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DANIEL
AD EXPERIMENTUM
Texto provisório,
destinado à recolha de contributos dos leitores,
no sentido de aperfeiçoar a sua compreensibilidade.
Os comentários devem ser enviados para o endereço eletrónico:
biblia.cep@gmail.com
O livro e a personagem
O livro de Daniel contém o relato de acontecimentos e visões referidos a um
jovem do grupo de exilados de Jerusalém para a Babilónia com o rei Joaquim
(1,2ss). Chamado a servir na corte dos reis da Babilónia, acaba por se destacar
pela sua sabedoria e capacidade de decifrar sonhos e enigmas, bem como pela
piedade e fidelidade a Deus (1-6). Daniel recebeu um conjunto de visões sobre
o futuro, o “fim dos tempos” (7-12), e é o herói da história do reconhecimento
da inocência de Susana (13) e um paladino da luta contra os ídolos (14).
O nome Daniel significa “O Deus El é meu juiz” e figura nas listas dos que
regressaram do exílio nos livros de Esdras e Neemias (Esd 8,2; Ne 10,7). Há,
contudo, um alargado consenso acerca do carácter ficcional tanto da perso-
nagem como das histórias relatadas. É muito provável que o autor ou autores
do livro se tenham inspirado na figura lendária de um certo Daniel, a quem o
livro de Ezequiel atribui piedade e sabedoria sem igual (Ez 14,14.20). Daniel
(ou Dan’il) é também o nome de um rei lendário cujo filho, Aqhat, é objeto de
um conto descoberto entre os textos que vieram à luz na cidade de Ugarit, na
Síria, datados do séc. XIII a.C. Tudo indica que se trata, em todos estes casos,
de variações literárias à volta de uma mesma figura lendária.
Composição e redação
O livro de Daniel é fruto de um processo de composição e redação que se
prolongou através de, pelo menos, dois a três séculos. É provável que as histó-
rias que constituem o núcleo da primeira parte do livro (2-6) tenham circulado
separadas antes de serem compiladas, no final da época persa ou no início do
período helenístico (séc. IV-III a.C.). O primeiro capítulo parece ter sido escrito
naquela altura, como introdução a esta coleção. A fase seguinte no processo
de composição e redação foi a inclusão da primeira das visões (c. 7). Este
capítulo parece ter sido redigido nos inícios da crise dos Macabeus, nos anos
60 do séc. II a.C., quando o rei selêucida, Antíoco IV Epifânio (175-164 a.C.),
promoveu uma série de reformas administrativas e cultuais que foram recebidas
pelos judeus como um ataque à sua fé e costumes, provocando a revolta. As
visões contidas nos capítulos 8 a 12 também refletem este período conturbado,
mas foram escritas algo mais tarde que Daniel 7. As histórias reproduzidas
nos capítulos 13-14 terão sido escritas como narrativas independentes e assim
terão circulado, antes de serem incluídas na edição grega da Bíblia dos Setenta,
pelo final do séc. II ou início do séc. I a.C. Foi somente com a tradução latina
da Vulgata que as histórias de Susana e de Bel e o Dragão se tornaram parte
integrante do livro de Daniel.
Daniel 4
Género literário
Os capítulos 1 a 6 do livro de Daniel reproduzem um conjunto de histórias
ou pequenos contos de cariz ficcional sobre as peripécias do protagonista e de
três outros jovens de Judá, Ananias, Azarias e Michael, na corte da Babilónia.
São normalmente designados como contos ou lendas de corte e equiparados
à história de José (Gn 37-50) e ao livro de Ester. Tratava-se de um tipo de
literatura destinado a cultivar a fidelidade ao Deus de Israel e à sua Lei, entre
os judeus que viviam na diáspora, em contextos propícios à assimilação. A
inabalável piedade e o heroísmo de Daniel e dos três jovens acabaram por se
tornar exemplo também para os judeus que, durante o período da crise maca-
baica (séc. II a.C.), perante a violência da perseguição, se viram confrontados
com a tentação de abandonar a fé e os costumes do povo.
5 Daniel
Perspetiva teológica
O leitor do livro de Daniel vê-se confrontado, desde as primeiras linhas,
com a experiência do exílio e as exigências de viver numa terra estrangeira para
os membros do povo de Israel que querem permanecer fiéis a Deus e à sua Lei.
Daniel e os três jovens são exemplo de piedade; mas o livro quer, sobretudo,
assegurar ao leitor que Deus não abandona o seu povo na adversidade. A sua
autoridade estende-se a toda a terra e os que Ele escolheu podem estar certos
de que a sua vida e destino estão nas mãos de Deus.
Esta convicção espelha-se, nas visões de Daniel, na afirmação da providên-
cia divina sobre o conjunto da História humana, mostrando que a sucessão dos
impérios é, afinal, obra tão divina quanto humana. Nesse sentido, o livro de
Daniel oferece razões de esperança a todos aqueles que se veem confrontados
com o mal e as suas devastadoras consequências: Deus continua presente e
ativo na História e terá a palavra definitiva. Não é difícil imaginar o eco que
Daniel 6
1 Contexto histórico
1
No terceiro ano do reinado de Joaquim, rei de Judá, Nabucodonosor,
rei da Babilónia, chegou a Jerusalém e montou cerco contra elab. 2O Senhor
entregou Joaquim, rei de Judá, nas suas mãos, juntamente com uma parte dos
utensílios da casa de Deus. E Nabucodonosor levou-os para a terra de Chinearc,
para o templo dos seus deuses, e depositou os utensílios na casa do tesouro
dos seus deuses.
a
A primeira parte do livro de Daniel (1,1-6,29) contém o relato da vida de um grupo de exilados
judeus na corte da Babilónia: Daniel e os companheiros são levados de Jerusalém para o exílio
por Nabucodonosor (605-562 a.C.), permanecendo fiéis ao Deus de Israel. Acabaram por se
destacar entre os cortesãos e alcançar as posições de maior prestígio e autoridade. As histórias
aqui relatadas são ficcionais e podem ser qualificadas como contos ou lendas cortesãs, um género
literário que também serve para caracterizar a história de José (Gn 37-50) ou o livro de Ester.
b
A referência a um ataque de Nabucodonosor contra Jerusalém no terceiro ano do rei Joaquim
(607 a.C.) parece não ser histórico. Nabucodonosor só subiu ao trono da Babilónia em 605 a.C.
e as crónicas babilónicas não referem nenhum cerco de Jerusalém antes de 598/7 a.C. Trata-se,
provavelmente, de uma elaboração literária, baseada em 2Rs 24,1 e 2Cr 36,5-7.
c
Chinear é uma designação tradicional da Babilónia (cf. Gn 11; Is 11,11; Zc 5,11).
d
Trata-se do aramaico, última língua semítica falada na antiga Babilónia.
e
A mudança de nome reflete a plena integração de Daniel e dos seus companheiros na corte
dos reis da Babilónia, à semelhança do que sucedeu a José (Gn 41,45). Beltechaçar provém
do babilónio balaṭ-su-uṣur ou balaṭ-šar-uṣur e significa “que ele [o deus] proteja a sua vida”
ou “que ele proteja a vida do príncipe”. O texto hebraico vocaliza o nome de forma diferente
(Belteshaçar), talvez para introduzir o nome do deus Bel (cf. Dn 14,1-22) e justificar a alusão
feita em Dn 4,5. Não há consenso em relação à etimologia e significado dos nomes Chadrac e
Mechac. Abed-Nego parece ser a distorção de abed-nabû, isto é, “servo do deus Nebo”, que
era a principal divindade no tempo de Nabucodonosor.
Daniel 2 8
2 1
O sonho de Nabucodonosor e os sábios da Babilónia (4,1-4; 5,7-9;
Gn 41,1-8)
No segundo ano do seu reinado, Nabucodonosor teve um sonhoc e o seu
espírito ficou agitado e o seu sono deixou-o. 2O rei mandou chamar os magos,
os adivinhos, os feiticeiros e os caldeus para esclarecerem o rei quanto ao
a
As preocupações alimentares de Daniel e seus companheiros refletem o desenvolvimento de uma
tendência para evitar toda a espécie de alimentos consumidos ou oferecidos por não-judeus (cf.
Est 4,17x; Tb 1,10-12; Jdt 12,1-4). Tal cuidado baseia-se nas leis da pureza ritual do Pentateuco,
mas parece ir além do prescrito, de modo a resistir à tentação da completa assimilação. Não se
trata de jejum nem de práticas ascéticas.
b
A referência ao primeiro ano do rei Ciro transforma Daniel no homem do exílio por excelência:
chega à Babilónia com a primeira leva de exilados e a sua vida e atividades prolongam-se até
ao limite simbólico do exílio, o primeiro ano de Ciro, quando o rei persa autorizou o regresso a
Jerusalém e a reconstrução do templo (cf. 2Cr 36,22-23; Esd 1,1-4). O facto de se fazer referên-
cia, em Dn 10,1, à visão que Daniel teve no terceiro ano de Ciro mostra que o quadro temporal
traçado neste primeiro capítulo é simbólico.
c
Lit.: sonhos. O uso do plural é idiomático, como se vê no uso do plural: visões (4,2; 7,1).
9 Daniel 2
d
O termo caldeus, que coincide com o nome do grupo aramaico que detém o poder, é usado aqui
e noutras passagens (2,4.5.10; 1,4; 3,8.48; 5,7.11.30; 9,1) para designar o grupo de sábios que
presta serviço junto do rei da Babilónia.
e
A partir daqui e até 7,28, o texto está escrito em aramaico.
Daniel 2 10
foi revelado a Daniel numa visão noturna e então Daniel louvou o Deus dos
céus 20 e, tomando a palavra, dissea:
“Bendito seja o nome de Deus,
desde sempre e para sempre,
porque a Ele pertencem a sabedoria e o poder.
21
Ele muda os tempos e as estações,
destitui os reis e os eleva,
dá a sabedoria aos sábios
e a inteligência aos inteligentes.
22
Ele revela o que é profundo e escondido
e conhece aquilo que há nas trevas,
porque a luz está com Ele.
23
A ti, ó Deus dos meus pais, eu dou graças e louvor,
porque me concedeste a sabedoria e a força
e me deste a conhecer agora o que te pedimos
e nos deste a conhecer o assunto do rei.”
Tu, ó rei, estavas a olhar e viste uma enorme estátua. A estátua era de
31
contratos de casamentoa, mas a ligação entre eles não será sólida, da mesma
forma que o ferro não se mistura com o barro.
44
Nos dias daqueles reis, o Deus dos céus fará surgir um reino que jamais
será destruído e cuja soberania nunca passará para outro povo. Ele esmagará e
reduzirá a nada todos esses reinos, mas ele subsistirá para sempre, 45tal como
viste na pedra que se desprendeu da montanha, sem intervenção de mão algu-
ma, e reduziu a pedaços o ferro, o bronze, o barro, a prata e o ouro. O grande
Deus deu a conhecer ao rei o que acontecerá no futuro: o sonho é verdadeiro
e a sua interpretação, digna de confiança.”
3 A estátua de ouro
1
O rei Nabucodonosor fez uma estátua de ouro com sessenta côvados
de altura e seis de largura e ergueu-a na planície de Dura, na província da
Babilóniac. 2E então o rei mandou chamar os sátrapas, prefeitos, governadores,
conselheiros, tesoureiros, juízes, oficiais e demais autoridades da província,
a fim de comparecerem na inauguraçãod da estátua que o rei Nabucodonosor
havia erguido.
a
Lit.: por via de descendência humana. Alude-se a casamentos feitos para selar alianças e negó-
cios entre reinos.
b
A reação do rei e o facto de Daniel não rejeitar a adoração, as oblações e o incenso que lhe são
oferecidos (cf. At 14,8-18; Ap 22,8-9) escandalizaram alguns leitores e comentadores judeus
e cristãos. Porém, o autor está mais interessado no valor simbólico deste gesto exagerado que
em quaisquer outras implicações teológicas.
c
Há muitos relatos de construção de estátuas de proporções gigantescas no mundo antigo, como,
por exemplo, a estátua em ouro de Zeus que foi colocada no templo de Bel na Babilónia. O
episódio relatado em Daniel 3 talvez tenha sido inspirado pelos acontecimentos no tempo de
Nabónido, um sucessor de Nabucodonosor e o último rei do império babilónio: o rei fez uma
estátua do deus Sin e ordenou que fosse venerada; a decisão parece ter gerado oposição e o rei
terá recorrido a alguma forma de coação, ainda que menos radical que a descrita em Dn 3.
d
A palavra inauguração é usada em hebraico para a dedicação ou purificação (Hanukkah) do
templo de Jerusalém, acontecimento da época helenística que é contemporâneo do autor e deu
origem a uma festa judaica que ainda hoje existe.
13 Daniel 3
e
Sobre o castigo da fornalha ardente, cf. Jr 29,21-22.
f
A pergunta provocadora do rei Nabucodonosor lembra a arrogância de Senaquerib, rei da As-
síria, e dos seus emissários durante o cerco de Jerusalém no tempo de Ezequias (cf. 2Rs 18,33-
35/Is 36,19-20; 2Rs 19,12-13/Is 37,11-12). Que Nabucodonosor apareça agora a contestar a
soberania e o poder divinos, depois de, em Dn 2,47, os ter proclamado abertamente, parece
sugerir que as histórias relatadas nos cc. 2 e 3 terão circulado de forma independente, antes de
terem sido postas lado a lado num só livro.
16
Chadrac, Mechac e Abed-Nego responderam ao rei Nabucodonosor,
dizendo: “Sobre isso não precisamos de te dar resposta. 17Se assim for, o nosso
Deus, a quem prestamos culto, tem poder para nos livrar da fornalha de fogo
ardente e das tuas mãos, ó rei. 18Mas ainda que o não faça, fica a saber, ó rei,
que não prestaremos culto aos teus deuses nem adoraremos a estátua de ouro
que tu ergueste.”
19
Nabucodonosor encheu-se de cólera e a imagem do seu rosto alterou-se
contra Chadrac, Mechac e Abed-Nego. Tomou a palavra e mandou aquecer a
fornalha sete vezes mais do que era costume 20e ordenou a alguns dos mais
valentes soldados do seu exército que amarrassem Chadrac, Mechac e Abed-
-Nego para os lançarem na fornalha de fogo ardente. 21Aqueles homens foram
então amarrados e lançados para dentro da fornalha de fogo ardente, com os
seus mantos, túnicas, chapéus e demais vestuário. 22Aconteceu, porém, que,
uma vez que tinham aquecido excessivamente a fornalha em resposta à rigorosa
ordem do rei, as chamas devoraram os homens que ali foram lançar Chadrac,
Mechac e Abed-Nego, 23e os três jovens, Chadrac, Mechac e Abed-Nego, caí-
ram amarrados no meio da fornalha de fogo ardente.
44
Sejam confundidos todos os que maltratam os teus servos
e cubram-se de vergonha ao verem-se sem poder nem domínio;
que a sua força seja abatida.
45
Que eles reconheçam que Tu és o Senhor,
o único Deus, glorioso sobre a terra inteiraa.”
Intervenção do anjo do Senhor (6,23; 14, 33-39; 2Rs 19,35/Is 37,36; 2Mac
10,29-30; Mt 28,2)
46
Entretanto, os servos do rei, que os haviam lançado na fornalha, não ces-
savam de a aquecer com nafta, estopa, pez e lenha miúda. 47As chamas, que
se elevavam acima da fornalha à altura de quarenta e nove côvados, 48espa-
lharam-se e queimaram os caldeus que se encontravam em redor da fornalha.
49
O anjo do Senhor, porém, desceu à fornalha até junto de Azarias e dos seus
companheiros e afastou a chama de fogo da fornalha. 50Fez com que no meio
da fornalha como que soprasse uma brisa matinal e refrescante, de tal forma
que o fogo não lhes tocou de todo, nem lhes causou qualquer mal ou incómodo.
59
Anjos do Senhor, bendizei o Senhor,
louvai-o e exaltai-o para sempre!
60
Águas todas que estais acima dos céus, bendizei o Senhor,
louvai-o e exaltai-o para sempre!
61
Todos os potentados, bendizei o Senhor,
louvai-o e exaltai-o para sempre!
62
Sol e lua, bendizei o Senhor,
louvai-o e exaltai-o para sempre!
63
Estrelas do céu, bendizei o Senhor,
louvai-o e exaltai-o para sempre!
64
Chuvas e orvalhos, bendizei o Senhor,
louvai-o e exaltai-o para sempre!
65
Todos os ventos, bendizei o Senhor,
louvai-o e exaltai-o para sempre!
66
Fogo e ardor, bendizei o Senhor,
louvai-o e exaltai-o para sempre!
67
Frio e calor, bendizei o Senhor:
louvai-o e exaltai-o para sempre!
68
Orvalhos e gelos, bendizei o Senhor,
louvai-o e exaltai-o para sempre!
69
Geada e frio, bendizei o Senhor,
louvai-o e exaltai-o para sempre!
70
Gelos e neves, bendizei o Senhor,
louvai-o e exaltai-o para sempre!
71
Noites e dias, bendizei o Senhor,
louvai-o e exaltai-o para sempre!
72
Luz e trevas, bendizei o Senhor,
louvai-o e exaltai-o para sempre!
73
Relâmpagos e nuvens, bendizei o Senhor,
louvai-o e exaltai-o para sempre!
74
Bendiga a terra o Senhor,
louve-o e exalte-o para sempre!
75
Montanhas e colinas, bendizei o Senhor,
louvai-o e exaltai-o para sempre!
76
Todas as coisas que germinam da terra, bendizei o Senhor,
louvai-o e exaltai-o para sempre!
77
Fontes, bendizei o Senhor,
louvai-o e exaltai-o para sempre!
78
Mares e rios, bendizei o Senhor,
louvai-o e exaltai-o para sempre!
79
Monstros marinhos
Daniel 3 18
b
O título Deus Altíssimo ( em hebraico: El-Elion), é frequente nos Salmos (cf. Sl 7,18; 9,3; 18,14;
21,8; 46,5; etc.) e aparece também na boca de não judeus como confissão de fé no Deus de
Israel (cf. Gn 14,18; 19.20-22; Nm 24,16; Is 14,14). O autor do livro de Daniel transforma o rei
Nabucodonosor numa espécie de gentio piedoso, capaz de reconhecer o Deus de Israel como o
Deus supremo e todo-poderoso.
c
O c. 4 do livro de Daniel tem a forma de uma epístola ou carta circular, que começa nos últimos
versículos do c. 3. O rei Nabucodonosor dirige-se a todos os povos da terra para lhes dar a
conhecer o que lhe sucedeu e confessar a sua fé no Deus Altíssimo. Dn 3,98-100 é a introdução
desta carta (incluindo a lista dos destinatários e uma doxologia) e 4,31-34 é a sua conclusão,
onde o relato volta à primeira pessoa do singular e inclui uma dupla doxologia.
Daniel 4 20
4 1
Novo sonho de Nabucodonosor (2,1-2.28; 5,5-16; Gn 41,1-24; Jz 9,8-15;
Ez 17; 31; Lc 13,18-19)
Eu, Nabucodonosor, estava tranquilo na minha casa e prosperava no meu
palácio. 2Tive um sonhoa que me aterrorizou; os pensamentos que tive sobre o
meu leito e as visões da minha mente deixaram-me perturbado. 3Mandei que
fossem trazidos à minha presença todos os sábios da Babilónia, a fim de me
darem a conhecer a interpretação do sonho. 4Vieram então à minha presença
os magos, os adivinhos, os caldeus e os astrólogos e relatei-lhes o sonho, mas
eles não me deram a conhecer a sua interpretaçãob.
5
Finalmente, veio à minha presença Daniel, chamado Beltechaçar de acor-
do com o nome do meu deus. Nele reside o espírito dos deuses santos. E eu
relatei-lhe o meu sonho, dizendo: 6‘Beltechaçar, chefe dos magos, eu sei que
o espírito dos deuses santos reside em ti e nenhum mistério te levanta dificul-
dades. Considera, pois, o sonho que tive e diz-me a sua interpretação. 7Foram
estas as visões da minha mente, quando estava no meu leito.
Estava eu a olhar
e eis que havia uma árvore
que estava no meio da terra
e a sua altura era muito grande.
8
A árvore cresceu e tornou-se forte;
o seu topo chegava aos céus
e avistava-se dos confins de toda a terra.
9
A sua folhagem era bela e o seu fruto, abundante;
nela havia alimento para todos.
Debaixo dela abrigavam-se os animais do campo
e nos seus ramos moravam as aves do céu.
E dela se alimentavam todas as criaturasc.
10
Estando eu a contemplar as visões
da minha mente sobre o meu leito,
eis que vi um vigilante, um santod, a descer dos céus.
a
Lit.: vi um sonho. Isto significa que os conceitos de sonho e de visão se equivalem, partilhando
as mesmas expressões.
b
Tal como em Dn 2, os sábios da Babilónia mostram-se incapazes de interpretar o sonho do rei.
Mas em Dn 4 o rei relata o sonho tanto aos sábios como a Daniel e só lhes pede que o interpre-
tem. Daniel vai-se mostrar novamente o único capaz de esclarecer Nabucodonosor.
c
O sonho do rei começa por descrever uma árvore de proporções gigantescas, que oferece alimen-
to e abrigo a todos os animais da terra. No mundo antigo, era comum usar este motivo de uma
árvore cósmica para descrever o rei e a prosperidade e proteção que os seus súbditos esperavam
dele (cf. Jz 9,8-15; Ez 17; Lc 13,18-19). A destruição ou queda da árvore era símbolo da queda
do rei e da casa real. Cf. Ez 31, onde o faraó do Egito é comparado a um cedro do Líbano que
será abatido e espezinhado.
d
O vigilante, identificado como santo, é um termo usado em Daniel e na literatura judaica in-
tertestamentária (livro de Henoc, livro dos Jubileus e textos de Qumran, etc.), para designar os
anjos na sua função de sentinelas divinas (cf. Zc 4,10).
21 Daniel 4
11
Ele gritava com força e dizia:
“Derrubai a árvore, cortai os seus ramos,
despojai-a da sua folhagem
e lançai fora os seus frutos!
Que os animais fujam de debaixo dela
e as aves, dos seus ramos.
12
Mas o cepo com as suas raízes, deixai-o na terra,
ligado com cadeias de ferro e de bronze.
Que ele seja molhado pelo orvalho dos céus
e partilhe com os animais a verdura da terra.
13
E que o seu coração de humano seja mudado
e lhe seja dado um coração de animal.
E sete tempos passem sobre elee.
14
Esta é a sentença decretada pelos vigilantes,
a decisão pronunciada pelos santosf,
a fim de que toda a criatura saiba
que o Altíssimo tem poder sobre a realeza dos homens;
e que Ele a dá a quem lhe apraz
e pode erguer a essa realeza
mesmo o mais humilde dos homens”.
15
Foi este o sonho que eu, o rei Nabucodonosor, tive. Agora tu, Beltechaçar,
diz-me a interpretação, pois todos os sábios do meu reino não conseguem dar-
-me a conhecer a interpretação, mas tu és capaz, porque o espírito dos deuses
santos está em ti.’
és tu, ó rei, que cresceste e te tornaste forte; a tua grandeza elevou-se até aos
céus e o teu domínio estendeu-se até aos confins da terra.
20
E quanto ao que o rei viu, que um vigilante e santo descia dos céus e
bradava: “Derrubai a árvore e destruí-a, mas deixai o cepo com as suas raízes
na terra, ligado com cadeias de ferro e bronze e seja molhado pelo orvalho dos
céus e tenha parte com os animais do campo, até que tenham passado sobre ele
sete tempos”, 21esta é a interpretação, ó rei, e esta é a sentença do Altíssimo que
atingirá o rei, meu senhor. 22Serás expulso do meio dos homens e habitarás com
os animais do campo; dar-te-ão erva a comer como aos bois e serás molhado
pelo orvalho dos céus; passarão sobre ti sete tempos até que reconheças que
o Altíssimo tem poder sobre a realeza dos homens e que a entrega a quem
lhe apraz. 23Quanto ao que também foi dito, que se deixasse o cepo da árvore
com as suas raízes, significa que o teu reino te será restituído, quando tiveres
reconhecido a soberania dos céus.
24
Por isso, ó rei, que o meu conselho te pareça bem. Resgata os teus pecados
com obras de justiça e as tuas iniquidades sendo generoso para com os pobres.
Talvez assim se prolongue a tua prosperidade’a.
o seu corpo era molhado pelo orvalho dos céus, até que o seu cabelo se tornou
comprido como as plumas das águias e as suas unhas como as garras das aves.
d
No início do c. 5 surge uma nova personagem, o rei que é conhecido em português como Bal-
tasar, equivalente ao hebraico Belchaçar. É provável que o autor do livro esteja a referir-se à
figura histórica de Belchaçar, filho do rei Nabónido. Ele foi regente na Babilónia durante os dez
anos em que o seu pai esteve ausente em Temá (cf. nota 35), mas nunca chegou a ser rei nem
sucedeu a Nabónido, que foi aliás o último rei do império neobabilónico. O episódio relatado
é provavelmente ficção, podendo ter sido inspirado pela tradição de que, pouco antes da queda
da Babilónia, se celebrou naquela cidade um importante festival religioso (cf. Is 21,5; Jr 51,39).
Daniel 5 24
em temor e tremor diante dele. O rei mandava matar quem ele queria e deixava
com vida quem ele queria; exaltava quem queria e humilhava quem queria.
20
Mas, quando o seu coração se tornou altivo e o seu espírito empedernido
pela arrogância, foi deposto do seu trono real e foi-lhe retirada a glória. 21Foi
expulso do meio dos homens e o seu coração tornou-se semelhante ao dos
animais do campo; habitou entre burros selvagens, foi-lhe dado a comer erva
como aos bois e o seu corpo foi molhado pelo orvalho dos céus, até que reco-
nheceu que o Deus Altíssimo tem poder sobre a realeza dos homens e ergue
quem lhe apraz para essa funçãob. 22Mas, tu, Baltasar, seu filho, não te mostraste
humilde em teu coração, embora tudo isto fosse do teu conhecimento. 23Revol-
taste-te contra o Senhor dos céus; trouxeram-te os vasos do seu templo e deles
bebeste tu, os teus nobres, as tuas mulheres e as tuas concubinas, enquanto
louvavam os deuses de ouro, de prata, de bronze, de ferro, de madeira e de
pedra, que são cegos, surdos e sem entendimentoc, em lugar de dares glória
ao Deus em cujas mãos está a tua vida e o teu destino. 24Por isso, foi Ele que
fez com que aparecesse aquela extremidade da mão e que fosse gravada esta
inscrição.
25
Isto é o que está escrito: mené, tequel, parsind. 26E eis a sua interpretação:
mené significa que Deus calculou o número dos dias do teu reinado e pôs-lhe
um termo; 27tequel significa que, ao seres pesado na balança, foste considera-
do insuficiente; 28parsine significa que o teu reino foi dividido e entregue aos
medos e aos persas.”
29
Baltasar mandou então que revestissem Daniel de púrpura, que lhe colo-
cassem um colar de ouro ao pescoço e que proclamassem que ele era o terceiro
em autoridade no reino.
30
Nessa mesma noite, foi morto Baltasar, rei dos caldeus.
b
Sobre a possível referência histórica deste episódio, relatado em Dn 4, cf. nota 35.
c
Sobre esta forma tradicional de caracterizar os ídolos pagãos, cf. Dt 4,28; Sl 115,4-8; 135,15-18,
Ap 9,20; e ainda Dn 14.
d
O texto em aramaico repete o primeiro dos três termos (mené). Não há consenso em relação ao
significado original dos três termos, mas é possível que sejam designações de pesos ou moedas
orientais. O autor interpreta os termos à luz das raízes verbais aramaicas mnh, tql e prs, que
significam, respetivamente, medir ou calcular, pesar e dividir.
e
O texto aramaico diz: perás que parece ser o singular de parsin (v. 25). Como substantivo,
no singular seria a Pérsia e no plural, os persas. Para a narrativa em questão, ambas as formas
podem servir.
Daniel 6 26
ministros, um dos quais era Daniel; os sátrapas prestavam contas aos ministros,
a fim de não incomodarem o reia.
4
Ora, Daniel destacava-se dos ministros e sátrapas, porque havia nele um
espírito superior; o rei pensava, por isso, colocá-lo à cabeça de todo o reino. 5Os
ministros e sátrapas procuravam motivos para acusar Daniel de alguma falta,
nos assuntos da realeza. Mas não conseguiram encontrar qualquer culpa ou
falta, porque ele era íntegro e não se encontrava nenhum erro ou falta contra ele.
6
Disseram então aqueles homens: “Não encontraremos motivo algum para
acusar Daniel, a não ser no que respeita à lei do seu Deus”. 7Os ministros e
sátrapas acorreram então em tropel à presença do rei e disseram-lhe: “Que o
rei Dario viva para sempre! 8Todos os ministros do reino, os magistrados, os
sátrapas, os conselheiros e os governadores estão de acordo que o rei deve
declarar por decreto real e dispor com força de lei o seguinte: todo aquele que,
no prazo de trinta dias, dirigir preces a outro deus ou homem além de ti, ó rei,
será lançado na cova dos leões. 9Promulga, pois, ó rei, este interdito e coloca-o
por escrito para que seja inalterável conforme a lei dos medos e dos persas,
que é irrevogável.”
10
O rei Dario colocou então por escrito o interditob.
Daniel na cova dos leões (3; 14,23-42; 2Rs 19,35/Is 37,36; 2Mac 10,29-30;
Mt 28,2; Heb 11,33)
11
Quando Daniel tomou conhecimento do documento escrito, dirigiu-se a
sua casa, em cujo andar superior havia janelas orientadas na direção de Jerusa-
lém. Ali ele se punha de joelhos três vezes por dia, a fim de pedir e dar graças
ao seu Deus, como sempre havia feito antesc. 12Numa dessas ocasiões, aqueles
homens acorreram em tumulto e encontraram Daniel a dirigir preces e súplicas
ao seu Deus.
a
O c. 6 introduz a figura de Dario, um rei com origem na Média que teria herdado o império
neobabilónico. Não há registo da existência de nenhum rei de origem meda com este nome e
sabe-se que o império neobabilónico caiu às mãos dos persas e não dos medos. É provável que
o autor se tenha inspirado na figura de Dario I, rei persa e um dos sucessores de Ciro, a quem
as crónicas atribuem a reorganização do império persa (cf. 6,2). A decisão de introduzir um rei
de origem meda entre o último dos reis neobabilónicos e o primeiro dos reis persas, Ciro, pode
ter sido motivada pela referência a quatro reinos na sequência da história subjacente ao sonho
de Nabucodonosor (c. 2).
b
Os reis persas eram tolerantes no que diz respeito à liberdade religiosa e cultual dos povos do
império. É, por isso, pouco provável que o texto se refira a acontecimentos históricos: o autor
está mais interessado na lição teológica que no rigor historiográfico. A referência ao castigo da
cova dos leões pode ter sido inspirada pelo uso desta metáfora nos salmos (cf. Sl 57,5). Sobre
o carácter irrevogável dos decretos reais, cf. Est 1,19; 8,8.
c
A insistência na oração pessoal torna-se uma das marcas do judaísmo pós-exílico. A prática
de se orientar para Jerusalém em oração é aconselhada ou prescrita em 1Rs 8,35 e em escritos
apócrifos mais tardios, como o Esdras grego. Sobre a obrigação ou hábito de rezar três vezes
por dia, cf. Sl 55,17. Sobre o pôr-se de joelhos, cf. 1Rs 8,54; Esd 9,5; Lc 22,41; At 7,60; etc.
27 Daniel 6
real: “Não decretaste tu, ó rei, que todo aquele que, no período de trinta dias,
dirigisse preces a outro deus ou homem além de ti, seria lançado na cova dos
leões?” Respondeu o rei: “Assim foi, conforme a lei dos medos e dos persas,
que é irrevogável”. 14Então eles replicaram e disseram diante do rei: “É que
Daniel, um dos exilados da Judeia, não tem feito caso de ti, ó rei, nem do
interdito que promulgaste. Três vezes por dia, ele entrega-se à oração.” 15Ao
ouvir estas palavras, o rei ficou muito perturbado e pôs na ideia livrar Daniel;
e até ao pôr-do-sol esforçou-se por salvá-lo. 16Mas aqueles homens acorreram
de novo à presença do rei e disseram-lhe: “Fica a saber, ó rei, que é de lei
entre os medos e persas que os interditos e decretos que o rei promulga não se
devem mudar.”
17
O rei ordenou então que trouxessem Daniel e que o lançassem na cova dos
leões. Porém, o rei tomou a palavra e disse a Daniel: “O teu Deus, a quem tu
prestas culto fielmente, certamente te salvará”. 18Trouxeram ainda uma pedra
e colocaram-na sobre a abertura da cova. O rei mandou selar a pedra com os
sinetes do rei e dos seus nobres, para impedir que se alterasse a sentença a
respeito de Daniel. 19Depois, o rei recolheu-se ao seu palácio e passou a noite
em jejum, não mandou vir quaisquer diversõesd à sua presença e naquela noite
o sono afastou-se dele.
20
De madrugada, ao despontar da aurora, o rei levantou-se da cama e diri-
giu-se apressadamente para a cova dos leões. 21Ao aproximar-se da cova, o rei
gritou com voz aflita por Daniel, e, dirigindo-se a ele, disse: “Daniel, servo
do Deus vivo, será que o teu Deus, a quem fielmente prestas culto, conseguiu
salvar-te dos leões?” 22Daniel respondeu assim ao rei: “Que o rei viva para
sempre! 23O meu Deus enviou o seu anjo e fechou a boca dos leões e eles não
me fizeram mal, porque aos olhos de Deus estou inocente e também diante de
ti, ó rei, não cometi falta alguma”e.
24
Então o rei encheu-se de alegria por ele e ordenou que retirassem Daniel
da cova. Retiraram-no da cova e não lhe encontraram qualquer ferimento,
porque tinha confiado no seu Deus. 25Por ordem do rei, trouxeram os homens
que tinham feito a acusação contra Daniel e lançaram-nos na cova dos leões,
com os seus filhos e as suas mulheresf. E ainda não tinham chegado ao fundo
da cova, quando os leões se apoderaram deles e trituraram todos os seus ossos.
d
A expressão aqui usada só aparece neste texto e pode entender-se como significando diversos
tipos de diversões, tais como comida, música ou concubinas.
e
Daniel interpreta o que lhe sucedeu à luz da prática judicial do ordálio, também conhecida como
juízo de Deus: o facto de ter escapado ileso da cova dos leões é a prova da sua inocência diante
de Deus e do rei (cf. o caso da mulher suspeita de adultério em Nm 5,11-31).
f
A inclusão dos filhos e das mulheres no castigo reflete o antigo princípio da responsabilidade
corporativa (cf. 2Sm 21,1-14; Ez 18).
Daniel 7 28
O primeiro era como um leão, mas tinha asas de águia. Enquanto estava a
4
a
O cenário altera-se ligeiramente e a visão é agora do trono celeste (cf. 1Rs 22,19; Is 6; Ez 1;
3,22-24; 10,1; Mt 19,28; Ap 20,4). A figura do ancião representa Deus; a brancura é frequen-
temente associada à santidade e ao esplendor dos seres angelicais ou divinos (cf. Mt 28,3; Mc
9,2; Ap 3,5). O fogo é frequente nas teofanias (cf. Ex 3,2; 19,18; Dt 5,4; Ez 1,4). Sobre as rodas
de fogo do carro divino, cf. Ez 1,15-21; 10,2.
b
Daniel contempla agora o juízo e a condenação dos quatro animais. Os livros são o registo
celeste do que sucede no mundo (cf. Sl 56,9; Is 65,6; Ml 3,16; Ap 20,12-13) e, uma vez abertos
e consultados, oferecem a matéria que justifica a condenação à morte do quarto animal e as
penas aplicadas aos outros três.
c
Esta referência a um ser semelhante a um filho de homem, que se aproxima sobre as nuvens do
céu, é uma das passagens bíblicas mais discutidas. Em contraste com os animais monstruosos,
esta figura chega das nuvens e aparece estreitamente associada ao ancião, isto é, a Deus e tam-
bém, segundo a interpretação da visão (Dn 7,18.22.27), ao povo dos santos do Altíssimo. Em
textos intertestamentários, como o livro de Henoc ou 2Esdras, esta figura divina ou quase-divina
de aspeto humano foi assumindo matizes messiânicos. O Novo Testamento segue nesta linha e
aplica este texto a Jesus (cf. Mt 24,30; 26,64; Mc 14,53-65; Lc 5,24; 22,69-70; At 7,56; Ap 1,7;
14,14). A tradição judaica e cristã tem assumido, em certa medida, a interpretação individual e
messiânica desta personagem em Dn 7,13. Mas alguns autores pendem para uma interpretação
coletiva desta figura simbólica.
31 Daniel 7
d
Ao contrário do que sucedia até aqui, o protagonista Daniel vê-se incapaz de decifrar o signifi-
cado da visão. É próprio do género apocalíptico recorrer à figura de um anjo ou outro ser celeste
que esclareça o interlocutor humano sobre o significado das visões (cf. Zc 1-6).
e
A expressão santos do Altíssimo parece referir-se, nesta passagem e no resto do c. 7, bem como
em 8,24, aos membros do povo de Deus (cf. Ex 19,6; Dt 7,6; 26,19; Sl 34,10; 1Mac 1,46; 1Cor
14,33; Fl 1,1). Entretanto, o texto aramaico serve-se, aqui e nos vv. 22, 25 e 27, de uma fórmula
de duplo plural: santos dos altíssimos, que alguns tentaram compreender como referindo-se aos
anjos.
f
O texto refere-se, neste ponto e no v. 25, à perseguição desencadeada pelo rei Antíoco IV
Epifânio contra a lei e os costumes judaicos na década de sessenta do séc. II a.C. (cf. Dn 8,9-
12; 9,26-27; 11,30-35; 1Mac 1,41-64; 6,6). O facto de o texto não se referir explicitamente à
profanação do templo (cf. Dn 8-12) pode sugerir que foi escrito nos primeiros meses daquela
perseguição, em finais do ano 167 a.C.
Daniel 8 32
a
A expressão literal um tempo, tempos e a metade de um tempo sugere um período de três anos
e meio, entendo cada tempo como um ano e o plural tempos como referindo-se a dois. O todo
corresponde a metade de uma semana de anos (cf. 8,14; 9,27; 11,36; 12,7; Ap 12,14; 13,5). O
vocábulo aramaico aqui usado e o equivalente hebraico usado em 12,7 têm a ver, não com o
tempo em geral, mas com os períodos estabelecidos do tempo das festas, um tempo sagrado.
b
A partir daqui e até ao final do capítulo 12, o texto volta a ser em hebraico.
c
Susa era a residência de inverno dos monarcas persas (cf. Ne 1,1; Est 1,2). O Ulai era um
importante canal artificial que passava às portas da cidade de Susa.
d
O carneiro representa o império dos Medos e dos Persas, que chegou a expandir-se até à Ásia
Menor e ao Egito.
33 Daniel 8
para lhe resistir. Atirou-o por terra e calcou-o aos pés; e não havia ninguém
para livrar o carneiro do seu podere.
8
O bode prosperou extraordinariamente, mas, no auge do seu poder, que-
brou-se o chifre grande e, em seu lugar, quatro outros chifres surgiram bem
visíveis, voltados para os quatro ventos dos céusf.
9
De um deles saiu um chifre pequeno, que cresceu e se estendeu bastante
para sul e para oriente, até à terra formosag. 10Cresceu até às alturas do exército
celeste e fez cair sobre a terra uma parte do exército celeste e das estrelas do
céu, calcando-os aos pés. 11Levantou-se mesmo contra o chefe do exército
celeste, aboliu o sacrifício perpétuo e foi profanado o lugar do seu santuário.
12
Um exército arremeteu contra o sacrifício perpétuo e atirou a verdade por
terra; assim fez e prosperouh.
13
Enquanto ouvia um dos santos falar, outro santo perguntou-lhe: ‘Até
quando durará esta visão do sacrífico perpétuo, da iniquidade devastadora, do
santuário abandonado e do exército calcado aos pési?’ 14E ele respondeu-me:
‘Duas mil e trezentas tardes e manhãsj. Depois disso, o santuário será resta-
belecido na justiça.’
e
O bode representa o império dos Gregos. O chifre grande é Alexandre Magno; o texto faz
também alusão à rapidez com que os exércitos gregos conquistaram os vastos territórios do
império persa entre 334 e 330 a.C.
f
A referência é aos quatro generais que herdaram o império de Alexandre, os Diádocos: Ptolomeu
I Sóter, Filipe III Arrideu, Antígono Monoftalmo e Seleuco I Nicátor.
g
O chifre pequeno é Antíoco IV Epifânio (175-164 a.C., cf. Dn 7,8). A expressão terra formosa
designa o território de Israel (cf. Dn 11,16.41; Ez 20,6.15; Zc 7,14).
h
A descrição dos atos de Antíoco Epifânio adquire uma dimensão cósmico-mitológica: a sua
perseguição contra os judeus e contra os seus costumes religiosos é uma batalha contra as forças
celestes, lideradas pelo próprio Deus, chefe do exército celeste. Alguns autores, baseando-se em
Daniel 12,3, afirmam que o exército celeste e as estrelas a que o texto se refere são o símbolo
do Israel de Deus (cf. Ap 12,4). No contexto, porém, a referência parece ser ao exército dos
anjos (cf. Js 5,14; Jz 5,20; 1Rs 22,19; 2Cr 18,18). Sobre a elevação até às estrelas como uma
alegoria, cf. Is 14; 2Mac 9,10. Sobre o sacrifício perpétuo, cf. Ex 29,38-42; Nm 28,2-8.
i
A pergunta-refrão Até quando… exprime o forte desejo de que Deus ponha fim à desgraça (cf.
12,6; Sl 6,4; 79,5; 80,5; 90,13; Is 6,11; Jr 12,4; Zc 1,12; Ap 6,10). A iniquidade devastadora
parece ser uma referência à profanação do altar do templo de Jerusalém por meio da introdução
de cultos pagãos; a designação equivale a outras expressões usadas em 9,27; 11,31; 12,11.
j
Ou seja, 1150 dias; compare-se Dn 7,25: três anos e meio = 1260 dias; Dn 12,11: 1290 dias;
Dn 12,12: 1335 dias. De acordo com 1Mac 4,52-54, o templo de Jerusalém permaneceu em
estado de profanação durante 1133 dias. Esta discrepância parece indiciar um processo de
revisão interna da cronologia do fim dos tempos, que poderá ter sido motivado por sucessivos
retardamentos no cumprimento do que se esperava que sucedesse. Tardes e manhãs refere-se
ao tempo dos dois sacrifícios diários.
Daniel 8 34
homem. 16Ouvi então uma voz humana gritar do meio do Ulai e pronunciar
estas palavras: ‘Gabriel, faz com que esse homem entenda a visão’a!
17
Ele veio ao meu encontro e, ao vê-lo aproximar-se, senti grande temor e
caí de rosto por terra. Gabriel disse-me: ‘Compreende, filho de homem, que
esta visão se refere aos tempos do fim’b. 18Enquanto ele falava comigo, abateu-
-se sobre mim um sono pesado, ficando eu de rosto por terra. Mas ele tocou-me
e pôs-me de pé no meu lugar.c 19E ele continuou: ‘Vou dar-te a conhecer o que
sucederá no tempo futuro da ira, pois o fim tem o tempo fixadod. 20O carneiro
de dois chifres que viste são os reis da Média e da Pérsia. 21O bode peludo é
o rei da Grécia e o chifre grande que ele tem entre os olhos é o primeiro rei.
22
Quebrou-se o chifre e, em seu lugar, ergueram-se quatro: são quatro reinos
que surgiram deste povo, mas sem a força do primeiro.
23
No final do seu reinado,
quando os malfeitores tiverem enchido a medidae,
levantar-se-á um rei de rosto forte, capaz de compreender enigmas.
24
O poder da sua força crescerá, mas não por si mesmo;
será um portento de destruição e prosperará e atuará;
aniquilará os poderosos e o povo dos santos.
25
Pela sua inteligência, o engano triunfará nas suas mãos
e crescerá no seu coração.
Aniquilará muitos que estão em sossego
e levantar-se-á contra o príncipe dos príncipes.
Mas será quebrado sem intervenção de mão humanaf.
26
A visão sobre as tardes e as manhãs,
que te foi comunicada, é verdadeira;
a
Cf. 9,21; Lc 1,19.26.
b
Ou: o tempo do fim (cf. Dn 11,35.40; 12,4.9.13). A expressão é equivalente a nos últimos dias
(Dn 2,28; 10,14; n. 11) e parece ter, pelo menos em Dn 8,17; 11,35.40, o mesmo sentido, isto é,
serve para designar o que sucederá no futuro e que terá um certo sentido de final (cf. Hab 2,3).
No c. 12, contudo, a referência ao juízo e à ressurreição dos mortos (12,1-3.13) parece implicar
que a expressão fim dos tempos alude, neste caso, ao fim da história.
c
Cf. 10,10.16.18; Gn 15,12; Ap 1,17.
d
Trata-se da ira com que Deus deverá intervir para libertar Israel dos sofrimentos impostos pelos
impérios pagãos (cf. 8,23; Is 10,5; Zc 1,12; cf. Dn 11,36).
e
Sobre a ideia de que os malfeitores devem encher a sua medida antes do castigo, cf. Gn 15,16;
2Mac 6,14.
f
A referência à morte de Antíoco Epifânio, aqui como em Dn 11,45, não parece corresponder ao
que sucedeu em 164 a.C. Os livros dos Macabeus apresentam três versões distintas da morte de
Antíoco Epifânio (1Mac 1,14-16; 6,1-17; 2Mac 9,1-29), mas parecem estar de acordo quanto
ao facto de que a morte do rei Antíoco teve lugar na Pérsia, no contexto de uma tentativa de
assalto a um templo (cf. a crónica do historiador grego Políbio). Para o autor do texto, trata-se
de insistir que será o próprio Deus quem castigará Antíoco Epifânio, numa referência à pedra
que se desprende sem intervenção de mão humana (Dn 2,34).
35 Daniel 9
9 Profecia dos setenta anos de desolação (Jr 25,11-14; 29,10; 2Cr 36,20-
22; Esd 1,1; Zc 1,12)
1
“No primeiro ano de Dario, filho de Assuero, da descendência dos medos,
que se tornou rei do reino dos caldeush, 2no primeiro ano do seu reinado, eu,
Daniel, indaguei nos registos o número de anos que, segundo a palavra do
SENHOR dirigida ao profeta Jeremias, teriam de passar sobre as ruínas de
Jerusalém: eram setenta anosi.
g
Cf. Dn 10,1.14; 11,2; 12,4.9; Ap 10,4; 19,9; 21,5; 22,6.10.
h
Sobre o rei Dario, cf. 6,10 nota. A referência a Assuero (no texto grego, Xerxes) é igualmente
problemática do ponto de vista histórico: se se trata do rei Xerxes I, este era filho e não pai do
rei Dario I, a quem o texto parece aludir (cf. Esd 4,5-6).
i
A referência é à profecia de Jeremias (Jr 25,11-14; 29,10). Os setenta anos são, na profecia de
Jeremias, um período de tempo simbólico que representa a duração de uma vida humana. De
acordo com 2Cr 36,20-22, os setenta anos são o período compreendido entre a destruição do
templo (587 a.C.) e a sua restauração no tempo de Ciro (cf. Esd 1,1). De acordo com Zc 1,12,
os setenta anos iriam até ao segundo ano de Dario (c. 519 a.C.). O autor de Dn 9 faz uma nova
interpretação da profecia no contexto do período helenístico.
j
A oração de Daniel pertence ao género literário de confissão comunitária do pecado (cf. 3,25-
45; Esd 9,5-15; Ne 1,4-11; 9,5-37; Est 4,17k-z; Sl 78; 106; Br 1,15-3,8). Num texto que é um
verdadeiro mosaico de citações bíblicas, Daniel pede perdão a Deus pelos pecados do povo,
que são a verdadeira razão da ruína de Jerusalém; e suplica-lhe que, na sua misericórdia, ponha
termo à desolação.
k
Cf. 1Rs 8,47; 2Cr 6,37; Sl 106,6; Br 1,17.
l
Cf. Ne 9,34; Jr 7,25; 26,5; 29,19; 35,15; 44,4–5.
Daniel 9 36
onde os dispersaste por causa das iniquidades que cometeram contra tia. 8A nós,
SENHOR, pertence a vergonha, bem como aos nossos reis, aos nossos príncipes
e aos nossos pais, pois pecámos contra ti.
9
No Senhor, nosso Deus, está a compaixão e o perdão, porque nos revoltá-
mos contra Eleb: 10não escutámos a voz do SENHOR, nosso Deus, nem segui-
mos as suas leis, que nos deu por meio dos profetas, seus servosc.
11
Todo o Israel transgrediu a tua lei e se afastou, deixando de escutar a tua
voz. Recaiu então sobre nós a maldição feita com juramento, que está escrita
na lei de Moisés, servo de Deus, porque pecámos contra Eled. 12E Ele cumpriu
as suas palavras que proferiu contra nós e contra aqueles que nos governavam
e fez recair sobre nós uma grande calamidade.Nada debaixo de todos os céus
se compara ao que aconteceu em Jerusalém. 13Toda esta desgraça recaiu sobre
nós em conformidade com o que está escrito na lei de Moisés, mas, ainda
assim, não implorámos o SENHOR, nosso Deus, renunciando à iniquidade e
confiando na sua fidelidade. 14O SENHOR esteve atento no que diz respeito a
esta calamidade e fê-la recair sobre nós, porque o SENHOR, nosso Deus, é justo
em todas as obras que Ele realizou. Nós, porém, não escutámos a sua voze.
15
Agora, Senhor, nosso Deus, Tu que fizeste sair o teu povo da terra do
Egito com mão forte e adquiriste para ti um nome que ainda hoje perdura, nós
pecámos e praticámos o malf. 16Senhor, na tua justiça, afasta a tua ira e a tua
indignação da tua cidade, Jerusalém, a tua montanha santa, pois é pelos nossos
pecados e pelas iniquidades dos nossos pais que Jerusalém e o teu povo se
tornaram objeto de escárnio entre todos os que nos rodeiamg.
17
Agora, ó nosso Deus, escuta a oração e as súplicas do teu servo e, pela
honra do Senhor, faz brilhar a tua face sobre o teu santuário devastadoh. 18Inclina
o teu ouvido, meu Deus e escuta; abre os teus olhos e vê as nossas devastações
e a cidade sobre a qual é invocado o teu nome, porque não é em atenção aos
nossos méritos que colocamos a teus pés as nossas súplicas, mas por causa da
tua grande misericórdiai.
19
Escuta, Senhor! Perdoa, Senhor! Atende, Senhor e intervém! Pela tua
honra, ó meu Deus, não tardes, porque o teu nome é invocado sobre a tua
cidade e sobre o teu povo.’
a
Cf. Esd 9,7; Jr 16,15; 23,3; 32,37; Br 1,15.
b
Cf. Ne 9,17.
c
Cf. Ex 15,26; 19,5; Dt 4,30; 2Rs 17,13; Esd 9,11.
d
Cf. Lv 26,14-39; Dt 28,15-68.
e
Cf. Esd 9,15; Ne 9,8.33.
f
Cf. 3,31.41; Dt 6,21; 9,26; Esd 9,8.10; Ne 9,10.32; Jr 32,20; Br 2,11.
g
Cf. Nm 25,4; Sl 44,14; Is 12,1; Jr 23,20; 30,24.
h
Cf. Nm 6,25; 1Rs 8,28; Ne 1,6.11; Is 48,11; Jr 14,7; Lm 5,18.
i
Cf. 1Rs 19,16/Is 37,17.
37 Daniel 9
26
Após essas sessenta e duas semanas,
um ungido será exterminado,
mas não por causa dele mesmo.
O exército de um príncipe que então virá
destruirá a cidade e o santuário;
acabará num cataclismo
e até ao fim
será a guerra decretada, a desolaçãoa.
27
Por uma semana,
fortalecerá uma aliança sólida com muitosb;
a meio da semana,
fará cessar o sacrifício e a ofertac;
no pináculo das abominações estará o devastadord
até se completar o tempo decretado
para a destruição do devastador.’ ”
10 1
Visão final: aparição do anjoe (8,15-18; 9,20-21; Ez 1; 9; 10; Ap
1,13.15)
No terceiro ano de Ciro, rei da Pérsia, foi revelada uma palavra a Daniel,
a quem chamavam Beltechaçar. A palavra era verdadeira e referia-se a uma
grande luta. Ele compreendeu a palavra e compreendeu o sentido da visão.
2
“Naqueles dias, eu, Daniel, estive de luto durante três semanas. 3Não pro-
vei nenhum alimento preferido, nem entraram na minha boca carne ou vinho,
nem me ungi com óleo perfumado, até se completarem as três semanasf. 4No
dia vinte e quatro do primeiro mês, estando eu nas margens do grande rio, o
rio Tigreg, 5levantei os olhos e vi um homem vestido de linho, cingido com
uma faixa de ouro puro. 6O seu corpo era semelhante ao topázio e o seu rosto
a
O texto refere-se, neste ponto, ao assassinato do sumo-sacerdote Onias III em 171 a.C. (cf. 11,22;
2Mac 4,23-28). O príncipe cujo exército destruirá a cidade e o santuário é Antíoco IV Epifânio.
b
Referência aos judeus helenizantes, aliados a Antíoco Epifânio (cf. 11,30-32; 1Mac 1,11-14;
2Mac 4-5).
c
Cf. 7,25.
d
A palavra hebraica equivalente a o devastador (cf. 11,31; 12,11) contém um trocadilho com o
nome de Baal-Chamém (Baal dos céus), que corresponde na Síria ao Zeus Olímpico. O texto
refere-se à profanação do altar do templo de Jerusalém no tempo de Antíoco Epifânio, que ali
terá mandado colocar uma estátua de Zeus Olímpico (cf. 1Mac 1,54). A expressão é utilizada
no NT, no contexto da descrição da destruição do segundo templo pelos romanos (cf. Mt 24,15;
Mc 13,14).
e
Os cc. 10 a 12 formam uma unidade: Daniel recebe a aparição de um anjo que lhe revela o que
sucederá durante o período helenístico (c. 11) e lhe anuncia a vitória final do anjo Miguel e a
salvação do povo de Deus (c. 12).
f
Ao contrário do que sucede no c. 9 (cf. 9,3), o luto a que Daniel se sujeita não tem carácter
penitencial; serve apenas como preparação para as revelações de cariz apocalíptico.
g
Cf. Dn 8,1.16; Ez 1,1. O rio Tigre é um dos dois grandes rios da região da Mesopotâmia.
39 Daniel 10
h
A descrição do ser de aspeto humano que aparece a Daniel em visão é fortemente inspirada no
livro de Ezequiel (Ez 1; 9,2.3.11; 10,2.6.7; cf. Ap 1,13.15).
i
Sobre a noção de que cada nação tem o seu anjo protetor, cf. Dt 32,8-9, segundo a versão dos
Setenta. Esta é a primeira referência na Bíblia ao anjo Miguel, cujo nome significa “quem é
como Deus?” e que, de acordo com Dn 10,21; 12,1, é o protetor do povo de Israel (cf. Ap 12,7).
j
Sobre a expressão nos dias futuros, cf. 2,28 e 8,17 nota.
k
Cf. Is 6,7; Jr 1,9.
Daniel 11 40
a
Ainda que o texto seja de difícil interpretação, é necessário distinguir o livro da verdade dos
livros referidos em 7,10. O livro da verdade pode ser o que contém a descrição do curso da
História como acontece na literatura apocalíptica. Um paralelo oriental poderia ser a chamada
“tábua dos destinos” da mitologia babilónica.
b
Os quatro reis persas a que aqui se faz referência são, muito provavelmente, Ciro, Dario, Assuero
(ou Xerxes) e Artaxerxes, os únicos monarcas persas a que se refere o texto bíblico (cf. 7,6; Esd
4,5-7).
c
Referência ao reinado de Alexandre Magno (cf. 8,5-8).
d
O rei do Sul ou do Egito é Ptolomeu I Sóter. O general Seleuco I Nicátor, um dos seus oficiais,
acabará por se tornar independente e fundar a dinastia dos Selêucidas, que exercerá domínio
sobre os vastos territórios asiáticos conquistados por Alexandre Magno, o reino do Norte.
e
Ou: o seu progenitor, segundo o TM.
f
O texto refere-se ao casamento de Antíoco II Teos, neto de Seleuco, com a princesa Berenice,
filha de Ptolomeu II Filadelfo. Depois da morte de Antíoco II, Berenice, o filho de ambos e uma
parte da sua corte serão assassinados no decurso de uma conspiração liderada pela primeira
mulher de Antíoco, Laódice.
41 Daniel 11
longe do rei do Norte. 9Este atacará o reino do rei do Sul, mas regressará ao
seu paísg.
10
Os seus filhos levantar-se-ão para a guerra, reunindo uma multidão nume-
rosa de soldados, chegando como uma enxurrada que transborda; e de novo
levantar-se-ão em guerra até à fortalezah. 11O rei do Sul ficará furioso e sairá a
combater contra ele, contra o rei do Norte, que terá então reunido uma nume-
rosa multidão, mas essa multidão cairá na mão do rei do Suli. 12Quando esta
multidão for dispersa, ele encher-se-á de soberba e abaterá dezenas de milhares,
mas não se fortalecerá.
13
O rei do Norte voltará a constituir um exército maior que o primeiro e, ao
fim de alguns tempos, alguns anos, chegará de novo com um grande exército e
uma vasta comitiva. 14Naqueles tempos, muitos se levantarão contra o rei do Sul
e surgirão homens violentos do meio do teu povo, para cumprir a visão, mas hão
de fracassar. 15Avançará então o rei do Norte, construirá uma rampa de ataque
e acabará por capturar a cidade fortificada. As forças do reino do Sul, mesmo
as suas tropas de elite, não lhe poderão resistir. Não há força que lhe resistaj.
16
O invasor agirá conforme a sua vontade, já que ninguém lhe oporá resis-
tência. Instalar-se-á na terra formosak e esta fica toda na sua mão. 17Ele tem em
mente chegar a conquistar todo o seu reino. Estabelecerá um acordo com o rei
e dar-lhe-á em casamento uma das suas filhas, a fim de o arruinar. Mas a ideia
não vingará e não se realizará a favor delel.
18
Voltar-se-á então para as ilhas e conquistará muitas delas, até que um chefe
militar porá termo ao insulto, sem lhe responder com insultom. 19Dirigir-se-á
finalmente às fortalezas do seu próprio país, mas vai fracassar e, caindo em
desgraça, não mais será encontradon.
g
Trata-se do irmão de Berenice, Ptolomeu III Evergetes, que herdou o trono dos Ptolomeus em
246 a.C. Como vingança pelo assassinato da sua irmã, invadiu a Síria e venceu em batalha
Seleuco II Calínico, filho de Laódice. Este último acabou por se recompor do ataque e retribuir
o golpe, ainda que sem sucesso.
h
Os filhos de Seleuco II Calínico são Seleuco III Sóter e Antíoco III, o Grande.
i
A referência é à vitória de Ptolomeu IV Filopátor sobre Antíoco III em Rafia, em 217 a.C.
j
Alguns anos depois, após a morte de Ptolomeu IV, Antíoco III volta a atacar o reino dos Pto-
lomeus, agora sob a liderança de Ptolomeu V Epifânio. Vencendo o exército de Ptolomeu em
Bânias (mais tarde, Cesareia de Filipe), Antíoco passa a exercer domínio sobre o território da
Palestina, onde distintas fações parecem ter-se envolvido em conflitos violentos. O parágrafo
termina com uma referência à tomada de Sídon, em 198 a.C., por Antíoco III.
k
Sobre a expressão terra formosa, cf. nota a 8,9.
l
Antíoco III fará um acordo de paz com Ptolomeu V e dar-lhe-á em casamento a sua filha Cleó-
patra. O objetivo era usurpar a liderança de Ptolomeu V, mas Cleópatra acabou por tomar o
partido do marido e condenar ao fracasso o plano do pai.
m
Antíoco III volta-se para a Ásia Menor e acaba por conquistar um certo número de ilhas gregas,
acabando por enfrentar-se com os romanos, que lhe impõem pesada derrota em Magnésia em
190 a.C. O chefe militar é Cipião, cônsul romano, que liderou as tropas romanas em Magnésia.
n
Antíoco III retira-se para os seus domínios na Ásia e acaba por morrer assassinado em 187 a.C.,
no decurso de uma tentativa falhada de saquear o templo de Bel em Elam. O saque destinava-se
a pagar o pesado tributo que lhe tinha sido imposto pelos romanos.
Daniel 11 42
esplendor do reino, mas, em apenas alguns dias, será destruído, ainda que não
em resultado de fúria ou de guerraa.
santa e agirá contra ela, mas voltou a dar atenção àqueles que tinham abandona-
do a aliança santa. 31Da parte dele erguer-se-ão forças para profanar o santuário,
a fortaleza; abolirão o sacrifício perpétuo e estabelecerão a abominação devas-
tadorai. 32Com palavras de lisonja, atrairá à apostasia os que tiverem violado a
aliança, mas o povo daqueles que conhecem o seu Deus resistirá e cumprirá.
33
Os homens sabedores de entre o povo instruirão um grande número, mas,
por um tempo ainda, sucumbirão pela espada e pelo fogo, pelo cativeiro e pela
pilhagem, durante dias. 34Ao sucumbirem, será pouca a ajuda que receberão;
muitos juntar-se-ão a eles com hipocrisia. 35Alguns dos sabedores sucumbirão,
a fim de serem provados, purificados e branqueados até ao tempo do fim, pois
ainda não é o tempo determinadoj.
36
O rei agirá segundo a sua vontade; orgulhar-se-á e exaltar-se-á acima
de todos os deuses e proferirá palavras arrogantes contra o Deus dos deusesk.
Prosperará apenas até que se encha a medida da cólera, pois foi decretado e
será cumpridol. 37Não mostra consideração pelo deus de seus pais nem pelo que
faz as delícias das mulheres; desprezará todos os deuses, pois considerar-se-á
superior a todos eles. 38Honrará, em lugar deles, o deus das fortalezas; honra-
rá, com ouro e prata, pedras preciosas e joias, um deus que os seus pais não
conheceram. 39Lidará com as mais inexpugnáveis fortalezas com a ajuda de um
deus estrangeiro e cumulará de honra aqueles que o reconhecerem: dar-lhes-á
domínio sobre muitos súbditos e distribuirá terras entre eles como recompensam.
40
No tempo do fim, o rei do Sul confrontar-se-á contra o rei do Norte, mas
este último arremeterá contra ele como um furação, com carros e cavaleiros
e grande número de navios. Invadirá ainda outros territórios e passará como
se fosse uma enxurrada. 41Invadirá também a terra formosan e muitos milha-
res sucumbirão. Apenas escaparão da sua mão os edomitas, os moabitas e os
melhores dos amonitas. 42Estenderá a sua mão em direção a diferentes países
i
O parágrafo refere-se à perseguição desencadeada por Antíoco IV Epifânio contra o povo judeu,
a partir de 168 a.C. Sobre a aliança de Antíoco com os judeus helenizantes, cf. 9,271; Mac 1,11-
14; 2Mac 4-5. Sobre a abominação devastadora, veja-se n. 102.
j
Os sabedores (em hebraico, maskilim) são um grupo de judeus que permanece fiel à aliança com
Deus e procura guiar o povo; grupo com o qual o autor do livro de Daniel se identifica (cf. Dn
12). Partilhando com os judeus liderados por Judas Macabeu o ideal da fidelidade a Deus diante
das ameaças de Antíoco Epifânio, o grupo parece, porém, ter adotado uma atitude mais pacifista.
O termo maskilim é inspirado na figura do Servo Sofredor de Isaías (cf. Is 52,13; 53,11). Sobre
as imagens adotadas na descrição do processo de purificação dos sábios, cf. Sir 2,5; Ap 7,14.
Sobre a expressão tempo do fim, cf. 8,17 e nota.
k
Cf. 7,8.20; 8,11.
l
Cf. 8,19.
m
Antíoco IV parece ter promovido, com especial devoção, o culto de Zeus Olímpico, identificado
com Baal-Chamém. O autor do texto considera que tal preferência acarretou o desprezo pelo
culto dos deuses dos seus antepassados e de Tamuz, o deus querido das mulheres (cf. Ez 8,14).
Outras fontes literárias oferecem-nos uma visão menos polémica das preferências cultuais de
Antíoco IV. A referência ao deus das fortalezas é de difícil interpretação; é possível que se trate
de um título algo depreciativo aplicado a Zeus Olímpico.
n
Cf. nota 71.
Daniel 12 44
12
1
Triunfo de Miguel e ressurreição dos mortos (2,44; 7,27; 2Mac 7;
12,43-45; Mt 13,43; 1Cor 15,35-41)
Naquele tempo, erguer-se-á
Miguel, o grande príncipe,
que protege os filhos do teu povoe.
Será um tempo de angústia,
como não terá havido até então,
desde que o povo começou a existir.
Naquele tempo, o teu povo será resgatado,
todos os que se encontravam inscritos no livrof.
2
E muitos dos que dormem
no pó da terra acordarão,
uns para a vida eterna,
outros para o opróbrio e o horror eternog.
3
Os sábios resplandecerão
como a luz do firmamento
e os que tiverem conduzido muitos pelos caminhos da justiça
brilharão como as estrelas por toda a eternidadeh.
4
E tu, Daniel, guarda em segredo as palavras e sela o livro até ao tempo do
fim. Muitos andarão à procura e o conhecimento aumentará’i.
a
O texto refere-se à última expedição de Antíoco IV contra o Egito.
b
Cf. 2Rs 19,7/Is 37,7. O texto parece referir-se à revolta dos Partos, a Oriente, e dos Arménios,
a Norte, que motivou o regresso de Antíoco às regiões orientais do seu império, onde viria a
morrer em 164 a.C.
c
Isto é, entre o mar Mediterrâneo e Jerusalém.
d
Sobre os relatos da morte de Antíoco Epifânio no livro de Daniel, cf. 8,27 nota.
e
Sobre Miguel, cf. 10,13.21 e nota.
f
Cf. Ex 32,32; Is 4,3; Jr 30,7; Jl 2,2; Mt 24,15-22; Ap 3,5; 13,8; 17,8.
g
Neste parágrafo, anuncia-se tanto a libertação de Israel, com a morte de Antíoco Epifânio e o fim
da perseguição desencadeada por ele, como o juízo e a ressurreição dos que morreram. Ainda
que a linguagem da ressurreição seja usada nalgumas passagens da Bíblia em sentido figurado
ou metafórico para designar a restauração nacional (cf. Is 26,19; Ez 37; Os 6,2), parece claro
que Dn 12 se refere não só à libertação histórica do povo, mas também ao que sucederá depois
da morte, eventualmente no termo da história (cf. 2Mac 7; 12,43-45; 1Cor 15,35-41).
h
Cf. 11,33-35; Mt 13,43.
i
Cf. 8,26. Sobre a expressão tempo do fim ou fim dos tempos aqui e nos vv. 9 e 13, cf. 8,17 e nota.
45 Daniel 13
DANIEL E SUSANA
j
Cf. 8,13 e nota; 10,5.
k
Sobre a expressão um tempo, tempos e metade de um tempo, cf. 7,25 e nota.
l
Cf. 11,35 e nota.
m
Os vv. 11 e 12 acrescentam ainda mais dois números à já de si incerta cronologia do fim dos dias
ou fim dos tempos”: o v. 11 afirma que o templo estará em estado de profanação 1290 dias, ao
passo que o v. 12 parece implicar que serão afinal 1335 dias; compare-se 7,25 (três anos e meio
= 1260 dias); 8,14 (1150 dias); 1Mac 4,52-54 (três anos = 1133 dias). O texto de 12,11.12 é,
muito provavelmente, obra de glosadores que decidiram prolongar a cronologia para responder
ao atraso no cumprimento do que se esperava que sucedesse.
n
O texto em hebraico do livro de Daniel termina com o anúncio da morte e da ressurreição final
do protagonista, que é contado entre os sábios ou maskilim (cf. 12,2-3).
o
Os cc. 13-14 chegaram até nós através das versões gregas da Bíblia e das traduções nelas
baseadas, mas é provável que, na origem, tivessem sido escritos em hebraico ou aramaico.
As histórias de Susana e de Bel e o Dragão gravitam em torno da figura de Daniel, mas foram
redigidas e transmitidas, pelo menos inicialmente, de forma independente entre si e em relação
ao resto do livro. Nos distintos manuscritos gregos, onde cada uma delas é transmitida como
narrativa independente, ambas são reproduzidas junto ao livro de Daniel, mas nem sempre
no final. A história de Susana aparece, em alguns manuscritos, antes do início de Daniel. Esta
ordem corresponde à da Vulgata, que é a tradução latina de referência no Ocidente cristão e
que primeiro incluiu estas narrativas como parte integral do livro. A tradução aqui apresentada
segue a versão grega dita de Teodocião.
Daniel 13 46
muito bela e temente ao Senhor. 3Os seus pais eram justos e tinham educado
a sua filha de acordo com a lei de Moisés. 4Joaquim era muito rico e tinha um
jardim contíguo à sua casa. Os judeus costumavam reunir-se ali com ele, pois
Joaquim era o mais ilustre de todos eles.
5
Naquele ano, haviam sido constituídos como juízes dois anciãos do povo.
A eles se aplicava o que o Senhor dissera: “Da Babilónia veio a iniquidade, de
anciãos e juízes que eram considerados como quem governa o povo”a. 6Os dois
anciãos frequentavam a casa de Joaquim e todos aqueles que tinham conflitos
recorriam a elesb.
7
E aconteceu que, quando o povo se retirava por volta do meio-dia, Susana
entrava e passeava no jardim do seu marido. 8Os dois anciãos costumavam
observá-la todos os dias quando entrava no jardim para passear e ardiam de
desejo por ela. 9Deixaram corromper a própria mente e desviaram os olhos a
fim de não olharem para o céu e não se recordarem dos justos juízos. 10Estavam
os dois feridos de paixão por ela, mas não tinham revelado um ao outro as suas
ânsias, 11pois tinham vergonha de expor um ao outro o desejo que tinham de
a possuírem. 12Continuaram assim, dia a dia, a procurar com avidez ocasião
para a observar.
13
E disseram um ao outro: ‘Vamos, pois, para casa, que é hora de almoço’,
e partiram cada um por seu lado. 14Mas, voltando para trás, acharam-se os
dois no mesmo lugar e, interrogando-se um ao outro, acabaram por confessar
mutuamente o desejo que os dominava. Puseram-se então de acordo sobre o
momento propício para a poderem surpreender sozinha.
15
Estando eles à espera do dia apropriado, chegou Susana, como o tinha fei-
to nos dois dias anteriores, acompanhada por apenas duas jovens e, como estava
calor, desejou tomar banho no jardimc. 16Não se encontrava ali mais ninguém,
a não ser os dois anciãos que estavam a espiá-la, escondidos. 17Susana disse,
então, às jovens: ‘Trazei-me óleo e unguentos e fechai as portas do jardim, para
que eu possa banhar-me.’ 18Elas fizeram como lhes foi ordenado: fecharam as
portas do jardim e saíram pelas portas laterais para ir buscar o que lhes tinha
sido pedido; e não viram os anciãos, porque eles estavam escondidos.
19
Logo que as jovens saíram, os dois anciãos levantaram-se e correram para
ela. 20Disseram-lhe: “As portas do jardim estão fechadas e ninguém nos vê. Nós
estamos cheios de desejo por ti: dá-nos o teu consentimento e entrega-te a nós.
21
Se não o fizeres, testemunharemos contra ti, declarando que estava contigo
um jovem e que, por isso, mandaste embora as jovens.” 22Susana suspirou
angustiada e disse: “Estou cercada por todos os lados! Se fizer isto, sou réu
a
Trata-se, muito provavelmente, de uma citação fictícia.
b
Cf. Jz 5,5; 2Cr 19,10.
c
O mesmo motivo literário aparece em 2Sm 11.
47 Daniel 13
d
O adultério acarretava a pena de morte (cf. Lv 20,10; Dt 22,24; Jo 8).
e
Cf. Gn 39,9; 2Sm 24,14; 2Mac 10,4; Sir 23,27; Mt 10,28.
f
Susana cumpre escrupulosamente o que está mandado na lei de Moisés: de acordo com Dt 22,24,
a mulher que é assediada sexualmente encontrando-se no interior de uma cidade deve gritar
por socorro. Caso contrário, a lei considera que, de algum modo, ela consente no adultério e é,
por isso, culpada e réu de morte. O que poderia condenar Susana era, neste caso, apenas o falso
testemunho dos dois anciãos.
g
No ritual de ordálio previsto para o caso de uma mulher suspeita de adultério (Nm 5,11-31), está
mandado que o sacerdote descubra a cabeça da mulher (5,18). O autor da história, contudo, dá
outro motivo para o procedimento no caso de Susana.
h
Cf. Lv 24,14.
Daniel 13 48
Susana bradou então com voz forte e disse: “Deus eterno, que conheces o
42
que está oculto e sabes todas as coisas ainda antes que aconteçama, 43Tu sabes
bem que levantaram falso testemunho contra mim; e eis que vou morrer sem
ter feito nada daquilo de que estes maldosamente me acusam.”
Intervenção de Daniel
44
Ora, o Senhor ouviu a sua voz. 45Quando a levavam para ser executada,
Deus despertou o espírito santo de um rapazinho chamado Danielb, 46que bra-
dou com voz forte: “Eu estou inocente do sangue desta mulher!” 47Todo o povo
se voltou para ele e perguntou: “Que palavra é esta que acabas de proferir?”
48
De pé no meio deles, Daniel respondeu-lhes: “Sois assim tão insensatos, ó
filhos de Israel, para condenardes uma filha de Israel sem averiguar inteira-
mente a verdade? 49Voltai ao tribunal, porque é falso o testemunho que estes
homens levantaram contra ela.”
50
O povo regressou apressadamente e os anciãos disseram a Daniel: “Vem
sentar-te no meio de nós e expõe-nos o teu pensamento, porque Deus te con-
cedeu a dignidade de ancião”c.
51
Daniel disse-lhes então: “Separai-os para longe um do outro e eu pró-
prio os julgarei.” 52Depois de os separarem um do outro, Daniel chamou um
deles e disse-lhe: “Tu que envelheceste na prática do mal, agora caem sobre
ti os pecados que cometeste anteriormente, 53proferindo sentenças injustas,
condenando os inocentes e absolvendo os culpados, ainda que o Senhor tenha
declarado: ‘Não entregareis à morte o inocente e o justo!’d. 54Diz-me, pois!
Se é verdade que viste esta mulher, debaixo de que árvore os surpreendeste
em intimidade um com o outro?” Ele respondeu: “Debaixo de um lentisco.”
55
Daniel respondeu: “Isso cairá diretamente sobre a tua cabeça! Pois o anjo do
Senhor já recebeu do Senhor o veredito e partir-te-á ao meio!”
56
Depois de o terem afastado, Daniel mandou que trouxessem o outro, a
quem disse: “Raça de cananeu e não de Judá! A beleza seduziu-te e o desejo
perverteu-te o coração. 57Assim procedíeis com as filhas de Israel e elas por
medo entregavam-se a vós, mas esta filha de Judá não consentiu na vossa
perversidade. 58Agora, pois, diz-me! Debaixo de que árvore os surpreendeste
em intimidade um com o outro?” Respondeu-lhe ele: “Debaixo de um carva-
lho.” 59Replicou Daniel: “Isso cairá também diretamente sobre a tua cabeça!
a
Cf. 2,22.
b
A história parece reportar-se ao período da infância ou adolescência de Daniel. É por esta razão
que alguns dos manuscritos a reproduzem antes de Dn 1. O facto de a história de Susana ter lugar
na Babilónia cria, contudo, um problema, já que 1,3-4.6 parece implicar que o protagonista já
era jovem quando foi exilado para a Babilónia. Estas discrepâncias confirmam o que atrás se
disse acerca da origem e transmissão de Dn 13-14 (cf. 3,2 e nota).
c
Cf. Lc 2,46.
d
A citação é de Ex 23,7.
49 Daniel 14
O anjo do Senhor aguarda já, com a espada em riste, para te partir ao meio e
aniquilar-vos aos dois!”
60
Toda a assembleia bradou com voz forte, bendizendo a Deus, que salva
os que nele esperam. 61Insurgiram-se, então, contra os dois anciãos, que Daniel
tinha apanhado a cometer perjúrio pela sua própria boca, e aplicaram-lhes o
mesmo tratamento que eles tão impiamente tinham preparado para o seu pró-
ximo: 62entregaram-nos à morte, dando assim cumprimento à lei de Moisése.
E assim foi poupada naquele dia uma vida inocente.
63
Hilquias e a sua mulher louvaram a Deus por sua filha, Susana, juntamente
com Joaquim, seu marido, e todos os parentes, porque não se encontrou em
Susana motivo de censura. 64E, daquele dia em diante, Daniel gozou de grande
consideração diante do povo.
Mas se, pelo contrário, mostrardes que é Bel quem as consome, morrerá Daniel,
porque blasfemou contra Bel.” 9Daniel respondeu ao rei: “Faça-se conforme
a tua palavra!” Eram setenta os sacerdotes de Bel, sem contar mulheres e
crianças.
10
O rei foi então com Daniel até ao templo de Bel. 11Os sacerdotes de Bel
disseram: “Nós vamos sair lá para fora; e tu, ó rei, manda trazer a comida e
o vinho já misturado, fecha tu próprio a porta e sela-a com o teu anel. Se, ao
regressares amanhã de manhã, não encontrares tudo comido por Bel, morrere-
mos nós; caso contrário, será Daniel, que nos caluniou.” 12Ora, os sacerdotes
de Bel estavam tranquilos, pois tinham feito debaixo da mesa uma abertura
secreta, pela qual entravam todos os dias para consumir as oferendas. 13E acon-
teceu que, depois de eles terem saído, o rei mandou dispor os alimentos diante
de Bel. 14Daniel mandou os seus servos trazer cinza e espalhá-la por todo o
santuário, com a presença apenas do rei. Em seguida, saíram, fecharam a por-
ta e selaram-na com o anel do rei, antes de partirem. 15Os sacerdotes vieram
durante a noite, como de costume, juntamente com as mulheres e os filhos, e
comeram e beberam tudo.
16
Na manhã seguinte, ao romper do dia, veio o rei e, com ele, Daniel. 17“Os
selos estão intactos, Daniel?” – perguntou o rei. Daniel respondeu: “Estão
intactos, sim, ó rei.” 18Mas aconteceu que, logo que se abriram as portas, o rei
olhou para a mesa e exclamou em alta voz: “Tu és grande, ó Bel, e em ti não
há o menor engano!”
19
Daniel riu e, retendo o rei para que não entrasse, disse-lhe: “Olha para o
chão e procura saber de quem são aquelas pegadas.” 20O rei retorquiu: “O que
vejo são pegadas de homens, de mulheres e de crianças.”
21
Enfurecido, o rei mandou prender os sacerdotes com as respetivas mulhe-
res e filhos; aqueles mostraram-lhe então a abertura secreta por onde entravam
para consumir o que estava sobre a mesa. 22O rei mandou-os matar e entregou
Bel nas mãos de Daniel, que o destruiu, a ele e ao seu templo.
a mistura resultante para preparar bolos, que atirou para a goela do dragão. Ao
comê-los, o dragão rebentou. Disse então Daniel: “Vede agora a que coisas
prestais culto!”
28
E aconteceu que, ao saberem do sucedido, os babilónios encheram-se de
cólera e revoltaram-se contra o rei e, acusando-o, diziam: “O rei fez-se judeu!
Destruiu Bel, matou o dragão e massacrou os sacerdotes.” 29Apresentando-se
diante do rei, disseram-lhe: “Entrega-nos Daniel! Se não, matar-te-emos, a ti
e à tua família.”
30
Ao ver-se assim tão ameaçado pela violência, o rei foi forçado a entre-
gar-lhes Daniel. 31Eles atiraram-no para a cova dos leões, onde permaneceu
durante seis dias. 32Na cova, havia sete leões, aos quais se dava cada dia dois
cadáveres e duas ovelhas. Naquela altura, contudo, nada lhes foi dado, para
que devorassem Daniel.
33
Nesse tempo, vivia na Judeia o profeta Habacuc.b Tinha acabado de pre-
parar um cozido e de migar pão para uma caçarola e encaminhava-se para
o campo onde ia levá-la aos ceifeiros. 34 Porém, um anjo do Senhor disse a
Habacuc: “Leva essa refeição que aí tens à Babilónia, a Daniel, que está na
cova dos leões.” 35Retorquiu Habacuc: “Senhor, nunca vi a Babilónia e não
conheço essa cova.”
36
Então o anjo do Senhor agarrou-o pelo alto da cabeça e, segurando-o
pelos cabelos, transportou-o, com um sopro da sua respiração, até à Babilónia,
depositando-o no alto da covac. Então Habacuc gritou: “Daniel, Daniel, toma
a refeição que Deus te enviou!” 38Respondeu Daniel: “Lembraste-te de mim, ó
Deus, e não abandonaste os que te amam.” 39Então Daniel levantou-se e comeu.
E de imediato o anjo do Senhor fez voltar Habacuc ao seu lugar.
40
Ao sétimo dia, o rei veio para chorar Daniel. Aproximou-se da cova, olhou
para dentro e viu Daniel ali sentado. 41Clamou então com voz forte: “Tu és
grande, Senhor, Deus de Daniel, não há outro além de ti”d! 42Mandou-o retirar
da cova e, quanto aos que procuravam causar-lhe a morte, atirou-os à cova e
de imediato eles foram devorados, à vista dele.
b
Habacuc exerceu como profeta, na Judeia, durante a época neobabilónica, no período anterior
à destruição de Jerusalém (587 a.C.). A história supõe que Habacuc ainda estava vivo na época
de Ciro, o primeiro dos reis persas. Deve tratar-se, por conseguinte, de um dado ficcional.
c
Cf. Ez 8,3; At 8,39; 2Cor 12,2.
d
Cf 2:47; 3:95-96; 6:26-28; Is 45,18; 46,9.
Paralelos
1,1: 2Rs 24,1; 2Cr 36,5-7; Esd 1,7; 5,14 | 1,3: 2Rs 20,18 |1,5: 2Rs 25,29s | 1,8: Lv11; Jz 13,4.7.14; Est 4,17; Jr 35,6 |
1,12: Ap 2,10 | 1,17: Gn 41,12-16.
2,11: Gn 41,16 | 2,18: Gn 24,7 | 2,21: At 1,7; Rm 13,1; Ap 5,12 | 2,22: Sl 139,11s; Jo 12,22 | 2,28: 1Cor 2,10s;
Ap 1,1.19; 4,1 | 2,45: Mt 21,42-44 par; Lc 1,33.
3,4: Ap 5,9; 7,9; 13,7; 14,16; 17,15 | 3,5: Ap 13,14s | 3,6: Jr 29,21s. | 3,17: Sl 37,39s | 3,24: Esd 9,6-15; Dn 9
3,19 | 3,49: Tb 5,4 | 3,57: Sl 103,10-22 | 3,58: Sl 103,20; 148,2 | 3,89: Sl 136,1s.
4,5: Dn 5,11.14; 13,45 | 4,7: Ez 41,3-14 | 4,9: Mt 13,31s | 4,24: Tb 12,9; Pr 19,17; Sir 3,30 | 4,32: Is 40,22-24;
Mt 6,10.
5,2: Dn 1,2 | 5,4: Ap 9,20 | 5,11; Dn 4,5 | 5,17: Dn 2,6 |5,23: Sl 135,115-17; Jb 12,19; Is 40,20.
6,3: Dn 5,7.16.29 | 6,11: 1Rs 8,44.48 | 6,23: Dn 3,49.
7,1: Ap 13 | 7,8: Ap 13,5 | 7,9: Ap 1,14; 20,4.14 | 7,10: Jo 5,22; Ap 5,11; 20,12 | 7,11: Ap 19,20 | 7,13: Mt
8,20; 24,30; 26,24 par; Ap 1,7; 14,14 | 7,14: Dn 2,44; Mt 4,17 | 7,21: Ap 11,7; 13,7 | 7,22: Mc 1,15; Ap 20,4 |
7,24: Ap 17,12 | 7,25: Dn 11,36 | 7,26: Ap 12,14.
8,10: Ez 20,6.15; Dn 11,16.41; 12,3; Zc 7,14; Ap 12,4 | 8,13: Dn 12,6; Ap 6,10 | 8,16: Dn 9,21-23; Lc 1,19-26 |
8,17: Dn 10,15-19; Ap 1,17 | 8,26: Dn 12,4.9-13; Ap 10,4; 19,9; 21,5; 22,6
9,1: Ne 1,5-11; Jr 25, 11-14; 29,10; Br 1-2; Dn 3,25-45 | 9,4: Ex 34,6 | 9,5: Br 1,15-2-19 | 9,21: Dn 8,15-18 ;
10,9-11 | 9,24: Rm 3,24-26 | 9,25: Esd 3,1-3; Mt 3,16; At 10,38 | 9,27: 1Mac 1,54; Dn 11,31; 12,11; Mt
24,15 par.
10,6: Ap 1,13-15 | 10,9: Dn 8,16-18; 9,21-23; Ap 1,17 | 10,13: Jd 9; Ap 12,7 | 10,16: Is 6,7; Jr 1,9; Dn 7,13.
11,2: 1Mac 1,2-6; Dn 2,43; 8,23-25 | 11,30: 2Mac 5,11 | 11,36: 2Ts 2,4; Ap 13,5.
12,1: Jr 30,7; Dn 10,13; Jl 2,2; Mt 24,1 par. | 12,2 : 2Mac 7,9 ; Is 66,24; Ez 37,10 ; Mt 13,43 ; Jo 5,28-29; 1Cor 15,41s
| 12,24: Dn 8,26; Ap 10,4 | 12,7: Sir 18,1; Dn 4,31; 7,25; 8,14; Ap 19,5s | 12,10 : Ap 22,11.
13,22: Dt 22,22; Jr 29,21-23; Jo 8,4s | 13,29: Nm 5,18-22 | 13,42: Sl 33,13-15; Heb 4,13 | 13,45: Dn 4,5;
5,11.14 | 13,50: Sb 4,8s | 13,53: Ex 23,7 | 13,62: Dt 19,16-21.
14,23: Sb 15,18s; Rn 1,23 | 14,31: Dn 6,21 | 14,42: Dn 6,25.