Leicina Alves Xavier Pires
Leicina Alves Xavier Pires
Leicina Alves Xavier Pires
Goiânia/ 2017
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Goiânia/ 2017
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CDU: 821.134.3-31.09(043)
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FERNANDO PESSOA
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AGRADECIMENTOS
RESUMO
Este trabalho pretende fazer um estudo relacional de algumas pinturas de Salvador Dalí
e da escrita de Fernando Pessoa em Na Floresta do Alheamento sob a perspectiva da
estética da persistência e fluidez. Almejamos comprovar que tanto a linguagem pictórica
quanto a poética mostram-se fluidas, fragmentadas, devaneantes, paradoxais, sensitivas
e de plena embriaguez. Elas nos trazem uma gama de imagens, de sonhos e de mundos
mágicos do inconsciente, nos conduzindo para o transestético, que é um transespaço,
pois que as obras navegam no entrelugar, na escrita do imaginário artístico, em estado
de liquidez. Essas obras encontram-se fora do mundo da racionalidade, abrindo-se para
o mundo do onirismo. A proposta tem como mote a abordagem fenomenológica com
ênfase no contraste paradoxal pertinente à estética contemporânea. Este estudo faz parte
de uma linha de pesquisa que trata da crítica contemporânea e que procura encontrar os
traços teóricos da arte de agora. Dessa forma, espera-se que esta dissertação possa servir
como modelo de relações estéticas de obras em formas e espécies diferentes. Desse
modo, inicialmente, abordaremos a obra de arte como processo de fluidez sensitiva,
como dissimulação, devaneio, movimento e como fragmentação. Posteriormente,
traçaremos o percurso da arte poética pessoana que se encontra no entrelugar,
transitando da dissimulação ao absurdo, e da modernidade à contemporaneidade. Por
último, discorreremos sobre a persistência e fluidez nas pinturas dalinianas.
Enfocaremos o insólito, a fragmentação, o saturno e o bizarro, realizando um
contraponto com a prosa poética pessoana.
SUMMARY
This work intends to make a relational study of some Salvador Dalí’s paintings and
Fernando Pessoa 's writing in “ Na Floresta do Alheamento” under the perspective of
the aesthetics, persistence and fluidity. We aim to prove that both pictorial and poetic
language are fluid, fragmented, wistful, paradoxical, sensitive and full of drunkenness.
They bring us a range of images, dreams and magical worlds of the unconscious,
leading us to the transaesthetic, which is a transspace, since works navigate in the
interlude, in the writing of the artistic imagination, in a state of liquidity. These works
lie outside the world of rationality, opening up to the world of onirism. The proposal has
as its motto the phenomenological approach with emphasis on the paradoxical contrast
relevant to contemporary aesthetics. This study is part of a line of research that deals
with contemporary criticism and seeks to find the theoretical features of art now. Thus,
it is expected that this dissertation can serve as a model of aesthetic relationships of
works in different forms and species. In this way, we will initially approach the work of
art as a process of sensitive fluidity, such as concealment, reverie, movement and
fragmentation. Subsequently, we will trace the person’s poetic art course, in the
interlude, moving from dissimulation to absurdity and from modernity to
contemporaneity. Finally, we will talk about the persistence and fluidity of Dalinian
paintings. We will focus on the unusual, the fragmentation, the saturn and the bizarre,
realizing a counterpoint with the person’s poetic prose.
SUMÁRIO
CONSIDERAÇÕES INICIAIS.............................................................................. 12
REFERÊNCIAS...................................................................................................... 95
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CONSIDERAÇÕES INICIAIS
O interesse em estudar o tema abordado nessa pesquisa surgiu nas aulas das
disciplinas do Mestrado, a partir da inquietação entre a singularidade das obras de arte e
principalmente da versatilidade de Fernando Pessoa em criar uma prosa poética em que
ele se revela e consegue fazer da língua a sua morada. Esse artista cria em palavras
muitos “eus” que nele habitam e por ele é habitado. Além de criar um semi-heterônimo,
que se dissimula no eu da personagem. O Livro do Desassossego gera-nos um grande
desassossego, e no intuito de realizarmos um trabalho possível, chegamos à conclusão
de que teríamos que restringir um pouco o nosso estudo. Apesar de ser muito difícil
delimitar somente um objeto de pesquisa nessa obra, visto que a obra pessoana é
entrelaçada por uma grande teia de pluralidades.
A escolha pela prosa poética “Na Floresta do Alheamento” que se encontra no
Livro do Desassossego se deu por ser uma obra que apresenta uma dimensão artística
que se realiza pela estrutura das palavras e pela dissimulação do sujeito lírico sobre o
seu fazer poético. A obra encontra-se fora do mundo da racionalidade e abre-se para o
onírico, o devaneio. Características essas que também encontramos na pintura de
Salvador Dalí, as quais remetem ao sentir e são de plena embriaguez.
Sendo assim, o construto deste estudo tem como objetivo principal executar um
estudo relacional de algumas pinturas de Salvador Dalí e da escrita de Fernando Pessoa
em Na Floresta do Alheamento sob a perspectiva da estética da persistência e da
fluidez. O método de abordagem crítica consistirá no fenomenológico, visto que a obra
de arte será examinada como fenômeno estético.
Levamos em conta um percurso investigativo visando aludir a determinados
fatos pertinentes ao período da modernidade e contemporaneidade – fatos que podem
ser constatados no conjunto das referidas obras – bem como a efetivação de análises do
Surrealismo. Também procedemos a uma apreciação dos mecanismos estruturais
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intrínsecos relativos às obras de arte, chegando, por fim à busca de elementos que
comprovem a contribuição dos autores para a arte.
Diante disso, dentre diversos veios teóricos, alguns são privilegiados, a fim de
atingir o nosso propósito. Focalizamos teorias sobre as artes modernas e
contemporâneas, que são o alicerce da nossa pesquisa, uma vez que elas reconhecem a
ruptura da concepção de arte como simples representação da realidade. Diversas outras
teorias são apontadas no decorrer deste trabalho, porém citamos aquelas que utilizamos
como base para a nossa pesquisa.
Sendo assim, seguimos teóricos como Jean Baudrillard em Simulacros e
Simulação (1991), o qual afirma que a realidade deixou de existir e passamos a viver a
representação da realidade difundida pela mídia. Segundo esse filósofo, o real e a cópia
da realidade são indissociáveis. O mundo se transformou em imagem, e não existe
dissociado dela. A imagem não constitui o objeto em si, mas é o seu simulacro, que é
uma máscara e pertence ao mundo das aparências. Esse processo traz uma incompletude
para o ser humano, pois as certezas são provisórias e efêmeras.
Enfocamos também a noção de modernidade conceituada por Baudelaire nas
obras Sobre a Modernidade: o Pintor da Vida Moderna (1996) e As Flores do Mal
(2007), nas quais o poeta afirma que a arte é a única possibilidade de viver e ter acesso à
experiência com o moderno. Ele concebe a modernidade como uma ruptura com os
padrões da antiguidade. A beleza da arte não se opõe à beleza antiga, a qual também
está presente na moderna. Segundo esse teórico, cada época tem seu encanto e uma das
funções do artista é retirar do seu momento histórico e da moda atual o que tem de
eterno, a fim de alcançar a essência do belo. O transitório é o que assegura a obra como
moderna, prevalecendo a subjetividade e a sensibilidade do artista ao invés do próprio
fazer.
Seguindo a linha da modernidade, utilizamos as ideias interconectadas às noções
de modernidade líquida, de Zygmunt Bauman (2001). Na obra Modernidade Líquida, o
sociólogo baseia o seu conceito de que nessa nova modernidade o núcleo capitalista se
mantém, porém com uma lógica diferente. Essa modernidade é fluida, líquida e veloz,
bem mais dinâmica que a modernidade anterior (a sólida). O líquido sofre constante
mudança e não conserva a sua forma por muito tempo. Essa sociedade moderna e
líquida não se fixa a um espaço ou tempo, sempre dispostos a mudanças, e algumas
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Pessoa cria uma poética do fingimento, de forma a perder o vínculo com o real por ele
criado.
Posteriormente o estudo versa sobre a estética do absurdo, que reforça o
movimento da arte, e gera uma espécie de dupla dissimulação, do eu fictício sobre o
fazer poético. Para tal intento, usamos a teoria de Albert Camus (1965), a qual
estabelece um vínculo entre o absurdo e a modernidade. Dessa forma, pretendemos
demonstrar como o absurdo na perspectiva da filosofia de Camus contribui para a
compreensão do absurdo pessoano.
No terceiro capítulo discorremos sobre as pinturas de Dalí que se inserem no
movimento surrealista, e mostram-se fragmentárias, devaneantes, oníricas, bizarras,
insólitas e fantásticas. Destarte, utilizamos também dessa última parte da pesquisa para
enfatizarmos o aspecto relacional entre as pinturas dalinianas e a prosa poética
pessoana. Aplicamos as teorias de Rosenthal (1975), no intuito de enfatizar o caráter
fragmentário das obras de arte analisadas. Similarmente, seguimos as teorias de Ades
(1976), Nadeau (1985), Breton (2009) e Teles (2012), para embasar os estudos
referentes ao surrealismo. Hocke (1974) alicerça a hipótese de que as pinturas e o texto
poético possuem um estilo autônomo, uma nova sensibilidade e uma atitude espiritual
bem original.
Dessa forma, esperamos que nossa pesquisa seja relevante no intuito de
demonstrar teorias sobre arte modernas e contemporâneas e como elas se aplicam às
obras artísticas. Não almejamos ter todas as respostas, mas suscitar questionamentos e
inspirar diversos campos problemáticos que façam pensar o mundo e a arte. Esta vista
não como uma representação da realidade, mas expressa por meio de recursos
composicionais, constituindo um local de pura expressão da interioridade e
subjetividade do artista, em que a obra de arte se nega a parecer com o mundo real e a
ter uma feição única.
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Este capítulo se refere à obra de arte como fluidez sensitiva e está relacionado à
dissimulação, devaneio, movimento e fragmentação, e subdivide-se em Arte como
Dissimulação; Arte como Devaneio e Arte como Movimento e Fragmentação.
Discorremos sobre a dissimulação, que remete à sedução, ao fingimento, à ocultação.
Fernando Pessoa, no texto Na Floresta do Alheamento, constitutivo no Livro do
Desassossego, idealiza um eu-lírico imerso em uma dupla dissimulação: do autor real,
que se deixa esconder no autor ficcional e este, por sua vez, produz-se por meio de um
discurso totalmente fingido e sedutor, o qual perde o vínculo com o mundo real. Em
decorrência dessa nova realidade, surge um real figurativo, dotado de virtualidade.
Assim, a arte sai do real imaginado para o universo virtual criado pela obra de arte, que
são formulações do fingimento. O devaneio também está presente na obra, que insinua
um mundo irreal possível. Pessoa consegue nos transportar para um mundo devaneante,
fluido, leve e áspero, paradoxal, sensitivo e de plena embriaguez.
A prosa poética Na Floresta do Alheamento nos traz uma gama de imagens, de
signos alegóricos: dos sonhos, da imaginação, do mundo mágico, do fantástico, do
absurdo, do inconsciente, do inimaginável, do espaço vazio, etc. Todos e tudo nos
conduzindo para o transestético1. Este é um transespaço, pois que a obra navega no
entrelugar, na escrita do (ini)imaginário artístico em estado de liquidez, na qual não há
uma preocupação com a verdade. Os elementos presentes nas obras se metamorfoseiam,
tornam-se, às vezes, abruptamente, em novos signos-imagens, diferentes dos usuais. O
devaneio poético nos leva à visão da absurdez.
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O transestético- Segundo Lipovetsky e Serroy, 2015, esse termo caracteriza-se por ser um universo de
superabundância ou de inflação estética em que se mesclam o saber, a inovação, a imaginação. Vivemos
um tempo plural em que tudo é possível, em que tudo pode coexistir, se superpor, se misturar como num
grande bazar caleidoscópio. É a época da interpenetração dos papéis artísticos e comerciais, midiáticos e
financeiros. Nessa nova era um sistema de justificação moral foi substituído por uma legitimação de tipo
estético, que valoriza as sensações, as fruições do presente, o corpo de prazer, a leveza da vida
consumista. Nesse mundo transbordante de imagem, o transestético cria a beleza em excesso e uma
estetização hiperbólica da aparência humana.
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como ato do “sentir”, a qual gera sensações nos cinco órgãos dos sentidos,
possibilitando-nos interagir com o mundo construído pela obra. Os órgãos dos sentidos
consistem em um conjunto de órgãos responsáveis pela recepção dos estímulos
sensoriais. Eles nos permitem perceber tudo o que nos rodeia, e nos possibilitam
apreender a sensibilidade no texto Na Floresta do Alheamento.
A arte poética pessoana situa-se na transição da modernidade para a
contemporaneidade. Baudelaire (1995) associou o termo “modernidade” à missão
contemporânea da arte. Para ele, o homem do mundo é aquele que está alerta, com
olhos de águia, no intuito de sempre observar os pequenos detalhes, as menores coisas.
A arte seria uma constante busca pelo novo, uma infindável procura pelo fugitivo e pelo
original. Na concepção baudelairiana, à modernidade associa-se sempre o
transformador, o inovador, o original, aquilo que tenciona transformar um conceito
anterior. Para Baudelaire o moderno é o efêmero, o passageiro, o contingente.
Baudelaire nomeia o artista como “homem do mundo” (1996), que é aquele
observador que se interessa e aprecia por assuntos de todo o mundo, além de conseguir
retirar do seu momento histórico o que tem de poético, e dessa maneira, retira do
transitório o que tem de eterno, a fim de alcançar a essência do belo. De um lado, a
modernidade seria o transitório, o efêmero, o circunstancial; e de outro o eterno e o
imutável. Segundo esse estudioso, a modernidade teria de retirar a beleza misteriosa da
vida e do presente para que possa ser digna de se tornar antiguidade. Cada época possui
sua própria beleza, e o belo sempre encontra satisfação na época inscrita e na
formalização estética do momento de sua representação. Sendo assim, Pessoa, em Na
Floresta do Alheamento consegue retirar do transitório o eterno alcançando a essência
do belo, e alicerçando o seu real poético em sua própria escritura.
Ampliando um pouco o conceito de modernidade, o sociólogo polonês Zygmunt
Bauman, na obra Modernidade líquida (2001), inicia sua obra teorizando sobre a
liquidez, que se conjuga com o sentido de fluidez e se relaciona ao desapego, ao
transitório e ao acelerado processo de individualização, à mobilidade e à inconstância.
Na “fluidez” e na “liquidez” há uma incapacidade de se manter a forma. De modo
paralelo, a modernidade fluida produziu uma imensa mudança na condição humana. O
indivíduo novamente se tornou nômade e não tem lugar pré-definido. Na modernidade
leve (modo como Bauman nomeia essa “nova” modernidade), o transitório prevalece
sobre o durável, pressupondo um mundo sem obstáculos e muros.
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Sob essa concepção, a arte passa a ser um modo de transformação, e não mais de
representação ou simples expressão.
De modo semelhante Pessoa, em sua obra, demonstra esse esfacelamento do
tempo e do espaço. Ambos se unem e se confundem, a fim de construir uma obra
fragmentada e desconexa e que revela uma nova linguagem que surge com a vida
moderna.
Tínhamo-nos esquecido do tempo, e o espaço imenso empequenara-se-nos
na atenção. Fora daquelas árvores próximas, daquelas latadas afastadas,
daqueles montes últimos no horizonte haveria alguma coisa de real, de
merecedor do olhar aberto que se dá às coisas que existem?... (PESSOA,
2011, p.456).
O sensível não apenas tem uma significação motora e vital, mas é uma certa
maneira de ser no mundo que se propõe a nós de um ponto do espaço, que
nosso corpo retoma e assume se for capaz, e a sensação é literalmente uma
comunhão (1999, p.286).
De vez em quando pela floresta onde de longe me vejo e sinto, um vento lento
varre um fumo, e esse fumo é a visão nítida e escura da alcova em que sou
atual, destes vagos móveis e reposteiros e do seu torpor de noturna. Depois
esse vento passa e torna a ser toda só ela a paisagem daquele outro mundo...
(PESSOA, 2011, p.455).
Dessa forma, visualizamos nos trechos: “me vejo”: o órgão da visão; “e sinto”:
que pode remeter ao tato, paladar e ao olfato; “um vento lento”: um som da natureza
que se refere à audição; “visão nítida e escura”: visão; O eu lírico está envolto em
percepções e sensações, visto que a arte nos desencadeia ao próprio processo criativo do
sentir.
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Nós roçávamos a alma toda vista pelo frescor visível dos musgos e tínhamos,
ao passar pelas palmeiras, a intuição esguia de outras terras... E subia-nos o
choro à lembrança, porque nem aqui, ao sermos felizes, o éramos... Carvalhos
cheios de séculos nodosos faziam tropeçar os nossos pés nos tentáculos mortos
das suas raízes... Plátanos estacavam... E ao longe, entre árvore e árvore de
perto, pendiam no silêncio das latadas os cachos negrejantes das uvas.
(PESSOA, 2011, p.456).
O poeta não somente apreende a percepção liberada pelo corpo, mas também,
trabalha o interior do eu lírico, conseguindo perceber o estado sensitivo da alma, de
forma a ter consciência de si e do seu processo artístico. Já não existe um tempo linear,
e os carvalhos se mostram “cheios de séculos”, como se armazenasse dentro de si todos
os instantes. A sensação da infelicidade e novamente o tédio também permeia esse
fragmento: “porque nem aqui, ao sermos felizes, o éramos...”, o que é reforçado pelos
“cachos negrejantes de uva”, remetendo à escuridão, às trevas e à obscuridade. A alma
do eu poético habita o corpo da própria arte, e ambos se amalgamam, tornando somente
uma coisa.
Segundo a perspectiva de Merleau-Ponty (1999), o corpo é essa capacidade de
produzir uma diferenciação no interior de um mundo indiviso, onde não precisamos
separar do mundo para nos relacionar com nosso corpo através da obra de arte. É no
interior do mundo sensível, do mundo sensorial, desse mundo espacial-temporal, que a
obra de arte é produzida. A obra de arte é uma diferença no interior desse todo que nós
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habitamos. Isso é ser espacial e ser temporal. A nossa percepção diante dos objetos se
dá pela nossa experiência diante dos mesmos, e não pelo significado usual desses
objetos. Nós ressignificamos os objetos por nossas vivências e aprendizados. O corpo,
que é a própria obra de arte, é movimento, sensibilidade e expressão criadora. Segundo
Merleau-Ponty,
Sei que despertei e que ainda durmo. O meu corpo antigo, moído de eu viver,
diz-me que é muito cedo ainda... Sinto-me febril de longe. Peso-me, não sei
porquê... Num torpor lúcido, pesadamente incorpóreo, estagno, entre o sono e a
vigília, num sonho que é uma sombra de sonhar. (PESSOA, 2011, p.454).
na sua aparência, na sua imagem. A coisa não mais existe, mas sim, a imagem que dela
visualizamos, e dessa forma, já não existe mais o real.
Raiam na minha atenção vagos ruídos, nítidos e dispersos, que enchem de ser
já dia a minha consciência do nosso quarto... Nosso quarto? Nosso de que
dois, se estou sozinho? Não sei. Tudo se funde e só fica, fugindo, uma
realidade-bruma em que a minha incerteza soçobra e o meu compreender-me,
embalado de ópios, adormece... (PESSOA, 2011, p.460).
O Livro, nesse contexto, goza de vida própria e tem sua própria legalidade
intrínseca: totalidade que não se repete em sua singularidade, independente
em sua autonomia, aberta porque dinamiza na sua montagem a atuação do
leitor, provoca, no outro, o desassossego; algo que nunca termina, que está
sempre por acabar, mas que, em essência, é. (PESSOA, 2007, p.84).
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Uma metade reflete a história estética da arte literária como escrita; a outra,
submersa, como a história de um autor real que se dissimula, sob a figura de
outro, ao narrar a própria vida e, consequentemente, o seu itinerário poético.
O que é mostrado é a figura, que aparentemente, finge o real.
(RODRIGUES, 2007, p. 103/104).
Por conseguinte, existe uma imagem que finge ser o real, e um real que finge ser
imagem, os quais se completam no fazer construtivo. O jogo artístico do fingimento
resulta naquilo que se esconde nas pregas da prosa poética, que é o próprio ato de criar.
Além disso, trata-se de uma escritura escorregadia, que se compõe através de um
complexo jogo de exterioridade e interioridade, mundo real e mundo virtual, resultando
em uma linguagem fragmentária, a qual sugere essa nova percepção da realidade.
A obra pessoana nos leva a um estado onírico, que se inicia desde o título: Na
Floresta do Alheamento. O próprio vocábulo floresta nos remete a uma brenha, a uma
selva, a algo desconhecido, a um lugar extenso, onírico, misterioso. Segundo o
dicionário de símbolos, o termo floresta “simboliza o aspecto perigoso do inconsciente,
quer dizer, sua natureza devoradora e ocultante (da razão). [...] a floresta contém toda
espécie de perigos e demônios, de inimigos e doenças.” (CIRLOT, 1984, p.257). Para
Chevalier (2002), a floresta permite provocar a chuva. Quando Yu-o Grande queria
atacar as montanhas cortava as árvores das florestas, para que elas não fornecessem
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De acordo com estudos do Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia, uma árvore com copa de dez
metros de diâmetro pode bombear para a atmosfera mais de trezentos litros de água em forma de vapor
por dia. Uma árvore maior, com copa de vinte metros de diâmetro, pode evapotranspirar mais de mil
litros por dia, bombeando água e levando chuva a diversos lugares.
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Quando o devaneio vem exacerbar o nosso repouso, ele contribui para aumentar
a nossa felicidade e, assim, ele cumpre seu verdadeiro destino, que é tornar-se um
devaneio poético. A prosa poética de Pessoa estabelece ao mesmo tempo o sonhador –
de ficção (Bernardo Soares) e seu mundo, o qual é inatingível, irreal. Ele utiliza uma
linguagem onírica e poesia singular, o que comprova a ruptura com o posto em arte até
então. Segundo Bachelard,
O devaneio nos liberta do mundo real e nos leva para o irreal, de forma que o
real é absorvido pelo imaginário. Neste universo já não existe o não-eu, pois ele já se
consolidou como escritura. Tudo é acolhimento. A obra de Pessoa é acolhimento, é um
mundo virtualizado. As imagens que o texto compõe e as palavras, as quais estão vivas,
fazem florescer algo novo e oferecem uma beleza única e inédita. O devaneio é
diferente do sonho stricto sensu, uma vez que este continua sobrecarregado das paixões
mal vividas na vida diurna, além disso, ele pode desorganizar uma alma. A solidão
vivida no sonho stricto é uma solidão estranha, agressiva, enquanto os devaneios
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Pessoa consegue criar uma imagem que, a um só tempo, nos acolhe, nos afasta;
acalma, aflige; que nos conscientiza, desinforma; além de proporcionar o emprego de
todos nossos órgãos sensoriais. Nessa imagem, os dias já não se contam: “dormimos ali
acordados dias”, “de nos termos esquecidos”. O devaneio ainda proporciona ao eu
ficcional a sensação de ser imortal, pois a vida anterior foi abandonada e, no momento
presente o que importa é o mundo artístico, que lhe proporciona alegria e
contentamento. Na assertiva de Bachelard,: “O devaneio não é um vazio de espírito. É
antes, o dom de uma hora que conhece a plenitude da alma.” (2006, p.60). Os projetos e
as preocupações pertencem ao animus, ao sonho stricto, e à paz da anima, ao sonho
poético pertence o devaneio. O poder de assimilação da anima é enorme, porque
permite que as imagens poéticas originem o devaneio. Os verbos no pretérito imperfeito
(punham, julgávamos) remete a uma ação durativa, não limitada no tempo; um fato que
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não foi completamente terminado, que alude ao passado, mas que dá a ideia de
continuidade. Esse é o devaneio que volta ao passado, que busca a infância e que parece
devolver vida às vidas.
Bachelard (2006), nos diz que existem dois tipos de leitura: a leitura em animus
e a leitura em anima. Dessa forma, uma obra em estado de anima, precisa de um leitor
que a leia nesse mesmo estado. Para Bachelard, “Sem dúvida, é com os devaneios da
anima que o poeta consegue dar a suas ideias de animus a estrutura de um canto, a força
de um canto.” (2006, p. 6). Ou seja, para conseguir ler o que um poeta escreveu imerso
em estado de anima, é necessário estar num estado de devaneio, de anima. Para
compreender a linguagem em estado de anima é necessário transmutar o sentido da
linguagem cotidiana, ou seja, dar vazão à linguagem metafórica. A prosa poética Na
Floresta do Alheamento nos revela uma imagem alegórica, uma metáfora do real. A
linguagem usual é ressignificada por um significado totalmente novo. Segundo
Bachelard:
de criar figuras e de viver no teatro do imaginário. Pessoa constrói uma arte do sentir,
das sinestesias, das sensações. Segundo Rodrigues:
Pessoa cria a arte autobiográfica do sentir, na qual coloca cada ideia, cada
coisa de modo em que é possível ver o visível do invisível no seu processo
não só de subjetivação, de um sujeito ficcional para um sujeito real e vice-
versa, mas também no da escritura para a escritura como obra de arte. O
discurso alegórico e o estilo do Livro refletem o invisível por meio de estados
capazes de se tornarem percepções, como tempo, espaço, natureza interior,
possíveis pelo poder de sentir, pela imaginação como meio de compreender
as coisas subjetivamente, sem, no entanto, desprezar o intelecto criativo. Por
isso, o sonho, para Pessoa, ultrapassa a realidade. (2007, p.139).
Pessoa elaborou uma arte que prima por uma linguagem fragmentária, por meio
da qual os elementos se reconfiguram e se ressignificam permanentemente. O mundo é
transformado por meio de um novo modelo expressivo e uma nova configuração em que
a escrituração artística se faz por um permanente movimento em cujo processo remete à
desreferencialização do signo e da própria imagem artística precedente. Esse
procedimento se aproxima daquilo que Rosenthal (1975) afirma sobre a nova arte
literária: [ela] enfoca, mescla e afeta estados da consciência e dos aspectos concretos do
mundo, mostrando uma realidade “flutuante”, a qual se manifesta em articulações
multiformes, imprecisas, dardejantes e com diversas facetas disformes e alógicas. Ou
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seja, o escritor dessa arte literária reiventa a realidade enquanto escritura e forma de
sentir-arte. Desse modo, a prosa poética, Na Floresta do Alheamento, fulgura essa
“realidade” totalmente nova, a qual faz transparecer os novos efeitos de sentido
decorrentes das várias possibilidades inclusas na linguagem. Nela, ocorre uma escritura
policêntrica e polissemântica, que atua no interior da estrutura significante do signo-
imagem. A escrita-arte fala de si mesma de uma forma ressignificante, de maneira a
ultrapassar o espaço limítrofe entre o real e o ficcional e criar outro espaço, no qual
nada significa, onde nenhuma realidade existe, e no qual não há nenhum tipo de
representação. As formas tradicionais foram destruídas, a fim de surgir algo totalmente
novo:
A alcova vaga é um vidro escuro através do qual, consciente dele, vejo essa
paisagem... e a essa paisagem conheço-a muito, e há muito que com essa
mulher que desconheço erro, outra realidade, através da irrealidade dela.
Sinto em mim séculos de conhecer aquelas árvores e aquelas flores e aquelas
vias em desvios e aquele ser meu que ali vagueia, antigo e ostensivo ao meu
olhar, que o saber que estou nesta alcova veste de penumbras de ver...
(PESSOA, 2011, p.455).
Essa alcova finge ser o mundo real, criado pelo eu ficcional, por meio do qual
ele visualiza o mundo da arte, a própria escritura poética, que é a “outra realidade”. O
eu poético “erra”, que é uma forma de se transportar para outro mundo, que nega a
realidade criada pelo eu artístico. Nesse mundo poético, ele tem consciência da
realidade em que vivia, a qual ele conhece muito bem, e reconhece o quanto ela é
nevoenta, sombria. Seu ser ainda vagueia no mundo real, porém ele anseia pelo mundo
artístico. Nesse sentido, a obra de arte deixa de ser uma representação do real, e aponta
para outra realidade construída pela própria obra artística. Dessa maneira, Pessoa
consegue fazer com que a expressão ultrapasse os sentidos normatizados dos signos, a
fim de que eles assumam a força do significante em detrimento do significado único,
instaurando uma instabilidade comunicativa e uma semântica aberta.
Na obra Na Floresta do Alheamento existe uma proposital ruptura de limites
entre as formas de expressão e a escritura, o que delimita um espaço que cria uma
identidade do inespecífico. A arte pessoana se nega a ser encarcerada num único jogo de
regras e de enunciados prováveis, e passa a ocupar novos e diversos lugares. Lipovetsky
em seus estudos sobre a estetização do mundo, destaca que:
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E ei-la que, a irmos a sonhar falar nela, surge ante nós outra vez, a floresta
muita, mas agora mais perturbada da nossa perturbação e mais triste da nossa
tristeza. Foge de diante dela, como um nevoeiro que se esfolha, a nossa ideia
do mundo real, e eu possuo-me outra vez no meu sonho errante, que essa
floresta misteriosa enquadra... (PESSOA, 2011, p.458).
A floresta surge novamente, muito mais perturbada e triste que outrora; desponta
tênue, vaga, incorpórea e imprecisa, de forma a se esfolhar como um nevoeiro,
remetendo à obscuridade e ao inextricável. A floresta nos apresenta o mundo artístico
que perturba e confunde o eu lírico, mas que mesmo assim, ele almeja atingir
desesperadamente. O eu novamente surge múltiplo e fragmentado, conforme
observamos neste excerto: “surge ante nós outra vez, a floresta muita, mas agora mais
perturbada da nossa perturbação e mais triste da nossa tristeza”, de forma a reforçar o
sentido do encobrimento do eu, e a criar um universo totalmente fictício, tecido num
discurso que se desconstrói.
A linguagem dessa prosa poética é itinerante e nômade. Ela é muito mais do que
um simples instrumento de comunicação, pois ela própria transfigura-se em realidade,
vindo a ser ao mesmo tempo material de criação literária e a realização poética em si.
Além de comunicar algo para o leitor ela ultrapassa a si própria. Algumas características
dessa nova linguagem são: palavras fragmentadas, o aniquilamento de uma sequência
lógica, tempo e espaço colocados em dúvida, natureza indefinível, criação de
neologismos, redistribuição de elementos sintáticos, presença de sonhos, devaneios,
reflexões e trechos das frases que aparecem sob a forma de estilhaços de pensamentos.
Tudo isso em prol da construção de novos significados, os quais refletem de maneira
convincente essa nova realidade “flutuante”, que é um atributo do mundo moderno. O
progresso das possibilidades da estrutura das novas obras literárias tende a adaptar-se à
imagem do mundo, que se mostra cada vez mais incompreensível, dúbio e volátil. A
41
obra analisada é uma prosa poética fragmentária marcada pelos sentidos de palavras
contrárias e de paradoxos, os quais se misturam:
3
Alegoria- Benjamin em seu ensaio-tese Origem do Drama Barroco Alemão (1984) realiza um estudo
sobre a alegoria, denominando-a como um modo específico de constituição de sentido que aparece sob as
condições do mundo histórico como o único modo apropriado de constituição de um sentido estético. O
alegorista arranca uma coisa individual, tomada como fragmento, do seu contexto original, isolando-o e o
despojando de sua função e de seu significado natural. Esse elemento fragmentado é inserido num todo,
em novo contexto, com outros fragmentos, apropriando-se de um significado totalmente diferente do
original. Dessa forma, a contextualização e a fragmentação indicam ‘uma alegoria’ em si mesmas.
43
Nesse contexto, esse elemento que se refere Junkes, não tem mais função de
signo, passando a ser somente algo sem contexto e sem sentido. Posteriormente, o signo
inicia um processo de reconstrução, em busca de uma nova contextualização. Ou seja, a
esse elemento pode ser atribuída nova acepção, diante de um novo contexto, em que ele
faça parte de um todo. Ele passa a ser transformado e reconstruído, de maneira a
comunicar algo. Por isso, a alegoria permite ampliar o espectro de significados.
Este trecho da prosa poética apresenta-nos uma mulher, que não é um ser
humano do sexo feminino. Esse vocábulo remete à própria arte. Assim, percebemos que
esse fragmento “mulher” foi arrancado do seu significado original, que remete a uma
“dama, senhora, fêmea”, para revestir-se de um novo sentido: a arte. Há uma
descontextualização da palavra, que é liberta da sua função sintática e semântica, a fim
de adquirir nova atribuição. Pessoa retira o elemento de seu contexto original, isolando-
o e despojando-o de sua função inicial, se apropriando desta, e lhe atribuindo um novo
sentido. Desse modo, a alegoria liberta a coisa de seu aprisionamento no contexto
funcional, e a transforma em algo diferente.
A obra literária abandona os caminhos da prosa deleitante de épocas passadas e
procura se incorporar à escrita-escritura. Há uma libertação das limitações dos
pensamentos lógicos e coerentes, e essa nova linguagem se projeta no mundo como
possibilidade ou tentativa de uma nova e legítima expressividade. Assim sendo, as
composições linguísticas atuais causam estranheza ao leitor, o qual está habituado à
técnica tradicional, fato que corrobora o que assevera Adorno in Rosenthal sobre isso:
“inexiste obra de arte moderna de algum valor, que não se deleite com dissonâncias e
desarticulações.” (1975, p.38). Na prosa poética analisada há uma luta pela linguagem, a
44
O fluxo incessante permite que os ‘eus’ se disfarcem em outros ‘eus’, e não nos
permita reconhecer de quem se trata. É gerada uma dupla dissimulação do sujeito
fictício sobre o fazer poético. Coexistem dois eus e dois mundos: real fingido e
ficcional, além de haver uma grande fragmentação do sujeito fictício, o qual dissimula
estar nos “dois mundos”: o criado e o ressignificado. O eu poético se encontra entre dois
universos: o mundo real por ele criado, o da alcova; e o espaço da floresta que remete ao
imaginário, ao desconhecido, ao poético. Ele tem consciência do estar em trânsito, do
real fingido gerado ao irreal-criado, o que produz nele certa melancolia e sofrimento.
Pessoa nos leva a um tempo mutável, que não é ordenado, que não é continuidade, mas
sim, duração e movimento, o qual é produzido pela passagem de um local a outro:
“Minha atenção boia entre dois mundos”. Nesse fragmento, podemos perceber que o eu
ficcional encontra-se num estado de transição, de dentro para fora; imobilidade e
movimento, real aparente e irreal idealizado, e isso procura manter a imagem
intermitente do entre. Além de Bernardo Soares nos conduzir a um tempo mutável, que
não é ordenado, que não é continuidade, mas sim, duração e movimento, o que é
propiciado também pela paisagem que nos é exibida, a qual passa a ter órgãos dos
sentidos, conforme observamos nos excertos: “vento de sombras sopra cinzas”, aqui a
paisagem adquire boca e função gustativa; “Cai de um firmamento um orvalho morno
de tédio”, aqui ela adquire olhos e também sensação térmica. Dessa maneira, o eu lírico
cria uma linguagem que é um corpo pulsante de sensações e movimento, envolto num
espaço flutuante e múltiplo.
O espaço da obra moderna amplia-se cada vez mais, rumo ao desconhecido, ao
fragmentado, e a visão do tempo dissolve-se na realidade. O caráter hesitante do mundo
não permite a representação de determinados espaços como modelos ou símbolos de
45
De vez em quando pela floresta onde de longe me vejo e sinto um vento lento
varre um fumo, e esse fumo é a visão nítida e escura da alcova em que sou
atual, destes vagos móveis e reposteiros e do seu torpor de noturna. Depois
esse vento passa e torna a ser toda só ela paisagem daquele outro mundo...
[...]. A nossa vida não tinha dentro. Éramos fora e outros. (PESSOA, 2011,
p.455/456).
4
A arte como o “Fora”, para Maurice Blanchot (2005), se constitui numa espécie de experiência original,
um começo de tudo, e encontra-se na possibilidade de recriar o mundo literariamente. O “Fora” é
exatamente o outro de todos os mundos que é revelado na literatura. Não se trata de outro mundo que se
apresenta aquém do nosso, mas, remete precisamente a esse mundo, porém desdobrado em outra versão.
5
Artaud (1993) realiza um estudo sobre O corpo sem Órgãos, o qual é retomado por Deleuze & Guatarri
(1996), concebendo-o como um corpo que pode gerar novas imagens a partir da sua desconstrução. Ele
propõe um corpo fragmentado, cheio de fissuras que se multiplicam, o qual necessita desvencilhar-se das
amarras que o aprisionam, a fim de gerar inúmeras possibilidades.
47
E ei-la que, ao irmos a sonhar falar nela, surge ante nós outra vez, a floresta
muita, mas agora mais perturbada da nossa perturbação e mais triste da nossa
tristeza. Foge de diante dela, como um nevoeiro que se esfolha, a nossa ideia
do mundo real, e eu possuo-me outra vez no meu sonho errante, que essa
floresta misteriosa enquadra... (PESSOA, 2011, p.458).
Bernardo Soares cria uma realidade fictícia fundada em sua própria realidade,
mas nem por isso deixa de ser real, pois sua linguagem tem o grande poder de fingir, de
enganar, por isso sua realidade é bem mais real que a própria realidade. As palavras não
são mais entidades vazias que se referem ao mundo exterior, mas sim, ao universo
literário criado pelo eu artístico. Pessoa ou Bernardo Soares é destituído de seu estatuto
central de autor da obra, ele é apagado, anulado, a fim de surgir o espaço vazio que é o
espaço da linguagem que fala. Segundo Blanchot (2005), o “Fora” é o início de tudo, é
instaurar uma experiência em que as coisas não são ainda e que não se prende a um
lugar fixo. Pessoa se dirige ao próprio ser da linguagem promovendo uma experiência
para o “Fora”, colocando-se para fora do mundo e fora de si mesmo. “O espaço literário
é o exílio fora da terra prometida, no deserto, onde erra o exilado.” (LEVY, 2011, p.34).
Ou seja, esse local é a própria errância, que remete à própria escrita, que é o espaço
móvel, onde nada se fixa: “e eu possuo-me outra vez no meu sonho errante”. O eu
artístico se deixa levar pelo imprevisível e pelo inesperado de uma palavra que nem
começou. Dessa forma, a palavra artística experimenta o “Fora” e faz-se errante e
movediça.
O eu ficcional cria uma materialidade de um corpo, porém é um corpo sem
órgãos, sem interior. Por isso, sua linguagem busca destruir toda a ordenação, a
linearidade, possibilitando o novo, o diferente, a liberdade, a racionalidade, a
multiplicidade de possibilidades, o pulsante e o incorpóreo: “surge ante nós outra vez, a
floresta muita”, “Foge de diante dela, como um nevoeiro que se esfolha, a nossa ideia
do mundo real”. Nesses fragmentos visualizamos que o eu poético gera novas imagens a
partir da sua própria desconstrução: a floresta que surge novamente e se reporta à
própria arte; o nevoeiro que se esfolha, que remete ao universo artístico que está
surgindo. As imagens se fundem em profundidade de modo que ocorre a destruição da
própria linguagem.
A realidade apresentada na prosa poética não corresponde à aparência exterior
nem à percepção objetiva, mas sim a uma realidade ficcional flutuante, pois ela é gerada
pelo próprio eu artístico. O tempo não serve mais à indicação precisa de uma
48
Nós sabíamos ali, por uma intuição que por certo não tínhamos, que este
dolorido mundo onde seríamos dois, se existia, era para além da linha
extrema onde as montanhas são hálitos de formas, e para além dessa não
havia nada. (PESSOA, 2011, p.457).
E eu, que de longe dessa paisagem quase a esqueço, é ao tê-la que tenho
saudades dela, é ao percorrê-la que a choro e a ela aspiro... As árvores! As
flores! O esconder-se copado dos caminhos!... Passeávamos às vezes, braço
dado sob os cedros e as olaias e nenhum de nós pensava em viver. A nossa
carne era-nos um perfume vago e a nossa vida um eco de som de fonte.
Dávamos as mãos e os nossos olhares perguntavam-se o que seria ser o
sensual e o querer realizar em carne a ilusão do amor... (PESSOA, 2011,
p.456).
50
Nós sabíamos ali, por uma intuição que por certo não tínhamos, que este
dolorido mundo onde seríamos dois, se existia, era para além da linha
extrema onde as montanhas são hálitos de formas, e para além dessa não
havia nada. E era por causa da contradição de saber isto que a nossa hora de
ali era escura como uma caverna em terra de supersticiosos, e o nosso senti-la
era estranho como um perfil da cidade mourisca contra um céu de crepúsculo
outonal... (PESSOA, 2011, p.457).
podem contribuir para a compreensão das intenções do autor. O título da prosa poética
Na Floresta do Alheamento é um enunciado alegórico, o qual nos remete a essa
insegurança, a inúmeras dúvidas, por não nos apontar com clareza a que a obra irá se
referir, de qual assunto a prosa poética versará. Diante disso, verificamos que o título
está carregado de uma polissemia discursiva, e nos remete a um mundo onírico,
inseguro, vago, devaneante, nos reportando a uma atmosfera nevoenta, e não nos
permitindo sequer supor o que encontraremos nas profundezas desse texto, pois a
linguagem artística se metamorfoseou e tomou outro significado.
A palavra diz mais do que o significado estipulado pelo dicionário, ela adquire
uma linguagem rizomática, de forma a conquistar novas funções. Segundo Deleuze e
Guattari, “Um rizoma está sempre a caminho. Um rizoma não começa nem conclui, ele
se encontra sempre no meio” (2000, p.27). No rizoma, uma partícula de raiz se
multiplica em muitas outras, de forma aleatória e totalmente independente. O sistema
rizoma pode ser rompido e segmentado em qualquer ponto, que sempre retornará
inteiro. Pessoa elaborou uma prosa poética rizomática, uma obra em movimento, uma
obra sem centro, a qual ele constrói e reconstrói constantemente, sem gênero, sem
espaço-tempo definido:
Não tínhamos época nem propósito. Toda a finalidade das coisas e dos seres
ficara-nos à porta daquele paraíso de ausência. Imobilizara-se, para nos sentir
senti-la, a alma rugosa dos troncos, a alma estendida das folhas, a alma núbil
das flores, a alma vergada dos frutos... (PESSOA, 2011, p.459).
O eu poético não tenta estabilizar o que é instável. Deparamo-nos com uma obra
com entradas e saídas variadas, com uma obra rizomática, de linhas irregulares que se
estendem a qualquer direção aleatoriamente, levando a um processo que independe de
um ponto específico de origem e que não possui conclusão, mas uma abertura a outros
elementos comunicativos que, por sua vez, produzem diversas outras leituras prováveis.
Ela não possui um fio condutor e, por isso, não parte de um ponto central pelo qual se
ramifica, além de criar diversas aberturas e não possuir um ponto conclusivo. As
variadas sinestesias: “a alma rugosa dos troncos”, “a alma estendida das folhas”, “a
alma núbil das flores”, “a alma vergada dos frutos”, tumultuam o pensamento
impedindo-o de seguir em uma única direção. Essa prosa poética pode ser lida da forma
que o leitor se propuser, iniciando pelo começo, pelo meio ou pelo fim, pois ela não
possui uma linearidade, um núcleo, um aparelho progressivo. Pessoa liberta a língua
52
Ali vivemos um tempo que não sabia decorrer, um espaço para que não havia
pensar em poder-se medi-lo. Um decorrer fora do Tempo, uma extensão que
desconhecia os hábitos da realidade no espaço... Que horas, ó companheira
inútil do meu tédio, que horas de desassossego feliz se fingiram nossas
ali!...(PESSOA, 2011, p.457).
simulação para a dissimulação, pois ela perde o vínculo com o mundo real. O que
vemos não é mais a coisa, mas a imagem dela:
E quem é esta mulher que comigo veste de observada essa floresta alheia?
Para que é que tenho um momento de mo perguntar?... Eu nem sei querê-lo
saber... A alcova vaga é um vidro escuro através do qual, consciente dele,
vejo essa paisagem... e a essa paisagem conheço-a muito, e há muito que com
essa mulher que desconheço erro, outra realidade, através da irrealidade dela.
(PESSOA, 2011, p.455).
2.1 O Entrelugar
O entrelugar é uma expressão trazida pelos estudos culturais, que tem o objetivo
de clarificar a aparição e a construção de várias expressões do período pós-colonial.
Esse termo deve ser entendido não como fixidez, mas como possibilidade tática que
permite a introdução desse mesmo vocábulo em diversas situações. O conceito de
entrelugar propicia aos estudiosos, possibilidades significativas no processo de
perscrutação do entendimento dos fundamentos em várias áreas do conhecimento.
Assim sendo, o entrelugar oportuniza inúmeras leituras, novos movimentos e
deslocamentos, produzindo novos entrelugares e descortinando abundantes e diferentes
olhares. Conforme Hanciau:
Tal definição tem validade também para a prosa poética de Pessoa, pois
verificamos uma disseminação desse conceito de entrelugar em toda a sua obra,
mesclando “centro e periferia”, “cópia e simulacro”. Isso ocorre porque a literatura de
Pessoa surge como a metáfora do entrelugar, assimilando a experiência intervalar de
dois mundos diferentes, funcionando como um elo integrador entre dois espaços
antagônicos, servindo como instrumento para romper a fronteira. Além de se projetar
58
rumo à ocupação da terceira margem também poetizada por Guimarães Rosa no conto
“A Terceira Margem do Rio” que compõe a obra As Primeiras Estórias (2005), no qual
o escritor cria ficcionalmente um espaço intermediário: “Só executava a invenção de se
permanecer naqueles espaços do rio de meio a meio, sempre dentro da canoa, para dela
não saltar nunca mais.” (ROSA, 2005, p.80). Essa terceira margem seria o entremeio, o
espaço intervalar e algo novo que se forma. Nele surgem os questionamentos, a
tentativa para as soluções dos conflitos e ambiguidades, as reflexões sobre a existência
humana, e também a quebra de unidade, o local de mudanças e de trocas. Essa
passagem e espaço ‘além’, se configura no texto pessoano, de maneira a favorecer o
movimento e a capacidade criadora:
sentido, Pessoa tem a capacidade de reconfigurar a realidade numa obra literária fluida e
que possui um movimento de vaivém, possibilitando o surgimento de algo novo,
diferente e de um espaço intervalado. Esse espaço propicia um universo fragmentado,
imprevisível e heterogêneo, descontínuo originando novas formas de pensamento.
aparentemente “neutro”, mas que se faz pesado, estafante, que conduz ao universo
artístico. Ele nos conduz a um movimento exploratório incessante que se desloca por
todos os lados, resultando em novas possibilidades de existência, diluindo os polos e
gerando uma atmosfera de instabilidade e constante mudança. Bernardo Soares não
informa nada e, utiliza de paradoxos a fim de unir conceitos que se excluem, com a
finalidade de gerar novos sentidos, e criar situações inéditas: pesado/reposteiro;
atenção/sonolenta.
Segundo Hanciau (2005), as fronteiras muitas vezes apresentam-se porosas,
permeáveis, flexíveis. Deslocam-se ou são deslocadas. Se há dificuldade em pensá-las,
em apreendê-las, é porque aparecem tanto reais como imaginárias, intransponíveis e
escamoteáveis. Por isso, a dubiedade e pluralidade na obra de Pessoa, pois não sabemos
se se trata de algo real ou imaginário. Segundo Bhabha “Uma fronteira não é o ponto
onde algo termina, mas, como os gregos reconheceram, [...] é o ponto a partir do qual
algo começa a se fazer presente” (1998, p. 19). A passagem, a fronteira é uma das
características que permite a fluidez na obra de Pessoa, é o transporte da simulação à
dissimulação, do discurso ao contra-discurso, da dissimulação ao absurdo. Esse espaço
intermediário não é nem um novo horizonte, nem um retorno ao passado, mas sim uma
hibridização dos dois espaços. Esse local se configura num espaço de trocas e
mudanças, que não se fixa, que é sempre flutuante. A obra Na Floresta do Alheamento
se esculpe com rupturas das convenções e das práticas de escritura, e rompe com o
universo real para abrir outras e novas possibilidades: um mundo real-fictício e um
imaginário-virtual.
O conceito de entrelugar se caracteriza por ser fronteiriço, aquele que, ao mesmo
tempo, que separa e limita as duas margens, também permite e aproxima. É o lugar de
passagem, de movimento, da busca por pertencimento e permanência, e também de
ausência. Esse local reporta ao estar dentro e fora; ao ponto de partida e de chegada; ao
instável e ao certo. É o espaço da observação, de análise, de interpretação, que não é
nem cá, nem lá:
Sei que despertei e ainda durmo. O| meu corpo antigo, moído de eu viver,
diz-me que é muito cedo ainda... Sinto-me febril de longe. Peso-me, não sei
porquê... [...] Minha atenção boia entre dois mundos e vê cegamente a
profundeza de um mar e a profundeza de um céu; e estas profundezas
interpenetram-se, misturam-se e eu não sei onde estou nem o que sonho.
(PESSOA, 2011, p.454).
61
6
O termo contra-discurso é, também, uma expressão usada por Michel Foucault, no livro As palavras e as
Coisas (1999).
62
A linguagem fala dela mesma, pois ela se configura como a essência do ser e do
tempo como compreensão do mundo e do homem. Ela oportunizou ao homem ser
colocado diante dele mesmo, refletindo sobre si mesmo, e lhe propiciou ter consciência
de sua finitude. Além de permitir o ordenamento e a representação do pensamento,
conforme Foucault (1999) mesmo afirma que não é o homem que pensa a linguagem,
mas sim a linguagem que pensa o homem. Então para conhecer o homem é necessário
compreender a linguagem, uma vez que sujeito e linguagem estão intrinsecamente
ligados.
Percebemos que ainda existe um discurso nesse fragmento, porque ele ainda
comunica algo, porém está direcionando ao contra-discurso, pois o eu artístico não
pressupõe a presença de um público. É uma linguagem ao infinito, e a arte surge como
destruição dela mesma, dissolução de tudo, resultando na arte da dissimulação, do
contra-discurso. Há um jogo de vocábulos que ressoa outras palavras, tudo sem lógica,
sem coerência, o que provoca encantamento, e a sensação do vazio e do múltiplo, do
obscuro e da clarificação. Dessa maneira, o eu fictício permanece num estado de
transição contínua, entre o real por ele criado: “visão nítida e escura da alcova”; e o
irreal, que pertence ao sonho, ao imaginário: “De vez em quando pela floresta onde de
longe me vejo e sinto”.
Outras vezes este quarto estreito é apenas uma cinza de bruma no horizonte
dessa terra diversa... E há momentos em que o chão que ali pisamos é esta
alcova visível... Sonho e perco-me duplo de ser eu e essa mulher... Um
grande cansaço é um fogo negro que me consome... Uma grande ânsia
passiva é a vida falsa que me estreita... (PESSOA, 2011, p.455).
O eu artístico sofre ao construir a obra de arte, pois ele encontra-se rumo à “terra
diversa”, ao universo artístico. Ele encontra-se muito cansado e um “fogo negro” o
64
consome. É algo incógnito, indefinível, invisível. Bernardo Soares finge uma situação
que não é, finge não ser aquilo que é, ou seja, nesse viés, não existe uma “mulher” na
obra pessoana, ela remete à própria arte, ao processo artístico. O ato de fingir pressupõe
que tanto o verosímil, quanto o inverossímil, forma-se num jogo discursivo no qual
predomina a transgressão dos limites. Esse jogo ora aproxima, ora distancia da
realidade. Isso se dá porque no ato de fingir, o imaginário adquire uma determinação
que não lhe é próprio, contudo adquire uma característica do real. Esse jogo representa a
força da estruturação artística, e ele é o próprio ato do fingir, com o intuito de confundir
o leitor. O universo criado pelo eu poético é um mundo imaginário. Assim sendo, o ato
de fingir no texto ficcional nada mais é que uma relação dialética entre imaginário e o
real. “O jogo artístico do fingimento implica aquilo que se esconde nas dobras da prosa
poética: o próprio ato de criar. Assim, o texto-livro espelha o seu próprio jogo mais
secreto, instaurando uma espécie de auto-dissimulação criadora”. (RODRIGUES, 2007,
p. 95).
O real já não existe, foi absorvido pelo simulacro e substituído pelo processo de
simulação. Para Baudrillard, a dobragem do real, transforma a simulação do real em
hiper-real. Simular não é simplesmente fingir: “Aquele que finge uma doença pode
simplesmente meter-se na cama e fazer crer que está doente. Aquele que simula uma
doença determina em si próprio alguns dos respectivos sintomas.” (BAUDRILLARD,
1991, p. 9). Já fingir ou dissimular deixam intacto o princípio da realidade: a diferença
continua a ser clara, está apenas disfarçada, enquanto que a simulação põe em dúvida a
diferença do verdadeiro e do falso, do real e do imaginário. Ou seja, a dissimulação
oculta o que existe, e na simulação ocorre falsidade de tentar aparentar uma existência
daquilo que não é real. Dessa maneira, a prosa poética de Pessoa não se refere a uma
realidade objetiva, mas sim a uma realidade que pertence somente na própria obra,
enquanto esta se instala esteticamente num jogo desarticulado e descontínuo de ideias,
cuja desordem cria uma imagem sintática, ambígua e desconexa.
Na prosa poética Na Floresta do Alheamento o eu artístico confessa a sua
escritura como mentira, e passa a relacioná-la com a imperfeição. A verdade e a
realidade que estão inseridas fora da arte são insignificantes. O real se tornou uma
utopia, que Segundo Baudrillard (1991), já não é da ordem do possível, mas um objeto
perdido. Dessa forma, Pessoa cria sua própria realidade, uma verdadeira poética do
fingimento.
65
O eu artístico perde o vínculo com o real e dissimula não ser aquilo que é. A
mulher que ele se refere tenta encobrir o fazer artístico, e mais à frente ele admite que
nem quer saber quem é essa mulher. Ele constrói um jogo discursivo que não está no
mero aparente, mas na metáfora do aparente, do fingido, sugerindo confundir o leitor,
pois ele representa a força do fazer artístico. Não existe uma verdade, contudo existem
inúmeras verdades. Todo o fazer artístico está envolto no mais profundo fingimento e
imaginação criadora, permeado por imagens oníricas. Diante disso, o sonho gera
imagens de imagens, além de se projetar no mundo das sensações: “Que nítida de outra
e de ela essa trêmula paisagem transparente”. O sentido da visão permite mostrar a
paisagem transparente, ao mesmo tempo em que ela também se apresenta trêmula. As
imagens se mesclam e tudo adquire uma nova conotação, um novo signo. Deste modo, o
ato de fingir no texto ficcional nada mais é que uma relação dialética entre imaginário e
o real. Pessoa utiliza-se da metalinguística como inovação para construir a arte de si,
uma arte que, ao construir-se, fala sobre si mesma, se transformando em produto da
criação artística.
O texto analisado cria um real que nunca acontecerá, que existe somente
enquanto escritura. O eu artístico constrói um jorro desarticulado e descontínuo de
ideias, cuja desordem cria uma imagem sintática inesperada, ilógica e caótica. Ele
dissimula não ser o que é. Neste caso, Baudrillard, esclarece que:
Nós sabíamos ali, por uma intuição que por certo não tínhamos, que este
dolorido mundo onde seríamos dois, se existia, era para além da linha
extrema onde as montanhas são hálitos de formas, e para além dessa não
havia nada. E era por causa da contradição de saber isto que a nossa hora de
ali era escura como uma caverna em terra de supersticiosos, e o nosso senti-la
era estranho como um perfil da cidade mourisca contra um céu de crepúsculo
outonal... (PESSOA, 2011, p.457).
Dessa maneira, o eu lírico produz uma imagem dissimulada, que gera novos
sentidos. O dolorido mundo, a caverna escura reporta ao universo artístico, o qual causa
certo estranhamento. A prosa poética não é tecida pelo real, mas pelo imaginário. Não
existe dissimulação se não existir um modelo fingido, pseudo-verdadeiro de realidade
para ser explorado, ou mesmo modificado ou transformado em outro objeto, chegando
ao ponto de ser confundido com o que é real. A imagem construída no texto é
transformada em vetor de amplificação do real produzido pelo eu artístico, o qual
também dissimula uma farsa quando diz: “Nós sabíamos ali, por uma intuição que por
certo não tínhamos, que este dolorido mundo onde seríamos dois, se existia.”, ao mesmo
tempo em que ele se desdiz ao afirmar: “E era por causa da contradição de saber isto
que a nossa hora era escura.” O adjetivo escura remete a algo turvo, opaco, enegrecido,
que não se pode enxergar claramente. Já o verbo saber reporta a um estado de
compreensão, de domínio, de certeza, que o eu lírico não possuía. Ao confessar sua
dissimulada mentira o eu ficcional passa também a relacioná-la com a imperfeição
corroborando a teoria da inutilidade da arte como escrita do absurdo.
2.3 O Absurdo
consciente, a qual se conectando a busca inconsciente de uma moral lhe permite fazê-lo
transcender e resgatar a sua dignidade, sempre de acordo com o instante, o agora, pois
ele não acredita no eterno e nem acredita no sentido das coisas.
O cenário político de pós-guerra na Europa também beneficiou o crescimento de
várias correntes artísticas dentre elas, o Teatro do Absurdo, o qual misturou diferentes
linhas de pensamento e as obras artísticas. Esse contexto deixou cicatrizes
inextinguíveis e um sentimento de desesperança e pessimismo na sociedade do pós-
guerra. O que propulsou as diversas correntes artísticas a se apoiarem no pensamento
filosófico a fim de construir suas obras de arte. Esslin foi um desses pensadores e diz
que o absurdo
[...] parece ser a atitude que mais autenticamente representa nosso próprio
tempo. A principal característica dessa atitude é a da sensação de que as
certezas e pressupostos básicos e inabaláveis de épocas anteriores
desapareceram, foram experimentados e constatados como falhos, foram
desacreditados e são agora considerados como ilusões baratas e um tanto
infantis. (1968, p.20).
Tudo gira em torno das incertezas e das dúvidas. A única certeza que ainda
existe é que a morte é inevitável. O absurdo deriva da “[...] preocupação do homem
moderno de dialogar com o mundo em que vive. Ele tenta fazê-lo enfrentar a condição
humana tal como ela é, e libertá-lo de ilusões fadadas a causar desajustamentos e
desapontamentos constantes”. (ESSLIN, 1968, p.278). Diante dessa constatação de
absurdo o homem se revolta e descobre que vive uma vida maquinal, sem sentido, pois
se sente cansado e desmotivado da rotina que leva, e a partir disso ele se conscientiza e
se desperta e tem de realizar uma escolha: continuar com essa vida sem sentido ou se
libertar. “A revolta nasce do espetáculo irracional, frente a uma condição injusta e
incompreensível. Mas seu ímpeto cego reivindica a ordem no meio do caos e a unidade
no âmago daquilo que foge e desaparece. A revolta clama, exige, quer que o escândalo
termine” (CAMUS 1965, 419). O homem necessita dessa revolta para se reerguer, pois
é a mesma que lhe dará motivações para continuar adiante.
Surge então, uma arte que busca uma expressividade inovadora, propondo uma
reflexão sobre o absurdo da condição humana. Há uma enorme ausência de valores, a
qual constitui as relações humanas. A condição humana já beira o desumano e desta
maneira, esse homem moderno e contemporâneo, de identidade estilhaçada e sem
68
aparente destino parece buscar uma realização que parece apenas se dar no absurdo do
cotidiano.
É justamente nesse semblante do absurdo que a obra de arte é “a oportunidade
de manter a consciência e de fixar suas aventuras. Criar é viver duas vezes” (CAMUS,
1965, p. 172). “Todos eles tentam imitar, repetir e recriar sua própria realidade.”
(CAMUS, 1965, p. 174). Portanto, a criação é mímesis do absurdo. “A obra de arte
nasce da renúncia de racionalizar sobre o concreto” (CAMUS, 1965, p. 176). A criação,
conforme Camus (1965) a entende corrobora com o absurdo. Nela, encontramos suas
contradições e de maneira alguma ela poderia ser mero entretenimento, alegria para os
olhos ou uma fuga do problema fundamental. Fernando Pessoa em Na Floresta do
Alheamento navega por mares do fingimento poético, dos sonhos incompletos, do
passado revivido, da loucura assumida. Ele tem uma enorme capacidade de unir poesia
e prosa num mesmo ambiente literário. Ele utiliza uma linguagem fragmentada pautada
no paradigma da desrazão. No processo artístico de Fernando Pessoa verifica-se uma
ausência de sentido e de unidade. O absurdo confere à obra a vivência do caos no seu
próprio experimento e no assassinato do seu ser original. Ela demonstra ilogicidade e
incoerência:
Raiam da minha atenção vagos ruídos, nítidos e dispersos, que enchem de ser
já dia a minha consciência do nosso quarto... Nosso quarto? Nosso de que
dois, se eu estou sozinho? Não sei. Tudo se funde e só fica, fugindo uma
realidade-bruma em que a minha incerteza soçobra e o meu compreender-me,
embalado de ópios adormece... (PESSOA, 2011, p.460).
fugindo; e o seu compreender que adormece. Todos os sentidos são misturados num
corpo de sensações, gerando o sentimento do absurdo.
parecer o irreal mais ‘real’, como tantas vezes se proclamou, mas contribui,
diferentemente, para que os artificialismos do relato fingido façam parecer o eu-
narrador mais irreal”. (1975, p.48).
Percebemos que essa pintura traz uma ambiguidade, pois visualizamos um
“suposto Narciso”, o qual é retratado extremamente dividido e fragmentado, e, ao
mesmo tempo, causam a impressão de serem simplesmente inúmeras rochas justapostas.
A arte pessoana também se estrutura por meio de impressões fragmentárias que
se compõem em múltiplos fragmentos significantes:
Nesta passagem podemos averiguar que o eu fictício não possui um lugar e nem
uma identidade fixa: “fujamos a sermos nós”, “e nós, caminhando sempre”. Ele é um
errante, instável e fluido. De acordo com Bauman (2001), a modernidade fluida
75
encobre um pouco o lado esquerdo da tela e uma mulher nua em cima de um dos
elefantes.
A pintura em destaque é permeada por imagens oníricas, bizarras, insólitas.
Visualizamos animais gigantescos, totalmente desproporcionais com a imagem do
santo, que se encontra nu, sugerindo referência aos sonhos, que despem as pessoas de
qualquer privação. O insólito fixa-se como uma categoria cujos traços presentes nesta
pintura evidenciam o extraordinário, sobrenatural ou extranatural que, de uma forma ou
de outra, causam estranhamento, medo, ou, pelo menos, inquietação no leitor. O santo
possui um tamanho bem menor em relação aos animais gigantes. As pernas dos animais
são disformes e extremamente finas em relação ao corpo, remetendo a patas de aranhas.
O insólito surge na pintura sugerindo aquilo que não é usual, mas que se iguala ao
sobrenatural, esquivando-se do que é esperado ou previsível. Isto é, os elementos que
aparecem na pintura, não são elementos que usualmente são vistos, mas que geralmente,
aparecem em sonhos. São acontecimentos que não são frequentes de acontecer, são
raros, pouco costumeiros, inabituais, e incomuns. Ocorreu uma desnaturalização e uma
desobjetificação dos elementos presentes nessa obra.
Semelhantemente, a arte poética de Pessoa também se manifesta por meio do
inusitado e inusual. A linguagem surge totalmente nova. O poeta cria uma língua dentro
da própria língua:
Nós sabíamos ali, por uma intuição que por certo não tínhamos, que este
dolorido mundo onde seríamos dois, se existia, era para além da linha
extrema onde as montanhas são hálitos de formas, e para além dessa não
havia nada. E era por causa da contradição de saber isto que a nossa hora de
ali era escura como uma caverna em terra de supersticiosos, e o nosso senti-la
era estranho como um perfil da cidade mourisca contra um céu de crepúsculo
outonal... (PESSOA, 2011, p.457).
As flores, as flores que ali vivi! Flores que a vida traduzia para seus nomes,
conhecendo-as, e cujo perfume a alma colhia, não nelas mas na melodia dos
seus nomes... Flores cujos nomes eram, repetidos em sequência, orquestras
de perfumes sonoros... Árvores cuja volúpia verde punha sombra e frescor no
como eram chamadas... Frutos cujo nome era um cravar de dentes na alma da
sua polpa... Sombras que eram relíquias de outrora felizes... Clareiras,
clareiras claras, que eram sorrisos mais francos da paisagem que se bocejava
em próxima... (PESSOA, 2011, p.458/459).
E que fresco e feliz horror o de não haver ali ninguém! Nem nós, que por ali
íamos, ali estávamos... Porque nós não éramos ninguém. Nem mesmo éramos
coisa alguma... Não tínhamos vida que a Morte precisasse para matar.
Éramos tão ténues e rasteirinhos que o vento do decorrer nos deixara inúteis e
78
a hora passava por nós acariciando-nos como uma brisa pelo cimo de uma
palmeira. (PESSOA, 2011, p.459).
Essa obra não pretende assemelhar-se à realidade, mas distanciar-se dela pela
instauração do irreal. Por meio dessa pintura observamos que Dalí rompe com o
processo convencional de criação artística. Ele nos apresenta três relógios que marcam
horas diferentes e parecem que estão derretendo e se desintegrando. Os relógios
traduzem de forma objetiva a passagem do tempo. O artista os representou de uma
maneira surreal, de forma a demonstrá-lo como flexíveis, maleáveis, derretidos,
aparentando dissipar-se na superfície onde estão apoiados. Ao fundo tem-se uma
provável paisagem de uma praia ao amanhecer, com um céu azul que parece fundir-se
com o mar, cor também de dois relógios. A cor azul está associada à monotonia,
serenidade, e pode nos remeter à imagem central da tela, que está de olhos fechados e
também sugerir a sensação do movimento ao infinito. De olhos fechados no chão, tem-
se um suposto animal sem boca, com uma língua que sai pelo nariz, sobre ele repousa
um relógio flácido, de fundo branco, que está derretendo. O sono pode estar referindo-se
ao estado onírico, no qual nem o tempo nem o espaço são fixos. Os elementos da tela se
movimentam, balançam e estremecem. Alguns críticos relacionam o rosto desse
suposto animal ao autorretrato de Dalí. O que também pode insinuar que o pintor está
fechando os olhos para as artes clássicas, de forma a se abrir para um novo tipo de arte,
que seria a arte do irracional, do ilógico e do imaginário. O pintor remete essa obra à
própria arte, ao delírio em si mesmo. Nessa perspectiva de leitura, sua obra encontra-se
82
na passagem do surrealismo para o contemporâneo. Não há nada real nessa obra, tudo se
encontra ilusório e desfigurado.
Do lado direito do quadro há uma mesa, e sobre ela tem mais um relógio
derretendo com uma mosca em cima, além de um tronco de uma árvore, com outro
relógio azul desintegrando. Também tem outro relógio, que não marca horas, com
muitas formigas em cima, insetos que insinuam uma vida organizada em sociedade.
Essa metáfora alegórica que o pintor utiliza pode sugerir que a arte está farta de ser
organizada e monitorada. Tanto que esse relógio encontra-se fechado, porque a arte se
fecha para esse pensamento. Ela anseia ser livre e foge de qualquer influência de ser
racional e coerente. Há uma dissolução do homem e do contexto social na esfera de um
universo inesperadamente inventado, aludindo a um mundo antinatural. Diante disso,
percebemos que nessas imagens ocorre um rompimento com a razão e uma total
ilogicidade, remetendo ao hiper-realismo, pois já não há mais o real. Segundo
Baudrillard, estamos diante de “um hiper-real, produto de síntese irradiando modelos
combinatórios num hiper-espaço sem atmosfera”. (1992, p.8). Há inúmeras
possibilidades interpretativas nesses elementos, as quais promovem cenas absurdas
repletas de signos indecifráveis, opondo-se totalmente a uma visão racional do mundo.
Diante de uma realidade caótica 7 Salvador Dalí constrói outra realidade. Ele
consegue dar sentidos totalmente diferentes a objetos do cotidiano, que ultrapassam
seus limites da essência, de forma a causar estranheza e estupefação. O caos presente
nessa pintura desfaz no infinito toda e qualquer consistência e contém todas as formas
possíveis de pensamento, pois ele é o nascimento e esvaziamento constante de todas as
formas possíveis. A cor clara está no plano superior e direito do quadro, e o tom negro
vai inundando o mesmo, no plano inferior e esquerdo, o que pode remeter ao ser
abrindo-se para o inconsciente. Essa visão permite identificar que o espaço e o tempo
também estão se dissolvendo e se desintegrando. De acordo com Bauman, (2011) o
tempo se sobrepõe ao espaço, de forma que podemos nos movimentar sem sair do lugar.
Isso se dá porque o tempo se tornou líquido, fluido, e por isso permite o instantâneo, o
7
Segundo Deleuze e Guattari, na obra O que é a Filosofia? (1992), e Guatarri em Caosmose (1992), o
caos se caracteriza mais pela velocidade, do que pela desordem; eles são fluxos velozes e incessantes que
perpassam a nossa consciência sem que, paradoxalmente, estejamos completa ou mesmo minimamente
conscientes deles; é um vazio que não significa ser nada.
83
8
Segundo Lipovetsky (2009), O efêmero seria o ritmo precipitado em que as frivolidades e o reino das
fantasias instalaram-se. É o gosto pela novidade, o viver o presente e as mudanças frequentes que
acontecem rapidamente. É a imensa rapidez para se manter atualizado e em constante mudança.
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almejam nos dar uma dimensão do real, mas sim uma possibilidade do irreal. Sendo
assim, na obra A Persistência da Memória, o animal que está de olhos fechados no chão
não se reporta a uma criatura determinada, mas a possibilidades de vários entes. Da
mesma forma que os relógios, também podem se referir a outros objetos que não sejam
relógios. Isso se dá porque a obra de arte é um processo aberto de interpretação, e os
elementos criados pelo artista se tornam obscuros, misteriosos e multiplicadores de
inúmeros sentidos, se afastando dos sentidos que o mundo natural lhes atribui.
Similarmente, se desenvolve o texto de Pessoa: alicerçado numa pluralidade
compositiva, em que as palavras alargam-se por caminhos plurais, ultrapassando
qualquer compreensão delimitada, no intuito de dizer o não dito. O eu fictício dissimula
denotar na criação alguma relação com o mundo real, porém ele descortina um universo
puramente artístico repleto de multiplicidades:
E eu, que longe dessa paisagem quase a esqueço, é ao tê-la que tenho
saudades dela, é ao percorrê-la que a choro e a ela aspiro... [...] E ei-la que, ao
irmos a sonhar falar nela, surge ante nós outra vez, a floresta muita, mais
agora mais perturbada da nossa perturbação e mais triste da nossa tristeza.
Foge de diante dela, como um nevoeiro que se esfolha, a nossa ideia do
mundo real, e eu possuo-me outra vez no meu sonho errante, que essa
floresta misteriosa enquadra... (PESSOA. 2011, p.456/458).
O surrealismo não valoriza o sonho simplesmente pelo sonho, sem que haja um
sentido estético imbuído. O universo surreal surge da fusão entre dois espaços
aparentemente contraditórios, no intuito de conseguir encontrar uma síntese entre os
opostos, sustentando-se tanto do real interior, quanto do exterior, do estado de vigília e
sono, do consciente e inconsciente, sempre buscando uma unidade, conforme assevera
Breton: ”Tudo leva a crer que existe um determinado ponto do espírito donde vêm a
vida e a morte, o real e o imaginário, o passado e o futuro, o comunicável e o
incomunicável, o alto e o baixo, que deixam de ser apreendidos contraditoriamente”
(2009, p. 269).
Diante dessa combinação dos opostos, surgem, também, o saturno e o bizarro,
que buscam uma comunicação com o irracional e o ilógico.
O Jogo Lúgubre, nome da obra, a seguir de Dalí, evidencia a presença marcante
dos elementos surrealistas, trazendo imagens do sonho e da fantasia, do desejo e do
inconsciente. Além de ser a própria imagem da irracionalidade e do entranhar do mundo
real no mundo irreal, a pintura consegue a conciliação de imagens fantásticas e
disformes, estabelecendo, de fato, um jogo lúgubre, isto é: melancólico, medonho,
saturno, sombrio e, absurdamente, trágico.
A pintura se utiliza de uma fusão de cores uma próxima da outra. O azul,
amarelo e vermelho sugerem chamas de fogo, sensualidade e movimento. Há a
predominância do azul, que segundo Chevalier (2002), pode ser considerada a cor do
vazio, sendo a mais fria das cores. Dalí desmaterializa as imagens, de forma a dar novos
significados aos elementos, rumo a um mundo imaginário, visto que o azul constitui
também o próprio devaneio. O azul é o surrealismo em cor, e as incompreensões do ser
humano diante da vida.
86
diante de uma vida totalmente sem significado. O homem absurdo camusiano pauta suas
experiências e ações no momento em que são realizadas. Segundo ele:
Dalí criou uma obra absurda e que possui uma estrutura artística ousada, irreal,
fantástica e que revela um realismo exagerado, que se identifica muito com a estrutura
do sonho. Ele constrói o maravilhoso, e segundo Breton in Hocke, “O maravilhoso9 é
sempre belo, não importando de que maravilhoso se trate. Na verdade, só o maravilhoso
é belo10”. (1974, p.82).
Nessa pintura, deparamo-nos, ao lado do belo, com o feio, termo que não se
opõe ao belo, mas que possui um valor em si mesmo. Ele aparece nas pinturas
dalinianas como o grotesco, uma imagem do incompleto, do desarmônico; como figuras
fantasmagóricas, sombrias, fluidas e disformes.
Segundo Baudelaire in Friedrich (1978), deve-se dotar a beleza de um encanto
agressivo, para que esta seja protegida do banal e seja bizarra e disforme. Dessa
maneira, o feio deforma tudo o que é real, a fim de tornar perceptível a evasão ao
suprarreal, gerando a melancolia.
De acordo com Mello (1983), a melancolia e a angústia são temas recorrentes da
arte maneirista. O maneirismo visto não como um estilo de época, mas como uma
expressão da arte, uma forma estética, que transcende a delimitação temporal.
Percebemos na pintura O Jogo Lúgubre, que Dalí expressa um universo em forma de
imagens complexas, de muita criatividade e de enorme imaginação artística. Hocke,
(1974), aponta o planeta Saturno como o portador da melancolia. Ele é o símbolo da
genialidade, mas também do humor sombrio e da loucura, características presentes nesta
9
Tratamos do conceito de maravilhoso, não no conceito tradicional do termo, mas do conceito que inclina
para o fantástico e o absurdo. Segundo Todorov (2004), O maravilhoso instala seu universo irreal sem
causar qualquer questionamento, estranhamento ou espanto no leitor, e caracteriza-se pela presença
harmônica e natural de fatos sobrenaturais ou extraordinários. Já o fantástico é a hesitação experimentada
por um ser que só conhece as leis naturais, diante de um acontecimento aparentemente sobrenatural. O
insólito no fantástico é algo que assusta, amedronta; são eventos que fogem à regra, que chocam.
10
O belo aqui deve ser entendido como um belo saturno, de saturnino e também paradoxal. Utilizamos a
concepção de Friedrich (1978), em que o conceito de belo se verifica também na desordem, no caos, na
perplexidade.
88
Uma grande angústia inerte manuseia-me a alma por dentro e, incerta, altera-
me, como a brisa aos perfis das copas. [...] Nada vale a pena, ó meu amor
longínquo, senão o saber como é suave saber que nada vale a pena... [...] Que
horas, ó companheira inútil do meu tédio, que horas de desassossego feliz se
fingiram nossas ali!... Horas de cinza de espírito, dias de saudade espacial,
séculos interiores de paisagem externa... (PESSOA, 2011, p.455/457).
da outra pessoa o abraçando. Dessa forma, já não há mais limites entre o fictício e o
real. Da cabeça suspensa no ar, é como se saísse um ovo que explodiu e dele voassem
diversos objetos em círculo. Essa tela sugere que do mistério da vida emerge um
amontoado de sonhos com diversos objetos, e partes dos corpos humanos: cabeças,
dedos, rostos, seios, de forma a remeter à fragmentação do ser humano e da obra de arte,
reportando a uma multiplicidade significante. Todos os elementos voam num espaço
atmosférico celestial, de maneira a dar ideia de nada sólido, nada palpável e nada
terreno. Estamos diante de uma obra que se reporta à própria arte.
Da mesma maneira, Fernando Pessoa em Na Floresta do Alheamento também
remete ao fazer artístico, conforme podemos comprovar no trecho:
Outras vezes este quarto estreito é apenas uma cinza de bruma no horizonte
dessa terra diversa... E há momentos em que o chão que ali pisamos é esta
alcova visível... Sonho e perco-me, duplo de ser eu e essa mulher... Um
grande cansaço é um fogo negro que me consome... Uma grande ânsia
passiva é a vida falsa que me estreita... (PESSOA, 2011, p.455).
Árvores cuja volúpia verde punha sombra e frescor no corpo como eram
chamadas... Frutos cujo nome era um cravar de dentes na alma da sua polpa...
Sombras que eram relíquias de outroras felizes... Clareiras, clareiras claras,
que eram sorrisos mais francos da paisagem, que se bocejava em próxima...
(PESSOA, 2011, p.459).
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Neste excerto, temos a percepção de vários ruídos: cravar, bocejar; cores: verde,
claras; sensações: sombra, frescor, cravar de dentes na alma, relíquias, sorrisos
francos. Todas essas imagens emergem com uma profunda vivacidade, conduzindo o
leitor ao mais profundo devaneio e a uma nova percepção do universo. Conforme Ponty
(1999), o corpo é o sujeito da percepção e de horizontes que se estendem para além de
si. O movimento gerador do corpo desdobra a trajetória de um aqui em direção a um ali:
árvores cuja volúpia verde punha sobra e frescor no corpo. O seu corpo é inseparável
de uma visão de mundo. Este corpo, de acordo com Ponty (1999), não diz respeito ao
fisiologismo, mas sim ao corpo sensível, o qual transcende o primeiro. Sendo assim,
pintura e literatura se fazem enquanto operação reflexiva do próprio corpo,
comunicando com o mundo através do olhar e da sensibilidade. Para Ponty (1999), é no
interior do mundo sensível, do mundo sensorial, desse mundo espacial-temporal, que a
obra de arte é produzida.
Ambas as obras comentadas possuem aspectos flutuantes, fragmentários,
surreais, desestruturantes e com inúmeros desvios, estando na passagem da
modernidade para a contemporaneidade. Nelas, o que importa não é o que aparece, mas
o que transparece, de forma a torna-las objetos singulares e instauradores não somente
de contemplação, mas de grande estranhamento e impacto.
92
CONSIDERAÇÕES FINAIS
A partir das análises realizadas ao longo desses três capítulos, e que culminou no
último, estabelecemos neste estudo, alguns aspectos relacionais entre a prosa poética Na
Floresta do Alheamento de Fernando Pessoa e as pinturas de Salvador Dalí. Baseamo-
nos na estética da persistência e da fluidez, e utilizamos como suporte teórico teorias
sobre as artes modernas e contemporâneas, as quais não concebem a arte como uma
simples representação da realidade.
Tais análises levaram a comprovar a veracidade dos pressupostos teóricos
incialmente colocados: as pinturas dalinianas e a arte poética pessoana mostram-se
fluidas, fragmentadas, dissolvidas, devaneantes, paradoxais e de plena embriaguez. Elas
se compõem de artimanhas irreais, de modo a instaurar o absurdo. Ambas aludem à
criação estética, ao fazer artístico.
A linguagem pictórica e a linguagem poética desviam-se dos pontos
exclusivamente cotidianos da vida, para se circunscrever em si mesmas e firmar-se para
dissolver tudo o que faz parte do mundo natural. Prevalece a antinaturalidade, permeada
de flutuação, fragmentação e absurdez. As referencialidades ao mundo real são abolidas
e as obras de arte apresentadas neste trabalho nos propicia a apreensão de que elas não
representam algo existente e também são abertas às incertezas e inconclusões. Sobre a
realidade na obra de arte Langer afirma que: “A ‘arte’ não é a expressão da aparência da
realidade tal como a vemos, nem da vida que vivemos, mas... é a expressão da
verdadeira realidade e verdadeira vida... indefinível, mas plasticamente realizável”.
(2011, p.86). Assim sendo, as obras de arte que examinamos no decorrer deste trabalho,
são invenções mais reais do que a própria realidade.
A arte moderna, na transição para a arte contemporânea, confere a si mesma uma
nova imagem criativa, conforme pudemos conferir em Na Floresta do Alheamento e nas
pinturas de Dalí. Ambas possuem a linguagem multiforme e semanticamente flexível. O
texto pessoano é trabalhado de forma que as palavras podem significar qualquer coisa,
93
tudo ou nada. Elas irrompem com o aporte de ir além da linguagem comum, o que
descortina um universo dissipado e envolvente. Os vocábulos sofrem mutações e se
transfiguram, tecendo seu próprio caminho no interior artístico, no intuito de remeter à
própria escritura da arte. Eles dissimulam-se o tempo todo, de maneira a produzir
imagens que fingem não ser aquilo que é. Nessa obra, estamos diante de uma linguagem
poética que gera um processo polissêmico e que remete à penumbra, ao mundo onírico,
à poesia, que se distancia do mundo real.
As pinturas analisadas surgem com suas imagens fendidas a fim de
desestabilizar a própria aparência, dissimulando-se. Os diversos elementos de cada tela
associam-se produzindo uma explosão de sentidos. Essas pinturas delimitam a
necessidade de transparecer o ilimitado, o fugaz, o contingente, o grotesco e o bizarro. É
nos dada a impressão de que cada elemento está diluindo, derretendo e dissolvendo, o
que remete ao conceito de fluidez de Bauman (2001), que afirma que o líquido seria a
imagem do indivíduo moderno e pós-moderno, que não tem um espaço fixo. Segundo
ele, esse fenômeno das relações na sociedade fluida, seria como uma instância volátil
que rejeita as raízes e assume um modo de vida nômade.
Semelhantemente, o eu ficcional pessoano sente-se exilado e sem lugar: “Minha
atenção boia entre dois mundos. [...] Sonho e perco-me. [...] De vez em quando pela
floresta onde de longe me vejo e sinto”. (PESSOA, 2011, p.454/455). Ele busca
incessantemente por sua identidade, pelo seu eu, com o objetivo de tornar mais lento o
fluxo, de solidificar o fluido, de dar forma ao disforme, porém se depara com um lugar
sem lugar, um entrelugar, que é o movimento de vaivém, um lugar deslizante que faz
surgir algo novo e híbrido. Já não há mais discurso e sim uma ausência do dizer,
pautada no contra-discurso. O eu ficcional pressupõe uma comunicação, porém ele nada
comunica.
Segundo Foucault “a linguagem dobra sobre si mesma, adquire sua espessura
própria, desenvolve uma história, leis e uma objetividade que só a ela pertencem”.
(1999, p. 409). Dessa maneira, certificamos que as obras apreciadas possuem
linguagens únicas, bifurcadas, desdobradas e pertencentes a si mesmas. É uma
linguagem que não tem início nem fim, que existe voltada para si mesma e que se refere
ao próprio fazer artístico. Ambas as obras falam de si próprias, inventam-se e deixam-se
inventar, de forma a resgatar a identidade da própria arte. A realidade dessas obras se
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REFERÊNCIAS
conferências vanguardistas, de 1857 a 1972 - 20ª Ed. – Rio de Janeiro: José Olympio,
2012.
TODOROV, Tzvetan. Introdução à literatura fantástica. São Paulo: Perspectiva, 2004.