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A Formação Do Cânon

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SÉRGIO VIÑOLO SFAIR

A FORMAÇÃO DO CÂNON

GUARUJÁ - 1998
2

ÍNDICE

I. CÂNON E CANONICIDADE............................................................................................................... 04

1) Definições e Significado da Palavra

2) O porquê da formação do cânon

3) Fatores determinantes da canonicidade de um livro

3.1) Fonte geratriz da canonicidade

3.2) Concepções erradas no reconhecimento da canonicidade

3.3) Princípios do reconhecimento da canonicidade

II. A FORMAÇÃO DO CÂNON DO ANTIGO TESTAMENTO........................................................... 09

1) O Cânon nos Diversos Períodos da História Hebréia:

1.1) Período do Antigo Testamento:

1.2) Período do Novo Testamento:

1.3) Período posterior ao Novo Testamento:

1.4) Aparentes provas contrárias ao cânon desde 400 a.C:

1.4.1) Sínodo de Jâmnia:

1.4.2) Septuaginta:

2) O Cânon do Antigo Testamento na Igreja Cristã:

2.1) De Jesus à Agostinho:

2.2) De Agostinho à Reforma e o Concílio de Trento:

2.3) Reforma e o Concílio de Trento

2.4) Igreja Oriental à época da Reforma:

III. A FORMAÇÃO DO CÂNON DO NOVO TESTAMENTO............................................................. 16

1) Motivações para a definição do cânon do Novo Testamento:

1.1) Dificuldade em reconhecer um escrito como parte integrante da revelação de Deus

1.2) Os apóstolos e os primeiros pais apostólicos estavam saindo de cena.

1.3) As perseguições.
3

1.4) O surgimento de cânones heréticos:

2) Critérios para a definição do cânon do Novo Testamento:

2.1) Critérios utilizados desde o século II:

2.2) Critérios extras utilizados a partir do IV século:

3) Principais momentos históricos da definição do cânon do Novo Testamento:

3.1) Desenvolvimento do cânon:

3.2) Definição do cânon:

4) Posição atual da Igreja quanto ao Cânon do Novo Testamento:

IV.BIBLIOGRAFIA................................................................................................................................. 24

ANEXO I………………………………………………………………………………………………… 25
4

CAPÍTULO I

CÂNON E CANONICIDADE

1) Definições e Significado da Palavra

Quando um livro é referido como canônico, esta sendo feito através desta expressão o

reconhecimento deste livro como inspirado por Deus, sendo assim parte integrante da completa

revelação de Deus ao homem e conseqüentemente possuidor de plena autoridade divina, em todos os

seus aspectos, inclusive sob a vida do homem.

O "Novo Dicionário da Bíblia" relaciona a idéia de "cânon" como sendo "... uma coleção

encerrada de escritos inspirados pelo Espírito de autoridade normativa, e considerada como a regra

para nossa fé e vida" (Ridderbos In Douglas, 1991: I, p. 247).

Bancroft (1992) em sua definição da canonicidade das Escrituras, compartilha com

Ridderbos a ênfase na autoridade divina sobre a vida do homem, inerente aos livros canônicos:

Por canonicidade das Escrituras queremos dizer que, de acordo com padrões determinados
e fixos, os livros incluídos nelas são considerados partes integrantes de uma revelação
completa e divina, a qual, portanto, é autorizada e obrigatória em relação à fé e à prática (p.
1).

Quanto a origem da palavra cânon, Bancroft (1992) declara que "a palavra 'cânon' é de

origem cristã e derivada do vocábulo grego 'kanon', que por sua vez provavelmente veio emprestado

do hebraico 'Kaneh'..."(p.1)

A provável palavra primitiva "kaneh", provinda do hebraico, é uma "... palavra do Antigo

Testamento que significa 'vara ou cana de medir' (Ez 40:3)" (Geisler & Nix, 1997, p. 61).

Posteriormente, quando a palavra hebraica "kaneh" gerou no grego a palavra "kanon", esta

além de indicar um padrão de medida, como ocorria no hebraico, obteve também o sentido,

metafórico a princípio, de norma ou regra:

O vocábulo grego kanõn (...) originalmente significava instrumento de medir, para mais tarde
ser empregado no sentido metafórico de "regra de ação" semelhantemente (Ridderbos In
Douglas, 1991: I, p. 246).

Porém, esta idéia de regra ou norma originalmente possuía um sentido abrangente, sem

nenhuma relação direta com um padrão divino:

Mesmo em época anterior ao cristianismo, essa palavra era usada de modo mais amplo,
com o sentido de padrão ou norma, além de cana ou unidade de medida (Geisler & Nix,
1997, p. 61).
5

Paulo estreita o relacionamento do termo com a idéia de "regra de fé e de prática", ao usá-lo

no Novo Testamento:

Ele ocorre no Novo Testamento, por exemplo: "E a todos quantos andarem de conformidade
com esta regra [kanõn], paz e misericórdia" (Gl 6:16), isto é, a todos quantos vivem
segundo o evangelho apostólico (Milne, 1991, p. 40).

A palavra cânon passou por um longo processo no seio da Igreja até assumir o sentido que

possui hoje:

A princípio denotava o credo formulado, especialmente o símbolo do batismo, ou a doutrina


da Igreja em geral. Era igualmente usado para indicar as regulações eclesiásticas de
natureza variegada, como do mesmo modo significava simplesmente "lista" ou "série". Não
foi senão nos meados do quarto século de nossa era que o termo parece ter sido aplicado à
Bíblia (Ridderbos In Douglas, 1991: I, p. 246).

Por volta da época de Atanásio (c. 350), o conceito de cânon bíblico ou de Escrituras
normativas já estava em desenvolvimento. A palavra cânon aplicava-se à Bíblia tanto no
sentido ativo como no passivo. No sentido ativo, a Bíblia é o cânon pelo qual tudo o mais
deve ser julgado. No sentido passivo, cânon significava a regra ou padrão pelo qual um
escrito deveria ser julgado inspirado ou dotado de autoridade (Geisler & Nix, 1997, p. 61).

Um último, porém importante detalhe na evolução da palavra cânon até o sentido completo

que tem hoje, é citado pelo "O Novo Dicionário da Bíblia" ao tratar da transferência desta palavra do

grego para o latim:

No uso grego, a palavra "cânon" parece ter primeiramente denotado apenas a lista de
escritos sagrados, mas, no latim, também se tornou nome para as próprias Escrituras, o que
indicava que as Escrituras são a regra de ação investida com autoridade divina (Ridderbos
In Douglas, 1991: I, p. 246-247).

2) O porquê da formação do cânon

Como foi apresentado, quando se compreende o conceito de "inspiração", e que os livros

inspirados são nossa única regra de fé e prática, automaticamente salta aos olhos a importância de

identificar com precisão que livros são estes:

Usado de modo geral quanto à Bíblia, o cânon refere-se aos seus limites literários e trata de
questões do tipo: "Por que consideramos apenas esses livros como sendo 'inspirados'?" e
"Por que todos esses livros são incluídos na 'Escritura inspirada'?" (...) A própria idéia de
Escritura nos compromete em princípio com a noção de um cânon, um conjunto autoritário
de escritos com limites literários precisos... (Milne, 1991, p. 40-41).

Nossa compreensão sobre a inspiração requer, portanto, que não somente fixemos o texto
das Escrituras e analisemos a história interna dos livros bíblicos, mas também que
tracemos, o mais exatamente possível, o desenvolvimento de um conceito de cânon e do
próprio Cânon (Birdsall In Douglas, 1991: I, p. 255-256).

Desta forma, sabendo-se com clareza quais os verdadeiros livros inspirados, evita-se o

desenvolvimento de falsas doutrinas baseadas em livros supostamente canônicos, ou ainda, a

exclusão de livros realmente inspirados que expressem verdades contrárias a falsas doutrinas

defendidas por seus exclusores, como foi o caso do herege Márcion:

Heréticos, como Márcion estavam formando seu próprio cânon das Escrituras e estavam
levando o povo ao erro (...) Como os apóstolos estavam saindo de cena, havia necessidade
6

de alguns registros que seriam reconhecidos como autorizados e dignos de uso na


adoração (Cairns, 1990, p. 96)

Ainda um outro motivo prático surgiu por vezes na história de Israel e da Igreja: As

perseguições, onde manuscritos bíblicos eram procurados e destruídos. Nestes períodos, muitas e

muitas vezes hebreus e cristãos piedosos foram torturados e se dispuseram a entregar suas vidas

para preservar manuscritos das Escrituras. Assim, se tornava indispensável saber quais eram os livros

realmente inspirados por Deus, e assim merecedores de tamanho sacrifício:

Nós temos dado provas cabais de nossa reverência pelas Escrituras. Porque, embora já se
tenha passado tanto tempo, ninguém se aventurou a acrescentar ou tirar ou ainda sequer
alterar uma sílaba; e isto é um instinto em todo judeu, desde o dia do nascimento, estimá-
las como decretos de Deus, manter-se fiel a elas, e, se necessário for, morrer por elas com
alegria.
Muitas vezes, mesmo agora, o espetáculo de prisioneiros sofrendo torturas e morte de
todas as formas tem sido testemunhado nas arenas, em vez de proferir uma só palavra
contra as Leis e os documentos afins (Josephus Apud McDowell & Stewart, 1992, p.42).

Da mesma forma como o historiador Josephus, judeu do século I A.D., relata sobre

diversos períodos da história em que judeus deram suas vidas por manuscritos das Escrituras,

Cairns (1990) relata que este também foi um motivador para a clara definição do cânon do Novo

Testamento:

Os cristãos perseguidos não estavam dispostos a arriscar suas vidas por um livro se não
estivessem certos de que ele integrava o cânon das Escrituras (p. 96).

3) Fatores determinantes da canonicidade de um livro

3.1) Fonte geratriz da canonicidade

Um ponto importante a ser esclarecido logo de início, é o fato de que a autoridade dos

livros canônicos não se originou com sua escolha como integrante do cânon. Não foi a sua

seleção que gerou nele a autoridade divina. Pelo contrário, ele foi selecionado por se verificar

nele esta autoridade:

É importante reconhecer que um livro não se torna inspirado só porque foi incluído no
cânon. A inclusão do cânon foi simplesmente o reconhecimento da autoridade que o livro já
possuía (Little, 1991, p. 16-17).

A Bíblia não deriva sua autoridade de declarações eclesiásticas ou de qualquer outra


autoridade humana (Ridderbos In Douglas, 1991: I, p. 247).

Prova disto está no fato de que antes mesmo de existir o termo cânon, judeus e cristãos já

reconheciam a autoridade destes livros e a eles se submetiam prontamente:

A existência de um cânon ou coleção de escritos autorizados antecede o uso do termo


cânon. A comunidade judaica coligiu e preservou as Escrituras Sagradas desde o tempo
de Moisés (Geisler & Nix, 1997, p. 62).
7

... os vários concílios que se pronunciaram sobre o problema do cânon do Novo


Testamento apenas os tornavam públicos, porque (...) tinham sido aceitos amplamente
pela consciência da Igreja (Cairns, 1990, p. 95-96).

Deve ser compreendido, entretanto, que a canonização de um livro não significa que a
nação judaica, por um lado, ou a Igreja Cristã, por outro, tenha dado a esse livro a
autoridade; antes, significa que sua autoridade, já tendo sido estabelecida em outras bases
suficientes, foi conseqüentemente reconhecido como de fato pertencente ao Cânon e
assim declarado (Gray Apub Bancroft, 1992, p. 1).

Assim, sabendo-se que incluir um livro em um determinado cânon não confere autoridade

divina ao mesmo, resta responder a questão: "O que torna um livro canônico?"

Pela própria definição de Cânon apresentada no "item 1" deste capítulo pode-se facilmente

responder: Nada nem nenhum homem é capaz de tornar um livro canônico. Um livro não se torna

canônico, ele já "nasce" canônico. Se este livro foi escrito sob a inspiração divina, ele é parte

integrante da revelação de Deus ao homem, sendo assim canônico. Um livro escrito sem a inspiração

de Deus não é e jamais será um livro canônico, mesmo que homens o incluam em seus cânones:

O processo mediante o qual Deus nos concede sua revelação chama-se inspiração. É a
inspiração de Deus num livro que determina sua canonicidade. Deus dá autoridade divina a
um livro, e os homens de Deus o acatam. Deus revela, e seu povo reconhece o que o
Senhor revelou. A canonicidade é determinada por Deus e descoberta pelos homens de
Deus (Geisler & Nix, 1997, p. 65).

Desta forma, fica claro que a única fonte geratriz da autoridade divina de um livro (sua

canonicidade) está em Deus que o inspirou:

Só Deus pode conceder a um livro autoridade absoluta e, por isso mesmo, canonicidade
divina. (...) Só a inspiração divina determina a autoridade de um livro, i.e., se ele é
canônico, de natureza normativa (Geisler & Nix, 1997, p. 65).

3.2) Concepções erradas no reconhecimento da canonicidade

Geisler & Nix (1997) citam quatro conceitos errôneos utilizados muitas vezes no decorrer da

história na construção de "Cânones" divergentes do verdadeiro "Cânon divino" (p. 63-65).

O primeiro conceito errôneo citado é "A concepção de que a idade determina a

canonicidade" (p. 64). Contra este conceito eles apresentam dois argumentos: a) Livros velhíssimos

citados inclusive nas Escrituras (Js 10:13 e Nm 21:14, por exemplo) nunca foram tidos por canônicos;

b) Evidências bíblicas que demonstram que livros foram imediatamente reconhecidos como canônicos

e não após envelhecerem (Dt 31:24-26; Dn 9:2; II Pe 3:16).

O segundo conceito errôneo citado é "A concepção de que a língua hebraica determina a

canonicidade" (p. 64), o que eles rebatem pelo fato de que alguns textos das Escrituras (como em

Daniel ou em Esdras) foram escritos em aramaico e foram aceitos no cânon.

O terceiro conceito errôneo citado é "A concepção de que a concordância do texto com a

Tora determina a sua canonicidade" (p. 64). Geisler & Nix (1997), após demonstrarem que um livro
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discordante com a Torá, ou com qualquer outro livro canônico, obviamente não poderia ser canônico,

mostram que diversos livros concordam com a Torá, porém nunca se cogitou sua canonicidade.

O quarto e último conceito errôneo citado por Geisler & Nix (1997) é "A concepção de que o

valor religioso determina a canonicidade" (p.65), o que é considerado por estes autores uma confusão

entre causa e efeito: "Não é o valor religioso que determina a canonicidade de um texto; é sua

canonicidade que determina seu valor religioso" (p. 65).

3.3) Princípios do reconhecimento da canonicidade

Visto alguns conceitos errôneos utilizados por alguns como supostos indicadores de

canonicidade, resta apresentar aqui características comuns aos livros canônicos, ou melhor, critérios

para se observar a canonicidade de um livro. Estas listas de características no entanto não

correspondem exatamente ao critério seletivo histórico utilizado para se determinar o nosso atual

cânon, o que será visto mais a frente:

Segundo Geisler & Nix (1997), há cinco critérios que devem ser observados durante o

processo de análise para o reconhecimento da canonicidade:

1) O livro é autorizado - afirma vir da parte de Deus? 2) É profético - foi escrito por um servo
de Deus? 3) É digno de confiança - fala a verdade a cerca de Deus, do homem etc.? 4) É
dinâmico - possui o poder de Deus que transforma vidas? 5) É aceito pelo povo de Deus
para o qual foi originalmente escrito - é reconhecido como proveniente de Deus? (p. 66).

Outro critério importante baseia-se nos dados históricos deste livro. Littler (1991), baseando-

se neste critério, afirma que nesta análise é necessário ter em mente três perguntas:

1) Foi mencionado pelos pais da Igreja Primitiva na literatura cristã dos primeiros séculos de
nossa era? 2) Que atitude esses escritores primitivos tinham para com a inspiração do livro?
3) Eles o consideravam como parte de um cânon, ou lista de livros reconhecidamente
inspirados? (p. 17).

Uma grande variedade de listas poderiam ser levantadas verificando-se diferentes aspectos

característicos de um livro canônico. Como foi dito, as listas de critérios utilizadas no estabelecimento

do cânon do "Velho" e do "Novo Testamento" não eram iguais a estas expostas aqui. Mesmo por que

não foram simples "moldes" humanos que levaram homens a fixar as listas do nosso "Novo e Velho

Testamento", mas Deus, tendo todo o interesse no correto reconhecimento de Sua Palavra, é quem

guiou estes homens, no que concorda Bruce (1990):

A posição cristã histórica é que o Espirito Santo, Que (sic) presidiu à formação de cada um
dos livros, também lhes dirigiu a seleção e incorporação, continuando assim a dar
cumprimento à promessa do Senhor de quê Ele guiaria os discípulos a tôda (sic) verdade
(p. 29).
9

CAPÍTULO II

A FORMAÇÃO DO CÂNON DO ANTIGO TESTAMENTO

Como visto, a medida em que os livros do Antigo Testamento eram escritos, estes eram

reconhecidos e incorporados pelos judeus aos escritos sagrados:

Cremos que, à proporção que iam sendo escritos, a começar de Moisés, eram logo
reconhecidos como inspirados por Deus e colocados no Tabernáculo ou no Templo,
juntando-se ao grupo crescente dos Escritos Sagrados. Tiravam-se cópias quando se fazia
necessário. (...) Das cópias do Templo outras foram feitas para uso das sinagogas (Halley,
1994, p. 356-357).

O povo de Deus entesourava a Palavra de Deus. Os escritos de Moisés eram preservados


na arca (Dt 31.26). As palavras de Samuel foram colocadas "num livro, e o pôs perante o
Senhor" (1 Sm 10.25). A lei de Moisés foi preservada no templo nos dias de Josias (2 Rs
23.24). Daniel tinha uma coleção dos "livros" nos quais se encontravam "a lei de Moisés" e
"os profetas" (Dn 9.2, 6, 13). Esdras possuía cópias da lei de Moisés e dos profetas (Ne
9.14, 26-30). Os crentes do Novo Testamento possuíam todas as "Escrituras" do Antigo
Testamento (2 Tm 3.16), tanto a lei como os profetas (Mt 5.17) (Geisler & Nix, 1997, p. 74).

1) O Cânon nos Diversos Períodos da História Hebréia:

Assim, não houve a necessidade de sínodos, debates ou profundas análises para se chegar

a atual coleção que forma o Antigo Testamento. Segundo Milne (1991), "Não parece ter havido grande

disputa entre os judeus em período algum com respeito ao conteúdo do cânon" (p. 41).

1.1) Período do Antigo Testamento:

No período tratado pelo A.T., não esta registrado nenhuma discussão ou mesmo um registro

formal de uma lista de livros canônicos:

No Antigo Testamento não há registro da aceitação formal pelo povo de nenhum dos livros
pertencentes à segunda e terceira divisões do cânon. Não obstante, esses livros eram
evidentemente considerados canônicos. (...) A explicação óbvia é que os livros eram
reconhecidos como canônicos desde o princípio (Raven Apud Bancroft, 1992, p. 2-3)

1.2) Período do Novo Testamento:

No período tratado pelos evangelhos, Jesus pronuncia-se sobre ou é confrontado pelos

principais temas polêmicos da época. Jesus entra na questão do divórcio (Mt 19:3-12), tema
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profundamente polemizado pelas escolas farisaicas de "Hilel, o velho" e de "Shamai". Jesus é

confrontado pela questão do pagamento ou não pagamento de tributo a Roma (Mt 22:15-22). Jesus

pronuncia-se sobre a questão do verdadeiro templo: Judeu ou samaritano (Jo 4:19-22). Por todo o

evangelho Jesus se pronuncia contra o desvio do povo Judeu das escrituras para a tradição (ex.: Mt

15:3), desvio este que após a formação dos Talmudes, entre os séculos IV e V de nossa era, tirou

definitivamente as escrituras do foco central do judaísmo. Jesus ainda se pronuncia a cerca de vários

e vários temas polêmicos de sua época, mas em nenhum ponto dos evangelhos há qualquer

palavra Sua refutando a canonicidade de qualquer livro, o que mostra que o povo judeu tinha em

sua época uma clara visão de quais livros eram inspirados por Deus, e quais eram apenas livros

humanos, mesmo que tratassem das "coisas de Deus", como era o caso dos pseudepígrafos:

Os escritores do Novo Testamento referem-se aos apócrifos, mas nunca os citam como
Sagradas Escrituras ou fazem a mínima insinuação de que qualquer dos livros seja
inspirado (...) Jesus e seus discípulos os ignoravam totalmente (McDowell & Stewart, 1992,
p. 53).

O Novo Testamento jamais cita um livro apócrifo indicando-o como inspirado. As alusões a
tais livros não lhes emprestam autoridade, assim como as alusões neotestamentárias a
poetas pagãos não lhes conferem inspiração divina (Geisler & Nix, 1997, p. 94).

1.3) Período posterior ao Novo Testamento:

Josefo, por volta de 95 A.D. registra que:

Temos somente 22 livros, que contém a história de todo o tempo, livros que cremos serem
divinos. Destes, 5 pertencem a Moisés, os quais contém suas leis e as tradições da origem
da humanidade até ao tempo da morte dele. Da morte de Moisés até ao reinado de
Artaxerxes, os profetas que sucederam aquele escreveram a história dos fatos ocorridos em
sua própria época, em 13 livros. Os 4 livros restantes compreendem hinos a Deus e
preceitos para a conduta humana. Dos dias de Artaxerxes à nossa época, cada evento tem
sido registrado; mas estes registros recentes não têm sido considerados dignos de crédito
igual aos daqueles que os precederam, por causa da falta de exata sucessão de profetas.
Existe prova prática do espírito com que tratamos nossas Escrituras; porque, apesar de já
haver decorrido tão grande intervalo de tempo, nenhuma alma se tem aventurado a
acrescentar ou a retirar, ou a alterar nelas uma só sílaba; e é do instinto de todo judeu,
desde o dia em que nasce, considerar estas Escrituras como sendo ensino de Deus,
submeter-se a elas e, se necessário, prazerosamente dar por elas a vida (Josefo Apud
Halley, 1993, p. 357).

Halley (1993) explica conclusivamente que os 22 livros citados por Josefo são exatamente

atuais 39 livros do A.T. (p. 356-357).

Também nos demais períodos sempre prevaleceu entre os judeus que somente os livros

escritos até Artaxerxes (IV a.C.), que são os mesmos 39 livros (22 ou 24 pela contagem judaica,

variando quando Rute é contado como apêndice de Juízes e Lamentações como apêndice de

Jeremias), haviam sido divinamente inspirados. Prova disto é que o Talmude, escrito desde 200 A.D.

até os séculos IV ou V, registra as seguintes palavras:

Até esta altura [século IV a.C.] os profetas profetizavam mediante o Espírito Santo; a partir
desta época inclinai os vossos ouvidos e ouvi as palavras dos sábios (Seder Olam Rabba
Apud Geisler & Nix, 1997, p. 63).
11

Assim, o Talmude deixa de fora os pseudepígrafos, dentre eles os apócrifos, surgidos entre

300 a.C e 200 d.C..

Desta forma, percebe-se que não houve a necessidade de concílios para a formação do

cânon do A.T., pois o cânon atual foi sempre reconhecido pelo povo hebreu, sendo que apenas cinco

livros (antilegomena) foram questionados por alguns rabis, porém estes não prevaleceram em tempo

algum:

Nossa investigação demonstra que, no que diz respeito às evidências, o cânon do Antigo
Testamento se completou por volta de 400 a.C. (Geisler & Nix, 1997, p.83).

1.4) Aparentes provas contrárias ao cânon desde 400 a.C:

Porém, tendo isto por verdade, então o que foi o sínodo de Jâmnia e como se explica o fato

da Septuaginta possuir livros apócrifos.

1.4.1) Sínodo de Jâmnia:

Quanto ao sínodo de Jâmnia, um estudo mais profundo demonstra que não houve um

sínodo, mas um debate a cerca de alguns livros do Antigo Testamento, da mesma forma como feito

em outros períodos e locais, antes e depois do debate de Jâmnia. Jâmnia teve seu destaque pelo

detalhamento e bom embasamento que deu a seleção de livros já estabelecidos desde 400 a.C. e que

agora na diáspora precisava ser protegida de forma sólida:

Já foi feita mais de uma vez a sugestão que o sínodo de Jabne ou Jâmnia, que
admitidamente teve lugar cerca de 90 D.C., encerrou o Cânon do Antigo Testamento e fixou
os limites do Cânon. Mas falar sobre o `sínodo de Jâmnia`, entretanto, por si só já
demonstra fraqueza (...). O que é certo, porém, é que na escola de Jâmnia, cerca de 70-100
D.C., foram levadas a efeito certas discussões concernentes a alguns dos livros do Antigo
Testamento; mas discussões similares foram igualmente feitas tanto antes como depois
desse período. (...) Por conseguinte, as discussões (...) partiram do Cânon então existente.
(...) Mas o Cânon do Antigo Testamento não é criação dos judeus dos primeiros séculos da
era cristã. Os judeus nada criaram de novo, nem tencionavam criar qualquer novidade. Tão
somente estabeleceram com detalhe aquilo que já havia sido aceito em substância
(Ridderbos In Douglas, 1991: I, p. 251-252).

Para os judeus, não houve um concílio autorizado. Realizou-se apenas uma reunião de
especialistas. Assim, não houve um oficial, nem corpo de oficiais dotados de autoridade, a
fim de reconhecer o cânon. Por isso, não houve canonização de livros em Jâmnia (Geisler &
Nix, 1997, p. 82).

1.4.2) Septuaginta:

Muitos autores supõem que os judeus palestinos possuíam um cânon mais ortodoxo

enquanto que os de Alexandria incluíam em seu cânon alguns apócrifos ou pseudepígrafos:

...permanece como fenômeno curioso o fato que, pelo menos para os judeus da Palestina,
nada existia capaz de indicar que eles chegaram a considerar seriamente a possibilidade de
incluírem no Cânon qualquer dos livros que incluímos entre os apócrifos ou pseudepígrafos
(Ridderbos In Douglas, 1991: I, p. 252).
12

O principal argumento desta idéia em relação aos judeus de Alexandria esta baseada na

Septuaginta, tradução das escrituras para o grego, feita por 72 sábios (daí o nome Septuaginta, ou

"Dos Setenta") por volta de 200 a.C.. Isto ocorre pelo fato da Septuaginta incluir alguns destes livros

não canônicos. Porém, um estudo mais minucioso mostra que estes apócrifos vieram a ser inclusos

alguns séculos depois, provavelmente em círculos cristãos, menos sujeitos à tradição judaica e a

argumentação surgida em debates, como os ocorridos em Jâmnia:

A Palestina é que era o lar do cânon judaico, jamais a Alexandria, no Egito. O grande centro
grego do saber, no Egito, não tinha autoridade para saber com precisão que livros
pertenciam ao Antigo Testamento judaico. Alexandria era o lugar da tradução, não da
canonização. O fato de a Septuaginta conter os apócrifos apenas comprova que os judeus
alexandrinos traduziram os demais livros religiosos judaicos do período intertestamentário
ao lado dos livros canônicos. Filo, o judeu alexandrino, rejeitou com toda a clareza a
canonicidade dos apócrifos, no tempo de Cristo, assim como o judaísmo oficial em outros
lugares e épocas. De fato, as cópias existentes da LXX datam do século IV d.C. e não
comprovam que livros haviam sido incluídos na LXX de épocas anteriores. (...) Jesus e os
escritores do Novo Testamento quase sempre fizeram citações da LXX, mas jamais
mencionaram um livro sequer dentre os apócrifos. No máximo, a presença dos apócrifos
nas Bíblias cristãs do século IV mostra que tais livros eram aceitos até certo ponto por
alguns cristãos, naquela época (Geisler & Nix, 1997, p. 94-95).

A Septuaginta contém mais livros que os nossos trinta e nove. Não obstante, devemos ter
cuidado para não tirar conclusões precipitadas. A história da origem e do desenvolvimento
da Septuaginta em muitos respeitos é desconhecida para nós. Os manuscritos completos
mais antigos da Septuaginta que possuímos se originam de círculos cristãos do quarto
século de nossa era. Esses contém as `adições à Septuaginta`. Mas não é permissível tirar
desse fato isolado nossas conclusões acerca dos pontos de vista sustentados pelos judeus
helenistas da primeira parte de nossa era (...). Em adição, devemos levar em consideração
o fato que nem todos os manuscritos da Septuaginta contêm os mesmos livros; pelo
contrário, revelam considerável divergência (Ridderbos In Douglas, 1991: I, p. 253).

2) O Cânon do Antigo Testamento na Igreja Cristã:

A Igreja cristã, desde Jesus e seus discípulos, seguiu o cânon judaico aceitando como

canônicos os atuais 39 livros do Antigo Testamento preservados e reconhecidos pelos judeus (que os

agrupavam em 24 ou 22 livros).

Estes 39 livros, como regra geral, foram aceitos pela igreja em todos os tempos. Em alguns

períodos, o que se viu foi o acréscimo de livros não canônicos, contestado severamente pelos mais

ortodoxos.

2.1) De Jesus à Agostinho:

Jesus e os escritores do Novo Testamento quase sempre fizeram citações da LXX, mas
jamais mencionaram um livro sequer dentre os apócrifos. No máximo, a presença dos
apócrifos nas Bíblias cristãs do século IV mostra que tais livros eram aceitos até certo ponto
por alguns cristãos, naquela época (...) Muitos dos grandes pais da igreja em seu começo,
dos quais Melito, Orígenes, Cirilo de Jerusalém e Atanásio, depuseram contra os apócrifos.
Nenhum dos primeiros pais de envergadura da igreja, anteriores a Agostinho, aceitou todos
os livros apócrifos canonizados em Trento (Geisler & Nix, 1997, p. 95).
13

... ao prepararem listas de livros canônicos, os cristãos se limitavam, nos seus traços
principais, aos livros do cânon judaico, conforme vemos na lista de Sardes (c. de 160 D.C.),
e nas de Orígenes, Cirilo de Jerusalém, e outros... (Ridderbos In Douglas, 1991: I, p. 253).

Porém, os cristãos de língua grega, menos expostos aos limites canônicos e a

argumentação de debates como os ocorridos em Jâmnia, "entraram em contato com muitos livros de

origem judaica, pelo que não é surpreendente descobrir que não definiram os limites do Cânon em

suas minúcias, desde o princípio (Ridderbos In Douglas, 1991: I, p. 253).

Isto fez com que surgisse a tendência no meio cristão de conferir autoridade a livros não

canônicos, o que se agravou pelo fato das novas versões da Septuaginta, largamente utilizada por

estes cristãos, incorporarem junto aos livros canônicos as "adições a Septuaginta":

... a Igreja usou a Septuaginta (e as traduções baseadas na mesma), que incluía mais do
que os escritos do cânon judaico. Quando a Septuaginta foi publicada em forma de livro,
os escritos que formavam as `adições da Septuaginta` entraram na mesma, espalhadas
entre os escritos que compunham o cânon judaico. Isso não prova conclusivamente que a
mesma autoridade fosse atribuída a cada um daqueles livros, mas certamente tendia
nessa direção. (Ridderbos In Douglas, 1991: I, p. 253).

2.2) De Agostinho à Reforma e o Concílio de Trento:

Assim é que os livros formadores das `adições da Septuaginta` vieram a adquirir alta
autoridade especialmente na Igreja Ocidental, que naturalmente gozava de menor contato
com a Palestina do que a Igreja Oriental (Ridderbos In Douglas, 1991: I, p. 253)

Esta autoridade imerecida realmente teve impulso graças a Agostinho. Este incluía-se em

um grupo de líderes cristãos que possuía a problemática crença de que "a LXX era verdadeiramente a

Palavra inspirada, inerrante, da parte de Deus, em vez de mera tradução não-inspirada baseada em

originais hebraicos" (Geisler & Nix, 1997, p. 212), e por LXX estes consideravam as 'adições da

Septuaginta' como parte integrante desta.

Agostinho influiu fortemente sobre dois concílios de caráter local do norte da África que

apesar de veementes protestos, principalmente da parte de Jerônimo, deu impulso ao reconhecimento

dos apócrifos na Igreja Ocidental:

..., os Concílios de Hipo e de Cartago foram pequenos concílios locais, influenciados por
Agostinho e pela tradição da Septuaginta grega. Nenhum estudioso hebreu qualificado
esteve presente em nenhum desses dois concílios. O especialista hebreu mais qualificado
da época, Jerônimo, argumentou fortemente contra Agostinho, ao rejeitar a canonicidade
dos apócrifos. Jerônimo chegou a recusar-se a traduzir os apócrifos para o latim, ou mesmo
incluí-los em suas versões em latim vulgar (Vulgata latina). Só depois da morte de Jerônimo
e praticamente por cima de seu cadáver, é que os livros apócrifos foram incorporados à
Vulgata latina... (Geisler & Nix, 1997, p. 95).

O livro grego da Sabedoria faz parte dos livros deuterocanônicos. (...) não obstante certas
hesitações e oposições, em particular a de São Jerônimo, foi reconhecido como inspirado
[pela Igreja Romanista] da mesma forma que os livros do cânon hebraico (A BÍBLIA DE
JERUSALÉM, 1987, p. 1200).
14

O texto grego que está na Vulgata [relativo aos livros de Macabeus] não foi traduzido por
São Jerônimo - para quem os livros dos Macabeus não eram canônicos - e não representa
senão uma recensão secundária (A BÍBLIA DE JERUSALÉM, 1987, p. 787).

Nos sínodos da Igreja Norte Africana, realizados em Hipona (393 D.C.) e em Cartago (397
D.C.), a despeito das vozes de Rufino, Jerônimo, e outros, 'as adições da Septuaginta'
foram alinhadas entre os livros canônicos. Nesses sínodos Agostinho exerceu grande
influência. (...) Nos séculos que se seguiram 'as adições da Septuaginta' tornaram-se em
regra geral aceitas como canônicas na Igreja Ocidental, embora a opinião contrária tenha
tido seus defensores freqüentes (Ridderbos In Douglas, 1991: I, p. 253-254).

2.3) Reforma e o Concílio de Trento

Com a reforma, a Igreja Reformada retornou ao cânon judaico. Esta questão surgiu nos

primeiros anos da reforma, em debates precessores do cisma, debates estes ocorridos entre Lutero e

papistas:

Em debates com Lutero, os católicos romanos haviam citado Macabeus, em apoio à oração
pelos mortos ( v. 2Macabeus 12.45,46). Lutero e os protestantes que o seguiam desafiaram
a canonicidade desse livro, citando o Novo Testamento, os primeiros pais da igreja e os
mestres judeus, em apoio (Geisler & Nix, 1997, p. 95,96).

A resposta da Igreja Romanista à reforma surgiu no Concílio de Trento, um concílio

convocado exclusivamente para traçar as estratégias da contra-reforma, dentre elas as relativas a

fixação do cânon lato romanista:

O concílio de Trento reagiu a Lutero canonizando os livros apócrifos. A ação do Concílio


não foi apenas patentemente polêmica, foi também prejudicial, visto que nem todos os
catorze (quinze) livros apócrifos [contidos nas edições da Vulgata anteriores ao Concílio de
Trento] foram aceitos pelo Concílio. Primeiro e Segundo Esdras (...) e a Oração de
Manassés foram rejeitados. A rejeição de 2 Esdras é particularmente suspeita, porque
contém um versículo muito forte contra a oração pelos mortos (2Esdras 7.105) (Geisler &
Nix, 1997, p. 96).

O Concílio declarou que, não somente a Bíblia, mas também as Escrituras canônicas e os
livros apócrifos da Vulgata de Jerônimo e a tradição da Igreja constituíam autoridade final
para os fiéis (Cairns, 1990, p. 286).

Contra a posição tomada pelos Reformadores, a Igreja Católica Romana finalmente


decretou, em 1546, no concílio de Trento, que os livros de Tobias, Judite, Sabedoria,
Eclesiástico, Baruque, 1 e 2 Macabeus, também fossem aceitos como canônicos. Nesse
ponto deve ser notado que a Igreja Católica Romana também aceita como canônicas as
adições aos livros de Ester, Baruque ('a carta de Jeremias'), e Daniel ('a oração de Azarias',
'o cântico dos três hebreus', 'a história de Susana' e 'Bel e o Dragão')(Ridderbos In Douglas,
1991: I, p. 254).

Porém, a decisão do Concílio de Trento não foi facilmente aceita dentro da Igreja Romanista.

Por um lado, um grupo defendia a idéia de se incluir todos os apócrifos da Vulgata de Jerônimo, o que

deve ter gerado a demora na publicação da edição oficial da Vulgata Latina de 1592 e seu revelador

apêndice:

Na edição oficial da Vulgata Latina, que havia sido decidida pelo concílio de Trento, mas
que não foi publicada senão em 1592, os livros de 1 e 2 Esdras, e a Oração de Manassés,
também foram inseridos, mas após o Novo Testamento (Ridderbos In Douglas, 1991: I, p. 254).
15

Por outro lado, outro grupo continuava a milenar rejeição aos apócrifos, agora porém, com o

advento da Inquisição Romana, cada vez mais silenciosa. Alguns dos principais cardeais que

participaram do concílio de Trento possuíam fortes convicções quanto a não canonicidade destes

apócrifos inclusos forçosamente no cânon romanista:

Essa decisão, em Trento, não refletiu uma anuência universal, indisputável, dentro da Igreja
Católica e na Reforma. Nessa exata época o cardeal Cajetan, que se opusera a Lutero em
Augsburgo, em 1518, publicou Comentário sobre todos os livros históricos fidedignos do
Antigo Testamento, em 1532, omitindo os apócrifos. Antes ainda desse fato, o cardeal
Ximenes havia feito distinção entre os apócrifos e o cânon do Antigo Testamento, em sua
obra Poliglota Complutense (1514-1517) (Geisler & Nix, 1997, p.96).
2.4) Igreja Oriental à época da Reforma:

Por fim, cabe aqui uma breve nota quanto ao desenvolvimento do cânon do Antigo

Testamento da Igreja Oriental:

Além dos livros do Cânon hebraico, o concílio de Jerusalém, de 1672, aceitou como
canônicos os livros de Sabedoria, Judite, Tobite, Bel e o Dragão e 1, 2, 3, e 4 Macabeus,
além do Eclesiástico. Atualmente parece não haver unanimidade sobre o assunto do Cânon
na Igreja Ortodoxa Grega (Ridderbos In Douglas, 1991: I, p. 254).

Da nota acima cabe observar que o concílio de Jerusalém, também chamado de sínodo de

Belém, foi reunido pela instigação jesuítica que desejava aniquilar as influências calvinistas sobre a

Igreja Oriental:

Cirilo Lucar (1572-1638), que se tornou patriarca de Constantinopla em 1621, interessou-se


pelos movimentos religiosos calvinistas no Ocidente, mas encontrou a oposição de sua
própria gente e dos jesuítas que não queriam que a igreja oriental se tornasse protestante.
Assim mesmo, elaborou em 1629 uma Confissão de Fé, fortemente regada de idéias
doutrinárias calvinistas. Ele também enviou um dos três mais antigos manuscritos da Bíblia,
o Codex Alexandrinus, à Inglaterra, no reinado de Carlos I. Seus inimigos persuadiram o
Sultão a executá-lo por ter supostamente instigado uma rebelião entre os cossacos; um
sínodo de Belém em 1672 repudiou todos os vestígios da doutrina reformada de sua
Confissão, negando mesmo que fosse de sua autoria (Cairns, 1990, p. 286-287).
16

CAPÍTULO III

A FORMAÇÃO DO CÂNON DO NOVO TESTAMENTO

Nos primeiros anos da história da Igreja, quando ainda não haviam sido escritos os livros do

Novo Testamento, a Igreja assumiu para si, como o fizera Jesus e também os apóstolos, o Antigo

Testamento judaico. Estes eram os seus livros devocionais e de uso no culto público, associados ao

testemunho e ensino dos apóstolos e demais discípulos que haviam acompanhado Jesus (tradição

oral):

No princípio, os cristãos não contavam com qualquer dos livros que figuram em nosso Novo
Testamento. Assim sendo, eles dependiam do Antigo Testamento, de uma tradição oral
acerca dos ensinamentos e da obra remidora de Jesus, e de revelações diretas da parte de
Deus, por meio dos profetas cristãos (Gundry, 1987, p. 61).

A Igreja Apostólica não estava destituída de Escrituras. Ela apelava para o Antigo
Testamento para buscar sua doutrina, usualmente em vestido grego, embora alguns
escritores aparentemente tivessem empregado o texto hebraico. (...) Na adoração, a Igreja
já usava algumas de suas próprias tradições peculiares: na Ceia do Senhor, a morte do
Senhor era 'proclamada' (1 Co 11:26) provavelmente tanto em palavra (...) como nos
símbolos da ordenança. O relato sobre a própria Ceia do Senhor é reputado como algo que
se derivou 'do Senhor', uma tradição cuidadosamente guardada: também encontramos essa
terminologia nos lugares onde a conduta ética se baseia sobre afirmações do Senhor (cf 1
Co 7:10, 12, 25; At 20:35). Os repositórios escritos da tradição cristã são, quando muito,
hipotéticos na igreja apostólica primitiva; (...) Nesse material, portanto, quer oral quer
escrito, encontramos que a Igreja, desde os estágios primordiais, preservava
conscientemente suas tradições sobre a paixão, a ressurreição, a vida (cf At 10:36-40), e os
ensinos de Jesus (Birdsall In Douglas, 1991: I, p. 256).

Porém, na medida em que estes apóstolos ou seus auxiliares próximos escreviam seus

escritos, estes escritos eram colocados lado a lado com as Escrituras do Antigo Testamento, e as

igrejas os copiavam, colecionavam e os utilizavam nos seus cultos, assim como continuavam também

a utilizar os escritos veterotestamentários:

As igrejas cristãs, desde o princípio receberam estas Escrituras Judaicas como Palavra de
Deus, e deram-lhes, em suas assembléias, o mesmo lugar que haviam ocupado nas
sinagogas. À medida que apareciam os escritos dos Apóstolos, iam sendo adicionados a
17

essas Escrituras Judaicas, e gozavam da mesma consideração sagrada. Cada igreja queria,
não só o que lhe havia sido endereçado, como também cópias dos escritos dirigidos às
outras (...) Há indicações no N.T. [ex: 2 Pe 1:15; 3:1-2; 3:15-16; Cl 4:16; 2 Ts 2:15] de que,
ainda nos dias dos Apóstolos e sob supervisão deles, começaram a serem feitas coleções
dos seus escritos para as igrejas, os quais eram postos ao lado do A.T. como inspirada
Palavra de Deus [veja por exemplo Paulo em 1 Tm 5:18 citando Mateus 10:10 ou Lucas
10:7, e referindo-se ao texto citado como "Escritura"] (Halley, 1994, p. 655).

Assim, o processo de canonização desde o início da igreja estava em andamento. As


primeiras igrejas foram exortadas a selecionar apenas os escritos apostólicos fidedignos.
Desde que determinado livro fosse examinado e dado por autêntico, fosse pela assinatura,
fosse pelo emissário apostólico, era lido na igreja e depois circulava entre os crentes de
outras igrejas. As coletâneas desses escritos apostólicos começaram a tomar forma nos
tempos dos apóstolos (Geisler & Nix, 1997, p. 105).
1) Motivações para a definição do cânon do Novo Testamento:

No "capítulo I, item 2" ("O porquê da formação do cânon") deste trabalho, estão

apresentados os argumentos relacionados as motivações gerais para a definição do cânon bíblico, o

que engloba logicamente o Novo Testamento.

Porém, mais especificamente no caso do Novo Testamento pode-se destacar as seguintes

motivações:

1.1) Dificuldade em reconhecer um escrito como parte integrante da revelação de Deus

Como vimos, a medida em que os apóstolos ou pessoas ligadas a estes escreviam seus

escritos, estes escritos eram colocados lado a lado com as Escrituras do Antigo Testamento, e as

igrejas os copiavam, colecionavam e os utilizavam nos seus cultos.

Porém, estas coletâneas eram restritas. As igrejas a quem foram endereçadas muitas das

epístolas estavam em regiões, e até mesmo em continentes, distantes umas das outras. Isso

acarretou diversas dificuldades que fizeram com que a coleção completa do cânon demorasse séculos

para ter a sua forma definitiva e completa em toda a Igreja Cristã:

A história do cânon do Novo Testamento difere da do Antigo em vários aspectos. Em


primeiro lugar, visto que o cristianismo foi desde o começo religião internacional, não
havia comunidade profética fechada que recebesse os livros inspirados e os coligisse em
determinado lugar. Faziam-se coleções aqui e ali, que se iam completando, logo no início
da igreja; não há notícia, da existência oficial de uma entidade que controlasse os escritos
inspirados. Por isso, o processo mediante o qual todos os escritos apostólicos se
tornassem universalmente aceitos levou muitos séculos (Geisler & Nix, 1997, p. 99).

A Palestina, a Ásia Menor, a Grécia e Roma ficavam distantes uma da outra. Os livros do
A.T. haviam surgido no âmbito de um país pequeno; os do N.T. em países muito
separados um do outro. (...) O mundo de então não tinha estradas de ferro, nem aviões,
nem rádio, como o de hoje. As viagens e as comunicações se faziam devagar e eram
perigosas. Uma viagem que hoje se faz em poucas horas, naquele tempo exigia meses ou
anos. Não havia imprensa, as cópias feitas à mão eram vagarosas e bem trabalhosas.
Demais disto, a época era de perseguições quando os preciosos escritos cristãos tinham
de se conservar escondidos. Não havia concílios ou conferências, onde cristãos de
lugares distantes pudessem se reunir e comparar notas a respeito dos escritos que
tinham, o que só aconteceu nos dias de Constantino. De modo que, naturalmente, as
primeiras coleções de livros do N.T. teriam de variar, em diferentes regiões, sendo
vagaroso o processo de se chegar à unanimidade quanto a que livros pertenciam de fato
ao N.T. (Halley, 1994, p. 656).
18

A dificuldade ainda se agravava pelo grande número de livros não canônicos: Em paralelo

aos escritos legítimos dos apóstolos, surgiram também vários fraudulentos, e também outros bons

livros que se confundiam com os canônicos:

... não se deixem abalar nem alarmar tão facilmente, quer por espírito, quer por palavra,
quer por carta supostamente vinda de nós, como se o dia do Senhor já tivesse chegado.
(2 Ts 2:2) (NVI, 1994, p. 270).

Mesmo depois de já terem sido escritos os livros do Novo Testamento, muitos desses livros
não haviam ainda sido geograficamente distribuídos por toda a Igreja. E antes de serem
colecionados para formação do Novo Testamento, escritores cristãos haviam produzido
alguns outros livros - alguns bons, e outros de inferior qualidade. Livros como as epístolas
de Paulo e os evangelhos receberam reconhecimento canônico de imediato. Mas uma
autoria incerta levou outros livros, como Hebreus, a serem postos em dúvida por algum
tempo. A Igreja primitiva hesitou em adotar a segunda epístola de Pedro (...) Por causa de
sua brevidade e circulação limitada, alguns desses livros simplesmente não se tornaram
conhecidos em círculos suficientemente amplos para serem aceitos de pronto no cânon
(Gundry, 1987, p. 61-62).

Além dos livros canônicos do N.T., havia muitos outros, tanto bons como fraudulentos, (...):
alguns tão bons e tão valiosos que por um pouco, em algumas partes, foram havidos como
Escrituras; outros que não passavam de contrafacções (Halley, 1994, p. 656).

Pelo final do século I, todos os 27 livros do Novo Testamento haviam sido recebidos e
reconhecidos pelas igrejas cristãs. O cânon estava completo [todos os livros já estavam
escritos], e todos os livros haviam sido reconhecidos pelos crentes de outros lugares. Por
causa da multiplicidade dos falsos escritos e da falta de acesso imediato às condições
relacionadas ao recebimento inicial de um livro, o debate a respeito do cânon prosseguiu
durante vários séculos, até que a igreja universal finalmente reconheceu a canonicidade dos
27 livros do Novo Testamento (Geisler & Nix, 1997, p. 105).

1.2) Os apóstolos e os primeiros pais apostólicos estavam saindo de cena.

Enquanto os apóstolos e discípulos apostólicos estavam vivos, não havia a preocupação em

se formar uma lista fechada do cânon das escrituras neotestamentárias. A ausência neste período da

Igreja de qualquer lista de livros canônicos, segundo Birdsall, se deve a dois fatores:

... a existência de uma tradição oral, e a presença de apóstolos, discípulos apostólicos, e


profetas, que eram a fonte e os intérpretes das tradições sobre o Senhor Jesus (Birdsall In
Douglas, 1991: I, p. 257).

Assim, quando estas testemunhas oculares e seus discípulos mais íntimos começaram a

sair de cena, se tornou necessário o reconhecimento dos registros da sã doutrina:

Como os apóstolos estavam saindo de cena, havia necessidade de alguns registros que
seriam reconhecidos como autorizados e dignos de uso na adoração (Cairns, 1990, p. 96).

Nos tempos mais primitivos não havia Cânon devido à presença dos apóstolos ou seus
discípulos, e por causa das tradições orais vivas. Mas, nos meados do segundo século os
apóstolos já eram mortos; porém, suas memórias e outros monumentos atestam sua
mensagem: ao mesmo tempo levantara-se a heresia (Birdsall In Douglas, 1991: I, p. 260-
261).

O que está em conformidade com Evans, que destaca que esta necessidade de um cânon

definido veio somente com a saída de cena dos Apóstolos:

A obra primária e mais importante dos apóstolos era a de dar testemunho pessoal dos fatos
básicos da história evangélica. O ensino deles foi inicialmente oral, mas no decurso do
tempo, muitos procuraram dar forma escrita a esse Evangelho oral. Enquanto os apóstolos
ainda viviam, não era urgente a necessidade de registros escritos das palavras e ações de
19

nosso Senhor. Mas, quando chegou o tempo de serem eles removidos do mundo, tornou-se
extremamente importante que fossem publicados registros autoritativos. Assim, vieram à
existência os Evangelhos. Os fundadores das igrejas, freqüentemente impossibilitados de
visitá-las pessoalmente, desejavam entrar em contacto (sic) com seus convertidos no
propósito de aconselhá-los, repreendê-los e instruí-los. Assim surgiram as Epístolas (Evans
Apud Bancroft, 1992, p. 6).

1.3) As perseguições.

Durante as perseguições, manuscritos bíblicos eram procurados e destruídos. Nestes

períodos, muitas e muitas vezes cristãos piedosos foram torturados e se dispuseram a entregar suas

vidas para preservar manuscritos das Escrituras. Assim, era indispensável saber quais eram os livros

realmente inspirados por Deus, e assim merecedores de tamanho sacrifício.

Desta forma, Cairns (1990) relata que este também foi um motivador para a clara definição

do cânon do Novo Testamento:

Os cristãos perseguidos não estavam dispostos a arriscar suas vidas por um livro se não
estivessem certos de que ele integrava o cânon das Escrituras (p. 96).

1.4) O surgimento de cânones heréticos:

Este fator talvez tenha sido o fator que tornou emergente que a igreja tomasse uma posição

quanto ao seu cânon autorizado. Conforme Cairns (1990): " Heréticos, como Márcion estavam

formando seu próprio cânon das Escrituras e estavam levando o povo ao erro" (p. 96).

Bruce (1991) nos apresenta Márcion, sua doutrina e seu cânon tão peculiar:

... Márcion, natural do Ponto, na Ásia Menor. Márcion foi para Roma por volta do ano 140
A.D. e poucos anos mais tarde publicou um cânon da Escritura Sagrada. O autor rejeitava a
autoridade do Velho Testamento e sustentava que Paulo fora o único apóstolo de Jesus que
se mantivera fiel, sendo que os demais haviam corrompido o ensino de Cristo com misturas
judaizantes. Seu cânon refletia suas idéias peculiares. Consistia de duas partes - O
Euangelion, edição do Evangelho de Lucas que começava com as palavras: "No ano 15 de
Tibério César, Jesus desceu a Cafarnaum" (ver Lc 3:1; 4:31); e o Apostolikon, que abrangia
dez das epístolas paulinas (excluídas as cartas a Timóteo e a Tito). Gálatas, objeto da
predileção natural de Márcion por causa de sua ênfase anti-judaizante, ocupava o primeiro
lugar no Apostolikon de Márcion. As outras epístolas vinham depois em ordem
descendente, segundo a extensão. As epístolas "duplas" (isto é, as duas aos Coríntios e as
duas aos Tessalonicenses) foram, para aquele fim, consideradas, cada par, como uma
única epístola. Assim, Romanos vinha depois de Coríntios. E junto a cada uma das
epístolas vinha um prefácio. (...) Márcion (...) assumia pressuposições na abordagem das
epístolas e as afirmava categoricamente. Onde ele encontrava, nas epístolas, afirmações
contrárias a essas pressuposições, concluía que o texto apostólico fora adulterado por
escribas judaizantes, e fazia emendas para ajeitá-las ao seu modo de entender (...). E a
influência do cânon de Márcion foi tanta (...) que muitos MSS "ortodoxos" das epístolas
paulinas contêm os prefácios marcionitas (p. 20-21).

Em outro de seus livros, Bruce (1990) comenta que este fator realmente acelerou a

formação do cânon, porém não foi o causador ou principiador do processo. Ele afirma que este

processo já estava em andamento:

... quando Márcion elaborou seu próprio "Cânon", em cerca de 140 A.D., necessário se fêz
(sic) às igrejas ortodoxas saber com exatidão qual o verdadeiro Cânon e isso ajudou a
acelerar um processo que já se achava então em curso. É improcedente, contudo, falar ou
20

escrever como se a Igreja primeiro começasse a elaborar um Cânon após haver Márcion
dado à publicidade o que compusera (p. 35).

O mesmo é visto nas palavras de Gundry (1987), que refere-se ao cânon de Márcion como

tendo sido elaborado em 144 A.D.:

A violenta reação de cristãos ortodoxos contra a breve lista preparada por Márciom
demonstra o fato que, como um todo, a Igreja já havia aceito os livros do Novo Testamento
que Márciom rejeitava. Noutros particulares, o cânon de Márciom não teria causado tanta
perturbação (p. 62).

2) Critérios para a definição do cânon do Novo Testamento:

2.1) Critérios utilizados desde o século II:

Como vimos, o processo de canonização já estava em andamento desde o I século, tendo

porém sido acelerado no II século, quando foi praticamente encerrado por volta de 175 D.C., restando

dúvidas somente a cerca de alguns escritos, que devido a distância de seus destinatários originais e

às dificuldades causadas pelas constantes perseguições imperiais, só puderam ser apuradas com o

fim das perseguições no século IV.

Neste processo, vemos os critérios fundamentais serem claramente definidos neste segundo

século:

O desenvolvimento do cânon foi um processo demorado, basicamente encerrado em 175,


exceto para o caso de uns poucos livros cuja autoria era ainda discutida (...) O maior teste
do direito de um livro estar no cânon era se ele tinha os sinais da apostolicidade. Era ele
escrito por um apóstolo ou por alguém ligado intimamente aos apóstolos, como Marcos, o
autor do Evangelho de Marcos que contou com a ajuda do apóstolo Pedro? A eficácia do
livro na edificação quando lido publicamente e sua concordância com a regra de fé serviam
de testes também. Na análise final, o que contava para a decisão sobre que livros deviam
ser considerados canônicos e dignos de serem incluídos no N.T. era a verificação histórica
de autoria ou influência apostólica ou a consciência universal da igreja dirigida pelo Espírito
Santo (Cairns, 1990, p. 96).

Diversos critérios de canonicidade têm sido sugeridos, como a consonância com a doutrina
oral apostólica do primeiro século de nossa era, ou como o efeito moral edificante. Não
obstante, alguns livros capazes de edificar a seus leitores não conseguiram atingir estado
canônico na Igreja. Outro tanto se pode dizer quanto a alguns livros que levavam avante a
tradição da doutrina apostólica. O critério mais importante - de fato, crucial - era o da
apostolicidade, isto é, autoria da parte de um apóstolo ou de um associado de algum dos
apóstolos, e, por conseguinte, também haver sido escrito numa data dentro do período
apostólico (Gundry, 1987, p. 63).

2.2) Critérios extras utilizados a partir do IV século:

A distância entre o II e o IV século não são apenas de anos, mas devido as perseguições e

inúmeros registros destruídos, era necessário a reconstrução e continuidade do trabalho do segundo

século.
21

Assim, vemos como critérios de canonicidade, aqueles que provavam os escritos terem sido

considerados anteriormente pela igreja como canônicos:

Nessa investigação, especialmente sobre o período mais antigo, três questões devem ser
distinguidas claramente: o conhecimento de um livro comprovado por um pai da Igreja
particular ou fonte [de onde ou para onde um escrito foi enviado]; a atitude para com tal livro
como Escritura inspirada por parte daquele pai da Igreja ou fonte (o que pode ser
demonstrado por uma fórmula introdutória tal como 'Está escrito' ou 'Como dizem as
Escrituras'); e a existência do conceito de uma lista ou cânon na qual figure a obra citada (o
que deve ser demonstrado, não apenas por listas mas também por referência aos 'livros' ou
'apóstolos', onde é tencionado um conjunto literário) (Birdsall In Douglas, 1991: I, p. 256).

3) Principais momentos históricos da definição do cânon do Novo Testamento:

3.1) Desenvolvimento do cânon:

Como já foi citado, no segundo século o cânon já estava praticamente definido, salvo por

alguns poucos livros:

O desenvolvimento do cânon foi um processo demorado, basicamente encerrado em 175,


exceto para o caso de uns poucos livros cuja autoria era ainda discutida (Cairns, 1990, p.
96).

Como testemunhas desta definição do cânon, temos os pais apostólicos, os pais da Igreja,

os Cânones do segundo ao quarto século, as traduções primitivas (livros que as igrejas julgaram valer

a pena empreender esforços na tradução ao seu próprio idioma), e os concílios do IV e V século.

O quadro abaixo, desenvolvido por Geisler & Nix (1997), nos dão o panorama geral destes

testemunhos:

[ ver Anexo I ] (p. 107)


22

Na tabela acima: “O” = Dado como original (canônico), “X” = Citado, “?” = Dúvidas quanto a

canonicidade.

Observe no quadro acima que o cânon Muratório (170-175 d.C.), assim como a antiga latina

(200 d.C.) tem como originais todos os livros do atual N.T., exceto Hebreus, Tiago e 1 e 2 Pedro. Isto

prova que o cânon já estava praticamente definido em data anterior a estes, pois "Não se poderiam

fazer a menos que houvesse primeiro o reconhecimento dos livros que deveriam ser incluídos na

tradução [ou no Cânon]" (Geisler & Nix, 1997, p. 106).

Cabe ainda chamar a atenção ao fato de que estes livros não citados no cânon Muratório e

na antiga latina, já haviam sido citados por indivíduos do primeiro século e foram dados como originais

pelo cânon Barocócio (c. 206), o que mostra que, livros que em uma região não se tinha certeza de

sua canonicidade, eram dados como originais e canônicos em outras regiões.

3.2) Definição do cânon:

A definição do cânon como nós conhecemos ocorreu no século IV, quando o fim das

perseguições permitiu uma investigação mais segura dos escritos, através da coleta mais ampla de

informações, como por exemplo, das igrejas destinatárias de algumas epístolas.

Cabe a Eusébio o mérito de ter levantado minuciosamente os dados que serviriam de base

para os concílios do século IV. Através de um amplo estudo, patrocinado pelo imperador convertido

Constantino, que desejava enviar como presente 50 bíblias para as igrejas de Constantinopla,

Eusébio definiu quatro categorias de livros (aceitos universalmente, discutidos, espúrios e heréticos).

É importante citar que suas 50 bíblias tinham como Novo Testamento os mesmos livros do cânon

definitivo, porém Tiago, 2 Pedro, Judas, 2 e 3 João vinham com a ressalva de que estes livros eram

discutidos e postos em dúvidas por alguns:

Eusébio, 264-340 d. C., bispo de Cesaréia, historiador da Igreja, foi preso durante a
perseguição de Diocleciano contra os cristãos (...) Eusébio viveu até o reinado de
Constantino, que aceitou o cristianismo e fez deste a religião de sua corte e do seu império.
Veio a ser o principal conselheiro religioso desse imperador. Um dos primeiros atos de
Constantino, ao ascender ao trono, foi mandar preparar, sob a direção de Eusébio e a cargo
de hábeis copistas, Cinqüenta Bíblias para as igrejas de Constantinopla, no mais delicado
velo, para serem trazidas em carruagens reais de Cesaréia àquela cidade (...) Quais livros
constituíam o Novo Testamento de Eusébio? Exatamente os mesmos que hoje
conhecemos. Numa investigação ampla, Eusébio procurou informar-se sobre quais livros
haviam sido aceitos geralmente pelas igrejas. Na História da Igreja, de sua autoria, fala de
quatro classes de livros: 1. Os aceitos universalmente. 2. Os "discutidos": Tiago, 2 Pedro,
Judas, 2 e 3 João, os quais, embora incluídos em suas Bíblias, eram postos em dúvidas por
alguns. 3. Os livros "espúrios": entre os quais menciona os "Atos de Paulo", o "Pastor de
Hermas", o "Apocalipse de Pedro", a "Epistola de Barnabé" e o "Didaquê". 4. Os "inventados
pelos hereges": "Evangelho de Pedro", "Evangelho de Tomé", "Evangelho de Matias", "Atos
de André", "Atos de João" (Halley, 1993, p. 658-659).
23

Desta forma, Eusébio foi responsável por importante avanço em direção a definição do

cânon definitivo, devido a suas pesquisas (onde importantes dados foram coletados) e ao impacto

motivador que causou sobre a Igreja, despertando-a quanto a esta questão:

Quaisquer dúvidas existentes no Ocidente a respeito das cartas gerais e do Apocalipse


foram removidas nos cinqüenta anos que se seguiram à obra de Eusébio (Geisler & Nix,
1997, p. 109).

Porém, coube a Atanásio escrever o primeiro documento em que o cânon do Novo

Testamento é apresentado em sua forma definitiva sem nenhum questionamento.

No oriente o ponto definitivo é a Trigésima nona Carta Pascal de Atanásio, em 367 D.C.
Aqui encontramos pela primeira vez um Novo Testamento de limites exatos, conforme nós o
conhecemos. Uma linha clara é traçada entre as obras do Cânon, as quais são descritas
como a única fonte de instrução religiosa, e as demais obras, que podem ser lidas, a saber,
o Didache e o Pastor [de Hermas]. Os apócrifos heréticos são reputados como obras
intencionalmente forjadas com propósito de iludir (Birdsall In Douglas, 1991: I, p. 259).

Ao mesmo tempo que o cânon era definido no Oriente por Atanásio, o Ocidente fervilhava

em debates, tendo um grande número de defensores do cânon conforme sua configuração definitiva:

Mais ou menos no mesmo período [em que Atanásio publicou sua Trigésima Nona Carta
Pascal], certo número de autores latinos demonstrou interesse nos limites do Cânon do
Novo Testamento: Prisciliano na Espanha. Rufino de Aquiléia na Gália, Agostinho no Norte
da África (...), Inocente I, bispo de Roma, e o autor do pseudo-Decreto de Gelásio. Todos
mantêm os mesmos pontos de vista (Birdsall In Douglas, 1991: I, p. 259).

Esta efervescência culminou no Ocidente nos concílios de Hipo (393) e de Cartago (397),

que firmaram definitivamente o cânon, uma lista com exatamente os mesmos livros que Atanásio:

Os Concílios de Hipo (393) e de Cartago (397). O testemunho de apoio ao cânon do Novo


Testamento não se limitou a vozes individuais. [Estes] Dois concílios locais ratificaram os 27
livros canônicos do Novo Testamento (Geisler & Nix, 1997, p. 109).

Os primeiros concílios eclesiásticos a classificar os livros canônicos se realizaram ambos na


África do Norte - em Hipona Régia em 393 e em Cartago em 397 - mas a ação desses
concílios de modo algum representa a imposição de algo de nôvo (sic) às existentes
comunidades cristãs, pelo contrário, simples codificação do que já era prática geral,
corrente, nessas comunidades (Bruce, 1990, p. 36).

Vários concílios posteriores apenas vieram a ratificar a lista que Atanásio já dava por

ortodoxa em 367:

Concílios posteriores, como o de Calcedônia em 451, apenas aprovaram e deram uma


expressão uniforme àquilo que já era um fato geralmente aceito pela Igreja por um bom
período de tempo (Cairns, 1990, p. 96).

4) Posição atual da Igreja quanto ao Cânon do Novo Testamento:

A Igreja Cristã em todos os seus principais ramos, Igrejas Católicas (Romana, Russa,

Grega) e Protestantes (conservadores e liberais), reconhecem o cânon do Novo Testamento conforme

definido por Atanásio e todos os concílios posteriores que trataram do assunto:

No século XVI D. C., tanto Protestantes como Católicos, após debate, confirmaram sua
aderência à tradição, e a Igreja Romana mais recentemente reafirmou a sua aderência à
24

mesma. O Protestantismo Conservador, igualmente, continua a usar o Cânon recebido pela


tradição, e até mesmo os representantes da teologia liberal não promulgam dogma contrário
a isso. (...) o Cristianismo Protestante Ortodoxo de nossos dias não vê motivo para rejeitar
as decisões de gerações cristãs anteriores, e aceita o Novo Testamento como um registro
completo e autoritativo sobre a revelação divina, declarada desde os dias antigos por
homens escolhidos, dedicados e inspirados (Birdsall In Douglas, 1991: I, p. 260-261).

CAPÍTULO IV

BIBLIOGRAFIA

BANCROFT, Emery H.. Teologia elementar: doutrinária e conservadora. Trad.


João Marques Bentes. 7. ed. São Paulo, Imprensa Batista Regular, 1992.

BÍBLIA DE JERUSALÉM. 3. ed., São Paulo, Edições Paulinas, 1987.

BIRDSALL, J. N.. Cânon do Novo Testamento. In: DOUGLAS, J. D. O novo


discionário da Bíblia. Trad. João Marques Bentes. 10. ed. São Paulo,
Sociedade Religiosa Edições Vida Nova, 1991. 1 v. 255-261 p.

BRUCE, Frederick Fyvie. Merece confiança o Novo Testamento?. Trad. Waldyr


Carvalho Luz. 2. ed. São Paulo, Sociedade Religiosa Edições Vida Nova,
1990.

________. Romanos introdução e comentário. Trad. Odayr Olivetti. 6. ed. São


Paulo, Sociedade Religiosa Edições Vida Nova, 1991.

CAIRNS, Earle E.. O cristianismo através dos séculos. Trad. Israel Belo de
Azevedo. 2. ed. São Paulo, Sociedade Religiosa Edições Vida Nova, 1990.

GEISLER, Norman & NIX, William. Introdução bíblica. Trad. Oswaldo Ramos. 2.
ed. Estados Unidos da América, Editora Vida, 1997.

GUNDRY, Robert H.. Panorama do Novo Testamento. Trad. João Marques


Bentes. 4. ed. São Paulo, Sociedade Religiosa Edições Vida Nova, 1987.

HALLEY, Henry H.. Manual bíblico. Trad. David A. de Mendonça. 6. ed. São
Paulo, Sociedade Religiosa Edições Vida Nova, 1993.

LITTLE, Paul E. Saiba o que você crê. Trad. Yolanda M. Krievim. 3. ed. São
Paulo, Editora Mundo Cristão, 1991.
25

MCDOWELL, Josh & STEWART, Don. Respostas àquelas perguntas. 2. ed. São
Paulo, Editora e Distribuidora Candeia, 1992.

MILNE, Bruce. Estudando as doutrinas da Bíblia. Trad. Neyd Siqueira. 2. ed.


São Paulo, ABU Editora, 1991.

NOVO TESTAMENTO. Nova Versão Internacional. São Paulo, Sociedade Bíblica


Internacional, 1994.

RIDDERBOS, N. H.. Cânon do Antigo Testamento. In: DOUGLAS, J. D. O novo


dicionário da Bíblia. Trad. João Marques Bentes. 10. ed. São Paulo,
Sociedade Religiosa Edições Vida Nova, 1991. 1 v. 246-255 p.

Anexo I
26

(Geisler & Nix, 1997, p. 107).

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