1 Legado Obscuro (Duologia Legado) - Clarissa Cora
1 Legado Obscuro (Duologia Legado) - Clarissa Cora
1 Legado Obscuro (Duologia Legado) - Clarissa Cora
LEGADO OBSCURO
Prólogo
1 - Na direção da encrenca
2 - Em meio ao caos
3 - Uma oportunidade
4 - Caminhos entrelaçados
5 - Julgamentos
6 - Acordo selado
7 - Sombra de um questionamento
8 - Mudança
9 - Turbulência
10 - Uma porta entreaberta
11 - Harmonia oculta
12 - Encomenda
13 - O som da chuva
14 - Tão perto
15 - Gotas cálidas
16 - Rubi líquido
17 - Lentamente caindo
18 - Um jato de água
19 - Fogo tempestuoso
20 - Sem permissão
21 - Ligação abrupta
22 - O mais puro desespero
23 - Acerto de contas
24 - Choque
25 - Nas sombras
26 - Indistinguível
27 - Abismo de fogo
28 - Insaciável
29 - Roçar inquieto
30 - Um fardo solitário
31 - Peões insignificantes
32 - Casa dos sonhos
33 - Caçada perfeita
34 - Dança de sombras e caos
35 - Turbilhão caótico
36 - Confissões
37 - Quebra-cabeça
38 - Um caminho obscuro
39 - Atmosfera densa
40 - Um legado crescente
41 - Por um filho
42 - Devoção completa
43 - Contagem
44 - Presa perfeita
45 - Nas chamas da caçada
46 - Presa e predador
47 - Que devoram e consomem
48 - Partida temporária
49 - Comemorações
Epílogo
Notas da Autora & Agradecimentos
Em breve: a história de Theo
Sobre a autora
“Está tudo escrito nas linhas de sua vida
Está tudo escrito dentro do seu coração
Você e eu só temos um sonho
Encontrar nosso amor, um lugar
Onde podemos nos esconder
Você e eu fomos feitos
Para amar um ao outro, agora
Para sempre e mais um dia”
-You And I
SCORPIONS
Prólogo
A luz fraca e vacilante se refletiu na lâmina afiada quando a mão
encapuzada soergueu a faca.
Ela estremeceu, ofegante, o corpo escorregando no chão do antigo
armazém abandonado. Dolorida, atordoada, tudo o que conseguiu fazer foi
mover a cabeça e olhar por cima do ombro. As tábuas soltas das janelas
rangiam com o vento enquanto a silhueta da pessoa que empunhava a faca se
aproximava sorrateiramente.
A chuva caía sem piedade do lado de fora, tilintando no chão feito
dedos sombrios que tocavam uma melodia composta apenas para as cores
escuras da noite.
Ela arfou, olhando para os lados, buscando por uma saída.
Era como se o próprio ar estivesse impregnado com um cheiro de
antecipação mórbida.
— Não. Não. Por favor. Por favor.
Nem mesmo seus gritos ou seu desespero serviram como um freio
para impedir o avanço dos passos calculados e silenciosos que vinham na
sua direção, o brilho metálico da faca intensificando-se ao frio azulado dos
relâmpagos.
— Socorro! Socorro!
O vento uivou junto à tempestade, como se sibilasse que não adiantava
gritar, pois ninguém a escutaria.
— Quem é você?! — As lágrimas escorriam até seus lábios feridos;
um gosto de sal e desespero. — O que eu fiz para você?!
Tudo o que obteve em resposta foi um sorriso coberto pelas sombras
que fez seus ossos trincarem.
— Quem é você?!
O grito se entrelaçou ao som do metal encontrando a carne; um eco
que ressonou no silêncio da noite, sufocado pela chuva implacável, que
acompanhou o deslizar do sangue pelo chão, até se encontrar à água que
caía, em uma mistura macabra de vermelho e cinza.
1
Na direção da encrenca
Foram os gritos de uma criança que o arrancaram do caos familiar dos seus
sonhos.
Com o coração disparado, vestindo apenas uma bermuda folgada,
Felipe jogou as cobertas para o lado e se levantou da cama, cambaleando até
a porta do quarto, tateando a mão na parede para encontrar o interruptor que
acenderia as luzes do corredor.
Como andava rápido, seguindo na direção dos gritos, seus dedos não
conseguiram encontrar o botão, e ele avançou na escuridão, deixando-se ser
guiado pela luz do luar que se infiltrava pela janela vertical que cobria uma
parede do chão ao teto.
Assim que se aproximou da porta de onde o choro infantil vinha,
Felipe a abriu e entrou no quarto, vendo a sobrinha de quatro se remexendo e
se debatendo embaixo das cobertas.
— Mãe! Mamãe! Mãe! Mamãe!
— Calma, Ágata — ele falou, o coração se contraindo, condoído,
enquanto se sentava na beirada da cama. — É só um sonho. O titio está aqui.
Acorde. É só um sonho.
— Não... Não... Mãe! Mãe!
Felipe acariciou suavemente o rosto molhado de lágrimas da pequena,
murmurando palavras reconfortantes enquanto a segurava com ternura. Ele
sabia o quão assustador os pesadelos podiam ser. E como sabia. Com
cuidado, ele ergueu a menina nos braços e balançou suavemente,
embalando-a como fazia quando ela era apenas um bebê.
As lágrimas de Ágata começaram a diminuir, substituídas por soluços
cansados. Aos poucos, o choro foi cessando e ela abriu os olhos.
— Tio Fê, eu... eu tava com medo. O sonho era tão ruim...
Felipe comprimiu os lábios, afagando os cabelos macios de Ágata.
— Eu sei. Mas foi só um sonho.
— Queria o colar de borboleta da mamãe.
Com cuidado, ele deitou a menina novamente na cama e cobriu-a
carinhosamente, garantindo que ela estivesse confortável e protegida.
— Tente descansar, Ágata. Feche os olhos e pense em coisas boas.
Amanhã procurarei o colar outra vez. Vou ficar aqui até você dormir de
novo, tá bom?
Ela assentiu, fungando e enxugando as últimas lágrimas que teimavam
em escorrer por suas bochechas. Com um suspiro cansado, a menina fechou
os olhos e afundou no travesseiro, deixando-se levar pelo cansaço.
Felipe observou a sobrinha por mais alguns instantes antes de se
levantar, o coração apertado. Com cuidado, saiu do quarto de Ágata em
silêncio, até se ver cercado pela escuridão do corredor.
Seus passos lentos e pesados o fizeram passar diante da janela de
vidro, onde se viu refletido à luz do luar; as tatuagens que cobriam seus
braços e peito despido eram desenhos caóticos, pesados.
Se ao menos conseguisse achar o colar de sua falecida cunhada...
Talvez a joia trouxesse algum conforto simbólico para sua sobrinha.
Ele soltou o ar e correu os dedos pelos cabelos escuros enquanto
praguejava baixo; sentia que qualquer resquício do sono havia ido embora
por completo.
Ao virar a cabeça, Felipe encarou a porta fechada do quarto do seu
irmão mais velho, Diogo, o pai de Ágata.
Quase se pegou engolindo em seco.
Quase se pegou dando um passo para a frente, erguendo a mão,
pressionando a maçaneta para baixo e...
— Você deveria entrar pelo menos uma vez aí e ver seu irmão.
Felipe olhou para o lado.
Sua mãe, Solange, estava parada no meio do corredor, trajando suas
costumeiras vestes recatadas de dormir, os cabelos tingidos de castanho
puxados para trás.
— Não vai fazer diferença — Felipe se limitou a responder, fitando a
porta fechada outra vez.
— Acha que seu irmão não pode senti-lo?
— Minha preocupação é com Ágata. E você deveria se preocupar com
a sua neta também. — Ele tentou controlar a rispidez na própria voz. — Por
que não vai ficar um pouco com ela?
Sua mãe inspirou fundo, passando por ele, preparando-se para a abrir a
porta do quarto de Diogo.
— Estou sem sono. Passarei a noite aqui com o seu irmão.
Uma raiva silenciosa latejou por baixo das tatuagens e da pele dele.
— Ágata acabou de ter um pesadelo.
— E você a acalmou, não acalmou?
— Ela sonhou com a mãe. Quer a mãe, quer aquele colar que ninguém
consegue encontrar. E precisa de você, de uma figura feminina.
— E não é por isso que você decidiu contratar uma babá para ela? Isso
vai resolver todos os problemas.
Felipe soltou o ar; um som que saiu ruidosamente dos lábios, uma
batida compassada, latente. Mas não teve chance de dizer mais nada para a
mãe. Ela se limitou a menear a cabeça e entrar no quarto de Diogo, fechando
a porta e o deixando sozinho no meio do corredor.
Consciente de que não conseguiria mesmo pregar os malditos olhos
outra vez, Felipe se dirigiu ao seu quarto e rapidamente trocou suas roupas.
Vestiu uma jaqueta de couro preta que carregava consigo histórias de
aventuras passadas, calçou suas botas de motociclista e pegou a chave da
garagem, descendo as escadas em um embalo de pressa e irritação.
Ao abrir a porta da garagem, a silhueta da sua moto reluziu sob a luz
fraca que deslizava pelas janelas laterais. Era uma máquina poderosa e
imponente, uma Harley-Davidson V-Rod Muscle. Sua cor preta brilhava
com um ar de mistério e rebeldia, algo que agradara seu espírito desde a
primeira vez em que colocara os olhos nela.
— Vamos dar uma volta, belezinha?
Com destreza e familiaridade, ele vestiu o capacete e montou na moto,
sentindo a vibração do motor ganhar vida sob seus comandos. O som
característico do ronco potente ecoou pelo ambiente, uma sinfonia de
liberdade e adrenalina.
E, quando o portão principal da casa se abriu ao seu comando, ele
acelerou e mergulhou na noite que cobria a cidade de Campinas, os
pensamentos tumultuados lhe fazendo companhia enquanto ele rumava para
o bar de motoqueiros que costumava frequentar.
Sua mãe... Seu irmão... Sua sobrinha...
Felipe comprimiu o guidão com força, acelerando ainda mais.
Não demorou muito para avistar a fachada do bar “Pistões &
Estradas”, o point dos motoqueiros da região.
Felipe estacionou sua Harley-Davidson com destreza, chamando a
atenção dos que estavam do lado de fora. Ao descer da motocicleta, sentiu os
olhares de algumas garotas se virando em sua direção, mas as ignorou.
Caminhou em direção à entrada do bar, abrindo a porta de madeira maciça
com um empurrão decidido.
O bar estava iluminado por uma mistura de luzes bruxuleantes, que
projetavam sombras nas paredes. O som estrondoso da música de rock
pulsava no ar, abafando conversas animadas e risadas altas. O cheiro de
cerveja, couro e aventura impregnava o ar.
— Uma cerveja — ele pediu enquanto se sentava em um lugar vago
no balcão.
— É pra já.
Não demorou muito para que o atendente colocasse uma garrafa aberta
e gelada diante dele.
— Obrigado. Theo está por aqui?
O rapaz olhou para os lados, franzindo o cenho.
— Ele deu uma passada mais cedo, não sei se já foi embora. Se ele
estiver aqui ainda, deve estar lá nos fundos.
Felipe anuiu e se levantou, levando a cerveja consigo. Caminhou
determinado em direção aos fundos do bar, a música alta sendo substituída
pelo som abafado de vozes masculinas, indicando que estava se afastando
cada vez mais da agitação do local.
Enquanto se aproximava da área aberta e sem cobertura, a visão de
alguns homens conhecidos por suas atividades ilegais chamou sua atenção.
Cobra, Falcão e Lobo. O rosto de Felipe se contraiu. Sabia que aqueles
sujeitos eram a personificação dos problemas.
Como já estava com a cabeça cheia e queria evitar qualquer encrenca
desnecessária, ele cogitou voltar atrás. Tinha certeza de que Theo não estaria
no meio daqueles caras.
Porém, antes que pudesse dar meia-volta, um ruído feminino e aflito
cortou o ar, alcançando os ouvidos dele.
Felipe virou o rosto.
No chão, próximo a uma parede, uma garota estava caída, com o rosto
machucado e assustado, cercada por vários daqueles homens.
Em um instante fugaz, os olhos assustados dela se encontraram com os
olhos ferozes dele.
Foi como se algo ardesse dentro dele.
Uma chama selvagem, insana.
E qualquer pensamento de evitar encrenca se dissipou rapidamente.
2
Em meio ao caos
Tudo aconteceu tão rápido que Felipe mal teve tempo de processar o borrão
veloz dos acontecimentos.
Um segundo atrás, alguém gritara que Ágata estava pendurada na
árvore; no outro, ele estava correndo pelo jardim, procurando pela sobrinha;
e, logo após, uma garota estava caindo em seus braços.
Felipe ergueu o queixo, fitando-a, os lábios se apartando ao reconhecer
a garota que vira no bar na noite anterior, sentindo que ela o sondava, o
sorvia, partilhando do mesmo reconhecimento.
Os olhos dela pareciam duas esferas brilhantes, o castanho acentuado
pelo brilho da luz do sol, as bochechas coradas tonalizando sua pele clara.
Os lábios entreabertos soltavam o ar baixinho, acelerado, e alguns fios de
cabelo se grudavam no batom. Felipe desceu o olhar pelo pescoço fino, um
arrepio quente escalando a espinha dele ao se deparar com o vale formado
pelos seios dela no decote do vestido, e ergueu o rosto na mesma hora, o
corpo reagindo imediatamente contra sua vontade.
— Você tá bem? — a vozinha assustada e preocupada de Ágata o
chacoalhou, puxando-o de volta para a realidade.
Felipe piscou e limpou a garganta, colocando a garota no chão. Notou
que ela estava sem um dos sapatos.
— Estou sim — ela respondeu para Ágata, correndo os dedos pelos
cabelos, as bochechas ainda mais vermelhas. — Não me machuquei. E você?
Está bem?
Ágata assentiu; e então, para o choque de Felipe, sua sobrinha abraçou
a garota, que também pareceu ser pega de surpresa pelo gesto.
— Fiquei com medo!
— Mas agora está tudo bem — ela sussurrou, acariciando os cabelos
de Ágata. — Só não suba mais em uma árvore sem um adulto por perto,
combinado?
Ágata ergueu o rosto, sorriu e assentiu.
— Combinado!
A garota sorriu de volta para sua sobrinha; e algo naquele sorriso
quase fez Felipe levar uma mão ao peito diante da pontada que o atingiu.
Dando uma risadinha travessa, Ágata a soltou e correu de novo pelo
jardim, fazendo “tchau” com a mão enquanto voltava para dentro da casa.
O vento soprou, chacoalhando as folhas das árvores.
Felipe se voltou para a garota, estreitando o olhar ao fitá-la.
— O que você está fazendo aqui?
Notou que ela pareceu se sobressaltar diante do tom sério e baixo de
sua voz.
— Vim para a entrevista. Para o cargo de babá. — Ela umedeceu os
lábios, correndo os dedos mais uma vez pelos cabelos, os olhos dele
acompanhando cada um dos movimentos. — Não imaginei que você morava
aqui e que era o pai dela.
— Não sou o pai. — As mãos de Felipe desceram para os bolsos da
calça. — Sou o tio.
— Entendi. Hã... Não nos apresentamos ainda. — Ela estendeu a mão
em sua direção. — Meu nome é Mariana. Mariana Pereira.
— Felipe — ele retirou a mão de um dos bolsos e envolveu os dedos
pequenos e gelados dela em um aperto quente, observando-a engolir em seco
discretamente. — Não achei que alguém como você compareceria para uma
entrevista como essa.
Ela arqueou as sobrancelhas, confusa.
— Alguém como eu?
— Envolvida com pessoas da laia de Lobo, Falcão e Cobra.
O rosto dela pareceu ficar ainda mais vermelho.
— Foi um mal entendido.
Suas mãos se soltaram.
— Então, o que você estava fazendo no bar ontem à noite?
Os braços dela caíram ao lado do corpo.
— Meu pai tem uma dívida com eles. Fez empréstimos para salvar o
próprio negócio. Fui até lá pedir mais tempo para juntar o dinheiro e pagar
as prestações, mas eles se enfureceram, daí você chegou e... — Mariana
apertou os olhos e balançou a cabeça. — Este seu olhar está me irritando.
Foi a vez de Felipe arquear as sobrancelhas.
— Meu olhar?
— Você está me julgando. Já deve ter criado toda uma imagem a meu
respeito na sua cabeça.
Felipe trocou o peso de uma perna para a outra.
— Conheço o tipo de gente que se envolve com aqueles agiotas.
— Gente desesperada — Mariana retrucou, o rosto ainda mais
vermelho. — Meu pai estava desesperado. A lojinha dele é tudo o que ele
conseguiu construir ao longo de uma vida de trabalho e sacrifício. Foi como
ele sustentou nossa família. E ficou desesperado com a possibilidade de
perdê-la quando o banco recusou os empréstimos.
Os olhos de Felipe desceram para os lábios dela. Podia enxergar a
palidez do ferimento que um dos agiotas dera a ela na noite passada, mesmo
com a camada de maquiagem o ocultando.
E pensar naquilo fez algo em seu sangue arder.
Algo inesperado, feroz.
Foi preciso muito controle e muita frieza para se manter impassível.
Foi preciso enfiar as mãos nos bolsos da calça outra vez para não tocar
o machucado e ver se ela estava melhor.
— Entendo. Mesmo assim, não acho uma boa ideia manter pessoas
envolvidas com agiotas perto da minha sobrinha. A segurança e o bem-estar
de Ágata vêm em primeiro lugar.
Mariana prendeu o ar, mordeu o lábio inferior; e então, ajeitou os
ombros e ergueu o queixo.
— Certo. Acho que a entrevista terminou por aqui?
Felipe se limitou a um aceno de cabeça. Por algum motivo, seu
coração batia de um jeito irritante, acelerado, estranho.
E aquilo só ficava mais forte ao se lembrar de como ela salvara Ágata
e do jeito como sua sobrinha a abraçara.
Mesmo assim...
— Espero que você encontre uma boa pessoa para cuidar da sua
sobrinha. Ela parece ser uma criança muito doce e gentil.
Aquilo fez o corpo dele balançar outra vez, pendendo na direção dela,
feito um maldito ímã atraído pelo metal.
Mas que merda é essa?!
Mariana se despediu com um outro movimento de cabeça, passando
por ele sem fitá-lo, mas sem abaixar a cabeça, um rastro cálido do seu
perfume floral o acariciando com um toque invisível.
Ele se pegou engolindo em seco.
Observou-a apanhar o sapato perdido no gramado, calçá-lo e caminhar
pela trilha pavimentada até a saída da mansão, onde o portão se abriu,
permitindo que ela se esvanecesse lentamente de sua visão, ao mesmo tempo
em que a pulsação em sua garganta parecia aumentar.
Felipe deu um passo cambaleante e irritadiço para trás, até as costas
encontrarem apoio no tronco da árvore.
Seus músculos estavam irritados e quentes embaixo daquela camisa
social que odiava usar.
Decidindo ir para dentro da casa para espairecer, ele caminhou
lentamente até a sala, ainda com a mente repleta da conversa tensa com
Mariana. Por que aquilo martelava tanto em sua cabeça? Mal a conhecia!
Assim que se sentou no sofá, Ágata entrou na sala, suas bochechas
coradas e o olhar curioso.
— Tio Fê! Tio Fê! — chamou ela, correndo em sua direção.
— Tô aqui.
Ágata subiu no colo dele e o abraçou, os braços pequeninos
envolveram o pescoço dele.
— Cadê o colar de borboleta da mamãe? Você achou?
Felipe suspirou, acariciando o cabelo dela carinhosamente.
— Ainda não, mas eu vou continuar procurando, tá bom? Prometo que
vou achar.
— Tá — respondeu Ágata, apoiando a cabeça no ombro dele.
Curioso sobre o que havia acontecido no jardim, Felipe questionou:
— Por que você subiu na árvore? E onde estava sua avó, que deveria
estar de olho em você?
Ágata encolheu os ombros, parecendo um pouco insegura.
— A vovó tava no quarto com o meu papai.
Uma pontada de revolta e amargura atingiu o coração de Felipe.
Minha mãe nunca vai mudar.
— E por que você subiu na árvore? Você podia ter se machucado!
— Eu vi um gatinho lá em cima! Queria pegar ele!
— Toda essa confusão por causa de um gato?
— Eu quero um gato, tio Fê!
— Você sabe que sua avó é alérgica a gatos e que não gosta de animais
na casa. — Ele trincou o maxilar. — Não faça mais isso. Você podia ter se
machucado de verdade, Ágata.
Ela encolheu os ombros e fez um biquinho.
— Mas a moça me ajudou. Ela foi corajosa e me abraçou!
Aquelas palavras simples fizeram o coração de Felipe se apequenar no
peito. A garota do bar, a mesma que ele havia encontrado na noite passada,
parecia também ter deixado uma impressão marcante em sua sobrinha.
— Ela vai voltar, tio Fê?
— Não.
Ágata fez outro bico e baixou os olhos.
Felipe arqueou as sobrancelhas.
— Você quer que ela volte?
A pergunta fez sua sobrinha erguer o rosto; e ali, embaixo do sol da
manhã, ele viu um brilho que não testemunhava no olhar de Ágata há muito
tempo.
— Sim! O abraço dela é quentinho!
Apenas aquilo.
“O abraço dela é quentinho”.
Por algum motivo, aquilo o inflou, o impulsionou a tirar Ágata do seu
colo, a se levantar, a dar um passo para a frente, e mais um, e mais um, até
estar em sua garagem, vestindo o capacete, montando na Harley-Davidson e
acelerando para fora da mansão, o ronco da moto enchendo a rua enquanto
acelerava mais e mais, procurando por Mariana.
Cadê ela?
E então a viu.
Ela já havia atravessado dois quarteirões com passos rápidos.
Felipe acelerou mais, chegando perto dela.
— Ei! Espere!
6
Acordo selado
— Ei, devolve isso! — Felipe bradou para o irmão mais velho, apontando
para o carrinho de controle remoto que Diogo segurava.
Diogo o ignorou e ergueu a mão, deixando o brinquedo em uma altura
que Felipe não alcançava.
— Me devolve! — Ele arfou, pulando, tentando pegar o carrinho.
Diogo continuou parado no lugar, mantendo o carrinho acima de sua
cabeça, encarando o desespero e a irritação do irmão mais novo.
— Diogo, devolve! É meu carrinho preferido! Foi o último brinquedo
que o papai me deu antes de ir para o céu!
— Eu sei.
— Devolve!
Com um sorriso malicioso, Diogo estalou a língua.
— E o que você vai fazer se eu não devolver? Vai chorar?
O menino de nove anos, indignado, tentou pegar o carrinho das mãos
do irmão, mas Diogo se afastou rapidamente e, de forma proposital, soltou o
brinquedo no chão.
O som do carrinho se quebrando causou uma onda de choque e
frustração em Felipe. Ele abriu a boca e encarou Diogo, um misto de raiva
e tristeza ardendo no fundo dos seus olhos.
— Você quebrou meu carrinho!
— Foi um acidente.
— Não, você fez de propósito!
Diogo, dando de ombros, olhou para o brinquedo.
— Ah, qual é, era só um carrinho! Você é tão dramático! Se tivesse me
deixado brincar, o carrinho ainda estaria inteiro.
Felipe puxou o ar, erguendo o punho, ameaçando avançar para cima
de Diogo, que permaneceu parado no lugar, como se o desafiasse a ir em
frente.
No mesmo momento, a porta do quarto se abriu.
— Ei! Ei! Parem com isso! — Solange, a mãe deles, os repreendeu. —
O que está acontecendo aqui? Por que você tá ameaçando bater no seu
irmão, Felipe?!
Felipe, segurando os pedaços do carrinho, se voltou para a mãe.
— Mãe, Diogo quebrou meu carrinho de propósito! — contou, com a
voz embargada. — O carrinho que o papai me deu! Ele estava me
provocando e jogou no chão!
— Foi um acidente, mãe! — Diogo falou na mesma hora, colocando-
se na frente do irmão, o rosto se transformando. — Eu não queria quebrar o
carrinho! Só fiquei com saudades do papai e quis brincar um pouco com ele.
Solange, olhando para os pedaços do brinquedo no chão, suspirou e
colocou as mãos na cintura.
— Felipe, foi só um acidente. É a coisa mais normal do mundo. Não
precisa fazer tanto drama por causa de um brinquedo.
Felipe, indignado, apontou para Diogo.
— Mas mãe, ele fez de propósito! Ele queria me irritar e destruir meu
carrinho!
Meneando a cabeça, ela esticou os braços e puxou Diogo para si,
envolvendo o menino em um abraço protetor.
Felipe engoliu em seco, imaginando se o abraço de sua mãe era tão
quente e confortável quanto parecia; não se lembrava quando havia sido a
última vez em que fora aninhado e embalado por ela.
— Diogo, não se preocupe. Seu irmão está exagerando.
Diogo baixou a cabeça, encostando o rosto no peito da mãe.
— Eu não queria que isso tivesse acontecido.
— Eu sei. Felipe, peça desculpas para seu irmão.
— O quê?! — ele pestanejou, incrédulo.
Solange ergueu o queixo, sem soltar Diogo de seus braços.
— Entrei aqui e vi que você ia bater no seu irmão. Peça desculpas.
Um nó se formou na garganta dele.
— Não vou pedir desculpas! É ele que errou! Ele que tem que se
desculpar!
— Você não facilita para mim, não é, Felipe? — Sua mãe suspirou
outra vez. — Se não pedir desculpas para o Diogo, vai ficar sem sobremesa
no jantar.
— Mas, mãe...!
— Estou apenas lhe ensinando a ser uma pessoa que sabe reconhecer
os próprios erros. É melhor aprender aqui em casa do que na rua. Pense
nisso.
Uma frustração avassaladora encheu o peito do menino enquanto sua
mãe saía com Diogo do quarto, deixando-o sozinho ali.
Felipe, com lágrimas nos olhos, se ajoelhou diante dos pedaços do
carrinho, tocando-os com as pontas de seus dedos, deixando o coração ser
eclipsado pela saudade dolorosa que sentia de seu pai.
◆◆◆
Atualmente
Felipe empurrou a porta do bar Pistões & Estradas, entrando na
atmosfera abafada e animada do local. Era noite e a luz amarela criava um
ambiente bruxuleante. O bar estava cheio; a maior parte dos homens e
mulheres vestiam jaquetas de couro e botas robustas. Do lado de fora, o
ronco das motos se entrelaçava com as conversas animadas que aconteciam
no interior do bar.
Ele se dirigiu ao balcão, onde encontrou Theo sentado em um banco
alto. Seu amigo de longa data era alto, com uma estrutura física robusta e
musculosa, resultado de anos de motociclismo e academia. Seus cabelos
eram curtos e escuros, combinando com sua barba por fazer. Ele usava uma
jaqueta de couro preta, com alguns patches de motoclube, uma camiseta
branca por baixo e botas escuras. Algumas de suas tatuagens se revelavam
conforme ele erguia o braço para beber a cerveja direto da garrafa.
— Fala, Theo.
— Fala, mano. Achei que você ia passar na oficina hoje.
— Não deu. — Ele se sentou no balcão ao lado de Theo. — Tive
outros compromissos. Como tá a reforma daquela moto?
— Quase nos finalmentes. — Theo ergueu a garrafa em comemoração.
— O comprador vai pagar uma nota preta nela, mas você precisa passar lá na
oficina e dar seu toque final naquela belezinha.
Felipe inspirou fundo, correndo os dedos pelos cabelos.
— Amanhã passo lá e termino o serviço. Hoje realmente não rolou.
— O que tá pegando? — Theo perguntou, arqueando uma
sobrancelha. — Você parece meio abalado.
Felipe suspirou, gesticulando para o atendente lhe trazer uma cerveja
gelada. Céus, era tudo o que precisava naquele momento.
— Foi um dia daqueles. Muita coisa para resolver.
— Problemas com a família? Quer falar sobre isso? — Theo sorveu
um gole de sua cerveja, e então, soltou um riso amargo: — Embora eu seja a
última pessoa que possa dar conselhos sobre união familiar ou qualquer
outra merda que remeta à família de comercial de margarina.
Os pensamentos de Felipe foram para Mariana, para a forma como a
encontrara ali, cercada pelos agiotas, na noite anterior.
Sem que percebesse, seus punhos se cerraram, uma raiva incontrolável
subindo por seu sangue.
Theo arqueou as sobrancelhas e virou a cabeça, a corrente prateada
com uma medalhinha que usava ao redor do pescoço balançando de um lado
para o outro.
— Tá tudo bem?
Felipe hesitou, segurando a garrafa de cerveja que o atendente do bar
colocou diante dele.
— Só umas merdas aí.
— Tem a ver com a surra que você deu no bando do Lobo ontem à
noite?
Ele bufou e bebeu um gole da cerveja.
— Já tá sabendo disso?
— Tá todo mundo sabendo. Que merda deu na sua cabeça?
Um riso amargo escapou da boca de Felipe. Era impossível se
desvencilhar da imagem pulsante dos olhos de Mariana.
— É isso que eu tô me perguntando até agora.
— Os caras não vão deixar barato, mas ouvi dizer por aí que o Válter
falou que a briga de vocês não é problema dele. Então, vocês podem fazer o
que quiser, mas não aqui dentro do bar dele. Ele enfatizou que o Pistões &
Estradas é um território neutro.
— Fico mais aliviado — Felipe fez questão de enfatizar a ironia na
própria voz.
— Acho que você tá precisando de mais uma cerveja, cara.
— Acho que sim.
Theo acenou para o bartender e pediu mais duas cervejas.
Enquanto esperavam as bebidas chegarem, Felipe se viu navegando
outra vez na névoa dos pensamentos, o rosto de Mariana pairando por entre
as brumas, vívido e claro, junto do momento em que ele avançara contra
Lobo e seus capangas.
“Que merda deu na sua cabeça?”
Trincou a mandíbula, repetindo para si mesmo que qualquer outra
pessoa teria feito o mesmo ao ver uma garota como ela em perigo.
“E por que a contratou como babá de sua sobrinha?”, sua mente lhe
devolveu, cutucando-o.
— Às merdas da vida, mano — Theo falou, entregando uma garrafa
de cerveja para ele.
Empurrando os questionamentos para o lado, Felipe aceitou a bebida e
brindou as garrafas com Theo.
— Às merdas da vida.
◆◆◆
— Isa, você nem imagina! — Mariana cantarolou enquanto segurava o
celular, andando de um lado para o outro no quarto. — Consegui o emprego
de babá! Obrigada pela indicação, você foi essencial nisso!
— Ah, que ótima notícia, Mari! Parabéns! Fico muito feliz por você.
Tenho certeza de que vai arrasar nesse trabalho. Quando você começa?
— Semana que vem. Tenho que ajeitar umas coisas e assinar o
contrato. Estou um pouco nervosa, mas animada. É a chance de ajudar meu
pai a se livrar da dívida de uma vez por todas.
— De nada, amiga. Você merece. Me conte tudo depois, ok?
— Com certeza! Até mais, Isa.
Ao encerrar a ligação, Mariana largou o celular ao lado do seu
material de estudo. Mesmo com uma nova carga horária puxada, precisaria
se organizar para continuar estudando para o concurso da Polícia Científica,
embora consciente de que talvez tivesse que adiar aquele sonho por um
tempo, em prol da segurança do seu pai e de sua irmã, e engolir um pouco do
seu orgulho.
Sim, ainda estava irritada com a forma como Felipe lhe tratara antes
da entrevista, mas não podia se dar ao luxo de perder aquele emprego.
E tinha certeza de que conseguiria lidar com ele e com o jeito dele.
Ora, não preciso me preocupar tanto com isso, certo? O foco do meu
trabalho é Ágata, e não o tio dela. Provavelmente, ele fica bem pouco na
casa.
Tentando se desvencilhar da imagem enigmática de Felipe, que insistia
em perfurar as barreiras de sua mente, ela foi até a sala, encontrando Lívia
esparramada no sofá, assistindo a um dorama coreano.
— Lívia, tá na hora de dormir. Amanhã você tem aula!
— Aí, só mais um episódio, por favor!
Mariana riu e caminhou até a janela, puxando a cortina para fechá-la.
Prestes a puxar o tecido, teve impressão de enxergar uma silhueta no meio
da escuridão.
— Ei, Lívia!
— O que foi?
— Acho que tem alguém lá fora...
Sua irmã se levantou do sofá e grudou o rosto no vidro da janela.
— Não tô vendo ninguém.
Mariana inclinou o corpo para frente, fitando a escuridão. Lívia estava
certa. Não havia mais nada ali.
— Que estranho...
Lívia mordeu o lábio inferior.
— Acha que são os caras para quem o papai deve dinheiro?
— Talvez, mas... — Mariana entreabriu os lábios. Havia uma
inquietação palpitando em seu coração. — Esqueça isso. Devo ter visto
coisas. Não vá dormir tarde. Logo, não estarei mais aqui durante semana
para te controlar, e você vai ter que se virar sozinha.
— Tá bom, tá bom.
Após dar um beijo de boa noite na testa de Lívia, Mariana foi até a
porta da sala e se certificou de que ela estava trancada; e, mesmo depois de
fechar a janela do próprio quarto e se enfiar embaixo das cobertas, a
sensação obtusa de estar sendo observada pela escuridão se estendeu por
todas as horas seguintes da noite.
8
Mudança
Atualmente
Atualmente
Só havia uma coisa que era melhor do que o cheiro do sangue — era o
cheiro do medo que a presa exalava durante a caçada, durante aqueles
segundos que antecediam seu destino inevitável.
Não tinha nada mais inebriante e viciante do que aquela fragrância.
Era uma pena que durava tão pouco.
— Por favor... Por favor... Não sei quem você é... Nunca te vi antes...
Eu tenho dinheiro. Posso te dar quanto dinheiro você quiser. Apenas me
deixe ir. Por favor.
Quase riu.
— Por favor...
Do canto de sua boca, somente um sopro irônico, trêmulo, escapou em
deleite.
Dinheiro não compraria o cheiro.
Dinheiro não compraria aquele deslizar voluptuoso que se espalhava
por sua pele conforme o cheiro do medo da presa ficava mais intenso, mais
desesperador, mais...
Perfeito.
Sob a luz de um relâmpago claro, soergueu e desceu a faca em um
golpe brutal, preciso, rasgando a garganta da sua presa.
Apenas a garganta.
As ordens eram para não danificar mais nada.
Mas já bastava.
E, enquanto a chuva despencava de forma violenta do lado de fora, sua
cabeça se inclinou para frente, permitindo que o olfato desfrutasse do cheiro
do sangue que deslizava do corte aberto para o chão, formando uma poça
que brilhava tanto quanto uma tapeçaria de rubi líquido.
17
Lentamente caindo
Se ela achou que Felipe foi pego de surpresa pelo beijo, isso se dissipou em
segundos quando as mãos dele a pegaram pela cintura, ávidas, fortes, os
lábios possessivos assumindo o controle.
Os braços de Felipe envolveram Mariana com firmeza, trazendo-a
mais para perto dele, enquanto suas mãos desciam por suas costas, deixando
um rastro ardente por onde passavam.
Ela arfou baixinho quando ele a ergueu, girando-a e a colocando
sentada na moto, sem deixar de reivindicar seus lábios.
Mariana inclinou a cabeça; a boca dele contornava a sua, descendo
para o seu pescoço, para subir novamente e provocá-la, os dedos se
enredando em seus cabelos, dando um leve puxão, o calor de cada toque
inflamando o lado mais racional da sua existência.
Ainda em cima da moto, Mariana passou uma perna de cada lado da
cintura de Felipe, trazendo-o ainda mais para si. Seus corações acelerados
pareciam bater em uníssono, como se fossem um só. O toque de suas peles
incendiava suas sensações, e cada beijo a fazia sentir que as estrelas do céu
estavam em combustão espontânea acima de suas cabeças.
Os lábios de Felipe percorriam a pele dela, os dedos passeando por seu
corpo, encontrando todos os pontos sensíveis que a faziam suspirar. Os
dedos de Mariana se entrelaçavam nos cabelos dele, entregando-se ao
momento, como se o mundo inteiro existisse somente para aquele beijo.
Mantendo-a sobre a moto, entre suas pernas, Felipe pressionou o
quadril contra o dela; Mariana estremeceu com a sensação da pressão rígida
contra sua pele ardente. O som dos motores que passavam ao longe era
abafado pelas respirações, pelas pulsações desenfreadas.
Finalmente, quando o ar se fez necessário, eles se separaram,
mantendo as testas coladas, respirando ofegantes.
— O que acha de voltar para casa? — Felipe sussurrou, rouco,
roçando os dentes na orelha dela.
Um arrepio se espalhou pelo corpo de Mariana.
Poderia pensar em um milhão de motivos para negar o convite.
Mas não queria pensar em um milhão de motivos.
— Acho uma ótima ideia.
Seus olhares se encontraram de relance, um prelúdio antes do beijo
que se seguiu, estremecendo feito uma tempestade viva.
◆◆◆
Felipe: Adoraria te ter no meu quarto, mas ainda não voltei para
casa. Estou aqui na oficina cuidando de uma moto.
Ela piscou, checando as horas. Não era tão tarde da noite, mas já havia
passado bastante do horário que Felipe costumava voltar da oficina.
Felipe: Theo não apareceu por aqui hoje e não atendeu minhas
ligações. Tô tendo que cuidar de um reparo sozinho.
Sua língua passou pelos lábios, a mão se fechando no ar, como se tentasse
agarrar uma razão para continuar seguindo as regras.
Mas era impossível se esquecer daquele cheiro.
Era o aroma de uma presa perfeita para caçar.
Uma presa que provavelmente lutaria com todas as suas forças; e
então sucumbiria, deslizando até o chão, espalhando-se em uma poça
escarlate que acentuaria seu cheiro.
E a pele?
Havia ainda a pele.
A pele parecia tão...
Perfeita.
Talvez devesse usar suas mãos.
Sim, as mãos.
Talvez desse colocar os dedos ao redor do pescoço, apenas para sentir
a pulsação acelerada, o calor que deixaria a presa enquanto seus olhares se
sustentavam nos momentos finais da caçada.
A Autoridade não ia gostar nada daquilo.
A Autoridade havia dito que estava cuidando de tudo para limpar os
rastros do último serviço descuidado.
Deveria obedecer.
Deveria esperar pelas ordens.
Mas o destino tinha lhe trazido a presa perfeita.
Como alguém poderia recusar o chamado da caçada perfeita?
34
Dança de sombras e caos
Pela janela, o vento fresco do anoitecer soprava. Não havia lua ou estrelas
no céu; apenas a luz bruxuleante do abajur iluminava o quarto.
Deitada sobre o peito de Felipe, Mariana fechou os olhos, imersa em
todas as sensações que vibravam por seu corpo. Os dedos dele deslizavam
por suas costas em círculos; uma carícia que poderia ser infinita.
— E seus machucados? — ela murmurou, abrindo os olhos ao se
erguer sobre o colchão, apenas o suficiente para fitá-lo. Seus cabelos caíam
em torno do rosto e sobre os ombros. — Nem pensei neles...
Felipe soltou um suspiro risonho.
— Nem eu. Você é o melhor remédio que eu posso tomar.
Um leve rubor subiu pelas bochechas de Mariana.
Ela voltou a se aconchegar no peito dele, encarando o teto.
— Você vai acordar sua mãe para contar sobre a prisão dos agiotas e
falar que a polícia suspeita que eles estão por trás da morte de Rosana?
— Falo com ela amanhã.
Mariana pensou em contra-argumentar, mas já havia compreendido
que a dinâmica mãe e filho era complexa entre Solange e Felipe.
Deixou a mente vagar, pensando em tudo o que ele havia lhe contado
sobre a abordagem policial, a ligação anônima e a arma do crime.
— É tão estranho...
— O quê? — Felipe murmurou, brincando com os cabelos dela.
— Os três estarem envolvidos no crime, e nenhuma câmera de
segurança filmar nada. É quase como Isabela falou. Parece que o crime foi
cometido por um fantasma.
— Também achei estranho, mas a arma do crime é uma prova
incontestável. A polícia disse que ainda vai investigar a fundo, mas não
duvido nada que aqueles caras estivessem planejando uma retaliação contra
mim e todos que vivem aqui por causa daquela briga na noite em que te
conheci. E depois que encontrei o colar da minha cunhada com a namorada
do Lobo...
Mariana voltou a se erguer, segurando o lençol sobre o peito.
— Esse ponto é mais estranho ainda. Por que o colar estava com essa
garota? A única coisa que consigo pensar é que Lobo ou um dos caras que
trabalha para ele causou o acidente e, antes de fugir do local, roubou o colar
da sua cunhada. — Ela virou o rosto, fitando um ponto na parede. — É uma
explicação plausível, mas sinto que tá faltando um indício, uma evidência
mais sólida e...
Um riso baixo escapou dos lábios de Felipe.
Ainda segurando o lençol, Mariana voltou a fitá-lo.
— O que foi?
— Você fica muito sexy quando ativa o modo perita criminal. — A
mão dele deslizou por baixo do lençol, apertando a coxa dela. — Acho que
vou gostar ainda mais quando você passar no concurso.
Mariana riu, estapeando de leve a mão dele.
— Não me desconcentre. Estou tentando pensar.
— Não te quero pensando agora.
— Mas eu quero pensar. As coisas não se encaixam.
Virando de lado, Mariana inclinou o corpo e apanhou o celular que
deixara em cima da mesinha de cabeceira. Procurou nos arquivos as
filmagens feitas pelas câmeras de segurança na noite do assassinato de
Rosana. Felipe se recostou na cabeceira, encarando o visor do celular ao lado
dela.
— Olhando para isso de novo? Não tem nada aí, né?
— Aparentemente não, mas... — Mariana mordeu a parte interna da
bochecha, passando filmagem por filmagem, revendo as mesmas cenas
vazias e escuras.
“É estranho as câmeras não terem registrado nada, né? Esses dias,
quando passei lá na mansão para conversar sobre as candidatas com dona
Solange, fiquei olhando para a rua, imaginando para onde a pessoa poderia
ter ido, imaginando como nenhuma câmera pegou nada”, ela se voltou para
as observações de Isabela. “É como se a pessoa tivesse desaparecido feito
um fantasma. Estranho demais, né?”.
Sim, era mesmo muito estranho.
E se Lobo houvesse agido junto com Falcão e Cobra, a equação ficava
mais sem sentindo ainda.
Como as câmeras não teriam pego nenhum dos três homens em
nenhum ângulo?
Tinha quase certeza de que a polícia iria fechar o caso e acusar os três
agiotas — passado criminoso, comportamento violento, assomado à arma do
crime encontrada na casa deles.
Ninguém ia averiguar mais nada.
Era o que bastava para muitos oficiais mal pagos e cansados do
sistema burocrático do país.
E o sistema não se importava com alguém como Rosana.
Era a mesma coisa que havia acontecido com sua mãe.
O caso de Rosana só estava tendo um pouco mais de atenção porque
fora noticiado na mídia e ocorrera em um bairro nobre de Campinas.
E com os três na prisão, a “justiça” seria feita e anunciada.
Mas algo dentro de si não aceitava aquela conclusão.
Não era assim que seus olhos liam a cena do crime.
O que é isso?
Mariana piscou, voltando para uma das filmagens. Deu zoom na
imagem, ao mesmo tempo em que acendia a luz do quarto, fazendo Felipe
pigarrear e cobrir os olhos com o braço.
— Isso aqui... Nesse canto... Parece uma sombra se movendo. Ou o
pedaço de uma sombra se movendo. Não sei. Não tenho certeza.
Com os olhos acostumados com a claridade, Felipe olhou para o ponto
que ela mostrava na gravação.
— Deve ser a sombra de uma árvore se mexendo. Tava ventando
aquela noite, não tava?
Mariana torceu o lábio.
— Pode ser, mas... — Ela fechou os olhos, tentando refazer a imagem
daquele pedaço da rua na sua cabeça. — Tem uma árvore ali?
— Não sei. Não me lembro agora. Deve ter.
— Vou confirmar para ter certeza.
— Você vai o quê...?
Antes que ele pudesse entendê-la, Mariana já tinha se levantado da
cama e apanhado as roupas jogadas pelo chão, vestindo peça por peça, até
estar completamente vestida.
— Vou lá fora ver esse ângulo da filmagem. Quero confirmar se há
uma árvore nesse ponto aqui, e se foi ela que fez essa sombra que vai e vem.
— Agora? — Ele piscou, incrédulo.
— Agora.
— Tá, espera um pouco. Vou com você.
Felipe se apressou para vestir suas roupas, e desceu as escadas atrás de
Mariana. Juntos, eles atravessaram o jardim, passaram pelo portão, até
chegarem na rua. Mariana mantinha os olhos fixos no celular, analisando o
vídeo em busca do ângulo certo. Quando finalmente encontrou, parou e
olhou para o local onde a sombra aparecia.
— É exatamente aqui. — Ela apontou. — E não tem nenhuma árvore
por perto. O que só significa uma coisa: esse movimento rápido que aparece
por segundos na filmagem é a sombra do assassino.
Felipe franziu a testa, olhando ao redor.
— Isso não faz sentido. Se alguém passasse por aqui, as câmeras
teriam registrado. Não importava se a pessoa tivesse dado um passo para a
frente, para trás ou para o lado. — Felipe apontou ao redor. — A pessoa teria
sido gravada.
— Eu sei. — Ela mordeu o lábio, pensativa. — As câmeras pegariam
qualquer movimento em volta dessa área. Mas não faz sentido que a sombra
tenha sido causada por um objeto. É a sombra de uma pessoa.
Os olhos de Mariana se estreitaram enquanto ela continuava a analisar
a rua. Ela estava imersa em seus pensamentos, tentando ligar os pontos, usar
seus conhecimentos de perícia criminal para entender o que estava
acontecendo, como o assassino havia escapado das câmeras.
Daquele jeito, teria que concordar com Isabela e concluir que o
assassinato fora cometido por um fantasma.
De que outra forma alguém desaparecia daquele jeito, sem deixar
nenhum rastro de sua presença?
De que...
E então, um pensamento lhe ocorreu.
Frio e arrepiante.
Ela ergueu o celular, passando a gravação outra vez.
Sentiu a respiração acelerar.
— O que foi? — Felipe perguntou, se colocando ao seu lado.
A sombra não tinha se movido para a frente, para a trás, para a direita
ou para a esquerda.
A sombra vinha de baixo.
E, como a nota final de uma sinfonia obscura, os olhos dela caíram
para o chão, para a rua, exatamente onde havia a tampa da rede de esgoto.
38
Um caminho obscuro
Felipe cambaleou para trás, como se um soco tivesse sido desferido em seu
estômago. O impacto do que estava vendo o deixou tonto, sem palavras, e
uma sensação de terror crescente o envolveu.
Aquele era o quarto de Diogo.
O quarto que seu irmão usara a vida toda; na infância, na adolescência,
na época em que se casara, no último ano onde ele havia permanecido em
coma.
Felipe conhecia muito bem aquele cômodo.
Mas agora...
Agora tudo parecia distorcido, um pesadelo fora de controle.
E a cama vazia, com os lençóis límpidos e impecáveis, parecia ser
apenas o repouso de uma presença fantasmagórica.
As cortinas tremulavam suavemente com o sibilar frio e secreto do
vento que soprava, mas lá fora não havia luar nem estrelas, apenas
escuridão. A atmosfera adensava a cada andar do ponteiro do relógio, das
batidas do coração, como se o próprio ar estivesse carregado uma pulsação
sombria, caótica demais para tomar forma, cor, som ou cheiro.
Não...
Felipe encarou a passagem que os trouxera até ali, sua mente girando
em um turbilhão de confusão, medo e choque.
Não é possível...
Quando havia entrado na rede de esgoto com Mariana, tinha achado
que apenas estariam perdendo tempo. Depois, aquele túnel novo surgira no
meio do caminho, e sua mente analítica calculou na mesma hora que o
caminho seguia na direção da mansão.
A conclusão galopara com tanta força em sua mente, que ele mal se
dera conta dos próprios atos; havia disparado pela passagem sem olhar para
trás, sem pensar, sem analisar.
Tinha sido o medo do assassino estar em sua casa?
Tinha sido o medo pela vida de Ágata, da mãe, do irmão, de Mariana,
dos empregados?
Ou tinha sido algo ainda mais obscuro, uma hipótese sombria que ele
não queria tocar?
Felipe arfou, olhando para a cama vazia do irmão, encarando a
passagem outra vez, a abertura tecida de escuridão e enigmas, que criava um
acesso entre o quarto de Diogo e a rua que passava ao lado da mansão.
O que está acontecendo aqui?!
Perguntas insondáveis corriam por sua cabeça, mas ele estava tão
atordoado que mal conseguia formular um pensamento coerente. Era como
se a realidade estivesse se desfazendo diante de seus olhos.
Ao seu lado, escutou Mariana arquejar baixinho, a mão dela se
segurando com força em seu braço.
— Ágata!
O nome da sobrinha estremeceu até o fundo dos ossos dele.
Os olhares dos dois se cruzaram e, sem hesitação, eles se lançaram em
uma corrida frenética em direção ao quarto de Ágata, cada passo ecoando
como um martelo em agonia sob seus corações acelerados.
Felipe arquejava.
Era impossível pensar, respirar.
A mão firme de Mariana bateu no interruptor, e a luz invadiu o quarto
de Ágata.
Felipe tinha a sensação de que seu coração ia explodir de ansiedade; e
uma sensação de vertigem o envolveu quando seus olhos se acostumaram
com a claridade do quarto.
A cama estava vazia.
O colar de borboleta, que deixara sobre a mesinha de cabeceira,
também tinha desaparecido.
E não havia sinal de Ágata em nenhum lugar.
— Não... Não pode ser... — Mariana sussurrou, dando um passo aflito
para trás, a voz trêmula de choque e desespero.
Os olhos de ambos se encontraram, um misto de incredulidade e
agonia pulsando no silêncio do cômodo. Eles olharam em volta, como se a
simples ação pudesse trazer Ágata de volta, mas a menina havia
desaparecido sem deixar vestígios.
Num acordo silencioso, eles giraram nos calcanhares e correram para
fora do quarto, a urgência palpitando sob a pele.
Felipe atravessou o corredor, verificando cada quarto, gritando pelo
nome da sobrinha, enquanto Mariana corria escada abaixo, chamando por
Ágata sem parar.
— Ágata! — Felipe abria porta por porta, o coração em pânico. —
Ágata, onde você está?! Ágata!
E cada quarto vazio jogava uma pedra em seu estômago.
Quando Felipe chegou ao quarto de sua mãe, um arquejo abafado
escapou de seus lábios.
Solange estava caída no chão, o rosto pálido e olhos sem foco.
— Mãe!
Correndo até ela, ele a segurou em seus braços, o coração martelando
em seu peito. Notou que ela respirava e tinha pulsação. Um ferimento
ensanguentado na cabeça dela fez o corpo dele se arrepiar.
— Mãe! Mãe, o que aconteceu? — a voz de Felipe estava cheia de
urgência, misturada com pânico. Ele não sabia a se ajudava a se erguer ou se
pegava o celular para chamar uma ambulância.
Solange piscou devagar, como se estivesse lutando para focalizar a
visão. Seus olhos encontraram o rosto de Felipe; foi a primeira vez que ele
viu uma expressão tão obscura e tão amedrontada naquelas íris.
— Mãe, fale comigo! O que aconteceu?
Os lábios dela se apartaram lentamente, o sussurro de uma respiração
pesada roçando no rosto dele.
— Diogo... Ele não me obedece mais...
◆◆◆
Um ano atrás
A noite fatídica que deveria ter sido como tantas outras, com suas
atividades cuidadosamente orquestradas, tomou um rumo que ela não
poderia prever, e isso a irritou e a desesperou de uma maneira que Solange
não estava acostumada.
Seu filho, Diogo, havia caçado Verônica sem a sua permissão.
A ousadia dele a deixou furiosa, pois o esquema que ela havia
elaborado estava meticulosamente planejado para manter o controle. E
agora, a presença indesejada de Verônica havia sido eliminada de uma
maneira que ameaçava expor os segredos obscuros que ela se esforçava
tanto para esconder.
— Por que você fez isso?! — ela vociferou para o filho, os nervos
pulsando, enquanto encarava o corpo sem vida e ensanguentado da nora.
Com um olhar apático, pontilhado de lampejos satisfeitos, Diogo deu
de ombros.
— O cheiro de Verônica estava se tornando muito forte para mim, e eu
quis sentir mais do que eu já tinha sentido. Faz tempo que entrar dentro dela
não me satisfazia mais. Eu queria mais dela. Todo o cheiro.
Solange contraiu os lábios.
A explicação, mórbida e perturbadora, só aumentou sua raiva e seu
medo.
— E sua filha?
— Ela não tem nenhum cheiro.
“Menos mal, menos mal”.
Ela sabia que precisava agir rapidamente para preservar o que havia
construído.
Teve que pensar rápido.
Precisava manter Diogo ainda mais sob seu controle, eliminando a
possibilidade de futuras caçadas não autorizadas.
E assim, um plano começou a se formar em sua mente prática.
Na mesma noite, conseguiu arquitetar o cenário que manteria seu
filho a salvo e protegido, e que criaria um pretexto justificável para a morte
de Verônica.
— Um acidente, mãe?
— Sim. Um acidente de carro que te deixará em coma.
Diogo franziu o cenho, pensativo.
— Olhe para mim, Diogo. Quem eu sou?
— A Autoridade.
— E o que você mais teme, Diogo?
— Ficar longe de você e não poder mais caçar.
A resposta encheu Solange de satisfação.
— Então, se você quiser continuar comigo e continuar caçando, terá
que me obedecer. E nunca mais poderá caçar sem permissão, me entendeu?
Ou seremos colocados longe um do outro.
Diogo, em seus modos e submissão à autoridade dela, concordou com
o plano.
Assim, Solange simulou um acidente de carro, onde Verônica morreu e
Diogo ficaria em coma. Não contou toda a verdade para o filho. Não contou
que esse estado de “coma” seria a desculpa perfeita para deixá-lo sob
vigilância constante, mantendo-o em seu alcance.
Contratou, de forma anônima e irrastreável — sempre irrastreável —,
uma das equipes que sempre lhe fazia serviços no submundo do crime —
uma gangue liderada por homens que usavam codinomes como Lobo,
Falcão e Cobra.
O acidente foi simulado.
O corpo da sua nora foi deixado dentro do carro.
Teve que escolher a dedo o socorrista que atestou o coma de Diogo —
um homem que, noites depois, foi caçado por Diogo.
Deixar pontas soltas era algo perigoso.
E Solange só tinha sobrevivido do ramo porque era cuidadosa ao
extremo.
Quando foi ao necrotério, aos “prantos”, fazer o reconhecimento do
corpo da nora, teve impressão de que uma das joias dela havia sido roubada
— um colar de borboleta — mas aquilo pouco lhe importava.
Agora nada mais fugiria do seu controle.
A partir daquela noite, Diogo passou a viver em um estado de coma
simulado, onde a linha entre a realidade e a ilusão estava borrada.
Não permitia que nenhum empregado entrasse no quarto do filho;
nem mesmo Felipe ou Ágata. Era arriscado demais.
Com os contatos certos, construiu silenciosamente um túnel que
ligava o quarto de Diogo ao lado externo da rua, passando por uma das
redes de esgoto, para garantir que seu filho tivesse um caminho livre e
seguro para as noites da caçada.
É claro que os construtores foram caçados posteriormente.
Por segurança, Solange o drogava para fazê-lo dormir por longas
horas, e só o acordava quando era hora de caçar. Às vezes, a droga perdia o
efeito, e uma dose maior precisava ser administrada, mas sempre com muito
cuidado, para não causar nenhum dano à perfeição que era seu menino.
Porque agora e para sempre ele seria seu.
Apenas seu.
43
Contagem
Ele tinha sentido o cheiro dela na primeira vez em que ela pisara na
mansão.
E aquele perfume...
Ah, aquele perfume...
Era absolutamente perfeito.
Tão perfeito quando o cheiro irresistível que Verônica um dia havia
tido.
Fazia tempo que não se sentia tão excitado e instigado com um
aroma; nem mesmo as caçadas que sua mãe lhe arranjavam tinham lhe
proporcionado tal sensação.
Precisava caçá-la.
Precisava sorver até a última centelha da fragrância daquela presa.
Pediu permissão para a Autoridade. E seu anseio foi fortemente
negado.
— Você está proibido de tocar na babá que Felipe arranjou para
Ágata. Isso pode nos trazer problemas, entendeu? Ela é proibida. Foque nas
presas que eu escolher. Você entendeu o que eu disse? Não posso mandá-la
embora sem justificativa. Seu irmão já enfiou na cabeça que ela vai ficar.
Ágata a quer. Estamos entendidos?
Ele se limitou a um dar de ombros.
Não podia desobedecer a Autoridade, ou seriam separados.
Mas o cheiro...
Ah, que cheiro.
◆◆◆
Naquela mesma noite, ele usou o túnel e foi até a casa dela. Não iria
desobedecer a Autoridade. Queria apenas sentir um pouco mais do cheiro.
Apenas para aplacar a pulsação selvagem das veias.
Ela estava na janela.
Ah, se abrisse o vidro, se libertasse seu perfume...
Deu um passo, só para chegar um pouco mais perto, só mais um
pouco...
— Ei, Lívia!
— O que foi?
— Acho que tem alguém lá fora...
A voz o pegou de sobressalto; ágil, Diogo se recolheu na escuridão.
— Não tô vendo ninguém.
Viu-a inclinar o corpo para frente, fitando a escuridão.
— Que estranho...
Se ela pelo menos abrisse a janela e libertasse um pouco do perfume
para ele...
◆◆◆
Após vários dias sedado com aquela maldita droga que a Autoridade
lhe ministrava, ele finalmente pudera caçar naquela noite tempestuosa.
Havia um cliente precisando de um produto.
E ele precisava caçar a presa para a Autoridade pegar o produto.
Uma caçada sempre era emocionante.
Derrubara o sangue, inalara o medo da presa, regozijara-se em suas
súplicas.
Diogo adorava quando eles suplicavam.
Tornava tudo mais emocionante, deixava-o ainda mais imponente.
Voltara apenas na madrugada; a retirada do produto e a limpeza da
caçada não eram problemas seus.
A Autoridade colocou-o para dormir.
Estava fazendo-o dormir com muito mais frequência, desde que ELA
se mudara para a mansão com seu cheiro de presa perfeita.
Mas ele tinha prometido que ia se manter sob controle.
Só podia ser livre e caçar se obedecesse à Autoridade.
Mas o cheiro estava ficando cada vez mais tentador.
E a droga, cada vez mais fraca.
◆◆◆
— Você sabe o que vai acontecer se fizer algo assim de novo, certo?
— Sim.
— Que tenha sido a última vez. E não a promessa de uma última vez,
como nós sabemos que já aconteceu.
“Verônica”.
Quando a Autoridade finalmente se afastou, seu corpo permaneceu
ali, imerso em suas próprias sombras. Sabia que errara ao não seguir os
passos de sempre. Precisava de cautela, precisava manter suas ações dentro
das sombras e fora dos olhos do mundo.
Mas a caçada era irresistível, o cheiro era inebriante, o desejo de
controlar a vida e a morte era avassalador.
Com o coração pulsando em um ritmo frenético, permitiu que seus
olhos se fechassem, saboreando-se apenas com os cenários que existiam nas
sombras de sua imaginação; o gosto do medo, o aroma da morte, a
contemplação da fuga, o toque do suor frio, o som final.
Tão...
Bom.
O cheiro da presa ficava mais forte do que nunca.
A caçada lhe chamava.
E não sabia como faria para resistir na próxima vez.
◆◆◆
— Cinco... Seis...
Tudo o que Mariana conseguiu fazer foi agarrar a mão de Ágata e
correr com todas as suas forças.
— Sete... Oito...
O jardim foi rapidamente engolido pela incandescência das chamas,
suas línguas famintas lambendo o ar e criando uma dança frenética de cores
vívidas. As árvores se destacaram em tons de laranja e vermelho, enquanto
as sombras distorcidas pareciam se mover em um frenesi, projetando uma
atmosfera sinistra sobre o cenário.
— Nove...
O fogo avançou impiedosamente, consumindo o terreno e se
aproximando cada vez mais da mansão, onde a maior concentração de
combustível parecia alimentar as chamas vorazes.
— Dez!
Arquejando, Mariana ergueu a menina do chão, pegando-a no colo
para conseguir correr mais rápido. A destruição iminente parecia inevitável,
e o desespero apertava seu peito, cada passo a levando mais longe da ameaça
ardente.
Não havia como entrar na mansão; a porta principal estava tomada
pelo fogo.
Felipe... Felipe ainda está lá dentro!
O grito desesperado de Mariana ecoou pelo ar enquanto ela corria,
seus olhos buscando freneticamente uma saída.
Ela avistou o portão de saída, uma esperança tênue, e correu até ele.
Mas quando tentou abri-lo, seu coração afundou ao perceber que estava
trancado. Bateu nas grades, gritou por socorro, mas o som do crepitar das
chamas quase abafou sua voz.
— É só um jogo, tio Mari. O papai tá brincando com a gente.
Ofegando, ela olhou para trás.
Diogo estava se aproximando, sua figura distorcida pelas ondas de
calor, sua faca cintilando perigosamente à luz das chamas.
O sorriso dele era de um predador que se deleitava com a caçada.
Mariana segurou Ágata com mais força, os batimentos do coração
ecoando em seus ouvidos enquanto ela buscava desesperadamente uma
maneira de escapar.
Seus olhos se encheram de lágrimas, uma mistura de medo e
determinação, enquanto ela continuava a correr, procurando uma brecha na
prisão de chamas que se fechava ao seu redor.
◆◆◆
Após ser expulsa da sala e da cozinha por seu pai, por sua irmã, por
Isabela — até mesmo por Ágata — sob a alegação que o jantar de
comemoração seria feito por eles, Mariana se dirigiu até o banheiro da casa,
fechando a porta atrás de si e buscando por seu próprio reflexo no espelho.
— Mãe... — ela murmurou, abrindo um sorriso emocionado para si
mesma enquanto levava uma mão ao peito, sentindo a força determinada
com que seu coração batia. — Eu consegui. Estou ainda mais perto de
realizar meus sonhos.
Um leve tremor passou por sua garganta.
Mariana inspirou fundo, fitando a si mesma, o peito cheio do
sentimento mais terno e cálido que já experimentara.
— Com essa nova carreira, vou poder fazer justiça pelas pessoas. A
justiça que lhe foi negada no passado. E poderei cuidar do papai e da Lívia
com mais tranquilidade. E... Obrigada. Sei que você está me olhando de
algum lugar. Tenho certeza de que foi você que colocou Felipe e Ágata no
meu caminho, para me mostrar que posso amar sem medo de perder. Eu me
permiti amá-los. E agora eles são minha família. Muito obrigada.
Escutou a porta do banheiro sendo aberta.
Mariana não precisou se virar para ver Felipe; enxergou-o através do
reflexo do espelho, os olhos escurecidos ardendo em chamas que se
espalharam por sua pele antes mesmo que ele a tocasse.
Como um único olhar podia arrebatá-la de tal forma?
Ele fechou a porta atrás de si e a trancou; Mariana abriu a boca, mas
Felipe avançou até ela, tomando-a nos braços, seus lábios sorvendo os dela
enquanto a erguia e a colocava sentada na bancada da pia.
— Felipe! — Ela arfou contra a boca dele.
— Quero você — ele murmurou, os lábios se movendo contra os dela
com um desejo urgente, as mãos subindo por suas coxas, deslizando para
baixo do vestido que ela usava. — Preciso de você.
Todo seu corpo se incendiou com o toque dos dedos dele.
— Vão nos ouvir! — ela arquejou, jogando a cabeça para trás.
— Estão distraídos na cozinha. — Um brilho perigoso lampejava nas
íris dele. — É só não fazer barulho.
Incapaz de se conter, completamente inebriada por ele, Mariana se
redeu aos beijos e às carícias.
Felipe exprimiu um murmúrio rouco, se colocando entre as pernas
dela, os lábios provocando o caminho entre sua boca, seu pescoço e a curva
dos seios; as mãos dela passeavam por seus braços despidos, reverenciando
cada uma das tatuagens que se desenhavam pelos músculos dele.
Mariana gemeu baixo, atiçada quando a mão dele a livrou da calcinha,
os dedos brincando entre o meio de suas coxas.
— Shh... — Ele sussurrou em provocação em seu ouvido. — Lembra
o que eu disse, linda? Não pode fazer barulho.
Ela engoliu em seco, arquejando. Escutou o som do cinto de Felipe se
soltando, o calor acentuando no banheiro, as bocas colidindo para calarem
qualquer som perigoso. Ele segurou uma das pernas de Mariana, apoiando-a
em sua cintura, puxando-a para mais perto, até que suas peles ardentes se
roçassem, livres de qualquer barreira.
Mariana precisou morder os lábios para não gemer alto.
Uma das mãos de Felipe subiu, se agarrando aos seus cabelos em um
aperto forte e delicioso.
A boca dele se colou em sua orelha.
— Vai ter que ficar ainda mais quietinha agora, linda.
Sem soltar seus cabelos, Felipe a puxou, tomando-a com um impulso,
encaixando-se nela, dentro dela, calando os sons involuntários da sua boca
com mais um beijo.
Faíscas queimavam atrás dos seus olhos fechados.
Ela afundou os dedos nos cabelos dele, perdendo-se de qualquer razão
ou sanidade naquele momento.
Mariana sentiu o coração acelerar à medida que Felipe se movia cada
vez mais rápido, mais forte. A tensão se acumulava em seu corpo,
desesperada para explodir. Os sussurros e gemidos que escapavam dos seus
lábios e dos dele eram abafados pelos beijos famintos, urgentes.
Suas unhas se cravaram nos braços dele, as mãos de Felipe a
seguraram com mais força, os movimentos do corpo dele sobre o seu ditando
o ritmo, acentuando o fogo que queria consumi-la por completo.
E então, quando não foi mais possível aguentar, quando não foi mais
possível resistir, cada pedacinho dela estremeceu, vibrou, explodiu, o mundo
desaparecendo ao seu redor enquanto era tomada pela mais avassaladora das
sensações; Mariana arquejou contra os lábios dele, sentindo Felipe acelerar
os movimentos, abafando os próprios grunhidos nos beijos vorazes,
puxando-a, apertando-a, até alcançar o próprio ápice.
Um olhar rápido e cúmplice foi trocado entre os dois, um sorriso
secreto e divertido.
Calmo e terno, os lábios dele depositaram um beijo suave na curva do
pescoço dela.
Ela se afundou nos braços de Felipe, seus corações batendo em
uníssono, ofegantes e saciados, permitindo-se sentir e experimentar todo o
frenesi que ainda vibrava por sua pele quente contra a pele quente dele.
◆◆◆
Fim
Notas da Autora & Agradecimentos
Pensa em uma história que amei escrever!
Quem em conhece sabe demais que amo misturar romance com mistério —
para mim, é uma combinação que funciona de uma forma sensacional.
Como vocês devem ter notado, deixei um gancho para uma história do
Theo. Então, se preparem porque ainda teremos o livro dele nessa
duologia que intitulei “Duologia Legado”.
Agradeço também a todos aqueles que têm me apoiado nesta jornada: meus
pais, minha irmã, meu marido (em memória), meus avós, toda a minha
família, meus leitores maravilhosos. Muito obrigada mesmo pela confiança e
pelo carinho depositado em cada leitura. Vocês são incríveis.
Redes sociais
Facebook
Instagram (@clacoral)