. — Escolheste um dia


pouco convidativo para passear a cavalo. A carruagem quase foi
varrida para fora da estrada pelo vento, quando visitei a reitoria.
Como vês, temos a sorte de contar a Mary como hóspede. Já se
instalou e estou encantada com a sua presença.

A visada emitiu uma breve risada aguda.

— Fiquei tão excitada, quando a sua prima me foi buscar, Mr. A


shley! D eixei as minhas irmãs verdes de inveja. Confesso que me
custa a crer que estou aqui. E como é agradável esta atmosfera do
boudoir! A inda mais do que lá em baixo. A sua prima diz que
costumam passar os serões nesta sala. J ogam cribbage1? Eu
adoro. S e não sabem jogar, ensino-lhes.

— O Philip não aprecia os jogos de azar — informou Raquel. —


Prefere estar sentado e fumar em silêncio. Jogaremos nós, Mary.

Volveu os olhos para mim, por cima da cabeça da rapariga.

N ão, não se tratava de uma brincadeira. A expressão do olhar


indicava que procedera com particular deliberação.

— Posso falar contigo a sós? — perguntei com certa brusquidão.

— Não vejo a menor necessidade. Podes dizer o que quiseres


diante da Mary.

— N ão me quero intrometer. — A filha do vigário pôs-se de pé com


prontidão. —

Vou para o meu quarto.

— D eixe a porta aberta, para me ouvir se eu a chamar —


recomendou Raquel, com o olhar hostil cravado em mim.
— Com certeza, Mrs. Ashley.

— Por que fizeste isto? — inquiri, mal nos encontramos sós.

— Sabe perfeitamente. Expliquei-o no bilhete.

— Quanto tempo vai ela ficar?

— O que eu desejar.

— N ão aguentas a sua companhia mais de vinte e quatro horas. N


ão tardará a endoidecer-te, e a mim também.

— Enganas-te. Mary Pascoe é uma moça atenciosa e inofensiva. N


ão falarei com ela se não me apetecer conversar. A o menos,
sentirei uma certa segurança nesta casa. D e qualquer modo, as
coisas não podiam continuar como estavam, sobretudo após a tua
explosão à mesa. O teu padrinho disse-o por outras palavras ao
retirar-se.

— Que disse exatamente?

— Q ue circulavam rumores indesejáveis acerca da minha


permanência aqui, os quais se agravariam com as tuas ideias
matrimoniais a meu respeito. Q uem sabe a quantas pessoas as
terás revelado... A presença da Mary Pascoe porá termo a ulteriores
mexericos. Esforçar-me-ei por providenciar nesse sentido.

S eria possível que a minha atitude da véspera tivesse originado


uma alteração tão profunda, um antagonismo tão horrível?

— I sto não pode ser decidido numa conversa momentânea e com


as portas abertas. S uplico-te que me deixes falar contigo a sós,
depois do jantar, quando ela recolher ao quarto.

— A meaçaste-me, ontem à noite. Uma vez foi suficiente. D e resto,


não há nada a esclarecer. Podes retirar-te, se quiseres. O u ficar e
jogar cribbage com a Mary. — E baixou os olhos para o livro de
jardinagem.
A bandonei o boudoir, consciente de que não havia mais nada a
fazer. Era, pois, aquele o meu castigo pelo breve momento da
véspera, em que lhe rodeara o pescoço com os dedos. O ato,
instantaneamente deplorado, era imperdoável.

A recompensa achava-se bem clara, na minha frente. A cólera


abandonou-me subitamente, substituída por uma sensação de
desespero. Que fizera eu, meu Deus?

Poucas horas antes, tínhamos sido felizes. A euforia da véspera do


meu aniversário desaparecera, dissipada pelo meu gesto irrefletido.
Q uando me encontrava na Rose and Crown, admitira a
possibilidade de a relutância de Raquel em se tornar minha esposa
se atenuar e extinguir mesmo, transcorridas algumas semanas. E,
se tal não fosse possível, paciência, desde que pudéssemos estar
juntos, apaixonados, como na madrugada do dia dos meus anos. Q
uase me sentira esperançado quando regressava a casa. N o
entanto, a presença da estranha, de uma terceira pessoa,
comprometia tudo de uma forma virtualmente irremediável.

Fechei-me no quarto e, pouco depois, ouvi as vozes delas


aproximarem-se da escada e o ruge-ruge dos vestidos nos degraus.
Era mais tarde do que eu supunha, e já deviam estar vestidas para
jantar. Reconheci que não conseguiria enfrentá-las. Teriam de
comer sós. D e resto, eu não tinha apetite e percorria-me um frio
desagradável. Talvez estivesse a chocar um resfriado, e conviria
que me conservasse no quarto. Toquei a sineta e indiquei a J ohn
que apresentasse as minhas desculpas, mas não compareceria à
mesa e iria deitar-me imediatamente. Como calculava, a minha
decisão suscitou certa preocupação entre o pessoal, e S eecombe
não tardou a aparecer com uma expressão apreensiva.

— N ão se sente bem, Mr. Philip? Permita-me que sugira um banho


de mostarda e um grogue bem quente. É o resultado de andar por aí
com este tempo.

— Não é preciso nada, obrigado. Estou apenas cansado.


— Convinha que comesse alguma coisa, senhor. Temos vitela
assada e torta de maçã. As senhoras encontram-se na sala de estar
à sua espera.

— Não, Seecombe. Nada. A noite passada, dormi mal. De manhã,


estarei fino.

— Vou informar a senhora. Imagino como ficará preocupada.

A ideia de permanecer no quarto talvez me proporcionasse a


oportunidade de ver Raquel a sós, pois havia a possibilidade de,
após o jantar, aparecer para se inteirar do meu estado.

D espi-me e enfiei-me na cama. Era óbvio que de fato me resfriara.


O s lençóis pareciam úmidos de tão frios, pelo que os retirei e
introduzi-me entre os cobertores. Mais tarde, ouvi-as entrar na sala
de jantar e, após um longo intervalo, de novo na de estar, sempre
imersas em animado diálogo.

Pouco depois das oito, apercebi-me de que subiam a escada. S


oergui-me na cama e coloquei o casaco por cima dos ombros. Ela
talvez escolhesse aquele momento para me visitar.

A pesar dos cobertores, os arrepios de frio persistiam, agora


acompanhados de uma forte dor de cabeça.

A guardei com ansiedade, mas ela não apareceu. Calculei que se


encontravam no boudoir. O uvi as nove, dez e onze badaladas no
campanário. Convenci-me então

definitivamente de que não viria. Ignorar-me devia constituir a


sequência do meu castigo.

Levantei-me e assomei ao corredor. Elas haviam recolhido aos


respectivos aposentos, pois ouvi Mary Pascoe mover-se no quarto
cor-de-rosa e, de vez em quando, uma tosse seca irritante para
aclarar a garganta, mais um hábito que adquirira da mãe.
A cerquei-me do quarto de Raquel, pousei a mão no puxador e fi-lo
girar. A porta não se abriu. Ela trancara-a. Bati levemente. N ão
obtive resposta. Regressei lentamente ao meu quarto e deitei-me,
frio como o gelo.

1 Jogo de cartas de três ou quatro pessoas. (N. do T.)

Capítulo Vigésimo Quarto

Recordo-me de me vestir pela manhã, mas não de J ohn aparecer


para me chamar ou de qualquer outra coisa, à parte a rigidez no
pescoço e dor de cabeça excruciante. Fui sentar-me atrás da
secretária, no escritório. N ão escrevi qualquer carta nem recebi
ninguém. Pouco depois do meio-dia, S eecombe anunciou-me que
as senhoras estavam à minha espera para almoçar. Q uando
repliquei que não tencionava comer, aproximou-se e olhou-me com
ar apreensivo.

— Está doente, Mr. Philip? Que tem?

— Não sei.

Pegou-me na mão por um momento. Em seguida, afastou-se e ouvi-


o cruzar o pátio apressadamente.

Momentos volvidos, a porta abriu-se de novo, para dar passagem a


Raquel, acompanhada de Mary Pascoe e do mordomo.

— O S eecombe diz que estás doente — proferiu a primeira. — Q


ue se passa realmente?

O lhei-a em silêncio. N ada do que acontecia tinha a menor relação


com a realidade.

Q uase nem me dava conta de que estava no escritório. J ulgava-


me no meu quarto, a tiritar na cama, como acontecera ao longo de
toda a noite.
— Q uando a mandas para casa? — perguntei em voz débil. — N
ão farei nada para te molestar. Dou-te a minha palavra de honra.

Pousou-me a mão na fronte, examinou-me os olhos e voltou-se


rapidamente para Seecombe.

— Chame o J ohn e levem Mr. A shley para a cama. A ntes, porém,


diga ao Wellington que mande alguém prevenir o médico.

Eu só via as faces pálidas e os olhos dela e, por cima do seu ombro,


deslocada no ambiente, Mary Pascoe, que me fitava com
perplexidade. Em seguida, nada. A penas a rigidez e a dor.

D e novo na cama, dei-me conta de que S eecombe baixava os


estores, para mergulhar o quarto na escuridão pela qual eu ansiava.
Era possível que a ausência de luz atenuasse a dor insuportável. N
ão conseguia mover a cabeça na almofada, como se os músculos
do pescoço estivessem presos num torno. Senti a mão dela na
minha e repeti:

— Prometo não te molestar. Manda a Mary Pascoe para casa.

— Não fales — advertiu, em voz baixa. — Limita-te a estar quieto e


calado.

O quarto estava cheio de murmúrios. A porta a abrir-se, a fechar-se


e a tornar a

abrir-se. Passos suaves e arrastados. N esgas de luz do corredor e


sempre o sussurro geral, segundo me parecia, em torno do delírio
que decerto me assolava, como se a casa estivesse repleta de
gente, com hóspedes em cada quarto, em número muito superior às
capacidades de alojamento, enquanto Raquel se movia entre eles
para os distribuir do modo mais apropriado e eu repetia: “Manda-os
embora!”

Por fim, descortinei o rosto arredondado do D r. Gilbert, que me


observava através dos óculos. Tudo indicava que também fazia
parte dos convidados. Tratara-me da varicela em criança e não me
recordava de o ter voltado a ver senão esporadicamente.

— Com que então, foste tomar banho no mar à meia-noite, hem?


Podia ter-te dado para pior... — O lhou-me, meneando a cabeça,
como se eu fosse um irresponsável, e cofiou a barba.

Fechei os olhos, por causa da luz, e ouvi Raquel dizer-lhe:

— Tenho experiência suficiente deste tipo de febre para não me


enganar. Vi crianças morrer disto em Florença. Ataca a espinha
dorsal e depois o cérebro. Faça alguma coisa, por Deus...

A fastaram-se e o coro de murmúrios recomeçou, seguido do som


de rodas no caminho de acesso, indicativo da partida de uma
carruagem. Mais tarde, distingui uma respiração perto das cortinas
da cama. Compreendi então o que acontecera.

Raquel seguira para Bodmin, a fim de tomar o transporte para


Londres, e deixara Mary Pascoe em minha casa, para me vigiar. S
eecombe e J ohn também se haviam ausentado. Ficara apenas ela.

— Saia, por favor — articulei. — Não preciso de ninguém.

Uma mão aproximou-se para pousar na minha fronte.

A mão de Mary Pascoe, que repeli. Mas insistiu e gritei-lhe que me


deixasse em paz. N o entanto, exerceu pressão, fria e dura como o
aço, para me transmitir a sensação glacial ao rosto, imobilizando-me
como um prisioneiro. D e súbito, ouvi Raquel sussurrar-me ao
ouvido:

— Não te movas, querido. Isto alivia-te a cabeça. Melhorarás, a


pouco e pouco.

Tentei desviar-me e não consegui. Mas afinal não partira para


Londres?

— Não me deixes — balbuciei. — Promete que não me deixarás.


— Prometo. Estarei sempre junto de ti.

D escerrei as pálpebras, mas não consegui vê-la, porque o quarto


se achava de novo imerso na penumbra. A configuração era
diferente da dos aposentos que eu conhecia —

longo e estreito como uma cela. A cabeceira da cama rija como o


ferro. Havia uma vela acesa algures, atrás de um biombo. N um
nicho, na parede oposta, divisei uma madonna ajoelhada.

— Raquel... Raquel... — chamei em voz trêmula.

O uvi passos apressados, uma porta a abrir-se, e uma mão pousava


na minha,

enquanto ela murmurava:

— Estou contigo.

Tornei a fechar os olhos.

Encontrava-me numa ponte, junto do A rno, e jurava destruir uma


mulher que nunca vira. A s águas caudalosas rolavam sob a ponte,
e Raquel, a pedinte, acercava-se de mãos vazias. Estava desnuda,
com o colar de pérolas em torno do pescoço.

D e repente, apontou para o rio, e A mbrose deslizou debaixo da


ponte, as mãos unidas sobre o peito. D istanciou-se, arrastado pela
corrente, seguindo, lenta, majestosamente, as patas erguidas com
rigidez, do corpo do cão morto.

A primeira coisa de que me apercebi foi que a árvore diante da


minha janela estava coberta de folhas. Olhei-a, perplexo.

Quando me metera na cama, apenas principiavam a despontar.

Era um fenômeno muito estranho. A dor de cabeça desaparecera,


assim como o torpor de todo o corpo. D epreendi que dormira
muitas horas, possivelmente um dia ou mesmo mais.
Uma pessoa perdia a noção do tempo quando adoecia.

A figurava-se-me que vira o D r. Gilbert diversas vezes, com outro


homem, um desconhecido. S empre com o quarto mergulhado na
penumbra. A gora, havia claridade.

N otei uma sensação incômoda nas faces e depreendi que


necessitava urgentemente de me barbear. Levei a mão ao queixo e
estremeci de incredulidade, pois tinha barba. Fixei o olhar na mão e
não me pareceu a minha. Era branca e esguia, com unhas de
comprimento invulgar em mim. Voltei a cabeça e vi Raquel sentada,
junto da cama — na sua própria cadeira do boudoir. N ão se deu
conta de que a observava. Concentrava-se num trabalho de renda e
usava um roupão que não lhe conhecia — preto, como todo o seu
vestuário, mas de mangas mais curtas, acima dos cotovelos, como
que para se defender do calor. O quarto encontrar-se-ia assim tão
quente? A s janelas estavam abertas.

E a lareira apagada!

Tornei a levar a mão ao queixo. A barba tinha um toque agradável.


D e súbito, soltei uma gargalhada e ela ergueu a cabeça.

— Philip... — murmurou.

Ato contínuo, ajoelhou a meu lado e rodeou-me com os braços.

— Deixei crescer a barba — articulei.

Voltei a rir, incompreensivelmente divertido com a situação, e a


hilaridade transformou-se em tosse. S em perda de um instante,
Raquel aproximou um copo dos meus lábios e obrigou-me a beber
parte do conteúdo, após o que me reclinou cuidadosamente na
almofada.

O gesto fez vibrar uma corda na minha memória. D urante um longo


lapso de
tempo, houvera uma mão, com um copo, que me obrigava a beber,
no meio dos meus obscuros sonhos.

Eu atribuíra-a a Mary Pascoe e repelira-a. Agora, conservava o


olhar fixo em Raquel e estendia-lhe a minha. S egurou-a e exerceu
pressão. Fiz deslizar o polegar ao longo dos vasos capilares azuis
que se salientavam sempre no dorso da sua e pousei-o nos anéis.

Mantivemo-nos assim em silêncio por longos minutos.

— Sempre a mandaste para casa? — acabei por perguntar.

— A quem?

— A quem havia de ser? Mary Pascoe.

O uvi-a conter o alento e vi que o sorriso desaparecera, substituído


por uma expressão grave.

— Partiu há cinco semanas — murmurou. — Mas deixemos isso


agora. Tens sede?

Preparei-te uma bebida fresca de limas, vindas de Londres.

I ngeri alguns sorvos do refresco, que tinha sabor agradável em


comparação com o medicamento que ela me obrigara a tomar.

— Devo ter estado doente — admiti.

— Ias morrendo.

Fez menção de se retirar, mas opus-me. Roguei-lhe que me


descrevesse os pormenores. A cudia-me a curiosidade de alguém
que dormira durante anos e despertava para descobrir que o mundo
seguira a sua marcha natural sem ele.

— S e queres que eu reviva todas estas semanas de ansiedade,


estou disposta a satisfazer-te a curiosidade — explicou. — D e
contrário, não o farei. S im, estiveste muito doente. Contenta-te com
isto para já.

— Que tive?

— N ão morro de admiração pelos vossos médicos ingleses. N o


continente, chamamos-lhe meningite, que parece ser desconhecida
aqui. O fato de continuares vivo pode considerar -se quase um
milagre.

— O que me salvou?

- Creio que foi a tua resistência equina e certas coisas que os


obriguei a fazer-te —

declarou, com um sorriso, exercendo pressão na minha mão. — A


punção na espinha dorsal para extrair o fluído foi apenas uma das
mais simples. A lém disso, introduziram-te no sistema circulatório
um soro a que eles chamaram veneno. O que interessa é que
sobreviveste.

Recordei-me dos cordiais que ela preparara para alguns caseiros


que haviam adoecido ao longo do inverno e de que a desfrutara,
chamando-lhe parteira e boticária.

— Como se explica que saibas tanto disso?

— A prendi com a minha mãe. O s florentinos possuem


conhecimentos profundos na matéria.

Estas palavras fizeram-me vibrar outra corda da memória, mas não


consegui identificá-la. Raciocinar envolvia, por enquanto, um esforço
considerável. D e momento, contentava-me com permanecer na
cama e a mão de Raquel pousada na minha.

— Por que está aquela árvore coberta de folhagem?

— É natural na segunda semana de maio.


Custava-me compreender que tivesse estado de cama tantas
semanas, além de que não me lembrava dos eventos que me
haviam conduzido a ela. Raquel zangara-se comigo, por razões que
de momento me escapavam, e convidara Mary Pascoe para lhe
fazer companhia. Tinha a certeza absoluta de que casáramos na
véspera do meu aniversário, embora não me acudisse uma visão
clara da igreja, nem da cerimônia, à parte o fato de N ick Kendall e
Louise serem as únicas testemunhas, sob as vistas de A lice Tabb, a
mulher da limpeza. Recordava-me de estar muito feliz. E, de
repente, sem qualquer motivo aparente, desesperado. Por último,
doente. Mas tudo regressara à normalidade.

Eu não morrera e decorria o mês de maio.

— Acho que tenho forças suficientes para me levantar — anunciei.

— N em penses. D entro de uma semana talvez te sentes numa


cadeira, ali ao pé da janela, para vermos até que ponto as pernas
aguentam o peso do corpo. Mais tarde, darás um passeio até o
boudoir. Lá para o fim do mês, ajudar-te-emos a descer a escada,
para te sentares ao ar livre. Veremos.

Com efeito, a sequência das minhas melhoras correspondeu às


previsões dela.

N unca me sentira tão incapacitado como na primeira vez em que


me sentei na borda da cama e pousei os pés no chão. O quarto
começou a oscilar à minha volta.

S eecombe e J ohn ladearam-me, enquanto me considerava tão


fraco como um recém-nascido.

— Com a breca, minha senhora, ele cresceu! — exclamou o


mordomo, com uma consternação tão profunda que não pude conter
uma gargalhada.

I nstantes depois, via-me no espelho, magro e pálido, de barba


castanha, como um apóstolo.
— Estou quase tentado a percorrer o distrito como pregador oficial
da doutrina de Cristo — resmunguei. — Tenho a certeza de que
converteria milhares de almas. —

Voltei-me para Raquel. — Que te parece?

— Prefiro-te de cara rapada — respondeu, gravemente. — Traz-me


os apetrechos de barbear, John.

N o entanto, no final da operação, pressenti que perdera parte da


dignidade e ficara de novo reduzido à condição de colegial.

A queles dias de convalescença foram na verdade agradáveis.


Raquel encontrava-se sempre a meu lado. Conversávamos pouco,
porque descobri que isso me cansava mais do que todo o resto e
produzia indícios da temível dor de cabeça. O que me agradava em

particular era sentar-me junto da janela aberta e assistir às


evoluções dos cavalos, que Wellington exercitava no relvado. Q
uando as pernas começaram a revelar maior firmeza, transferi-me
para o boudoir, onde tomávamos as refeições, sob as vistas de
minha prima, que me cuidava como a enfermeira diplomada mais
experiente.

Uma ocasião, observei-lhe que seria a única culpada se estivesse


destinada a ocupar-se de um marido enfermo no resto da vida. O
lhou-me com uma expressão estranha e pareceu na iminência de
replicar, mas conteve-se e mudou de assunto.

Recordava-me de que, por qualquer razão de momento pouco clara,


o nosso enlace fora ocultado ao pessoal da casa, porventura para
deixar escoarem-se doze meses desde a morte de A mbrose. Talvez
ela receasse que me mostrasse indiscreto diante de S eecombe,
pelo que me abstive de insistir. D entro de um par de meses,
poderíamos anunciá-lo ao mundo e, até lá, tentaria conter a
impaciência. Creio que cada dia a amava mais e ela revelava-se
atenciosa e terna como nunca nos distantes meses de inverno.
A primeira vez que desci a escada e saí para o ar livre fiquei
surpreendido com o que fora feito durante a minha doença. O
caminho pavimentado estava concluído, e o local onde se situaria o
novo jardim achava-se devidamente preparado.

D e momento, ainda havia alguns operários que procediam aos


trabalhos finais, e a larga escavação apresentava um aspecto algo
ominoso até que se procedesse à plantação definitiva.

Tamlyn escoltou-me com orgulho, na visita ao jardim antigo, onde se


viam numerosas flores, num variegado conjunto de cores.

— Teremos de transferir algumas, antes da próxima época —


esclareceu. — A o ritmo a que se reproduzem, as sementes podem
ser impelidas pelo vento e matar o gado.

— Estendeu a mão para um dos laburnos, plantas a que se referia,


e indicou as vagens cheias de pequenas sementes. — Um fulano do
outro lado de S aint Austell morreu por ter comido várias.

Lembrei-me subitamente da árvore no pequeno pátio da villa italiana


e da mulher que pegara na vassoura para varrer as vagens do chão.

— Havia uma planta destas em Florença, onde Mrs. Ashley vivia —


declarei.

— S im? Bem, segundo me disseram, quase todas as plantas se


dão bem naquele clima. D eve ser um lugar maravilhoso.
Compreendo o desejo da senhora de voltar para lá.

— Não creio que acalente essa intenção.

— O xalá, embora não seja o que me constou. Parece que


aguardava que o senhor se restabelecesse para regressar.

Refleti que era incrível o que se podia inventar através de meros


mexericos, e decidi que o anúncio do nosso casamento constituiria a
única maneira de lhes pôr termo.
N ão obstante, hesitava em abordar o assunto com Raquel. Tinha a
vaga ideia de que, no

passado, se registrara uma divergência a esse respeito, que a


irritara.

N aquela tarde, quando nos sentávamos no boudoir e eu tomava a


habitual tisana, em conformidade com o hábito que contraíra, antes
de me deitar, aventurei-me a dizer:

— Circulam novos rumores.

—Acerca de quê, desta vez?

— Da tua intenção de voltar para Florença.

N ão respondeu imediatamente e tornou a baixar os olhos para o


trabalho de renda.

— Há muito tempo para decidir essas coisas — acabou por referir.


— Primeiro, tens de recuperar totalmente a saúde e energias.

Fitei-a, intrigado. A final, Tamlyn não estava totalmente equivocado.


A ideia de regressar a Florença pairava num recanto da mente dela.

— Já vendeste a villa? — insisti.

— A inda não, nem faço tenções disso ou mesmo de a alugar. A


gora que as coisas se alteraram, disponho de meios para a manter.

N ão repliquei. Embora não quisesse contrariá-la, a perspectiva de


ter duas residências não me sorria particularmente.

N a realidade, detestava a própria imagem da villa que se mantinha


bem nítida no espírito e supunha que Raquel também acabara por
odiar.

— Queres dizer que quererias passar lá o inverno? — perguntei, por


fim.
— É possível, ou a parte final do verão. Mas por ora não merece a
pena preocuparmo-nos com isso.

— Tenho estado inativo por muito tempo. A cho que não deixaria a
propriedade sem assistência durante o inverno, nem gostaria de me
ausentar.

— A credito. Com efeito, eu própria não partiria, a menos que


ficasses a cuidar de tudo. Poderias visitar-me na primavera e eu
mostrar-te-ia Florença.

A doença devia ter-me tornado de compreensão lenta, pois nada do


que ela dizia se revestia do menor sentido ou sensatez.

— Visitar-te? É assim que sugeres que passemos a viver,


separados durante longos meses de cada vez?

Pousou o trabalho e olhou-me. A expressão constituía um misto de


ansiedade e impaciência.

— Escuta, Philip querido. Como disse, não desejo abordar o futuro


neste momento. A cabas de sair de uma doença grave, perigosa
mesmo, e afigura-se-me desaconselhável planear as coisas com
muita antecedência. Prometo não te abandonar antes do teu
restabelecimento total.

— Mas que necessidade tens de partir? Agora, pertences aqui. É


este o teu lar.

— Também tenho a villa, muitos amigos e uma vida, na I tália,


diferente desta,

bem sei, mas a que estou acostumada. Encontro-me na I nglaterra


há oito meses e começo a ansiar por voltar a mudar de ares. Sê
razoável e tenta compreender.

— Talvez esteja a ser egoísta — concedi. — N ão tinha pensado


nesse aspecto da questão. — Precisava de me habituar à ideia de
que ela desejaria dividir o seu tempo entre os dois países, em cuja
eventualidade eu teria de fazer o mesmo e começar a procurar um
indivíduo de confiança para dirigir as atividades da propriedade. A
hipótese de nos separarmos era, evidentemente, inadmissível. — O
meu padrinho deve conhecer alguém — acrescentei na sequência
do raciocínio.

— Alguém para quê?

— Para se ocupar disto, durante a nossa ausência.

— N ão me parece necessário. D uvido que te ausentes por mais de


algumas semanas. Em todo o caso, talvez te apeteça ficar mais
tempo. Florença é admirável na primavera.

— A o diabo com a primavera! — bradei. — A companhar-te-ei na


data que decidires, qualquer que seja.

A ansiedade e a impaciência reapareceram no rosto dela.

— D eixemos isso por agora. Passa das nove e nunca te deitaste


tão tarde. Q ueres que chame o John, ou consegues desembaraçar-
te sozinho?

— N ão chames ninguém. — Levantei-me da cadeira com lentidão,


pois ainda sentia os membros incomodativamente fracos, aproximei-
me dela, ajoelhei e rodeei-a com os braços.

— Contigo tão perto, custa-me suportar a solidão do meu quarto. N


ão poderemos anunciar-lhes em breve?

— Anunciar o quê?

— Que somos casados.

Estremeceu levemente e permaneceu rígida em seguida.

Dir-se-ia que se convertera numa estátua.


— Meu D eus... — murmurou. Por fim, pousou as mãos nos meus
ombros e olhou-me com intensidade. — Que queres dizer com isso,
Philip?

S enti um latejar algures na cabeça, como um eco da dor que me


flagelara durante semanas. Acentuou-se gradualmente,
acompanhado de uma impressão de medo.

— S e informarmos o pessoal, poderei ficar contigo, porque somos


casados e... —I nterrompi-me ao ver-lhe a expressão dos olhos.

— Mas nós não somos casados, Philip querido.

Pareceu-me que algo explodia dentro do meu crânio.

— É claro que somos. A conteceu no dia do meu aniversário. N ão


acredito que te esquecesses.

Mas quando acontecera? Em que igreja? Q uem fora o sacerdote


celebrante? O

latejar intensificou-se e vi as paredes e móveis oscilar à minha volta.

— Diz-me que é verdade — urgi.

Compreendi, de súbito, que se tratava de uma fantasia toda a


felicidade que me pertencera na imaginação das últimas semanas.
O sonho terminara.

A fundei a cabeça no seu regaço, sacudido por soluços. A s


lágrimas nunca me tinham acudido com tanta facilidade, nem
mesmo em criança. Raquel acariciava-me a cabeça, sem proferir
palavra. Por fim, consegui dominar a comoção e reclinei-me na
cadeira, exausto. Ela trouxe-me algo para beber e sentou-se no
banco junto de mim. A s sombras do crepúsculo estival pairavam em
redor. O s morcegos emergiam dos esconderijos entre as vigas do
telhado e descreviam círculos diante da janela.

— Era preferível que me tivesses deixado morrer — murmurei.


Suspirou e pousou-me a mão na face.

— S e falas assim, também me destróis. S entes-te infeliz agora,


porque ainda estás fraco. Mais tarde, quando recuperares as forças,
nada disto te parecerá importante.

Reatarás as tuas atividades normais. Poderás nadar na baía ou


passear no barco.

O tom da sua voz indicou-me que tentava convencer-se a si própria


e não a mim.

— E que mais? — perguntei, agastado.

— S abes perfeitamente que és feliz aqui. Tudo isto representa a tua


vida, e assim continuará a ser. Ofereceste-me a propriedade, mas
considerá-la-ei sempre tua.

— Q ueres dizer que trocaremos correspondência entre a I tália e a I


nglaterra, mês após mês, ao longo do ano. D ir-te-ei: “Q uerida
Raquel, as camélias estão em flor." E tu responderás: "Q uerido
Philip, alegra-me sabê-lo. O meu roseiral também está a
desabrochar satisfatoriamente.," Será esse o nosso futuro?

I maginei-me à porta de casa, numa manhã após o café da manhã,


à espera do rapaz com o correio, perfeitamente ciente de que não
haveria carta alguma e porventura apenas uma fatura de Bodmin.

— É natural que eu venha todos os anos pelo verão, para me


certificar de que tudo corre bem — aventurou.

— Como as andorinhas, que só aparecem numa época do ano, na


primavera, e partem na primeira semana de setembro — comentei.

— J á sugeri que me visitasses na primavera. Há muitas coisas que


te agradarão na I tália. S ó lá estiveste uma vez, e em circunstâncias
especiais. D e resto, conheces muito pouco do mundo em geral.
Ela fazia-me pensar numa professora primária que tentava
convencer um aluno mais renitente. Talvez fosse dessa maneira que
me encarava.

— A quilo que vi levou-me a detestar tudo. Q ue pretenderias que


fizesse? Q ue visitasse uma igreja ou um museu, de guia turístico na
mão? Conversasse com desconhecidos para enriquecer o meu
vocabulário? Prefiro ficar em casa a contemplar a

chuva.

Exprimia-me com azedume, mas não o podia evitar. Raquel tornou a


suspirar, como se tentasse, em vão, procurar um argumento para
provar que tudo estava bem.

— Volto a dizer que, quando te sentires melhor, mais forte, o futuro


terá um aspecto diferente aos teus olhos. N ada se alterou
radicalmente do que era. Q uanto ao dinheiro... — Deteve-se e
olhou-me.

— Qual dinheiro?

— O da propriedade. S erá tudo solucionado da maneira mais


satisfatória.

D isporás do suficiente para dirigir os negócios sem prejuízos,


enquanto eu levarei o necessário para fora do país. Os trâmites
estão em estudo neste momento.

Podia ficar com tudo, até ao último pêni, pela parte que me dizia
respeito. A liás, que tinha tudo aquilo a ver com os meus
sentimentos por ela? Mas ainda não acabara de desfiar o seu
rosário.

— D eves continuar a promover os melhoramentos que julgares


convenientes.
S abes perfeitamente que não me oporei a nada, nem precisas de
me enviar a relação das despesas, porque confio em ti. D e
qualquer modo, em caso de dúvida, poderás recorrer ao teu
padrinho. D entro de pouco tempo, tudo te parecerá como se
encontrava antes de eu vir.

A escuridão do crepúsculo acentuara-se e quase não conseguíamos


ver-nos.

— Acreditas realmente nisso? — perguntei.

N ão respondeu imediatamente. Procurava uma justificação para a


minha existência, a fim de a juntar às que já expusera. No entanto,
não havia nenhuma, como ela sabia muito bem.

— Tenho de acreditar — declarou, estendendo-me a mão —, de


contrário não encontraria paz de espírito.

A o longo dos meses que nos conhecíamos, dera muitas respostas


às perguntas, sérias ou não, que eu lhe fizera. Umas haviam sido
acompanhadas de sorrisos ou risadas e outras evasivas, porém
todas continham um leve toque feminino a ornamentá-las.

A quela era direta finalmente, proveniente do coração, sem o


mínimo desvio. D evia julgar-me feliz, possuidor de paz de espírito.
Eu abandonara a terra da fantasia, para ela ocupar o meu lugar. Por
conseguinte, duas pessoas não podiam partilhar um sonho.

Exceto na escuridão, como nos domínios da simulação. Cada figura


tornava-se, então, um fantasma.

— Volta para lá, se queres, mas não já — propus. — Concede-me


mais algumas semanas para reter na memória. Não sou um viajante
e tu és o meu mundo.

Esforçava-se por evitar o futuro e procurar uma evasão.


Mas quando a abraçava tudo se modificava — a fé desaparecia e,
com ela, o primeiro êxtase.

Capítulo Vigésimo Quinto

N ão voltamos a falar da partida dela. Tratava-se de um papão,


relegado para o olvido por ambos. N a sua intenção, eu tentava
mostrar-me despreocupado e ela procedia do mesmo modo para
comigo. O verão chegara e em breve regressei ao meu estado
normal — pelo menos, aparentemente —, embora por vezes a dor
de cabeça reaparecesse, não com toda a intensidade, mas
incomodativa, repentina e sem motivo plausível.

A bstinha-me de tocar no assunto — para quê? N ão se devia a


esforços físicos excessivos, pois só se manifestava se me entregava
a reflexões. O s problemas mais simples apresentados pelos
caseiros faziam com que se estabelecesse uma espécie de névoa
na minha mente, e achava-me impossibilitado de tomar uma
decisão.

N a maioria dos casos, porém, acontecia por causa dela. Eu olhava-


a em silêncio, quando nos sentávamos cá fora, depois do jantar,
pois o tempo que fazia em junho permitia que permanecêssemos ao
ar livre até tarde, e, de repente, perguntava a mim próprio o que se
passava na sua mente, enquanto tomava a habitual tisana com uma
expressão pensativa. Ponderaria, no íntimo, durante quantas
semanas, dias ou horas teria de continuar a suportar aquela vida de
solidão? Pensaria, com alívio crescente: "Para a semana, agora que
ele se encontra bem, poderei finalmente partir"?

A Villa S angalle i, em Florença, assumia agora, aos meus olhos,


outra configuração e atmosfera. Em vez da escuridão em que a vira
imersa na minha única visita, apresentava-se-me profusamente
iluminada, com todas as janelas bem abertas. O s desconhecidos a
quem ela chamava amigos moviam-se de uma sala para outra;
havia alegria, risadas e murmúrios de conversas animadas. Pairava
sobre o local uma espécie de esplendor.
Ela detinha-se um momento junto de cada grupo de convidados,
sorridente e à vontade, senhora do seu domínio. Era aquela a vida
que conhecia, amava e compreendia.

O s meses passados comigo constituíam um mero interlúdio. A


gora, regressaria finalmente ao lar a que pertencia. I maginei a
chegada, com Giuseppe e a mulher a escancararem os portões da
propriedade, para dar passagem à carrozza e, depois, Raquel a
percorrer todos os recantos da villa de que estivera longamente
ausente. Muitos dias e noites futuros que já não me pertenceriam.

De súbito, pressentia que eu a observava e perguntava:

— Que tens, Philip?

— Nada — limitava-me a responder.

E, quando uma sombra lhe cruzava o rosto — de dúvida, apreensão


—, sentia-me como que um peso sobre os seus ombros. Para ela
seria preferível que se afastasse de mim. Eu tentava consumir as
energias, como dantes, na orientação das atividades da
propriedade, nas tarefas comuns do dia a dia, mas já não tinham o
mesmo significado. E

se as terras de Barton se tornassem áridas por falta de chuva? S er-


me-ia indiferente. E se o nosso gado conquistasse prêmios na feira?
Representaria isso uma glória? N o ano passado, talvez. Agora,
todavia, tratar-se-ia de um triunfo vazio.

A percebia-me com clareza de que perdia popularidade aos olhos


daqueles que me consideravam seu patrão. "A inda está fraco, Mr. A
shley, depois de uma doença tão prolongada", comentou Billy Rowe,
o agricultor de Barton, com um mundo de desapontamento na voz.
Passava-se o mesmo com todos os outros.

O próprio S eecombe aludiu ao fato. — N ão parece estar a


restabelecer-se como devia, Mr. Philip. A inda ontem à noite falamos
disso na sala comum. "Q ue se passa com o patrão?", dizia o
Tamlyn. "Vejo-o pálido como um fantasma e parece alheio a tudo o
que o rodeia". Recomendo-lhe um bom tônico pela manhã. O u
mesmo um copo de marsala para revigorar o sangue.

— D iz-lhe que se preocupe com o trabalho — retruquei. — S into-


me perfeitamente bem.

A rotina do jantar de domingo, com os Pascoe e os Kendall, ainda


não fora reatada, felizmente para mim. Creio que, quando adoeci,
Mary Pascoe regressou à reitoria com histórias de que eu
enlouquecera. S urpreendi-a a olhar-me dissimuladamente, na
igreja, a primeira vez que assisti à missa após a doença. E toda a
família me observava com uma espécie de comiseração.

O meu padrinho e Louise visitavam-me, assumindo atitudes pouco


usuais neles, uma mescla de jovialidade e compaixão, como as
dispensadas a uma criança após uma enfermidade prolongada, e
pressenti que haviam sido advertidos para não abordar qualquer
assunto suscetível de me causar apreensão.

A ssim, sentávamo-nos na sala como quatro desconhecidos. N ick


Kendall sentia-se desconfortável e arrependido de ter comparecido,
embora o dever lhe impusesse, enquanto a filha, graças a um
instinto inexplicável possuído pelas mulheres, sabia o que
acontecera, mas esforçava-se por não o deixar transparecer. Raquel
dominava a situação, como sempre, e mantinha a conversa no ritmo
apropriado. A exposição da feira, o iminente casamento da segunda
filha dos Pascoe, a temperatura elevada que persistia, a perspectiva
de uma remodelação do Governo — tudo isto eram temas fáceis de
explorar.

Mas, e se falássemos das coisas em que realmente pensávamos?

"A bandone a I nglaterra sem demora, antes que se destrua a si e


ao rapaz", articularia sem dúvida o meu padrinho.

"Ama-a mais do que nunca. Noto-o nos teus olhos", isto da parte de
Louise.
"Tenho de os impedir a todo o custo que amargurem o Philip", de
Raquel.

E de mim: "Retirem-se e deixem-me só com ela".

A o invés, apegávamo-nos à cortesia e mentíamos. Todos


respirávamos fundo no final das visitas e, enquanto os via
afastarem-se na carruagem, lamentava não poder erigir uma
vedação intransponível em volta da propriedade, como nos contos
de fadas da infância, para impedir a vinda de importunos e
calamidades.

D ava-me a impressão, embora não se pronunciasse nesse sentido,


de que ela planeava os primeiros passos da partida.

S urpreendi-a, mais de uma ocasião, a examinar os livros da


biblioteca, como costumam fazer as pessoas ao escolherem os
volumes que tencionam levar. O utra vez, vi-a sentada à
escrivaninha entretida a pôr os seus documentos pessoais em
ordem, enchendo o cesto de papéis de cartas rasgadas e atando os
restantes com fitas coloridas.

N o entanto, interrompia-se à minha entrada no boudoir, ia sentar-se


na cadeira habitual e pegava no trabalho de renda, mas eu não me
deixava iludir.

Tratava-se na verdade de preparativos para a separação final. A


figurava-se-me que o aposento parecia mais desnudo que no
passado. Faltavam pequenas coisas insignificantes. O fato fez-me
remontar à infância, antes de partir pela primeira vez para o colégio.
S eecombe procedera a uma limpeza geral no meu quarto de
recreio: arrumara os livros e outros objetos que me acompanhariam
e separara o resto, que eu não voltaria a utilizar, para as crianças da
propriedade. Era como se me privasse definitivamente de um
passado feliz. A gora, parte dessa atmosfera pairava no boudoir de
Raquel. O xale, que costumava achar-se pousado no espaldar da
sua cadeira e brilhava pela ausência, tê-
lo-ia dado a alguém, porque não o necessitaria num clima mais
quente? A caixa de costura, igualmente desaparecida, encontrar-se-
ia no fundo de um baú? Por enquanto, não havia sinais de
preparação da bagagem. I sso constituiria o indício final. Passos
pesados no sótão, os rapazes a descer a escada com as volumosas
caixas. N essa altura, eu ficaria ciente do pior e aguardaria,
resignado ou não, o inevitável desenlace.

O utro fator significativo consistia nas suas saídas matinais, coisa


que nunca fizera até então. A legava que tinha de efetuar uma ou
outra compra e tratar de assuntos no banco. Eram explicações
plausíveis, embora me parecesse que para tal bastaria uma única
deslocação à aldeia. N o entanto, as ausências verificaram-se por
diversas vezes, até que não me pude conter e observei:

— Deves ter muitas compras a efetuar e assuntos a resolver no


banco.

— São coisas que se atrasaram com a tua doença.

— Tens-te encontrado com alguém nas ruas da aldeia?

— N ão, ninguém em particular... N ão, minto. Cruzei-me com


Belinda Pascoe e o cura com o qual vai casar. Mandaram-te
cumprimentos.

— Mas estiveste ausente toda a tarde — insisti. — Compraste todo


o recheio das

lojas?

—Q ue curioso e indiscreto me saíste! N ão posso utilizar a


carruagem quando me apetece, ou receias que canse demasiado os
cavalos?

— Por que não vais antes a Bodmin ou a Truro? Encontrarás aí lojas


mais bem abastecidas.
Refleti que, se as minhas perguntas a incomodavam, as suas
atividades deviam obedecer a alguma intenção inconfessável.

N a vez seguinte que pediu a carruagem, Wellington não se fez


acompanhar do moço. Este queixava-se de dores nos ouvidos e fui
encontrá-lo nos estábulos com uma expressão angustiada.

— Pede à senhora que te dê um pouco de um óleo qualquer que


tem para esse fim

— recomendei-lhe.

— J á o fiz, e ela prometeu aplicar-me gotas quando voltasse. A cho


que apanhei isto ontem, no cais, onde soprava vento frio.

— Que foste fazer ao cais?

— Estivemos muito tempo à espera da senhora, e o Wellington, que


ficou à entrada da Rose and Crown, deixou-me ir ver os barcos no
porto.

— Nesse caso, a senhora andou às compras durante toda a tarde?


— estranhei.

— Não, senhor. Estava na sala da Rose and Crown, como sempre.

O lhei-o com incredulidade. Raquel na Rose and Crown? Estaria a


tomar chá com o dono e a esposa? Por um momento, pensei em
aprofundar o interrogatório, mas acabei por mudar de ideias. Era
muito possível que o rapaz estivesse a dar largas à imaginação.

D e qualquer modo, não podia deixar de reconhecer que cada vez


me ocultavam mais coisas. D ir-se-ia que todo o pessoal se unira
numa conspiração de silêncio contra mim.

Estaria Raquel tão ávida de companhia que necessitava de a


procurar na aldeia?
Consciente da minha aversão às visitas, alugaria a sala da Rose
and Crown por uma manhã ou uma tarde e convidaria pessoas para
a procurarem aí? Q uando regressou, limitei-me a perguntar-lhe se
passara uma tarde agradável, e respondeu que sim.

N o dia seguinte, não pediu a carruagem. D urante o almoço,


declarou que precisava de escrever umas cartas e depois recolheu
ao boudoir. Por meu turno, informei-a de que tinha de me deslocar a
Coombe para falar com o agricultor de lá, o que correspondia à
verdade. Contudo, continuei em frente, até à aldeia. Era sábado e,
em virtude do bom tempo, as ruas achavam-se particularmente
concorridas, mas não vi ninguém conhecido. A s pessoas de
"qualidade", como S eecombe lhes chamava, nunca visitavam a
povoação à tarde e jamais ao sábado.

A proximei-me da muralha do porto, perto do cais, e vi alguns


rapazes a pescar numa embarcação. Pouco depois, remaram até
aos degraus e saltaram para terra.

Reconheci um deles: o ajudante do barman na Rose and Crown,


que levava quatro ou

cinco percas de dimensões razoáveis numa cesta.

— Nada mau — observei. —São para o jantar?

— Não são para mim, mas hão de recebê-las com agrado, na


pousada.

— Agora, servem percas com a cidra?

— N ão, senhor. O peixe é para o cavalheiro da sala. O ntem,


servimos-lhe salmão do rio.

Um cavalheiro na sala? Extraí algumas moedas de prata da


algibeira.
— Espero que te pague bem o trabalho. Aqui tens, para ti. Quem é
ele?

— Não sei como se chama, mas ouvi dizer que é italiano.

Com estas palavras, afastou-se a correr. Consultei o relógio.


Passavam alguns minutos das três. O cavalheiro italiano decerto
jantaria por volta das cinco. D irigi-me ao alpendre onde A mbrose
guardava a sua embarcação. Puxei-a para a água, saltei para dentro
e comecei a remar para o largo, onde aguardei, a curta distância do
cais.

Havia vários indivíduos que se moviam dos barcos ancorados no


canal para terra e vice-versa, mas não repararam em mim ou então
tomaram-me por um pescador. Lancei o peso à água, pousei os
remos e concentrei-me na entrada da Rose and Crown. A entrada
para o bar situava-se na rua lateral, mas ele não a utilizaria. S e
viesse, preferiria a porta principal.

Às cinco menos um quarto, vi a mulher do proprietário emergir da


sala e olhar em volta, como se procurasse alguém. A parentemente,
o visitante estava atrasado para o jantar e o peixe já se encontraria
cozinhado. O uvi-a dirigir-se a um homem que se achava junto das
embarcações amarradas aos degraus, mas não consegui distinguir
as palavras.

Ele respondeu algo, virou-se e apontou para o porto. Ela assentiu


com uma inclinação de cabeça e voltou para dentro. Por fim, às
cinco menos dez, vi um barco acercar-se do cais.

I mpelido por um jovem de compleição robusta, tinha todo o aspecto


dos que os forasteiros costumavam alugar para percorrer o porto.

D escortinei um homem de chapéu de abas largas sentado junto da


popa. Uma vez nos degraus, ele desembarcou, deu algumas
moedas ao jovem, após breve discussão, e encaminhou-se para a
Rose and Crown. A ntes de entrar, fez uma pausa, olhou em redor,
como se pretendesse atribuir um preço a tudo o que via, e tirou o
chapéu. Por último, transpôs a porta. Era Rainaldi.

Puxei o peso que fazia de âncora, levei a embarcação para o


alpendre, atravessei a aldeia e iniciei o regresso a casa em
andamento acelerado. Creio que cobri os seis quilômetros em
quarenta minutos. Raquel estava na biblioteca à minha espera.

O jantar ainda não fora servido, em virtude do meu atraso.

Quando me viu, levantou-se, ansiosa.

— Até que enfim! Estava preocupadíssima. Onde estiveste?

— A remar, no porto. Faz um tempo excelente para passear na


água. Está-se

muito melhor aí do que encafuado na Rose and Crown. — A


expressão chocada que lhe acudiu aos olhos era tudo o que eu
necessitava para a prova definitiva. — D escobri o teu segredo. N ão
merece a pena continuares a mentir. — Fiz uma pausa, no momento
em que S eecombe assomou à porta para perguntar se podia servir
o jantar. — S im, imediatamente. Não mudarei de roupa.

Cravei o olhar nela, sem mais uma palavra, e passamos à sala de


jantar. O

mordomo cumulava-me de atenções por pressentir que havia algo


de anormal na atmosfera. D ebruçava-se sobre mim como um
médico e recomendava-me que provasse determinadas iguarias.

— Exagerou o dispêndio de energias, senhor — asseverou. — I sto


assim não pode ser. Ainda acaba por voltar a cair de cama.

Desviou os olhos para Raquel, em busca de uma confirmação que


não surgiu.

Mal chegamos ao fim do jantar, em que quase não tocáramos na


comida, ela levantou-se e seguiu diretamente para cima. Q uando
alcançou a porta do boudoir, tê-la-ia fechado na minha cara, mas
antecipei-me e entrei. A expressão chocada reapareceu-lhe no olhar
enquanto se afastava de mim e retrocedia em direção à lareira.

— Há quanto tempo está o Rainaldi hospedado na Rose and


Crown?

— Isso é comigo.

— E comigo também. Responde.

Creio que compreendeu que não conseguiria dissuadir-me ou


embalar com novas fábulas, pois capitulou.

— Muito bem. Há duas semanas.

— Por que voltou?

— Porque lhe pedi. Porque é meu amigo. Porque precisava da sua


opinião e, consciente da tua antipatia, não o podia convidar a ficar
nesta casa.

— A opinião para quê?

— N ão é da tua conta. Para de te comportares como uma criança e


mostra um pouco de compreensão.

Congratulava-me por a ver perturbada. Significava que a apanhara


em falso.

— Pretendes que compreenda as tuas dissimulações? N ão tens


parado de me mentir nas duas últimas semanas, e escusas de
tentar negá-lo.

— S e o fiz, não foi com prazer. Pensei apenas na tua tranquilidade.


O deias o Rainaldi. S e soubesses que me encontrava com ele, esta
cena surgiria mais cedo, quando ainda não recuperaras energias
suficientes para a enfrentar. Terei de voltar a passar pelo mesmo,
meu Deus? Primeiro com o Ambrose e agora contigo!
Tinha as faces lívidas e tensas, mas era-me impossível determinar
se se devia a medo ou cólera. Entretanto, mantinha-me com as
costas apoiadas à porta fechada e olhava-a com intensidade.

— Sim, odeio o Rainaldi, como o Ambrose o odiava. E com razão.

— Qual?

— Está apaixonado por ti. E tem estado desde há anos.

— Q ue incrível disparate... — Pôs-se a percorrer o aposento em


vaivém, entre a lareira e a janela, as mãos unidas à sua frente. — É
um homem que se manteve sempre a meu lado, em todas as
provações. N unca teceu juízos errados a meu respeito nem tentou
ver-me de um modo diferente do que sou. Conhece os meus
defeitos e fraquezas e não os condena, aceitando-me por aquilo que
valho. S e não me apoiasse ao longo dos anos das nossas relações
absolutamente platônicas, e de que nada sabes, estaria perdida,
sem possibilidade de salvação. O Rainaldi é meu amigo. O meu
único amigo.

Fez uma pausa e olhou-me com uma expressão de desafio.

Tratava-se, sem dúvida, da verdade, ou, pelo menos, tão distorcida


na sua mente que assumia esse aspecto. Todavia, não influía
minimamente na minha opinião sobre Rainaldi. N a realidade, ele já
possuía parte da sua recompensa, como Raquel acabava de me
revelar. O resto surgiria com o tempo. N o próximo mês, no próximo
ano, mas não deixaria de aparecer. O homem dispunha de um poço
de paciência. Porém, eu não; nem Ambrose.

— Manda-o embora para a sua terra — sugeri.

— I rá, quando for oportuno, mas se eu o necessitar ficará. Q uero


mesmo prevenir-te de que, se tornas a ameaçar-me, o trago para
esta casa, como meu protetor.

— Não acredito que te atrevesses.


— Por que não? A casa é minha.

Eclodia a inevitável batalha. A s suas palavras constituíam um


desafio que eu não podia enfrentar. O seu cérebro de mulher
funcionava de uma maneira diferente do meu.

Toda a argumentação era justa, todas as arremetidas contundentes.


S ó a força física a podia desarmar. Avancei um passo, mas correu
para junto da chaminé e pousou a mão no cordão da sineta.

— D eixa-te estar aí, ou chamo o S eecombe. Q ueres cobrir-te de


vergonha diante dele, quando lhe disser que tentaste agredir-me?

— N ão tencionava agredir-te. — Voltei-me e abri a porta. —


Chama-o, se desejares, e explica-lhe tudo o que se passou entre
nós. S e vai haver violência e vergonha, que seja em larga escala.

O lhamo-nos com animosidade, em silêncio, por um longo momento.


Por último, largou o cordão, mas não me movi. De olhos marejados,
fitou-me e articulou:

— Uma mulher não pode sofrer duas vezes. J á passei por tudo isto.
— Levou a mão à garganta. — Até os dedos em volta do pescoço.
Compreendes agora?

D esviei os olhos por cima da sua cabeça, para o retrato na parede,


onde o rosto juvenil de Ambrose era o meu. Ela vencera ambos.

— S im, compreendo. S e precisas de te encontrar com o Rainaldi,


chama-o aqui.

Prefiro isso a vê-lo clandestinamente na Rose and Crown. — Voltei-


lhe as costas e dirigi-me para o meu quarto.

N o dia seguinte, ele compareceu para jantar. Raquel enviara-me


um bilhete à hora do café da manhã, a fim de pedir autorização para
o convidar, sem dúvida esquecida da atitude de desafio da véspera
ou limitando-se a ignorá-la até nova decisão, com a aparente
intenção de restaurar a minha posição.

Em resposta, informei que transmitiria as ordens necessárias a


Wellington para o ir buscar com a carruagem, e o italiano chegou às
quatro e meia da tarde.

A conteceu encontrar-me, só, na biblioteca, e, graças a um lapso do


mordomo, foi introduzido lá e não na sala de estar.

Levantei-me e dei-lhe as boas-tardes. Parecia totalmente


descontraído e estendeu-me a mão.

— Espero que esteja totalmente restabelecido — proferiu. — N a


verdade, acho-o com melhor aspecto do que as circunstâncias me
levaram a crer. Todas as informações que recebi a seu respeito
eram pessimistas. A Raquel estava muito preocupada.

— Com efeito, sinto-me bem.

— A felicidade dos jovens — volveu, com uma expressão


sonhadora. — Q uanto não vale ter bons pulmões e uma digestão
excelente, responsáveis pelo desaparecimento dos traços da
doença em poucas semanas! A posto que já percorre os campos a
cavalo todos os dias. Em contrapartida, nós, a sua prima e eu, mais
velhos, precisamos de evitar toda a tensão. Pessoalmente,
considero a sesta a meio da tarde essencial para a meia-idade.

I ndiquei-lhe uma cadeira, que aceitou, para em seguida sorrir,


enquanto olhava à sua volta.

— A inda não há alterações. Talvez a Raquel tencione deixar tudo


como está, para criar ambiente. Muito me alegra. O dinheiro pode
ser despendido melhor noutras coisas.

Ela contou-me que, desde a minha visita anterior, se efetuaram


várias obras na propriedade. Q uero vê-las antes de conceder a
aprovação. Considero-me uma espécie de administrador, para
equilibrar a situação.

Puxou de um charuto e acendeu-o, sem parar de sorrir.

— Escrevi-lhe uma carta, em Londres, depois de você transferir a


posse dos bens, mas a sua doença impediu-me de enviar. Q uase
tudo o que continha posso repetir agora na sua presença. Limitava-
me a agradecer-lhe, em nome da Raquel, e assegurar que
providenciaria para que não ficasse prejudicado com a
transferência. Pretendo, de resto, vigiar de perto todas as despesas.
— Expeliu uma nuvem de fumo azulado e fixou o olhar no teto. —
Este lustre não foi escolhido com muito gosto. N a I tália,
conseguiria muito melhor. Tenho de recomendar à Raquel que tome
nota desses pormenores. Telas de

autores conhecidos e mobiliário e acessórios de qualidade


constituem bons investimentos. Q uando chegar o momento de lhe
devolver a propriedade, verificará que duplicamos o valor. N o
entanto, isso situa-se num futuro distante. N essa altura, você
decerto já terá filhos. Ela e eu não passaremos de velhos
alquebrados em cadeiras de rodas. — S oltou uma gargalhada
condescendente e conservou o sorriso. — A propósito, como está a
encantadora Miss Louise?

Repliquei que estava convencido de que se encontrava bem.

Enquanto o observava, com o charuto entre os dedos, refletia que


tinha mãos assaz delicadas para um homem. Possuíam uma
espécie de qualidade feminina que não correspondia ao resto da
sua pessoa, e o volumoso anel, no dedo mindinho, achava-se
deslocado.

— Quando regressa a Florença? — perguntei.

— D epende da Raquel — redarguiu, sacudindo a cinza que caíra


no casaco. — Vou voltar para Londres, a fim de arrumar uns
negócios em suspenso, e depois sigo para a I tália antes dela, para
preparar a villa e o pessoal para o seu regresso, ou espero e
viajaremos juntos. Decerto está ao corrente de que pretende tornar
a instalar-se lá...

— De fato, estou.

— S atisfaz-me verificar que não tentou pressioná-la para que


ficasse. S ei que, com a doença, se tornou dependente dela. Por
outro lado, a Raquel queria evitar-lhe todo o tipo de amargura. Mas,
como lhe vinquei com clareza, você agora é um homem e não um
adolescente desamparado. S e porventura não consegue apoiar-se
nas pernas com firmeza, tem de aprender a fazê-lo. Não concorda?

— Em absoluto.

— A s mulheres, em particular a Raquel, procedem sempre ao sabor


das suas emoções. N ós, homens, mais frequentemente, embora
nem sempre, em obediência à razão. A legra-me ver que se tornou
uma pessoa sensata. N a primavera, quando nos visitar em
Florença, terei oportunidade de lhe mostrar alguns dos nossos
tesouros históricos. Garanto-lhe que não ficará desapontado. — E
tornou a soprar fumo para o teto.

— Q uando diz "nos", emprega o pronome no sentido real, como se


a cidade lhe pertencesse, ou trata-se de uma fórmula legal?

— Perdoe-me, mas estou tão habituado a agir em nome da Raquel,


mesmo a pensar por ela, de tantas maneiras, que nunca consigo
dissociar-me totalmente da ideia, pelo que insisto no emprego desse
pronome pessoal. D isponho, aliás, de bons motivos para crer que
virei a fazê-lo de um modo mais íntimo. Mas isso — concluiu com
um gesto largo — está nas mãos dos deuses... Ah, aí a temos!

Pôs-se de pé e imitei-o, no momento em que Raquel entrou e lhe


deu as boas-vindas em italiano, estendendo a mão para que a
beijasse. D evido a causas
indeterminadas — talvez fosse a forma como trocavam olhares e
sorrisos durante o jantar —, senti avolumar-se uma espécie de
náusea no meu íntimo.

A comida que tragava não me sabia a nada. A própria tisana, que


ela preparou para os três no final da refeição, tinha um sabor
amargo fora do habitual. D eixei-os sentados no jardim e subi ao
meu quarto. A inda não dera meia dúzia de passos quando os ouvi
passarem a exprimir-se em italiano. O cupei a cadeira junto da
janela, onde permanecera nos primeiros dias de convalescença,
com Raquel a meu lado, e foi como se todo o mundo se tivesse
tornado maligno.

N ão logrei reunir coragem para voltar a descer e despedir-me do


homem. O uvi a carruagem deter-se à entrada e partir, pouco
depois, sem me mover dali. Mais tarde, Raquel subiu a escada e
bateu levemente à minha porta. N ão respondi. A briu-a, entrou e
pousou-me a mão no ombro.

— Q ue tens agora? — A voz parecia envolta num suspiro


prolongado, como se tivesse atingido os limites da paciência. — Ele
não podia ter sido mais atencioso e cordial. Que defeito lhe
encontraste hoje?

— Nenhum.

— Fala-me sempre muito bem de ti. Gostava que o ouvisses. S e


fosses menos difícil de aturar, menos ciumento... Correu os
cortinados, porque começava a escurecer, e o próprio gesto
denunciava a impaciência que a dominava. — Tencionas ficar aí
encolhido na cadeira até à meia-noite? Em caso afirmativo, envolve-
te num cobertor, ou apanhas um resfriado. Quanto a mim, estou
exausta e vou-me deitar.

Tocou-me levemente na cabeça e retirou-se. N ão era uma carícia.


O movimento superficial de quem afaga uma criança que se
comportou mal, a pessoa adulta demasiado enfastiada para insistir
em lhe ralhar.
N aquela noite, a febre reapareceu. N ão com a intensidade anterior,
mas suficiente para me incomodar. D e manhã, descobri que não
conseguia permanecer de pé com firmeza e, depois de vomitar,
assolado por fortes arrepios, voltei para a cama.

Foram chamar o médico, e perguntei a mim próprio se se repetiria o


tormento de poucas semanas atrás. Ele diagnosticou qualquer
anomalia no fígado e deixou ficar os medicamentos que se lhe
afiguraram apropriados. Mas quando Raquel se sentou ao lado da
cama, à tarde, pareceu-me que o rosto exibia a mesma expressão
de desconfiança da véspera. I maginei o que pensava: "Voltará tudo
ao princípio? Estarei condenada a fazer de enfermeira
eternamente?" Mostrou-se mais brusca comigo ao dar-me o
medicamento, e, quando tive sede, não pedi que me alcançasse o
copo, com receio de lhe desagradar.

Fazia-se acompanhar de um livro, que não lia, e a sua presença na


cadeira à cabeceira da cama dir-se-ia conter uma censura
silenciosa.

— Se tens alguma coisa para fazer, não percas tempo aqui —


acabei por dizer.

— Que havia de querer fazer?

— Falar com o Rainaldi.

— Partiu.

A informação produziu-me uma alteração no palpitar do coração.


Uma espécie de euforia. A doença foi imediatamente relegada para
segundo plano.

— Regressou a Londres?

— Não. Embarcou ontem em Plymouth.


O meu alívio foi tão intenso que tive de virar o rosto para o lado, a
fim de evitar que se apercebesse e ficasse mais irritada.

— Supunha que ainda tinha assuntos a resolver em Londres.

— Pois tinha, mas decidimos que o podia fazer por


correspondência. A guardam-no outros mais urgentes na I tália. S
oube que havia um navio que partia à meia-noite e aproveitou. Estás
mais satisfeito?

Rainaldi abandonara o país — na verdade, achava-me satisfeito.


Mas não com o plural que ela empregara. N o fundo, eu sabia
porque partira: para prevenir o pessoal doméstico da villa para
preparar o regresso da dona da casa. Era essa a urgência que o
aguardava. As minhas possibilidades de êxito esvaíam-se a passos
agigantados.

— Quando o seguirás? — perguntei.

— Depende de ti.

Reconheci para comigo que poderia continuar a fingir-me doente —


queixar-me de dores em várias partes do corpo e deixar ao médico
o trabalho de determinar uma possível causa.

Ganharia assim mais um par de semanas. E depois? A bagagem


seguiria para Plymouth, a cama do quarto azul seria coberta como
durante todos os anos antes de ela chegar, e silêncio.

— S e fosses menos rancoroso e cruel, estes últimos dias podiam


ser felizes —

observou com um suspiro.

Estaria a ser rancoroso? E cruel? Custava-me a crer. Parecia-me,


ao invés, que a atitude hostil lhe pertencia. N ão havia solução
possível. Procurei-lhe a mão e não a retirou. No entanto, ao beijá-la,
continuava a pensar em Rainaldi.
N aquela noite, sonhei que me dirigia à laje de granito e voltava a ler
a carta que enterrara. O sonho era tão intenso que não se dissipou
com o despertar e persistiu durante toda a manhã. Levantei-me e
senti-me com forças suficientes para descer ao piso térreo, como
habitualmente, cerca do meio-dia.

Por muito que me esforçasse, não conseguia dominar o desejo de a


ler de novo.

N ão me recordava do que dizia a respeito de Rainaldi. N ecessitava


de saber, sem margem para dúvidas, o que A mbrose revelava
acerca dele. À tarde, Raquel recolheu ao quarto para descansar e
aproveitei para satisfazer a curiosidade. Percorri a passagem
empedrada, embora contrariado comigo mesmo pelo que
tencionava fazer. Uma vez

diante da laje, ajoelhei, escavei a terra com as mãos até sentir o


contato do porta-moedas, agora pegajoso, porque uma lesma o
escolhera para habitação durante o inverno. S acudia com um
piparote e extraí a carta amarrotada.

O s dizeres estavam algo apagados, mas perfeitamente legíveis. Li-


a do princípio ao fim.

A primeira parte mais apressadamente, embora fosse estranho que


a doença de Ambrose, devida a uma causa diferente, apresentasse
sintomas similares à minha.

"À medida que os meses se sucediam, apercebi-me de que cada


vez se voltava mais para o homem que mencionei em cartas
anteriores, um tal S ignor Rainaldi, amigo e, segundo creio,
advogado dos S angalle i, a fim de se aconselhar, e não para mim,
seu marido. Creio que a ama desde longa data, ainda em vida de S
angalle i, e, agora que o estado de espírito dela se modificou, não
posso afirmar a inexistência de reciprocidade de afeto.

Registra-se uma névoa no seu olhar, uma inflexão na voz, quando o


nome dele é mencionado, que me desperta a mais terrível das
suspeitas.

Porventura em virtude de ter sido criada por pais pouco enérgicos e


da vida que se viu obrigada a conhecer antes, e mesmo durante, do
primeiro casamento, cada vez me convenço mais de que o seu
código de comportamento difere do nosso. A ssim, os laços de
matrimônio talvez não sejam sagrados. S uspeito (tenho mesmo
quase a certeza) de que ela lhe dá dinheiro. Lamento ver-me
forçado a reconhecer que, atualmente, o vil metal constitui a única
via de acesso ao seu coração."

Ei-la, a frase que eu não esquecera, e persistia nos meus sonhos. N


a parte em que o papel estivera dobrado, a letra era indistinta, até
que voltei a detectar o nome

"Rainaldi":

"S e saio ao terraço e a encontro a conversar com Rainaldi, calam-


se subitamente, o que me redobra as suspeitas. Certa vez em que
fiquei só com ele, aludiu ao meu testamento, que vira por ocasião do
casamento, e comentou que, se morresse, deixaria a minha mulher
sem recursos.

A chava-me ao corrente do fato e já redigira outro em que corrigia a


omissão, o qual assinaria, com as testemunhas exigidas por lei, se
me convencesse de que a tendência para o dispêndio desregrado
de dinheiro era temporária, e não profundamente enraizada.

Q uero salientar, a propósito, que o novo documento lhe atribuiria a


casa e a propriedade apenas enquanto vivesse, pelo que
transitariam para ti por sua morte, com a cláusula de que a
administração de tudo permaneceria nas tuas mãos.

Mantém-se por assinar pela razão que acabo de expor.

Repara que foi Rainaldi quem me fez perguntas sobre o testamento


e chamou a atenção para as omissões.
Ela abstém-se de me falar no assunto. Mas trocarão impressões a
esse respeito?

Que dirão um ao outro quando não estou presente?

Esta questão do testamento ocorreu em março. Reconheço que


estava adoentado, com dores de cabeça excruciantes, e a
abordagem do assunto por parte de Rainaldi pode dever-se ao fato
de supor que eu morreria.

Talvez fosse isso e não o abordem entre si. N ão disponho de meios


para o averiguar. S urpreendo-a com frequência a olhar-me com
uma expressão estranha. E

quando a abraço, dá a impressão de que tem medo. Mas de quê ou


de quem?

Há dois dias, e esta é a razão principal da presente, sofri novo


acesso febril, como o que me prostrou em março. O ataque é
repentino. A codem-me dores e náuseas, que passam rapidamente
a uma enorme excitação cerebral, a qual me suscita uma tendência
irresistível para a violência, impedindo-me de permanecer de pé. Em
seguida, surge um desejo intolerável de dormir, pelo que caio no
chão ou na cama, consoante o lugar onde me encontro. N ão me
recordo de o meu pai sofrer de nada do gênero. D as dores de
cabeça e certa irritação, sem dúvida, mas nunca os outros sintomas.

D iz-me o que tudo isto significa, Philip, meu caro rapaz, única
pessoa no mundo em quem posso confiar, e, se puderes, procura-
me. N ão digas nada a N ick Kendall. O u a quem quer que seja. E,
sobretudo, não escrevas a responder. Limita-te a vir.

Há uma ideia que me domina e não permite um instante de paz.


Pretenderão envenenar-me?

Ambrose."
D esta vez não voltei a guardá-la no porta-moedas. Rasguei-a em
numerosos pedaços, que enterrei no chão, em diferentes lugares. Q
uanto ao porta-moedas, parcialmente apodrecido pela umidade,
parti-o em dois e ocultei-o entre a vegetação do bosque. Por fim,
regressei a casa. A figurou-se-me uma espécie de pós-escrito da
carta o fato de que, quando me preparava para entrar, S eecombe
recebia a mala do correio, que um dos rapazes fora buscar à aldeia.
A bri-a e, entre as poucas missivas que se me destinavam, havia
uma para Raquel, com o carimbo de Plymouth. O endereço achava-
se traçado na caligrafia inconfundível de Rainaldi. Creio que, se o
mordomo não estivesse presente, a teria confiscado. A ssim, limitei-
me a indicar-lhe que a entregasse à destinatária.

I ronicamente, quando a procurei, um pouco mais tarde, a


agressividade parecia ter-se dissipado, substituída pela ternura de
outrora. Estendeu-me os braços, sorridente, e perguntou como me
sentia, abstendo-se, porém, de aludir à carta que acabava de
receber. D urante o jantar, interroguei-me se o conteúdo teria
contribuído para a sua nova atitude e imaginei que se trataria de
uma epístola recheada de palavras de amor. A pesar de redigida em
italiano, decerto haveria, aqui e ali, termos que eu compreenderia,
pois Raquel ensinara-me algumas frases naquele idioma. D e
qualquer modo, ficaria inteirado,

através da introdução, do grau das relações que mantinham.

— Estás muito calado — observou em dado momento. — Sentes-te


bem?

— Sinto-me — repliquei. — Muito bem. — E baixei os olhos para o


prato, não fosse ler-me o pensamento e depreender o que
tencionava fazer.

Terminada a refeição, subimos ao boudoir. Ela preparou a tisana,


como de costume, e pousou as respectivas chávenas na mesinha a
meu lado. Em cima da escrivaninha encontrava-se a carta de
Rainaldi, parcialmente coberta por um lenço. O s meus olhos foram
atraídos para aí, fascinados. Porventura um italiano, ao escrever à
mulher amada, manteria um estilo formal? O u, ante a perspectiva
da separação de algumas semanas, depois de um lauto repasto,
voltar-se-ia para a indiscrição e permitir-se-ia a liberdade de
derramar amor no papel?

— Conservas o olhar fixo num lado da sala, como se visses um


fantasma - acusou Raquel. — Que se passa contigo?

— Nada.

E, pela primeira vez, menti, enquanto ajoelhava junto dela, fingindo


uma urgência de conforto e amor, para que as suas dúvidas se
dissipassem e esquecesse a carta e a deixasse em cima da
escrivaninha.

Mais tarde, depois da meia-noite, quando me convenci de que


dormia, ao passar diante da porta do seu quarto e verificar que não
se filtrava luz pela frincha inferior, voltei ao boudoir.

O lenço continuava no mesmo lugar, todavia a carta desaparecera. I


nspecionei a lareira, mas não descortinei vestígios de cinzas. A bri a
gaveta da escrivaninha e depararei com papéis meticulosamente
arrumados e nada mais. Restava apenas um compartimento
fechado à chave ao fundo do móvel, ladeado por outros abertos.
Puxei do canivete e introduzi a lâmina um pouco acima da
fechadura, numa tentativa para alargar o espaço intermédio, o que
me permitiu descortinar uma ponta de papel branco. Entrei no
quarto de Raquel, peguei no molho de chaves da gaveta da mesa
de cabeceira e experimentei a menor. A justava-se perfeitamente e
a fechadura não ofereceu resistência. Retirei um sobrescrito, mas
verifiquei com desapontamento que não se tratava da carta de
Rainaldi.

Continha vagens e sementes, que me deslizaram para a mão e se


espalharam pelo chão. Eram muito pequenas e verdes.

O lhei-as pensativamente e recordei-me de que vira outras iguais,


assim como as vagens. Pareciam-se muito com as que Tamlyn me
mostrara no jardim e também cobriam o chão do pátio da Villa
Sangalletti, que a mulher de Giuseppe varrera.

Tratava-se de sementes de laburno, venenosas para o gado... e


para os homens.

Tornei a colocar o sobrescrito no compartimento da escrivaninha,


que tranquei.

Em seguida, guardei o molho de chaves na mesa de cabeceira e


regressei ao meu quarto, sem olhar para Raquel, que dormia
profundamente.

Creio que estava mais calmo do que em qualquer outro momento


das últimas semanas. A proximei-me do lavatório e, entre o jarro de
água e a bacia, vi os dois frascos de medicamentos que o D r.
Gilbert me prescrevera. Esvaziei-os na janela, peguei no castiçal e
desci à cozinha. O pessoal há muito que se deitara.

Em cima da mesa, junto do lava-louça, encontrava-se o tabuleiro


com as duas chávenas de que bebêramos a tisana. Eu sabia que, a
maioria das vezes, J ohn as deixava por lavar até à manhã seguinte,
como na realidade voltara a acontecer. O depósito da bebida
achava-se bem visível no fundo de ambas. Examinei-o à luz da vela
e não notei qualquer diferença. Pousei o dedo em cada um —
primeiro da chávena dela e depois da minha — e levei-o aos lábios.
Existiria uma leve distinção no sabor? Tornava-se difícil determiná-
lo. D ava a impressão de que o depósito da minha era ligeiramente
mais espesso, mas não o poderia jurar. Por fim, abandonei a
cozinha e voltei para o quarto.

Despi-me lentamente, imerso em cogitações, e deitei-me.

N ão me assolava cólera ou medo. A penas compaixão.


Considerava Raquel sem responsabilidade do que fizera, possessa
do mal. S ubjugada pelo homem ao qual não podia resistir, carente,
devido ao peso das circunstâncias e de possíveis meios em que se
movera no passado, de um sentido sólido da moral, revelava-se
capaz, por instinto e impulso, daquele ato final.

Eu queria salvá-la de si própria e não sabia como fazê-lo. Tinha a


impressão de que A mbrose se encontrava a meu lado e eu voltava
a viver nele, ou ele em mim. A carta que escrevera e eu reduzira a
pedaços achava-se agora concretizada.

Eu admitia que ela, à sua estranha maneira, amara ambos, mas


tornáramo-nos dispensáveis. Q ualquer coisa diferente da emoção
cega encontrava-se, afinal, na raiz dos seus atos.

Talvez fosse duas pessoas, cada uma das quais tinha fases de
predominância. N a realidade, não o podia afirmar. Louise diria que
ela fora sempre a segunda. Q ue, desde o princípio, cada
pensamento, cada movimento, se revestia de certa premeditação.
Em Florença, com a mãe, após a morte do pai, principiara então, ou
ainda antes, a maneira de viver? S angalle i, morto num duelo, que
nunca fora para mim ou para A mbrose nada mais do que uma
sombra sem substância, também teria sofrido? Louise não deixaria
de se inclinar para a afirmativa. I nsistiria em que, desde o primeiro
encontro com A mbrose, dois anos atrás, planeara casar com ele,
por dinheiro. E quando não obtivera o que pretendia, planeara a sua
morte. A ssim raciocinava a mente legal. E Louise não lera a carta
que eu rasgara.

Qual seria a sua posição se o tivesse feito?

O que uma mulher fez uma vez sem ser detectada, pode repetir com
a mesma naturalidade. E desembaraçar-se de mais um fardo.

Enfim, a carta fora rasgada, e ela, ou qualquer outra pessoa, não


teria possibilidade

de se inteirar do conteúdo. D e resto, este último preocupava-me


pouco agora. N ão me merecia tanta importância como a parte final
da que A mbrose escrevera, considerada por Rainaldi, assim como
por N ick Kendall, o mero produto de um cérebro enfermo. "Ela
acabou por se desmascarar, Raquel, meu tormento."

Eu era o único ciente de que essas palavras correspondiam à


verdade.

Voltava, pois, ao ponto de partida. À ponte junto do A rno, onde


fizera um juramento. Em última análise, um juramento talvez fosse
algo que não podia ser repudiado, tinha de ser cumprido no
momento oportuno. E esse momento chegara...

O dia seguinte era domingo. À semelhança de todos os domingos


do passado, desde que ela se instalara em minha casa, a
carruagem conduziu-nos à igreja. Fazia um tempo excelente, próprio
dos píncaros do verão. Raquel usava um novo vestido preto e
chapéu de palha e fazia-se acompanhar de um para-sol.

S orridente, deu os bons-dias a Wellington e a J im e ajudei-a a


subir para o seu lugar. Q uando me sentei a seu lado e começamos
a atravessar o parque, pousou a mão na minha.

Eu pegara-lhe muitas vezes, apaixonado. S entira a sua delicada


pequenez, movera os anéis em torno dos dedos, vira as veias
azuladas, tocara nas unhas bem cuidadas.

A gora, pousada na minha, observava-a, pela primeira vez,


destinada a um fim diferente.

Via-a pegar nas vagens de laburno, extrair as sementes, esmagá-


las e friccioná-las na palma. Recordei-me de, uma ocasião, lhe dizer
que tinha umas mãos belas, e ela, com uma risada, replicar que era
a primeira pessoa a reconhecê-lo.

"Têm a sua utilidade", acrescentara. "O A mbrose costumava dizer,


quando me ocupava do jardim, que eram mãos de operária."

A lcançamos a encosta íngreme e o peso concentrou-se nas rodas


da retaguarda da carruagem. Raquel tocou-me no ombro com o seu
e murmurou:

— D ormi tão profundamente esta noite que nem te ouvi sair. — E


olhou-me, com um sorriso significativo.

Embora me tivesse iludido durante muito tempo, eu sentia-me o


maior mentiroso dos dois. N ão consegui sequer replicar e, para
manter a mentira, segurei-lhe a mão com mais firmeza e voltei a
cabeça para o outro lado.

A areia apresentava uma tonalidade dourada na baía ocidental e a


água da baixa-mar refletia os raios solares. A carruagem enveredou
pela alameda que conduzia à aldeia e à igreja.

O s sinos repicavam e as pessoas juntavam-se em torno da entrada,


à espera de que nos apeássemos e as precedêssemos. Raquel
sorria e inclinava-se levemente para todos os lados. Avistamos os
Kendall e os Pascoe, além dos vários caseiros, enquanto nos
encaminhávamos para o nosso lugar, sob os acordes do órgão.

A joelhamos em oração por um breve momento. O s rostos


afundados nas mãos.

"Q ue estará ela a dizer ao seu deus, se porventura acredita em


algum?", pensei.

"A gradecer-lhe-á o êxito de todas as suas maquinações? O u


porventura suplica misericórdia?"

Por fim, sentou-se e abriu o livro de orações. A sua expressão era


calma e feliz. Eu desejava odiá-la, como acontecera durante muitos
meses antes de a conhecer. N o entanto, somente conseguia
experimentar aquela estranha e terrível compaixão.

Levantamo-nos quando o vigário entrou, e o serviço religioso


começou. Recordo-me perfeitamente do salmo que entoamos
naquela manhã: "A quele que operar o embuste não habitará na
minha casa; aquele que proferir mentiras não permanecerá à minha
vista." O s lábios dela moviam-se com as palavras, e a voz era
suave e baixa. E

quando o vigário subiu ao púlpito para pronunciar o sermão, pousou


as mãos no regaço e preparou-se para o escutar, enquanto os
olhos, graves e concentrados, se erguiam para contemplar o orador,
que principiou a dissertar sobre o tema: "É terrível cair nas mãos do
Deus vivo."

Os raios solares penetravam pelos vitrais e incidiam nela.

O bservei os rostos rosados das crianças da aldeia, que bocejavam,


ansiosas por que o sermão chegasse ao fim, e moviam os pés com
impaciência, aprisionados nas botas dominicais e desejosos de
recuperar a liberdade no relvado, descalços, para reatarem as
brincadeiras. Lamentei ardentemente, por um breve momento, não
poder voltar àquela idade, inocente, com Ambrose, em vez de
Raquel, a meu lado.

"Há uma colina verdejante ao longe, atrás das muralhas de uma


cidade." N ão sei porque cantamos este hino naquele dia. Talvez
tivesse havido algum festival relacionado com as crianças da
povoação. A s nossas vozes elevavam-se com clareza, e eu não
pensava em J erusalém, como decerto se pretendia de mim, mas
apenas numa sepultura abandonada no cemitério protestante de
Florença.

Q uando o coro se retirou e nos encaminhávamos para a saída,


Raquel segredou-me:

— A cho que devíamos convidar os Kendall e os Pascoe para jantar,


como antigamente. Passou muito tempo desde a última vez, e são
capazes de estar ofendidos.

Refleti por um momento e assenti com uma breve inclinação de


cabeça. A presença deles ajudaria a transpor o abismo que se
cavara entre nós, e, entretida a conversar com os convidados,
habituada ao meu silêncio, ela disporia de poucas oportunidades de
olhar para mim e estranhar a minha reserva. À entrada da igreja, os
Pascoe não necessitaram de insistência por parte de Raquel, ao
contrário dos Kendall, que opuseram certa resistência.

— Terei de os deixar logo após o jantar, mas a carruagem voltará lá


para recolher a Louise — explicou o meu padrinho.

— Mr. Pascoe tem de celebrar as vésperas — interpôs a esposa do


vigário. —

Podemos, pois, levá-la.

Encetaram animada troca de impressões para coordenar a


operação dos transportes e apercebi-me de que o capataz dos
operários que trabalhavam na construção do caminho empedrado e
jardim aquático, aguardava, de chapéu na mão, para falar comigo.

— Queria alguma coisa? — perguntei.

— Peço desculpa, Mr. A shley, mas ontem não o encontrei, para o


prevenir. S e passar pelo caminho empedrado, não utilize a ponte
que estamos a construir sobre o novo jardim.

— Por quê?

— Trata-se de uma estrutura provisória, até procedermos à


consolidação, segunda-feira de manhã. O piso parece sólido, mas
não aguentaria o peso de uma pessoa. S e alguém passasse por aí,
arriscava-se a cair lá embaixo e fraturar a espinha.

— Obrigado. Não me esquecerei.

Verifiquei que os outros tinham chegado a um entendimento e, como


no primeiro domingo, que agora parecia perdido num passado
remoto, separamo-nos em três grupos: Raquel e o meu padrinho
seguiram na carruagem deste último e Louise e eu na minha,
enquanto os Pascoe subiam para o seu breque. D ecerto que a
ocorrência se verificara diversas vezes no tempo intermédio,
todavia, quando começamos a subir a colina e me apeei para
reduzir o peso, pensei na primeira, cerca de dez meses atrás,
naquele domingo de setembro. Eu irritara-me com a atitude de
Louise, calada e altiva, quase arrogante, e não lhe ligara a
importância devida desde então. Contudo, ela não se mostrara
melindrada e continuara a distinguir-me com a sua amizade. Q
uando chegamos ao topo da colina e tornei a sentar-me a seu lado,
perguntei:

— Sabias que as sementes do laburno são venenosas?

— S im, ouvi falar disso — admitiu, olhando-me com estranheza. —


O gado que as come morre. E as crianças também. Por que
perguntas? Perdeste reses nas terras de Barton?

— Até agora não, mas o Tamlyn sugeriu, o outro dia, que


transferíssemos as árvores da plantação para o campo, por causa
do perigo que representa a queda das sementes no chão.

— Parece-me uma ideia útil. O meu pai perdeu um cavalo, há anos,


devido a um descuido desses. A morte ocorre rapidamente e não há
nada a fazer.

I nterroguei-me sobre como reagiria se lhe falasse da minha


descoberta da noite anterior. O lharia para mim, horrorizada, e
chamar-me-ia louco? Custava-me a crer. Q uase tinha a certeza de
que acreditaria. N o entanto, o lugar não era o mais apropriado, com
Wellington e Jim ao alcance das nossas palavras.

Voltei-me para trás e vi que as outras carruagens nos seguiam a


certa distância.

— Preciso falar contigo, Louise. Q uando o teu pai se retirar, inventa


um pretexto qualquer para ficar.

Fitou-me com perplexidade, mas não acrescentei qualquer


esclarecimento.
Q uando Wellington imobilizou a carruagem à entrada de casa,
desci e estendi a mão à minha companheira. Enquanto
aguardávamos os outros, admiti para comigo que podia
perfeitamente ser aquele outro domingo, em setembro. Raquel
sorria como então.

Conversava animadamente com o meu padrinho, e afigurou-se-me


que tinham enveredado de novo pela política. N aquele domingo,
embora me sentisse atraído para ela, era uma estranha para mim. E
agora? J ulgava conhecê-la demasiado bem — o seu melhor e o
pior. Até os motivos dos seus tenebrosos atos, porventura
intrigantes para ela própria, começavam a despir-se do mistério
inicial. J á não lograva ocultar-me nada, Raquel, o meu tormento...

— Parece que voltamos aos bons tempos — declarou quando nos


juntamos no átrio. — Estou muito contente por terem vindo.

A braçou virtualmente todo o grupo com o olhar e encabeçou o


pequeno cortejo em direção à sala de estar, a qual, como sempre,
apresentava o seu melhor aspecto no verão, com as janelas
abertas, as hortênsias japonesas viçosas nos seus vasos e
refletidas nos espelhos das paredes. Sentamo-nos, e Seecombe
serviu fatias de bolo e vinho.

— Estão eufóricos por causa de um pouco de sol — disse Raquel


com uma risada.

— Para mim, não é nada. N a I tália, temos tempo assim nove


meses por ano. — Fez uma pausa. — Vou fazer as honras da casa.
D eixa-te estar sentado, Philip, que continuas a ser meu paciente.

Verteu vinho em copos, que distribuiu. O meu padrinho e o vigário


levantaram-se, protestando, porém ela rejeitou-os com um gesto. Q
uando se aproximou de mim, fui o único que se negou a beber.

— Não tens sede? — perguntou.


A banei a cabeça. N ão voltaria a ingerir uma única gota servida por
ela. Com um leve encolher de ombros, pousou o copo no tabuleiro e
foi sentar-se com Mrs. Pascoe e Louise, no sofá.

— S uponho que, nesta época do ano, em Florença o calor é quase


insuportável, mesmo para si — observou o vigário.

— N unca tive dificuldade em suportá-lo. O s estores mantêm-se


baixados durante a maior parte do dia, o que conserva as casas
frescas. Uma pessoa adapta-se ao clima em que vive. Como quem
sai à rua no período mais quente sabe ao que se arrisca,
aproveitamos para dormir a sesta. N a Villa S angalle i, há um
pequeno parque virado a norte, onde praticamente nunca dá o sol.
Contém um lago e um repuxo, que ponho a funcionar se o calor
aperta. A água a correr produz um efeito calmante. N a primavera e
verão, nunca me sento noutro lugar da casa.

Com efeito, na primavera, podia ver as vagens do laburno incharem


e converterem-se em flores, as quais constituíam um canopo para o
rapaz desnudo que se erguia acima do lago e segurava a concha
entre as mãos. Por seu turno, as flores acabariam por murchar e
cair e, quando os píncaros do verão chegassem à villa, como
acontecia agora entre nós, embora com menor intensidade, as
vagens rebentariam e espalhariam as sementes pelo chão. Raquel
assistira a tudo isso, sentada no pequeno pátio, com Ambrose a seu
lado.

— Eu adorava visitar Florença — disse Mary Pascoe, arregalando


os olhos e sonhando só Deus sabia com que estranha
magnificência.

Raquel voltou-se para ela e replicou:

— Então, deve fazê-lo no próximo ano, e ficará comigo. A liás, o


convite é extensivo a todos.

Estas palavras provocaram um coro de exclamações e perguntas,


assim como expressões pesarosas. Tinha de partir tão cedo?
Quando voltaria à Inglaterra? Quais eram os seus planos?

— A inda não sei quando partirei nem quando voltarei. Costumo


obedecer a impulsos repentinos e não a datas estipuladas com
antecedência.

Vi o meu padrinho olhar dissimuladamente para mim, cofiando o


bigode, e em seguida fitar as biqueiras dos sapatos.

I maginei o que lhe cruzava o espírito. "Q uando ela partir, voltarás a
ser o que eras."

A tarde foi-se escoando serenamente. Às quatro, sentamo-nos à


mesa para jantar.

Fiquei mais uma vez à cabeceira e Raquel na extremidade oposta,


com N ick Kendall e o vigário de cada lado. Houve de novo
conversas animadas, risos e até poesia. Entretanto, conservava-me
pouco comunicativo, quase totalmente silencioso, sem perder de
vista o rosto da minha prima. A nteriormente, fizera-o com
fascinação, por se tratar de uma situação inédita para mim. A
sequência da troca de palavras, a mudança de tópico, a inclusão de
todas as pessoas presentes representava algo que nunca vira uma
mulher pôr em prática, pelo que constituía autêntica magia.

A gora, achava-me familiarizado com todos os ardis. A abordagem


de um tema, o murmúrio por detrás da mão ao vigário e a risada de
ambos, ao que o meu padrinho se inclinava para a frente e
perguntava "Q ue foi que disse, Mrs. A shley?" e a réplica pronta
dela, com uma ponta de mordacidade, "O vigário depois conta-lhe",
enquanto este último, corado e importante, considerando-se um
humorista, embarcava numa história que a sua família não
conhecia. Um pequeno jogo que ela apreciava, e éramos todos, com
os nossos cândidos hábitos da Cornualha, fáceis de manipular e
ludibriar.

Ponderei se, na I tália, a sua tarefa seria mais difícil, e decidi que
não.
S implesmente, a sua companhia naquele país adaptava-se mais ao
seu temperamento. E

com Rainaldi sempre disponível para a ajudar, exprimindo-se no


idioma que ela melhor dominava, a conversa desenrolava-se na
Villa S angalle i com mais animação do que jamais acontecera na
minha monótona mesa. Por vezes, Raquel gesticulava para clarificar
a sua maneira de falar rápida. Eu apercebera-me de que quando
falava com Rainaldi em italiano ainda o fazia mais. N aquela tarde,
interrompeu N ick Kendall numa afirmação qualquer e tornou a fazê-
lo. Em seguida, enquanto aguardava a resposta, os cotovelos
pousados levemente na mesa, conservara as mãos imóveis. Tinha a
cabeça voltada para ele, como que para escutar melhor, pelo que,
do meu lugar à cabeceira da mesa, eu podia observá-la de perfil. A
ssim, era sempre uma estranha. A s feições irrepreensíveis
gravadas numa moeda. Morena e reservada, uma estrangeira à
entrada de um aposento, de xale à cabeça e mão estendida. Mas de
frente, quando sorria, nunca era uma estranha.

A Raquel que eu conhecia e amara.

O meu padrinho terminou a história. S eguiu-se uma pausa e


silêncio. A gora treinado para interpretar todos os movimentos dela,
eu observava-lhe os olhos, que se fixaram em Mrs. Pascoe e depois
em mim.

— Vamos para o jardim?

Levantamo-nos, e o vigário puxou do relógio de bolso, suspirou e


anunciou:

— Por muito que me custe, tenho de me despedir.

— Eu também — declarou o meu padrinho. — O meu irmão que


vive em Luxilyan está doente e prometi ir vê-lo. Mas a Louise pode
ficar.
— Como somos só três, abandonemos as formalidades — propôs
Raquel. —

Venham para o boudoir. — S orrindo a Louise, precedeu-nos em


direção à escada. — Você vai provar a minha tisana. Mostrar-lhe-ei
o método que emprego. S e o seu pai alguma vez sofrer de
insônias, é o remédio indicado.

Entramos no boudoir e sentamo-nos, eu junto da janela, enquanto


Louise ocupava o banco e Raquel iniciava os preparativos da tisana.

— À maneira inglesa, se é que existe, do que duvido, usa-se cevada


descascada —

explicou à minha prima. — Eu trouxe ervas secas de Florença, para


enriquecer o sabor.

Se lhe agradar, dar-lhe-ei algumas quando partir.

Louise levantou-se do banco e acercou-se.

— A Mary Pascoe garantiu-me que você sabe o nome de todas as


ervas e curou os caseiros e familiares desta propriedade de
numerosas indisposições. A ntigamente, as pessoas sabiam mais
dessas coisas do que agora. N o entanto, algumas das mais velhas
ainda conseguem eliminar verrugas e certas erupções cutâneas.

— Eu elimino mais do que verrugas — redarguiu Raquel, rindo. — A


utilização de ervas para fins medicinais é muito antiga. A prendi-a
com a minha mãe. O brigada, J ohn

— agradeceu ao rapaz, que entrara com uma chaleira de água a


ferver. — Em Florença, costumava preparar a tisana no meu quarto
e deixá-la repousar. Fica melhor assim.

D epois, íamos para o pátio, ligávamos o repuxo, sentávamo-nos e,


enquanto saboreávamos a tisana, a água jorrava para o lago. O A
mbrose era capaz de passar horas a observá-lo. — Verteu parte da
água em ebulição no bule do chá. — Estou a pensar em trazer de lá,
a próxima vez que visitar a Cornualha, uma estatueta igual à que
tenho no lago. N ecessitarei de a procurar, pois não sei bem onde a
guardei, mas acabarei por encontrá-la. Poderemos colocá-la no
meio do jardim que está em vias de acabamento.

Q ue achas? — Virou-se para mim, sorridente, enquanto movia a


tisana com a mão esquerda.

— Aprovo — respondi secamente.

— O Philip carece de todo e qualquer entusiasmo — indicou à


Louise. — O u concorda com tudo o que digo ou é-lhe indiferente.
Às vezes, penso que os meus esforços aqui... o novo arranjo das
flores no jardim, o caminho empedrado... não passam de mera
perda de tempo. Creio que se contentaria com vegetação rasteira e
uma passagem lamacenta.

Passou a chávena a Louise, que a aceitou e voltou a sentar-se no


banco. A seguir, encheu outra e aproximou-se da janela, onde me
encontrava, mas sacudi a cabeça.

— N ão queres a tisana? Mas faz-te bem, sobretudo para dormires


descansado. É a primeira vez que a recusas.

— Bebe-a por mim — retruquei.

— A minha já está noutra chávena — volveu, com um encolher de


ombros. —

Gosto de a deixar repousar mais tempo. Esta vai-se perder. É pena.

Debruçou-se no peitoril junto de mim e verteu a bebida.

A o retroceder, pousou a mão no meu ombro e notei o odor que tão


bem conhecia.

Não era perfume, mas a essência da sua pessoa, a textura da pele.


— Não te sentes bem? — perguntou em voz baixa, para que Louise
não ouvisse.

S e tudo o que sabia e todos os sentimentos pudessem apagar-se,


solicitar-lhe-ia que conservasse a mão em contato com o meu
corpo. S e esquecesse a carta rasgada, as sementes fechadas à
chave num compartimento da escrivaninha, o mal, a duplicidade...

A mão moveu-se do ombro para o queixo, onde permaneceu por


instantes numa breve carícia, que, por se encontrar entre mim e
Louise, passou despercebida.

— O meu amuado... — sussurrou.

O lhei acima da cabeça dela e vi o retrato de A mbrose na parede


do lado da lareira.

O s seus olhos fixavam-se diretamente nos meus, na juventude e


inocência. N ão respondi e ela afastou-se de mim para pousar a
minha chávena vazia no tabuleiro.

— Que lhe parece? — perguntou a Louise.

— Creio que precisaria de algum tempo para me habituar ao sabor.

— A credito que não agrade a toda a gente. D e qualquer modo, é


um excelente sedativo para os espíritos inquietos. Esta noite, todos
dormiremos bem. — S orriu e

bebeu com lentidão.

Conversamos durante algum tempo — ou antes, quem conversou


foram elas —, até que Raquel se levantou, e propôs:

— Agora que arrefeceu um pouco, vamos dar uma volta pelo


jardim?

Dirigi uma mirada a Louise, que se conservou silenciosa, e aleguei:


— Prometi mostrar à Louise o mapa antigo da propriedade de Pelyn,
que descobri o outro dia. O s limites estão assinalados com a maior
nitidez e provam que a velha fortaleza da colina faz parte dela.

— N esse caso, vou passear sozinha. — E encaminhou-se para o


quarto azul, enquanto cantarolava em surdina uma melodia
qualquer.

— Não saias daqui — recomendei a Louise.

D esci ao escritório, pois na verdade existia um mapa antigo que eu


conservava entre os meus papéis, algures. Encontrei-o numa pasta
de cartolina e, quando cruzava o pátio para regressar ao primeiro
piso, avistei Raquel, que saía para o anunciado passeio.

Estava de cabeça descoberta, mas segurava o para-sol numa das


mãos.

— N ão me demoro — informou. — Vou só até ao terraço. Q uero


ver se a estatueta ficaria bem no novo jardim.

— Tem cuidado — adverti.

— Com quê?

D eteve-se na minha frente, o para-sol aberto pousado no ombro.


Usava um vestido preto, como habitualmente, com rendas brancas
em redor do pescoço. N ão parecia muito diferente da primeira vez
que a vira, dez meses atrás, com a diferença de que agora
estávamos no verão. O odor da relva aparada recentemente pairava
na atmosfera. Uma borboleta esvoaçou sobre as nossas cabeças e
perdeu-se entre as plantas. O s pombos arrulhavam entre as
árvores para além do relvado.

— Com o sol — especifiquei. — Ainda queima.

S oltou uma gargalhada e afastou-se. Vi-a cruzar o relvado e subir


os degraus de acesso ao caminho empedrado.
Voltei para dentro, subi a escada rapidamente e entrei no boudoir,
onde Louise me aguardava.

— Preciso da tua ajuda — articulei, ofegante. — Disponho de pouco


tempo.

— De que se trata? — perguntou, levantando-se, curiosa.

— Lembras-te da nossa conversa na igreja, há várias semanas? —


A ssentiu com uma inclinação de cabeça e prossegui:

— Tinhas razão e eu não, mas isso não interessa agora. Preciso de


confirmar as minhas suspeitas. Penso que ela tentou envenenar-me
e fez o mesmo ao Ambrose.

Calei-me por um momento, enquanto Louise arregalava os olhos,


horrorizada.

— D e momento não vem para o caso como o descobri, mas a pista


pode encontrar-

se numa carta de Rainaldi — acrescentei. — Vou revistar aquela


escrivaninha para a localizar.

S ei que aprendeste um pouco de italiano com a professora de


francês e, com os nossos esforços conjugados, havemos de a
traduzir.

Ato contínuo, acerquei-me do móvel e iniciei as pesquisas, mais


minuciosas que na véspera à luz da vela.

— Por que não preveniste o meu pai? — quis saber Louise. — S e


ela é culpada, podia acusá-la com maior veemência do que tu.

— São precisas provas — lembrei-lhe.

D epararam-se-me papéis e sobrescritos cuidadosamente


arrumados, faturas que talvez alarmassem o meu padrinho, se as
visse, mas careciam de significado para mim, na minha febre para
descobrir o que procurava. Voltei a tentar a sorte no compartimento
que continha o pequeno pacote. D esta vez, não se achava fechado
à chave. A bri-o e verifiquei que se encontrava vazio. O sobrescrito
desaparecera. O fato poderia constituir uma prova adicional, porém
a minha tisana tinha sido deitada fora. Continuei a abrir
compartimentos e gavetas, enquanto Louise assistia de fronte
enrugada.

— D evias ter esperado — persistiu. — Falavas com o meu pai e ele


tomava medidas legais. Assim, procedes como um ladrão vulgar.

— A vida e a morte não se compadecem com medidas legais —


repliquei. — A lto!

Que é isto?

Mostrei-lhe uma folha de papel, com nomes. Uns em inglês, outros


em latim e outros, ainda, em italiano.

— N ão tenho bem a certeza, mas creio que é uma lista de plantas e


ervas. A letra não está muito clara. — Examinou os dizeres,
enquanto eu prosseguia as pesquisas. —

S im, deve tratar-se das ervas e remédios dela. Mas há uma seção
em inglês que dá a impressão de descrever a reprodução de
plantas. Espécies e mais espécies. Montes delas.

— Procura o laburno.

Obedeceu e, após um momento, anunciou sem entusiasmo:

— Sim, está aqui, mas não adianta nada.

Arranquei-lhe a folha das mãos e li a passagem que o indicador dela


assinalava:

"Laburnum Cytisus. O riundas do S ul da Europa, estas plantas


podem reproduzir-se rápida e abundantemente.
A s sementes devem ser depositadas em canteiros ou onde as
plantas ficarão definitivamente. N a primavera, em março, por
exemplo, podem transplantar-se para culturas do tipo viveiro, para
conservação eficiente até se transferirem para as culturas
definitivas."

S eguia-se a indicação de onde Raquel obtivera os elementos: The


N ezy Botanic Garden. Editado, para J ohn S tockdale and
Company, por T. Bousley, Bolt Court, Fleet

Street, 1812.

— Não diz nada sobre veneno — declarou Louise.

Continuei a revistar a escrivaninha, até que encontrei uma carta do


banco, em que reconheci a caligrafia de Mr. Couch.

Apressei-me a lê-la, sem o mínimo rebuço.

"Prezada S enhora: A gradecemos a devolução da coleção de joias


A shley, as quais, em conformidade com as suas instruções, por se
ausentar do país dentro em breve, permanecerão ao nosso cuidado
até que o seu herdeiro, Mr. Philip A shley, possa tomar posse delas.

Atentamente,

Herbert Couch."

Voltei a introduzi-la no sobrescrito, subitamente angustiado. A pesar


da influência de Rainaldi, um rebate de consciência levara-a àquele
derradeiro ato.

N ão se me deparou mais nada de interesse, depois de


esquadrinhar todos os recantos do móvel. Raquel destruíra a carta
ou tinha-a consigo. Perplexo e frustrado, voltei-me para Louise.

— Não está aqui.

— Viste debaixo do mata-borrão?


N a verdade, pousara-o inconscientemente na cadeira ao iniciar as
pesquisas e não me preocupara mais com ele.

Examinei-o e, entre duas folhas brancas, avistei o sobrescrito


proveniente de Plymouth, que ainda continha a carta. Extraí-a com
prontidão e entreguei-a a Louise.

— Vê se consegues decifrá-la.

Desdobrou o papel e restituiu-me.

— Podes ler tu. Não está em italiano.

O texto não era muito longo. Rainaldi prescindira das formalidades,


como eu previra, mas não da maneira que imaginara. I ndicava as
onze horas da noite, sem qualquer preâmbulo clássico:

"Como se tornou mais inglesa do que italiana, escrevo-lhe no seu


idioma adotivo.

Passa das onze e largamos à meia-noite. Farei tudo o que me pede


em Florença, e talvez até mais, embora duvide de que você o
mereça.

A villa estará preparada para a receber, assim como o pessoal


doméstico, quando finalmente resolver arrancar daí. A conselho-a a
não retardar muito a partida. N unca tive grande confiança nos seus
impulsos do coração e emoções. S e não se decidir a deixar o
rapaz, traga-o. N o entanto, advirto-a de que reprovo firmemente
semelhante medida.

Tenha cuidado consigo e creia-me sempre seu dedicado amigo,


Rainaldi."

Li as estranhas linhas segunda vez e passei-as a Louise.

— Prova o que suspeitavas?

— Não — murmurei, pensativamente.


D evia haver algo de errado no meio de tudo aquilo. D ecerto faltava
alguma coisa: um pós-escrito, numa folha suplementar, que ela
ocultara noutro lugar. Tornei a examinar o mata-borrão, sem
resultado. Apenas continha uma folha de papel dobrado.

Tratava-se de uma caricatura de A mbrose. A s iniciais a um canto


eram indecifráveis, mas supus que fora traçada por algum amigo ou
artista italiano, pois continha o nome "Florença" e estava datada de
junho. D epreendi que fora executada pouco antes da morte do meu
primo e pude observar que envelhecera consideravelmente desde
que o vira pela última vez.

Havia vincos profundos em torno dos olhos, que apresentavam uma


expressão quase esgazeada, como se lhe pairasse uma sombra
sobre os ombros e receasse olhar para trás. D ir-se-ia que
pressentia a iminência de uma calamidade. Embora os olhos
pedissem devoção, também imploravam piedade. A baixo do
desenho, ele próprio inscrevera uma citação em italiano:

"Para a Raquel. Non rammentare che le ore felici. Ambrose."

— Só há mais isto — comuniquei a Louise. — Que significam os


dizeres?

Leu-os em voz alta, refletiu por um momento e disse pausadamente:

— Recorda apenas as horas felizes. — D evolveu-me, juntamente


com a carta de Rainaldi. — Ela nunca te mostrou?

— Não.

Olhamo-nos por instantes, em silêncio, até que aventurou:

— J ulgas possível teres-te enganado? Refiro-me ao veneno. Como


vês, não existe a mínima prova.

— Nem existirá nunca.

Guardei o desenho e a carta na escrivaninha.


— N esse caso, não a podes condenar — salientou Louise. — Tanto
pode ser inocente como culpada. É-te impossível fazer seja o que
for. N a primeira hipótese, se a acusares, nunca te perdoarás. A
culpa recairá então em ti e não nela. A bandonemos este aposento
e vamos para a sala. Estou arrependida de ter colaborado nesta
diligência insensata. — Virou-se para mim, que olhava o relvado
pela janela. — Vê-la?

— Não. Há quase meia hora que saiu.

Cruzou o boudoir e olhou-me com estranheza.

— Por que estás com essa voz tão tensa? Por que manténs o olhar
fixo nos degraus de acesso à passagem empedrada? Há alguma
novidade?

Desviei-a e encaminhei-me para a porta.

— S abes onde fica a corda na plataforma atrás do campanário


utilizada ao meio-dia para chamar o pessoal para o almoço? Vai lá e
puxa-a com força.

— Para quê? — perguntou, intrigada.

— Porque é domingo, toda a gente está por aí dispersa e eu talvez


precise de ajuda.

— Ajuda? — repetiu, cada vez mais perplexa.

— Alguém pode ter sofrido um acidente. A Raquel.

Olhou-me horrorizada.

— Que fizeste? — balbuciou, apreensiva.

Dei meia volta e abandonei o aposento.

D esci a escada apressadamente e enveredei pelo caminho


empedrado, sem que vislumbrasse o menor sinal de Raquel.
O s dois cães encontravam-se junto de um monte de pedras
sobranceiro ao abismo de pelo menos duas dezenas de metros.

Um deles, o mais jovem, aproximou-se de mim. O outro


permaneceu no mesmo lugar. Avistei as pegadas dela no solo
brando e o para-sol, ainda aberto, a um lado. D e súbito, o sino do
campanário começou a dobrar prolongadamente, para se transmitir
sem dúvida a longa distância, em virtude de se tratar de uma tarde
calma e silenciosa.

A cerquei-me da beira do precipício, ao fundo do qual o novo jardim


atingira a fase de acabamento. Parte do esqueleto da ponte ficara
suspensa, grotesca e horrível, como uma escada oscilante. O resto
tombara nas profundezas.

D esci até onde ela jazia, entre os destroços de madeira e pedras


soltas. Peguei-lhe nas mãos e conservei-as entre as minhas. Notei o
frio glacial que as envolvia.

— Raquel — murmurei, ansioso. — Raquel...

O s cães começaram a latir, sem todavia conseguirem abafar o som


do sino. Ela abriu os olhos e fixou-os em mim. Primeiro com uma
expressão de dor, como me pareceu. D epois, de espanto. Por
último, pensei que me reconhecia. Mas equivocava-me mais uma
vez. Chamou-me Ambrose. Continuei a segurar-lhe as mãos, até
que expirou.

Antigamente, costumavam enforcar homens em Four Turnings.

Mas agora já não.

FIM

O Autor e a Obra

D aphne du Maurier, segunda filha do famoso ator e empresário


teatral S ir Gerald du Maurier e neta de George du Maurier,
apreciado artista bonequeiro, nasceu em Londres, a 13 de maio de
1907.

I niciou a sua carreira com artigos de crítica literária e pequenas


narrativas, tendo vindo a lume, em 1931, o seu primeiro romance,
The Loving S pirit, mas foi com A Pousada da J amaica (1936) que
alcançou o sucesso junto do público. Mais tarde, em 1938, escreveu
Rebeca, o romance que a consagrou, traduzido em mais de vinte
línguas e adaptado ao cinema por A lfred Hitchcok. A liás, muitos
dos seus romances, perpassados por ambientes de novela gótica,
tiveram versões cinematográficas: A Prima Raquel (1951), A
Pousada da Jamaica, Os Pássaros, Aquele inverno em Veneza.

Entre os seus livros mais conhecidos, salientam-se ainda A


Enseada do Francês (1941), O Voo do Falcão (1965) e A Casa na
Praia (1969).

D aphne du Maurier escreveu também peças de teatro, pequenas


novelas, uma biografia de Branwell Bronté e dois estudos
interessantes da sua família, Gerald (1934), e The Du Mauriers
(1937).

Morreu em Par, na Cornualha, a 19 de abril de 1989.

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Rosto
Ficha
Capítulo Primeiro
Capítulo Segundo
Capítulo Terceiro
Capítulo Quarto
Capítulo Quinto
Capítulo Sexto
Capítulo Sétimo
Capítulo Oitavo
Capítulo Nono
Capítulo Décimo
Capítulo Décimo Primeiro
Capítulo Décimo Segundo
Capítulo Décimo Terceiro
Capítulo Décimo Quarto
Capitulo Décimo Quinto
Capítulo Décimo Sexto
Capítulo Décimo Sétimo
Capitulo Décimo Oitavo
Capítulo Décimo Nono
Capítulo Vigésimo
Capítulo Vigésimo Primeiro
Capítulo Vigésimo Segundo
Capítulo Vigésimo Terceiro
Capítulo Vigésimo Quarto
Capítulo Vigésimo Quinto
O Autor e a Obra

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