Devires Cinema e Escritas de Si
Devires Cinema e Escritas de Si
Devires Cinema e Escritas de Si
2 JUL / DEZ 2 0 1 7 I S S N 2 1 7 9 - 6 4 8 3
devires, belo horizonte, v. 14, n. 2, p. 01-307, jul/dez 2017
periodicidade semestral – issn: 1679-8503 (impressa) / 2179-6483 (eletrônica)
À memória de Henrique Codato, que deixa aqui uma parte de si.
ORGANIZAÇÃO DOSSIÊ Cristina Melo Teixeira (UFPE)
CINEMA E ESCRITAS DE SI Denilson Lopes (UFRJ)
Roberta Veiga Eduardo de Jesus (PUC-MG)
Carla Italiano Eduardo Morettin (USP)
Ilana Feldman Eduardo Vargas (UFMG)
Erick Felinto (UERJ)
EDITORES Erly Vieira Júnior (UFES)
Anna Karina Bartolomeu Fernando Resende(UFF)
André Brasil Henri Gervaiseau(USP)
Clarisse Alvarenga Ismail Xavier (USP)
Cláudia Mesquita Jair Tadeu da Fonseca (UFSC)
César Guimarães Jean-Louis Comolli (Paris VIII)
Eduardo de Jesus João Luiz Vieira (UFF)
Mateus Araújo José Benjamin Picado (UFBA)
Roberta Veiga Leandro Saraiva (UFSCAR)
Ruben Caixeta de Queiroz Márcio Serelle (PUC/MG)
Marcius Freire (Unicamp)
DIAGRAMAÇÃO Mariana Baltar (UFF)
Leonardo Câmara Maurício Lissovsky (UFRJ)
Maurício Vasconcelos (USP)
PRODUÇÃO EDITORIAL Osmar Gonçalves (UFC)
Carla Italiano Patrícia Franca (UFMG)
Hannah Serrat Paulo Maia (UFMG)
Letícia Marotta Phillippe Dubois (Paris III)
Luís Felipe Duarte Flores Phillipe Lourdou (Paris X)
Thiago Rodrigues Lima Ramayana Lira(UNISUL)
Réda Bensmaïa (Brown University)
REVISÃO GRÁFICA Regina Helena da Silva (UFMG)
Gustavo Jardim Renato Athias (UFPE)
Leandro Lopes Ronaldo Noronha (UFMG)
Leonardo Amaral Sabrina Sedlmayer (UFMG)
Pedro Rena Silvina Rodrigues Lopes (Universidade Nova de Lisboa)
Tomyo Costa Ito Stella Senra
Susana Dobal (UnB)
CONSELHO EDITORIAL Suzana Reck Miranda (UFSCar)
Alessandra Brandão(UNISUL) Sylvia Novaes (USP)
Amaranta César(UFRB)
Ana Luíza Carvalho (UFRGS) CAPA E PROJETO GRÁFICO
Andréa França(PUC-Rio) Bruno Martins
Ângela Prysthon (UFPE) Carlos M. Camargos Mendonça
Anita Leandro(UFRJ)
Beatriz Furtado(UFC) APOIO
Cezar Migliorin(UFF) Grupo de Pesquisa Poéticas da Experiência
Consuelo Lins (UFRJ) Grupo de Pesquisa Poéticas Femininas, Políticas Feministas
Cornélia Eckert (UFRGS) FAFICH – UFMG
Semestral
ISSN: 1679-8503 (impressa) / 2179-6483 (eletrônica)
11 Apresentação
Roberta Veiga, Carla Italiano e Ilana Feldman
CINEMA E ESCRITAS DE SI
18 Identidade em deslize: o registro autrobiográfico na obra de Chantal Akerman
Alisa Lebow
104 Filmo, logo vivo _ modulações do filme-diário em Jonas Mekas e David Perlov
Carla Italiano
FOTOGRAMA COMENTADO
252 Catar imagem se limita com escrever (seus grãos mais vivos, à moda de João Cabral)
Carlos Adriano
FORA DE CAMPO
264 Memórias de uma catástrofe em andamento: testemunhos em vídeo de violência
policial na periferia
Felipe Polydoro
Alisa Lebow
É documentarista, pesquisadora e escritora. Doutora em Estudos de Cinema pela
New York University, atualmente é professora em Estudos de Cinema na University
of Sussex, Reino Unido.
6. BERGSTROM, Janet.
Depois de ter vivenciado a perda do amor da mãe e a ameaça
“Invented Memories”,
da perda da mãe ela mesma, e depois de ter lutado contra a Identity and Memory: The
ansiedade por meio de vários métodos ativos, entre os quais Films of Chantal Akerman,
são indícios a agitação, a insônia e os terrores noturnos, o Gwendolyn Audrey Foster
ego irá mobilizar uma série de defesas de outro tipo... A (org.). Trowbridge: Flicks
primeira e a mais importante consiste em um movimento Books, 1999, p. 99.
único de dois aspectos: a decatexia do objeto maternal e a
identificação inconsciente com a mãe morta.7 7. Idem, p. 105 (itálicos no
original).
8. “The Greening of
Esses sujeitos escolheram a criatividade no lugar da relação Psychoanalysis: André Green
in Dialogues with Gregorio
amorosa, talvez para se tornarem independentes do objeto;
Kohon”. In: KOHON,
o objeto, afinal, pode parar de lhe amar; num momento, Gregorio (org.). The Dead
o objeto está lá, no outro, já se foi. Há um contentamento Mother: The Work of André
na criatividade, mas penso que há essa ameaça de não ser Green. Londres: Routledge,
capaz de ir além.8 1999, p. 57.
tela, ameaçadoramente, como um memento mori, a combinação 16. Brenda Longfellow, “Love
ornamental das urnas a assumir a aparência de dois ossuários. Letters to the Mother”,
Canadian Journal of Political
Ela sugere em silêncio o que ninguém havia considerado, o and Social Theory 13, n. 1-2,
que ninguém ousaria contemplar: o que aconteceria quando 1989, p. 73.
ela não pudesse mais manter sua mãe viva com seus filmes? 17. MAMULA, Tijana.
Com Akerman, supostamente, não há cinema sem a mãe, e “Matricide, Indexicality and
Abstraction”, Studies in
isso é irrefutável, como o final lamentavelmente irreversível
French Cinema 8, n. 3, 2008,
evidenciou, que não haveria mais filmes sem ela. A questão de p. 273.
quem estava mantendo quem viva com esses filmes parece mais,
em seus efeitos, uma reviravolta no emaranhado de identidades
deslizantes que percorrem do início ao fim a obra de Akerman.
Ilana Feldman
Pós-doutoranda no Programa de Pós-graduação em Meios e Processos Audiovisuais
da Escola de Comunicações e Artes da USP. É pós-doutora em Teoria Literária pela
UNICAMP e doutora em Cinema pela ECA-USP, com passagem pelo Departamento
de Filosofia, Artes e Estética da Universidade Paris 8.
REFERÊNCIAS
Abstract: This article discusses landscape, territory and political forms in Lost
Lost Lost (1976) and As I was moving ahead occasionally I saw brief glimpses of
beauty (2000), by Jonas Mekas. We think how narrative and landscape are related,
considering the theories by Aumont (2006), Lefebvre (2006) and Gunning (2006). We
analyze Mekas’ discourse about himself, recurring to Bachelard (1993) and Corrigan
(2005). We return to Deleuze and Guattari (2004) and Rancière (2005) from a political
perspective. Our effort is to think how the relationship between landscape and
territory reverberate in a creative gesture.
Keywords: Landscape; Territory; Politics; Experimental cinema; Film diary.
Fig. 1-2: As I was moving ahead occasionally I saw brief glimpses of beauty
A rua está lá. A neve está caindo. Não sei como, mas está lá. Ela
leva sua própria vida, é claro. O mesmo com a Lituânia. Então,
agora, entro na imagem. E com a câmera. Quando caminho com
a minha câmera, algo cai em meus olhos. Quando caminho pela
cidade, não conduzo meus olhos conscientemente disso para
aquilo e para aquilo. Ao contrário, caminho e meus olhos são
como janelas abertas, e vejo coisas, as coisas caem lá dentro. Se
ouço um som, claro, olho para a direção do som. O ouvido se
torna ativo, e direciona o olho; o olho está buscando aquilo que
fez o barulho (MEKAS, 2013, p. 134).
Conclusão
REFERÊNCIAS
FILMES
As I Was Moving Ahead Occasionally I Saw Brief Glimpses of Beauty. Dir.: Jonas
Mekas. EUA, 1970-99/2000, 16 mm, cor, 288 min.
Lost Lost Lost. Dir.: Jonas Mekas, 1976, 16mm, cor, 180 min.
1.5 Os filmes
**
BRAKHAGE, Stan. Carta a Jerome Hill, final de janeiro 1970. James Stanley
Brakhage Collection; Universidade do Colorado, Boulder. [JSB Collection]
____________. Carta a Jay Leyda, sem data. [JSB Collection]
____________. Carta a Jonas Mekas, 9 abr 1972. [JSB Collection]
____________. Entrevista concedida a Jonas Mekas. MEKAS, Jonas. “Movie
Journal” [continuação da Brakhage interview]. Village Voice, 3 jul de 1973.
p 77.
____________. “In defense of the amateur”. In: McPHERSON, Bruce (org).
Essential Brakhage. Nova York: McPherson & Company, 2004. p. 145.
____________. Metáforas da Visão. In: XAVIER, Ismail (org). A experiência do
cinema. São Paulo: Graal, 2008. p. 344.
____________. On 23rd Psalm Branch. In: HALLER, Robert (Org). Brakhage
Scrapbook, 1982, p. 110.
DEREN, Maya. “Amateur versus Professional”. In: McPHERSON, Bruce (org).
Essential Deren. Nova York: McPherson & Company, 2004. p. 17.
ODIN, Roger. (Ed.). Le film de famille: usage privé, usage public. Paris: Méridiens
Klincksieck, 1995
MEKAS, Jonas. Movie Journal. Village Voice, Nova York, 5 abr. 1973, p. 73.
_____________. “Movie Journal”, Village Voice, Nova York, 7 dez 1972, p.75
MEKAS, Jonas et al. “Declaração do Novo Cinema Americano”. In: MOURÃO,
Patrícia (org). Jonas Mekas. São Paulo, 2013, p. 55.
SHARITS, Paul. “Postscript as Preface”. Film Culture, n. 65-66, Winter, 1978. p.
2-3.
SITNEY, P. Adams. Autobiography in Avant-Garde Cinema. Millennium Film
Journal, Nova York, v. 1, n. 1, 1977-1978, p. 66.
__________.Visionary Film: The American avant-garde, 1943-2000. Oxford
University Press, 2000.
ZIMMERMANN, Patricia. Mining the home movie: excavations in histories and
memories. Berkeley: University of California, 2008.
______________. Reel families: a social history of amateur film. Bloomington:
Indiana University, 1995.
Carla Italiano
Doutoranda em Comunicação Social pelo PPGCOM da Universidade Federal
de Minas Gerais, com mestrado pela mesma instituição. Curadora de mostras e
festivais, integrante da associação Filmes de Quintal.
Abstract: The present article proposes a dialogue between the films Diary 1973–1983
(1983), by David Perlov, and Walden – Diaries, notes and sketches (1969), by Jonas
Mekas, using as a starting point the singular overlap between life and film that
drives both proposals. We investigate how these films, in their modulations of the
diary film, allow us to see images as forms that produce distinct subjects, which
elaborate and disfigure aspects of the self on their particular stylistics. The analysis
also indicates how a pathos proper to exile, linked to the filmmakers’ displacement
trajectory, crosses the diary creation aesthetically, resulting in different modes of
political engagement.
Keywords: diary film; exile; David Perlov; Jonas Mekas
“Vivo, logo faço filmes. Faço filmes, logo vivo”,1 anuncia a 1. “I live, therefore I make
films. I make films, therefore I
célebre declaração de Jonas Mekas no primeiro rolo de Walden
live” (trad. nossa).
(Diários, notas e esboços) (1969). Quando o “penso” da máxima
cartesiana se torna “fazer filmes no longa-metragem do realizador
lituano, o que se explicita é o caráter reversível entre existir e
filmar, sua mútua constituição. O que tampouco significa que
as instâncias se tornaram equivalentes. Longe de um ideal de
cinema que almeja apreender uma realidade a ele externa, os
filmes que caminham em conjunto ao desenrolar de uma vida
assumem, antes de tudo, um caráter processual de experiência
estética expandida por regimes de enunciação – autobiográfico,
documental, performático –, apresentando-se como tateantes,
lacunares, poéticos.
Uma inquietação elementar, mas de difícil resposta, move o
presente artigo: quando a “frágil fronteira entre a vida e a arte”2 2. PERLOV, 2011, p. 199.
se torna quase indissociável, qual cinema daí resulta? Quais
mecanismos e formas o configuram? Quais efeitos ele têm na
vida dos que estão atrás e à frente da câmera? Quais relações se
estabelecem entre o universo visto em tela (privado? íntimo?) e o
mundo que o filme – a um só tempo, prática e produto – constitui
e é por ele constituído? Partindo dessas indagações, propomos
uma aproximação entre dois notórios cineastas-diaristas: David
Perlov, e as seis partes de seu Diário 1973-1983 (1983); e Jonas
Mekas, com seu longa-metragem de estreia Walden (Diários,
notas e esboços) (1969).3 A intenção é investigar como essas obras, 3. Do original: Diaries, Notes
and Sketches (also known
em suas modulações do diário no cinema e com suas estilísticas
as Walden). A expressão
particulares, nos permitem ver as imagens como formas produtoras “diários, notas e esboços”,
de sujeitos distintos, elaborando e desfigurando facetas do eu. originalmente concebida para
designar toda a sua obra
Frente ao desafio de abordar tais cineastas em conjunto, é após Walden, retornaria em
filmes seguintes: Lost Lost
importante destacar como suas trajetórias (fílmicas, biográficas) Lost (1976) e In Between
são opostas. Da ascensão do nazismo à queda do World Trade (1978).
Um jogo de sorte
– recortado em uma sala escura, tal qual o espaço privilegiado 9. The Pill (1967).
de fruição fílmica. Mas essa tela específica não exibirá os feitos
grandiosos do cinema hegemônico, e sim aquilo que lhe é mais
próximo: uma parcela da cidade onde se habita (uma criança
no portão, a sinagoga à direita, os trabalhadores na calçada); e
o espaço de uma casa partilhado em seus pormenores. No filme
de Perlov, tanto o ambiente urbano quanto o doméstico são
segmentados em “sobrequadros”,10 vistos através das molduras 10. AUMONT, Jacques (et al.).
O olho interminável – Cinema
existentes no mundo; “filmo os ângulos vivos de minha casa”, e pintura. São Paulo: Cosac
anuncia no primeiro capítulo. Naify, 2004, p. 127
Medidas e desmedidas do eu
REFERÊNCIAS
BLANCHOT, Maurice. O livro por vir. São Paulo: Martins Fontes, 2005.
BLUHER, Dominique. Perlov, Mekas, Morder, Lehman e os outros: à procura de
imprevisíveis agitações do cotidiano. In: FELDMAN, I; MOURÃO, P. (org.).
David Perlov: epifanias do cotidiano. São Paulo: Centro da Cultura Judaica,
2011.
CATELLI, Nora. En la era de la intimidad; El espacio autobiográfico. Rosario:
Beatriz Viterbo Editora, 2007.
DE MAN, Paul. Autobiografia como Des-figuração. Revista Sopro, Florianópolis,
n. 71, Maio 2012. Disponível em www.culturaebarbarie.org/sopro/n71.html;
acesso em 07/07/2020.
EMERSON, Ralph W. Selected Essays. New York: The Penguin American Library,
1982.
FELDMAN, Ilana. David Perlov: epifanias do cotidiano. In: FELDMAN, I; MOURÃO,
P. (org.). David Perlov: epifanias do cotidiano. São Paulo: Centro da Cultura
Judaica, 2011.
GUTIÉRREZ, Gregorio M. (org.). David Perlov e a vigília do cotidiano. In:
FELDMAN, I; MOURÃO, P. (org.). David Perlov. São Paulo: Centro da Cultura
Judaica, 2011.
JAMES, David E. (org.). Diário em filme/ Filme-diário: prática e produto em
Walden, de Jonas Mekas. In: MOURÃO, P. (org.). Jonas Mekas. São Paulo:
CCBB; Pró-reitoria de Cultura e Extensão Universitária – USP, 2013.
KAFKA, Franz. Diaries 1910–1923. New York: Deckle Edge, 1988.
LEJEUNE, Philippe. O pacto autobiográfico. In: ______. O pacto autobiográfico –
de Rousseau à Internet. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2008.
MOURÃO, Patrícia. A “ordem” do cinema – Jonas Mekas underground. In: Catálogo
forumdoc.bh.2013. Belo Horizonte: Associação Filmes de Quintal, 2013a.
Abstract: The limits of autobiography and autofiction are fecund for the contemporary
literary and audiovisual representation. Nanni Moretti’s films produced until 1993
break with the objectivity and at the same time keep a narcissistic point of view, with
a substantial confrontation with the real, using the first person to face the state of the
Italian cinema, the civic questions and the private life. The instability of the genres is
asserted by means of self-exposition as an esthetical, ethical, critical and autocritical
mechanism.
Keywords: Autobiography; Autofiction; First person; Literature and cinema; Nanni
Moretti.
2. Pobres garotos...
FILMES
Abstract: From the author’s death to his tender return in the form of biographème
(which makes bio - life -, spelling - letter) proposed by Barthes, passing by Wenders
and the notion of the camera as a shelter from the shadows, and by Comolli, dealing
with residue of the real, it is inferred that from the subject on the canvas the stain
remains. As in psychoanalysis, what is transmitted in the cinema will not be a
representation of perceived reality in the sensitive spectrum, but what is presented
elsewhere. Then, it is sought in this “out of the spectrum” - which resists the fissure
of filming - the possibility of thinking about the singularity of the biographical
approach of documentary cinema. For this concept, the opening of the beautiful film
The beaches of Agnès (2008), by Agnès Varda, is taken as a kind of cinematographic
reference.
Keywords: Cinema-biographème; Psychoanalysis; Agnès Varda.
148 A escrita de si nas praias de Agnès Varda / Lucia Castello Branco, Maria Fernanda Machado
Moi, si on m’ouvre, on trouvera des plages.
Agnès Varda
150 A escrita de si nas praias de Agnès Varda / Lucia Castello Branco, Maria Fernanda Machado
O olhar, como resto incorporado do Outro, ganha lugar
de objeto a. O objeto a é compreendido aqui como uma “certa
função de resto, que sustenta e move o desejo” (LACAN, 2005,
p. 253).4 Desejo este marcado pela falta, pois só se é olhado a 4. Original de 1963.
152 A escrita de si nas praias de Agnès Varda / Lucia Castello Branco, Maria Fernanda Machado
Fig. 1: As praias de Agnès (frame).
O sujeito espraiado
154 A escrita de si nas praias de Agnès Varda / Lucia Castello Branco, Maria Fernanda Machado
O que a imagem de um espelho que não reflete o rosto de
quem narra, mas apenas uma paisagem, pode nos indicar, sobre a
questão do sujeito? Que o “eu” não é o sujeito, é a primeira óbvia
dedução. Mas também que um corpo pode ser construído tão
somente a partir da voz e do olhar.
A voz cai disso que se diz. Lacan questiona: “O que há cuja voz
é assumida pelo sujeito a cada vez que fala?” (2005, p. 71).10 A voz 10. Original de 1963.
156 A escrita de si nas praias de Agnès Varda / Lucia Castello Branco, Maria Fernanda Machado
“destinação”. Dessa forma, alcança um sujeito em sua divisão,
“um sujeito que se deixa, de alguma maneira, ler pela letra”
(VIDAL, 2017, s.p.). O conto de Poe e a carta desse conto chegam
“ao leitor, mas ao leitor, como Lacan deixa claro no início dos
Escritos, que não é aquele dos endereços aos quais uma carta se
remete, mas ao leitor que se deixa dividir pelo gozo que a letra
porta” (VIDAL, 2017, s.p.).
Um escrito, uma palavra, uma letra sem destinatário,
sem um endereçamento a um ideal, seriam portadores de uma
“destinação” capaz de promover o efeito de divisão em seus
leitores/auditores. Como a carta/letra que marca a falta no conto
de Poe, a fala, que deixa escapar um dizer, cumpriria a função
de um objeto perdido que faria advir o sujeito do inconsciente.
Talvez seja nesse encontro entre o dito e o dizer, apresentado na
letra/grafema de uma vida, que em um cinema documentário
possa se dar à transmissão.
Curioso notar que a execução do documentário em si, nas
palavras de Comolli, assim como a carta de Poe, promoveria
um “distúrbio do direcionamento que repercute do narrador na
escuta do espectador” (COMOLLI, 2008, p. 88). Quando fala, em
uma filmagem, o narrador endereça sua fala a um destinatário
colocado fora de campo, mas não fora de cena, promovendo um
papel estruturante na filmagem do percurso e da destinação da
narrativa. O espectador, sempre ausente, acaba se desdobrando
na figura do entrevistador, do diretor de cena, da câmera e,
claro, de espectadores imaginários. Sem um ouvinte fixo, sem o
olhar daquele que o localiza,
158 A escrita de si nas praias de Agnès Varda / Lucia Castello Branco, Maria Fernanda Machado
E as praias? O que fazem elas, nesse filme que parece insistir
em nos dizer, a cada corte, a cada tomada, a cada movimento
de câmera, que o sujeito está sempre “aquém do eu, além do
outro”?14 As praias continuam lá, para além, com o movimento 14. Fazemos referência aqui
ao belo título do livro de
e o barulho das ondas, numa espécie de eternidade improvável. Leyla Perrone-Moisés sobre o
Um dia elas também desaparecerão? Não, enquanto houver sujeito em Fernando Pessoa.
uma letra que se abra, em secreção de ostra, e escreva, sobre a
areia, um traço. Mesmo que o mar o apague, se houver alguém
que o leia – ainda que esse alguém seja um pássaro ou a célula
fotoelétrica do apólogo lacaniano –, um dia, quem sabe, o corpo
anônimo do escritor terá tocado, como cinzas lançadas ao vento,
o corpo anônimo do leitor, ou do ouvinte, ou do espectador. E
então poderemos dizer, com Lacan:
REFERÊNCIAS
160 A escrita de si nas praias de Agnès Varda / Lucia Castello Branco, Maria Fernanda Machado
DEVIRES, BELO HORIZONTE, V. 14, N. 2, P. 146-161, JUL/DEZ 2017 161
Sentir a imagem:
performatividade e mise-en-scène
no cinema de Naomi Kawase
Henrique C odato
Doutor em Comunicação Social pela Universidade Federal de Minas Gerais, pós-
graduado em Comunicação pela Universidade Federal do Ceará (PPGCOM/UFC).
Docente do curso de Cinema e Audiovisual da Universidade de Fortaleza (Unifor).
Abstract: Based on a dialogue between theories from the field of cinema and
performance studies, the present work aims to visit two documentaries from
Japanese director Naomi Kawase – Embracing (Ni Tsutsumarete, 1992) and Sky, Wind,
Fire, Water, Earth (Kya ka ra ba a, 2001) – in order to investigate the performative
practices that the director uses in and with the image and how she inscribes her own
body in the materiality of the film, presenting a cinema full of inaccuracies, absences
and disappearances.
Keywords: Cinema; Performance; Performativity; Mise-en-scène; Naomi Kawase.
Figura 1: Naomi Kawase filma-se em frente a um aparelho de televisão e performa com as imagens em 12. O flickering, ou efeito
Em Seus Braços. Por meio do jogo de encenação, e através da montagem, a diretora fabrica um corpo flicker (palavra em inglês
que não preexistia à filmagem. que pode ser traduzida por
oscilação ou tremulação),
tecnicamente, decorre em
A dinâmica da cena torna evidente que a realizadora não
função do baixo frame rate
está interessada em nos oferecer respostas, mas em nos convidar de reordenamento (refresh)
a habitar o lugar das imprecisões, das dúvidas, dos riscos e dos entre os ciclos de exibição
em vídeo, especialmente nos
imprevistos junto a ela. O efeito flicker,12 produzido a partir da intervalos de atualização no
filmagem do aparelho da televisão, combina-se à paleta de tons tubo de raio catódico, como
acontece neste caso.
azuis e aos ruídos da tela do televisor desarranjando sua efígie,
desfazendo a impressão ilusionista de que estaríamos assistindo a 13. Como um corpo fechado
um movimento contínuo e desordenando as noções convencionais em si mesmo, inteiro,
alicerçado na tríade unidade/
de figuração do corpo, comumente relacionadas à representação.13 singularidade/identidade.
De estatutos completamente distintos – uma imagem televisiva; No regime da mimese, da
arte representacional, ao
outra cinematográfica; uma terceira, um reflexo, puro efeito contrário do que acontece
da montagem –, essas imagens entrelaçam-se e justapõem-se, no filme de Naomi Kawase,
o sujeito é tomado enquanto
fazendo com que algo novo surja no espaço da tela. Trata-se da
instância, como arranjo
irrupção de uma espécie de imagem performativa, produzida definitivo, imutável e
por meio da autoinscrição da realizadora no espaço da cena, na finalizado.
Figuras 2, 3 e 4: Naomi Kawase busca seus rastros em sombras e reflexos em Em Seus Braços.
Figura 5: Em Céu, Vento, Fogo, Água, Terra, Naomi Kawase filma sua sombra projetada no tronco
de uma árvore, confundindo-se com o ambiente e borrando as fronteiras entre dentro e fora do
corpo.
Notas finais
REFERÊNCIAS
FILMES
EM SEUS BRAÇOS. Direção: Naomi Kawase. Japão, 1992. 1 fita VHS (40 min.),
son., color., legendado. Tradução de: HardSubbed.
CÉU, VENTO, FOGO, ÁGUA, TERRA. Direção: Naomi Kawase. Produção: Sent Inc.
& Kumie. Japão, 2001. 1 fita VHS (42 min.), son., color., legendado. Tradução
de: Stuart J. Walton.
Karla Holanda
Professora do curso de Cinema e Audiovisual e do PPGCine - Programa de Pós-
graduação em Cinema e Audiovisual da Universidade Federal Fluminense.
Abstract: In 1966 Helena Solberg directed her first documentary, A Entrevista, a short
film that discusses women’s role in society. In 1994 she directed Carmen Miranda:
Bananas is My Business, a feature film about the life of the singer-myth. The two
highlighted documentaries are emblematic in her career and allow us to observe
self-referential and self-expression aspects. Although the intensity of the subjective
dimension varies, the personal and the political always seem to be present in her
films.
Keywords: Documentary; Helena Solberg; Female authorship; Subjectivity.
A Entrevista
Sobre sexo:
Sobre emancipação:
Um melancólico depoimento:
Figura 1: A Entrevista.
REFERÊNCIAS
Roberta V eiga
Professora adjunta do Departamento de Comunicação e do Programa de Pós-
Graduação em Comunicação Social da Universidade Federal de Minas Gerais.
****
O filho
O cineasta
O pai
D. El autorretrato videográfico
Una de las más recientes exploraciones dentro de las vastas
formas de autorrepresentación del sujeto a través del audiovisual,
lo constituyen los autorretratos. Fórmula – como sus antecesoras
– eminentemente híbrida, configura una bisagra entre el cine de
no ficción, el videoarte y la performance. En las artes visuales,
el autorretrato ha transitado históricamente desde del campo de
la pintura a la fotografía, luego al del cine y más tarde al vídeo,
REFERÊNCIAS
Carlos Adriano
Doutor em Estudo dos Meios e da Produção Mediática pela USP, Pós-Doutor em
Comunicação e Semiótica pela PUC-SP e em Meios e Processos Audiovisuais pela USP.
Cineasta e realizador de filmes-poemas de reapropriação de arquivo (found footage).
REFERÊNCIAS
ADRIANO, Carlos. O mistério de Varda. Folha de S. Paulo, Mais!, 22 set. 1996, p. 12.
_______________. A catadora de temporalidades. In BORGES, Cristian et al
(orgs.). Retrospectiva Agnès Varda: o movimento perpétuo do olhar. São Paulo:
CCBB, 2006.
BARROS, Rubem Rabello Maciel de. Poéticas de fragmentos: história, música
popular e cinema de arquivo. São Paulo: Alameda, 2014.
DERRIDA, Jacques. Mal de arquivo: uma impressão freudiana. Rio de Janeiro:
Relume Dumará, 2001.
ESTÈVE, Michel. Agnès Varda. Paris: Lettres modernes Minard, 1991.
FIANT, Antony; HAMERY, Roxane; THOUVENEL, Eric. Agnès Varda: le cinéma et
au-delà. Rennes: Presses Universitaires de Rennes, 1995.
LEITE NETO, Alcino (org.). Dossiê Bernardo Vorobow. Trópico, São Paulo, 9 set.
2009.
VARDA, Agnès. Varda par Agnès. Paris: Cahiers du Cinéma, 1994.
Felipe Polydoro
Professor-adjunto da Faculdade de Comunicação da Universidade de Brasília
(FAC/UnB)
Fig. 3: O vídeo permanece nesta posição por mais de sete minutos: apenas ouvimos o que acontece
Fig. 4: No vídeo estadunidense, o plano enquadra tanto o policial que atira quanto o suspeito que corre
Imagem e testemunho
Fig. 5: Cinegrafista amadora flagra policiais a forjar tiroteio em favela do Rio de Janeiro
Considerações finais
Abstract: Leisure-Life is an emic term that first appears in the movie Madame Satã
(Karim Aïnouz, 2002), and, later, reappears in the partnership between Aïnouz and
the filmmaker Marcelo Gomes in the movie I Travel Because I Have to, I Come Back
Because I Love You (2009). We will also construct a dialogue between those two
movies and others, such as Love for Sale and Futuro Beach (both Karim Aïnouz, 2006
and 2014) and Tattoo (Hilton Lacerda, 2013). The objective of this research is to take
part on the debate of subjects that are importat to the critical thought of cinema and
the contemporary world, such as the relationships between art and life, the new
ways of belonging and association, and the ideas of life projects and happiness.
What is a leisure-life character? How does this idea and the speech of a character are
connected to happinnes future and life projects in the contemporary world?
Keywords: Leisure-life. brazilian cinema. Gender; sexuality.
Tia Maria
Primeira cena:
No dia 11 de setembro de 2012, Edmeire Celestino Silva, à
época com 29 anos, tentou adentrar o Palácio do Planalto para
declarar seu amor à presidenta Dilma Rousseff. Ao ser impedida
pelos guardas presidenciais, ela afirmou: “Sou marido da Dilma
Vana Rousseff. Sou esposo dela”, disse. “Você quer casar comigo,
meu amor?”. “Eu queria sequestrar ela, ela é meu coração” (Fig. 2).
Fig 5. Ayrton, Donato e Konrad numa praia “sem água” na Alemanha. Praia do Futuro.
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