A Minha Prima Rachel
A Minha Prima Rachel
A Minha Prima Rachel
DAPHNE DU MAURIER
ISBN 972-42-0828-1
Sumário
Capa
Rosto
Ficha
Capítulo Primeiro
Capítulo Segundo
Capítulo Terceiro
Capítulo Quarto
Capítulo Quinto
Capítulo Sexto
Capítulo Sétimo
Capítulo Oitavo
Capítulo Nono
Capítulo Décimo
Capítulo Vigésimo
O Autor e a Obra
Capítulo Primeiro
S em dúvida que a esposa era rezingona, mas isso não justifica que
a matasse. S e começássemos a eliminar as mulheres por causa
das suas línguas aguçadas, quase todos os homens seriam
assassinos.
Talvez fosse essa a razão pela qual, quando tive o breve encontro
com o italiano Rainaldi, pela primeira vez, também me olhou com o
mesmo ar chocado de reconhecimento, dissimulado com prontidão,
moveu os dedos na caneta em cima da secretária por uns instantes
e acabou por perguntar:
Não sei por que te digo isto, mas sinto que o devo fazer.
na frente.
S e olhasse para ti, por cima do ombro, não te veria a oscilar nas
tuas correntes, mas a minha própria sombra.
Capítulo Segundo
Esquece-a.
sofríveis.
I gnoro de que vive a nossa prima Raquel, mas depreendi das suas
palavras que teve de vender uma grande parte dos bens para pagar
as dívidas do marido.”
— N ão. S ó diz que casou muito jovem, mas não quando. S uponho
que é de meia-idade.
Ambrose."
"O melhor que lhe podia ter acontecido." Q uantas vezes ouvi
pronunciar estas palavras e tive de as ecoar! Comecei a evitar os
vizinhos e regressar a casa através do bosque, para não enfrentar
os rostos ansiosos e línguas aguçadas. S e passava nas
proximidades das herdades ou visitava a aldeia, não havia fuga
possível. Bastava que alguém me descortinasse para me crivar de
perguntas ou trocar impressões entusiásticas.
"Quando voltam?"
Para isto, não havia resposta senão: "Não sei. O Ambrose não diz".
Foi o seu pai e meu padrinho, N ick Kendall, que deu a estocada
final, inconsciente de que o fazia, naturalmente, no habitual tom
brusco e sem rodeios.
Pertencia a ambos.
"A tua prima Raquel está ainda tão assoberbada pela resolução dos
seus assuntos antes de partir para a I nglaterra que decidimos,
embora contrariados, como deves calcular, protelar o regresso para
já", revelava A mbrose. "Esforço-me tanto quanto possível, mas as
leis italianas diferem radicalmente das nossas, e é uma carga de
trabalhos tentar harmonizá-las. Farto-me de gastar dinheiro, mas
faço-o por uma boa causa de que me não arrependo. Falamos de ti
com frequência, meu rapaz, e lamento que não estejas conosco."
— Qual?
Capítulo Quarto
É verdade que dormi — quem não se deixa vencer pelo sono após
longas horas de trepidação na estrada? —, porém os sonhos
estavam povoados por todos os ruídos estranhos: o bater de portas,
vozes agudas, passos junto da janela, carroças pesadas que
percorriam a rua empedrada e, sempre, cada quarto de hora, o
badalar do relógio do campanário. S e me encontrasse no
estrangeiro com qualquer outra missão, talvez tudo fosse diferente.
Poderia então assomar à janela pela manhã com o espírito
despreocupado, observar as crianças descalças a brincar no
passeio e até talvez lhes atirasse moedas, enquanto escutaria os
novos sons com fascinação, para à noite passear pelas ruas
estreitas e sinuosas com agrado perante um ambiente diferente do
habitual.
O homem abriu a pesada porta com uma das chaves que possuía e
fez-me sinal para que entrasse. A mulher e a criança também
vieram e eles começaram a subir os estores, passando de aposento
a aposento, decerto convencidos de que a entrada da luz me
atenuaria a amargura. A s dependências comunicavam todas umas
com as outras, grandes e arejadas, com frescos no teto e chão de
pedra, num ambiente vagamente medieval. N umas, as paredes
eram lisas, enquanto outras exibiam tapeçarias e, noutra ainda,
mais escura e opressiva, havia uma longa mesa de refeitório
circundada por cadeiras monásticas lavradas, com candelabros
enormes em cada extremidade.
Fez uma pausa e tocou numa cadeira com a mão. A cudiu-me uma
sensação de opressão. A temperatura era agradável no pequeno
pátio, fresca quase como numa sepultura, apesar do que a
atmosfera dir-se-ia estagnada, como a do interior da casa antes de
ventilada.
Capítulo Quinto
—- Queira sentar-se.
— Não.
Capítulo Sexto
O meu alívio por estar de novo no meu país era tão grande que por
momentos o pesar permaneceu dormente, ou possivelmente a longa
permanência na Europa endurecera-me os sentimentos, mas
recordo-me de que o meu primeiro instinto me obrigou a sorrir ao
ver os dois rostos familiares, acariciar os cavalos e perguntar se
tudo se encontrava em ordem. Era quase como se tivesse voltado à
adolescência e regressasse das aulas.
Tinha olhos tão negros como abrunhos, feições tão aquilinas como
as de Rainaldi, e movia-se nos aposentos da úmida e sombria casa
sinuosa e silenciosa como uma serpente. Vi-a, quando já não existia
uma réstia de alento no corpo dele, recolher todas as suas posses e
partir, porventura para Roma ou N ápoles, ou talvez oculta naquela
estalagem na margem do A rno, sorridente, atrás dos estores. Essas
imagens acompanharam-me até que cruzei o mar e desembarquei
em Dover.
E agora que regressara ao lar, haviam-se extinguido como os
pesadelos ao romper do dia. E a minha amargura também. A
mbrose encontrava-se de novo comigo e não era torturado nem
sofria. N unca estivera em Florença ou sequer na I tália. D ir-se-ia
que morrera em casa e fora sepultado ao lado dos pais e outros
familiares, pelo que a dor se convertera em algo que me era
possível suportar. O pesar persistia, mas sem vislumbres de
tragédia. Eu regressara igualmente ao lugar a que pertencia, com a
sua fragrância especial que me circundava.
O velho Billy Rowe, que era caseiro das terras de Barton desde que
eu me conhecia e
— Bem, não sei... Confesso que não pensei muito nisso. N unca
desejei outra companhia que não fosse o meu primo.
Capítulo Sétimo
O bservei a letra da carta. Confesso que não sei o que esperava ver.
Talvez um estendal de arabescos com floreados caprichosos ou
então, pelo contrário, uma série de garatujas. N o entanto, as
palavras na minha frente não apresentavam qualquer característica
especial, à exceção de pequenos traços no final de cada uma, o que
as tornava um pouco difícil de decifrar.
livros, roupa; em suma, tudo o que ele gostaria que ficasse em sua
casa, a qual agora
Para já, não tenho quaisquer planos. A pós um abalo tão amargo,
necessito de algum tempo para refletir. Esperava chegar à I
nglaterra há mais tempo, todavia uma avaria qualquer não permitiu
que o navio iniciasse a viagem de Gênova antes. Creio que ainda
existem familiares meus, os Coryn, dispersos pela Cornualha, mas
como não os conheço pessoalmente não me atrevo a procurá-los.
Prefiro permanecer só. É possível que, após uns dias de repouso,
siga para Londres e trace então as linhas gerais do meu futuro.
Cordialmente,
Raquel Ashley."
— Como vês, ela não quer ficar com nada — acabou por dizer. — N
em sequer um livro ou um par de luvas. É tudo para ti.
— Veremos.
Encolhi os ombros.
Ashley.
— Mas não lhe parece correto instalá-la nos aposentos que Mr. A
shley ocupava? —
argumentou, surpreendido.
O convite foi aceite. Ela escreveu uma carta a N ick Kendall e não a
mim. O que, como o mordomo decerto não deixaria de pensar,
estava certo e apropriado. Como eu não a convidara diretamente, a
resposta tinha de seguir pelas vias competentes. I nformava que
estaria preparada quando fosse julgado oportuno mandá-la chamar.
Comuniquei-lhe,
porque não se sentia bem e, com toda esta chuva, achei preferível
que ficasse em casa.
— Acho-te enervado.
— Então? — inquiri.
— A senhora já chegou.
— I sso já eu calculava, visto que são quase sete horas. N ão trouxe
bagagem? Q ue lhe fizeram?
— Obrigado, Seecombe.
Capítulo Oitavo
— Não.
Reconheci para comigo que nunca vira mãos tão pequenas numa
pessoa adulta.
fazê-lo de novo.
Ergui a vista e verifiquei que, com efeito, havia um, preto como o
vestido, em cima do banco a seu lado.
— Refere-se a isso?
— Não.
Tomei nota no meu íntimo para não tornar a beber brande após uma
caminhada de mais de quinze quilômetros à chuva, pois o álcool
embotava os sentidos e dificultava o raciocínio.
— Não, irei eu. Aliás, não tenho mais nada que fazer.
Uma ocasião, não muito tempo atrás, vira outros olhos com a
mesma expressão de sofrimento. Também continham reserva e
orgulho, aliados à idêntica humilhação, à mesma agonia de
suplicação. Q uando entrava no quarto de A mbrose, agora meu, e
examinava a bengala, refleti que devia ser porque os olhos eram de
cor similar e pertenciam à mesma raça. A parte isso, não possuíam
nada de comum — a pedinte na margem do Arno e a minha prima
Raquel.
Capítulo Nono
vencer-me, no boudoir.
perguntou.
— Nada mais?
— Não.
— Continue — solicitou.
— Só estas duas?
— Exato.
Creio que as leu e releu várias vezes até as saber de cor. Por
último, devolveu-me, ao mesmo tempo que pronunciava em tom
pausado:
— É verdade — murmurei.
Era mais fácil, depois de dito. “Talvez seja assim que um católico se
sente após a confissão”, refleti. “Um peso retirado dos ombros e
substituído por uma impressão de vazio."
— Para a acusar.
— De quê?
— E depois?
observou ela.
— Mas eu existo.
— Tinha inveja?...
— Não compreendo.
Foi uma revelação. Sei o que constituiu para mim. Mas eu para ele...
Uma auréola pode ser uma coisa muito agradável, desde que
consigamos tirá-la, de vez em quando, para nos tornarmos
humanos.
— Ele amava-o muito. Você podia ter sido o seu filho, tal o orgulho
que lhe consagrava. Era sempre o meu Philip faria assim, o meu
rapaz faria assado. S e teve ciúmes de mim nestes últimos dezoito
meses, estamos quites. D eus sabe como eu dispensaria de bom
agrado as alusões constantes a seu respeito.
— Acha?
— Não. Não era a você, como lhe expliquei, mas outra mulher.
— Absoluta.
— De que se trata?
— Que foi?
— A Louise não é uma mulher, mas uma moça mais jovem do que
eu. Conheço-a desde muito miúda.
— Quais flores?
— Que gentil...
— Tintim por tintim. O que lhe disseste, como reagiu etc. Mostrou-se
embaraçada com as tuas palavras, ou não deixou transparecer o
menor sinal de culpa?
— foi a resposta.
— É nisso que uma mulher se pode revelar útil. Faz parte do seu
treino. O instinto adverte-a de como deve proceder, se as conversas
esmorecem.
— N esse caso, não perca tempo e case com a sua Louise, para
dispor de uma verdadeira anfitriã e não de uma ave de arribação.
— Sinto-me lisonjeada.
— Em que sentido?
— O quê?
lo.
— Coitada da Louise...
— Então...
— Vai sozinha.
— Pois não tenciono fazer nem uma coisa nem outra. Prefiro dar
lições de italiano.
— Prima Raquel.
— Sim?
— Com certeza que vou. Venha ver. Trabalharei mais depressa que
o Tamlyn e os seus homens. Não me espere para almoçar.
Pode muito bem dar-se o caso de não ter um pêni de seu. I mpõe-se
que se faça alguma coisa, e hoje mesmo.
Parecias disposto a tratá-la com rudeza e não fazer nada por ela, o
que teria causado escândalo. Ao menos, agora parece que ouviste a
voz da razão.
— Como deve ser fácil para uma mulher com experiência do mundo,
como Mrs.
Fui a casa de Mr. Kendall e no regresso dei uma volta maior do que
pretendia. D e qualquer modo, não creio que aconteça nada de mal
ao Cigano.
— Também tive esse receio e sugeri que fosse descansar, mas nem
quis ouvir falar nisso. “D iga aos rapazes que tragam água quente.
Q uero tomar um bom banho", foram as suas palavras. “D e
caminho, lavarei a cabeça." Propus que a minha sobrinha a
ajudasse, mas recusou com firmeza.
Q uando me secava com a toalha, vi que havia uma jarra com flores
em cima da mesa de cabeceira. Era a primeira vez que alguém se
lembrava de me distinguir com aquela gentileza. Seecombe não
tomaria semelhante iniciativa, e o restante pessoal ainda menos.
— Eu, o Philip. Vim avisá-la de que hoje jantamos mais cedo. Estou
faminto e você também, suponho, a avaliar pelos rumores que
circulam. Q ue demônio esteve a fazer com o Tamlyn para precisar
de tomar banho e lavar a cabeça?
A resposta foi precedida de uma risada divertida.
D ecidi para comigo que nunca vira ninguém tão pouco parecido
com a tia Phoebe ou qualquer outra tia.
— Tem muito que aprender, Philip. Nunca viu a sua Louise cuidar do
cabelo?
Tinha razão. Eu era o pior dos mentirosos. Pelo menos, no que lhe
dizia respeito.
— E depois? — balbuciei.
— E você disse-lhe que a sua prima Raquel tinha decidido dar lições
de italiano, não foi?
— Quem é?
— Mas ainda não conhece toda a gente. Não fez tudo o que se
esperaria de si.
uma sobrepeliz, o cabelo solto atado sobre a nuca com uma fita, o
que me fez pensar em Louise quando criança. O fato impressionou-
me e, ao mesmo tempo, produziu certa surpresa: parecia
curiosamente jovem.
— N ão sei por que veio ou a meta de tudo o que fez. Posso
considerar-me um ignorante a seu respeito e das mulheres em
geral. A única coisa de que tenho a certeza é que a sua presença
me agrada e não quero que parta. Acha isto complicado?
contrário?
— Já a entreguei ao Seecombe.
N o dia seguinte, quando desceu e fui ter com ela ao jardim, Raquel
parecia tão contente e despreocupada como se nunca se tivesse
registrado o mínimo atrito entre nós.
trabalhar no jardim.
— Como assim?
— Seja como for, com esse é que você não casa — declarei com
firmeza.
— Usava-os, se eu os oferecesse?
— Não me parece.
lo bem.
Movi os lábios pelo seu cabelo. Era uma sensação estranha. E ela
parecia tão pequena, colada a mim...
"É uma doença, sem dúvida. O uvi falar dela com frequência, como
a cleptomania ou qualquer outra moléstia, e decerto lhe foi
transmitida pelo devasso do pai, A lexander Coryn. N ão posso
determinar há quanto tempo é vítima de semelhante anomalia.
Talvez desde sempre. Em todo o caso, explica grande parte do que
até agora me intrigava. Uma coisa é certa, meu rapaz: já não posso,
ou, melhor, já não me atrevo a deixá-la tomar conta
— Nada de especial.
Teria A mbrose iniciado uma carta para mim que nunca chegara ao
seu destino ou haveria outros pedaços de papel, pertencentes à
mesma missiva, entre as páginas de diferentes volumes? A quelas
palavras deviam ter sido traçadas antes da sua doença, pois a letra
revelava-se firme e bem legível. Por conseguinte, no inverno ou
outono anterior.
— É extrema gentileza de sua parte, mas acho que não o devia ter
feito.
— A quele livro sobre jardinagem vai ser-nos muito útil — disse ela
após uma pausa. — J á não me lembrava que o tinha oferecido ao A
mbrose. N ão deixe de observar as ilustrações. É claro que algumas
não servem para aqui, mas outras podem adaptar-se perfeitamente.
Um caminho empedrado, por exemplo, sobranceiro ao mar através
dos campos e, do lado oposto, um jardim imerso na água, como
havia nas villas de Roma que eu costumava visitar.
— Já não vivem?
— Por quê?
— Compreendo — sussurrou.
Era a primeira vez que a via nesse dia, pois costumava tomar o café
da manhã no seu quarto.
A gora, dei mais uma vez ordem aos lenhadores para abater uma
árvore satisfatória e acompanhei-os para escolhê-la.
Faltavam dois dias. Fazia bom tempo, a geada matinal não era forte
e tudo, parecia prometer ausência de chuva para a noite do jantar. À
medida que a data se aproximava, o pessoal mostrava-se excitado,
e na manhã da véspera do N atal, pedi a S eecombe que me
ajudasse a decorar a árvore com os rapazes.
Philip.”
D epois, Billy Rowe sugeriu com ardor "Três vivas pelo generoso e
simpático par", e as paredes pareceram estremecer por uns
momentos. O bservei que as lágrimas tinham acabado por vencer e
assomar aos olhos de Raquel e meneei a cabeça.
quando anunciei:
— De que se trata?
— E daí?
por isso.
— Tem de dizer a sua filha que procure Mrs. A shley, para que lhe
dê um xarope para a tosse — acabei por recomendar. — Ela possui
larga experiência dessas coisas. Óleo de eucalipto é um dos seus
remédios.
— A ssim farei, Mr. Philip, assim farei, mas primeiro quero resolver o
assunto da carta, razão pela qual lhe pedi que viesse — declarou,
baixando a voz.
— Qual carta?
lo, mais para me proteger do frio que outra coisa, o que aconteceu
ontem. Foi então que encontrei a carta.
Mas uma carta pode extraviar-se ou ser lida por estranhos, e não
quero que tal aconteça.
D iz-me o que tudo isto significa, Philip, meu caro rapaz, única
pessoa no mundo
Ambrose."
A joelhei por meu turno junto do animal e descobri que não pensava
na carta enterrada debaixo da laje de granito ou no infortunado D on
moribundo, deitado entre ambos, o corpo rígido e imóvel, mas
apenas numa coisa. Pela primeira vez desde que entrara em minha
casa, a mágoa de Raquel era por mim e não por Ambrose.
— Por quê?
— Exatamente.
— Qual testamento?
— Pois bem, existe, mas não altera nada. Não chegou a ser
assinado.
— Posso vê-lo?
— Para quê?
— Obrigada — murmurou.
— Não exijo uma razão. A única coisa que lhe peço neste momento
é que saia.
Era Rainaldi.
Capítulo Vigésimo
o jantar.
acrescentar que este último não revela o seu melhor estilo, mas foi
executado num dos seus momentos mais floridos. Possivelmente
terminado por um discípulo. — Eu mantinha-me calado, à escuta
dos passos de Raquel nos degraus. — Em Florença, pouco antes
de partir, consegui vender um Furini da sua primeira fase para
Raquel, pertencente à coleção S angalle i, agora infelizmente
dispersa. Uma peça extraordinária. Costumava estar pendurado na
parede da escada da villa, onde a luz do dia incidia no ângulo mais
favorável. Suponho que não reparou nele quando esteve lá.
A sua prima pode querer voltar para Florença. Aliás, foi o seu lar
durante muitos anos.
— Mas tinha motivo para isso — redarguiu ela com uma risada. — S
e já o esqueceu, não lhe recordarei.
Ou, pelo fato de o conhecer bem, ela permitiria que ficasse até mais
tarde?
— Não me apetecia.
— Lamento.
Rainaldi ficou conosco não três, mas sete dias, durante os quais não
encontrei qualquer razão para rever a minha opinião a seu respeito.
Creio que o que mais me desagradava era a atitude de tolerância
para comigo. Exibia um semissorriso cada vez que me olhava, como
se me considerasse uma criança que não convinha contrariar.
— Uma filha? N esse caso, o seu jovem primo não está totalmente
isolado da sociedade feminina juvenil.
— Como talvez não ignore, à parte essa mesada, ela não dispõe de
outros meios de subsistência, salvo aquilo que lhe posso enviar de
vez em quando. A mudança de ares fez-lhe muito bem, mas penso
que não tardará a sentir a falta da convivência, como acontecia em
Florença. É essa a verdadeira razão pela qual tento desencorajá-la
de vender a villa. Os laços são muito fortes.
— D eve ser estranho para si, com a educação que recebeu, ver-se
de repente com uma mulher em casa por muitos meses — insistiu,
observando-me com curiosidade. —
— Este brande devia ter ficado a envelhecer pelo menos mais trinta
anos —
Ashley?
— Eu sei, e ela está ciente disso. Como há pouco referi, foi apenas
graças a forte persuasão que lhe arranquei este documento. Tenho
de devolvê-lo, mas existe uma cópia.
— De modo algum.
— Esteve na aldeia?
— Como assim?
— Creio que, quando a lua estiver alta no céu, irei nadar um pouco,
depois de jantar. S into-me invadido por toda a energia do mundo,
assim como por toda a inclinação para a aventura.
Entrei pela porta lateral, subi ao meu quarto e voltei a descer, com a
cesta de hortaliça na mão, a cujas pegas atei um longo troço de
cordel. Tinha igualmente comigo o documento, que guardei na
algibeira do casaco. Raquel continuava à espera, na janela.
— Q ue tem nessa cesta? — perguntou em voz baixa. — S e se
trata de alguma das suas brincadeiras, não estou disposta a aturá-
la. N ão me diga que escondeu aí caranguejos ou lagostins!
— Por quê?
— Não me esqueci.
Entrei e subi ao meu quarto, onde puxei uma cadeira para junto da
janela e contemplei o mar. A minha mente achava-se vazia,
desprovida de pensamentos, o corpo sereno. N ão acudia qualquer
problema à superfície, nenhuma ansiedade tentava abrir caminho
das profundezas ocultas para alterar a paz beatífica. Era como se
todas as coisas da vida tivessem sido resolvidas e o caminho à
minha frente se encontrasse desimpedido.
Envolvia-a a capa negra e tinha o véu baixado, pelo que não me era
possível descortinar-lhe as feições.
Tenho a idade legal, e o meu padrinho não pode fazer nada. Foi
assinado, selado e testemunhado. É tudo teu.
— S im, agora compreendo. O fraseado era algo confuso e quis
certificar-me do que significava.
— Muito claro.
— Nada — assentiu.
— Pois sim.
Deixa-me levantar.
Raquel não sabia, como eu, que A mbrose costumava passar horas
naquele local, sorridente e apoiado à bengala, com uma expressão
de nostalgia por detrás do olhar divertido. A laje de granito, alta e
orgulhosa, receberia a substância do próprio homem que as
circunstâncias não tinham permitido que morresse no seu lar e, ao
invés, ficara sepultado a muitas centenas de quilômetros, no
cemitério protestante de Florença.
Creio que nos conservamos sentados até tarde, pois ainda não
abandonáramos a mesa quando ouvimos o ruído de rodas de uma
carruagem no caminho de acesso à casa.
I mpunha-se que, de uma vez por todas, pusesse termo aos seus
planos de um eventual casamento entre nós.
Por fim, Nick Kendall virou-se para mim, de copo na mão, e brindou:
— Aos teus vinte e cinco anos, Philip. Uma longa vida, cheia de
felicidades.
O trio concentrou-se em mim e, não sei se devido ao vinho que
ingerira ou à euforia, considerei que o meu padrinho e Louise eram
amigos nos quais podia confiar, enquanto Raquel, a minha amada,
de olhos marejados, exibia um sorriso de encorajamento.
Ela não entendera o que lhe pedira à meia-noite, nem eu, no meu
cego deslumbramento, o que me dera, pelo que aquilo que se me
afigurara uma afirmação de amor constituía algo de diferente, sem
significado, a que atribuíra a sua própria interpretação.
Boa noite.
Deu meia volta para se afastar, mas segurei-lhe a mão com firmeza.
Creio que abarquei naquele instante tudo o que se tornara claro aos
olhos de A mbrose. Compreendi o que vira nela e pelo que ansiara e
nunca obtivera. Entendi o tormento, a mágoa e o abismo que se
cavara entre ambos, cada vez mais profundo. O s olhos de Raquel,
tão negros e diferentes dos nossos, fitavam-nos, sem compreender.
Tentei determinar intimamente que mais tinha para dar. Ela dispunha
da propriedade, dinheiro e joias. E possuía a minha mente, corpo e
coração. Restava apenas o meu nome, e já o usava. N ão faltava
nada. A menos que fosse o medo. Retirei-lhe o castiçal da mão e
pousei-o na mesinha no topo da escada. Em seguida, rodeei-lhe o
pescoço com os dedos e ficou impossibilitada de se mover,
limitando-se a observar-me, de olhos esgazeados. D ir-se-ia que
tinha uma ave assustada entre as mãos, a qual, com o intensificar
da pressão, bateria as asas por um momento e morreria,
alcançando assim a liberdade.
A bri a janela, mas não havia luar e chovia com intensidade. O vento
agitou os cortinados, que atingiram o bloco-calendário em cima da
prateleira da chaminé e o atiraram ao chão. A gachei-me para o
recolher, arranquei a folha de cima, amarrotei-a e atirei-a ao lume. O
dia das mentiras chegara ao fim.
"Caro Philip:
Louise."
— Por que veio ela? — volveu Louise. — Por que percorreu uma
distância tão grande para te atormentar? N ão foi o sentimentalismo
ou a curiosidade que a trouxe.
— Não compreendo.
— Ficou com o dinheiro. Era esse o plano que tinha em mente antes
de iniciar a viagem.
— Como o sabes?
— É a mente legal do teu pai que fala pela tua boca, ou tu própria?
Voltei o rosto para o outro lado. Era mais jovem do que eu, uma
rapariga, pelo que não podia compreender. Ninguém poderia, à
exceção de Ambrose, que morrera.
— Que respondeu?
— N esse caso, ela não perdeu muito tempo com a sua leitura e
procurar o meu pai.
— Uma mulher casada não pode enviar dinheiro do marido para fora
do país, nem regressar à terra de origem. Não sugiro coisa alguma.
Tanto para ele como para mim, não poderia existir outra mulher ou
outra esposa.
— Temos convidados?
Raquel."
Ela não podia estar a exprimir-se com sinceridade. A quilo não podia
ser verdade.
Q uantas vezes nos tínhamos rido à socapa das filhas dos Pascoe,
e muito em particular da logorreica Mary, uma edição mais jovem,
mas não menos fastidiosa, da mãe. Eu admitia que Raquel a
convidasse para nos divertirmos à sua custa, porém os termos do
breve bilhete não permitiam depreender que a situação contivesse a
menor parcela de divertimento.
— O que eu desejar.
— Não sei.
— Estou contigo.
E a lareira apagada!
— Philip... — murmurou.
— A quem?
— Ias morrendo.
— Que tive?
— O que me salvou?
— Tenho estado inativo por muito tempo. A cho que não deixaria a
propriedade sem assistência durante o inverno, nem gostaria de me
ausentar.
— Anunciar o quê?
chuva.
— Qual dinheiro?
Podia ficar com tudo, até ao último pêni, pela parte que me dizia
respeito. A liás, que tinha tudo aquilo a ver com os meus
sentimentos por ela? Mas ainda não acabara de desfiar o seu
rosário.
"Ama-a mais do que nunca. Noto-o nos teus olhos", isto da parte de
Louise.
"Tenho de os impedir a todo o custo que amargurem o Philip", de
Raquel.
lojas?
— recomendei-lhe.
— Isso é comigo.
— Qual?
— Uma mulher não pode sofrer duas vezes. J á passei por tudo isto.
— Levou a mão à garganta. — Até os dedos em volta do pescoço.
Compreendes agora?
— De fato, estou.
— Em absoluto.
— Nenhum.
— Partiu.
— Regressou a Londres?
— Depende de ti.
"Rainaldi":
D iz-me o que tudo isto significa, Philip, meu caro rapaz, única
pessoa no mundo em quem posso confiar, e, se puderes, procura-
me. N ão digas nada a N ick Kendall. O u a quem quer que seja. E,
sobretudo, não escrevas a responder. Limita-te a vir.
Ambrose."
D esta vez não voltei a guardá-la no porta-moedas. Rasguei-a em
numerosos pedaços, que enterrei no chão, em diferentes lugares. Q
uanto ao porta-moedas, parcialmente apodrecido pela umidade,
parti-o em dois e ocultei-o entre a vegetação do bosque. Por fim,
regressei a casa. A figurou-se-me uma espécie de pós-escrito da
carta o fato de que, quando me preparava para entrar, S eecombe
recebia a mala do correio, que um dos rapazes fora buscar à aldeia.
A bri-a e, entre as poucas missivas que se me destinavam, havia
uma para Raquel, com o carimbo de Plymouth. O endereço achava-
se traçado na caligrafia inconfundível de Rainaldi. Creio que, se o
mordomo não estivesse presente, a teria confiscado. A ssim, limitei-
me a indicar-lhe que a entregasse à destinatária.
— Nada.
Talvez fosse duas pessoas, cada uma das quais tinha fases de
predominância. N a realidade, não o podia afirmar. Louise diria que
ela fora sempre a segunda. Q ue, desde o princípio, cada
pensamento, cada movimento, se revestia de certa premeditação.
Em Florença, com a mãe, após a morte do pai, principiara então, ou
ainda antes, a maneira de viver? S angalle i, morto num duelo, que
nunca fora para mim ou para A mbrose nada mais do que uma
sombra sem substância, também teria sofrido? Louise não deixaria
de se inclinar para a afirmativa. I nsistiria em que, desde o primeiro
encontro com A mbrose, dois anos atrás, planeara casar com ele,
por dinheiro. E quando não obtivera o que pretendia, planeara a sua
morte. A ssim raciocinava a mente legal. E Louise não lera a carta
que eu rasgara.
O que uma mulher fez uma vez sem ser detectada, pode repetir com
a mesma naturalidade. E desembaraçar-se de mais um fardo.
— Por quê?
I maginei o que lhe cruzava o espírito. "Q uando ela partir, voltarás a
ser o que eras."
Ponderei se, na I tália, a sua tarefa seria mais difícil, e decidi que
não.
S implesmente, a sua companhia naquele país adaptava-se mais ao
seu temperamento. E
— Com quê?
Que é isto?
S im, deve tratar-se das ervas e remédios dela. Mas há uma seção
em inglês que dá a impressão de descrever a reprodução de
plantas. Espécies e mais espécies. Montes delas.
— Procura o laburno.
Street, 1812.
Atentamente,
Herbert Couch."
— Vê se consegues decifrá-la.
— Não.
— Por que estás com essa voz tão tensa? Por que manténs o olhar
fixo nos degraus de acesso à passagem empedrada? Há alguma
novidade?
Olhou-me horrorizada.
FIM
O Autor e a Obra
epub Ro-*-
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Rosto
Ficha
Capítulo Primeiro
Capítulo Segundo
Capítulo Terceiro
Capítulo Quarto
Capítulo Quinto
Capítulo Sexto
Capítulo Sétimo
Capítulo Oitavo
Capítulo Nono
Capítulo Décimo
Capítulo Décimo Primeiro
Capítulo Décimo Segundo
Capítulo Décimo Terceiro
Capítulo Décimo Quarto
Capitulo Décimo Quinto
Capítulo Décimo Sexto
Capítulo Décimo Sétimo
Capitulo Décimo Oitavo
Capítulo Décimo Nono
Capítulo Vigésimo
Capítulo Vigésimo Primeiro
Capítulo Vigésimo Segundo
Capítulo Vigésimo Terceiro
Capítulo Vigésimo Quarto
Capítulo Vigésimo Quinto
O Autor e a Obra