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Leicina Alves Xavier Pires

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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE GOIÁS ESCOLA DE FORMAÇÃO

DE PROFESSORES E HUMANIDADES PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO


STRICTO SENSU MESTRADO EM LETRAS - LITERATURA E CRÍTICA
LITERÁRIA

CONTRASTE ENTRE PERSISTÊNCIA


E FLUIDEZ SENSITIVA
_________________________________________________________
Estudo Relacional da Prosa Poética Na Floresta do Alheamento, de Fernando Pessoa e a
Pintura de Salvador Dalí.

LEICINA ALVES XAVIER PIRES

Goiânia/ 2017
2

LEICINA ALVES XAVIER PIRES

CONTRASTE ENTRE PERSISTÊNCIA


E FLUIDEZ SENSITIVA
_________________________________________________________
Estudo Relacional da Prosa Poética Na Floresta do Alheamento, de Fernando Pessoa e a
Pintura de Salvador Dalí.

Trabalho de Dissertação de Mestrado apresentado à Banca de


Defesa do Programa de Pós Graduação Stricto Sensu em
Letras, da Pontifícia Universidade Católica de Goiás – PUC
Goiás, na linha de pesquisa Correntes Críticas
Contemporânea, sob a orientação da profa. Dra. Profa. Maria
Aparecida Rodrigues.

Goiânia/ 2017
3

P667c Pires, Leicina Alves Xavier


Contraste entre persistência e fluidez sensitiva[
manuscrito]/ Leicina Alves Xavier Pires.-- 2017.
98 f.; il. 30 cm

Texto em português e inglês


Dissertação (mestrado) - Pontifícia Universidade Católica
de Goiás, Programa de Pós-Graduação Stricto Sensu
em Letras, Goiânia, 2017
Inclui referências f. 95-98

1. Pessoa, Fernando, 1888-1935 - Ficção - Crítica


e interpretação. 2. Arte e literatura. 3. Dalí, Salvador,
1904-1989. 4. Literatura portuguesa - Ficção - Crítica
e interpretação. 5. Estética. I.Rodrigues, Maria Aparecida.
II.Pontifícia Universidade Católica de Goiás. III.
Título.

CDU: 821.134.3-31.09(043)
4
5

Sigo às vezes em mim, imparcialmente, essas coisas deliciosas e absurdas


que eu não posso poder ver, porque são ilógicas à vista – pontes sem donde
nem para onde, estradas sem princípio nem fim, paisagens invertidas – o
absurdo, o ilógico, o contraditório, tudo quanto nos desliga e afasta do real e
do seu séquito disforme de pensamentos práticos e sentimentos humanos e
desejos de acção útil e profícua. O absurdo salva de chegar a pesar de tédio
aquele estado de alma que começa por sentir a doce fúria de sonhar.

FERNANDO PESSOA
6

À minha mãe, meu esposo e minha filha,


pela dedicação, paciência e carinho.
7

AGRADECIMENTOS

A Deus por ter me sustentado firmemente nesta caminhada e manter-me forte,


mesmo diante dos vários obstáculos enfrentados durante esta jornada.
À professora Dra. Maria Aparecida Rodrigues, por sua paciência, dedicação,
humildade e imensa generosidade; por me apresentar o mundo da pesquisa,
possibilitando o acesso às obras de arte e me ensinando a questionar, buscar, debater e
argumentar. Por sua presença constante neste trajeto, presenteando-me com seu
profundo conhecimento. Suas palavras e seus ensinamentos enriqueceram minha mente
e minha alma, fazendo-me flutuar no mundo das artes!
A todos os professores do Programa do Mestrado em Letras: Literatura e Crítica
Literária da PUC-Goiás, cujo conhecimento possibilitou o despertar desta pesquisa. Em
especial à Prof.ª Dra. Maria de Fátima Gonçalves Lima, pela confiança e preocupação
com cada mestrando, e ao professor Dr. Éris Antônio Oliveira, que me introduziu ao
mundo das artes, despertando o meu senso crítico.
Aos funcionários da secretaria do curso de Letras, pela atenção, solicitude e
carinho para conosco.
Aos meus colegas do curso, que me auxiliaram no meu crescimento intelectual;
em especial à Ana Terra Roos, por nossas inúmeras trocas de conhecimentos e
angústias, e à Ana Lúcia Piedras, que me acolheu tão carinhosamente em sua casa.
Às colegas que me orientaram tão despretensiosamente e possibilitaram o meu
crescimento: Deise Araújo de Deus e Sunny Gabriella dos Santos.
A toda a comunidade do Colégio Estadual João Gomes que me impulsionaram
na realização deste sonho; que acreditaram em mim e entenderam a minha ausência tão
repentina do meu trabalho diário.
Ao amigo Gilson Vedoin, que com sua imensa humildade, me deu orientações
valiosíssimas.
Às amigas: Fernanda Mara, Lucélia Neves, Joyce Léia, Gislane Kátia, Kelly
Ferreira, Regina Toledo, Sandra Melo e Elisânia de Oliveira, que me estimularam na
realização deste grande sonho.
Às minhas eternas professoras Dra. Gláucia Cândido e Dra. Márcia Melo, que
em todo momento acreditaram em mim, de uma maneira inquestionável.
8

Aos meus familiares, que sempre me incentivaram, em especial à minha mãe,


que não teve a oportunidade de estudar, mas é sem dúvida a pessoa mais sábia que eu
conheço, e permanentemente confiou em mim e nas minhas possibilidades, além de me
aguçar incansavelmente para a concretização deste ideal.
Ao meu esposo, que em todo o tempo me estimulou e encorajou para que eu
conseguisse concluir esta etapa. À minha filha, Lana, que é um exemplo de ser humano,
que suportou minha ausência e meus lamentos sem reclamar; que me acompanhou por
diversas vezes à Goiânia e esteve ao meu lado incansavelmente.
Ainda, àqueles que não foram citados, mas que torceram e acreditaram na
realização deste trabalho.
9

RESUMO

Este trabalho pretende fazer um estudo relacional de algumas pinturas de Salvador Dalí
e da escrita de Fernando Pessoa em Na Floresta do Alheamento sob a perspectiva da
estética da persistência e fluidez. Almejamos comprovar que tanto a linguagem pictórica
quanto a poética mostram-se fluidas, fragmentadas, devaneantes, paradoxais, sensitivas
e de plena embriaguez. Elas nos trazem uma gama de imagens, de sonhos e de mundos
mágicos do inconsciente, nos conduzindo para o transestético, que é um transespaço,
pois que as obras navegam no entrelugar, na escrita do imaginário artístico, em estado
de liquidez. Essas obras encontram-se fora do mundo da racionalidade, abrindo-se para
o mundo do onirismo. A proposta tem como mote a abordagem fenomenológica com
ênfase no contraste paradoxal pertinente à estética contemporânea. Este estudo faz parte
de uma linha de pesquisa que trata da crítica contemporânea e que procura encontrar os
traços teóricos da arte de agora. Dessa forma, espera-se que esta dissertação possa servir
como modelo de relações estéticas de obras em formas e espécies diferentes. Desse
modo, inicialmente, abordaremos a obra de arte como processo de fluidez sensitiva,
como dissimulação, devaneio, movimento e como fragmentação. Posteriormente,
traçaremos o percurso da arte poética pessoana que se encontra no entrelugar,
transitando da dissimulação ao absurdo, e da modernidade à contemporaneidade. Por
último, discorreremos sobre a persistência e fluidez nas pinturas dalinianas.
Enfocaremos o insólito, a fragmentação, o saturno e o bizarro, realizando um
contraponto com a prosa poética pessoana.

Palavras-chave: Literatura. Pintura. Fluidez. Fragmentação. Entrelugar.


10

SUMMARY

This work intends to make a relational study of some Salvador Dalí’s paintings and
Fernando Pessoa 's writing in “ Na Floresta do Alheamento” under the perspective of
the aesthetics, persistence and fluidity. We aim to prove that both pictorial and poetic
language are fluid, fragmented, wistful, paradoxical, sensitive and full of drunkenness.
They bring us a range of images, dreams and magical worlds of the unconscious,
leading us to the transaesthetic, which is a transspace, since works navigate in the
interlude, in the writing of the artistic imagination, in a state of liquidity. These works
lie outside the world of rationality, opening up to the world of onirism. The proposal has
as its motto the phenomenological approach with emphasis on the paradoxical contrast
relevant to contemporary aesthetics. This study is part of a line of research that deals
with contemporary criticism and seeks to find the theoretical features of art now. Thus,
it is expected that this dissertation can serve as a model of aesthetic relationships of
works in different forms and species. In this way, we will initially approach the work of
art as a process of sensitive fluidity, such as concealment, reverie, movement and
fragmentation. Subsequently, we will trace the person’s poetic art course, in the
interlude, moving from dissimulation to absurdity and from modernity to
contemporaneity. Finally, we will talk about the persistence and fluidity of Dalinian
paintings. We will focus on the unusual, the fragmentation, the saturn and the bizarre,
realizing a counterpoint with the person’s poetic prose.

Keywords: Literature. Painting. Fluidity. Fragmentation. Interlude.


11

SUMÁRIO

CONSIDERAÇÕES INICIAIS.............................................................................. 12

1. A OBRA DE ARTE COMO PROCESSO DE FLUIDEZ SENSITIVA......... 17


1.1 Arte como Dissimulação ................................................................................... 25
1.2 Arte como Devaneio .......................................................................................... 30
1.3 Arte como Movimento e Fragmentação .......................................................... 38

2. A FLORESTA DO ALHEAMENTO – DA DISSIMULAÇÃO AO


ABSURDO ...........................................................................................................55
2.1 O Entrelugar.................................................................................................... 57
2.2 A (Dis) Simulação............................................................................................... 62
2.3 O Absurdo........................................................................................................... 66

3. A PINTURA DE DALÍ – PERSISTÊNCIA E FLUIDEZ............................... 70


3.1 O Insólito e a Fragmentação............................................................................. 72
3.2 O Saturno e o Bizarro........................................................................................ 85

CONSIDERAÇÕES FINAIS ................................................................................. 92

REFERÊNCIAS...................................................................................................... 95
12

CONSIDERAÇÕES INICIAIS

Reconhecer a realidade como uma forma de ilusão, e a ilusão como uma


forma da realidade, é igualmente necessário e igualmente inútil. A vida
contemplativa, para sequer existir, tem que considerar os acidentes objetivos
como premissas dispersas de uma conclusão inatingível; mas tem que ao
mesmo tempo considerar as contingências do sonho como em certo modo
dignas daquela atenção a elas, pela qual nos tornamos contemplativos.
FERNANDO PESSOA

O interesse em estudar o tema abordado nessa pesquisa surgiu nas aulas das
disciplinas do Mestrado, a partir da inquietação entre a singularidade das obras de arte e
principalmente da versatilidade de Fernando Pessoa em criar uma prosa poética em que
ele se revela e consegue fazer da língua a sua morada. Esse artista cria em palavras
muitos “eus” que nele habitam e por ele é habitado. Além de criar um semi-heterônimo,
que se dissimula no eu da personagem. O Livro do Desassossego gera-nos um grande
desassossego, e no intuito de realizarmos um trabalho possível, chegamos à conclusão
de que teríamos que restringir um pouco o nosso estudo. Apesar de ser muito difícil
delimitar somente um objeto de pesquisa nessa obra, visto que a obra pessoana é
entrelaçada por uma grande teia de pluralidades.
A escolha pela prosa poética “Na Floresta do Alheamento” que se encontra no
Livro do Desassossego se deu por ser uma obra que apresenta uma dimensão artística
que se realiza pela estrutura das palavras e pela dissimulação do sujeito lírico sobre o
seu fazer poético. A obra encontra-se fora do mundo da racionalidade e abre-se para o
onírico, o devaneio. Características essas que também encontramos na pintura de
Salvador Dalí, as quais remetem ao sentir e são de plena embriaguez.
Sendo assim, o construto deste estudo tem como objetivo principal executar um
estudo relacional de algumas pinturas de Salvador Dalí e da escrita de Fernando Pessoa
em Na Floresta do Alheamento sob a perspectiva da estética da persistência e da
fluidez. O método de abordagem crítica consistirá no fenomenológico, visto que a obra
de arte será examinada como fenômeno estético.
Levamos em conta um percurso investigativo visando aludir a determinados
fatos pertinentes ao período da modernidade e contemporaneidade – fatos que podem
ser constatados no conjunto das referidas obras – bem como a efetivação de análises do
Surrealismo. Também procedemos a uma apreciação dos mecanismos estruturais
13

intrínsecos relativos às obras de arte, chegando, por fim à busca de elementos que
comprovem a contribuição dos autores para a arte.
Diante disso, dentre diversos veios teóricos, alguns são privilegiados, a fim de
atingir o nosso propósito. Focalizamos teorias sobre as artes modernas e
contemporâneas, que são o alicerce da nossa pesquisa, uma vez que elas reconhecem a
ruptura da concepção de arte como simples representação da realidade. Diversas outras
teorias são apontadas no decorrer deste trabalho, porém citamos aquelas que utilizamos
como base para a nossa pesquisa.
Sendo assim, seguimos teóricos como Jean Baudrillard em Simulacros e
Simulação (1991), o qual afirma que a realidade deixou de existir e passamos a viver a
representação da realidade difundida pela mídia. Segundo esse filósofo, o real e a cópia
da realidade são indissociáveis. O mundo se transformou em imagem, e não existe
dissociado dela. A imagem não constitui o objeto em si, mas é o seu simulacro, que é
uma máscara e pertence ao mundo das aparências. Esse processo traz uma incompletude
para o ser humano, pois as certezas são provisórias e efêmeras.
Enfocamos também a noção de modernidade conceituada por Baudelaire nas
obras Sobre a Modernidade: o Pintor da Vida Moderna (1996) e As Flores do Mal
(2007), nas quais o poeta afirma que a arte é a única possibilidade de viver e ter acesso à
experiência com o moderno. Ele concebe a modernidade como uma ruptura com os
padrões da antiguidade. A beleza da arte não se opõe à beleza antiga, a qual também
está presente na moderna. Segundo esse teórico, cada época tem seu encanto e uma das
funções do artista é retirar do seu momento histórico e da moda atual o que tem de
eterno, a fim de alcançar a essência do belo. O transitório é o que assegura a obra como
moderna, prevalecendo a subjetividade e a sensibilidade do artista ao invés do próprio
fazer.
Seguindo a linha da modernidade, utilizamos as ideias interconectadas às noções
de modernidade líquida, de Zygmunt Bauman (2001). Na obra Modernidade Líquida, o
sociólogo baseia o seu conceito de que nessa nova modernidade o núcleo capitalista se
mantém, porém com uma lógica diferente. Essa modernidade é fluida, líquida e veloz,
bem mais dinâmica que a modernidade anterior (a sólida). O líquido sofre constante
mudança e não conserva a sua forma por muito tempo. Essa sociedade moderna e
líquida não se fixa a um espaço ou tempo, sempre dispostos a mudanças, e algumas
14

certezas e a sensação de controle sobre o mundo que existia anteriormente, foram


dissipadas.
Reportamos a Merleau-Ponty (1999), que baseia a sua fenomenologia como o
estudo das essências e à factidade do homem, isto é, à sua existência no mundo e a
dificuldade para reencontrar este mesmo mundo. Não somos simplesmente um corpo,
contudo um corpo consciente do mundo que se desdobra diante de nós, e por isso nossas
experiências buscam esse universo constantemente. Ter consciência de nosso corpo é ter
consciência de nós mesmos.
A teoria de Deleuze, na obra Cinema 1: A Imagem-Movimento (1985), nos
auxilia a respeito do entendimento da questão do movimento em obra de arte,
contrastando com a forma cartesiana, na qual prevê a reprodução exata do tempo,
diferentemente das obras corpus em que a captura do movimento é o foco principal.
Segundo Deleuze, a modernidade traz inúmeras mudanças e, uma delas. é que no
passado a imagem de um movimento possuía um caráter muito mais singular do que na
modernidade. O movimento sempre se refere a uma mudança qualitativa.
A teoria de Rosenthal, na obra O Universo Fragmentário (1975), é usada a fim
de enfatizar que a obra de arte moderna tornou-se multiforme, fragmentária e com
diversas facetas. Ela acolhe o caos, a ruptura e se aproxima do insólito.
Bachelard, na obra A poética do Devaneio (2006), teoriza sobre o devaneio, o
qual não conta histórias e pode nos levar ao mais profundo de nós mesmos e nos
proporcionar a busca do redescobrimento de nosso interior. O ser em devaneio atravessa
sem envelhecer todas as idades do ser humano, além de quando ele está voltado para a
infância ter a capacidade de nos levar a reproduzir a beleza das imagens da primeira
fase da vida. De acordo com as considerações de Bachelard (2006), a imaginação é algo
que concebe forma às imagens, e o devaneio onírico não se encontra ao lado das coisas
palpáveis, mas do sentimento. O devaneio poético oportuniza a descoberta da
verdadeira essência das coisas, pois por meio dele, podemos evocar novos mundos.
Na obra As Palavras e as Coisas (1999), Michel Foucault realiza uma sondagem
minuciosa a respeito da linguagem e o seu “suposto” desenvolvimento, e de quanto o
sujeito e a linguagem estão intrinsicamente ligados. Segundo o teórico, na fase da
Modernidade desaparece o discurso e surge o contra-discurso, que é um discurso oposto
ao que estava presente até o momento, ou melhor, já não há mais discurso e sim uma
15

ausência do dizer. O homem passa a ser o senhor da linguagem, contudo é uma


linguagem que remete ao próprio ser e direcionada ao infinito.
A metodologia para essa pesquisa está pautada numa apreciação relacional entre
a prosa poética Na Floresta do Alheamento de Fernando Pessoa e algumas pinturas de
Salvador Dali, examinando a linguagem artística com o intento de evidenciar o
entrelugar em que essas obras se encontram, ou seja, a passagem da modernidade para a
contemporaneidade. Pretendemos demonstrar que tanto a prosa poética Na Floresta do
Alheamento e as pinturas de Dalí mostram-se fluidas, fragmentadas, devaneantes,
paradoxais, sensitivas e de plena embriaguez.
No primeiro capítulo, traçamos o percurso da dissimulação ao absurdo na obra
Na Floresta do Alheamento. São comentadas teorias que tratam da arte como
dissimulação que permeia a obra pessoana, em que o eu ficcional é dupla dissimulação
do autor personagem e do autor real. Também abordamos o tema da arte como
devaneio, em que o eu lírico poetiza suas angústias e seu tédio por meio do devaneio.
Focalizamos Deleuze para tratarmos da arte como Movimento e Fragmentação, em que
tentaremos demonstrar como o movimento dá a ideia de mobilidade e deslocamento na
arte pessoana. Essas três características: dissimulação, devaneio e movimento são de
suma importância até chegarmos à arte do absurdo, que será tratada no segundo
capítulo.
No segundo capítulo abordamos como se dá em Na Floresta do Alheamento a
travessia da prosa poética da (dis) simulação ao absurdo. Enfatizamos o entrelugar, um
terceiro espaço que desloca sentidos e faz emergir novos significados. É um lugar
intersticial, de travessia. Para isso, empregamos as teorias de Bhabha (1998), o qual
afirma que no entrelugar os polos se encontram diluídos, gerando uma atmosfera de
instabilidade e constante mudança. Estar no além significa habitar um espaço
intermediário, nem um novo horizonte e nem um abandono ao passado.
Complementando esse pensamento Hanciau (2005), declara que uma terceira margem é
um caminho do meio, que consiste em procedimentos de deslocamento e nomadismo. O
entrelugar é o produto da capacidade imaginária de reconfigurar a realidade.
Em seguida, tomando como referência as considerações de Baudrillard (1991)
realizamos uma explanação sobre o conceito de simulação e dissimulação, a fim de
comprovar que a prosa poética analisada encontra-se num estado dissimulativo, pois
16

Pessoa cria uma poética do fingimento, de forma a perder o vínculo com o real por ele
criado.
Posteriormente o estudo versa sobre a estética do absurdo, que reforça o
movimento da arte, e gera uma espécie de dupla dissimulação, do eu fictício sobre o
fazer poético. Para tal intento, usamos a teoria de Albert Camus (1965), a qual
estabelece um vínculo entre o absurdo e a modernidade. Dessa forma, pretendemos
demonstrar como o absurdo na perspectiva da filosofia de Camus contribui para a
compreensão do absurdo pessoano.
No terceiro capítulo discorremos sobre as pinturas de Dalí que se inserem no
movimento surrealista, e mostram-se fragmentárias, devaneantes, oníricas, bizarras,
insólitas e fantásticas. Destarte, utilizamos também dessa última parte da pesquisa para
enfatizarmos o aspecto relacional entre as pinturas dalinianas e a prosa poética
pessoana. Aplicamos as teorias de Rosenthal (1975), no intuito de enfatizar o caráter
fragmentário das obras de arte analisadas. Similarmente, seguimos as teorias de Ades
(1976), Nadeau (1985), Breton (2009) e Teles (2012), para embasar os estudos
referentes ao surrealismo. Hocke (1974) alicerça a hipótese de que as pinturas e o texto
poético possuem um estilo autônomo, uma nova sensibilidade e uma atitude espiritual
bem original.
Dessa forma, esperamos que nossa pesquisa seja relevante no intuito de
demonstrar teorias sobre arte modernas e contemporâneas e como elas se aplicam às
obras artísticas. Não almejamos ter todas as respostas, mas suscitar questionamentos e
inspirar diversos campos problemáticos que façam pensar o mundo e a arte. Esta vista
não como uma representação da realidade, mas expressa por meio de recursos
composicionais, constituindo um local de pura expressão da interioridade e
subjetividade do artista, em que a obra de arte se nega a parecer com o mundo real e a
ter uma feição única.
17

1. A OBRA DE ARTE COMO PROCESSO DE FLUIDEZ SENSITIVA

Um vento sopra cinzas de propósitos mortos sobre o que eu sou de desperto.


Cai de um firmamento desconhecido um orvalho morno de tédio. Uma
grande angústia inerte manuseia-me a alma por dentro e, incerta, altera-me,
como a brisa aos perfis das copas.
FERNANDO PESSOA

Este capítulo se refere à obra de arte como fluidez sensitiva e está relacionado à
dissimulação, devaneio, movimento e fragmentação, e subdivide-se em Arte como
Dissimulação; Arte como Devaneio e Arte como Movimento e Fragmentação.
Discorremos sobre a dissimulação, que remete à sedução, ao fingimento, à ocultação.
Fernando Pessoa, no texto Na Floresta do Alheamento, constitutivo no Livro do
Desassossego, idealiza um eu-lírico imerso em uma dupla dissimulação: do autor real,
que se deixa esconder no autor ficcional e este, por sua vez, produz-se por meio de um
discurso totalmente fingido e sedutor, o qual perde o vínculo com o mundo real. Em
decorrência dessa nova realidade, surge um real figurativo, dotado de virtualidade.
Assim, a arte sai do real imaginado para o universo virtual criado pela obra de arte, que
são formulações do fingimento. O devaneio também está presente na obra, que insinua
um mundo irreal possível. Pessoa consegue nos transportar para um mundo devaneante,
fluido, leve e áspero, paradoxal, sensitivo e de plena embriaguez.
A prosa poética Na Floresta do Alheamento nos traz uma gama de imagens, de
signos alegóricos: dos sonhos, da imaginação, do mundo mágico, do fantástico, do
absurdo, do inconsciente, do inimaginável, do espaço vazio, etc. Todos e tudo nos
conduzindo para o transestético1. Este é um transespaço, pois que a obra navega no
entrelugar, na escrita do (ini)imaginário artístico em estado de liquidez, na qual não há
uma preocupação com a verdade. Os elementos presentes nas obras se metamorfoseiam,
tornam-se, às vezes, abruptamente, em novos signos-imagens, diferentes dos usuais. O
devaneio poético nos leva à visão da absurdez.

1
O transestético- Segundo Lipovetsky e Serroy, 2015, esse termo caracteriza-se por ser um universo de
superabundância ou de inflação estética em que se mesclam o saber, a inovação, a imaginação. Vivemos
um tempo plural em que tudo é possível, em que tudo pode coexistir, se superpor, se misturar como num
grande bazar caleidoscópio. É a época da interpenetração dos papéis artísticos e comerciais, midiáticos e
financeiros. Nessa nova era um sistema de justificação moral foi substituído por uma legitimação de tipo
estético, que valoriza as sensações, as fruições do presente, o corpo de prazer, a leveza da vida
consumista. Nesse mundo transbordante de imagem, o transestético cria a beleza em excesso e uma
estetização hiperbólica da aparência humana.
18

Destarte, a arte poética encontra-se fora do mundo da racionalidade e abre-se


para o mundo onírico, entre o surreal e o transestético. O texto intriga-nos, incita-nos e
nos instiga, de modo a criar um espaço em que o “eu” e o “mundo” se fundem e tornam-
se apenas um. A imagem presente no texto, ao produzir o devaneio, sugere renomeação
do mundo, de maneira a nos conduzir aos primeiros anos de vida, às primeiras cores
visualizadas e ao mundo da infância. A lembrança dessas imagens nos auxilia a criar um
novo mundo e a acreditar nele. A infância não se submete ao significado das coisas
dado pelo mundo, ela ressignifica o mesmo, atribuindo-lhe um novo significado.
O texto Na Floresta do Alheamento possui um movimento e também um
deslocamento, os quais se fundem com a fluidez. Esta é algo que não se prende, não se
fixa, desliza facilmente e tem facilidade em movimentar-se. A imagem torna-se um
movimento e um movimento é uma imagem. Na prosa poética verificamos que cada
imagem fornecida por Pessoa torna-se um movimento leve e líquido, o qual leva à
mutabilidade do ser humano. Os fluidos possuem grande mobilidade e grande
inconstância, o que dá uma ideia de leveza.
A obra de Pessoa é um texto fluido, descontínuo, que evoca a ruptura entre o
velho e o novo. No mundo fluido já não há mais nenhuma certeza, não há mais nenhum
tipo de controle e nenhuma ordem; os espaços já não são mais fixos, são moventes. O
mundo sempre está em estado de transição, por isso, cada época tem sua beleza
particular, cuja percepção deve se dar na fugacidade de um instante. Na modernidade o
mundo tende a ser flutuante, e Pessoa conseguiu compor uma obra com uma realidade
flutuante, a qual se manifesta em articulações multiformes, imprecisas, dardejantes e
com diversas facetas. Não há uma linearidade em sua prosa poética, apenas fragmentos
ilógicos, os quais serão organizados pelo leitor. Há uma ruptura com a homogeneidade,
e a prosa poética surge como um texto heterogêneo.
A linguagem pessoana é nova, fragmentada e surge de formas variadas. Ela
transfigura-se numa realidade criada pelo eu ficcional, vindo a ser ao mesmo tempo
material de criação literária e a realização poética em si mesma. Há um aniquilamento
da sequência lógica das orações, a natureza é indefinível, e há um rompimento da
unidade da obra por meio de sonhos, ideias fantásticas, reflexões e trechos das frases
que aparecem sob a forma de estilhaços de pensamentos.
De modo semelhante, a percepção é primordial na escrita de Pessoa, pois ela nos
remete ao sentir, que é o que permeia toda a prosa poética. Pessoa constrói uma arte
19

como ato do “sentir”, a qual gera sensações nos cinco órgãos dos sentidos,
possibilitando-nos interagir com o mundo construído pela obra. Os órgãos dos sentidos
consistem em um conjunto de órgãos responsáveis pela recepção dos estímulos
sensoriais. Eles nos permitem perceber tudo o que nos rodeia, e nos possibilitam
apreender a sensibilidade no texto Na Floresta do Alheamento.
A arte poética pessoana situa-se na transição da modernidade para a
contemporaneidade. Baudelaire (1995) associou o termo “modernidade” à missão
contemporânea da arte. Para ele, o homem do mundo é aquele que está alerta, com
olhos de águia, no intuito de sempre observar os pequenos detalhes, as menores coisas.
A arte seria uma constante busca pelo novo, uma infindável procura pelo fugitivo e pelo
original. Na concepção baudelairiana, à modernidade associa-se sempre o
transformador, o inovador, o original, aquilo que tenciona transformar um conceito
anterior. Para Baudelaire o moderno é o efêmero, o passageiro, o contingente.
Baudelaire nomeia o artista como “homem do mundo” (1996), que é aquele
observador que se interessa e aprecia por assuntos de todo o mundo, além de conseguir
retirar do seu momento histórico o que tem de poético, e dessa maneira, retira do
transitório o que tem de eterno, a fim de alcançar a essência do belo. De um lado, a
modernidade seria o transitório, o efêmero, o circunstancial; e de outro o eterno e o
imutável. Segundo esse estudioso, a modernidade teria de retirar a beleza misteriosa da
vida e do presente para que possa ser digna de se tornar antiguidade. Cada época possui
sua própria beleza, e o belo sempre encontra satisfação na época inscrita e na
formalização estética do momento de sua representação. Sendo assim, Pessoa, em Na
Floresta do Alheamento consegue retirar do transitório o eterno alcançando a essência
do belo, e alicerçando o seu real poético em sua própria escritura.
Ampliando um pouco o conceito de modernidade, o sociólogo polonês Zygmunt
Bauman, na obra Modernidade líquida (2001), inicia sua obra teorizando sobre a
liquidez, que se conjuga com o sentido de fluidez e se relaciona ao desapego, ao
transitório e ao acelerado processo de individualização, à mobilidade e à inconstância.
Na “fluidez” e na “liquidez” há uma incapacidade de se manter a forma. De modo
paralelo, a modernidade fluida produziu uma imensa mudança na condição humana. O
indivíduo novamente se tornou nômade e não tem lugar pré-definido. Na modernidade
leve (modo como Bauman nomeia essa “nova” modernidade), o transitório prevalece
sobre o durável, pressupondo um mundo sem obstáculos e muros.
20

De forma semelhante, a arte pessoana rompe com o padrão e derruba barreiras,


criando uma arte sem fronteiras. Há duas características que fazem dessa nova forma de
modernidade, nova e diferente: uma delas é o fim da crença de que há um fim no
caminho em que seguimos, na convicção de que alcançaremos uma sociedade justa e
sem conflitos, na satisfação de todas as necessidades e que temos completo domínio
sobre o futuro. A segunda característica é que as tarefas que eram consideradas da razão
humana passaram a ser individualizadas, a responsabilidade passa a ser individual.
A arte pessoana, apesar de não estar inserida nessa contemporaneidade vivida
por Bauman, ela se caracteriza por estar numa fase de transição entre a modernidade e a
contemporaneidade e se configura como uma arte caótica, liquefeita, autônoma, que
existe por si só. Verificamos uma obra com alto poder de mutabilidade, ela não se fixa e
não se molda.
A modernidade líquida é um mundo múltiplo, complexo e rápido. O espaço não
impõe mais limites à ação e seus efeitos. A quase instantaneidade do tempo anuncia a
desvalorização do espaço. Segundo Bauman, “A instantaneidade faz com que cada
momento pareça ter capacidade infinita; e a capacidade infinita significa que não há
limites ao que pode ser extraído de qualquer momento- por mais breve e ‘fugaz’ que
seja.” (2001, p.158). Essa nova instantaneidade muda radicalmente as relações
humanas, pois que, também, não há nelas mais durabilidade, o que resta são incertezas
diante de tudo na vida.
No texto de Fernando Pessoa, a cidade sugerida por Baudelaire, em As flores do
mal (2007) reaparece liquefeita, remetendo ao máximo à mutabilidade. Isto conjuga a
força motriz da modernidade pelas mudanças ocorridas na vida urbana, advindas dos
desdobramentos da revolução industrial. Nas ruas de Paris surge uma super-população,
na qual, as pessoas se esbarram a todo momento. Além de surgir rápidas mutações
sociais e arquitetônicas. A vida das pessoas se dá em meio a muito movimento, e a
cidade muda o modo de vida e a sensibilidade das pessoas. Apesar de todo esse frenesi
na agitada cidade totalmente transformada, a solidão do homem nunca antes havia sido
tão intensa, e ocorre o seu esfacelamento no tempo e no espaço. É na cidade que o
tempo se fragmenta e se impõe, e ela aparece como uma ameaça latente para o homem.
Baudelaire sempre teve consciência de que a atribuição do artista não é se esquivar
dessa angústia originada por tais mudanças, mas aproveitá-la e utilizá-la como objeto.
21

Sob essa concepção, a arte passa a ser um modo de transformação, e não mais de
representação ou simples expressão.
De modo semelhante Pessoa, em sua obra, demonstra esse esfacelamento do
tempo e do espaço. Ambos se unem e se confundem, a fim de construir uma obra
fragmentada e desconexa e que revela uma nova linguagem que surge com a vida
moderna.
Tínhamo-nos esquecido do tempo, e o espaço imenso empequenara-se-nos
na atenção. Fora daquelas árvores próximas, daquelas latadas afastadas,
daqueles montes últimos no horizonte haveria alguma coisa de real, de
merecedor do olhar aberto que se dá às coisas que existem?... (PESSOA,
2011, p.456).

Não há mais um espaço fixo e sólido, o espaço do eu artístico que encontramos


na obra Na Floresta do Alheamento, é um espaço vacilante, instável, hesitante e
inconstante. É um lugar sem lugar, que está inserido numa linguagem infinita que existe
voltada para si mesma, a qual se refere ao próprio ato de escrever, que quer confirmar
sua existência, se autoafirmando que simplesmente “é”. O eu ficcional consegue utilizar
as palavras de forma que elas se desdobrem, bifurquem e suspendam o código de onde
foram retiradas, assumindo nova significação.
A obra de arte também acompanhou esse fenômeno da modernidade líquida e
fluida. Houve uma desnaturalização da obra de arte, porque ocorreu uma
desobjetificação dos objetos. A modernidade surge trazendo obras de arte com
fragmentação de assuntos e plurifacialidade semântica, isso se dá porque não há mais
uma base sólida. Tudo flui, tudo é movente e se dissolve. Atualmente, a arte apresenta
um alto grau de abstração, de desligamento das coisas práticas do mundo. A arte já não
possui um espaço físico, concreto, sólido, mas um espaço virtual, metafórico. Segundo
Langer: “Sendo unicamente visual, esse espaço não tem continuidade como o espaço
em que vivemos, ele é limitado pela moldura, ou pelos vazios que o circundam, ou
outras coisas incongruentes que o isolam.” (2011, p.77). O espaço comum é destruído,
transfigurado pelo espaço artístico, o qual é dotado de expressividade, de ato perceptivo
e de autossuficiência.
A obra de arte tem uma forma e vida interior. Podemos identificá-la pelo corpo,
que nos permite perceber o paradoxo da percepção. Merleau-Ponty, diz que “Essa
revelação de um sentido imanente ou nascente no corpo vivo se estende a todo o mundo
sensível, e nosso olhar, advertido pela experiência do corpo próprio, reencontrará em
todos os outros ‘objetos’ o milagre da expressão.” (1999, p.268). O sentir é o resultado
22

do sensível e do inteligível. E diante de uma obra de arte, o que prevalece é o mundo


dos sentidos, pois o mundo lógico desaparece. Todo o saber se instala nos horizontes
abertos através da percepção. A sensação nos encaminha para uma nova compreensão,
tanto da sensação quanto do próprio sensível. Para entendermos essa sensibilidade
diante de uma obra de arte, é necessário termos consciência da importância do sentir.
Para Merleau-Ponty,

O sensível não apenas tem uma significação motora e vital, mas é uma certa
maneira de ser no mundo que se propõe a nós de um ponto do espaço, que
nosso corpo retoma e assume se for capaz, e a sensação é literalmente uma
comunhão (1999, p.286).

A relação entre o sujeito da percepção e o mundo percebido é de expressão, ela se


estabelece do interior do próprio mundo. Sempre há uma troca entre o sujeito da
percepção e o sensível. A sensação é sempre intencional. Para Merleau-Ponty, o nosso
corpo é carregado de subjetividade, e é recortado pela historicidade.

A cada instante também eu fantasio acerca das coisas, imagino objetos ou


pessoas cuja presença aqui não é incompatível com o contexto e, todavia, eles
não se misturam ao mundo, eles estão adiante do mundo, no teatro do
imaginário. (Idem,1999, p.6).

Dessa forma, a realidade do corpo nos permite sentir e perceber o mundo, as


pessoas, e tudo o que o rodeia. Ela também nos permite imaginar, desejar, sonhar,
escolher. A expressividade do corpo possibilita a reflexão e a existência da presença do
ser no mundo. A prosa poética de Fernando Pessoa é uma obra de arte do sentir, a qual
reivindica todos os órgãos dos sentidos:

De vez em quando pela floresta onde de longe me vejo e sinto, um vento lento
varre um fumo, e esse fumo é a visão nítida e escura da alcova em que sou
atual, destes vagos móveis e reposteiros e do seu torpor de noturna. Depois
esse vento passa e torna a ser toda só ela a paisagem daquele outro mundo...
(PESSOA, 2011, p.455).

Dessa forma, visualizamos nos trechos: “me vejo”: o órgão da visão; “e sinto”:
que pode remeter ao tato, paladar e ao olfato; “um vento lento”: um som da natureza
que se refere à audição; “visão nítida e escura”: visão; O eu lírico está envolto em
percepções e sensações, visto que a arte nos desencadeia ao próprio processo criativo do
sentir.
23

Para Merleau-Ponty (1999), o objeto é sempre objeto para um sujeito; ele


sempre será um objeto pensado, percebido. Consciência e objeto não são duas entidades
separadas, eles se definem através de uma co-relação. Não há uma consciência separada
de um mundo para ser percebido, e não há objeto independente de uma consciência que
o perceba. Perceber um objeto é torná-lo significativo, e perceber uma obra de arte é
torná-la significativa. Toda percepção está associada à atitude corpórea, por isso a
experiência perceptiva é uma experiência corporal. A apreensão do sentido ocorre pelo
corpo. Merleau-Ponty, ainda fala que “A apreensão das significações se faz pelo corpo:
aprender a ver as coisas é adquirir certo estilo de visão, um novo uso do corpo próprio, é
enriquecer e reorganizar o esquema corporal.” (p.212). E a obra de arte se concebe
como um complemento de sentido, elaborado a partir de nossa experiência vivida, e é
isso que torna a mesma significativa para nós. Dessa forma, Pessoa consegue apreender
todos os sentidos que o corpo e a alma sugerem:

Nós roçávamos a alma toda vista pelo frescor visível dos musgos e tínhamos,
ao passar pelas palmeiras, a intuição esguia de outras terras... E subia-nos o
choro à lembrança, porque nem aqui, ao sermos felizes, o éramos... Carvalhos
cheios de séculos nodosos faziam tropeçar os nossos pés nos tentáculos mortos
das suas raízes... Plátanos estacavam... E ao longe, entre árvore e árvore de
perto, pendiam no silêncio das latadas os cachos negrejantes das uvas.
(PESSOA, 2011, p.456).

O poeta não somente apreende a percepção liberada pelo corpo, mas também,
trabalha o interior do eu lírico, conseguindo perceber o estado sensitivo da alma, de
forma a ter consciência de si e do seu processo artístico. Já não existe um tempo linear,
e os carvalhos se mostram “cheios de séculos”, como se armazenasse dentro de si todos
os instantes. A sensação da infelicidade e novamente o tédio também permeia esse
fragmento: “porque nem aqui, ao sermos felizes, o éramos...”, o que é reforçado pelos
“cachos negrejantes de uva”, remetendo à escuridão, às trevas e à obscuridade. A alma
do eu poético habita o corpo da própria arte, e ambos se amalgamam, tornando somente
uma coisa.
Segundo a perspectiva de Merleau-Ponty (1999), o corpo é essa capacidade de
produzir uma diferenciação no interior de um mundo indiviso, onde não precisamos
separar do mundo para nos relacionar com nosso corpo através da obra de arte. É no
interior do mundo sensível, do mundo sensorial, desse mundo espacial-temporal, que a
obra de arte é produzida. A obra de arte é uma diferença no interior desse todo que nós
24

habitamos. Isso é ser espacial e ser temporal. A nossa percepção diante dos objetos se
dá pela nossa experiência diante dos mesmos, e não pelo significado usual desses
objetos. Nós ressignificamos os objetos por nossas vivências e aprendizados. O corpo,
que é a própria obra de arte, é movimento, sensibilidade e expressão criadora. Segundo
Merleau-Ponty,

[...] o mundo é inseparável do sujeito, mas de um sujeito que não é senão


projeto do mundo, e o sujeito é inseparável do mundo, mas de um mundo que
ele mesmo projeta. O sujeito é ser-no-mundo, e o mundo permanece
"subjetivo", já que sua textura e suas articulações são desenhadas pelo
movimento de transcendência do sujeito. (1999, p. 576).

Assim sendo, o corpo é a dimensão da totalidade da obra. O eu poético se revela


por suas manifestações corporais. Os gestos revelam a interioridade das pessoas, porque
ele é a própria comunicação. A arte é a mediadora entre nós e o mundo. O eu criativo é
parte da tessitura da arte em que ele habita. O sujeito lírico, nesse contexto, está na arte
e a arte nele. Sob o mesmo ponto de vista, a prosa poética de Pessoa é construída
totalmente na arte do sentir, do perceber. Todos os órgãos sensoriais são despertados, de
forma a levar o leitor a um mundo sensitivo. Pessoa consegue ressignificar os
significados das palavras em sua obra, de forma a surgir significados totalmente
diferentes e plurais, de maneira a reforçar o universo sensorial por meio dos órgãos dos
sentidos. Sendo assim, o “corpo” em Na Floresta do Alheamento, é revelador da
consciência, ele é a própria consciência:

Sei que despertei e que ainda durmo. O meu corpo antigo, moído de eu viver,
diz-me que é muito cedo ainda... Sinto-me febril de longe. Peso-me, não sei
porquê... Num torpor lúcido, pesadamente incorpóreo, estagno, entre o sono e a
vigília, num sonho que é uma sombra de sonhar. (PESSOA, 2011, p.454).

Assim, o corpo é linguagem e exprime a sua angústia, ou a própria angústia do


fazer poético, de sua tessitura. O corpo do eu ficcional encontra-se antigo e moído de
tanto viver, porém ainda é muito cedo. Ele está febril, o que alude ao seu estado
delirante, devaneante, entorpecido, numa condição de torpor lúcido. O eu lírico
encontra-se num estado de transição do mundo real por ele criado, e o mundo artístico
que ele anseia, e dessa forma, nos proporciona imagens sinestésicas e repletas de
diversificados fragmentos significativos.
25

1.1 Arte como Dissimulação

Com o advento da modernidade e o uso das novas tecnologias, os seres humanos


passaram a conviver com uma multiplicidade de símbolos, de imagens, de signos, de
palavras e de opções. Atualmente, a simulação é a geração pelos modelos de um real
sem origem nem realidade: hiper-real (BAUDRILLARD, 1991, p.8). Ou seja, há uma
substituição dos signos do real, por simulacros do real. A obra pessoana cria realidades
novas e virtualizadas:

Com uma lentidão confusa acalmo. Entorpeço-me. Boio no ar entre velar e


dormir, e uma outra espécie de realidade surge, e eu em meio dela, não sei de
que onde que não é este... Surge mas não apaga esta, esta da alcova tépida,
essa de uma floresta estranha. Coexistem na minha atenção algemada as duas
realidades, como dois fumos que se misturam. (PESSOA, 2011, p.455).

O eu-lírico-ficcional cria um mundo (ini)imaginário, via linguagem poética do


fingimento, de forma a ocultar o existente no não existente, ou seja, dá vida ao não
existente, camuflando o existente. E, ao mesmo tempo, realizando o inverso – um jogo,
ininterrupto, do fingir e do simular. Ele cria imagens poéticas, imagens singulares
articuladas pelo ato da desautomatização. O eu poético se dissimula no eu da
personagem: “boio no ar entre velar e dormir”, e “eu no meio dela”. O eu real é
encoberto pelo eu escritura, que é um eu ficcional fingido, dissimulado, que cria o eu
real: “coexistem na minha atenção algemadas as duas realidades.” Aqui há uma
virtualidade que existe somente na escritura. Pessoa constitui uma arte que se baseia no
fazer. Uma construção que teoriza sobre si mesma, que evidencia o jogo dinâmico de
construção e que predomina o sentir, um jogo interminável, um movimento infinito: a
outra realidade surge, mas não apaga esta, e as duas realidades se embaralham e se
amalgamam, como dois fumos que se misturam.
Segundo Baudrillard, “Dissimular é fingir não ter o que se tem. Simular é fingir
ter o que não se tem.” (1991, p.9). Ou seja, a dissimulação é uma presença, e a
simulação é uma ausência. Fingir ou dissimular deixam intacto o princípio da realidade,
ou seja, a diferença continua a ser clara, mas ela está disfarçada. A simulação põe em
causa a diferença do verdadeiro e do falso, do real e do imaginário (BAUDRILLARD,
1991). Dessa forma, percebemos na obra Na Floresta do Alheamento, que o eu ficcional
dissimula de uma forma tão convincente, que já não conseguimos distinguir o que é
26

verdadeiro ou falso. No jogo entre o dissimular e o simular, o real se torna álibi de um


modelo irreal, o que sugere que o real ficcional se torna uma utopia, que não é algo da
ordem do possível, que não se pode acreditar e nem sonhar o possível. O mundo real é
trocado pelo mundo artificial. Há uma dissimulação anti-discursiva do sujeito lírico
sobre o fazer poético, e, assim, o eu-ficcional cria um jogo do fingimento, de forma a se
esconder no interior de sua arte, confundindo-nos, e não nos permitindo identificar se
ele se encontra no mundo real por ele criado, enquanto escrita, ou no mundo irreal do
surreal, ou ainda, no mundo do (ini)imaginário da escritura. Existe um eu que pertence
ao mundo onírico que se relaciona com um eu aparentemente real, inseridos num anti-
discurso totalmente fingido: “coexistem na minha atenção algemada as duas
realidades”.
Essa dissimulação remete ao simulacro que assinala o perfil da cultura da
modernidade. Ou seja, a imagem se tornou a forma final da coisificação, e ela
transfigura-se numa entidade discursiva independente, ou seja, um simulacro de uma
realidade vazia.
A realidade deixou de existir e passamos a viver a representação da realidade,
difundida na sociedade pós-moderna pela mídia. Vivemos em uma época cujos
símbolos têm mais peso e força do que a própria realidade, por isso é que surgem os
símbolos e as simulações do real. Fingir ou dissimular deixam intacto o princípio da
realidade: a diferença está apenas disfarçada. O eu lírico perdeu o vínculo com a
realidade e encontra-se num mundo onírico.
Na prosa poética Na Floresta do Alheamento, há o esvaziamento da realidade,
emancipando o signo de sua significação usual, e, dessa forma, a arte passa a constituir
uma imagem da imagem do real presumível. Dessa forma, passa a ser a arte do fingire.
O mundo exterior já não é o que aparenta ser, ele se metamorfoseia. Segundo
Rodrigues: “O que vejo não é a coisa, mas a imagem que dela vejo e recrio. Tudo são
personas. Não há mais o real. O mundo exterior é outra coisa.” (2007, p.91). A arte
também seguiu esse caminho, e passa a ser outra coisa e o seu vínculo encontra-se na
metáfora do aparente, do fingido, além da alegorização permitir que a palavra tome
significados totalmente diversos do significado original. Os signos têm mais
importância e mais eficácia do que a própria realidade. Dessa forma, surgem os
simulacros, que são simulações imperfeitas do real e que encantam os espectadores
muito mais do que o próprio real, conforme nos diz Baudrillard: “A simulação já não é a
27

simulação de um território, de um ser referencial, de uma substância. É a geração pelos


modelos de um real sem origem nem realidade: hiper-real.” (1991, p.8). A verdade foi
substituída por simulacros, e por isso perdeu-se o significado das coisas. Assim também
a prosa poética de Pessoa construiu novos significados, a partir da alegorização das
palavras.

Num torpor lúcido, pesadamente incorpóreo, estagno entre o sono e a vigília,


num sonho que é uma sombra de sonhar. Minha atenção bóia entre dois
mundos e vê cegamente a profundeza de um mar e a profundeza de um céu; e
estas profundezas interpenetram-se, misturam-se, e eu não sei onde estou
nem o que sonho. (PESSOA, 2011, p.454).

Realidade e irrealidade se emaranham de forma a se fundir (‘dois mundos’), e já


não mais sabemos distingui-las. A arte como dissimulação é corroborada pelo verbo
“estagnar”, o qual significa “deter, estancar, paralisar, imobilizar.” Dessa maneira, o eu
ficcional encontra-se no meio, no ponto de passam, no limiar do “sono e a vigília”, entre
o “real dissimulado e o irreal”, ou seja, entre o possível e o improvável. O entre evoca o
modo de fingir duplamente, e se caracteriza por um jogo artístico do fingimento, que se
oculta nas dobras da prosa poética, ou seja, no próprio ato de criar. Segundo Rodrigues:

Entre o concreto discursivo e a abstração do ideal aparente, entre as sombras


e seus reflexos nas profundezas do céu e do mar, entre o sono e a vigília,
geradores do dinamismo criador, a escritura do desassossego encontra o seu
ser na linguagem: aquilo que transita entre o absoluto e o relativo, entre o
silêncio e a palavra: uma articulação em que a intensidade do objeto poético
(emoções, percepções e imagens) é trazida pela linguagem e (re) trazida pela
consciência poética como uma nova postura estética da arte literária. (2007,
p.95).

Vale evidenciar que as profundezas do “céu” e do “mar” simbolizam a


imensidão e o movimento além de sugerir o abismo, o desconhecido, o inexplorado,
aparentando não ser aquilo que é, ou seja, dissimulando-se. No dicionário de símbolos,
o vocábulo “céu”, “foi considerado sempre assimilado ao princípio masculino ativo”
(CIRLOT, 1984, p.155). Além de ser considerado um espaço tridimensional, que
impede a penetração em outro mundo, sendo um hiperespaço. Enquanto “mar” indica
movimento, fonte de vida e final da mesma. (Idem, 1984, p.372). É aquilo que
dissimula e possui grande interioridade. Dessa maneira, em ambos os vocábulos há o
simbolismo da imensidão, da obscuridade, do desconhecido, aparentando não ser aquilo
que é.
28

Baudrillard afirma que “toda a nossa realidade tornou-se experimental” (1991,


p.7), a realidade na qual vivíamos deixou de existir, e, atualmente, vivemos a
representação e a simulação da realidade, a qual é difundida pela mídia na sociedade
pós-moderna. O real se tornou uma utopia, que não é algo da ordem do possível, que
não se pode acreditar e nem sonhar. Fingir ou dissimular deixam intacto o princípio da
realidade: a diferença está apenas disfarçada. A metafísica, ou seja, a crença num
mundo ideal, diferente do nosso, desaparece, porque a simulação faz desabar o andar de
cima da idealização humana. Isso ocorre porque a simulação já não é o real, e sim o
hiper-real. Conforme Baudrillard (1991), não existe simulação se não existir um modelo
fingido de realidade para ser explorado.
Na obra pessoana, o eu-lírico é dupla dissimulação do autor personagem e do
autor real:

Boio no ar entre velar e dormir, e uma outra espécie de realidade surge, e eu


no meio dela, não sei de que onde que não é este. [...] Surge mas não apaga
esta, esta da alcova tépida, essa de uma floresta estranha. Coexistem na
minha atenção algemada as duas realidades, como dois fumos que se
misturam. (PESSOA, 2011, p.455).

Duas realidades se mesclam, e já não é possível perceber qual se trata do mundo


onírico, e qual pertence ao mundo real criado pelo eu poético. Uma se correlaciona com
a outra, num jogo anti-discursivo que confunde o leitor, e o leva daquilo que se encontra
aparente e visível, ao indizível, às camadas internas do texto. A alcova é uma metáfora
que sugere passagem para outro estado da consciência, é um mergulho ao
subconsciente. Ele se encontra nessa alcova morna, frouxa, e está transitando para uma
floresta estranha, um local ignorado e ignoto.
Na modernidade, a linguagem tecnológica prevalece sobre a linguagem real, e
por isso, a mesma fragmentou-se e encontra-se fragmentada também na linguagem
literária. A obra de arte problematiza o olhar do outro e é polissêmica. “A
desmaterialização impulsiona o surgimento de simulacros que substituem o mundo real
por outro artificial, o qual, graças aos recursos de linguagem passa a se referir, cada vez
mais, a si mesmo.” (RODRIGUES, 2007, p. 89). Dessa forma, o próprio discurso se
autojustifica e se auto-alimenta, tornando a linguagem autônoma, com o esvaziamento
da realidade. Na obra de arte, o mundo exterior deixa de ser o que é e se metamorfoseia
29

na sua aparência, na sua imagem. A coisa não mais existe, mas sim, a imagem que dela
visualizamos, e dessa forma, já não existe mais o real.

Raiam na minha atenção vagos ruídos, nítidos e dispersos, que enchem de ser
já dia a minha consciência do nosso quarto... Nosso quarto? Nosso de que
dois, se estou sozinho? Não sei. Tudo se funde e só fica, fugindo, uma
realidade-bruma em que a minha incerteza soçobra e o meu compreender-me,
embalado de ópios, adormece... (PESSOA, 2011, p.460).

O eu-ficcional admite que um eu se funde a um outro eu, formando uma


realidade incerta e alvacenta. Já não existe mais nenhuma compreensão diante dessa
realidade que é apresentada. À vista disso, a arte encobre a vida real e a vida encobre a
arte, resultando num disfarce intenso. O eu poético multiplica-se em vários eus, de
forma a reforçar o encobrimento do seu eu, confrontando a verdade e a ilusão, o ser e
não-ser. Além de multiplicar-se, o eu poético fragmenta-se. Concomitantemente ao que
o eu poético afirma ser “nosso quarto”, ele declara que está sozinho, além de sua
incerteza submergir e decair. O seu compreender está sustentado por narcóticos, ou seja,
já não há convicção em mais nada. Nesse texto, há um autor real que existe somente no
tempo do texto e de sua leitura, que é construído pelo eu ficcional.
Pessoa consegue se dissimular no eu da personagem. Isto é, o seu “eu” fica
encoberto por outro “eu”, que é Bernardo Soares. Rodrigues, diz que o autobiógrafo do
Livro do Desassossego (obra em que a prosa poética Na Floresta do Alheamento está
inserida), é “uma ‘figura real fingida’, dissimulada em uma ‘personagem de ficção’,
expressa em um jogo discursivo fragmentário que vai do autor à obra e da obra ao autor,
do real ao fantasmagórico. Um autor que se transforma em sua obra e uma obra que é
revelação fingida de seu autor.” (2007, p.84). Por conseguinte, há uma escrita
dissimulada do eu ficcional e a linguagem passa a ser expressão do eu. Na Floresta do
Alheamento é uma arte que se consolida no fazer literário, na própria escritura. É uma
construção que teoriza o próprio fazer literário. Rodrigues enfatiza sobre a autonomia
do Livro do Desassossego:

O Livro, nesse contexto, goza de vida própria e tem sua própria legalidade
intrínseca: totalidade que não se repete em sua singularidade, independente
em sua autonomia, aberta porque dinamiza na sua montagem a atuação do
leitor, provoca, no outro, o desassossego; algo que nunca termina, que está
sempre por acabar, mas que, em essência, é. (PESSOA, 2007, p.84).
30

A obra pessoana é uma obra aberta, na qual o leitor é co-participante ativo, e


auxilia na construção da mesma. O leitor é colocado efetivamente como colaborador no
processo de construção do livro, no processo de preenchimento de lacunas, o que gera
angústias e incertezas, já que, geralmente buscamos respostas para tudo. A linguagem
poética dessa obra é desautomatizada, com um constante jogo de palavras sem nexo.
Pessoa se fragmenta em um poeta real e um poeta virtual, de forma que as palavras
formam contrastes semânticos, todos significativos de dissimulação.

Uma metade reflete a história estética da arte literária como escrita; a outra,
submersa, como a história de um autor real que se dissimula, sob a figura de
outro, ao narrar a própria vida e, consequentemente, o seu itinerário poético.
O que é mostrado é a figura, que aparentemente, finge o real.
(RODRIGUES, 2007, p. 103/104).

Por conseguinte, existe uma imagem que finge ser o real, e um real que finge ser
imagem, os quais se completam no fazer construtivo. O jogo artístico do fingimento
resulta naquilo que se esconde nas pregas da prosa poética, que é o próprio ato de criar.
Além disso, trata-se de uma escritura escorregadia, que se compõe através de um
complexo jogo de exterioridade e interioridade, mundo real e mundo virtual, resultando
em uma linguagem fragmentária, a qual sugere essa nova percepção da realidade.

1.2 Arte como Devaneio

A obra pessoana nos leva a um estado onírico, que se inicia desde o título: Na
Floresta do Alheamento. O próprio vocábulo floresta nos remete a uma brenha, a uma
selva, a algo desconhecido, a um lugar extenso, onírico, misterioso. Segundo o
dicionário de símbolos, o termo floresta “simboliza o aspecto perigoso do inconsciente,
quer dizer, sua natureza devoradora e ocultante (da razão). [...] a floresta contém toda
espécie de perigos e demônios, de inimigos e doenças.” (CIRLOT, 1984, p.257). Para
Chevalier (2002), a floresta permite provocar a chuva. Quando Yu-o Grande queria
atacar as montanhas cortava as árvores das florestas, para que elas não fornecessem
31

água. 2 Conforme Bachelard (2002), a água é considerada um ser transitório que se


metamorfoseia incessantemente, e funciona como um elemento das misturas. Ela traduz
experiências de fluidez e maleabilidade. Irrompe violentamente no mar em seus fluxos e
refluxos. A floresta de Pessoa possui essa liquidez e gera uma polissemia discursiva,
uma metamorfose significante, de maneira a nos conduzir a sombras movediças. O
poeta adentra o âmago mais profundo a fim de dar vazão às águas, encontrando dessa
forma, sua matéria, que é o elemento material que lhe proporciona substância. Sendo
assim, o fluir dessas águas é uma canção da liberdade de sua prosa poética e do próprio
eu artístico.
A floresta também gera angústia e serenidade, opressão e simpatia e é menos
aberta que a montanha, menos fluida que o mar, menos sutil que o ar, menos árida que o
deserto e menos escura do que a caverna, contudo é cerrada, enraizada, verdejante,
umbrosa, nua, múltipla e secreta. Por sua obscuridade e seu enraizamento profundo, a
floresta simboliza o inconsciente.
Segundo o dicionário Aurélio, o vocábulo “alheamento”, quer dizer: “provocar
perturbação intensa, tornar-se alheio ou indiferente a tudo, ficar fora de si”. Além de nos
transportar ao mágico, desconhecido, invisível, imaginário. À vista disso, o leitor já se
percebe inserido num mundo delirante, devaneante. No entanto, o alheamento não
significa, na obra, alienação, pois que não remete à ausência, à fuga, mas ao embrenhar-
se no desconhecido e dele fazer parte, semelhante ao devaneio. O vocábulo alienação,
segundo Abbagnano (2007), já alude à perda de posse, de um afeto ou dos poderes
mentais, sendo o processo em que o homem não mais se reconhece.
O termo floresta do alheamento sugere um movimento aéreo liberador.
Bachelard, em seu livro O Ar e os Sonhos (2001), afirma que o ar é o elemento que na
linguagem age diretamente ligado à imaginação poética, a qual deforma as imagens
fornecidas pela percepção, livrando-a das primeiras impressões. Na obra de arte, as
palavras que se despontam, iniciam um novo voo poético. “Cada objeto contemplado,
cada grande nome murmurado é o ponto de partida de um sonho e de um verso, é um
movimento linguístico criador.” (BACHELARD, 2001, p.5). Sendo assim Na Floresta
do Alheamento, possui esse movimento de pura criação, visto que os termos superam a

2
De acordo com estudos do Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia, uma árvore com copa de dez
metros de diâmetro pode bombear para a atmosfera mais de trezentos litros de água em forma de vapor
por dia. Uma árvore maior, com copa de vinte metros de diâmetro, pode evapotranspirar mais de mil
litros por dia, bombeando água e levando chuva a diversos lugares.
32

realidade restrita do percebido. Estamos diante de um processo polissêmico produzido


pela relação entre a linguagem padrão e a poética. Nessa arte poética, o vocábulo
floresta remete à penumbra, à imagem, ao mundo onírico e à poesia que se distancia do
mundo real.
Bachelard, em sua obra A poética do devaneio, (2006), mostra a importância do
método fenomenológico, o qual nos leva a tentar a comunicação com a consciência
criante do poeta. Para o escritor, o devaneio é uma fuga para fora do mundo real, e nem
sempre encontra um mundo irreal sólido, consistente. Todos os sentidos despertam e se
harmonizam no devaneio poético. O devaneio para Bachelard:

Para comunicá-lo é preciso escrevê-lo, escrevê-lo com emoção, com gosto,


revivendo-o melhor ao transcrevê-lo. [...] O devaneio é um fenômeno
espiritual demasiado natural-demasiado útil também para o equilíbrio
psíquico- para que o tratemos como uma derivação do sonho, para que o
incluamos, sem discussão, na ordem dos fenômenos oníricos. (2006, p.7/11).

Quando o devaneio vem exacerbar o nosso repouso, ele contribui para aumentar
a nossa felicidade e, assim, ele cumpre seu verdadeiro destino, que é tornar-se um
devaneio poético. A prosa poética de Pessoa estabelece ao mesmo tempo o sonhador –
de ficção (Bernardo Soares) e seu mundo, o qual é inatingível, irreal. Ele utiliza uma
linguagem onírica e poesia singular, o que comprova a ruptura com o posto em arte até
então. Segundo Bachelard,

O devaneio poético nos dá o mundo dos mundos. O devaneio poético é um


devaneio cósmico. É uma abertura para um mundo belo, para mundos belos.
Dá ao eu um não-eu que encanta o eu sonhador e que os poetas sabem fazer-
nos partilhar.” (2006, p.13).

O devaneio nos liberta do mundo real e nos leva para o irreal, de forma que o
real é absorvido pelo imaginário. Neste universo já não existe o não-eu, pois ele já se
consolidou como escritura. Tudo é acolhimento. A obra de Pessoa é acolhimento, é um
mundo virtualizado. As imagens que o texto compõe e as palavras, as quais estão vivas,
fazem florescer algo novo e oferecem uma beleza única e inédita. O devaneio é
diferente do sonho stricto sensu, uma vez que este continua sobrecarregado das paixões
mal vividas na vida diurna, além disso, ele pode desorganizar uma alma. A solidão
vivida no sonho stricto é uma solidão estranha, agressiva, enquanto os devaneios
33

cósmicos ou poeticamente oníricos colocam-nos num estado de placidez, segurança e


pode até mesmo ajudar a alma a gozar de um sereno repouso.
Conforme Bachelard:

O devaneio vivido no sossego do dia, na paz do repouso do ser em repouso- o


devaneio verdadeiramente natural-, é a potência mesma do ser em repouso. É
verdadeiramente, para todo ser humano, homem ou mulher, um dos estados
femininos da alma. (2006 p.19).

Em todo psiquismo, seja o de um homem ou de uma mulher, existe um animus e


uma anima. O sonho noturno pertence ao animus e o devaneio pertence à anima, isso
porque o devaneio nos dá o verdadeiro repouso do feminino, a paz, que nos reconduzem
à infância. (BACHELARD, 2006). O ser em devaneio tem consciência de seu devaneio
e se sente feliz, diferente do ser em sonho, o qual não tem consciência e nem controle de
seu sonho. O devaneio liberta o homem e a mulher do mundo das cobranças, pois ele
caminha no sentido contrário de qualquer reivindicação. O devaneio do dia favorece-nos
com uma grande tranquilidade, consciente que contribui para um repouso relaxante. A
obra Na Floresta do Alheamento nos aproxima desse repouso que vem da anima:

E assim, o murmúrio das aves, o sussurro dos arvoredos e o fundo monótono


e esquecido do mar eterno punham à nossa vida abandonada, uma auréola de
não a conhecermos. Dormimos ali acordado dias, contentes de não ser nada,
de não ter desejos nem esperanças, de nos termos esquecido, da cor dos
amores e do sabor dos ódios. Julgávamo-nos imortais... (PESSOA, 2011,
p.45).

Pessoa consegue criar uma imagem que, a um só tempo, nos acolhe, nos afasta;
acalma, aflige; que nos conscientiza, desinforma; além de proporcionar o emprego de
todos nossos órgãos sensoriais. Nessa imagem, os dias já não se contam: “dormimos ali
acordados dias”, “de nos termos esquecidos”. O devaneio ainda proporciona ao eu
ficcional a sensação de ser imortal, pois a vida anterior foi abandonada e, no momento
presente o que importa é o mundo artístico, que lhe proporciona alegria e
contentamento. Na assertiva de Bachelard,: “O devaneio não é um vazio de espírito. É
antes, o dom de uma hora que conhece a plenitude da alma.” (2006, p.60). Os projetos e
as preocupações pertencem ao animus, ao sonho stricto, e à paz da anima, ao sonho
poético pertence o devaneio. O poder de assimilação da anima é enorme, porque
permite que as imagens poéticas originem o devaneio. Os verbos no pretérito imperfeito
(punham, julgávamos) remete a uma ação durativa, não limitada no tempo; um fato que
34

não foi completamente terminado, que alude ao passado, mas que dá a ideia de
continuidade. Esse é o devaneio que volta ao passado, que busca a infância e que parece
devolver vida às vidas.
Bachelard (2006), nos diz que existem dois tipos de leitura: a leitura em animus
e a leitura em anima. Dessa forma, uma obra em estado de anima, precisa de um leitor
que a leia nesse mesmo estado. Para Bachelard, “Sem dúvida, é com os devaneios da
anima que o poeta consegue dar a suas ideias de animus a estrutura de um canto, a força
de um canto.” (2006, p. 6). Ou seja, para conseguir ler o que um poeta escreveu imerso
em estado de anima, é necessário estar num estado de devaneio, de anima. Para
compreender a linguagem em estado de anima é necessário transmutar o sentido da
linguagem cotidiana, ou seja, dar vazão à linguagem metafórica. A prosa poética Na
Floresta do Alheamento nos revela uma imagem alegórica, uma metáfora do real. A
linguagem usual é ressignificada por um significado totalmente novo. Segundo
Bachelard:

Para quem gosta de sonhar na trama do animus e da anima, a leitura do livro é


como um alargamento do ser. Para quem gosta de perder-se na floresta da
anima, a leitura do livro é um aprofundamento do ser. A anima é sempre o
reduto da vida simples, aprazível, ininterrupta. Por isso, os devaneios ajudam-
nos a encontrar o repouso, e os melhores desses devaneios procedem de nosso
ser feminino (2006, p.84).

Existem aqueles devaneios, que, segundo Bachelard (2006), nos auxiliam a


descer tão profundamente em nós mesmos que propiciam que nos desembaracemos da
história, que nos libertam até mesmo de nossos nomes e nos devolvem à solidão da
infância, fazendo com que regressemos aos devaneios que nos abriram o mundo. Os
devaneios voltados para a infância nos fazem refletir sobre a solidão dos primeiros
tempos da vida nos levando a buscar a compreensão do que é devaneio, infância,
solidão. O fundamental é que o homem volte a sonhar como criança que um dia já foi, e
este é um convite feito pelos poetas, inclusive por Fernando Pessoa:

Quando emergíamos de repente ante o estagnar dos lagos sentíamo-nos a


querer soluçar... Ali naquela paisagem tinha os olhos rasos de água, olhos de
ser qualquer coisa, realidade ou ilusão – e esse tédio tinha a sua pátria e a sua
voz na mudez e no exílio dos lagos... E nós, caminhando sempre e sem o
saber ou querer, parecia ainda assim que nos demorávamos à beira daqueles
lagos, tanto de nós com eles ficava e morava, simbolizado e absorto... (2011,
p.459).
35

Simultaneamente, o devaneio provoca no eu lírico alento e desconforto, diante


do novo universo que se descortina. Sendo assim, ele e os outros “eus”, em que ele se
multiplicou, querem soluçar e tem os olhos rasos de água. Não existe um eu que
comanda os outros “eus”, pois cada um deles constitui um fragmento e uma passagem.
O autor real não tem uma fisionomia fixa. De um lado, há o autor ficcional, e do outro
há vários antidiscursos, de vários eus, conforme vimos no fragmento: “tanto de nós com
eles ficava e morava”. Percebemos em toda a prosa poética pessoana e nesse fragmento
também, a presença de verbos no pretérito imperfeito: “emergíamos”, “sentíamo-nos”
“demorávamos”; e verbos no infinitivo: “estagnar”, “soluçar”, “saber”, “querer”, o que
acentua a imperfeição da vida e remete à ideia de que nada é perfeito, nem acabado,
tudo é um vir a ser na medida em que são as sensações que conduzem o texto. Surgem
imagens fragmentadas e instantâneas que aparecem e desaparecem no meio das
reflexões, e reforçam o caráter devaneante da escritura.
Bachelard (2006), assevera que o sonho da noite rapta o nosso ser, porque ele
não nos pertence, ou seja, são sonhos sem sujeito. Já o devaneio é uma atividade onírica
e devaneante, porém se tem clareza de consciência. O sonhador de devaneio está
presente em seu devaneio. Mesmo quando se tem a impressão de que esse devaneio está
fugindo para fora do real, o devaneador, sabe que quem se ausenta é ele próprio. “As
imagens do devaneio do poeta cavam a vida, engrandecem as profundezas da vida.”
(Bachelard, 2006, p.149). Pessoa foge para fora do mundo real que ele mesmo criou, e
nos desvela um mundo irreal, imaginário, com múltiplos fragmentos significantes. No
dizer de Bachelard, (2006), a partir do momento que o sonhador de devaneios é
realmente autor da sua solidão, sem as preocupações cotidianas, ele abre-se para o
mundo e já não há uma contagem do tempo, porque o mesmo é submerso na profundeza
do sonhador e do mundo. No devaneio do poeta o mundo é imaginado e ele dá ao objeto
real o seu duplo imaginário, o seu duplo idealizado.
Do mesmo modo, a memória e a imaginação aliadas podem transformar o
racional e o imaginário, possibilitando ao adulto voltar a sonhar, devanear na sedução
da fantasia da infância. Quando a alma e o espírito estão unidos num devaneio, é através
dele que nos beneficiamos da união da imaginação e da memória. O poeta convida as
pessoas a voltar a sonhar como criança. A lembrança pura só pode ser reencontrada no
devaneio.
36

No nosso jardim havia flores de todas as belezas... - rosas de contornos


enrolados, lírios de um branco amarelecendo-se, papoilas que seriam ocultas se
o seu rubro lhes não espreitasse presença, violetas pouco na margem tufada dos
canteiros, miosótis mínimos, camélias estéreis de perfume... E, pasmados por
cima das ervas altas, olhos, os girassóis isolados fitavam-nos grandemente.
(PESSOA, 2011, p.456).

O eu poético nos fornece uma lembrança-imagem recheada de encantamento,


melancolia, reminiscência e sensações diversas. Ele nos proporciona o devaneio
poético, que se origina da anima. Além de nos oferecer imagens carregadas de
sensações que se misturam e uma miscigenação dos vários sentidos: “flores de todas as
belezas”; “rosas de contornos enrolados”, “girassóis isolados fitavam-nos.” Pessoa dá
ênfase nos vocábulos com sons nasais de forma a despertar mais ainda inúmeras
sensações: “jardim, contornos, enrolados, branco, amarelecendo-se, presença, margem,
canteiros, etc.”.
Há certos poemas ou obras de arte que tomam conta de nosso ser inteiro,
apossam-se de nós. Está além de um simples estado de leitura compreensiva do sentido
do texto, de contemplação da imagem; invadem-nos integralmente. Eu já não sou eu, eu
sou o outro e a obra de arte sou eu. Sou um leitor-emoção. Ao lermos Na Floresta do
Alheamento, confundimo-nos com o mundo. O eu e o mundo é somente uma coisa,
porque o texto invade-nos totalmente. O devaneio, diferentemente do sonho não se
conta, e ele nos proporciona momentos suaves e ao mesmo tempo instigantes; leves e ao
mesmo tempo momentos de angústia e aflição. É como se eu me abrisse para todas as
coisas, e conseguisse percebê-las e senti-las. O devaneio é uma fuga para fora do real, e
nem sempre encontramos um mundo irreal consistente. Os devaneios poéticos nascem
das forças vivas da linguagem, e liberta todo sonhador do mundo das reivindicações.
Ele caminha no sentido inverso de qualquer imposição. As imagens poéticas suscitam o
nosso devaneio, fundem-se a ele, tão grande é o poder de assimilação da anima. A obra
de Pessoa é como se fosse um sonho interior repleto de figuras irreais, sugerindo-nos
um mundo imerso no devaneio poético.
Na obra A poética do devaneio, Bachelard (2006), atribui à palavra sonho, uma
aura e um sentido masculino; e para a palavra devaneio, uma aura e um sentido
feminino. Este último é uma atividade onírica, porém que subsiste certa clareza de
consciência. Por isso, o poeta, que escreve sob a anima, encontra-se sonhando, porém
acordado. Bachelard afirma que:
37

A façanha do poeta no clímax do seu devaneio cósmico é a de constituir um


cosmos da palavra. Quantas seduções deve o poeta associar para arrebatar um
leitor inerte, para que o leitor compreenda o mundo a partir dos louvores do
poeta! […] O sonhador fala ao mundo, e eis que o mundo lhe fala. […]
Quando um sonhador fala, quem fala, ele ou o mundo? […] Sim, antes da
cultura o mundo sonhou muito. Os mitos saíam da Terra, abriam a Terra para
que, com os olhos dos seus lagos, ela contemplasse o céu. […] Nos devaneios
cósmicos primitivos, o mundo é corpo humano, olhar humano, sopro
humano, voz humana. […] A voz do poeta é a voz do mundo. (2006,
p.180/181).

De certa forma, a figura do escritor se associa à figura de um eu sonhador, cuja


voz emana de tempos atemporais, que é o próprio devaneio. A poética do devaneio
sugerida por Bachelard tende a abrir novas formas de compreensão para uma prática
fenomenológica e existencial, pois pode possibilitar que o ser humano estabeleça uma
relação viva consigo mesmo e com as outras pessoas, com base em sua própria
linguagem e de seu modo de expressar. Segundo Merleau-Ponty (1999), a fala e o
pensamento são dois momentos de um mesmo gesto, que só pode realizar-se através do
corpo. É por isso que esse filósofo afirma que “[...] para poder exprimi-lo em última
análise o corpo precisa tornar-se o pensamento ou a intenção que ele nos significa. É ele
que mostra, ele que fala." (Merleau-Ponty, 1999, p. 267). Nesse sentido, a linguagem
insere-se como uma das modalidades do gesto. A fala do outro sempre habita o nosso
corpo e vice-versa. Ainda segundo Merleau-Ponty:

[...] a fala não é o signo do pensamento, se entendemos por isso um


fenômeno que anuncia outro, como a fumaça anuncia o fogo. A fala e o
pensamento só admitiriam essa relação exterior se um e outro fossem
tematicamente dados; na realidade, eles estão envolvidos um no outro, o
sentido está enraizado na fala, e a fala é a essência exterior do sentido
(MERLEAU-PONTY, 1999, p. 247).

Nesse contexto, a linguagem de uma obra de arte, contribui para modificar o


sentido comum das palavras, das imagens, de modo a incorporá-las de um sentido novo,
autônomo, totalmente diferente do usual. Para Bachelard, a concepção de devaneio
poético está fundamentada numa concepção de linguagem. A linguagem dessa prosa
poética é expressa de formas variadas e fragmentadas, tomando um novo significado
instaurando uma nova percepção de mundo. De acordo com Rodrigues (2007), na prosa
poética Na Floresta do Alheamento há uma consciência do eu e de sua própria
realidade, porém ele prefere o mundo do sonho, do devaneio, através do refúgio da arte
38

de criar figuras e de viver no teatro do imaginário. Pessoa constrói uma arte do sentir,
das sinestesias, das sensações. Segundo Rodrigues:

Pessoa cria a arte autobiográfica do sentir, na qual coloca cada ideia, cada
coisa de modo em que é possível ver o visível do invisível no seu processo
não só de subjetivação, de um sujeito ficcional para um sujeito real e vice-
versa, mas também no da escritura para a escritura como obra de arte. O
discurso alegórico e o estilo do Livro refletem o invisível por meio de estados
capazes de se tornarem percepções, como tempo, espaço, natureza interior,
possíveis pelo poder de sentir, pela imaginação como meio de compreender
as coisas subjetivamente, sem, no entanto, desprezar o intelecto criativo. Por
isso, o sonho, para Pessoa, ultrapassa a realidade. (2007, p.139).

Assim sendo, as sensações do poeta são transformadas em imaginação, a qual


por sua vez, se transfigura em conhecimento, adquirido por meio do devaneio e do
absurdo, o qual é formado entre o lúcido e o difuso, criando uma linguagem aberta,
pluralizante, desconexa, desssemelhante, desarmônica, heterogênea, abrangente,
segmentária, descontínua e fragmentária. O ato de se fragmentar, verificado na obra Na
Floresta do Alheamento, torna a mesma infinita, interminável. A realidade dessa obra
encontra-se pautada na fantasia, no devaneio, no sonho e nas sensações. Esse processo
novo e polissêmico adquirido pela linguagem é produzido pela relação entre dois tipos
de códigos, que se discrepam e se interpenetram: a linguagem usual, que é a padrão e a
linguagem poética.

1.3 Arte como Movimento e Fragmentação

Pessoa elaborou uma arte que prima por uma linguagem fragmentária, por meio
da qual os elementos se reconfiguram e se ressignificam permanentemente. O mundo é
transformado por meio de um novo modelo expressivo e uma nova configuração em que
a escrituração artística se faz por um permanente movimento em cujo processo remete à
desreferencialização do signo e da própria imagem artística precedente. Esse
procedimento se aproxima daquilo que Rosenthal (1975) afirma sobre a nova arte
literária: [ela] enfoca, mescla e afeta estados da consciência e dos aspectos concretos do
mundo, mostrando uma realidade “flutuante”, a qual se manifesta em articulações
multiformes, imprecisas, dardejantes e com diversas facetas disformes e alógicas. Ou
39

seja, o escritor dessa arte literária reiventa a realidade enquanto escritura e forma de
sentir-arte. Desse modo, a prosa poética, Na Floresta do Alheamento, fulgura essa
“realidade” totalmente nova, a qual faz transparecer os novos efeitos de sentido
decorrentes das várias possibilidades inclusas na linguagem. Nela, ocorre uma escritura
policêntrica e polissemântica, que atua no interior da estrutura significante do signo-
imagem. A escrita-arte fala de si mesma de uma forma ressignificante, de maneira a
ultrapassar o espaço limítrofe entre o real e o ficcional e criar outro espaço, no qual
nada significa, onde nenhuma realidade existe, e no qual não há nenhum tipo de
representação. As formas tradicionais foram destruídas, a fim de surgir algo totalmente
novo:

A alcova vaga é um vidro escuro através do qual, consciente dele, vejo essa
paisagem... e a essa paisagem conheço-a muito, e há muito que com essa
mulher que desconheço erro, outra realidade, através da irrealidade dela.
Sinto em mim séculos de conhecer aquelas árvores e aquelas flores e aquelas
vias em desvios e aquele ser meu que ali vagueia, antigo e ostensivo ao meu
olhar, que o saber que estou nesta alcova veste de penumbras de ver...
(PESSOA, 2011, p.455).

Essa alcova finge ser o mundo real, criado pelo eu ficcional, por meio do qual
ele visualiza o mundo da arte, a própria escritura poética, que é a “outra realidade”. O
eu poético “erra”, que é uma forma de se transportar para outro mundo, que nega a
realidade criada pelo eu artístico. Nesse mundo poético, ele tem consciência da
realidade em que vivia, a qual ele conhece muito bem, e reconhece o quanto ela é
nevoenta, sombria. Seu ser ainda vagueia no mundo real, porém ele anseia pelo mundo
artístico. Nesse sentido, a obra de arte deixa de ser uma representação do real, e aponta
para outra realidade construída pela própria obra artística. Dessa maneira, Pessoa
consegue fazer com que a expressão ultrapasse os sentidos normatizados dos signos, a
fim de que eles assumam a força do significante em detrimento do significado único,
instaurando uma instabilidade comunicativa e uma semântica aberta.
Na obra Na Floresta do Alheamento existe uma proposital ruptura de limites
entre as formas de expressão e a escritura, o que delimita um espaço que cria uma
identidade do inespecífico. A arte pessoana se nega a ser encarcerada num único jogo de
regras e de enunciados prováveis, e passa a ocupar novos e diversos lugares. Lipovetsky
em seus estudos sobre a estetização do mundo, destaca que:
40

O capitalismo artista não criou apenas um modo de produção, mas favoreceu,


com a cultura democrática, o advento de uma sociedade e de um indivíduo
estético, ou mais exatamente, transestético por não depender mais do
estetismo à moda antiga, compartimentado e hierarquizado. (2015, p.30).

Apesar de Fernando Pessoa estar na transição do modernismo para o


contemporâneo, ele criou uma obra de arte transestética, pois ela extrapola as margens
de uma obra de arte específica, hierarquizada, linearizada, contínua. Ela é uma obra com
uma linguagem livre e desviante, que engendra um sentido novo e inédito.

E ei-la que, a irmos a sonhar falar nela, surge ante nós outra vez, a floresta
muita, mas agora mais perturbada da nossa perturbação e mais triste da nossa
tristeza. Foge de diante dela, como um nevoeiro que se esfolha, a nossa ideia
do mundo real, e eu possuo-me outra vez no meu sonho errante, que essa
floresta misteriosa enquadra... (PESSOA, 2011, p.458).

A floresta surge novamente, muito mais perturbada e triste que outrora; desponta
tênue, vaga, incorpórea e imprecisa, de forma a se esfolhar como um nevoeiro,
remetendo à obscuridade e ao inextricável. A floresta nos apresenta o mundo artístico
que perturba e confunde o eu lírico, mas que mesmo assim, ele almeja atingir
desesperadamente. O eu novamente surge múltiplo e fragmentado, conforme
observamos neste excerto: “surge ante nós outra vez, a floresta muita, mas agora mais
perturbada da nossa perturbação e mais triste da nossa tristeza”, de forma a reforçar o
sentido do encobrimento do eu, e a criar um universo totalmente fictício, tecido num
discurso que se desconstrói.
A linguagem dessa prosa poética é itinerante e nômade. Ela é muito mais do que
um simples instrumento de comunicação, pois ela própria transfigura-se em realidade,
vindo a ser ao mesmo tempo material de criação literária e a realização poética em si.
Além de comunicar algo para o leitor ela ultrapassa a si própria. Algumas características
dessa nova linguagem são: palavras fragmentadas, o aniquilamento de uma sequência
lógica, tempo e espaço colocados em dúvida, natureza indefinível, criação de
neologismos, redistribuição de elementos sintáticos, presença de sonhos, devaneios,
reflexões e trechos das frases que aparecem sob a forma de estilhaços de pensamentos.
Tudo isso em prol da construção de novos significados, os quais refletem de maneira
convincente essa nova realidade “flutuante”, que é um atributo do mundo moderno. O
progresso das possibilidades da estrutura das novas obras literárias tende a adaptar-se à
imagem do mundo, que se mostra cada vez mais incompreensível, dúbio e volátil. A
41

obra analisada é uma prosa poética fragmentária marcada pelos sentidos de palavras
contrárias e de paradoxos, os quais se misturam:

Num torpor lúcido, pesadamente incorpóreo, estagno, entre o sono e a vigília,


num sonho que é uma sombra de sonhar. Minha atenção bóia entre dois
mundos e vê cegamente a profundeza de um mar e a profundeza de um céu; e
estas profundezas interpenetram-se, misturam-se, e eu não sei onde estou
nem o que sonho. (PESSOA, 2011, p.454).

O vocábulo “torpor” nos remete a um estado indefinido, enquanto “lúcido” nos


dá ideia de lucidez, de consciência; “pesadamente”, vocábulo que alude a um estado
emocional sólido, consistente; enquanto “incorpóreo”, invoca algo intangível,
impalpável, leve. Dessa forma, a linguagem poética é intensificada, aniquilando a
sequência lógica das palavras, e construindo novos significados e gerando um senso de
movimento e simultaneidade, a partir dos paradoxos presentes: torpor e lúcido;
pesadamente e incorpóreo; sono e vigília. Pessoa utiliza de uma linguagem pura, que
fala somente de si mesma, e não se preocupa em expressar nenhuma realidade
preexistente. A própria linguagem forma o seu sistema de existência, visto que ela é
autônoma. À vista disso, o eu ficcional cria a sua própria realidade, o real poético, que é
a sua própria escritura.
Além disso, a prosa poética Na Floresta do Alheamento não apresenta uma
unidade e coerência de pensamento, apresentando frases e trechos que evidenciam
estilhaços de pensamentos, permeados por devaneios vividos pelo eu ficcional.

Na clepsidra da nossa imperfeição gotas regulares de sonho marcavam horas


irreais... Nada vale a pena, ó meu amor longínquo, senão o saber como é
suave saber que nada vale a pena...
O movimento parado das árvores; o sossego inquieto das fontes; o hálito
indefinível do ritmo íntimo das seivas; o entardecer lento das coisas, que
parece vir-lhes de dentro a dar mãos de concordância espiritual ao entristecer
longínquo, e próximo à alma, do alto silêncio do céu; o cair das folhas
compassado e inútil, pingos de alheamento, em que a paisagem se nos torna
toda para os ouvidos e se entristece em nós como uma pátria recordada – tudo
isto, como um cinto a desatar-se, cingia-nos, incertamente. (PESSOA, 2011,
p.456/457).

O eu ficcional constrói um texto de forma que todos nossos sentidos se


despertem e se inquietem, fazendo surgir os devaneios, nos quais há uma interferência
possível da consciência. O eu ficcional utiliza de palavras abstratas e de desconstrução
da linguagem a fim de reforçar o seu mundo delirante e fantasioso. As palavras
abandonam sua determinação inicial, adquirindo nova significação. A linguagem se
42

reduplica, se desdobra infinitamente a partir de si mesma, e ao mesmo tempo é também


uma linguagem de ausência. Por isso ela não quer dizer nada, ela simplesmente se
constrói a partir de si própria e se significa a si mesma. Cada palavra enunciada pelo eu
poético pode indicar e pressupor algo, visto que ela é uma linguagem única e bifurcada
ao mesmo tempo. O eu artístico nos diz algo em forma alegórica, nos apresenta uma
suposta “paisagem” recheada de paradoxos, além de nos abrir o mundo da arte, a
própria escritura poética, a qual é “um cinto a desatar-se”.
A alegoria3 revela a subjetividade como principio fundamental de constituição de
sentido, de maneira que as palavras tomem um novo sentido. Segundo Benjamin (1984),
na alegoria a coisa se transforma em algo de distinto. Através da coisa, o alegorista fala
de algo diferente, ela se converte na chave de um saber oculto, e como emblema desse
saber ele a venera. A alegoria liberta a coisa do seu aprisionamento num contexto
funcional, no qual, isolado ele não tem sentido próprio, porém o adquire quando faz
parte de um todo. Se a coisa for reinserida num novo contexto ela terá outro sentido. A
alegoria possui um forte poder destrutivo, fornecendo uma falsa totalidade às coisas, por
esse motivo, as coisas são apresentadas como fragmentos, os quais, apartados do seu
lugar natural, conseguem se reunir com outros fragmentos, de forma a originar um
sentido alegórico. A prosa poética de Pessoa é um texto alegórico, visto que o mesmo
apresenta-se recheado de inúmeros fragmentos, que são tirados do seu contexto original
e unidos a outro, formam novo significado. O que imaginamos se referir a paisagens
naturais: “movimento parado das árvores”, “sossego inquieto das fontes”, “entardecer
lento das coisas”, se relaciona à própria escritura poética, que se mostra como uma
tarefa angustiante, lenta e que causa imensa inquietude.
Assim sendo, juntamente ao processo alegórico surge um processo de
desconstrução, descontextualização e dessemantização. O professor Junkes, baseado
nos estudos de Benjamin, diz que:

3
Alegoria- Benjamin em seu ensaio-tese Origem do Drama Barroco Alemão (1984) realiza um estudo
sobre a alegoria, denominando-a como um modo específico de constituição de sentido que aparece sob as
condições do mundo histórico como o único modo apropriado de constituição de um sentido estético. O
alegorista arranca uma coisa individual, tomada como fragmento, do seu contexto original, isolando-o e o
despojando de sua função e de seu significado natural. Esse elemento fragmentado é inserido num todo,
em novo contexto, com outros fragmentos, apropriando-se de um significado totalmente diferente do
original. Dessa forma, a contextualização e a fragmentação indicam ‘uma alegoria’ em si mesmas.
43

O alegorista secciona um elemento do seu contexto especifico e, livrando-o


da sua dimensao sintática, o descontextualiza. Na sua posição e função
específica no contexto anterior, o elemento servia de signo, mas a sua
descontextualizacão provoca sua dessemantização, tornando-o mero objeto
sem sentido em si, fragmento que, fora do contexto, não mais conserva o
sentido que aquele lhe atribuía. A perda da dimensão sintática é
acompanhada da perda da sua dimensão semântica, processando-se uma
desconstrução do elemento como signo. (1994, p. 132).

Nesse contexto, esse elemento que se refere Junkes, não tem mais função de
signo, passando a ser somente algo sem contexto e sem sentido. Posteriormente, o signo
inicia um processo de reconstrução, em busca de uma nova contextualização. Ou seja, a
esse elemento pode ser atribuída nova acepção, diante de um novo contexto, em que ele
faça parte de um todo. Ele passa a ser transformado e reconstruído, de maneira a
comunicar algo. Por isso, a alegoria permite ampliar o espectro de significados.

Sonho e perco-me, duplo de ser eu e essa mulher... Um grande cansaço é um


fogo negro que me consome...Uma grande ânsia passiva é a vida falsa que me
estreita...Ó felicidade baça!...O eterno estar no bifurcar dos caminhos!... Eu
sonho e por detrás da minha atenção sonha comigo alguém... E talvez eu não
seja senão um sonho desse Alguém que não existe... (PESSOA, 2011, p.455).

Este trecho da prosa poética apresenta-nos uma mulher, que não é um ser
humano do sexo feminino. Esse vocábulo remete à própria arte. Assim, percebemos que
esse fragmento “mulher” foi arrancado do seu significado original, que remete a uma
“dama, senhora, fêmea”, para revestir-se de um novo sentido: a arte. Há uma
descontextualização da palavra, que é liberta da sua função sintática e semântica, a fim
de adquirir nova atribuição. Pessoa retira o elemento de seu contexto original, isolando-
o e despojando-o de sua função inicial, se apropriando desta, e lhe atribuindo um novo
sentido. Desse modo, a alegoria liberta a coisa de seu aprisionamento no contexto
funcional, e a transforma em algo diferente.
A obra literária abandona os caminhos da prosa deleitante de épocas passadas e
procura se incorporar à escrita-escritura. Há uma libertação das limitações dos
pensamentos lógicos e coerentes, e essa nova linguagem se projeta no mundo como
possibilidade ou tentativa de uma nova e legítima expressividade. Assim sendo, as
composições linguísticas atuais causam estranheza ao leitor, o qual está habituado à
técnica tradicional, fato que corrobora o que assevera Adorno in Rosenthal sobre isso:
“inexiste obra de arte moderna de algum valor, que não se deleite com dissonâncias e
desarticulações.” (1975, p.38). Na prosa poética analisada há uma luta pela linguagem, a
44

qual é transformada em fragmento e em dissimulação. Bernardo Soares cria um eu


pertencente ao mundo onírico, que também cria um eu real, os quais se correlacionam,
num total movimento difuso:

Minha atenção boia entre dois mundos e vê cegamente a profundeza de um


mar e a profundeza de um céu; e estas profundezas interpenetram-se,
misturam-se, e eu não sei onde estou nem o que sonho.
Um vento de sombras sopra cinzas de propósitos mortos sobre o que eu sou
de desperto. Cai de um firmamento desconhecido um orvalho morno de
tédio. Uma grande angústia inerte manuseia-me a alma por dentro e, incerta,
altera-me, como a brisa aos perfis das copas. (PESSOA, 2011, p.454/455).

O fluxo incessante permite que os ‘eus’ se disfarcem em outros ‘eus’, e não nos
permita reconhecer de quem se trata. É gerada uma dupla dissimulação do sujeito
fictício sobre o fazer poético. Coexistem dois eus e dois mundos: real fingido e
ficcional, além de haver uma grande fragmentação do sujeito fictício, o qual dissimula
estar nos “dois mundos”: o criado e o ressignificado. O eu poético se encontra entre dois
universos: o mundo real por ele criado, o da alcova; e o espaço da floresta que remete ao
imaginário, ao desconhecido, ao poético. Ele tem consciência do estar em trânsito, do
real fingido gerado ao irreal-criado, o que produz nele certa melancolia e sofrimento.
Pessoa nos leva a um tempo mutável, que não é ordenado, que não é continuidade, mas
sim, duração e movimento, o qual é produzido pela passagem de um local a outro:
“Minha atenção boia entre dois mundos”. Nesse fragmento, podemos perceber que o eu
ficcional encontra-se num estado de transição, de dentro para fora; imobilidade e
movimento, real aparente e irreal idealizado, e isso procura manter a imagem
intermitente do entre. Além de Bernardo Soares nos conduzir a um tempo mutável, que
não é ordenado, que não é continuidade, mas sim, duração e movimento, o que é
propiciado também pela paisagem que nos é exibida, a qual passa a ter órgãos dos
sentidos, conforme observamos nos excertos: “vento de sombras sopra cinzas”, aqui a
paisagem adquire boca e função gustativa; “Cai de um firmamento um orvalho morno
de tédio”, aqui ela adquire olhos e também sensação térmica. Dessa maneira, o eu lírico
cria uma linguagem que é um corpo pulsante de sensações e movimento, envolto num
espaço flutuante e múltiplo.
O espaço da obra moderna amplia-se cada vez mais, rumo ao desconhecido, ao
fragmentado, e a visão do tempo dissolve-se na realidade. O caráter hesitante do mundo
não permite a representação de determinados espaços como modelos ou símbolos de
45

segurança e proteção. O mundo tornou-se visível, construindo-se de espaços


entremeados em camadas multíplices, e o espaço de Bernardo Soares é a memória
ficcional.
Outras vezes este quarto estreito é apenas uma cinza de bruma no horizonte
dessa terra diversa... E há momentos em que o chão que ali pisamos é esta
alcova visível... Sonho e perco-me, duplo de ser eu e essa mulher... Um
grande cansaço é um fogo negro que me consome... Uma grande ânsia
passiva é a vida falsa que me estreita. (PESSOA, 2011, p.455).

O que sugere nesse fragmento é a destruição do espaço comum e natural, que é


transfigurado, a fim de dar lugar a uma espacialidade virtual e alegórica. O “quarto” já
não é quarto, e sugere múltiplas significações. O quarto é o mundo real concebido pelo
eu ficcional, que muito o angustia, e a “terra diversa” é o mundo da arte, é a própria
arte. O eu poético perde-se nesses dois mundos, pois ele anseia ficar somente no mundo
poético. A enunciação alegórica expande o campo referencial para além das coisas que
nos são apresentadas, e vai além das coisas observáveis, explícitas e cognoscíveis. Esse
procedimento proporciona a passagem de uma espacialidade (comum), a outra (virtual).
Novamente o eu artístico nos confunde com o surgimento de um novo eu: “duplo de ser
eu e essa mulher”. Ele permanece nesse estado de transição entre o real e o irreal; entre
o mundo do quarto, da alcova e o mundo da floresta, que é o poético. O fazer artístico o
cansa, o consome, pois não é fácil a escritura poética. Segundo Rodrigues: “A escritura,
ao falar de si própria, inclui em seu universo literário, o outro e ao mesmo tempo,
inventa-se e deixa-se inventar pela alteridade.” (2007, p.154). Por conseguinte, a
escritura possui uma dupla função, e, Soares confessa sua escritura como uma farsa, e a
associa com a imperfeição, de forma a acentuar a teoria da inutilidade da arte como um
desvio rumo à escrita do absurdo.
Nessa perspectiva, a prosa poética, Na Floresta do Alheamento, não mais reflete
a progressão contínua de uma única ação ou de um pensamento, ou ainda de uma
situação uniforme, ao contrário, ela reúne impressões pluralizadas. Segundo Rosenthal
(1975, p.62), a arte poética deve ser percepção e não mimese de uma realidade
existente, que jamais poderá ser reproduzida fielmente, visto que ninguém é capaz de
envolvê-la em toda a sua totalidade. Os signos literários são incapazes de reproduzir a
vida real dos seres humanos, a existência com todas as suas facetas e dessemelhanças.
Conforme cita Paul Klee in Rosenthal (1975, p.62): “a arte não reproduz as coisas
visíveis, sua tarefa reside em tornar visível.” Pessoa mostra-nos uma realidade
46

esfacelante e insubstancial, utilizando-se de uma linguagem fragmentária a qual


corresponde a uma nova percepção da realidade.

De vez em quando pela floresta onde de longe me vejo e sinto um vento lento
varre um fumo, e esse fumo é a visão nítida e escura da alcova em que sou
atual, destes vagos móveis e reposteiros e do seu torpor de noturna. Depois
esse vento passa e torna a ser toda só ela paisagem daquele outro mundo...
[...]. A nossa vida não tinha dentro. Éramos fora e outros. (PESSOA, 2011,
p.455/456).

O eu poético tudo enxerga de longe e tem consciência do fora 4 em arte, e


também da incorporeidade5 do fazer artístico. Ele se fragmenta e se multiplica em vários
“eus”, e por isso, perde a sua referência, até mesmo a sua unicidade. O vento o move, o
carrega e o multiplica: “éramos fora e outros”. Surgem vários outros e diversos eus, e o
eu artístico já não sabe mais sua identidade. O vento carrega o eu lírico, espalhando
sementes, esparramando inúmeros “eus”, de forma a permitir que o eu poético se
transporte de uma realidade a outra.
Para Blanchot (2005), a palavra literária se constitui no próprio “Fora”, pois, ao
invés de representar o mundo, apresenta o “outro” de todos os mundos. Isso se dá
porque na escrita literária, há um desdobramento, um movimento de exteriorização. É
como se o mundo estivesse voltado para fora. Este universo não está aquém ou além do
nosso, ele apenas está desvirado e refletido em outra versão, que é o deserto, o “Fora”.
A linguagem literária tem o poder de criar palavras que não mais se relacionam ao
mundo exterior, pois ela constitui o seu universo e cria sua própria realidade. Dessa
forma, Na Floresta do Alheamento as sensações nos são mostradas de maneira a nos
fazer senti-las e vive-las, tornando essa experiência extremamente real. Isso se dá
porque a linguagem literária não remete a algo exterior a ela, mas a si própria, conforme
verificamos nesse excerto:

4
A arte como o “Fora”, para Maurice Blanchot (2005), se constitui numa espécie de experiência original,
um começo de tudo, e encontra-se na possibilidade de recriar o mundo literariamente. O “Fora” é
exatamente o outro de todos os mundos que é revelado na literatura. Não se trata de outro mundo que se
apresenta aquém do nosso, mas, remete precisamente a esse mundo, porém desdobrado em outra versão.
5
Artaud (1993) realiza um estudo sobre O corpo sem Órgãos, o qual é retomado por Deleuze & Guatarri
(1996), concebendo-o como um corpo que pode gerar novas imagens a partir da sua desconstrução. Ele
propõe um corpo fragmentado, cheio de fissuras que se multiplicam, o qual necessita desvencilhar-se das
amarras que o aprisionam, a fim de gerar inúmeras possibilidades.
47

E ei-la que, ao irmos a sonhar falar nela, surge ante nós outra vez, a floresta
muita, mas agora mais perturbada da nossa perturbação e mais triste da nossa
tristeza. Foge de diante dela, como um nevoeiro que se esfolha, a nossa ideia
do mundo real, e eu possuo-me outra vez no meu sonho errante, que essa
floresta misteriosa enquadra... (PESSOA, 2011, p.458).

Bernardo Soares cria uma realidade fictícia fundada em sua própria realidade,
mas nem por isso deixa de ser real, pois sua linguagem tem o grande poder de fingir, de
enganar, por isso sua realidade é bem mais real que a própria realidade. As palavras não
são mais entidades vazias que se referem ao mundo exterior, mas sim, ao universo
literário criado pelo eu artístico. Pessoa ou Bernardo Soares é destituído de seu estatuto
central de autor da obra, ele é apagado, anulado, a fim de surgir o espaço vazio que é o
espaço da linguagem que fala. Segundo Blanchot (2005), o “Fora” é o início de tudo, é
instaurar uma experiência em que as coisas não são ainda e que não se prende a um
lugar fixo. Pessoa se dirige ao próprio ser da linguagem promovendo uma experiência
para o “Fora”, colocando-se para fora do mundo e fora de si mesmo. “O espaço literário
é o exílio fora da terra prometida, no deserto, onde erra o exilado.” (LEVY, 2011, p.34).
Ou seja, esse local é a própria errância, que remete à própria escrita, que é o espaço
móvel, onde nada se fixa: “e eu possuo-me outra vez no meu sonho errante”. O eu
artístico se deixa levar pelo imprevisível e pelo inesperado de uma palavra que nem
começou. Dessa forma, a palavra artística experimenta o “Fora” e faz-se errante e
movediça.
O eu ficcional cria uma materialidade de um corpo, porém é um corpo sem
órgãos, sem interior. Por isso, sua linguagem busca destruir toda a ordenação, a
linearidade, possibilitando o novo, o diferente, a liberdade, a racionalidade, a
multiplicidade de possibilidades, o pulsante e o incorpóreo: “surge ante nós outra vez, a
floresta muita”, “Foge de diante dela, como um nevoeiro que se esfolha, a nossa ideia
do mundo real”. Nesses fragmentos visualizamos que o eu poético gera novas imagens a
partir da sua própria desconstrução: a floresta que surge novamente e se reporta à
própria arte; o nevoeiro que se esfolha, que remete ao universo artístico que está
surgindo. As imagens se fundem em profundidade de modo que ocorre a destruição da
própria linguagem.
A realidade apresentada na prosa poética não corresponde à aparência exterior
nem à percepção objetiva, mas sim a uma realidade ficcional flutuante, pois ela é gerada
pelo próprio eu artístico. O tempo não serve mais à indicação precisa de uma
48

ocorrência, mas sim, a reflexões sobre a deformação de realidades. Bernardo Soares


assume a voz que emana de tempos atemporais, que são os próprios devaneios. A
realidade procura captar as correntes íntimas da obra de arte, em lugar de ocupar-se das
aparências exteriores. Os estados de consciência são simplesmente apresentados, mas
nunca decodificados. O mundo onírico moderno não é apresentado exclusivamente por
meio de configurações fantásticas, e, segundo Rosenthal (1975, p.106), ele aparece
frequentemente sob a forma de pesadelo que procura esmagar toda a humanidade.
Sonho e realidade aparecem frequentemente misturados na prosa poética, levando a uma
plurifacialidade de sentidos.
Bernardo Soares apresenta-nos um mundo onírico e caótico, constituído por
imagens sinestésicas e impressões fragmentárias. As sensações do eu ficcional são
transformados em ritmos poéticos:

Orlas de mares desconhecidos tocavam, no horizonte de ouvirmos, praias que


nunca poderíamos ver, e era-nos a felicidade escutar, até vê-lo em nós, esse
mar onde sem dúvida singravam caravelas com outros fins em percorrê-lo
que não os fins úteis e comandados da Terra. (PESSOA, 2011, p.455).

Desse modo, a arte do sentir e da fantasia se reafirma, predominando o mundo


imaginário em detrimento do mundo real-criado. As imagens são tidas como estados de
espírito, sensações e impressões do eu artístico. Elementos dessemelhantes se unem a
fim de criar imagens alegóricas e disformes, cuja existência transcende a vida real. O eu
lírico se depara com o mundo da arte, que é um local desconhecido, porém que
proporciona felicidade e frescor. Ele percorre esse horizonte visualizando algo
totalmente novo: “orlas de mares desconhecidos”, “praias que nunca poderíamos ver”,
“caravelas com outros fins”. Descortina-se um universo singular e original, que provoca
sensações diversas. O eu lírico é um sujeito lúcido, que tem uma consciência da
sensação do corpo como um todo, além de ter uma percepção sensitiva e conseguir
multiplicar-se em vários outros eus, porém sendo desconhecido de si próprio. O eu
ficcional mostra-se múltiplo e fragmentado e sua escritura ocorre da mesma forma. Uma
nova realidade é criada a partir da sensação. Ela passa a ser um operador do real, sendo
ela que irá fazer o processo de transpor o real-criado para o real-artístico.
A prosa poética pessoana representa fatos incomuns, que revela estados de
consciência e assim consegue penetrar no âmago das coisas. Segundo Lammert,
Eberhard citado por Rosenthal “a essência poética reside precisamente no fato de que
49

todos os elementos reais empregados são despojados de suas vinculações transliterárias,


recebendo um novo significado, uma função nova e limitada no âmbito da realidade
fictícia.” (1975, p.26). Destarte, os elementos reais desaparecem para ceder lugar ao
mundo virtual, o qual está totalmente ressignificado. O invisível torna-se mais
importante do que o visível, e a interioridade mais importante do que a exterioridade.
Pessoa consegue construir uma obra em que prevalece a desmaterialização, na qual o
mundo real é substituído por um mundo artificial, o que se dá graças aos recursos de
linguagem, por ele utilizados:

Nós sabíamos ali, por uma intuição que por certo não tínhamos, que este
dolorido mundo onde seríamos dois, se existia, era para além da linha
extrema onde as montanhas são hálitos de formas, e para além dessa não
havia nada. (PESSOA, 2011, p.457).

A linguagem se torna independente e há um esvaziamento da realidade, o que


permite que remeta a uma nova realidade-criante. Como cita Rodrigues: “O próprio
mundo exterior deixa de ser o que é para se metamorfosear no aparente.” (2007, p.91).
O mundo fragmenta-se e o eu poético fragmenta junto com ele. Esse estilhaçamento é
sofrido e espinhoso, porém permite a fragmentação e a multiplicidade dos eus. O lugar
que o eu-poético almeja está “para além da linha extrema onde as montanhas são hálitos
de forma”, o que reforça a ideia de uma caminhada contínua e infinita, que não se
alcança. O mundo-real que ele criou é dolorido, e novamente “seríamos dois”, o que
intensifica a ideia da multiplicidade. Novamente as sensações permeiam o texto: “onde
as montanhas são hálitos de forma”. Elas decorrem justamente da dissimulação
discursiva criada pelo eu poético.
Dessa forma, essa realidade possui um caráter efêmero e uma imagem fugaz.
Trata-se de uma realidade flutuante alicerçada no sonho, e também aberta, pluralizante,
inquietante.

E eu, que de longe dessa paisagem quase a esqueço, é ao tê-la que tenho
saudades dela, é ao percorrê-la que a choro e a ela aspiro... As árvores! As
flores! O esconder-se copado dos caminhos!... Passeávamos às vezes, braço
dado sob os cedros e as olaias e nenhum de nós pensava em viver. A nossa
carne era-nos um perfume vago e a nossa vida um eco de som de fonte.
Dávamos as mãos e os nossos olhares perguntavam-se o que seria ser o
sensual e o querer realizar em carne a ilusão do amor... (PESSOA, 2011,
p.456).
50

Pessoa constrói uma obra em primeira pessoa, dando-nos a impressão de uma


autobiografia, na qual, através da construção da linguagem, ele coloca-nos diante de um
discurso fingido, num jogo de palavras, as quais ecoam outras palavras. Ele utiliza uma
linguagem fragmentada, desconexa que não possui um desenvolvimento linear e um
arcabouço pronto, a qual penetra no labirinto de sonhos e imaginação. O eu poético
encontra-se em meio a um turbilhão e atado a esse caminho que ele percorre rumo ao
desconhecido, rumo ao mundo poético. É o local que ele aspira e que deseja, apesar de
haver grande aflição no eu artístico por estar diante do desconhecido, do obscuro: “O
esconder-se copado dos caminhos!” Trata-se de um itinerário oculto com registro de
diversas sensações: “A nossa carne era-nos um perfume vago”, “Dávamos as mãos e os
nossos olhares perguntavam-se.” Visualizamos uma fusão de sensações diferentes,
caracterizando um texto que nunca terminou de dizer aquilo que tinha de dizer, gerando
uma ressignificação, e sugerindo a experiência inesgotável de continuidade.

Nós sabíamos ali, por uma intuição que por certo não tínhamos, que este
dolorido mundo onde seríamos dois, se existia, era para além da linha
extrema onde as montanhas são hálitos de formas, e para além dessa não
havia nada. E era por causa da contradição de saber isto que a nossa hora de
ali era escura como uma caverna em terra de supersticiosos, e o nosso senti-la
era estranho como um perfil da cidade mourisca contra um céu de crepúsculo
outonal... (PESSOA, 2011, p.457).

O eu poético encontra-se dolorido diante desse mundo desconhecido, pois ele


não consegue visualizar claramente o novo universo que se desvenda, o qual são hálitos
de formas, e que no além, ele nada consegue enxergar. Há uma contradição de querer
sair do real-criado, e ir para o mundo da caverna escura. CIRLOT, 1984, p.147, atribui
ao termo caverna o sentido de algo fechado, oculto, inexplorado, desconhecido. O que,
certamente gera certo medo e desconfiança no eu poético. A palavra “mourisca” reporta
a algo escuro, mesclado de uma cor clara, local onde os dois mundos se encontram, se
misturam, contra um “céu de crepúsculo”. Cirlot define o termo “crepúsculo” como uma
cisão, uma greta que une e separa ao mesmo tempo os contrários, distinguindo-se por
uma indeterminação e ambivalência (Idem, p.190). O mundo da arte é esse local de
ambiguidade, flutuação, de incerteza e obscuridade.
No dizer de Rosenthal, (1975) os títulos das novas obras literárias destinam-se
geralmente a expressar a perplexidade, as dúvidas e a insegurança, de fragmentos que
espantam ou confundem o leitor. Tratam de peculiaridades e invenções literárias que
51

podem contribuir para a compreensão das intenções do autor. O título da prosa poética
Na Floresta do Alheamento é um enunciado alegórico, o qual nos remete a essa
insegurança, a inúmeras dúvidas, por não nos apontar com clareza a que a obra irá se
referir, de qual assunto a prosa poética versará. Diante disso, verificamos que o título
está carregado de uma polissemia discursiva, e nos remete a um mundo onírico,
inseguro, vago, devaneante, nos reportando a uma atmosfera nevoenta, e não nos
permitindo sequer supor o que encontraremos nas profundezas desse texto, pois a
linguagem artística se metamorfoseou e tomou outro significado.
A palavra diz mais do que o significado estipulado pelo dicionário, ela adquire
uma linguagem rizomática, de forma a conquistar novas funções. Segundo Deleuze e
Guattari, “Um rizoma está sempre a caminho. Um rizoma não começa nem conclui, ele
se encontra sempre no meio” (2000, p.27). No rizoma, uma partícula de raiz se
multiplica em muitas outras, de forma aleatória e totalmente independente. O sistema
rizoma pode ser rompido e segmentado em qualquer ponto, que sempre retornará
inteiro. Pessoa elaborou uma prosa poética rizomática, uma obra em movimento, uma
obra sem centro, a qual ele constrói e reconstrói constantemente, sem gênero, sem
espaço-tempo definido:

Não tínhamos época nem propósito. Toda a finalidade das coisas e dos seres
ficara-nos à porta daquele paraíso de ausência. Imobilizara-se, para nos sentir
senti-la, a alma rugosa dos troncos, a alma estendida das folhas, a alma núbil
das flores, a alma vergada dos frutos... (PESSOA, 2011, p.459).

O eu poético não tenta estabilizar o que é instável. Deparamo-nos com uma obra
com entradas e saídas variadas, com uma obra rizomática, de linhas irregulares que se
estendem a qualquer direção aleatoriamente, levando a um processo que independe de
um ponto específico de origem e que não possui conclusão, mas uma abertura a outros
elementos comunicativos que, por sua vez, produzem diversas outras leituras prováveis.
Ela não possui um fio condutor e, por isso, não parte de um ponto central pelo qual se
ramifica, além de criar diversas aberturas e não possuir um ponto conclusivo. As
variadas sinestesias: “a alma rugosa dos troncos”, “a alma estendida das folhas”, “a
alma núbil das flores”, “a alma vergada dos frutos”, tumultuam o pensamento
impedindo-o de seguir em uma única direção. Essa prosa poética pode ser lida da forma
que o leitor se propuser, iniciando pelo começo, pelo meio ou pelo fim, pois ela não
possui uma linearidade, um núcleo, um aparelho progressivo. Pessoa liberta a língua
52

levando-a ao movimento de ondas selvagens, tornando-a retirante, itinerante,


deformante e infinita.
A linguagem se constitui como totalmente nova e diferente. Ela é ofegante e
corresponde a uma nova percepção da realidade de forma a extravasar de uma maneira
totalmente distinta da representação tradicional.

Ali vivemos um tempo que não sabia decorrer, um espaço para que não havia
pensar em poder-se medi-lo. Um decorrer fora do Tempo, uma extensão que
desconhecia os hábitos da realidade no espaço... Que horas, ó companheira
inútil do meu tédio, que horas de desassossego feliz se fingiram nossas
ali!...(PESSOA, 2011, p.457).

A passagem para o mundo da arte se constitui numa imensa angústia, tédio,


melancolia, e o eu poético permanece dissimulando: “horas de desassossego feliz se
fingiram nossas ali!” O local por ele percorrido é desconhecido, descomedido e
desbalizado, e também, ao mesmo tempo, ele sente um desassossego feliz, porque o
espaço real já não o satisfaz, e apesar dele temer o obscuro, o eu poético ainda prefere
essa terra diversa, o lugar da arte.
A obra pessoana não possui uma linha lógica de pensamentos e também não nos
oferece uma conclusão. O que pensamos ser o início, pode se referir ao final, ou ao
meio, já não há nenhuma certeza. A linguagem surge desordenada, fragmentada,
esfacelada. O escritor não está preocupado em representar a realidade, como há algum
tempo atrás. Ele quer expressar o seu pensamento, a sua visão de mundo, por isso o
mesmo, surge fragmentado, fluido, devaneante, plurissignificativo, corroborando com a
construção poética da modernidade.
Pessoa, nesta prosa poética, utiliza de uma das técnicas fílmicas a fim de
construir sua obra. Segundo Rodrigues: “As técnicas do cinema, por outro lado,
permitem à literatura apresentar melhor as complexidades e ambiguidades comuns da
existência humana.” (2011, p.158). O cinema é constituído, primeiro, por imagens-
movimento, imagens em que o movimento subordina o tempo. A imagem-movimento dá
uma representação indireta do tempo, isto é, apresenta o tempo por meio do movimento.
O movimento que ocorre em toda a obra, que é a passagem do mundo real-criado ao
mundo ficcional, ou seja o entrelugar, baseou-se nessas técnicas do cinema:

Passeávamos às vezes, braço dado, sob os cedros e as olaias e nenhum de nós


pensava em viver. [...] Tínhamo-nos esquecido do tempo, e o espaço imenso
53

empequenara-se-nos na atenção. Fora daquelas árvores próximas, daquelas


latadas afastadas, daqueles montes últimos no horizonte haveria alguma coisa
de real, de merecedor do olhar aberto que se dá às coisas que
existem?...(PESSOA, 2011, p.456).

O tempo e o espaço são apresentados através de imagens, os quais não podem


ser reduzidos simplesmente ao que os olhos veem. As imagens surgem em forma de
construção e se apresenta de forma ilusória e fictícia, e a ilusão se constrói através dessa
montagem dos movimentos: “o espaço imenso empequenara-se-nos”, “daqueles montes
últimos”. Essas imagens confundem o leitor, pois não sabemos se se trata do real-criado
ou do irreal. Com o início do movimento surge uma totalidade, porém fragmentária, o
que resulta em uma montagem. Palavras e frases estranhas, sem nexo são lançadas,
totalmente livres, sem uma preocupação com uma coerência do pensamento: “braço
dado, sob os cedros”, “daquelas latadas afastadas”. O uso das reticências que se referem
ao silêncio e a uma interrupção, pressupõe o intervalo, o entrelugar, a passagem, do
real-criado ao irreal virtualizado.
De acordo com Deleuze, a imagem é o “conjunto daquilo que aparece” (1985, p.
70), na qualidade de movimento, e em movimento. A imagem é em si mesma um
movimento e o movimento é uma imagem: Toda imagem não passa de um "caminho
sobre o qual passam em todos os sentidos as modificações que se propagam na
imensidão do universo" (1985, p. 70). Cada imagem age sobre outras e reage a outras
em "todas as suas faces e através de todas as suas partes elementares" (DELEUZE,
1985, p. 70). A linguagem de Pessoa é construída de estilhaços de imagens justapostas,
que se associam e ultrapassam o espaço do texto, fornecendo vários lances de imagem-
percepção, que é aquela que se refere ao plano geral, ao sentir. Ele convoca todos os
sentidos, através de vocábulos ligados aos órgãos dos sentidos:

Orlas de mares desconhecidos tocavam, no horizonte de ouvirmos, praia que


nunca poderíamos ver, e era-nos felicidade escutar, até vê-lo em nós. [...] o ar
estava cheio de cantos de ave, e que, como perfumes antigos em cetins, o
marulho esfregado das folhas estava mais entranhado em nós do que a
consciência de o ouvirmos. (PESSOA, 2011, p.457).

Percebemos uma transgressão das regras padronizadas da linguagem: “orlas de


mares tocavam, no horizonte de ouvirmos”, “o marulho esfregado das folhas estava
mais entranhado em nós do que a consciência de o ouvirmos.” Existe uma conjugação
de imagens desconexas, que são fornecidas através da montagem. A montagem expurga
a perspectiva única em benefício de um enquadramento polifônico. Dessa forma, a
54

linguagem estabelece reflexos da filmagem cinematográfica, o que possibilita uma


multiplicidade de imagens e pontos de vista juntos, mas que dão a ideia de somente uma
imagem, e em seguida ocorre uma ruptura, o que provoca uma surpresa e espanto no
leitor. Também ocorre uma aparente desorganização lógica do tempo, através de uma
hibridação de espaços, e uma subversão do mundo real através do mundo imaginário,
atenuando os limites entre realidade e ficção: “orlas de mares”, “praia que nunca
poderíamos ver”. Esse cruzamento de espaços proporciona que a obra se torne um jogo
de espelhos, em que as imagens se multiplicam, de forma a abrir novos níveis de
percepção.
Além disso, a montagem dialética, que é aquela que se instaura a partir da
justaposição de duas unidades contrárias a fim de se gerar um sentido novo, é bastante
perceptível na prosa poética Na Floresta do Alheamento:

Num torpor lúcido, pesadamente incorpóreo, estagno entre o sono e a vigília,


num sonho que é uma sombra de sonhar. [...] Sou todo confusão quieta... Para
quê há de um dia raiar?... [...] O movimento parado das árvores; o sossego
inquieto das fontes. [...] E que fresco e feliz horror o de não haver ali
ninguém! (PESSOA, 2011, p. 454, 455,457).

Os vocábulos deixam o seu significado original e se revestem de novo


significado, totalmente diferente do primeiro, pois a própria escrita-arte fala de si
mesma como escritura de forma ressignificada. Ela não exprime nenhuma realidade
preexistente, mas relata o próprio ato de escrever, que é algo que remete a um estado de
desorientação e, ao mesmo tempo, de placitude e serenidade. Os paradoxos: torpor e
lúcido, sono e vigília, confusão e quieta, movimento e parado, sossego e inquieto, feliz e
horror, remetem a um movimento e a algo estático, além de promover uma integração
fragmentária e múltipla reafirmando o estado de angústia do eu lírico. As aliterações:
“sonho que é uma sombra de sonhar”, promove no leitor uma sensação do vento que
sopra reportando ao estado de sonolência, de transição e do entrelugar, o que propicia o
surgimento de novas formas de pensamento.
55

2 A FLORESTA DO ALHEAMENTO – DA DISSIMULAÇÃO AO ABSURDO.

Éramos impessoais, ocos de nós, outra coisa qualquer... Éramos aquela


paisagem esfumada em consciência de si própria... E assim como ela era
duas – de realidade que era, e ilusão – assim éramos nós obscuramente dois,
nenhum de nós sabendo bem se o outro não ele próprio; se o incerto outro
viveria...
FERNANDO PESSOA

Neste capítulo objetiva-se a discussão sobre a estética da dissimulação rumo à


estética do absurdo, marcada pelo espaço intersticial do entrelugar. Este último termo
visto como uma “terceira margem”, um caminho do meio, um espaço intervalar entre
dois mundos diferentes. A prosa poética Na Floresta do Alheamento encontra-se
inserida nesse espaço de passagem, de transição: da literatura moderna à
contemporânea. Ela não é uma obra híbrida, não sendo nem moderna, nem
contemporânea, mas mesclada de características de ambas. Ela se insere na passagem de
uma linguagem que ainda apresenta um discurso, rumo ao contradiscurso da
contemporaneidade. O contradiscurso aparece no nível do significante e se encontra
ausente do “dizer”. A linguagem possibilitou ao homem ser colocado diante de si
mesmo, refletindo sobre si próprio, além de propiciar a esse homem uma consciência de
sua finitude. Além de ser uma passagem da arte de simulação (que remete a uma
ausência, pois finge ter o que não se tem) para a arte da dissimulação (que representa
uma presença, porque finge não ter o que se tem).
A simulação coloca em dubiedade a questão do verdadeiro e do falso, do real e
do imaginário. A realidade transformou-se numa imagem, e por esse motivo deixou de
existir. Baudrillard (1991) enumera quatro fases sucessivas da amplificação do poder da
imagem: a primeira é aquela em que a imagem é o reflexo de uma realidade profunda,
sendo uma boa aparência; a segunda é aquela em a imagem mascara e deforma uma
realidade profunda, representando uma má aparência; a terceira é aquela em que a
imagem mascara a ausência de uma realidade profunda. Aqui é quando ela finge ser
uma aparência. E a última é aquela em que ela não tem relação alguma com a realidade.
É quando não estamos mais no mundo da aparência, mas no da simulação. Passamos do
campo dos signos que dissimulam alguma coisa para os que dissimulam que não há
nada. A prosa poética Na Floresta do Alheamento encontra-se inserida na passagem da
56

simulação para a dissimulação, pois ela perde o vínculo com o mundo real. O que
vemos não é mais a coisa, mas a imagem dela:

E quem é esta mulher que comigo veste de observada essa floresta alheia?
Para que é que tenho um momento de mo perguntar?... Eu nem sei querê-lo
saber... A alcova vaga é um vidro escuro através do qual, consciente dele,
vejo essa paisagem... e a essa paisagem conheço-a muito, e há muito que com
essa mulher que desconheço erro, outra realidade, através da irrealidade dela.
(PESSOA, 2011, p.455).

As imagens povoam todo o texto de Pessoa, conforme observamos nesse


excerto. A imagem da mulher reporta à própria arte, ao fazer artístico. A floresta é o
mundo desconhecido e inconsciente, que o eu-lírico está adentrando, esse universo
onírico, artístico. A alcova vaga é o mundo real criado pelo eu poético. Dessa forma, a
obra literária não representa o mundo real, como outrora. Ela aponta para um real que
existe somente na obra artística. Sendo assim, a obra de arte cria sua própria realidade,
que é um mundo totalmente fingido, dissimulado. Pessoa constrói a imagem de um real
possível, e, dessa forma, a prosa poética atinge a absurdez.
O processo artístico de Fernando Pessoa é uma criação do absurdo, pois se
verifica uma ausência de sentido e de unidade nesta obra. O absurdo confere a ela a
vivência do caos no seu próprio experimento e no assassinato do seu ser original. A
criação de Pessoa é mímesis do absurdo. “A obra de arte nasce da renúncia de
racionalizar sobre o concreto” (CAMUS, 1965, p. 176). A criação, conforme Camus
(1965) a entende corrobora com o absurdo. Nela, encontramos suas contradições e de
maneira alguma ela poderia ser mero entretenimento, alegria para os olhos ou uma fuga
do problema fundamental.

Num torpor lúcido, pesadamente incorpóreo, estagno entre o sono e a vigília,


num sonho que é uma sombra de sonhar. Minha atenção boia entre dois
mundos e vê cegamente a profundeza de um mar e a profundeza de um céu; e
estas profundezas interpenetram-se, misturam-se, e eu não sei onde estou
nem o que sonho. (PESSOA, 2011, p.454).

O eu-lírico confessa a sua escritura como uma mentira e se encontra em um


estado de ambiguidade, de torpor, de estado onírico, no entrelugar, entre o sono e a
vigília. Há a presença de paradoxos: torpor/lúcido; pesadamente/incorpóreo;
vê/cegamente. Essas palavras contrárias se integram e permitem o caos, a perturbação,
numa dinâmica de unicidade e de movimento. O eu-poético assassina o seu ser original
57

a fim de dar vazão à simulação/dissimulação. A linguagem deixa a sua função


referencial para se tornar outra linguagem, que é poética e que apresenta uma violação
das regras e uma transgressão das normas da linguagem. A linguagem pessoana fala
somente de si mesma e não expressa nenhuma realidade pré-existente. É a imagem da
imagem do real, é a obra de arte, que não tem lógica, não tem utilidade, que nos
direciona a lugares que não sabemos onde são, porque nos afasta do real, são locais que
não podemos ver, mas que são ao mesmo tempo deliciosos e absurdos e ilógicos e
irracionais. A escritura ultrapassa um espaço em que nada significa, onde a realidade
inexiste e onde não há representação.

2.1 O Entrelugar

O entrelugar é uma expressão trazida pelos estudos culturais, que tem o objetivo
de clarificar a aparição e a construção de várias expressões do período pós-colonial.
Esse termo deve ser entendido não como fixidez, mas como possibilidade tática que
permite a introdução desse mesmo vocábulo em diversas situações. O conceito de
entrelugar propicia aos estudiosos, possibilidades significativas no processo de
perscrutação do entendimento dos fundamentos em várias áreas do conhecimento.
Assim sendo, o entrelugar oportuniza inúmeras leituras, novos movimentos e
deslocamentos, produzindo novos entrelugares e descortinando abundantes e diferentes
olhares. Conforme Hanciau:

O conceito de entrelugar torna-se particularmente fecundo para reconfigurar


os limites difusos entre centro e periferia, cópia e simulacro, autoria e
processos de textualização, literatura e uma multiplicidade de vertentes
culturais que circulam na contemporaneidade e ultrapassam fronteiras,
fazendo do mundo uma formação de entrelugares. Marcado por múltiplas
acepções, o entrelugar é valorizado pelos realinhamentos globais e pelas
turbulências ideológicas iniciadas nos anos oitenta do último século, quando
a desmistificação dos imperialismos revela-se urgente. (2005, p. 1).

Tal definição tem validade também para a prosa poética de Pessoa, pois
verificamos uma disseminação desse conceito de entrelugar em toda a sua obra,
mesclando “centro e periferia”, “cópia e simulacro”. Isso ocorre porque a literatura de
Pessoa surge como a metáfora do entrelugar, assimilando a experiência intervalar de
dois mundos diferentes, funcionando como um elo integrador entre dois espaços
antagônicos, servindo como instrumento para romper a fronteira. Além de se projetar
58

rumo à ocupação da terceira margem também poetizada por Guimarães Rosa no conto
“A Terceira Margem do Rio” que compõe a obra As Primeiras Estórias (2005), no qual
o escritor cria ficcionalmente um espaço intermediário: “Só executava a invenção de se
permanecer naqueles espaços do rio de meio a meio, sempre dentro da canoa, para dela
não saltar nunca mais.” (ROSA, 2005, p.80). Essa terceira margem seria o entremeio, o
espaço intervalar e algo novo que se forma. Nele surgem os questionamentos, a
tentativa para as soluções dos conflitos e ambiguidades, as reflexões sobre a existência
humana, e também a quebra de unidade, o local de mudanças e de trocas. Essa
passagem e espaço ‘além’, se configura no texto pessoano, de maneira a favorecer o
movimento e a capacidade criadora:

E doía-nos gozar aquilo, doía-nos... Porque, apesar do que tinha de exílio


calmo, toda essa paisagem nos sabia a sermos deste mundo, toda ela era
húmida da pompa de um vago tédio, triste e enorme e perverso como a
decadência de um império ignoto... Nas cortinas de nossa alcova a manhã é
uma sombra de luz. (PESSOA, 2011, p.458).

A transição do eu-poético do mundo real-criado, ao mundo ficcional é um


caminho sofrido, “doído”, porque trata-se de um mundo desconhecido, e ele permanece
no meio, no espaço intersticial que existe entre os dois universos. Esse intervalo vem
como uma passagem, um movimento presente de transfiguração ou transposição, onde
uma coisa não é mais ela mesma, mas também não é totalmente outra. O itinerário
atribui movimento e permite que se crie um espaço impregnado entre duas partes. A
“alcova” vai se descortinando, porém o que se permite visualizar é uma “sombra de
luz”. Tudo ainda é obscuro. Bhabha (1998) quando se refere a esse além do entre, diz
que não se trata de um novo horizonte, nem um abandono das coisas do passado, mas de
um para lá e para cá, de todos os lados, um interstício, um lugar de instâncias
contraditórias, de momentos mesclados, um espaço de fronteira. O momento híbrido
tem valor transformarcional de mudança. A prosa poética Na Floresta do Alheamento
constitui-se como o estar no “entre duas margens”, entre os extremos da terra e do céu.
O entre da simulação à dissimulação; o entre da alcova à floresta; o entre do discurso ao
contra-discurso.
Para Bhabha (1998), o entrelugar é o surgimento de um terceiro espaço,
heterogêneo. Esse terceiro espaço desloca sentidos, faz emergir novos significados. É
um local intersticial, de pacto, de encontros, intervalado, inacabado e multiforme. Nesse
59

sentido, Pessoa tem a capacidade de reconfigurar a realidade numa obra literária fluida e
que possui um movimento de vaivém, possibilitando o surgimento de algo novo,
diferente e de um espaço intervalado. Esse espaço propicia um universo fragmentado,
imprevisível e heterogêneo, descontínuo originando novas formas de pensamento.

Ó felicidade baça!... O eterno estar no bifurcar dos caminhos!... Eu sonho e


por detrás da minha atenção sonha comigo alguém... E talvez eu não seja
senão um sonho desse Alguém que não existe... [...] Na clepsidra da nossa
imperfeição gotas irregulares de sonho marcavam horas irreais... Nada vale a
pena, ó meu amor longínquo, senão o saber como é suave saber que nada vale
a pena... (PESSOA, 2011, p.455/456/457).

O eu artístico encontra-se no “bifurcar dos caminhos”, entre dois mundos. Ele


estabelece um movimento de transformação e transposição, em que uma coisa não é
totalmente ela mesma e nem totalmente outra. A passagem atribui deslocamentos e
desestabiliza os extremos. Segundo Hanciau (2005), a passagem do velho ao novo, do
homogêneo ao heterogêneo, do singular ao plural, da ordem à desordem, a ideia de
mistura e hibridação compreende conotações complexas. Esse fenômeno da mistura
reúne seres e formas que inicialmente e a priori nada os aproximaria. É nesse intervalo
que aparecem novas formas de pensamento. Diante disso, Pessoa cria uma forma de
pensamento diferenciada, em que o eu-lírico não sabe onde se encontra, nem para onde
vai. Ele finge uma realidade por ele criada, e concebe um universo fictício, que é o
mundo artístico.
Bhabha (1998) cita o entrelugar como um espaço de trocas e mudanças, sempre
movediço, nunca fixo, é como se fosse um “terceiro espaço” que tem por finalidade
agitar ou transcender as oposições binárias que se insinuam nos “sistemas de
pensamento”, um espaço novo, que provê e promove estratégias de resistência e
desenvolvimento, no qual a sutileza e a abertura imperam. E propõe que nele se
examinem as rupturas das convenções e das práticas de escritura, que rompem com o
realismo para abrir outras possibilidades, as quais emergem da estrutura indefinível das
fronteiras da cultura híbrida. O espaço intermediário cria um local aberto, repleto de
novas possibilidades. À vista disso, a obra pessoana se abre para inúmeras
possibilidades: “O ar do nosso quarto neutro é pesado como um reposteiro. A nossa
atenção sonolenta ao mistério de tudo isto é mole como uma cauda de vestido, arrastado
num cerimonial de crepúsculo.” (PESSOA, 2011, p.458). O eu poético nos guia a um
aposento, que não é o que aparenta ser. Ele dissimula um local de descanso
60

aparentemente “neutro”, mas que se faz pesado, estafante, que conduz ao universo
artístico. Ele nos conduz a um movimento exploratório incessante que se desloca por
todos os lados, resultando em novas possibilidades de existência, diluindo os polos e
gerando uma atmosfera de instabilidade e constante mudança. Bernardo Soares não
informa nada e, utiliza de paradoxos a fim de unir conceitos que se excluem, com a
finalidade de gerar novos sentidos, e criar situações inéditas: pesado/reposteiro;
atenção/sonolenta.
Segundo Hanciau (2005), as fronteiras muitas vezes apresentam-se porosas,
permeáveis, flexíveis. Deslocam-se ou são deslocadas. Se há dificuldade em pensá-las,
em apreendê-las, é porque aparecem tanto reais como imaginárias, intransponíveis e
escamoteáveis. Por isso, a dubiedade e pluralidade na obra de Pessoa, pois não sabemos
se se trata de algo real ou imaginário. Segundo Bhabha “Uma fronteira não é o ponto
onde algo termina, mas, como os gregos reconheceram, [...] é o ponto a partir do qual
algo começa a se fazer presente” (1998, p. 19). A passagem, a fronteira é uma das
características que permite a fluidez na obra de Pessoa, é o transporte da simulação à
dissimulação, do discurso ao contra-discurso, da dissimulação ao absurdo. Esse espaço
intermediário não é nem um novo horizonte, nem um retorno ao passado, mas sim uma
hibridização dos dois espaços. Esse local se configura num espaço de trocas e
mudanças, que não se fixa, que é sempre flutuante. A obra Na Floresta do Alheamento
se esculpe com rupturas das convenções e das práticas de escritura, e rompe com o
universo real para abrir outras e novas possibilidades: um mundo real-fictício e um
imaginário-virtual.
O conceito de entrelugar se caracteriza por ser fronteiriço, aquele que, ao mesmo
tempo, que separa e limita as duas margens, também permite e aproxima. É o lugar de
passagem, de movimento, da busca por pertencimento e permanência, e também de
ausência. Esse local reporta ao estar dentro e fora; ao ponto de partida e de chegada; ao
instável e ao certo. É o espaço da observação, de análise, de interpretação, que não é
nem cá, nem lá:

Sei que despertei e ainda durmo. O| meu corpo antigo, moído de eu viver,
diz-me que é muito cedo ainda... Sinto-me febril de longe. Peso-me, não sei
porquê... [...] Minha atenção boia entre dois mundos e vê cegamente a
profundeza de um mar e a profundeza de um céu; e estas profundezas
interpenetram-se, misturam-se e eu não sei onde estou nem o que sonho.
(PESSOA, 2011, p.454).
61

A escrita de Pessoa está situada nas margens deslizantes de espaços intervalares.


O eu artístico tem consciência de sua passagem do universo real por ele fingido, ao
universo ficcional, da arte: “despertei e ainda durmo”; “minha atenção boia entre dois
mundos.” Conforme Santiago, o entrelugar está situado “entre o sacrifício e o jogo,
entre a prisão e a transgressão, entre a submissão ao código e a agressão, entre a
obediência e a rebelião, entre a assimilação e a expressão” (2000, p. 26). Pessoa cria
uma obra de arte mesclada desses dois mundos: um supostamente homogêneo e
coerente; que se direciona a outro, fragmentado, heterogêneo e imprevisível, dentre os
quais, há um terceiro espaço, o da passagem que conduz de um universo ao outro. Os
limites das fronteiras apresentam-se porosos, permeáveis e flexíveis. Hanciau (2005),
diz que as fronteiras surgem tanto como reais quanto imaginárias, intransponíveis e
implícitas. Elas remetem ao sentimento da inconcretude e do inacabamento. Na obra
pessoana, os universos que o eu-lírico atravessa misturam-se, gerando dúvidas e
incertezas, pois já não se sabe em qual mundo ele está inserido. Esses sentimentos
fazem perdurar um senso de desorientação em que não há mais planos ou ideais fixos.
Conforme mencionado anteriormente, a prosa poética de Pessoa é marcada pela
passagem da literatura moderna para a literatura contemporânea. Ela não é totalmente
uma nem outra, mas uma mistura das duas. Na modernidade ainda há a presença do
6
discurso, que se transforma no contra-discurso , na contemporaneidade. Na
modernidade o signo possui uma estrutura binária, porém exigindo que um elemento
externo relacione o significante com o significado. Nessa fase, a linguagem já se dá
como discurso, e é o próprio homem que dá ao signo, através do conhecimento, o seu
estatuto de signo. Segundo Foucault: “A partir do século XIX, a linguagem se dobra
sobre si mesma, adquire sua espessura própria, desenvolve uma história, leis e uma
objetividade que só a ela pertencem” (1999, p. 319). Nessa fase surge o contradiscurso,
no qual há uma ausência do dizer. A arte surge como destruição dela mesma, é a
desintegração, diluição de tudo; surge a arte como dissimulação. O homem passa a ser o
senhor da linguagem, porém trata-se de uma linguagem que remete ao próprio ser, é
uma metalinguagem, conforme verificamos no trecho da obra As Palavras e as Coisas:

6
O termo contra-discurso é, também, uma expressão usada por Michel Foucault, no livro As palavras e as
Coisas (1999).
62

No momento em que a linguagem, como palavra disseminada se torna objeto


de conhecimento, eis que reaparece sob uma modalidade estritamente oposta:
silenciosa, cautelosa deposição da palavra sobre a brancura do papel, onde
ela não pode ter nem sonoridade, nem interlocutor, onde nada mais tem a
dizer senão a si própria, nada mais a fazer senão cintilar no esplendor do seu
ser. (FOUCAULT, 1999, pp. 324).

A linguagem fala dela mesma, pois ela se configura como a essência do ser e do
tempo como compreensão do mundo e do homem. Ela oportunizou ao homem ser
colocado diante dele mesmo, refletindo sobre si mesmo, e lhe propiciou ter consciência
de sua finitude. Além de permitir o ordenamento e a representação do pensamento,
conforme Foucault (1999) mesmo afirma que não é o homem que pensa a linguagem,
mas sim a linguagem que pensa o homem. Então para conhecer o homem é necessário
compreender a linguagem, uma vez que sujeito e linguagem estão intrinsecamente
ligados.

De vez em quando pela floresta onde de longe me vejo e sinto, um vento


lento varre um fumo, e esse fumo é a visão nítida e escura da alcova em que
sou atual, destes vagos móveis e reposteiros e do seu torpor de noturna.
Depois esse vento passa e torna a ser toda só ela a paisagem daquele outro
mundo... (PESSOA, 2011, p.455).

Percebemos que ainda existe um discurso nesse fragmento, porque ele ainda
comunica algo, porém está direcionando ao contra-discurso, pois o eu artístico não
pressupõe a presença de um público. É uma linguagem ao infinito, e a arte surge como
destruição dela mesma, dissolução de tudo, resultando na arte da dissimulação, do
contra-discurso. Há um jogo de vocábulos que ressoa outras palavras, tudo sem lógica,
sem coerência, o que provoca encantamento, e a sensação do vazio e do múltiplo, do
obscuro e da clarificação. Dessa maneira, o eu fictício permanece num estado de
transição contínua, entre o real por ele criado: “visão nítida e escura da alcova”; e o
irreal, que pertence ao sonho, ao imaginário: “De vez em quando pela floresta onde de
longe me vejo e sinto”.

2.2 A (Di) Simulação

Conforme já mencionado anteriormente a obra pessoana encontra-se na


passagem da simulação para a dissimulação. Para entendermos esse caminho
63

utilizaremos os conceitos de Jean Baudrillard para os termos simulacro, dissimulação e


simulação: esta é uma forma de “fingir ter o que não se tem, é fingir uma presença
ausente, criar uma imagem sem correspondente com a realidade” (BAUDRILLARD,
1991, p. 13). A dissimulação é a ação de fingir não ter o que se tem. A simulação parte,
ao contrário, da utopia, do princípio da equivalência, procede da negação radical do
signo como valor e como reversão e aniquilamento de toda referência. Segundo
Baudrillard (1991), enquanto a representação tenta absorver a simulação interpretando-a
como falsa representação, a simulação envolve todo o edifício da representação como
simulacro. Este último pertence ao universo das aparências, provocando ilusão, não
sendo aquilo que parece ser. É como se uma ação fosse uma simulação, e o produto que
ela produz gera o simulacro. O mundo tornou-se imagem, no qual realidade e cópia
tornam-se inseparáveis. No processo de simulação quanto mais próximo estiver daquilo
que se parece com a realidade, menos deixará de ser uma representação, quanto mais
distante da realidade, mais o simulacro prevalecerá. Ele é que delineia o perfil da
sociedade moderna, e juntamente com a simulação, transforma a sociedade, seja
copiando-a, seja criando outra realidade ilusória. A simulação é a criação de modelos de
um real sem origem nem realidade, ou seja, de um hiper-real.
O simulacro não é algo que está fora do real, mas faz parte dele e é nele que
pode ser classificado como simulacro. Conforme Rodrigues (2007), “a modernidade
vive no mundo da simulação e a arte perde, com isso, a sua singularidade, o seu
potencial de diferença ante a realidade vazia da artificialidade”. (RODRIGUES, 2007,
p. 90). No dizer da autora, “à obra de arte cabe novas dimensões no seu modo de sentir,
de ser e até mesmo do fazer” (RODRIGUES, 2007, p. 91). Dessa forma, a construção
da arte no texto literário, só é possível a partir de uma nova crítica da arte sobre si
mesma, como processo artístico. O eu poético, na prosa poética pessoana, utiliza-se da
metalinguística como inovação para construir a arte de si, uma arte que, ao construir-se,
fala sobre si mesma, e se transforma em produto da criação artística.

Outras vezes este quarto estreito é apenas uma cinza de bruma no horizonte
dessa terra diversa... E há momentos em que o chão que ali pisamos é esta
alcova visível... Sonho e perco-me duplo de ser eu e essa mulher... Um
grande cansaço é um fogo negro que me consome... Uma grande ânsia
passiva é a vida falsa que me estreita... (PESSOA, 2011, p.455).

O eu artístico sofre ao construir a obra de arte, pois ele encontra-se rumo à “terra
diversa”, ao universo artístico. Ele encontra-se muito cansado e um “fogo negro” o
64

consome. É algo incógnito, indefinível, invisível. Bernardo Soares finge uma situação
que não é, finge não ser aquilo que é, ou seja, nesse viés, não existe uma “mulher” na
obra pessoana, ela remete à própria arte, ao processo artístico. O ato de fingir pressupõe
que tanto o verosímil, quanto o inverossímil, forma-se num jogo discursivo no qual
predomina a transgressão dos limites. Esse jogo ora aproxima, ora distancia da
realidade. Isso se dá porque no ato de fingir, o imaginário adquire uma determinação
que não lhe é próprio, contudo adquire uma característica do real. Esse jogo representa a
força da estruturação artística, e ele é o próprio ato do fingir, com o intuito de confundir
o leitor. O universo criado pelo eu poético é um mundo imaginário. Assim sendo, o ato
de fingir no texto ficcional nada mais é que uma relação dialética entre imaginário e o
real. “O jogo artístico do fingimento implica aquilo que se esconde nas dobras da prosa
poética: o próprio ato de criar. Assim, o texto-livro espelha o seu próprio jogo mais
secreto, instaurando uma espécie de auto-dissimulação criadora”. (RODRIGUES, 2007,
p. 95).
O real já não existe, foi absorvido pelo simulacro e substituído pelo processo de
simulação. Para Baudrillard, a dobragem do real, transforma a simulação do real em
hiper-real. Simular não é simplesmente fingir: “Aquele que finge uma doença pode
simplesmente meter-se na cama e fazer crer que está doente. Aquele que simula uma
doença determina em si próprio alguns dos respectivos sintomas.” (BAUDRILLARD,
1991, p. 9). Já fingir ou dissimular deixam intacto o princípio da realidade: a diferença
continua a ser clara, está apenas disfarçada, enquanto que a simulação põe em dúvida a
diferença do verdadeiro e do falso, do real e do imaginário. Ou seja, a dissimulação
oculta o que existe, e na simulação ocorre falsidade de tentar aparentar uma existência
daquilo que não é real. Dessa maneira, a prosa poética de Pessoa não se refere a uma
realidade objetiva, mas sim a uma realidade que pertence somente na própria obra,
enquanto esta se instala esteticamente num jogo desarticulado e descontínuo de ideias,
cuja desordem cria uma imagem sintática, ambígua e desconexa.
Na prosa poética Na Floresta do Alheamento o eu artístico confessa a sua
escritura como mentira, e passa a relacioná-la com a imperfeição. A verdade e a
realidade que estão inseridas fora da arte são insignificantes. O real se tornou uma
utopia, que Segundo Baudrillard (1991), já não é da ordem do possível, mas um objeto
perdido. Dessa forma, Pessoa cria sua própria realidade, uma verdadeira poética do
fingimento.
65

Que nítida de outra e de ela essa trémula paisagem transparente!... E quem é


esta mulher que comigo veste de observada essa floresta alheia? Para que é
que tenho um momento de mo perguntar?... Eu nem sei querê-lo saber...
(Pessoa, 2011, p.455).

O eu artístico perde o vínculo com o real e dissimula não ser aquilo que é. A
mulher que ele se refere tenta encobrir o fazer artístico, e mais à frente ele admite que
nem quer saber quem é essa mulher. Ele constrói um jogo discursivo que não está no
mero aparente, mas na metáfora do aparente, do fingido, sugerindo confundir o leitor,
pois ele representa a força do fazer artístico. Não existe uma verdade, contudo existem
inúmeras verdades. Todo o fazer artístico está envolto no mais profundo fingimento e
imaginação criadora, permeado por imagens oníricas. Diante disso, o sonho gera
imagens de imagens, além de se projetar no mundo das sensações: “Que nítida de outra
e de ela essa trêmula paisagem transparente”. O sentido da visão permite mostrar a
paisagem transparente, ao mesmo tempo em que ela também se apresenta trêmula. As
imagens se mesclam e tudo adquire uma nova conotação, um novo signo. Deste modo, o
ato de fingir no texto ficcional nada mais é que uma relação dialética entre imaginário e
o real. Pessoa utiliza-se da metalinguística como inovação para construir a arte de si,
uma arte que, ao construir-se, fala sobre si mesma, se transformando em produto da
criação artística.
O texto analisado cria um real que nunca acontecerá, que existe somente
enquanto escritura. O eu artístico constrói um jorro desarticulado e descontínuo de
ideias, cuja desordem cria uma imagem sintática inesperada, ilógica e caótica. Ele
dissimula não ser o que é. Neste caso, Baudrillard, esclarece que:

Hoje a abstração não é do mapa, do duplo, do espelho ou do conceito. [...] é a


geração de um real sem origem nem realidade, ou seja, de um ‘hiper real’.
[...]. Pois se qualquer sintoma pode ser e já não pode ser aceito como um
facto da natureza, então toda doença pode ser considerada simulável e
simulada e a medicina perde o seu sentido, uma vez que só sabe tratar
doenças pelas suas causas objetivas. (1991, p.8-10).

A prosa poética Na Floresta do Alheamento é construída por uma linguagem que


produz novos sentidos caracterizando um texto que nunca terminou de dizer aquilo que
tinha de dizer, dissimulando e gerando uma ressignificação, além de sugerir uma
experiência inesgotável de continuidade.
66

Nós sabíamos ali, por uma intuição que por certo não tínhamos, que este
dolorido mundo onde seríamos dois, se existia, era para além da linha
extrema onde as montanhas são hálitos de formas, e para além dessa não
havia nada. E era por causa da contradição de saber isto que a nossa hora de
ali era escura como uma caverna em terra de supersticiosos, e o nosso senti-la
era estranho como um perfil da cidade mourisca contra um céu de crepúsculo
outonal... (PESSOA, 2011, p.457).

Dessa maneira, o eu lírico produz uma imagem dissimulada, que gera novos
sentidos. O dolorido mundo, a caverna escura reporta ao universo artístico, o qual causa
certo estranhamento. A prosa poética não é tecida pelo real, mas pelo imaginário. Não
existe dissimulação se não existir um modelo fingido, pseudo-verdadeiro de realidade
para ser explorado, ou mesmo modificado ou transformado em outro objeto, chegando
ao ponto de ser confundido com o que é real. A imagem construída no texto é
transformada em vetor de amplificação do real produzido pelo eu artístico, o qual
também dissimula uma farsa quando diz: “Nós sabíamos ali, por uma intuição que por
certo não tínhamos, que este dolorido mundo onde seríamos dois, se existia.”, ao mesmo
tempo em que ele se desdiz ao afirmar: “E era por causa da contradição de saber isto
que a nossa hora era escura.” O adjetivo escura remete a algo turvo, opaco, enegrecido,
que não se pode enxergar claramente. Já o verbo saber reporta a um estado de
compreensão, de domínio, de certeza, que o eu lírico não possuía. Ao confessar sua
dissimulada mentira o eu ficcional passa também a relacioná-la com a imperfeição
corroborando a teoria da inutilidade da arte como escrita do absurdo.

2.3 O Absurdo

O sentimento do absurdo surge das incertezas diante do mundo e da constatação


que a existência humana não é suscetível de uma única explicação, pois nada há de
concreto. A única certeza que se tem é que o destino do homem absurdo é nascer e
morrer e a trajetória entre um fato e outro não importa, pois ele se mantém vivo
simplesmente porque se apegou a esse momento. Ele compreendeu a situação
contraditória da condição humana e tem consciência de suas ações e se responsabiliza
por todas as suas consequências, e ele encontra-se diante de inúmeras alternativas,
inclusive da própria morte. A sua responsabilidade é o da consciência da revolta
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consciente, a qual se conectando a busca inconsciente de uma moral lhe permite fazê-lo
transcender e resgatar a sua dignidade, sempre de acordo com o instante, o agora, pois
ele não acredita no eterno e nem acredita no sentido das coisas.
O cenário político de pós-guerra na Europa também beneficiou o crescimento de
várias correntes artísticas dentre elas, o Teatro do Absurdo, o qual misturou diferentes
linhas de pensamento e as obras artísticas. Esse contexto deixou cicatrizes
inextinguíveis e um sentimento de desesperança e pessimismo na sociedade do pós-
guerra. O que propulsou as diversas correntes artísticas a se apoiarem no pensamento
filosófico a fim de construir suas obras de arte. Esslin foi um desses pensadores e diz
que o absurdo

[...] parece ser a atitude que mais autenticamente representa nosso próprio
tempo. A principal característica dessa atitude é a da sensação de que as
certezas e pressupostos básicos e inabaláveis de épocas anteriores
desapareceram, foram experimentados e constatados como falhos, foram
desacreditados e são agora considerados como ilusões baratas e um tanto
infantis. (1968, p.20).

Tudo gira em torno das incertezas e das dúvidas. A única certeza que ainda
existe é que a morte é inevitável. O absurdo deriva da “[...] preocupação do homem
moderno de dialogar com o mundo em que vive. Ele tenta fazê-lo enfrentar a condição
humana tal como ela é, e libertá-lo de ilusões fadadas a causar desajustamentos e
desapontamentos constantes”. (ESSLIN, 1968, p.278). Diante dessa constatação de
absurdo o homem se revolta e descobre que vive uma vida maquinal, sem sentido, pois
se sente cansado e desmotivado da rotina que leva, e a partir disso ele se conscientiza e
se desperta e tem de realizar uma escolha: continuar com essa vida sem sentido ou se
libertar. “A revolta nasce do espetáculo irracional, frente a uma condição injusta e
incompreensível. Mas seu ímpeto cego reivindica a ordem no meio do caos e a unidade
no âmago daquilo que foge e desaparece. A revolta clama, exige, quer que o escândalo
termine” (CAMUS 1965, 419). O homem necessita dessa revolta para se reerguer, pois
é a mesma que lhe dará motivações para continuar adiante.
Surge então, uma arte que busca uma expressividade inovadora, propondo uma
reflexão sobre o absurdo da condição humana. Há uma enorme ausência de valores, a
qual constitui as relações humanas. A condição humana já beira o desumano e desta
maneira, esse homem moderno e contemporâneo, de identidade estilhaçada e sem
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aparente destino parece buscar uma realização que parece apenas se dar no absurdo do
cotidiano.
É justamente nesse semblante do absurdo que a obra de arte é “a oportunidade
de manter a consciência e de fixar suas aventuras. Criar é viver duas vezes” (CAMUS,
1965, p. 172). “Todos eles tentam imitar, repetir e recriar sua própria realidade.”
(CAMUS, 1965, p. 174). Portanto, a criação é mímesis do absurdo. “A obra de arte
nasce da renúncia de racionalizar sobre o concreto” (CAMUS, 1965, p. 176). A criação,
conforme Camus (1965) a entende corrobora com o absurdo. Nela, encontramos suas
contradições e de maneira alguma ela poderia ser mero entretenimento, alegria para os
olhos ou uma fuga do problema fundamental. Fernando Pessoa em Na Floresta do
Alheamento navega por mares do fingimento poético, dos sonhos incompletos, do
passado revivido, da loucura assumida. Ele tem uma enorme capacidade de unir poesia
e prosa num mesmo ambiente literário. Ele utiliza uma linguagem fragmentada pautada
no paradigma da desrazão. No processo artístico de Fernando Pessoa verifica-se uma
ausência de sentido e de unidade. O absurdo confere à obra a vivência do caos no seu
próprio experimento e no assassinato do seu ser original. Ela demonstra ilogicidade e
incoerência:

Raiam da minha atenção vagos ruídos, nítidos e dispersos, que enchem de ser
já dia a minha consciência do nosso quarto... Nosso quarto? Nosso de que
dois, se eu estou sozinho? Não sei. Tudo se funde e só fica, fugindo uma
realidade-bruma em que a minha incerteza soçobra e o meu compreender-me,
embalado de ópios adormece... (PESSOA, 2011, p.460).

Nesse fragmento, defrontamo-nos com uma dificuldade de raciocínio, uma


desordem, incoerência e desconstrução do pensamento. É como se irracionalidade e
racionalidade se mesclassem. Há um jogo de negação/afirmação. Além de palavras que
remetem a vibrações de sentido: “Nós roçávamos a alma toda vista pelo frescor visível
dos musgos e tínhamos, ao passar pelas palmeiras a intuição esguia de outras terras.”
(PESSOA, 2011, p.456). Pessoa utiliza signos que nos permitem sentir, que nos
remetem a um jogo sinestésico o qual nos permite ir além do tempo marcado, ir para o
tempo da arte, ao processo construtivo da arte. Pessoa rompe com as formas fixas e cria
imagens absurdas: “Nosso quarto? Nosso de que dois, se estou sozinho?”, o que
propicia que o corpo tenha voz e comunique todas as sensações a sua volta: os ruídos
vagos, nítidos e dispersos que raiam da sua atenção; uma realidade-bruma que está
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fugindo; e o seu compreender que adormece. Todos os sentidos são misturados num
corpo de sensações, gerando o sentimento do absurdo.

Num torpor lúcido, pesadamente incorpóreo, estagno entre o sono e a vigília,


num sonho que é uma sombra de sonhar. Minha atenção boia entre dois
mundos e vê cegamente a profundeza de um mar e a profundeza de um céu; e
estas profundezas interpenetram-se, misturam-se, e eu não sei onde estou
nem o que sonho. (PESSOA, 2011, p.454).

As palavras contrárias se agregam: torpor e lúcido; pesadamente e incorpóreo;


sono e vigília; vê e cegamente, de modo a permitir o caos, a perturbação, nas quais o eu
poético assassina o seu ser original a fim de dar vazão ao absurdo. Pessoa teoriza sua
própria teoria, enfatizando a absurdidade da vida e da obra de arte. A profundeza de um
céu e a profundeza de um mar podem interpenetrar-se somente pelo sentimento do
absurdo. Camus (2006) explica que o absurdo não nasce do simples exame de um fato
ou de uma sensação, mas sim de uma comparação entre um estado de fato e certa
realidade, uma ação e o mundo que a espera. O absurdo não está no homem, nem no
mundo, mas na sua presença comum. Este é o único laço que os une. Ou seja, é o
encontro do homem com o mundo que gera o sentimento do absurdo. O absurdo
camusiano carrega o sentido heroico de se sustentar na negação de sistemas totalizantes.
O eu lírico tem consciência do seu estado, de que sua atenção boia entre dois mundos,
de forma que ele se encontra no espaço intervalar. Através do sonho, Bernardo Soares
nos conduz ao campo dos interstícios atingindo o máximo de sensações, e nos
transportando ao absurdo, pois ele vê cegamente, além dele não saber o que é, nem onde
está e nem o que sonha.
A arte pessoana não suporta esquemas preestabelecidos e explode em múltiplas
opções de sentido. A sua prosa poética fragmentária e desconexa metamorfoseia as
paisagens num mundo próprio, no qual se pode senti-lo em demasia, sem, no entanto,
conseguir esquivar do tédio existencial do homem:

E doía-nos gozar aquilo, doía-nos... Porque, apesar do que tinha de exílio


calmo, toda essa paisagem nos sabia a sermos deste mundo, tola ela era
húmida da pompa de um vago tédio, triste e enorme e perverso como a
decadência de um império ignoto... (PESSOA, 2011, p.458).

O sujeito lírico confunde-se com a arte poética (paisagem) num emaranhado


difícil de distinguir, em imagens fragmentadas e instantâneas que aparecem e
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desaparecem entre as reflexões. Há uma pluralidade de sentidos, uma decomposição de


ideias e sensações. Nesse fragmento, o tédio se sobressai (vago tédio, triste e enorme e
perverso), o que demonstra a velocidade e a transitoriedade da vida. Essa passagem para
outro local causa dor e sofrimento, e as certezas são alicerçadas por incertezas. Não
existe um eu que comanda outros “eus”, pois cada um deles constitui um fragmento e
seu conjunto forma uma multiplicidade: “E doía-nos gozar aquilo”. A dor não era
somente do eu ficcional, mas ele engloba outros sujeitos diante dessa angústia. Essa
fragmentação não visa uma unidade. É como se o eu se estilhaçasse em vários outros
eus, transmutando a obra de arte em um não ser. Sendo assim, estamos diante de uma
obra pluralista, que possui uma multiplicidade significante e transformadora, e não mais
se constitui como representação da realidade ou forma de expressão.

3 A PINTURA DE DALI – PERSISTÊNCIA E FLUIDEZ

A mão de um pintor deve ser fiel, a ponto de ser capaz de corrigir,


automaticamente, os elementos da natureza deformados por uma fotografia.
Toda pintura deve ser uma formulação ultra-acadêmica, pois é apenas a
partir desta virtuosidade que todo o resto, notadamente a arte, é possível.
SALVADOR DALÍ

Neste capítulo, analisar-se-ão algumas pinturas de Salvador Dalí, as quais se


pautam no onirismo, na imaginação, em imagens desconexas, fragmentárias e bizarras.
As suas pinturas são o próprio retrato do irracional, além de ser a manifestação da
imaginação liberta; é o próprio objeto artístico se desfazendo, desintegrando, diluindo e
perdendo o controle de tudo; é a consonância de imagens oníricas, belas, esdrúxulas,
surreais e fantásticas. Em suas obras, o pintor espanhol, constrói outra realidade,
pautada no hiper-realismo das imagens.
De acordo com Ades (1976), Dalí descobriu o surrealismo em 1928, o qual se
manifestou como um movimento que pretendia negar a estética e os valores
estabelecidos de uma sociedade burguesa e burocrática. Ele se estabelece como um
movimento de vanguarda e surge como uma atitude radical de ruptura com os modelos
artísticos, além de se mostrar contrário à institucionalização da arte, ou seja, avesso aos
mecanismos de produção, circulação e recepção dos objetos de arte implantados e
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mantidos pela sociedade ocidental. Mediante o automatismo, os surrealistas tentavam


plasmar, tanto por meio de formas abstratas como por representações figurativas, as
imagens do subconsciente. Assim, os sonhos, os mitos, as fantasias, as visões, as
alucinações, tornam-se fonte de criação para uma série de técnicas inovadoras como a
livre associação e a análise dos sonhos.
No surrealismo, real e imaginário se confundem e não existe um limite entre o
sonho e a realidade, pelo contrário, o que se percebe é a fusão destes estados ditos
contraditórios em uma espécie de realidade absoluta, que vem a constituir a
“surrealidade”. Breton apud Teles, diz crer “[...] na resolução futura desses dois estados,
aparentemente contraditórios, tais sejam o sonho e a realidade, em uma espécie de
realidade-absoluta, de super-realidade [...]”. (2012, p.137). De acordo com os
surrealistas, existe outra realidade, tão real e lógica como a exterior, que é a dos sonhos,
da fantasia, dos jogos espontâneos do inconsciente, e que podem ser alcançadas por
meio de procedimentos que liberam o potencial imaginativo e criativo do subconsciente.
Segundo Breton in Nadeau, o surrealismo é “automatismo psíquico puro pelo qual se
exprime, quer verbalmente, quer por escrito, quer de outra maneira, o funcionamento
real do pensamento. Ditado do pensamento, na ausência de qualquer controle exercido
pela razão, fora do âmbito de qualquer preocupação estética ou moral.” (1985, p.55). Os
surrealistas negam o mundo exterior em proveito do mundo que o indivíduo depara em
si e quer explorar, por isso a importância do inconsciente e suas manifestações, que se
traduzem numa nova linguagem.
O interesse da pintura, no surrealismo, não se pauta no prazer, meramente,
sensível da superfície pintada, mas sim, no enigmático, no alucinatório ou revelador
poder da imagem. Breton in Ades, diz que: “É impossível para mim considerar uma
pintura a não ser como uma janela. E minha primeira preocupação é saber para onde ela
dá.” (1976, p.37). Sendo assim, no surrealismo, a pintura pode empregar imagens de
sonhos diferentes, e pode também lembrar uma característica geral dos sonhos. É como
se fosse uma pintura ilusionista, mas não do mundo externo, e sim do mundo interior.
Salvador Dalí adentra no movimento surrealista, aplicando a técnica de
paranóia-crítica, que, segundo ele mesmo, in Nadeau, “é um método espontâneo de
conhecimento irracional baseado na objetivação crítica e sistemática das associações e
interpretações delirantes”. (1985 p.139).
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Esse método contribui ao descrédito total do mundo da realidade, e teria como


fundamento o delírio interpretativo, traço característico da paranoia. As ideias que se
formam nesse delírio, de caráter obsessivo, aparecem ao paranoico como dotadas de
uma realidade impossível de se questionar e que têm sempre sua origem em algum
fenômeno do mundo exterior. A atividade crítico-paranoica constata novos objetivos e
significados no irracional, além de transportar o mundo do delírio para o plano tangível
da realidade. Isto é, um objeto pode ser lido pelo que ele representa, mas também como
outro objeto totalmente diferente.
Dessa maneira, Dalí direcionou o surrealismo para a execução espontânea e
automática, além de manifestar uma expansão da consciência para além dos limites de
uma realidade frívola e trivial. Trabalha com a distorção e justaposição de imagens
conhecidas, proporcionando às suas pinturas, a sensação de fluidez e persistência.
Neste capítulo trataremos da persistência e fluidez nas obras: A Tentação de
Santo Antônio (1946); A metamorfose de Narciso (1934), A Persistência da Memória
(1931) e O Jogo Lúgubre (1929). No primeiro item, investigaremos a presença do
insólito, da fragmentação e da liquidez, características presentes nessas pinturas.
Posteriormente versaremos sobre o saturno, o grotesco e o bizarro que permeiam em
suas pinturas. Esse pintor espanhol consegue recriar a realidade e dar novos sentidos a
objetos presentes no cotidiano, os quais transpõem seus limites da essência, procurando
sua abstração e estranheza.

3.1- O Insólito e a Fragmentação

Salvador Dalí criava suas pinturas pautadas no surrealismo e a concretizava a


partir do próprio inconsciente, fazendo que sua produção artística pedisse um leitor com
uma digressão observadora ainda mais exigente, pois sua obra clama por um olhar
libertador. O pintor aborda continentes não explorados, como: o inconsciente, o
maravilhoso, o sonho, a loucura, os estados de alucinação, ou seja, tudo que fosse
avesso ao cenário lógico. Nestas obras predominam a ideia de deslocamento e
irrealidade, caráter enigmático, sentido onírico e associação de pensamentos. Assim,
Dalí priorizava o antirracionalismo, por isso, a ideia do sono abrir as portas para o
mundo onírico e para outra realidade. Algumas de suas pinturas se assemelham a visões
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oníricas repletas de signos e cifras inexplicáveis, de forma a atingir o observador a um


nível emocional que se situa muito além da lógica e da visão racional do mundo. As
suas obras encontram-se no entre-lugar, na passagem do surrealismo para a
contemporaneidade.
Com o método paranoico-crítico, Dalí produz na arte um mecanismo capaz de
captar e reproduzir na tela o delírio em si mesmo. Segundo a explicação do próprio
Dalí: “Longe de constituir um elemento passivo, o delírio paranoico constitui já, por si
próprio, uma forma de interpretação”. (1933, p.32). Trata-se de um método espontâneo,
de conhecimento irracional fundado na observação metódica e interpretações delirantes,
com a função de sistematizar a confusão engendrada pelos estados de automatismo
psíquico. Esse método contribui ao descrédito total do mundo da realidade. Sonho e
realidade se inter-relacionam, se cruzam e se fundem, como no exemplo da pintura A
Metamorfose de Narciso:

A Metamorfose de Narciso, 1934. Fonte: Robert Descharnes,1993.

Nessa perspectiva e de acordo com a pintura em destaque, verificamos que Dalí


rompe com as possibilidades de se fazer configurar imagens naturais na superfície da
tela, de modo que não se assemelhe à realidade, mas distancie-se dela pela instauração
do irreal, conforme cita Rosenthal, quando fala sobre a obra de arte moderna: “não faz
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parecer o irreal mais ‘real’, como tantas vezes se proclamou, mas contribui,
diferentemente, para que os artificialismos do relato fingido façam parecer o eu-
narrador mais irreal”. (1975, p.48).
Percebemos que essa pintura traz uma ambiguidade, pois visualizamos um
“suposto Narciso”, o qual é retratado extremamente dividido e fragmentado, e, ao
mesmo tempo, causam a impressão de serem simplesmente inúmeras rochas justapostas.
A arte pessoana também se estrutura por meio de impressões fragmentárias que
se compõem em múltiplos fragmentos significantes:

Num torpor lúcido, pesadamente incorpóreo, estagno entre o sono e a vigília,


num sonho que é uma sombra de sonhar. [...] Na alcova mórbida e morna a
antemanhã de lá fora é apenas um hálito de penumbra. Sou todo confusão
quieta. [...] Com uma lentidão confusa acalmo. (PESSOA, 2011, p.454,455).

Podemos verificar esse esfacelamento nas substantivações em alguns excertos,


como: torpor lúcido, alcova mórbida, hálito de penumbra, confusão quieta, lentidão
confusa, as quais sugerem o fragmentarismo e reforça também a ideia do mistério e do
incógnito.
Na obra de Dalí, Narciso está olhando para o rio, o que remete à transformação e
à liquidez. Segundo Bauman (2001), tomar forma fixa não é fácil, e tomar forma nova é
fonte de força e invencibilidade. Em suas imagens, a pintura daliniana sugere o
esfacelamento e a desintegração, conforme verificamos na água e nas nuvens que se
deslocam de um lado para o outro. Para Bachelard (2001), as águas possuem vozes,
cheiros, cores e sabores, além de ser uma linguagem contínua e fluida. As nuvens
remetem ao deslocamento, e segundo Chevalier (2002), elas são o símbolo da
metamorfose viva. Ambas remetem à liquidez e fluidez, características que também são
percebidas em Na Floresta do Alheamento:

Desenganemo-nos, meu amor, da vida e dos seus modos. Fujamos a sermos


nós... Não tiremos do dedo o anel mágico que chama, mexendo-se-lhe, pelas
fadas do silêncio e pelos elfos da sombra e pelos gnomos do esquecimento...
[...] E nós, caminhando sempre e sem o saber ou querer, parecia ainda assim
que nos demorávamos à beira daqueles lagos, tanto de nós com eles ficava e
morava, simbolizado e absorto... (PESSOA, 2011, p.458,459).

Nesta passagem podemos averiguar que o eu fictício não possui um lugar e nem
uma identidade fixa: “fujamos a sermos nós”, “e nós, caminhando sempre”. Ele é um
errante, instável e fluido. De acordo com Bauman (2001), a modernidade fluida
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produziu uma imensa mudança na condição humana, e o indivíduo tornou


tornou-se nômade e
sem lugar pré-definido. Ele busca incessantemente por sua identidade, pelo seu eu, com
o objetivo de tornar mais lento o fluxo, de solidificar o fluido e de dar forma ao
disforme. “A vida vivida que parece irreal, e continuará a parecer irreal enquanto não
for remodelada na forma de imagens que possam aparecer na tela”. (BAUMAN, 2001,
p.109). Destarte,, o eu lírico pessoano sugere ser um sujeito fictício que finge ser real, de
modo que não é possível
el identificar se ele é real ou uma imagem da realidade.
Aludiremos outras duas pinturas de Dalí, com o propósito de explorarmos sobre
o insólito e a fragmentação
mentação presentes nas mesmas.

A Tentação de Santo Antônio


Antônio, 1946. Fonte: Robert Descharnes,
arnes, 1993.

Diante desse processo criativo fragmentário, percebemos que a pintura de Dalí


se abre em muitos sentidos, as noções de sonho, por exemplo, nos permite
per perder a
noção de proporção, de tamanho e de tempo. A pintura mostra algumas figuras
essenciais, como: Santo Antônio, um cavalo branco gigante à frente, três elefantes
gigantes atrás do cavalo, um elefante mais ao fundo da tela, uma nuvem nublada que
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encobre um pouco o lado esquerdo da tela e uma mulher nua em cima de um dos
elefantes.
A pintura em destaque é permeada por imagens oníricas, bizarras, insólitas.
Visualizamos animais gigantescos, totalmente desproporcionais com a imagem do
santo, que se encontra nu, sugerindo referência aos sonhos, que despem as pessoas de
qualquer privação. O insólito fixa-se como uma categoria cujos traços presentes nesta
pintura evidenciam o extraordinário, sobrenatural ou extranatural que, de uma forma ou
de outra, causam estranhamento, medo, ou, pelo menos, inquietação no leitor. O santo
possui um tamanho bem menor em relação aos animais gigantes. As pernas dos animais
são disformes e extremamente finas em relação ao corpo, remetendo a patas de aranhas.
O insólito surge na pintura sugerindo aquilo que não é usual, mas que se iguala ao
sobrenatural, esquivando-se do que é esperado ou previsível. Isto é, os elementos que
aparecem na pintura, não são elementos que usualmente são vistos, mas que geralmente,
aparecem em sonhos. São acontecimentos que não são frequentes de acontecer, são
raros, pouco costumeiros, inabituais, e incomuns. Ocorreu uma desnaturalização e uma
desobjetificação dos elementos presentes nessa obra.
Semelhantemente, a arte poética de Pessoa também se manifesta por meio do
inusitado e inusual. A linguagem surge totalmente nova. O poeta cria uma língua dentro
da própria língua:

Nós sabíamos ali, por uma intuição que por certo não tínhamos, que este
dolorido mundo onde seríamos dois, se existia, era para além da linha
extrema onde as montanhas são hálitos de formas, e para além dessa não
havia nada. E era por causa da contradição de saber isto que a nossa hora de
ali era escura como uma caverna em terra de supersticiosos, e o nosso senti-la
era estranho como um perfil da cidade mourisca contra um céu de crepúsculo
outonal... (PESSOA, 2011, p.457).

Estamos diante de uma escritura em que sentido e linguagem se tornam um


corpo pulsante de sensações, em que a segunda também se mostra escorregadia, por
meio de um complexo jogo do mundo real e virtual. É uma linguagem totalmente
fragmentária e que corresponde a uma nova percepção da realidade. Estamos diante de
uma arte em que prevalece a deformação e a mudança na linguagem. Nessa prosa
poética, os vocábulos revestem-se de extraordinárias conotações, que lhes outorgam um
novo onirismo.
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Essa arte aniquilou a interação natural que os objetos estabelecem entre si no


contexto cotidiano, e isso se tornou possível devido à alegoria, em que cada significante
foi escolhido de forma arbitrária e não lhe foi imposto limites interpretativos, de forma a
gerar inúmeras possibilidades explicativas. Há uma dessemantização do significado
original que os elementos presentes nessa arte possuíam, o qual se tornou fragmentado e
reconstruído de novos sentidos. Na pintura, elementos como: o cavalo, os elefantes, a
mulher, o santo, as nuvens e as cores, adquiriram novos sentidos, diferentes daqueles
quando estão inseridos no mundo natural. Da mesma maneira ocorre com a arte
pessoana, em que a maioria dos vocábulos se revestiu de múltiplos significantes:

As flores, as flores que ali vivi! Flores que a vida traduzia para seus nomes,
conhecendo-as, e cujo perfume a alma colhia, não nelas mas na melodia dos
seus nomes... Flores cujos nomes eram, repetidos em sequência, orquestras
de perfumes sonoros... Árvores cuja volúpia verde punha sombra e frescor no
como eram chamadas... Frutos cujo nome era um cravar de dentes na alma da
sua polpa... Sombras que eram relíquias de outrora felizes... Clareiras,
clareiras claras, que eram sorrisos mais francos da paisagem que se bocejava
em próxima... (PESSOA, 2011, p.458/459).

Este excerto é recheado de imagens construídas por vocábulos alegorizados, que


remetem a um novo universo. As “flores” já não são flores, mas remetem à própria
escritura artística. A “paisagem” que bocejava nos conduz ao mundo artístico, à arte. As
palavras ultrapassam os sentidos normatizados dos signos, na tentativa de trazer
fagulhas do objeto sensível.
Nessa perspectiva, o quadro nos fornece a imagem do cavalo branco que se
encontra à frente, no qual, percebemos borrões nos cascos dianteiro do animal, o que dá
a impressão de derretimento, desintegração, fragmentação, liquidez. Segundo Bauman
(2001), os líquidos não mantém forma com facilidade, e isso é uma distinção dos
sólidos. Os fluidos têm uma grande mobilidade, grande inconstância, e essa
característica os dá a ideia de leveza. Além dessa ideia de liquidez, deparamos também
com a de movimento. É como se a pintura se movimentasse o tempo todo e cada
imagem possuísse em si uma animação. Esse deslocamento também é identificado em
Na Floresta do Alheamento:

E que fresco e feliz horror o de não haver ali ninguém! Nem nós, que por ali
íamos, ali estávamos... Porque nós não éramos ninguém. Nem mesmo éramos
coisa alguma... Não tínhamos vida que a Morte precisasse para matar.
Éramos tão ténues e rasteirinhos que o vento do decorrer nos deixara inúteis e
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a hora passava por nós acariciando-nos como uma brisa pelo cimo de uma
palmeira. (PESSOA, 2011, p.459).

A criação estética nos oferece imagens em que o eu se fragmenta e se espalha, se


movimentando, o que é sugerido também pelo vento e a brisa que acariciava o eu lírico.
O eu artístico se vê fragmentado e perde sua identidade, pois nem mesmo a vida ele já
não possuía. O vocábulo “nós” intensifica a ideia de multiplicidade e “não éramos
ninguém”, a perda da identidade.
Na tela daliniana, o cavalo branco é alegorizado e está com a face voltada para a
direita, o que dá a impressão de um grande esforço em resistir aos apelos sexuais, e uma
luta contra as tentações mundanas. Ele está galopando, e esse galope já produz uma
grande mobilidade, que é acentuada pelo plano de fundo azul. A cor branca do cavalo
cria a impressão de luminosidade e também de locomoção, gerando sensações diversas.
Segundo Merleau-Ponty (1999), as sensações são compreendidas em movimento, e a
cor antes de ser vista, proclama-se pela atitude do corpo que só convém a ela e com
determinada precisão, conforme visualizamos nos movimentos do cavalo.
A mulher nua em cima de um dos elefantes também remete à luxúria, aos
desejos e ao prazer carnal. Essas imagens se reportam a um jogo sedutor das aparências,
que segundo Baudrillard (1992), a sedução é algo que se apodera de todos os afetos e
representações e se apossa até mesmo dos próprios sonhos. Ela é uma forma que reverte
o movimento num progresso simulativo, rumo ao hiper-real. A simulação situa-se
exatamente na fronteira entre a essência e aparência, realidade e ficção, verdade e
mentira.
A obra A Tentação de Santo Antônio deixa de ser uma representação do real para
ser um simulacro que se afasta da realidade, que está além dela. O simulacro é uma
imagem sem referência, e à medida que as imagens da pintura são simuladas, os
simulacros também são construídos. Segundo Baudrillard, (1991), o simulacro é uma
máscara e encontra-se no mundo das aparências, causando ilusão. Todo simulacro
assemelha-se tanto ao real na visão exterior que se torna difícil separar o que é o modelo
do que é imitação e suas diferenças. Ele é a criação de modelos sem origem nem
realidade, ou seja, de uma hiper-realidade.
Da mesma forma, o texto pessoano encontra-se também num processo
simulativo rumo ao dissimulativo. O eu fictício finge não ser alguém que é, de forma a
transformar-se numa imagem. Nessa vertente, Baudrillard (1991) assevera que na
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modernidade a imagem adquiriu um lugar superior à realidade, porque ela se transforma


em vetor de amplificação do real. Dessa maneira, a realidade já não mais existe. “Nas
cortinas da nossa alcova a manhã é uma sombra de luz. Meus lábios, que eu sei que
estão pálidos, sabem um ao outro a não quererem ter vida.” (PESSOA, 2011, p.458). Já
não há mais manhã, porque somente desponta uma “sombra de luz”, sobre a qual o eu
lírico se esconde e se camufla, no intuito de não ser descoberto. Este também nos
remete à dissolvência em sombras. Segundo Humphrey (1976, p.44): “É, na sua
essência, um método para mostrar pontos de vista compostos ou diversos sobre o
mesmo assunto – em suma para mostrar multiplicidade”. Dessa forma, neste excerto,
como em toda a prosa poética, a multiplicidade é instauradora de dois mundos: o
límpido (real) e o nebuloso (virtual).
Composta deste mesmo modelo criativo é a tela daliniana, em que as nuvens
permeiam o plano direito do quadro, e as sombras se instauram no plano inferior.
Ambas aludem ao insólito, ao mutável, a algo que não se fixa, dando a impressão de
fenômenos em metamorfose e em movimento. O espaço comum e natural é destruído e
transfigurado, a fim de dar lugar a uma espacialidade virtual e alegórica. Nessa pintura
percebemos que o espaço amplia-se cada vez mais, rumo ao desconhecido, revelando-se
fragmentado, e a visão do tempo dissolve-se na realidade. O ambiente, aparentemente
um deserto, aparece designado por uma metódica deformação, de forma a se constituir
numa alteridade. Há uma ilogicidade na pintura, gerando elementos absurdos e um novo
universo é construído por meio da transfiguração dos objetos, resultando numa
renovação imagética. Segundo Camus (1965), é justamente nesse semblante do absurdo
que a obra de arte é a oportunidade de manter a consciência e de fixar suas aventuras.
Para ele, criar é viver duas vezes.
De acordo com Camus, na obra O Mito de Sísifo (1965), o absurdo é
inexprimível, porque se pudesse ser explicado, deixaria de ser absurdo, e ele nunca deve
ser considerado uma conclusão, um fim, mas sempre um ponto de partida. Assim sendo,
o texto pessoano também não pode ser explicado, porque ele adquire suas possibilidades
por meio do dinamismo semântico da enunciação alegórica, em que o sentido implícito
se superpõe ao explícito. Estamos diante de uma obra que está pautada na desrazão,
encaminhando-se para a irracionalidade e absurdez.

A manhã rompeu, como uma queda, do cimo pálido da Hora... Acabaram de


arder, meu amor, na lareira da nossa vida, as achas dos nossos sonhos... [...]
80

Desenganemo-nos ó Velada, do nosso próprio tédio, porque se envelhece de


si próprio e não ousa ser toda a angústia que é. (PESSOA, 2011, p.460).

O eu ficcional metamorfoseia as paisagens num mundo próprio, totalmente


desconexo. Ele enfatiza vocábulos comuns com letras maiúsculas, dando-lhes o caráter
de nomes próprios, a fim de sugerir a importância dessas palavras. Esse procedimento
desencadeia um intenso efeito de estranhamento, em que delírio e sonho se transformam
em matéria prima dessa criação, além de reforçar a ilogicidade e a absurdez na obra
artística.
Há uma ausência de sentido e de unidade na pintura: Santo Antônio está nu e
luta somente com sua cruz, ele está sendo tentado, e a tentação está associada ao desejo
ilícito, aos apetites vedados. Não há nada coerente e que remeta ao mundo natural, e
somos inseridos num universo delirante e alucinante, no qual vários elementos são
agregados, porém sem nenhuma relação direta entre eles. À medida que os elementos
são misturados, eles também são despersonificados e todos passam a desempenhar
funções totalmente diferentes das que desempenham no mundo original.
Dessa maneira, o insólito nos provoca desconforto e estranhamento, de modo a
nos propiciar uma realidade oposta à atual. É algo que nos surpreende e que ocorre fora
do prévio, do comum, do premeditado. A Tentação de Santo Antônio demonstra aquilo
que não é característico de acontecer, que é fora do comum, esquisito, inacreditável e
imprevisto. Sendo assim, a pintura é marcada por descontinuidades e incertezas, isso
porque as formas insólitas e fragmentárias dizem algo mais, de maneira que a razão
humana se liberta de qualquer forma de controle, e prevalecem os instintos mais
primários da pintura.
Outra obra de Salvador Dalí que citaremos é A Persistência da Memória, de
1931.
81

A Persistência da Memória, 1931. . Fonte: Robert Descharnes, 1993.

Essa obra não pretende assemelhar-se à realidade, mas distanciar-se dela pela
instauração do irreal. Por meio dessa pintura observamos que Dalí rompe com o
processo convencional de criação artística. Ele nos apresenta três relógios que marcam
horas diferentes e parecem que estão derretendo e se desintegrando. Os relógios
traduzem de forma objetiva a passagem do tempo. O artista os representou de uma
maneira surreal, de forma a demonstrá-lo como flexíveis, maleáveis, derretidos,
aparentando dissipar-se na superfície onde estão apoiados. Ao fundo tem-se uma
provável paisagem de uma praia ao amanhecer, com um céu azul que parece fundir-se
com o mar, cor também de dois relógios. A cor azul está associada à monotonia,
serenidade, e pode nos remeter à imagem central da tela, que está de olhos fechados e
também sugerir a sensação do movimento ao infinito. De olhos fechados no chão, tem-
se um suposto animal sem boca, com uma língua que sai pelo nariz, sobre ele repousa
um relógio flácido, de fundo branco, que está derretendo. O sono pode estar referindo-se
ao estado onírico, no qual nem o tempo nem o espaço são fixos. Os elementos da tela se
movimentam, balançam e estremecem. Alguns críticos relacionam o rosto desse
suposto animal ao autorretrato de Dalí. O que também pode insinuar que o pintor está
fechando os olhos para as artes clássicas, de forma a se abrir para um novo tipo de arte,
que seria a arte do irracional, do ilógico e do imaginário. O pintor remete essa obra à
própria arte, ao delírio em si mesmo. Nessa perspectiva de leitura, sua obra encontra-se
82

na passagem do surrealismo para o contemporâneo. Não há nada real nessa obra, tudo se
encontra ilusório e desfigurado.
Do lado direito do quadro há uma mesa, e sobre ela tem mais um relógio
derretendo com uma mosca em cima, além de um tronco de uma árvore, com outro
relógio azul desintegrando. Também tem outro relógio, que não marca horas, com
muitas formigas em cima, insetos que insinuam uma vida organizada em sociedade.
Essa metáfora alegórica que o pintor utiliza pode sugerir que a arte está farta de ser
organizada e monitorada. Tanto que esse relógio encontra-se fechado, porque a arte se
fecha para esse pensamento. Ela anseia ser livre e foge de qualquer influência de ser
racional e coerente. Há uma dissolução do homem e do contexto social na esfera de um
universo inesperadamente inventado, aludindo a um mundo antinatural. Diante disso,
percebemos que nessas imagens ocorre um rompimento com a razão e uma total
ilogicidade, remetendo ao hiper-realismo, pois já não há mais o real. Segundo
Baudrillard, estamos diante de “um hiper-real, produto de síntese irradiando modelos
combinatórios num hiper-espaço sem atmosfera”. (1992, p.8). Há inúmeras
possibilidades interpretativas nesses elementos, as quais promovem cenas absurdas
repletas de signos indecifráveis, opondo-se totalmente a uma visão racional do mundo.
Diante de uma realidade caótica 7 Salvador Dalí constrói outra realidade. Ele
consegue dar sentidos totalmente diferentes a objetos do cotidiano, que ultrapassam
seus limites da essência, de forma a causar estranheza e estupefação. O caos presente
nessa pintura desfaz no infinito toda e qualquer consistência e contém todas as formas
possíveis de pensamento, pois ele é o nascimento e esvaziamento constante de todas as
formas possíveis. A cor clara está no plano superior e direito do quadro, e o tom negro
vai inundando o mesmo, no plano inferior e esquerdo, o que pode remeter ao ser
abrindo-se para o inconsciente. Essa visão permite identificar que o espaço e o tempo
também estão se dissolvendo e se desintegrando. De acordo com Bauman, (2011) o
tempo se sobrepõe ao espaço, de forma que podemos nos movimentar sem sair do lugar.
Isso se dá porque o tempo se tornou líquido, fluido, e por isso permite o instantâneo, o

7
Segundo Deleuze e Guattari, na obra O que é a Filosofia? (1992), e Guatarri em Caosmose (1992), o
caos se caracteriza mais pela velocidade, do que pela desordem; eles são fluxos velozes e incessantes que
perpassam a nossa consciência sem que, paradoxalmente, estejamos completa ou mesmo minimamente
conscientes deles; é um vazio que não significa ser nada.
83

efêmero8 e o temporário. A pintura analisada sugere esse movimento, ao mesmo tempo


em que, os seus elementos vão se desintegrando e esfacelando. Bauman, (2011) diz que
a modernidade líquida seria um mundo repleto de sinais confusos, propenso a mudar
com rapidez e de forma imprevisível. A tela daliniana possui essa característica, pois a
liquefação presente nas imagens permite o movimento dos elementos, de maneira que as
leituras podem ser múltiplas e instauradoras de sentido.
Dalí reconstruiu nessa tela, um novo mundo, e transfigurou de maneira radical
os elementos presentes nela. Essa metamorfose foi instaurada por intermédio do
devaneio e do delírio. Dinamismo similar ocorre também em Na Floresta Do
Alheamento, em que a expressividade lírica conduz ao devaneio, além de representar um
papel importante, “ao tornar uma coisa, ou uma esfera de coisas, com um significado
novo e transformado”. (BACHELARD, 2006). Na obra pessoana, os devaneios
poéticos nascem da força viva da linguagem:

E assim nós morremos a nossa vida, tão atentos separadamente a morrê-la de


que não reparámos que éramos um só, que cada um de nós era uma ilusão do
outro, e cada um, dentro de si, o mero eco do seu próprio ser... Zumbe uma
mosca, incerta e mínima... (PESSOA, 2011, p.460).

As imagens construídas nesta arte conduz o sonhador a uma percepção mais


ampla e profunda do cosmos. Os trechos: “morremos a nossa vida”, “éramos um só”,
“cada um de nós era uma ilusão do outro”, “cada um dentro de si”, “o mero eco do seu
próprio ser”, “zumbe uma mosca”, nos fazem experimentar situações não factuais,
multicoloridas, de extrema leveza e fina melancolia, permitindo que o mundo recriado
pelo devaneio se torne mais enigmático e estimulante do que o real. O devaneio nos
conduz a um novo universo “tornando-nos habitantes da amplidão. E nos inserimos
melhor no mundo quando o fazemos como seres solitários, que habitam as imagens,
pois são elas que, na dialética da luz e da sombra, nos movem para os nossos devaneios
criadores”. (BACHELARD. 2006, p.133). Dessa maneira, a linguagem de Pessoa se
abre num novo porvir, devolvendo ao sonhador uma percepção criativa e nutrindo-o de
espetáculos variados.
Nas telas comentadas de Dalí, as imagens originárias dos seus elementos já não
são mais importantes, o que prevalece nelas é a renovação imagética. As pinturas não

8
Segundo Lipovetsky (2009), O efêmero seria o ritmo precipitado em que as frivolidades e o reino das
fantasias instalaram-se. É o gosto pela novidade, o viver o presente e as mudanças frequentes que
acontecem rapidamente. É a imensa rapidez para se manter atualizado e em constante mudança.
84

almejam nos dar uma dimensão do real, mas sim uma possibilidade do irreal. Sendo
assim, na obra A Persistência da Memória, o animal que está de olhos fechados no chão
não se reporta a uma criatura determinada, mas a possibilidades de vários entes. Da
mesma forma que os relógios, também podem se referir a outros objetos que não sejam
relógios. Isso se dá porque a obra de arte é um processo aberto de interpretação, e os
elementos criados pelo artista se tornam obscuros, misteriosos e multiplicadores de
inúmeros sentidos, se afastando dos sentidos que o mundo natural lhes atribui.
Similarmente, se desenvolve o texto de Pessoa: alicerçado numa pluralidade
compositiva, em que as palavras alargam-se por caminhos plurais, ultrapassando
qualquer compreensão delimitada, no intuito de dizer o não dito. O eu fictício dissimula
denotar na criação alguma relação com o mundo real, porém ele descortina um universo
puramente artístico repleto de multiplicidades:

E eu, que longe dessa paisagem quase a esqueço, é ao tê-la que tenho
saudades dela, é ao percorrê-la que a choro e a ela aspiro... [...] E ei-la que, ao
irmos a sonhar falar nela, surge ante nós outra vez, a floresta muita, mais
agora mais perturbada da nossa perturbação e mais triste da nossa tristeza.
Foge de diante dela, como um nevoeiro que se esfolha, a nossa ideia do
mundo real, e eu possuo-me outra vez no meu sonho errante, que essa
floresta misteriosa enquadra... (PESSOA. 2011, p.456/458).

Pessoa pratica o ato do fingimento exacerbado e a semântica das palavras sofre


rupturas de sentido. Os vocábulos: “paisagem” e “floresta” reportam à própria arte, à
escritura poética. Já não há mais o mundo real, resta apenas uma vaga ideia, e se
vislumbra a floresta misteriosa, que sugere ser o mundo virtual. Estamos diante de uma
linguagem única, que faz referência a um vazio da realidade e cria um real meramente
aparente. Ela procura firmar-se, a fim de diluir tudo o que remete ao mundo real. O
autor realiza um movimento que expressa o caráter fragmentário e instável dessa arte.
Da mesma forma, que verificamos na pintura: A Persistência da Memória. Tanto ela
quanto o texto poético remetem à fragmentação, à desnaturalização, à dissimulação e ao
absurdo. Ambas as obras de arte são instigantes e provocadoras de jogos ilimitados.
85

3.2- O Saturno e o Bizarro

O surrealismo não valoriza o sonho simplesmente pelo sonho, sem que haja um
sentido estético imbuído. O universo surreal surge da fusão entre dois espaços
aparentemente contraditórios, no intuito de conseguir encontrar uma síntese entre os
opostos, sustentando-se tanto do real interior, quanto do exterior, do estado de vigília e
sono, do consciente e inconsciente, sempre buscando uma unidade, conforme assevera
Breton: ”Tudo leva a crer que existe um determinado ponto do espírito donde vêm a
vida e a morte, o real e o imaginário, o passado e o futuro, o comunicável e o
incomunicável, o alto e o baixo, que deixam de ser apreendidos contraditoriamente”
(2009, p. 269).
Diante dessa combinação dos opostos, surgem, também, o saturno e o bizarro,
que buscam uma comunicação com o irracional e o ilógico.
O Jogo Lúgubre, nome da obra, a seguir de Dalí, evidencia a presença marcante
dos elementos surrealistas, trazendo imagens do sonho e da fantasia, do desejo e do
inconsciente. Além de ser a própria imagem da irracionalidade e do entranhar do mundo
real no mundo irreal, a pintura consegue a conciliação de imagens fantásticas e
disformes, estabelecendo, de fato, um jogo lúgubre, isto é: melancólico, medonho,
saturno, sombrio e, absurdamente, trágico.
A pintura se utiliza de uma fusão de cores uma próxima da outra. O azul,
amarelo e vermelho sugerem chamas de fogo, sensualidade e movimento. Há a
predominância do azul, que segundo Chevalier (2002), pode ser considerada a cor do
vazio, sendo a mais fria das cores. Dalí desmaterializa as imagens, de forma a dar novos
significados aos elementos, rumo a um mundo imaginário, visto que o azul constitui
também o próprio devaneio. O azul é o surrealismo em cor, e as incompreensões do ser
humano diante da vida.
86

O Jogo Lúgubre, 1929. Fonte: Robert Descharnes, 1993.

Essa obra de arte amplifica os elementos absurdos da realidade. Para Camus,


(1999), o absurdo nasce da composição de três fatores indissolúveis: o homem, o mundo
e a comparação entre os dois. No absurdo não há um propósito no mundo, moralidade,
certo nem errado, tudo parece ser permitido, nada tem um porquê, e o mundo não tem
propósito algum.
Assim, a pintura daliniana é uma arte que se reconhece pela sua antilógica e
sensibilidade, pela qualidade fotográfica e pela exploração das possibilidades
expressivas do espaço, o que provoca surpresa e encantamento: a roupa íntima de um
dos homens suja; o outro ensanguentado abraçando-lhe; a cabeça enorme flutuando
acima deles, de onde sai inúmeros objetos; a mão enorme da estátua, que tem ao lado
uma estátua menor, com um possível falo na mão encaixando na estátua maior. É como
se as estátuas ganhassem vida e sugerissem movimento e liquidez. São inúmeras
imagens bizarras e justapostas que remetem ao onirismo. São elementos da vida real,
que se despersonificam e adquirem sentidos totalmente diferentes dos usuais. Nada
remete à realidade e todos os elementos são desfigurados, gerando o absurdo. Camus
(1965) questiona como o homem pode dar sentido à sua vida num universo absurdo
87

diante de uma vida totalmente sem significado. O homem absurdo camusiano pauta suas
experiências e ações no momento em que são realizadas. Segundo ele:

Antes de encontrar o absurdo, o homem cotidiano vive com metas, uma


preocupação com o futuro ou a justificação (não importa em relação a quem
ou a quê). Depois do absurdo, tudo fica abalado. A ideia de que ‘existo’,
minha maneira de agir como se tudo tivesse um sentido, tudo isso acaba
sendo desmentido de maneira vertiginosa pelo absurdo de uma morte
possível. (1965, p.68-69).

Dalí criou uma obra absurda e que possui uma estrutura artística ousada, irreal,
fantástica e que revela um realismo exagerado, que se identifica muito com a estrutura
do sonho. Ele constrói o maravilhoso, e segundo Breton in Hocke, “O maravilhoso9 é
sempre belo, não importando de que maravilhoso se trate. Na verdade, só o maravilhoso
é belo10”. (1974, p.82).
Nessa pintura, deparamo-nos, ao lado do belo, com o feio, termo que não se
opõe ao belo, mas que possui um valor em si mesmo. Ele aparece nas pinturas
dalinianas como o grotesco, uma imagem do incompleto, do desarmônico; como figuras
fantasmagóricas, sombrias, fluidas e disformes.
Segundo Baudelaire in Friedrich (1978), deve-se dotar a beleza de um encanto
agressivo, para que esta seja protegida do banal e seja bizarra e disforme. Dessa
maneira, o feio deforma tudo o que é real, a fim de tornar perceptível a evasão ao
suprarreal, gerando a melancolia.
De acordo com Mello (1983), a melancolia e a angústia são temas recorrentes da
arte maneirista. O maneirismo visto não como um estilo de época, mas como uma
expressão da arte, uma forma estética, que transcende a delimitação temporal.
Percebemos na pintura O Jogo Lúgubre, que Dalí expressa um universo em forma de
imagens complexas, de muita criatividade e de enorme imaginação artística. Hocke,
(1974), aponta o planeta Saturno como o portador da melancolia. Ele é o símbolo da
genialidade, mas também do humor sombrio e da loucura, características presentes nesta

9
Tratamos do conceito de maravilhoso, não no conceito tradicional do termo, mas do conceito que inclina
para o fantástico e o absurdo. Segundo Todorov (2004), O maravilhoso instala seu universo irreal sem
causar qualquer questionamento, estranhamento ou espanto no leitor, e caracteriza-se pela presença
harmônica e natural de fatos sobrenaturais ou extraordinários. Já o fantástico é a hesitação experimentada
por um ser que só conhece as leis naturais, diante de um acontecimento aparentemente sobrenatural. O
insólito no fantástico é algo que assusta, amedronta; são eventos que fogem à regra, que chocam.
10
O belo aqui deve ser entendido como um belo saturno, de saturnino e também paradoxal. Utilizamos a
concepção de Friedrich (1978), em que o conceito de belo se verifica também na desordem, no caos, na
perplexidade.
88

pintura, que se mostra como alegoria da melancolia e do bizarro. Há uma inquietude,


uma desinstalação que se insurge contra a harmonia, através de imagens absurdas,
incoerentes e expressivas, predominando a paisagem fantástica e o mundo
apresentando-se como um sonho. A tela nos traz novas imagens-signos do mundo, de
forma a permitir que tenhamos contato com um universo alegórico que permite à obra
um movimento gerador de significantes.
Segundo Mello (1983), o maneirismo expressa principalmente o desassossego, a
ansiedade e a perplexidade, características presentes na arte poética pessoana, que se
apresenta imbuída de extrema melancolia:

Uma grande angústia inerte manuseia-me a alma por dentro e, incerta, altera-
me, como a brisa aos perfis das copas. [...] Nada vale a pena, ó meu amor
longínquo, senão o saber como é suave saber que nada vale a pena... [...] Que
horas, ó companheira inútil do meu tédio, que horas de desassossego feliz se
fingiram nossas ali!... Horas de cinza de espírito, dias de saudade espacial,
séculos interiores de paisagem externa... (PESSOA, 2011, p.455/457).

Estamos diante de uma arte carregada de ironia saturnina e de certa melancolia e


tédio: “uma grande angústia inerte”, “nada vale a pena”, “companheira inútil do meu
tédio”, “horas de desassossego”, “horas de cinza espírito”. Estas expressões remetem a
uma grande inquietação diante da gama de multiplicidades e possibilidades do fazer
poético. O desassossego e a inquietude do eu lírico advém da consciência de sua
incapacidade de realizar uma obra de arte perfeita. Consoante Mello:

O poeta maneirista tornou-se obcecado pelo sentimento trágico da vida, pela


miséria do homem, herdeiro de um legado de dores [...]. A melancolia e a
angústia também são temas constantes da poesia maneirista, e isto porque sua
mundividência é sombria e permeada de sofrimento (MELLO, 1983, p. 38-
39).

Nessa perspectiva, a arte pessoana carrega em si elementos da arte maneirista, a


qual mescla real com irreal, racional com irracional. A linguagem surge permeada de
visões e sensações que compõe um novo universo, no qual prevalece a irrealidade e o
sonho.
A pintura de Dali também apresenta outras características maneiristas, como: o
tédio e o saturnino, isto é, o sombrio e melancólico, que são representados na imagem
da estátua maior tapando o rosto, talvez numa expressão de desolação e vergonha; no
semblante do rapaz que está com as partes íntimas sujas de excrementos; na desolação
89

da outra pessoa o abraçando. Dessa forma, já não há mais limites entre o fictício e o
real. Da cabeça suspensa no ar, é como se saísse um ovo que explodiu e dele voassem
diversos objetos em círculo. Essa tela sugere que do mistério da vida emerge um
amontoado de sonhos com diversos objetos, e partes dos corpos humanos: cabeças,
dedos, rostos, seios, de forma a remeter à fragmentação do ser humano e da obra de arte,
reportando a uma multiplicidade significante. Todos os elementos voam num espaço
atmosférico celestial, de maneira a dar ideia de nada sólido, nada palpável e nada
terreno. Estamos diante de uma obra que se reporta à própria arte.
Da mesma maneira, Fernando Pessoa em Na Floresta do Alheamento também
remete ao fazer artístico, conforme podemos comprovar no trecho:

Outras vezes este quarto estreito é apenas uma cinza de bruma no horizonte
dessa terra diversa... E há momentos em que o chão que ali pisamos é esta
alcova visível... Sonho e perco-me, duplo de ser eu e essa mulher... Um
grande cansaço é um fogo negro que me consome... Uma grande ânsia
passiva é a vida falsa que me estreita... (PESSOA, 2011, p.455).

A escritura pessoana fala de si própria, inventa-se e deixa-se inventar, de


maneira a resgatar a identidade da arte. A expressão quarto estreito refere-se à
realidade, terra diversa e alcova visível relacionam-se à linguagem, ao fazer artístico.
Os termos: fogo negro, ânsia passiva e vida falsa confirmam o mundo da irrealidade. O
eu fictício permanece nesse estado de transição contínua entre o irreal, o sonho e o real.
Da mesma maneira que na pintura daliniana, não existe fronteira entre a vida e a
fantasia, pois há uma mistura de formas alucinatórias, visões e sensações que compõem
um universo paralelo no qual prevalece a irrealidade e o sonho. Dalí sobrepôs elementos
incongruentes e formas monstruosas numa paisagem fragmentada, remetendo ao
irracional, ao que se desintegra, dando a impressão de uma ilusão. Langer explicita
sobre esse espaço virtual: “Sendo unicamente visual, esse espaço não tem continuidade
com o espaço em que vivemos, ele é limitado pela moldura, ou pelos espaços vazios que
o circundam ou por outros fatores incongruentes que o isolam” (2011, p.72). Esse
espaço comum é subvertido pelo espaço artístico, num procedimento dinâmico e
instaurador de sentidos.
Dalí consegue conciliar objetos ditos como insignificantes, de modo a
possibilitar que eles se justaponham, se misturem e coexistam. Isso se dá porque o
mundo dessa pintura deixa de ser real, e passa a ser estético, ou melhor, transestético.
90

Lipovetsky (2015), realiza uma comparação do transestético com o “Shopping Center”,


no qual saboreamos o triunfo delicioso e ofuscante da era do falso. Trata-se de um
hiperespaço, que se conjuga como um não tempo e cria um universo flutuante. Da
mesma forma que os “Realities Shows” constroem uma forma híbrida, em que a ficção
remodela a realidade, e esta se encontra espetacularizada.
De maneira similar, O Jogo Lúgubre, constitui-se num hiperespaço, em que o
mundo real desaparece, pois já não há mais uma realidade cartesiana. As imagens não
possuem mais uma existência real, mas sim uma existência de multiplicidade e
expressividade.
Estamos diante de uma arte dual, com distintos graus de desvios e de formas até
mesmo incoerentes. Deparamo-nos com figuras soturnas, obscuras, fantasmagóricas e
multicoloridas, dando a impressão de colagens, em que a partir de imagens que
aparentemente estão ao alcance de todos, são constituídas cenas únicas e novas.
No referente às cores, Merleau Ponty (1999), cita assertivas de Kandinsky e de
Goethe, ao afirmar a importância das cores numa pintura, em que o verde não nos pede
nada e nem nos convoca nada; o azul sucumbe ao nosso olhar; o vermelho é uma cor
que entranha-se no olho; o amarelo tem uma sensação picante; com o vermelho e o
amarelo temos a sensação de um movimento que se distancia do centro; com o azul e o
verde temos a experiência do repouso e concentração. Todas essas cores, presentes nos
elementos grotescos da tela daliniana, são integrados e liquefeitos, de forma a darem
ideia de movimento, locomoção e fragmentação. Essa mobilidade dos objetos conduz ao
processo um dinamismo totalmente instaurador de sentidos.
O texto em exame também se mostra fragmentado e com a linguagem
reordenada de uma maneira particular, de modo a gerar novas percepções do real.
Pessoa constrói uma escritura-movimento: de sentidos, de vozes, de cheiros, de sons,
que se entrecruzam. Todo o corpo da obra são viagens via das sensações. Segundo
Ponty (1999), a linguagem deve ter por fundamento a percepção, e o seu sujeito é o
corpo. É ele que recebe os estímulos da paisagem e mistura-se com ela:

Árvores cuja volúpia verde punha sombra e frescor no corpo como eram
chamadas... Frutos cujo nome era um cravar de dentes na alma da sua polpa...
Sombras que eram relíquias de outroras felizes... Clareiras, clareiras claras,
que eram sorrisos mais francos da paisagem, que se bocejava em próxima...
(PESSOA, 2011, p.459).
91

Neste excerto, temos a percepção de vários ruídos: cravar, bocejar; cores: verde,
claras; sensações: sombra, frescor, cravar de dentes na alma, relíquias, sorrisos
francos. Todas essas imagens emergem com uma profunda vivacidade, conduzindo o
leitor ao mais profundo devaneio e a uma nova percepção do universo. Conforme Ponty
(1999), o corpo é o sujeito da percepção e de horizontes que se estendem para além de
si. O movimento gerador do corpo desdobra a trajetória de um aqui em direção a um ali:
árvores cuja volúpia verde punha sobra e frescor no corpo. O seu corpo é inseparável
de uma visão de mundo. Este corpo, de acordo com Ponty (1999), não diz respeito ao
fisiologismo, mas sim ao corpo sensível, o qual transcende o primeiro. Sendo assim,
pintura e literatura se fazem enquanto operação reflexiva do próprio corpo,
comunicando com o mundo através do olhar e da sensibilidade. Para Ponty (1999), é no
interior do mundo sensível, do mundo sensorial, desse mundo espacial-temporal, que a
obra de arte é produzida.
Ambas as obras comentadas possuem aspectos flutuantes, fragmentários,
surreais, desestruturantes e com inúmeros desvios, estando na passagem da
modernidade para a contemporaneidade. Nelas, o que importa não é o que aparece, mas
o que transparece, de forma a torna-las objetos singulares e instauradores não somente
de contemplação, mas de grande estranhamento e impacto.
92

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Uma obra de arte bem conseguida destaca-se de seu ambiente, instiga o


nosso olhar, pois difere desse mundo que não está organizado de maneira
essencialmente inventiva. Isso se dá porque a obra artística tem a
peculiaridade de ‘aparecer dissociada do cenário mundano’. Ela cria, assim,
a impressão imediata de alteridade em relação ao real.
ÉRIS ANTÔNIO OLIVEIRA

A partir das análises realizadas ao longo desses três capítulos, e que culminou no
último, estabelecemos neste estudo, alguns aspectos relacionais entre a prosa poética Na
Floresta do Alheamento de Fernando Pessoa e as pinturas de Salvador Dalí. Baseamo-
nos na estética da persistência e da fluidez, e utilizamos como suporte teórico teorias
sobre as artes modernas e contemporâneas, as quais não concebem a arte como uma
simples representação da realidade.
Tais análises levaram a comprovar a veracidade dos pressupostos teóricos
incialmente colocados: as pinturas dalinianas e a arte poética pessoana mostram-se
fluidas, fragmentadas, dissolvidas, devaneantes, paradoxais e de plena embriaguez. Elas
se compõem de artimanhas irreais, de modo a instaurar o absurdo. Ambas aludem à
criação estética, ao fazer artístico.
A linguagem pictórica e a linguagem poética desviam-se dos pontos
exclusivamente cotidianos da vida, para se circunscrever em si mesmas e firmar-se para
dissolver tudo o que faz parte do mundo natural. Prevalece a antinaturalidade, permeada
de flutuação, fragmentação e absurdez. As referencialidades ao mundo real são abolidas
e as obras de arte apresentadas neste trabalho nos propicia a apreensão de que elas não
representam algo existente e também são abertas às incertezas e inconclusões. Sobre a
realidade na obra de arte Langer afirma que: “A ‘arte’ não é a expressão da aparência da
realidade tal como a vemos, nem da vida que vivemos, mas... é a expressão da
verdadeira realidade e verdadeira vida... indefinível, mas plasticamente realizável”.
(2011, p.86). Assim sendo, as obras de arte que examinamos no decorrer deste trabalho,
são invenções mais reais do que a própria realidade.
A arte moderna, na transição para a arte contemporânea, confere a si mesma uma
nova imagem criativa, conforme pudemos conferir em Na Floresta do Alheamento e nas
pinturas de Dalí. Ambas possuem a linguagem multiforme e semanticamente flexível. O
texto pessoano é trabalhado de forma que as palavras podem significar qualquer coisa,
93

tudo ou nada. Elas irrompem com o aporte de ir além da linguagem comum, o que
descortina um universo dissipado e envolvente. Os vocábulos sofrem mutações e se
transfiguram, tecendo seu próprio caminho no interior artístico, no intuito de remeter à
própria escritura da arte. Eles dissimulam-se o tempo todo, de maneira a produzir
imagens que fingem não ser aquilo que é. Nessa obra, estamos diante de uma linguagem
poética que gera um processo polissêmico e que remete à penumbra, ao mundo onírico,
à poesia, que se distancia do mundo real.
As pinturas analisadas surgem com suas imagens fendidas a fim de
desestabilizar a própria aparência, dissimulando-se. Os diversos elementos de cada tela
associam-se produzindo uma explosão de sentidos. Essas pinturas delimitam a
necessidade de transparecer o ilimitado, o fugaz, o contingente, o grotesco e o bizarro. É
nos dada a impressão de que cada elemento está diluindo, derretendo e dissolvendo, o
que remete ao conceito de fluidez de Bauman (2001), que afirma que o líquido seria a
imagem do indivíduo moderno e pós-moderno, que não tem um espaço fixo. Segundo
ele, esse fenômeno das relações na sociedade fluida, seria como uma instância volátil
que rejeita as raízes e assume um modo de vida nômade.
Semelhantemente, o eu ficcional pessoano sente-se exilado e sem lugar: “Minha
atenção boia entre dois mundos. [...] Sonho e perco-me. [...] De vez em quando pela
floresta onde de longe me vejo e sinto”. (PESSOA, 2011, p.454/455). Ele busca
incessantemente por sua identidade, pelo seu eu, com o objetivo de tornar mais lento o
fluxo, de solidificar o fluido, de dar forma ao disforme, porém se depara com um lugar
sem lugar, um entrelugar, que é o movimento de vaivém, um lugar deslizante que faz
surgir algo novo e híbrido. Já não há mais discurso e sim uma ausência do dizer,
pautada no contra-discurso. O eu ficcional pressupõe uma comunicação, porém ele nada
comunica.
Segundo Foucault “a linguagem dobra sobre si mesma, adquire sua espessura
própria, desenvolve uma história, leis e uma objetividade que só a ela pertencem”.
(1999, p. 409). Dessa maneira, certificamos que as obras apreciadas possuem
linguagens únicas, bifurcadas, desdobradas e pertencentes a si mesmas. É uma
linguagem que não tem início nem fim, que existe voltada para si mesma e que se refere
ao próprio fazer artístico. Ambas as obras falam de si próprias, inventam-se e deixam-se
inventar, de forma a resgatar a identidade da própria arte. A realidade dessas obras se
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reporta a uma irrealidade profunda, enquanto dissimulação poética do fazer artístico.


São construções que teorizam a si mesmas e que gozam de vida própria.
Assim sendo, não chegamos a resultados definitivos ou permanentemente
conclusivos, visto que a obra de arte é um espaço móvel e lugar de deslocamentos.
Realizamos uma leitura sobre uma perspectiva, e infinitas outras podem ser executadas,
visto que estamos diante de obras artísticas ziguezagueantes e labirínticas. Acreditamos
que ainda há muito em matéria de leitura e releitura sobre esse tema, mas esperamos ter
contribuído para o aprofundamento dos estudos acerca das obras artísticas modernas
que transitam para a contemporaneidade, e que aludem ao próprio fazer artístico,
rompendo com o símbolo e inaugurando uma percepção alegórica do mundo.
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