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LIVRO DE DANIEL

DANIEL

AD EXPERIMENTUM

Texto provisório,
destinado à recolha de contributos dos leitores,
no sentido de aperfeiçoar a sua compreensibilidade.
Os comentários devem ser enviados para o endereço eletrónico:
biblia.cep@gmail.com

Versão de 1 de outubro de 2022


www.conferenciaepiscopal.pt/biblia
I N T R O D U Ç ÃO

O livro e a personagem
O livro de Daniel contém o relato de acontecimentos e visões referidos a um
jovem do grupo de exilados de Jerusalém para a Babilónia com o rei Joaquim
(1,2ss). Chamado a servir na corte dos reis da Babilónia, acaba por se destacar
pela sua sabedoria e capacidade de decifrar sonhos e enigmas, bem como pela
piedade e fidelidade a Deus (1-6). Daniel recebeu um conjunto de visões sobre
o futuro, o “fim dos tempos” (7-12), e é o herói da história do reconhecimento
da inocência de Susana (13) e um paladino da luta contra os ídolos (14).
O nome Daniel significa “O Deus El é meu juiz” e figura nas listas dos que
regressaram do exílio nos livros de Esdras e Neemias (Esd 8,2; Ne 10,7). Há,
contudo, um alargado consenso acerca do carácter ficcional tanto da perso-
nagem como das histórias relatadas. É muito provável que o autor ou autores
do livro se tenham inspirado na figura lendária de um certo Daniel, a quem o
livro de Ezequiel atribui piedade e sabedoria sem igual (Ez 14,14.20). Daniel
(ou Dan’il) é também o nome de um rei lendário cujo filho, Aqhat, é objeto de
um conto descoberto entre os textos que vieram à luz na cidade de Ugarit, na
Síria, datados do séc. XIII a.C. Tudo indica que se trata, em todos estes casos,
de variações literárias à volta de uma mesma figura lendária.

Composição e redação
O livro de Daniel é fruto de um processo de composição e redação que se
prolongou através de, pelo menos, dois a três séculos. É provável que as histó-
rias que constituem o núcleo da primeira parte do livro (2-6) tenham circulado
separadas antes de serem compiladas, no final da época persa ou no início do
período helenístico (séc. IV-III a.C.). O primeiro capítulo parece ter sido escrito
naquela altura, como introdução a esta coleção. A fase seguinte no processo
de composição e redação foi a inclusão da primeira das visões (c. 7). Este
capítulo parece ter sido redigido nos inícios da crise dos Macabeus, nos anos
60 do séc. II a.C., quando o rei selêucida, Antíoco IV Epifânio (175-164 a.C.),
promoveu uma série de reformas administrativas e cultuais que foram recebidas
pelos judeus como um ataque à sua fé e costumes, provocando a revolta. As
visões contidas nos capítulos 8 a 12 também refletem este período conturbado,
mas foram escritas algo mais tarde que Daniel 7. As histórias reproduzidas
nos capítulos 13-14 terão sido escritas como narrativas independentes e assim
terão circulado, antes de serem incluídas na edição grega da Bíblia dos Setenta,
pelo final do séc. II ou início do séc. I a.C. Foi somente com a tradução latina
da Vulgata que as histórias de Susana e de Bel e o Dragão se tornaram parte
integrante do livro de Daniel.
Daniel  4

Texto e lugar no cânone


A riqueza e complexidade do livro é bem visível no próprio texto, tal como
nos foi transmitido. Os capítulos 2 a 6, o núcleo mais antigo do livro, foram
escritos e transmitidos em aramaico. O capítulo 1 de Daniel, que poderá ter
servido inicialmente como introdução a esta coleção de histórias, poderá ter
sido escrito em aramaico e posteriormente traduzido para hebraico, pois assim
chegou até nós. O capítulo 7, a primeira das visões, foi escrito e transmitido em
aramaico. As restantes visões (cc. 8 a 12) foram escritas e chegaram até nós em
hebraico. É possível que as histórias de Susana e de Bel e o Dragão (cc. 13-14)
tenham sido escritas em hebraico ou aramaico. O facto é que, juntamente com
o cântico de Azarias e o dos três jovens (3,24-90), chegaram até nós na versão
em grego dos Setenta.
As histórias de Susana e de Bel e o Dragão (13-14) e as referidas adições
em 3,24-90 não fazem parte do texto em hebraico e aramaico reconhecido e
adotado pelo judaísmo como Escritura canónica. A Igreja primitiva tomou
como referência a edição em grego das Escrituras de Israel e acolheu, por
isso, aquelas adições como canónicas. As edições da Bíblia entre as Igrejas
que nasceram da Reforma tendem a seguir a prática assumida pelo judaísmo,
ao passo que as edições católicas e ortodoxas privilegiam o cânone em grego,
que era adotado no cristianismo primitivo.
A tradução aqui apresentada segue os textos existentes em hebraico e ara-
maico. No que respeita aos cânticos de Azarias e dos três jovens (3,24-90) e
às histórias de Susana e de Bel e o Dragão (13-14), segue-se a versão dita de
Teodocião, datada do início da era cristã. Não sendo a mais antiga tradução em
grego do livro de Daniel, foi, porém, recebida na tradição cristã como texto de
referência. A ordem dos capítulos corresponde à ordem narrativa apresentada
na tradução da Vulgata, que serve de referência no ocidente cristão.

Género literário
Os capítulos 1 a 6 do livro de Daniel reproduzem um conjunto de histórias
ou pequenos contos de cariz ficcional sobre as peripécias do protagonista e de
três outros jovens de Judá, Ananias, Azarias e Michael, na corte da Babilónia.
São normalmente designados como contos ou lendas de corte e equiparados
à história de José (Gn 37-50) e ao livro de Ester. Tratava-se de um tipo de
literatura destinado a cultivar a fidelidade ao Deus de Israel e à sua Lei, entre
os judeus que viviam na diáspora, em contextos propícios à assimilação. A
inabalável piedade e o heroísmo de Daniel e dos três jovens acabaram por se
tornar exemplo também para os judeus que, durante o período da crise maca-
baica (séc. II a.C.), perante a violência da perseguição, se viram confrontados
com a tentação de abandonar a fé e os costumes do povo.
5 Daniel

Os capítulos 7 a 12 são designados como “apocalipse de Daniel”. O pro-


tagonista, que se destacara como intérprete de sonhos e visões, torna-se depo-
sitário de um conjunto de visões de cariz apocalíptico. O termo “apocalipse”,
que em grego significa “revelação”, designa um género literário em que se
descreve a comunicação a um ser humano, frequentemente por intermédio de
um anjo ou de uma figura celeste. No caso dos “apocalipses históricos”, como
o de Daniel, essa revelação, que diz respeito ao desenrolar da História e à sua
periodização com a intervenção salvífica de Deus, tende a incluir referências
a acontecimentos concretos, como as guerras ou a sucessão de impérios, que
são anunciados ao depositário das visões séculos antes de se cumprirem. Na
realidade, devem considerar-se como profecias ex eventu, isto é, apresentação
de acontecimentos já passados em discurso de tipo profético. Este género lite-
rário, que aprecia a pseudepigrafia, isto é, colocar discursos importantes na
boca de grandes personagens do passado, floresceu particularmente no período
helenístico e nos primeiros séculos da era cristã (séc. III a.C. - III d.C.), mas tem
as suas raízes na literatura profética da época do exílio (séc. VI a.C.) e retoma
um imaginário mítico que parece ser herdeiro do fundo cananaico e oriental
da literatura sapiencial bíblica.
A história de Susana (c. 13) é, do ponto de vista do género, mais próxima
dos contos de corte (cc. 1-6) que das visões apocalípticas (cc. 7-12). Trata-se
de uma narrativa ficcional que ilustra a extraordinária sabedoria de Daniel e o
transforma no herói de uma história de flagrante injustiça contra uma mulher
inocente. A narrativa de Bel e o Dragão ilustra o desenvolvimento de um género
literário que combina a ironia contra os ídolos e a afirmação da autoridade e
providência divinas.

Perspetiva teológica
O leitor do livro de Daniel vê-se confrontado, desde as primeiras linhas,
com a experiência do exílio e as exigências de viver numa terra estrangeira para
os membros do povo de Israel que querem permanecer fiéis a Deus e à sua Lei.
Daniel e os três jovens são exemplo de piedade; mas o livro quer, sobretudo,
assegurar ao leitor que Deus não abandona o seu povo na adversidade. A sua
autoridade estende-se a toda a terra e os que Ele escolheu podem estar certos
de que a sua vida e destino estão nas mãos de Deus.
Esta convicção espelha-se, nas visões de Daniel, na afirmação da providên-
cia divina sobre o conjunto da História humana, mostrando que a sucessão dos
impérios é, afinal, obra tão divina quanto humana. Nesse sentido, o livro de
Daniel oferece razões de esperança a todos aqueles que se veem confrontados
com o mal e as suas devastadoras consequências: Deus continua presente e
ativo na História e terá a palavra definitiva. Não é difícil imaginar o eco que
Daniel  6

tal mensagem encontrou entre os judeus que sofreram perseguição, no reinado


de Antíoco IV Epifânio, nos anos 60 do século II a.C.
Finalmente, é importante destacar o papel do livro de Daniel na compreen-
são do mistério de Cristo. Para os cristãos, a misteriosa referência a um “filho
de homem” que vem “sobre as nuvens do céu” (7,13) ilumina o Messias Jesus
(Mt 26,64; Mc 14,53-65; etc.), cujo sofrimento e morte também estão prefi-
gurados no destino do “ungido” de que se fala em 9,26. As visões a respeito
do sentido da História e da ressurreição gloriosa que espera os justos (12,2-3)
ajudaram aqueles mesmos cristãos a reconhecer e articular a dimensão e o
impacto histórico e cósmico do acontecimento cristológico; o Apocalipse de
João é disso eloquente exemplo. Inspirada pelo teor messiânico e cristológico
das visões, a Igreja, seguindo a Bíblia judaica de Alexandria, isto é, a tradução
dos Setenta, acolheu a classificação de Daniel, não na secção dos Escritos,
como aparece no cânone hebraico, mas na dos Profetas, formando, com Isaías,
Jeremias e Ezequiel, o núcleo dos Profetas Maiores.
7 Daniel 1

DANIEL E OS COMPANHEIROS NA CORTE a (1,1-6,29)

1 Contexto histórico
1
No terceiro ano do reinado de Joaquim, rei de Judá, Nabucodonosor,
rei da Babilónia, chegou a Jerusalém e montou cerco contra elab. 2O Senhor
entregou Joaquim, rei de Judá, nas suas mãos, juntamente com uma parte dos
utensílios da casa de Deus. E Nabucodonosor levou-os para a terra de Chinearc,
para o templo dos seus deuses, e depositou os utensílios na casa do tesouro
dos seus deuses.

Educação para o serviço do rei (2Rs 20,12-20/Is 39,1-8)


3
O rei deu ordem a Aspenaz, chefe dos seus cortesãos, para que lhe trou-
xesse, de entre os filhos de Israel de estirpe real ou de famílias nobres, 4jovens
que não tivessem qualquer defeito, que fossem de boa aparência, instruídos
em toda a sabedoria, conhecimento e inteligência, e que tivessem capacidade
para servir no palácio real. Ordenou ainda que lhes fossem ensinadas a escrita
e a língua dos caldeusd. 5O rei atribui-lhes uma provisão diária de iguarias da
mesa real e do vinho que ele bebia, ordenando que fossem educados durante
três anos antes de entrarem ao serviço do rei.
6
Entre eles contavam-se Daniel, Ananias, Michael e Azarias, dos filhos
de Judá. 7O chefe dos cortesãos pôs-lhes outros nomes: a Daniel, o de Belte-
chaçar, a Ananias, o de Chadrac, a Michael, o de Mechac, e a Azarias, o de
Abed-Negoe.
8
Daniel tomou a peito a decisão de não se tornar impuro com o alimento do
rei e o vinho que ele consumia e pediu ao chefe dos cortesãos que lhe permitis-

a
A primeira parte do livro de Daniel (1,1-6,29) contém o relato da vida de um grupo de exilados
judeus na corte da Babilónia: Daniel e os companheiros são levados de Jerusalém para o exílio
por Nabucodonosor (605-562 a.C.), permanecendo fiéis ao Deus de Israel. Acabaram por se
destacar entre os cortesãos e alcançar as posições de maior prestígio e autoridade. As histórias
aqui relatadas são ficcionais e podem ser qualificadas como contos ou lendas cortesãs, um género
literário que também serve para caracterizar a história de José (Gn 37-50) ou o livro de Ester.
b
A referência a um ataque de Nabucodonosor contra Jerusalém no terceiro ano do rei Joaquim
(607 a.C.) parece não ser histórico. Nabucodonosor só subiu ao trono da Babilónia em 605 a.C.
e as crónicas babilónicas não referem nenhum cerco de Jerusalém antes de 598/7 a.C. Trata-se,
provavelmente, de uma elaboração literária, baseada em 2Rs 24,1 e 2Cr 36,5-7.
c
Chinear é uma designação tradicional da Babilónia (cf. Gn 11; Is 11,11; Zc 5,11).
d
Trata-se do aramaico, última língua semítica falada na antiga Babilónia.
e
A mudança de nome reflete a plena integração de Daniel e dos seus companheiros na corte
dos reis da Babilónia, à semelhança do que sucedeu a José (Gn 41,45). Beltechaçar provém
do babilónio balaṭ-su-uṣur ou balaṭ-šar-uṣur e significa “que ele [o deus] proteja a sua vida”
ou “que ele proteja a vida do príncipe”. O texto hebraico vocaliza o nome de forma diferente
(Belteshaçar), talvez para introduzir o nome do deus Bel (cf. Dn 14,1-22) e justificar a alusão
feita em Dn 4,5. Não há consenso em relação à etimologia e significado dos nomes Chadrac e
Mechac. Abed-Nego parece ser a distorção de abed-nabû, isto é, “servo do deus Nebo”, que
era a principal divindade no tempo de Nabucodonosor.
Daniel 2 8

se não se tornar impuroa. 9Deus concedeu a Daniel misericórdia e compaixão


da parte do chefe dos cortesãos. 10Mas o chefe dos cortesãos disse a Daniel:
“Tenho medo do rei, meu senhor, que determinou a vossa comida e a vossa
bebida, pois ele iria reparar nos vossos rostos mais magros que os dos jovens
da vossa idade; e assim poríeis em risco a minha cabeça diante do rei.”
11
Daniel disse então ao supervisor a quem o chefe dos cortesãos tinha dado
poder sobre Daniel, Ananias, Michael e Azarias: 12“Põe à prova estes teus
servos durante dez dias; dá-nos apenas legumes para comer e água para beber.
13
Depois poderão ver o nosso aspeto e o dos outros jovens que comem das
iguarias do rei e então procederás com estes teus servos conforme o que tiveres
verificado”.
14
O supervisor escutou este pedido deles e pô-los à prova durante dez dias.
15
Ao fim dos dez dias, verificou-se que o seu aspeto era melhor e estavam mais
bem nutridos que os jovens que comiam das iguarias do rei. 16O supervisor
retirou as suas iguarias e o vinho que deviam beber, continuando a servir-
-lhes apenas legumes. 17Deus concedeu a estes quatro jovens conhecimento e
inteligência em toda a escrita e sabedoria; e Daniel conseguia entender toda a
espécie de visões e sonhos.
18
No fim do período designado pelo rei para que os jovens lhe fossem apre-
sentados, o chefe dos cortesãos levou-os à presença de Nabucodonosor. 19O rei
conversou com eles e, de entre todos, não se encontrou ninguém como Daniel,
Ananias, Michael e Azarias. E eles ficaram ao serviço do rei. 20Em qualquer
questão de sabedoria e inteligência sobre a qual o rei os interrogasse, achava-
-os dez vezes superiores a todos os magos e adivinhos de todo o seu reino. 21E
assim se manteve Daniel até ao primeiro ano do rei Cirob.

2 1
O sonho de Nabucodonosor e os sábios da Babilónia (4,1-4; 5,7-9;
Gn 41,1-8)
No segundo ano do seu reinado, Nabucodonosor teve um sonhoc e o seu
espírito ficou agitado e o seu sono deixou-o. 2O rei mandou chamar os magos,
os adivinhos, os feiticeiros e os caldeus para esclarecerem o rei quanto ao
a
As preocupações alimentares de Daniel e seus companheiros refletem o desenvolvimento de uma
tendência para evitar toda a espécie de alimentos consumidos ou oferecidos por não-judeus (cf.
Est 4,17x; Tb 1,10-12; Jdt 12,1-4). Tal cuidado baseia-se nas leis da pureza ritual do Pentateuco,
mas parece ir além do prescrito, de modo a resistir à tentação da completa assimilação. Não se
trata de jejum nem de práticas ascéticas.
b
A referência ao primeiro ano do rei Ciro transforma Daniel no homem do exílio por excelência:
chega à Babilónia com a primeira leva de exilados e a sua vida e atividades prolongam-se até
ao limite simbólico do exílio, o primeiro ano de Ciro, quando o rei persa autorizou o regresso a
Jerusalém e a reconstrução do templo (cf. 2Cr 36,22-23; Esd 1,1-4). O facto de se fazer referên-
cia, em Dn 10,1, à visão que Daniel teve no terceiro ano de Ciro mostra que o quadro temporal
traçado neste primeiro capítulo é simbólico.
c
Lit.: sonhos. O uso do plural é idiomático, como se vê no uso do plural: visões (4,2; 7,1).
9 Daniel 2

sonhod. Eles vieram e apresentaram-se diante do rei. 3E o rei disse-lhes: “Tive


um sonho e o meu espírito ficou agitado para saber o que foi esse sonho”. 4Os
caldeus responderam ao rei em aramaicoe: “Que o rei viva para sempre! Conta
aos teus servos o sonho e dar-te-emos a conhecer a sua interpretação”. 5O rei
respondeu aos caldeus e disse: “Da minha parte a decisão é que, se não me
expuserdes o conteúdo do sonho assim como a sua interpretação, sereis corta-
dos em pedaços e as vossas casas, reduzidas a um monte de entulho. 6Mas, se
me revelardes o sonho e a sua interpretação, recebereis da minha parte presen-
tes e mercês e grande honra. Por isso, dizei-me o sonho e a sua interpretação.”
7
Eles insistiram uma segunda vez e disseram: “Que o rei conte aos seus servos
o sonho e logo lhe daremos a conhecer a sua interpretação”.
8
O rei respondeu e disse: “Agora sei perfeitamente que apenas procurais
ganhar tempo, porque vistes que da minha parte o assunto está decidido. 9Se
não me derdes a conhecer o sonho, a vossa sentença é uma só. Combinastes
dizer diante de mim uma palavra mentirosa e perniciosa, até que os tempos
mudem. Por isso, dizei-me qual foi o sonho e ficarei a saber que sois capazes
de me dar a interpretação.” 10Respondendo diante do rei, os caldeus disseram:
“Não há homem algum sobre a terra que possa dar informação sobre tal pedido
do rei. Na verdade, nenhum rei, mesmo grande e poderoso, fez um pedido como
este a um mago, adivinho ou caldeu. 11O assunto que o rei pede é difícil e não
há mais ninguém que o possa dar a conhecer diante do rei, a não ser os deuses,
cuja morada não é entre os humanos.” 12Diante disto, o rei enfureceu-se violen-
tamente e, cheio de cólera, mandou exterminar todos os sábios da Babilónia.

Daniel confia na misericórdia de Deus (Ne 1,4-11; Est 4,17k-z)


13
Pronunciada a sentença e quando se iniciava já o massacre dos sábios,
foram procurar Daniel e os seus companheiros para os matar. 14Então Daniel
falou de maneira sábia e prudente com Arioc, chefe dos guardas do rei, que
saíra para matar os sábios da Babilónia. 15Tomou a palavra e perguntou a Arioc,
oficial do rei: “Qual a razão de sentença tão severa da parte do rei?” Então
Arioc deu a conhecer o assunto a Daniel. 16E Daniel foi pedir ao rei que lhe
concedesse um tempo e ele daria a conhecer a interpretação ao rei.
17
Daniel voltou então para casa e expôs a situação aos seus companheiros
Ananias, Michael e Azarias, 18a fim de implorarem a misericórdia do Deus dos
céus a respeito deste mistério, para que Daniel e os seus companheiros não
fossem exterminados, junto com os restantes sábios da Babilónia. 19O mistério

d
O termo caldeus, que coincide com o nome do grupo aramaico que detém o poder, é usado aqui
e noutras passagens (2,4.5.10; 1,4; 3,8.48; 5,7.11.30; 9,1) para designar o grupo de sábios que
presta serviço junto do rei da Babilónia.
e
A partir daqui e até 7,28, o texto está escrito em aramaico.
Daniel 2 10

foi revelado a Daniel numa visão noturna e então Daniel louvou o Deus dos
céus 20 e, tomando a palavra, dissea:
“Bendito seja o nome de Deus,
desde sempre e para sempre,
porque a Ele pertencem a sabedoria e o poder.
21
Ele muda os tempos e as estações,
destitui os reis e os eleva,
dá a sabedoria aos sábios
e a inteligência aos inteligentes.
22
Ele revela o que é profundo e escondido
e conhece aquilo que há nas trevas,
porque a luz está com Ele.
23
A ti, ó Deus dos meus pais, eu dou graças e louvor,
porque me concedeste a sabedoria e a força
e me deste a conhecer agora o que te pedimos
e nos deste a conhecer o assunto do rei.”

Daniel interpreta o sonho do rei (4,16-24; 5,10-30; 7; 8; 11-12; Gn 41,9-36)


24
Depois disto, Daniel foi ao encontro de Arioc, a quem o rei encarregara de
exterminar os sábios da Babilónia e disse-lhe assim: “Não extermines os sábios
da Babilónia. Leva-me antes à presença do rei que eu lhe darei a conhecer a
interpretação.” 25Arioc apressou-se então a conduzir Daniel à presença do rei,
e assim lhe disse: “Encontrei um homem, entre os exilados da Judeia, que é
capaz de dar a conhecer ao rei a interpretação.”
26
O rei respondeu e disse a Daniel, que tinha o nome de Beltechaçar: “És
mesmo capaz de me dar a conhecer o sonho que eu tive e a sua interpretação?”
27
Respondendo diante do rei, Daniel disse: “O mistério cuja explicação o rei
pediu, nem sábios nem adivinhos nem magos nem astrólogos o podem dar a
conhecer ao rei. 28Porém, há um Deus nos céus que desvenda os mistérios e Ele
deu a conhecer ao rei Nabucodonosor o que vai acontecer no futuro dos diasb.
Eis, pois, o teu sonho e as visões da tua mente, quando estavas no teu leito.
29
Estando tu, ó rei, no teu leito, assaltaram-te pensamentos a respeito do que
acontecerá no futuro. E Aquele que desvenda os mistérios deu-te a conhecer
o que há de acontecer. 30Quanto a mim, não é por ser mais sábio que todas as
outras criaturas que este mistério me foi revelado; é para que se dê a conhecer
ao rei a interpretação e para que tu compreendas os pensamentos do teu coração.
a
Esta oração é o primeiro dos quatro interlúdios poéticos de louvor que estruturam os primeiros
seis capítulos do livro de Daniel (3,98-100; 4,31-34; 6,26-28). O género literário é de um salmo
de ação de graças.
b
A expressão o futuro dos dias refere-se aqui e em 10,14 ao que sucederá num determinado
futuro e que terá algum sentido de fim, sem ser propriamente o fim do mundo e da história (cf.
Nm 24,14; Gn 49,1; Dt 4,30; 31,29; Is 2,2/Mq 4,1; Os 3,5; Ez 38,16).
11 Daniel 2

Tu, ó rei, estavas a olhar e viste uma enorme estátua. A estátua era de
31

grande porte e o seu brilho, extraordinário; ela erguia-se diante de ti e o seu


aspeto inspirava terror. 32A cabeça da estátua era de ouro puro, o peito e os
braços eram de prata, o ventre e as coxas, de bronze, 33as pernas, de ferro; e os
pés eram em parte de ferro e em parte de barroc.
34
Continuavas a olhar e viste então uma pedra desprender-se, sem interven-
ção de mão alguma, e vir embater contra os pés da estátua, que eram de ferro
e barro, esmagando-os. 35E num instante ficaram feitos em pedaços o ferro, o
barro, o bronze, a prata e o ouro, e tornaram-se como a palha das eiras no verão.
Foram levados pelo vento e não ficou vestígio algum. E a pedra que tinha emba-
tido contra a estátua transformou-se numa alta montanha e encheu toda a terrad.
36
Foi este o sonho e dele exporemos agora diante do rei a interpretaçãoe.
37
Tu, ó rei, és o rei dos reis e a ti o Deus dos céus concedeu a realeza e o poder,
a força e a glória; 38e em tuas mãos entregou os homens, os animais do campo
e as aves dos céus, onde quer que habitem, a fim de que exerças domínio sobre
todos eles. Tu és a cabeça de ouro.
39
Depois de ti, levantar-se-á um reino inferior ao teu e, de seguida, um ter-
ceiro reino, de bronze, que dominará sobre toda a terra. 40O quarto reino será
forte como o ferro. E assim como o ferro tudo esmaga e despedaça, assim este
reino esmagará e despedaçará todos os outros.
41
Quanto ao facto de teres visto que os pés e dedos da estátua eram em
parte de barro de oleiro e em parte de ferro, significa que aquele será um reino
dividido. Terá algo da solidez do ferro, por isso viste o ferro misturado com o
barro mole. 42E os dedos dos pés serem em parte de ferro e em parte de barro
significa que o reino será em parte forte e em parte frágil. 43Quanto a teres visto
o ferro misturado com o barro mole, tal significa que eles se misturarão por
c
É possível encontrar, no Antigo Oriente, outros relatos de sonhos ou visões de estátuas de pro-
porções gigantescas. Por exemplo, o sonho do faraó Merneptá no século XIII a.C., em que o
rei viu uma enorme estátua do deus Ptá. Há também paralelos para a representação das idades
da História com recurso a uma sequência de metais de valor decrescente. A mais conhecida
encontra-se na obra do grego Hesíodo. Contudo, o paralelo mais significativo vem do mundo
persa. Na obra Bahman Yasht, a História é dividida em quatro grandes períodos e simbolizada
por uma árvore com ramos de ouro, prata, aço e ferro misturado com outros materiais.
d
Os Padres da Igreja e a tradição cristã reconhecem neste passo uma referência a Cristo, cujo
nascimento virginal estaria anunciado na referência à pedra que se desprende sem intervenção
de mão humana. No Novo Testamento, a imagem da pedra é usada para descrever Cristo e o
reino que ele inaugura. Ele é a pedra rejeitada pelos construtores que veio a tornar-se pedra
angular, sem referir explicitamente esta passagem de Daniel (cf. Mt 21,42-44; Lc 20,17-18; Sl
118,22; Is 28,16). Sobre a imagem da alta montanha, cf. Is 2,2/Mq 4,1.
e
A interpretação do sonho descreve o curso da História entre o tempo da narrativa, na época do
exílio da Babilónia, e o do autor, na época helenística. Os quatro reinos são os sucessivos im-
périos dos Babilónios, Medos, Persas e Gregos (cf. 6,25 nota). O quarto reino é o de Alexandre
Magno. A mistura de ferro com barro mole é uma alusão à política de alianças por meio de
casamentos entre os sucessores de Alexandre – os Selêucidas (Ásia) e os Ptolomeus (Egito).
Tais alianças serão frágeis e, segundo o texto, não conseguirão evitar o fim do domínio grego.
Daniel 3 12

contratos de casamentoa, mas a ligação entre eles não será sólida, da mesma
forma que o ferro não se mistura com o barro.
44
Nos dias daqueles reis, o Deus dos céus fará surgir um reino que jamais
será destruído e cuja soberania nunca passará para outro povo. Ele esmagará e
reduzirá a nada todos esses reinos, mas ele subsistirá para sempre, 45tal como
viste na pedra que se desprendeu da montanha, sem intervenção de mão algu-
ma, e reduziu a pedaços o ferro, o bronze, o barro, a prata e o ouro. O grande
Deus deu a conhecer ao rei o que acontecerá no futuro: o sonho é verdadeiro
e a sua interpretação, digna de confiança.”

Profissão de fé do rei Nabucodonosor (3,95; 6,26-29; 14,41; Gn 41,37-46;


2Mac 9,17)
46
Então o rei Nabucodonosor caiu de rosto por terra, prostrou-se diante de
Daniel e mandou que lhe oferecessem oblações e incensob. 47O rei dirigiu-se
então a Daniel, dizendo: “O vosso Deus é verdadeiramente o Deus dos deuses,
o Senhor dos reis e Aquele que desvenda os mistérios, pois tu foste capaz de
desvendar este mistério.” 48O rei enalteceu Daniel e ofereceu-lhe muitos e ricos
presentes; deu-lhe autoridade sobre toda a província da Babilónia e constituiu-o
superintendente de todos os sábios da Babilónia. 49Então Daniel pediu ao rei e
este nomeou Chadrac, Mechac e Abed-Nego para o governo da província da
Babilónia, enquanto Daniel ficou na corte do rei.

3 A estátua de ouro
1
O rei Nabucodonosor fez uma estátua de ouro com sessenta côvados
de altura e seis de largura e ergueu-a na planície de Dura, na província da
Babilóniac. 2E então o rei mandou chamar os sátrapas, prefeitos, governadores,
conselheiros, tesoureiros, juízes, oficiais e demais autoridades da província,
a fim de comparecerem na inauguraçãod da estátua que o rei Nabucodonosor
havia erguido.
a
Lit.: por via de descendência humana. Alude-se a casamentos feitos para selar alianças e negó-
cios entre reinos.
b
A reação do rei e o facto de Daniel não rejeitar a adoração, as oblações e o incenso que lhe são
oferecidos (cf. At 14,8-18; Ap 22,8-9) escandalizaram alguns leitores e comentadores judeus
e cristãos. Porém, o autor está mais interessado no valor simbólico deste gesto exagerado que
em quaisquer outras implicações teológicas.
c
Há muitos relatos de construção de estátuas de proporções gigantescas no mundo antigo, como,
por exemplo, a estátua em ouro de Zeus que foi colocada no templo de Bel na Babilónia. O
episódio relatado em Daniel 3 talvez tenha sido inspirado pelos acontecimentos no tempo de
Nabónido, um sucessor de Nabucodonosor e o último rei do império babilónio: o rei fez uma
estátua do deus Sin e ordenou que fosse venerada; a decisão parece ter gerado oposição e o rei
terá recorrido a alguma forma de coação, ainda que menos radical que a descrita em Dn 3.
d
A palavra inauguração é usada em hebraico para a dedicação ou purificação (Hanukkah) do
templo de Jerusalém, acontecimento da época helenística que é contemporâneo do autor e deu
origem a uma festa judaica que ainda hoje existe.
13 Daniel 3

Assim, pois, se reuniram os sátrapas, prefeitos, governadores, conselhei-


3

ros, tesoureiros, juízes, oficiais e demais autoridades da província para a inau-


guração da estátua que o rei havia erguido. Encontravam-se todos de pé diante
da estátua, 4quando o arauto proclamou com voz forte: “Povos, nações e gentes
de todas as línguas, a vós se ordena que, 5quando ouvirdes o som da trombeta,
da flauta, da cítara, da harpa, do saltério, do tamborim e de todos os demais
instrumentos musicais, vos prostreis por terra e adoreis a estátua de ouro que
o rei Nabucodonosor ergueu. 6Quem não se prostrar e não adorar a estátua será
nessa mesma hora lançado na fornalha ardente”e.
7
Por isso, no momento em que todos os povos ouviram o som da trombeta,
da flauta, da cítara, da harpa, do saltério e de todos os demais instrumentos
musicais, todos os povos, nações e gentes de todas as línguas se prostraram
por terra, adorando a estátua de ouro que o rei Nabucodonosor havia erguido.

Condenação dos companheiros de Daniel (6; Est 4-5; 2Mac 6-7)


8
Entretanto, naquele mesmo instante, aproximaram-se alguns caldeus e
denunciaram os judeus. 9Dirigiram-se ao rei Nabucodonosor, dizendo: “Que o
rei viva para sempre! 10Tu, ó rei, decretaste que, ao ouvir o som da trombeta,
da flauta, da cítara, da harpa, do saltério, do tamborim e de todos os demais
instrumentos musicais, todos se deviam prostrar por terra e adorar a estátua de
ouro 11e que quem não se prostrasse e não adorasse seria lançado na fornalha
ardente. 12Ora, há aí certos judeus que tu nomeaste para o governo da província
da Babilónia, Chadrac, Mechac e Abed-Nego; estes homens não fizeram caso
de ti, ó rei. Recusam-se a prestar culto aos teus deuses e a adorar a estátua de
ouro que tu ergueste”.
13
Então Nabucodonosor, com raiva e fúria, mandou que lhe trouxessem
Chadrac, Mechac e Abed-Nego e eles foram imediatamente levados à presença
do rei. 14Nabucodonosor tomou a palavra e disse-lhes: “É verdade, Chadrac,
Mechac e Abed-Nego, que vos recusais a prestar culto aos meus deuses e a ado-
rar a estátua de ouro que eu mesmo ergui? 15Pois bem, será que, quando ouvir-
des o som da trombeta, da flauta, da cítara, da harpa, do saltério, do tamborim
e de todos os demais instrumentos musicais, estais prontos a prostrar-vos por
terra e adorar a estátua que eu fiz? Se não a adorardes, sereis imediatamente lan-
çados na fornalha ardente. E qual é o deus que vos livrará das minhas mãos”f?

e
Sobre o castigo da fornalha ardente, cf. Jr 29,21-22.
f
A pergunta provocadora do rei Nabucodonosor lembra a arrogância de Senaquerib, rei da As-
síria, e dos seus emissários durante o cerco de Jerusalém no tempo de Ezequias (cf. 2Rs 18,33-
35/Is 36,19-20; 2Rs 19,12-13/Is 37,11-12). Que Nabucodonosor apareça agora a contestar a
soberania e o poder divinos, depois de, em Dn 2,47, os ter proclamado abertamente, parece
sugerir que as histórias relatadas nos cc. 2 e 3 terão circulado de forma independente, antes de
terem sido postas lado a lado num só livro.
16
Chadrac, Mechac e Abed-Nego responderam ao rei Nabucodonosor,
dizendo: “Sobre isso não precisamos de te dar resposta. 17Se assim for, o nosso
Deus, a quem prestamos culto, tem poder para nos livrar da fornalha de fogo
ardente e das tuas mãos, ó rei. 18Mas ainda que o não faça, fica a saber, ó rei,
que não prestaremos culto aos teus deuses nem adoraremos a estátua de ouro
que tu ergueste.”
19
Nabucodonosor encheu-se de cólera e a imagem do seu rosto alterou-se
contra Chadrac, Mechac e Abed-Nego. Tomou a palavra e mandou aquecer a
fornalha sete vezes mais do que era costume 20e ordenou a alguns dos mais
valentes soldados do seu exército que amarrassem Chadrac, Mechac e Abed-
-Nego para os lançarem na fornalha de fogo ardente. 21Aqueles homens foram
então amarrados e lançados para dentro da fornalha de fogo ardente, com os
seus mantos, túnicas, chapéus e demais vestuário. 22Aconteceu, porém, que,
uma vez que tinham aquecido excessivamente a fornalha em resposta à rigorosa
ordem do rei, as chamas devoraram os homens que ali foram lançar Chadrac,
Mechac e Abed-Nego, 23e os três jovens, Chadrac, Mechac e Abed-Nego, caí-
ram amarrados no meio da fornalha de fogo ardente.

Cântico de Azariasa (9,3-19; Esd 9,5-15; Ne 1,4-11; 9,5-37; Est 4,17k-z; Br


1,15-3,8)
24
Os jovens, contudo, passeavam no meio das chamas, louvando a Deus
e bendizendo o Senhor. 25Azarias, de pé no meio das chamas, levantou a voz
e disse:
26
“Bendito sejas, Senhor, Deus dos nossos pais!
Tu és digno de louvor
e o teu nome será glorificado para sempre,
27
porque és justo em tudo o que fizeste por nós:
são verdadeiras todas as tuas obras,
são retos os teus caminhos
e todos os teus juízos são verdade.
28
Verdadeira foi a sentença que decretaste
sobre tudo o que infligiste sobre nós,
e também sobre Jerusalém, cidade santa dos nossos pais,
pois tudo o que infligiste foi em nome da verdade e da justiça,
por causa dos nossos pecados.
29
Pecámos, procedemos mal, afastando-nos de ti;
a
Os vv. 24 a 90 (cânticos de Azarias e dos três jovens) foram inseridos neste ponto nas versões
gregas do texto do livro de Daniel. A tradução segue a versão grega dita de Teodocião (cf.
Introdução). O cântico de Azarias pode ser caracterizado como uma “confissão comunitária do
pecado” (cf. 9,3-19; Esd 9,5-15; Ne 1,4-11; 9,5-37; Est 4,17k-z; Sl 78; 106; Br 1,15-3,8). Neste
caso, o pedido de perdão aparece transformado num pedido de ajuda muito concreto: que Deus
salve da fornalha ardente estes seus fiéis.
15 Daniel 3

pecámos em tudo e não escutámos os teus mandamentos.


30
Não pusemos em prática nem fizemos
aquilo que, para nosso bem, nos mandaste fazer.
31
Tudo o que nos infligiste, tudo o que nos fizeste
foi verdadeiro e justo.
32
Entr5egaste-nos nas mãos dos inimigos sem lei
e de adversários rebeldes,
nas mãos de um rei injusto e iníquo,
mais que qualquer outro sobre toda a terra.
33
Agora não ousamos mais abrir a boca:
vergonha e opróbrio abateram-se sobre os teus servos
e sobre os que te adoram.
34
Por amor do teu nome, não nos abandones para sempre
nem anules a tua aliança.
35
Não nos retires a tua misericórdia,
por amor de Abraão, teu amigo,
de Isaac, teu servo, e de Israel, teu santo.
36
A eles fizeste a promessa
de multiplicar a sua descendência
como as estrelas do céu
e como a areia das praias do mar.
37
Agora, Senhor, somos o mais pequeno de todos os povos
e somos hoje humilhados em toda a terra
por causa dos nossos pecados.
38
Neste momento não há príncipe, nem profeta, nem guia;
não há holocausto, nem sacrifício, nem oblação, nem incenso;
não há lugar onde apresentar-te primícias e alcançar misericórdia.
39
Mas, de coração abatido e com humildade de espírito,
sejamos recebidos por ti,
como se fosse com holocaustos de carneiros e touros
e milhares de cordeiros gordos.
40
Que este seja hoje o nosso sacrifício diante de ti
e que ele alcance favor na tua presença,
pois não serão confundidos aqueles que em ti confiam.
41
Agora seguimos-te de todo o coração,
tememos-te e buscamos o teu rosto.
Não nos deixes cobertos de vergonha,
42
mas trata-nos de acordo com a tua benevolência
e a tua abundante misericórdia.
43
Livra-nos pelo teu poder maravilhoso
e dá glória ao teu nome, Senhor.
Daniel 3 16

44
Sejam confundidos todos os que maltratam os teus servos
e cubram-se de vergonha ao verem-se sem poder nem domínio;
que a sua força seja abatida.
45
Que eles reconheçam que Tu és o Senhor,
o único Deus, glorioso sobre a terra inteiraa.”

Intervenção do anjo do Senhor (6,23; 14, 33-39; 2Rs 19,35/Is 37,36; 2Mac
10,29-30; Mt 28,2)
46
Entretanto, os servos do rei, que os haviam lançado na fornalha, não ces-
savam de a aquecer com nafta, estopa, pez e lenha miúda. 47As chamas, que
se elevavam acima da fornalha à altura de quarenta e nove côvados, 48espa-
lharam-se e queimaram os caldeus que se encontravam em redor da fornalha.
49
O anjo do Senhor, porém, desceu à fornalha até junto de Azarias e dos seus
companheiros e afastou a chama de fogo da fornalha. 50Fez com que no meio
da fornalha como que soprasse uma brisa matinal e refrescante, de tal forma
que o fogo não lhes tocou de todo, nem lhes causou qualquer mal ou incómodo.

Cântico dos três jovensb (Sl 136; 148; Tb 8,5)


51
Então, os três jovens, como que a uma só voz, puseram-se a louvar, glorificar
e bendizer a Deus com estas palavras:
52
Bendito sejas, Senhor, Deus dos nossos pais,
digno de louvor e de glória para sempre!
Bendito seja o teu nome santo e glorioso,
digno de todo o louvor e toda a glória para sempre!
53
Bendito sejas no templo da tua santa glória,
digno de todo o louvor e toda a glória para sempre!
54
Bendito sejas Tu que sondas os abismos,
sentado sobre querubins
digno de louvor e exaltação para sempre!
55
Bendito sejas sobre o trono da tua realeza:
digno de todo o louvor e toda a exaltação para sempre!
56
Bendito sejas no firmamento do céu,
digno de louvor e de glória para sempre!
57
Obras todas do Senhor, bendizei o Senhor,
louvai-o e exaltai-o para sempre!
58
Céus, bendizei o Senhor,
louvai-o e exaltai-o para sempre!
a
Lit.: terra habitada (oikoumene).
b
Do ponto de vista do género literário, o cântico dos três jovens pode ser caracterizado como um
hino de louvor, semelhante, na estrutura e nos temas, aos Sl 136; 148. Tb 8,5 parece resumir ou
mesmo aludir a este tipo de hinos e em particular a este de Dn 3,52ss.
17 Daniel 3

59
Anjos do Senhor, bendizei o Senhor,
louvai-o e exaltai-o para sempre!
60
Águas todas que estais acima dos céus, bendizei o Senhor,
louvai-o e exaltai-o para sempre!
61
Todos os potentados, bendizei o Senhor,
louvai-o e exaltai-o para sempre!
62
Sol e lua, bendizei o Senhor,
louvai-o e exaltai-o para sempre!
63
Estrelas do céu, bendizei o Senhor,
louvai-o e exaltai-o para sempre!
64
Chuvas e orvalhos, bendizei o Senhor,
louvai-o e exaltai-o para sempre!
65
Todos os ventos, bendizei o Senhor,
louvai-o e exaltai-o para sempre!
66
Fogo e ardor, bendizei o Senhor,
louvai-o e exaltai-o para sempre!
67
Frio e calor, bendizei o Senhor:
louvai-o e exaltai-o para sempre!
68
Orvalhos e gelos, bendizei o Senhor,
louvai-o e exaltai-o para sempre!
69
Geada e frio, bendizei o Senhor,
louvai-o e exaltai-o para sempre!
70
Gelos e neves, bendizei o Senhor,
louvai-o e exaltai-o para sempre!
71
Noites e dias, bendizei o Senhor,
louvai-o e exaltai-o para sempre!
72
Luz e trevas, bendizei o Senhor,
louvai-o e exaltai-o para sempre!
73
Relâmpagos e nuvens, bendizei o Senhor,
louvai-o e exaltai-o para sempre!
74
Bendiga a terra o Senhor,
louve-o e exalte-o para sempre!
75
Montanhas e colinas, bendizei o Senhor,
louvai-o e exaltai-o para sempre!
76
Todas as coisas que germinam da terra, bendizei o Senhor,
louvai-o e exaltai-o para sempre!
77
Fontes, bendizei o Senhor,
louvai-o e exaltai-o para sempre!
78
Mares e rios, bendizei o Senhor,
louvai-o e exaltai-o para sempre!
79
Monstros marinhos
Daniel 3 18

e tudo o que se move nas águas, bendizei o Senhor,


louvai-o e exaltai-o para sempre!
80
Todas as aves do céu, bendizei o Senhor,
louvai-o e exaltai-o para sempre!
81
Todos os animais selvagens e domésticos, bendizei o Senhor,
louvai-o e exaltai-o para sempre!
82
Todos os seres humanos, bendizei o Senhor,
louvai-o e exaltai-o para sempre!
83
Povo de Israel, bendizei o Senhor,
louvai-o e exaltai-o para sempre!
84
Sacerdotes do Senhor, bendizei o Senhor,
louvai-o e exaltai-o para sempre!
85
Servos do Senhor, bendizei o Senhor,
louvai-o e exaltai-o para sempre!
86
Espíritos e almas dos justos, bendizei o Senhor,
louvai-o e exaltai-o para sempre!
87
Santos e humildes de coração, bendizei o Senhor,
louvai-o e exaltai-o para sempre!
88
Ananias, Azarias, Michael, bendizei o Senhor,
louvai-o e exaltai-o para sempre!
Pois Ele nos libertou do mundo dos mortos
e nos salvou do poder da morte;
resgatou-nos da fornalha de fogo ardente
e arrancou-nos do meio das chamas.
89
Dai graças ao Senhor, porque Ele é bom,
porque é eterna a sua misericórdia.
90
Todos os que adorais o Senhor, bendizei o Deus dos deuses,
louvai-o e dai-lhe graças,
porque é eterna a sua misericórdia.

Profissão de fé de Nabucodonosor (2,46-49; 6,24-28; 14,40-42; Gn 41,37-57;


2Mac 9,17)
91(24)
Então o rei Nabucodonosor, surpreendido, levantou-se a toda a pressa
e, tomando a palavra, disse aos seus conselheiros: “Não foram três os homens
que amarrámos e lançámos para o meio do fogo?” Eles responderam: “Certa-
mente, ó rei”. 92(25)“Como é então – replicou o rei – que eu vejo quatro homens
a caminhar livremente no meio da fornalha, sem nada sofrerem? E o quarto
tem o aspeto de um filho de deus”a!
a
Ou.: de um filho dos deuses. Este filho de deus parece corresponder, no texto grego de 3,49-
50.95, a um anjo. A tradição cristã reconheceu na figura do anjo uma prefiguração de Cristo
como Filho de Deus.
19 Daniel 3

Nabucodonosor aproximou-se então da abertura da fornalha ardente


93(26)

e falou do seguinte modo: “Chadrac, Mechac e Abed-Nego, servos do Deus


Altíssimob, saí daí e vinde!”. Então Chadrac, Mechac e Abed-Nego saíram do
meio do fogo. 94(27)Os sátrapas, prefeitos, governadores e conselheiros do rei
juntaram-se e viram que o fogo não tinha tido poder sobre o corpo daqueles
homens, que nem os cabelos da sua cabeça ficaram chamuscados, nem os seus
mantos danificados e que nem sequer o cheiro do fogo se sentia pegado a eles.
95(28)
Nabucodonosor tomou então a palavra e exclamou: “Bendito seja o
Deus de Chadrac, Mechac e Abed-Nego, que enviou o seu anjo para libertar
os seus servos, que nele confiaram! Eles desafiaram as ordens do rei e entre-
garam ao fogo os seus corpos, para não prestarem culto ou adoração a nenhum
outro deus, a não ser o seu Deus. 96(29)Portanto, fica decretado da minha parte
para qualquer povo, nação ou língua, que todo aquele que blasfemar contra
o Deus de Chadrac, Mechac e Abed-Nego será feito em pedaços e a sua casa
reduzida a um monte de detritos. Pois não há outro Deus que seja capaz de
libertar deste modo”.
97(30)
Nesta ocasião, o rei elevou ainda mais a posição de Chadrac, Mechac
e Abed-Nego na província da Babilónia.

Carta de Nabucodonosorc (4,31-34; 6,26-28; Sl 148,13)


98(31)
“O rei Nabucodonosor a todos os povos, nações e gentes de todas as
línguas, que habitam em toda a terra: Que o vosso bem-estar seja abundante!
99(32)
Apraz-me dar-vos a conhecer os sinais e prodígios que o Deus Altíssimo
realizou em meu favor.
100(33)
Como são grandes os seus sinais
e formidáveis os seus prodígios!
O seu reino é um reino eterno
e o seu domínio estende-se de geração em geração!

b
O título Deus Altíssimo ( em hebraico: El-Elion), é frequente nos Salmos (cf. Sl 7,18; 9,3; 18,14;
21,8; 46,5; etc.) e aparece também na boca de não judeus como confissão de fé no Deus de
Israel (cf. Gn 14,18; 19.20-22; Nm 24,16; Is 14,14). O autor do livro de Daniel transforma o rei
Nabucodonosor numa espécie de gentio piedoso, capaz de reconhecer o Deus de Israel como o
Deus supremo e todo-poderoso.
c
O c. 4 do livro de Daniel tem a forma de uma epístola ou carta circular, que começa nos últimos
versículos do c. 3. O rei Nabucodonosor dirige-se a todos os povos da terra para lhes dar a
conhecer o que lhe sucedeu e confessar a sua fé no Deus Altíssimo. Dn 3,98-100 é a introdução
desta carta (incluindo a lista dos destinatários e uma doxologia) e 4,31-34 é a sua conclusão,
onde o relato volta à primeira pessoa do singular e inclui uma dupla doxologia.
Daniel 4 20

4 1
Novo sonho de Nabucodonosor (2,1-2.28; 5,5-16; Gn 41,1-24; Jz 9,8-15;
Ez 17; 31; Lc 13,18-19)
Eu, Nabucodonosor, estava tranquilo na minha casa e prosperava no meu
palácio. 2Tive um sonhoa que me aterrorizou; os pensamentos que tive sobre o
meu leito e as visões da minha mente deixaram-me perturbado. 3Mandei que
fossem trazidos à minha presença todos os sábios da Babilónia, a fim de me
darem a conhecer a interpretação do sonho. 4Vieram então à minha presença
os magos, os adivinhos, os caldeus e os astrólogos e relatei-lhes o sonho, mas
eles não me deram a conhecer a sua interpretaçãob.
5
Finalmente, veio à minha presença Daniel, chamado Beltechaçar de acor-
do com o nome do meu deus. Nele reside o espírito dos deuses santos. E eu
relatei-lhe o meu sonho, dizendo: 6‘Beltechaçar, chefe dos magos, eu sei que
o espírito dos deuses santos reside em ti e nenhum mistério te levanta dificul-
dades. Considera, pois, o sonho que tive e diz-me a sua interpretação. 7Foram
estas as visões da minha mente, quando estava no meu leito.
Estava eu a olhar
e eis que havia uma árvore
que estava no meio da terra
e a sua altura era muito grande.
8
A árvore cresceu e tornou-se forte;
o seu topo chegava aos céus
e avistava-se dos confins de toda a terra.
9
A sua folhagem era bela e o seu fruto, abundante;
nela havia alimento para todos.
Debaixo dela abrigavam-se os animais do campo
e nos seus ramos moravam as aves do céu.
E dela se alimentavam todas as criaturasc.
10
Estando eu a contemplar as visões
da minha mente sobre o meu leito,
eis que vi um vigilante, um santod, a descer dos céus.
a
Lit.: vi um sonho. Isto significa que os conceitos de sonho e de visão se equivalem, partilhando
as mesmas expressões.
b
Tal como em Dn 2, os sábios da Babilónia mostram-se incapazes de interpretar o sonho do rei.
Mas em Dn 4 o rei relata o sonho tanto aos sábios como a Daniel e só lhes pede que o interpre-
tem. Daniel vai-se mostrar novamente o único capaz de esclarecer Nabucodonosor.
c
O sonho do rei começa por descrever uma árvore de proporções gigantescas, que oferece alimen-
to e abrigo a todos os animais da terra. No mundo antigo, era comum usar este motivo de uma
árvore cósmica para descrever o rei e a prosperidade e proteção que os seus súbditos esperavam
dele (cf. Jz 9,8-15; Ez 17; Lc 13,18-19). A destruição ou queda da árvore era símbolo da queda
do rei e da casa real. Cf. Ez 31, onde o faraó do Egito é comparado a um cedro do Líbano que
será abatido e espezinhado.
d
O vigilante, identificado como santo, é um termo usado em Daniel e na literatura judaica in-
tertestamentária (livro de Henoc, livro dos Jubileus e textos de Qumran, etc.), para designar os
anjos na sua função de sentinelas divinas (cf. Zc 4,10).
21 Daniel 4

11
Ele gritava com força e dizia:
“Derrubai a árvore, cortai os seus ramos,
despojai-a da sua folhagem
e lançai fora os seus frutos!
Que os animais fujam de debaixo dela
e as aves, dos seus ramos.
12
Mas o cepo com as suas raízes, deixai-o na terra,
ligado com cadeias de ferro e de bronze.
Que ele seja molhado pelo orvalho dos céus
e partilhe com os animais a verdura da terra.
13
E que o seu coração de humano seja mudado
e lhe seja dado um coração de animal.
E sete tempos passem sobre elee.
14
Esta é a sentença decretada pelos vigilantes,
a decisão pronunciada pelos santosf,
a fim de que toda a criatura saiba
que o Altíssimo tem poder sobre a realeza dos homens;
e que Ele a dá a quem lhe apraz
e pode erguer a essa realeza
mesmo o mais humilde dos homens”.
15
Foi este o sonho que eu, o rei Nabucodonosor, tive. Agora tu, Beltechaçar,
diz-me a interpretação, pois todos os sábios do meu reino não conseguem dar-
-me a conhecer a interpretação, mas tu és capaz, porque o espírito dos deuses
santos está em ti.’

Daniel interpreta o sonho do rei (2,29-45; 5,17-29; Gn 41,25-36)


16
Então Daniel, que tinha o nome de Beltechaçar, ficou por um tempo sem
palavras, perturbado com os seus pensamentos. E o rei tomou a palavra e
disse-lhe: ‘Beltechaçar! Que este sonho e a sua interpretação não te deixem
perturbado!’ Beltechaçar respondeu-lhe assim: ‘Meu senhor! Oxalá o sonho
se aplicasse aos teus inimigos e a sua interpretação, aos teus adversários! 17A
árvore que viste crescer e tornar-se forte, cujo topo chegava aos céus e que
era avistada em toda a terra; 18essa árvore, cuja folhagem era bela e o fruto,
abundante, na qual havia alimento para todos, debaixo da qual se abrigavam os
animais do campo e em cujos ramos moravam as aves dos céus; 19essa árvore
e
Nos vv. 12-13, a alegoria da árvore começa a dar lugar a uma referência mais explícita ao des-
tino do rei da Babilónia: é ele que tomará parte com os animais do campo e verá o seu coração
humano mudado em coração de animal. A ordem para deixar um cepo com raízes serve para
sugerir que a queda do rei Nabucodonosor não será final (cf. Is 6,13; 11,1; Jb 14,7).
f
Os vigilantes ou os santos, entendidos como anjos, têm assento no conselho divino (cf. Gn 1,26;
Sl 82,1; Jb 1,6; 2,1; 1Rs 22,18-23; Is 6) e, por isso, participam das decisões do Deus Altíssimo
(cf. 4,21).
Daniel 4 22

és tu, ó rei, que cresceste e te tornaste forte; a tua grandeza elevou-se até aos
céus e o teu domínio estendeu-se até aos confins da terra.
20
E quanto ao que o rei viu, que um vigilante e santo descia dos céus e
bradava: “Derrubai a árvore e destruí-a, mas deixai o cepo com as suas raízes
na terra, ligado com cadeias de ferro e bronze e seja molhado pelo orvalho dos
céus e tenha parte com os animais do campo, até que tenham passado sobre ele
sete tempos”, 21esta é a interpretação, ó rei, e esta é a sentença do Altíssimo que
atingirá o rei, meu senhor. 22Serás expulso do meio dos homens e habitarás com
os animais do campo; dar-te-ão erva a comer como aos bois e serás molhado
pelo orvalho dos céus; passarão sobre ti sete tempos até que reconheças que
o Altíssimo tem poder sobre a realeza dos homens e que a entrega a quem
lhe apraz. 23Quanto ao que também foi dito, que se deixasse o cepo da árvore
com as suas raízes, significa que o teu reino te será restituído, quando tiveres
reconhecido a soberania dos céus.
24
Por isso, ó rei, que o meu conselho te pareça bem. Resgata os teus pecados
com obras de justiça e as tuas iniquidades sendo generoso para com os pobres.
Talvez assim se prolongue a tua prosperidade’a.

Realização do sonhob (5,30; Gn 41,47-57)


25
Tudo isto aconteceu ao rei Nabucodonosor. 26Doze meses mais tarde,
enquanto passeava no terraço do palácio real da Babilónia, 27o rei tomou a pala-
vra e disse: ‘Oh, como é grande Babilónia, que eu edifiquei como residência
real, com a força do meu poder e para glória da minha majestade’c!
28
Ainda as palavras estavam na boca do rei, quando veio dos céus uma voz:
‘Fica a saber, ó rei Nabucodonosor, que a realeza te foi tirada. 29Serás expulso
do meio dos homens e habitarás com os animais do campo; dar-te-ão a comer
erva como aos bois; e passarão sobre ti sete tempos até que reconheças que o
Altíssimo tem poder sobre a realeza dos homens e dá essa realeza a quem lhe
apraz.’ 30No mesmo instante, cumpriu-se a palavra pronunciada contra Nabuco-
donosor: foi expulso do meio dos homens e passou a comer erva como os bois e
a
Esta passagem motivou discussões entre católicos e protestantes; ela mostra como se desenvol-
veu, no judaísmo da época do segundo templo, a ideia de que os pecados são dívidas. Uma das
petições do Pai-Nosso diz literalmente: “perdoa-nos a nossas dívidas assim como nós perdoamos
aos nossos devedores” (Mt 6,12; Lc 11,4). Por outro lado, a generosidade para com os pobres
é uma forma privilegiada de “redimir essas dívidas” (cf. Pr 10,2; Tb 12,9). O apelo de Jesus a
“acumular tesouros no céu” (Mt 6,19-21) utiliza a mesma metáfora e participa da mesma lógica.
b
Este episódio pode ter-se inspirado na figura de Nabónido, último rei do império neobabilónico,
o qual, depois de conquistar Temá na Península Arábica, decidiu permanecer dez anos naquele
oásis; e a sua ausência da Babilónia alimentou muitos rumores, entre eles, o de que o rei tinha
enlouquecido. Em Qumran, encontrou-se um texto conhecido com o título de “A Oração de
Nabónido”, no qual se refere uma tradição semelhante à referida nesta passagem de Daniel sobre
Nabucodonosor.
c
Sobre a Babilónia como símbolo do orgulho humano, cf. Is 13,1-22; 21,9 e, sobretudo, Ap 14,8;
16,19; 17,5; 18,2.10.21; etc.
23 Daniel 5

o seu corpo era molhado pelo orvalho dos céus, até que o seu cabelo se tornou
comprido como as plumas das águias e as suas unhas como as garras das aves.

Conclusão da carta de Nabucodonosor (3,98-100; 6,26-28)


31
No fim daqueles dias, eu, Nabucodonosor, levantei os olhos aos céus; o
meu entendimento voltou a mim e comecei então a bendizer o Altíssimo, a
louvar e glorificar Aquele que vive eternamente, cujo domínio é eterno e cujo
reino subsiste de geração em geração. 32Todos os habitantes da terra são con-
siderados como nada e Ele procede como lhe apraz tanto com o exército dos
céus como com os habitantes da terra. E não há quem lhe possa deter a mão
ou lhe pergunte: ‘Que fizeste?’
33
Nessa altura, o meu entendimento voltou a mim e, para glória do meu
reino, o meu esplendor e a minha majestade voltaram também. Os meus con-
selheiros e nobres vieram procurar-me e fui restabelecido na minha realeza e
foi-me dada uma grandeza ainda maior.
34
Por isso, agora eu, Nabucodonosor, louvo, exalto e dou glória ao Rei dos
céus. Pois todas as suas obras são verdade e os seus caminhos são justiça. Ele
tem poder para humilhar os que caminham com altivez.”

5 Banquete do rei Baltasard (1,2; 2Rs 24,1; 2Cr 36,5-7; Est 1)


1
O rei Baltasar deu um grande banquete a mil dos seus nobres e bebeu
vinho na presença desses mil. 2Alterado pelo vinho, Baltasar mandou trazer
os vasos de ouro e de prata que Nabucodonosor, seu pai, tinha retirado do
templo de Jerusalém, a fim de beberem por eles o rei, os seus nobres, as suas
mulheres e as suas concubinas. 3Trouxeram então os vasos de ouro que tinham
sido retirados do templo da casa de Deus em Jerusalém e o rei, os seus nobres,
as suas mulheres e as suas concubinas beberam por eles. 4Enquanto bebiam
vinho, louvavam os deuses de ouro, de prata, de bronze, de ferro, de madeira
e de pedra.
5
Nesse instante, apareceram dedos de uma mão humana e escreviam sobre
o reboco da parede do palácio real, defronte do candelabro. O rei viu a extre-
midade da mão que escrevia 6e imediatamente se alterou o seu rosto e pertur-
baram-no os seus pensamentos; os músculos da cintura perderam o vigor e os
joelhos começaram a chocar um com o outro.

d
No início do c. 5 surge uma nova personagem, o rei que é conhecido em português como Bal-
tasar, equivalente ao hebraico Belchaçar. É provável que o autor do livro esteja a referir-se à
figura histórica de Belchaçar, filho do rei Nabónido. Ele foi regente na Babilónia durante os dez
anos em que o seu pai esteve ausente em Temá (cf. nota 35), mas nunca chegou a ser rei nem
sucedeu a Nabónido, que foi aliás o último rei do império neobabilónico. O episódio relatado
é provavelmente ficção, podendo ter sido inspirado pela tradição de que, pouco antes da queda
da Babilónia, se celebrou naquela cidade um importante festival religioso (cf. Is 21,5; Jr 51,39).
Daniel 5 24

Consulta do rei (2,1-12.24-27; 4,3-6; Gn 41,8-15)


7
O rei convocou com voz forte os adivinhos, os caldeus e os astrólogos.
E, tomando a palavra, o rei declarou aos sábios da Babilónia: “Quem puder
ler esta inscrição e expor-me a sua interpretação, será revestido de púrpu-
ra, levará ao pescoço um colar de ouro e será o terceiro em autoridade no
reino”a.
8
Vieram, então, todos os sábios do rei, mas não foram capazes de ler a ins-
crição, nem de dar a conhecer ao rei a sua interpretação. 9O rei Baltasar ficou
muito perturbado e o seu rosto alterou-se; os seus nobres estavam consternados.
10
A rainha, ao ouvir as palavras do rei e dos seus grandes, entrou na sala
do banquete, tomou a palavra e disse: “Que o rei viva para sempre! Não te per-
turbem os teus pensamentos nem se altere o teu rosto! 11Há um homem no teu
reino com quem está o espírito dos deuses santos. No tempo do teu pai, foi nele
que se encontrou luz, inteligência e sabedoria como a sabedoria dos deuses. O
rei Nabucodonosor, teu pai, constituiu-o chefe dos magos, adivinhos, caldeus
e astrólogos. 12Visto que se encontram em Daniel, a quem o rei pôs o nome de
Beltechaçar, um espírito superior, ciência e inteligência para interpretar sonhos,
explicar enigmas e resolver dificuldades, mande-se chamar Daniel para que ele
leia a inscrição e exponha a sua interpretação.”
13
Daniel foi então levado à presença do rei. E o rei tomou a palavra e disse
a Daniel: “És tu o Daniel dos exilados judeus, que o rei, meu pai, deportou
de Judá? 14Ouvi dizer a teu respeito que o espírito dos deuses está em ti e que
em ti se encontram também luz, inteligência e sabedoria em abundância. 15Os
sábios e os magos foram trazidos à minha presença para lerem a inscrição e
exporem a sua interpretação, mas eles não foram capazes de me dar a conhe-
cer essa interpretação. 16Ouvi dizer a teu respeito que és capaz de interpretar
enigmas e resolver dificuldades. Se, pois, puderes ler a inscrição e expor-me a
sua interpretação, serás revestido de púrpura, levarás ao pescoço um colar de
ouro e serás o terceiro em autoridade no reino.”

Daniel lê e decifra a inscrição (2,29-45; 4,16-34; Gn 41,25-57)


17
Então Daniel respondeu e disse diante do rei: “Guarda para ti os presentes
e dá a outro a recompensa. Eu, porém, lerei ao rei o que está escrito e dar-lhe-ei
a conhecer a sua interpretação.
18
Quanto a ti, ó rei, o Deus Altíssimo concedeu a Nabucodonosor, teu pai,
a realeza, a grandeza, a glória e a majestade. 19Graças à grandeza que Deus lhe
tinha concedido, todos os povos, nações e gentes de todas as línguas viviam
a
Sobre as recompensas, cf. Est 8,15 (manto de púrpura); Gn 41,42 (colar de ouro); 1Mac
10,20.62.64 (manto de púrpura e coroa de ouro). A designação terceiro em autoridade no reino
é de difícil interpretação. É possível que o autor do texto tenha em vista um tipo de triunvirato
descrito em 6,3.
25 Daniel 6

em temor e tremor diante dele. O rei mandava matar quem ele queria e deixava
com vida quem ele queria; exaltava quem queria e humilhava quem queria.
20
Mas, quando o seu coração se tornou altivo e o seu espírito empedernido
pela arrogância, foi deposto do seu trono real e foi-lhe retirada a glória. 21Foi
expulso do meio dos homens e o seu coração tornou-se semelhante ao dos
animais do campo; habitou entre burros selvagens, foi-lhe dado a comer erva
como aos bois e o seu corpo foi molhado pelo orvalho dos céus, até que reco-
nheceu que o Deus Altíssimo tem poder sobre a realeza dos homens e ergue
quem lhe apraz para essa funçãob. 22Mas, tu, Baltasar, seu filho, não te mostraste
humilde em teu coração, embora tudo isto fosse do teu conhecimento. 23Revol-
taste-te contra o Senhor dos céus; trouxeram-te os vasos do seu templo e deles
bebeste tu, os teus nobres, as tuas mulheres e as tuas concubinas, enquanto
louvavam os deuses de ouro, de prata, de bronze, de ferro, de madeira e de
pedra, que são cegos, surdos e sem entendimentoc, em lugar de dares glória
ao Deus em cujas mãos está a tua vida e o teu destino. 24Por isso, foi Ele que
fez com que aparecesse aquela extremidade da mão e que fosse gravada esta
inscrição.
25
Isto é o que está escrito: mené, tequel, parsind. 26E eis a sua interpretação:
mené significa que Deus calculou o número dos dias do teu reinado e pôs-lhe
um termo; 27tequel significa que, ao seres pesado na balança, foste considera-
do insuficiente; 28parsine significa que o teu reino foi dividido e entregue aos
medos e aos persas.”
29
Baltasar mandou então que revestissem Daniel de púrpura, que lhe colo-
cassem um colar de ouro ao pescoço e que proclamassem que ele era o terceiro
em autoridade no reino.
30
Nessa mesma noite, foi morto Baltasar, rei dos caldeus.

6 Conspiração contra Daniel (Est 3)


1
Dario, originário da Média, recebeu a realeza, quando tinha já sessenta e
dois anos de idade. 2Dario considerou que era bom nomear para o reino cento
e vinte sátrapas para se ocuparem de todo o reino. 3Sobre eles estabeleceu três

b
Sobre a possível referência histórica deste episódio, relatado em Dn 4, cf. nota 35.
c
Sobre esta forma tradicional de caracterizar os ídolos pagãos, cf. Dt 4,28; Sl 115,4-8; 135,15-18,
Ap 9,20; e ainda Dn 14.
d
O texto em aramaico repete o primeiro dos três termos (mené). Não há consenso em relação ao
significado original dos três termos, mas é possível que sejam designações de pesos ou moedas
orientais. O autor interpreta os termos à luz das raízes verbais aramaicas mnh, tql e prs, que
significam, respetivamente, medir ou calcular, pesar e dividir.
e
O texto aramaico diz: perás que parece ser o singular de parsin (v. 25). Como substantivo,
no singular seria a Pérsia e no plural, os persas. Para a narrativa em questão, ambas as formas
podem servir.
Daniel 6 26

ministros, um dos quais era Daniel; os sátrapas prestavam contas aos ministros,
a fim de não incomodarem o reia.
4
Ora, Daniel destacava-se dos ministros e sátrapas, porque havia nele um
espírito superior; o rei pensava, por isso, colocá-lo à cabeça de todo o reino. 5Os
ministros e sátrapas procuravam motivos para acusar Daniel de alguma falta,
nos assuntos da realeza. Mas não conseguiram encontrar qualquer culpa ou
falta, porque ele era íntegro e não se encontrava nenhum erro ou falta contra ele.
6
Disseram então aqueles homens: “Não encontraremos motivo algum para
acusar Daniel, a não ser no que respeita à lei do seu Deus”. 7Os ministros e
sátrapas acorreram então em tropel à presença do rei e disseram-lhe: “Que o
rei Dario viva para sempre! 8Todos os ministros do reino, os magistrados, os
sátrapas, os conselheiros e os governadores estão de acordo que o rei deve
declarar por decreto real e dispor com força de lei o seguinte: todo aquele que,
no prazo de trinta dias, dirigir preces a outro deus ou homem além de ti, ó rei,
será lançado na cova dos leões. 9Promulga, pois, ó rei, este interdito e coloca-o
por escrito para que seja inalterável conforme a lei dos medos e dos persas,
que é irrevogável.”
10
O rei Dario colocou então por escrito o interditob.

Daniel na cova dos leões (3; 14,23-42; 2Rs 19,35/Is 37,36; 2Mac 10,29-30;
Mt 28,2; Heb 11,33)
11
Quando Daniel tomou conhecimento do documento escrito, dirigiu-se a
sua casa, em cujo andar superior havia janelas orientadas na direção de Jerusa-
lém. Ali ele se punha de joelhos três vezes por dia, a fim de pedir e dar graças
ao seu Deus, como sempre havia feito antesc. 12Numa dessas ocasiões, aqueles
homens acorreram em tumulto e encontraram Daniel a dirigir preces e súplicas
ao seu Deus.

a
O c. 6 introduz a figura de Dario, um rei com origem na Média que teria herdado o império
neobabilónico. Não há registo da existência de nenhum rei de origem meda com este nome e
sabe-se que o império neobabilónico caiu às mãos dos persas e não dos medos. É provável que
o autor se tenha inspirado na figura de Dario I, rei persa e um dos sucessores de Ciro, a quem
as crónicas atribuem a reorganização do império persa (cf. 6,2). A decisão de introduzir um rei
de origem meda entre o último dos reis neobabilónicos e o primeiro dos reis persas, Ciro, pode
ter sido motivada pela referência a quatro reinos na sequência da história subjacente ao sonho
de Nabucodonosor (c. 2).
b
Os reis persas eram tolerantes no que diz respeito à liberdade religiosa e cultual dos povos do
império. É, por isso, pouco provável que o texto se refira a acontecimentos históricos: o autor
está mais interessado na lição teológica que no rigor historiográfico. A referência ao castigo da
cova dos leões pode ter sido inspirada pelo uso desta metáfora nos salmos (cf. Sl 57,5). Sobre
o carácter irrevogável dos decretos reais, cf. Est 1,19; 8,8.
c
A insistência na oração pessoal torna-se uma das marcas do judaísmo pós-exílico. A prática
de se orientar para Jerusalém em oração é aconselhada ou prescrita em 1Rs 8,35 e em escritos
apócrifos mais tardios, como o Esdras grego. Sobre a obrigação ou hábito de rezar três vezes
por dia, cf. Sl 55,17. Sobre o pôr-se de joelhos, cf. 1Rs 8,54; Esd 9,5; Lc 22,41; At 7,60; etc.
27 Daniel 6

Em seguida, apresentando-se diante do rei, disseram a respeito do interdito


13

real: “Não decretaste tu, ó rei, que todo aquele que, no período de trinta dias,
dirigisse preces a outro deus ou homem além de ti, seria lançado na cova dos
leões?” Respondeu o rei: “Assim foi, conforme a lei dos medos e dos persas,
que é irrevogável”. 14Então eles replicaram e disseram diante do rei: “É que
Daniel, um dos exilados da Judeia, não tem feito caso de ti, ó rei, nem do
interdito que promulgaste. Três vezes por dia, ele entrega-se à oração.” 15Ao
ouvir estas palavras, o rei ficou muito perturbado e pôs na ideia livrar Daniel;
e até ao pôr-do-sol esforçou-se por salvá-lo. 16Mas aqueles homens acorreram
de novo à presença do rei e disseram-lhe: “Fica a saber, ó rei, que é de lei
entre os medos e persas que os interditos e decretos que o rei promulga não se
devem mudar.”
17
O rei ordenou então que trouxessem Daniel e que o lançassem na cova dos
leões. Porém, o rei tomou a palavra e disse a Daniel: “O teu Deus, a quem tu
prestas culto fielmente, certamente te salvará”. 18Trouxeram ainda uma pedra
e colocaram-na sobre a abertura da cova. O rei mandou selar a pedra com os
sinetes do rei e dos seus nobres, para impedir que se alterasse a sentença a
respeito de Daniel. 19Depois, o rei recolheu-se ao seu palácio e passou a noite
em jejum, não mandou vir quaisquer diversõesd à sua presença e naquela noite
o sono afastou-se dele.
20
De madrugada, ao despontar da aurora, o rei levantou-se da cama e diri-
giu-se apressadamente para a cova dos leões. 21Ao aproximar-se da cova, o rei
gritou com voz aflita por Daniel, e, dirigindo-se a ele, disse: “Daniel, servo
do Deus vivo, será que o teu Deus, a quem fielmente prestas culto, conseguiu
salvar-te dos leões?” 22Daniel respondeu assim ao rei: “Que o rei viva para
sempre! 23O meu Deus enviou o seu anjo e fechou a boca dos leões e eles não
me fizeram mal, porque aos olhos de Deus estou inocente e também diante de
ti, ó rei, não cometi falta alguma”e.
24
Então o rei encheu-se de alegria por ele e ordenou que retirassem Daniel
da cova. Retiraram-no da cova e não lhe encontraram qualquer ferimento,
porque tinha confiado no seu Deus. 25Por ordem do rei, trouxeram os homens
que tinham feito a acusação contra Daniel e lançaram-nos na cova dos leões,
com os seus filhos e as suas mulheresf. E ainda não tinham chegado ao fundo
da cova, quando os leões se apoderaram deles e trituraram todos os seus ossos.

d
A expressão aqui usada só aparece neste texto e pode entender-se como significando diversos
tipos de diversões, tais como comida, música ou concubinas.
e
Daniel interpreta o que lhe sucedeu à luz da prática judicial do ordálio, também conhecida como
juízo de Deus: o facto de ter escapado ileso da cova dos leões é a prova da sua inocência diante
de Deus e do rei (cf. o caso da mulher suspeita de adultério em Nm 5,11-31).
f
A inclusão dos filhos e das mulheres no castigo reflete o antigo princípio da responsabilidade
corporativa (cf. 2Sm 21,1-14; Ez 18).
Daniel 7 28

Profissão de fé do rei Dario (2,46-49; 3,95-100; 4,31-34; 14,41; Gn 41,37-46;


2Mac 9,17)
26
Então, o rei Dario escreveu assim a todos os povos, nações e gentes de
todas as línguas, que habitam em toda a terra: “Que o vosso bem-estar seja
abundante! 27Da minha parte fica decretado que, em todos os domínios do meu
reino, todos vivam em temor e tremor perante o Deus de Daniel:
Pois Ele é o Deus vivo
e permanece para sempre;
o seu reino jamais será destruído
e o seu domínio é até ao fim.
28
Ele salva e liberta,
realiza sinais e prodígios
nos céus e na terra;
Ele salvou Daniel das garras dos leões.”
29
E foi assim que Daniel prosperou durante o reinado de Dario e durante o
reinado de Ciro, o persaa.

VISÕES APOCALÍPTICAS DE DANIEL b (7,1-12,13)

7 Primeira visão: os quatro animaisc (2; 8; 11; Ap 13,1-18)


1
No primeiro ano do reinado de Baltasar, rei da Babilónia, Daniel teve
um sonho e visões da sua mente, quando estava no seu leito. Ele colocou por
escrito os temas principais do sonho.
2
Tomando então a palavra, Daniel disse: “Estava eu a contemplar na minha
visão durante a noite e vi que os quatro ventos celestes se agitavam sobre o
grande mard. 3Subiram então do mar quatro animais monstruosos, cada um
deles diferente dos outrose.
a
A referência ao reinado de Ciro retoma 1,21 e sugere uma inclusão. É muito provável que os
seis primeiros capítulos do livro tenham circulado, pelo menos numa fase inicial, de forma
independente (ver Introdução).
b
Os cc. 7-12 formam o chamado “apocalipse de Daniel”. Trata-se, na verdade, de um conjunto
de visões relativamente diferentes que foram aqui cuidadosamente compiladas. Sobre o género
literário desta parte, ver Introdução.
c
A primeira das visões retoma o esquema dos quatro reinos subjacente ao sonho de Nabucodono-
sor relatado no c. 2. Nesta visão, contudo, a sucessão dos impérios e o triunfo divino integram
elementos e temas do imaginário mitológico do Antigo Oriente, nomeadamente das culturas e
religiões cananaicas.
d
Sobre a tradição dos quatro ventos, cf. Jr 49,36; Ez 37,9; Zc 2,10; 6,5.
e
No Antigo Oriente e na Bíblia o mar é símbolo do caos primordial. Ao simbolizar os sucessivos
impérios por meio de monstros saídos do caos, a visão transforma estes reinos históricos em
opositores diretos da ordem querida por Deus e da sua obra de criação e governo da História.
Por isso, estão destinados a ser julgados e condenados (cf. Is 27,1; 30,7; 51,9-10; Ez 29; 32; Sl
68,31; 74,13; 87,4; Jb 7,12).
29 Daniel 7

O primeiro era como um leão, mas tinha asas de águia. Enquanto estava a
4

contemplar, vi que lhe arrancavam as asas. Levantaram-no da terra, puseram-no


de pé como um homem e deram-lhe um coração de homemf.
5
E eis que um outro animal, o segundo, era semelhante a um urso. Erguia-se
sobre um dos lados e tinha na boca três costelas, entre os dentes. Foi-lhe dito:
‘Ergue-te, devora carne em abundância’g.
6
A seguir a isto, continuava eu a contemplar e vi outro animal semelhante a
um leopardo, mas com quatro asas de pássaro sobre o dorso. Este animal tinha
quatro cabeças e foi-lhe dada soberaniah.
7
Depois disto, estava eu a contemplar nas visões da noite e eis que surgiu
um quarto animal, medonho, terrível e extremamente forte. Possuía uns enor-
mes dentes de ferro e devorava e esmagava tudo, calcando aos seus pés aquilo
que restava. Este era diferente dos animais anteriores e tinha dez chifresi.
8
Estava eu a observar os chifres e eis que surgiu entre eles outro chifre mais
pequeno. Para dar lugar a este, foram arrancados três dos chifres anteriores.
Este novo chifre tinha olhos como os olhos de um homem e uma boca que
proferia palavras arrogantesj.

O ancião e o filho de homem (12; 1Rs 22,19; Is 6; Ez 1; 3,22-24; 10,1; Mt


19,28; 24,30; 26,64; Mc 14,53-65; Lc 5,24; 22,69-70; At 7,56; Ap 1,7; 14,14; 20)
9
Estava eu ainda a contemplar
até que foram colocados tronos
e um ancião de muitos dias tomou assento;
f
O primeiro animal simboliza o império neobabilónico (cf. Dn 2). O rei Nabucodonosor é com-
parado a um leão (Jr 4,7; 49,19; 50,17) e os seus exércitos a uma águia (Hab 1,8; Ez 17,3). A
transformação em ser humano reflete provavelmente a conversão de Nabucodonosor relatada
no c. 4.
g
O segundo animal simboliza, provavelmente, o império dos Medos, que é exortado a devorar a
Babilónia (cf. Jr 51,11.28).
h
O leopardo é símbolo do império persa. A imagem de rapidez e ligeireza associada ao rei Ciro em
Is 41,3 pode ter influenciado a escolha daquele animal. As quatro asas e quatro cabeças parecem
representar os quatro reis persas a que se refere o livro de Daniel (cf. 11,2). Trata-se, muito
provavelmente, dos reis Ciro, Dario, Assuero (ou Xerxes) e Artaxerxes, os únicos monarcas (ou
nomes de monarcas) persas a que se refere o texto bíblico (cf. Esd 4,5-7).
i
O quarto animal representa o império grego e não é comparado com nenhum outro animal.
A referência aos dentes de ferro e ao seu comportamento violento recorda a representação do
quarto reino em 2,40. Os chifres simbolizam poder (cf. 1Rs 22,11; Sl 92,10; 132,17-18; Zc 2,1-4;
Lc 1,69); é possível que o texto reflita a tradição, entre os reis selêucidas, de se fazerem repre-
sentar em moedas com capacetes de combate com chifres. Os dez chifres são provavelmente
uma referência aos dez reis selêucidas, ainda que o número seja mais simbólico que histórico.
j
A referência é a Antíoco IV Epifânio (175-164 a.C.). Os três chifres são provavelmente três
irmãos mais velhos de Antíoco IV (Seleuco IV, Demétrio e um outro Antíoco): o primeiro foi
assassinado por Heliodoro; Demétrio foi para Roma como refém; e o outro Antíoco foi também
assassinado. O texto parece sugerir que Antíoco IV foi responsável pelo desaparecimento dos
irmãos, concorrentes à sucessão de Antíoco III. Mas esta perspetiva não corresponde aos factos.
Sobre a atitude arrogante de Antíoco IV, cf. 11,36; 1Mac 1,24.
Daniel 7 30

as suas vestes eram brancas como a neve


e o cabelo da sua cabeça, como lã pura;
o seu trono eram labaredas de fogo,
com rodas de fogo ardente;
10
um rio de fogo corria,
jorrando de diante dele.
Milhares de milhares o serviam
e miríades de miríades se mantinham às suas ordensa.
O tribunal tomou assento
e foram abertos os livros.
11
Estava eu a contemplar por causa das palavras arrogantes proferidas pelo
chifre, quando vi a besta ser morta e o seu corpo destruído e lançado às cha-
mas de fogo. 12Quanto aos restantes animais, foi-lhes retirada a soberania, mas
prolongada a vida até um determinado tempo e momentob.
13
Estava eu a contemplar as visões da noite
e eis que, sobre as nuvens do céu,
chegava alguém semelhante a um filho de homemc.
Avançou até ao ancião de muitos dias
e conduziram-no à sua presença.
14
Foram-lhe dadas a soberania, a majestade e a realeza;
todos os povos e nações
e gentes de todas as línguas o servirão;
o seu domínio é um domínio eterno,
que jamais passará,
e o seu reino nunca será destruído.

a
O cenário altera-se ligeiramente e a visão é agora do trono celeste (cf. 1Rs 22,19; Is 6; Ez 1;
3,22-24; 10,1; Mt 19,28; Ap 20,4). A figura do ancião representa Deus; a brancura é frequen-
temente associada à santidade e ao esplendor dos seres angelicais ou divinos (cf. Mt 28,3; Mc
9,2; Ap 3,5). O fogo é frequente nas teofanias (cf. Ex 3,2; 19,18; Dt 5,4; Ez 1,4). Sobre as rodas
de fogo do carro divino, cf. Ez 1,15-21; 10,2.
b
Daniel contempla agora o juízo e a condenação dos quatro animais. Os livros são o registo
celeste do que sucede no mundo (cf. Sl 56,9; Is 65,6; Ml 3,16; Ap 20,12-13) e, uma vez abertos
e consultados, oferecem a matéria que justifica a condenação à morte do quarto animal e as
penas aplicadas aos outros três.
c
Esta referência a um ser semelhante a um filho de homem, que se aproxima sobre as nuvens do
céu, é uma das passagens bíblicas mais discutidas. Em contraste com os animais monstruosos,
esta figura chega das nuvens e aparece estreitamente associada ao ancião, isto é, a Deus e tam-
bém, segundo a interpretação da visão (Dn 7,18.22.27), ao povo dos santos do Altíssimo. Em
textos intertestamentários, como o livro de Henoc ou 2Esdras, esta figura divina ou quase-divina
de aspeto humano foi assumindo matizes messiânicos. O Novo Testamento segue nesta linha e
aplica este texto a Jesus (cf. Mt 24,30; 26,64; Mc 14,53-65; Lc 5,24; 22,69-70; At 7,56; Ap 1,7;
14,14). A tradição judaica e cristã tem assumido, em certa medida, a interpretação individual e
messiânica desta personagem em Dn 7,13. Mas alguns autores pendem para uma interpretação
coletiva desta figura simbólica.
31 Daniel 7

Interpretação da primeira visão (2; 8; 11-12; 1Mac 1,41-64)


15
Quanto a mim, Daniel, o meu espírito ficou inquieto dentro de mim e
as visões da minha mente perturbaram-me. 16Aproximei-me de um dos que
ali estavam de pé e perguntei-lhe o significado daquilo; e ele, dirigindo-se a
mim¸ deu-me a conhecer a interpretação do que acontecerad: 17‘Aqueles ani-
mais monstruosos, que eram quatro, são quatro reis que se levantarão da terra;
18
mas os santos do Altíssimo receberão o reino e guardá-lo-ão para sempre,
para todo o sempre’e.
19
Eu desejava conhecer ainda o verdadeiro significado do quarto animal,
que era diferente de todos eles e muito aterrador; ele tinha dentes de ferro e
garras de bronze: devorava e esmagava e calcava aos seus pés aquilo que res-
tava. 20Também queria saber o que significavam os dez chifres na sua cabeça
e aquele outro chifre que surgiu, provocando a queda de três dos anteriores,
aquele chifre que tinha olhos, cuja boca falava com arrogância e que parecia
maior que os seus companheiros. 21Continuei a contemplar e vi que aquele
chifre estava a fazer guerra aos santos, levando-os de vencidaf, 22até que veio
o ancião de muitos dias e fez justiça aos santos do Altíssimo, pois chegou o
tempo de os santos tomarem posse do reino.
23
Ele disse assim: ‘O quarto animal
é um quarto reino que surgirá na terra
e será diferente de todos os reinos:
ele devorará toda a terra,
calcando-a e esmagando-a.
24
Os dez chifres
são dez reis que surgirão deste reino;
depois deles surgirá outro
e este será diferente dos anteriores
e abaterá três daqueles reis.
25
Proferirá palavras contra o Altíssimo
e perseguirá os seus santos;

d
Ao contrário do que sucedia até aqui, o protagonista Daniel vê-se incapaz de decifrar o signifi-
cado da visão. É próprio do género apocalíptico recorrer à figura de um anjo ou outro ser celeste
que esclareça o interlocutor humano sobre o significado das visões (cf. Zc 1-6).
e
A expressão santos do Altíssimo parece referir-se, nesta passagem e no resto do c. 7, bem como
em 8,24, aos membros do povo de Deus (cf. Ex 19,6; Dt 7,6; 26,19; Sl 34,10; 1Mac 1,46; 1Cor
14,33; Fl 1,1). Entretanto, o texto aramaico serve-se, aqui e nos vv. 22, 25 e 27, de uma fórmula
de duplo plural: santos dos altíssimos, que alguns tentaram compreender como referindo-se aos
anjos.
f
O texto refere-se, neste ponto e no v. 25, à perseguição desencadeada pelo rei Antíoco IV
Epifânio contra a lei e os costumes judaicos na década de sessenta do séc. II a.C. (cf. Dn 8,9-
12; 9,26-27; 11,30-35; 1Mac 1,41-64; 6,6). O facto de o texto não se referir explicitamente à
profanação do templo (cf. Dn 8-12) pode sugerir que foi escrito nos primeiros meses daquela
perseguição, em finais do ano 167 a.C.
Daniel 8 32

tentará mudar os tempos e a lei;


eles serão entregues na sua mão por um tempo,
tempos e a metade de um tempoa.
26
Então o tribunal tomará assento
e retirarão dele a soberania,
que será suprimida e aniquilada até ao fim.
27
E a realeza, o poder e a grandeza
de todos os reinos que existem debaixo dos céus
serão entregues ao povo dos santos do Altíssimo.
O seu reino é um reino eterno
e todos os potentados o servirão e lhe hão de obedecer.
28
Aqui chega o relato ao fim. Quanto a mim, Daniel, muito me perturbaram
estes pensamentos e até o meu rosto se alterou em mim. Mas guardei o assunto
no meu coração”.

8 Segunda visão: o carneiro e o bode (2; 7; 11-12; Ez 34; 1Mac 1; 4)


1
“No terceiro ano do reinado do rei Baltasar, eu, Daniel, tive ainda outra
visão, depois daquela que tinha tido anteriormenteb. 2Nesta visão que eu tive,
encontrava-me na fortaleza de Susa, na província de Elam, junto ao canal de
Ulaic.
3
Levantei os meus olhos e vi que havia um carneiro que estava de pé junto
ao canal. Tinha dois chifres e estes chifres eram altos; mas um dos chifres era
mais alto que o outro, sendo que o mais alto havia crescido por último. 4Vi
o carneiro investir com os chifres na direção do ocidente, do norte e do sul:
nenhum animal resistia diante dele nem escapava ao seu poder. Fazia o que
tinha na vontade e continuava a prosperard.
5
Eu estava a tentar compreender e vi chegar do ocidente um bode, que atra-
vessou toda a superfície da terra sem tocar no chão; bem visível entre os seus
olhos havia um chifre. 6Veio até junto do carneiro que tinha dois chifres que
eu tinha visto de pé diante do canal e acometeu contra ele com todo o ímpeto
da sua força. 7Vi-o aproximar-se junto ao carneiro e enfurecia-se contra ele.
Atacou o carneiro e quebrou-lhe os dois chifres; e o caneiro não tinha força

a
A expressão literal um tempo, tempos e a metade de um tempo sugere um período de três anos
e meio, entendo cada tempo como um ano e o plural tempos como referindo-se a dois. O todo
corresponde a metade de uma semana de anos (cf. 8,14; 9,27; 11,36; 12,7; Ap 12,14; 13,5). O
vocábulo aramaico aqui usado e o equivalente hebraico usado em 12,7 têm a ver, não com o
tempo em geral, mas com os períodos estabelecidos do tempo das festas, um tempo sagrado.
b
A partir daqui e até ao final do capítulo 12, o texto volta a ser em hebraico.
c
Susa era a residência de inverno dos monarcas persas (cf. Ne 1,1; Est 1,2). O Ulai era um
importante canal artificial que passava às portas da cidade de Susa.
d
O carneiro representa o império dos Medos e dos Persas, que chegou a expandir-se até à Ásia
Menor e ao Egito.
33 Daniel 8

para lhe resistir. Atirou-o por terra e calcou-o aos pés; e não havia ninguém
para livrar o carneiro do seu podere.
8
O bode prosperou extraordinariamente, mas, no auge do seu poder, que-
brou-se o chifre grande e, em seu lugar, quatro outros chifres surgiram bem
visíveis, voltados para os quatro ventos dos céusf.
9
De um deles saiu um chifre pequeno, que cresceu e se estendeu bastante
para sul e para oriente, até à terra formosag. 10Cresceu até às alturas do exército
celeste e fez cair sobre a terra uma parte do exército celeste e das estrelas do
céu, calcando-os aos pés. 11Levantou-se mesmo contra o chefe do exército
celeste, aboliu o sacrifício perpétuo e foi profanado o lugar do seu santuário.
12
Um exército arremeteu contra o sacrifício perpétuo e atirou a verdade por
terra; assim fez e prosperouh.
13
Enquanto ouvia um dos santos falar, outro santo perguntou-lhe: ‘Até
quando durará esta visão do sacrífico perpétuo, da iniquidade devastadora, do
santuário abandonado e do exército calcado aos pési?’ 14E ele respondeu-me:
‘Duas mil e trezentas tardes e manhãsj. Depois disso, o santuário será resta-
belecido na justiça.’

Interpretação da segunda visão (2; 7; 11-12)


15
E aconteceu que enquanto eu, Daniel, continuava a olhar e procurava
entender a visão, reparei que diante de mim estava um ser com o aspeto de um

e
O bode representa o império dos Gregos. O chifre grande é Alexandre Magno; o texto faz
também alusão à rapidez com que os exércitos gregos conquistaram os vastos territórios do
império persa entre 334 e 330 a.C.
f
A referência é aos quatro generais que herdaram o império de Alexandre, os Diádocos: Ptolomeu
I Sóter, Filipe III Arrideu, Antígono Monoftalmo e Seleuco I Nicátor.
g
O chifre pequeno é Antíoco IV Epifânio (175-164 a.C., cf. Dn 7,8). A expressão terra formosa
designa o território de Israel (cf. Dn 11,16.41; Ez 20,6.15; Zc 7,14).
h
A descrição dos atos de Antíoco Epifânio adquire uma dimensão cósmico-mitológica: a sua
perseguição contra os judeus e contra os seus costumes religiosos é uma batalha contra as forças
celestes, lideradas pelo próprio Deus, chefe do exército celeste. Alguns autores, baseando-se em
Daniel 12,3, afirmam que o exército celeste e as estrelas a que o texto se refere são o símbolo
do Israel de Deus (cf. Ap 12,4). No contexto, porém, a referência parece ser ao exército dos
anjos (cf. Js 5,14; Jz 5,20; 1Rs 22,19; 2Cr 18,18). Sobre a elevação até às estrelas como uma
alegoria, cf. Is 14; 2Mac 9,10. Sobre o sacrifício perpétuo, cf. Ex 29,38-42; Nm 28,2-8.
i
A pergunta-refrão Até quando… exprime o forte desejo de que Deus ponha fim à desgraça (cf.
12,6; Sl 6,4; 79,5; 80,5; 90,13; Is 6,11; Jr 12,4; Zc 1,12; Ap 6,10). A iniquidade devastadora
parece ser uma referência à profanação do altar do templo de Jerusalém por meio da introdução
de cultos pagãos; a designação equivale a outras expressões usadas em 9,27; 11,31; 12,11.
j
Ou seja, 1150 dias; compare-se Dn 7,25: três anos e meio = 1260 dias; Dn 12,11: 1290 dias;
Dn 12,12: 1335 dias. De acordo com 1Mac 4,52-54, o templo de Jerusalém permaneceu em
estado de profanação durante 1133 dias. Esta discrepância parece indiciar um processo de
revisão interna da cronologia do fim dos tempos, que poderá ter sido motivado por sucessivos
retardamentos no cumprimento do que se esperava que sucedesse. Tardes e manhãs refere-se
ao tempo dos dois sacrifícios diários.
Daniel 8 34

homem. 16Ouvi então uma voz humana gritar do meio do Ulai e pronunciar
estas palavras: ‘Gabriel, faz com que esse homem entenda a visão’a!
17
Ele veio ao meu encontro e, ao vê-lo aproximar-se, senti grande temor e
caí de rosto por terra. Gabriel disse-me: ‘Compreende, filho de homem, que
esta visão se refere aos tempos do fim’b. 18Enquanto ele falava comigo, abateu-
-se sobre mim um sono pesado, ficando eu de rosto por terra. Mas ele tocou-me
e pôs-me de pé no meu lugar.c 19E ele continuou: ‘Vou dar-te a conhecer o que
sucederá no tempo futuro da ira, pois o fim tem o tempo fixadod. 20O carneiro
de dois chifres que viste são os reis da Média e da Pérsia. 21O bode peludo é
o rei da Grécia e o chifre grande que ele tem entre os olhos é o primeiro rei.
22
Quebrou-se o chifre e, em seu lugar, ergueram-se quatro: são quatro reinos
que surgiram deste povo, mas sem a força do primeiro.
23
No final do seu reinado,
quando os malfeitores tiverem enchido a medidae,
levantar-se-á um rei de rosto forte, capaz de compreender enigmas.
24
O poder da sua força crescerá, mas não por si mesmo;
será um portento de destruição e prosperará e atuará;
aniquilará os poderosos e o povo dos santos.
25
Pela sua inteligência, o engano triunfará nas suas mãos
e crescerá no seu coração.
Aniquilará muitos que estão em sossego
e levantar-se-á contra o príncipe dos príncipes.
Mas será quebrado sem intervenção de mão humanaf.
26
A visão sobre as tardes e as manhãs,
que te foi comunicada, é verdadeira;

a
Cf. 9,21; Lc 1,19.26.
b
Ou: o tempo do fim (cf. Dn 11,35.40; 12,4.9.13). A expressão é equivalente a nos últimos dias
(Dn 2,28; 10,14; n. 11) e parece ter, pelo menos em Dn 8,17; 11,35.40, o mesmo sentido, isto é,
serve para designar o que sucederá no futuro e que terá um certo sentido de final (cf. Hab 2,3).
No c. 12, contudo, a referência ao juízo e à ressurreição dos mortos (12,1-3.13) parece implicar
que a expressão fim dos tempos alude, neste caso, ao fim da história.
c
Cf. 10,10.16.18; Gn 15,12; Ap 1,17.
d
Trata-se da ira com que Deus deverá intervir para libertar Israel dos sofrimentos impostos pelos
impérios pagãos (cf. 8,23; Is 10,5; Zc 1,12; cf. Dn 11,36).
e
Sobre a ideia de que os malfeitores devem encher a sua medida antes do castigo, cf. Gn 15,16;
2Mac 6,14.
f
A referência à morte de Antíoco Epifânio, aqui como em Dn 11,45, não parece corresponder ao
que sucedeu em 164 a.C. Os livros dos Macabeus apresentam três versões distintas da morte de
Antíoco Epifânio (1Mac 1,14-16; 6,1-17; 2Mac 9,1-29), mas parecem estar de acordo quanto
ao facto de que a morte do rei Antíoco teve lugar na Pérsia, no contexto de uma tentativa de
assalto a um templo (cf. a crónica do historiador grego Políbio). Para o autor do texto, trata-se
de insistir que será o próprio Deus quem castigará Antíoco Epifânio, numa referência à pedra
que se desprende sem intervenção de mão humana (Dn 2,34).
35 Daniel 9

tu, porém, guarda em segredo a visão,


porque ela é para daqui a muitos dias’g.
27
Eu, Daniel, desfaleci e caí doente durante alguns dias. Depois, recuperei
e voltei a ocupar-me dos assuntos do rei. Mas andava consternado por causa
da visão e não a compreendia.”

9 Profecia dos setenta anos de desolação (Jr 25,11-14; 29,10; 2Cr 36,20-
22; Esd 1,1; Zc 1,12)
1
“No primeiro ano de Dario, filho de Assuero, da descendência dos medos,
que se tornou rei do reino dos caldeush, 2no primeiro ano do seu reinado, eu,
Daniel, indaguei nos registos o número de anos que, segundo a palavra do
SENHOR dirigida ao profeta Jeremias, teriam de passar sobre as ruínas de
Jerusalém: eram setenta anosi.

Oração de Danielj (3,25-45; Esd 9,5-15; Ne 1,4-11; 9,5-37; Est 4,17k-z; Br


1,15-3,8)
3
Voltei então o meu rosto para Deus, o Senhor, procurando fazer oração
e súplicas, com jejum e cobrindo-me de saco e cinzas. 4Invoquei o SENHOR,
meu Deus, e fiz a minha confissão, dizendo:
‘Ah! Senhor, Deus grande e terrível que é fiel à aliança e à misericórdia
para com aqueles que o amam e guardam os seus mandamentos! 5Nós pecámos,
procedemos mal, fomos iníquos e rebeldes e afastámo-nos dos teus manda-
mentos e preceitosk. 6Não escutámos os profetas, teus servos, que falaram em
teu nome aos nossos reis, aos nossos príncipes, aos nossos pais e ao povo todo
do paísl. 7A ti, Senhor, é devida a justiça e a nós, a vergonha no rosto, como
neste dia, vergonha para as gentes de Judá e os habitantes de Jerusalém, sobre
todo o Israel, os que estão perto e os que estão longe, em todos os países por

g
Cf. Dn 10,1.14; 11,2; 12,4.9; Ap 10,4; 19,9; 21,5; 22,6.10.
h
Sobre o rei Dario, cf. 6,10 nota. A referência a Assuero (no texto grego, Xerxes) é igualmente
problemática do ponto de vista histórico: se se trata do rei Xerxes I, este era filho e não pai do
rei Dario I, a quem o texto parece aludir (cf. Esd 4,5-6).
i
A referência é à profecia de Jeremias (Jr 25,11-14; 29,10). Os setenta anos são, na profecia de
Jeremias, um período de tempo simbólico que representa a duração de uma vida humana. De
acordo com 2Cr 36,20-22, os setenta anos são o período compreendido entre a destruição do
templo (587 a.C.) e a sua restauração no tempo de Ciro (cf. Esd 1,1). De acordo com Zc 1,12,
os setenta anos iriam até ao segundo ano de Dario (c. 519 a.C.). O autor de Dn 9 faz uma nova
interpretação da profecia no contexto do período helenístico.
j
A oração de Daniel pertence ao género literário de confissão comunitária do pecado (cf. 3,25-
45; Esd 9,5-15; Ne 1,4-11; 9,5-37; Est 4,17k-z; Sl 78; 106; Br 1,15-3,8). Num texto que é um
verdadeiro mosaico de citações bíblicas, Daniel pede perdão a Deus pelos pecados do povo,
que são a verdadeira razão da ruína de Jerusalém; e suplica-lhe que, na sua misericórdia, ponha
termo à desolação.
k
Cf. 1Rs 8,47; 2Cr 6,37; Sl 106,6; Br 1,17.
l
Cf. Ne 9,34; Jr 7,25; 26,5; 29,19; 35,15; 44,4–5.
Daniel 9 36

onde os dispersaste por causa das iniquidades que cometeram contra tia. 8A nós,
SENHOR, pertence a vergonha, bem como aos nossos reis, aos nossos príncipes
e aos nossos pais, pois pecámos contra ti.
9
No Senhor, nosso Deus, está a compaixão e o perdão, porque nos revoltá-
mos contra Eleb: 10não escutámos a voz do SENHOR, nosso Deus, nem segui-
mos as suas leis, que nos deu por meio dos profetas, seus servosc.
11
Todo o Israel transgrediu a tua lei e se afastou, deixando de escutar a tua
voz. Recaiu então sobre nós a maldição feita com juramento, que está escrita
na lei de Moisés, servo de Deus, porque pecámos contra Eled. 12E Ele cumpriu
as suas palavras que proferiu contra nós e contra aqueles que nos governavam
e fez recair sobre nós uma grande calamidade.Nada debaixo de todos os céus
se compara ao que aconteceu em Jerusalém. 13Toda esta desgraça recaiu sobre
nós em conformidade com o que está escrito na lei de Moisés, mas, ainda
assim, não implorámos o SENHOR, nosso Deus, renunciando à iniquidade e
confiando na sua fidelidade. 14O SENHOR esteve atento no que diz respeito a
esta calamidade e fê-la recair sobre nós, porque o SENHOR, nosso Deus, é justo
em todas as obras que Ele realizou. Nós, porém, não escutámos a sua voze.
15
Agora, Senhor, nosso Deus, Tu que fizeste sair o teu povo da terra do
Egito com mão forte e adquiriste para ti um nome que ainda hoje perdura, nós
pecámos e praticámos o malf. 16Senhor, na tua justiça, afasta a tua ira e a tua
indignação da tua cidade, Jerusalém, a tua montanha santa, pois é pelos nossos
pecados e pelas iniquidades dos nossos pais que Jerusalém e o teu povo se
tornaram objeto de escárnio entre todos os que nos rodeiamg.
17
Agora, ó nosso Deus, escuta a oração e as súplicas do teu servo e, pela
honra do Senhor, faz brilhar a tua face sobre o teu santuário devastadoh. 18Inclina
o teu ouvido, meu Deus e escuta; abre os teus olhos e vê as nossas devastações
e a cidade sobre a qual é invocado o teu nome, porque não é em atenção aos
nossos méritos que colocamos a teus pés as nossas súplicas, mas por causa da
tua grande misericórdiai.
19
Escuta, Senhor! Perdoa, Senhor! Atende, Senhor e intervém! Pela tua
honra, ó meu Deus, não tardes, porque o teu nome é invocado sobre a tua
cidade e sobre o teu povo.’

a
Cf. Esd 9,7; Jr 16,15; 23,3; 32,37; Br 1,15.
b
Cf. Ne 9,17.
c
Cf. Ex 15,26; 19,5; Dt 4,30; 2Rs 17,13; Esd 9,11.
d
Cf. Lv 26,14-39; Dt 28,15-68.
e
Cf. Esd 9,15; Ne 9,8.33.
f
Cf. 3,31.41; Dt 6,21; 9,26; Esd 9,8.10; Ne 9,10.32; Jr 32,20; Br 2,11.
g
Cf. Nm 25,4; Sl 44,14; Is 12,1; Jr 23,20; 30,24.
h
Cf. Nm 6,25; 1Rs 8,28; Ne 1,6.11; Is 48,11; Jr 14,7; Lm 5,18.
i
Cf. 1Rs 19,16/Is 37,17.
37 Daniel 9

Revelação do anjo Gabrielj (2; 7; 8; 11-12; Lc 1)


20
Ainda eu estava a falar, rezando e confessando o meu pecado e o pecado
do meu povo, Israel, derramando a minha súplica diante do Senhor meu Deus
sobre a montanha santa do meu Deus; 21ainda eu falava em oração, quando
Gabriel, o homem que eu tinha visto anteriormente em visão se aproximou de
mim voando rapidamente, à hora da oblação da tarde.
22
Ele chegou, falou comigo e disse: ‘Daniel, saí agora ao teu encontro para
te fazer chegar à compreensão. 23Logo que começaste a rezar, foi proferida uma
palavra e eu vim dar-ta a conhecer, porque tu és um predileto. Considera, pois,
o que te digo e compreende a visão:
24
Foram fixadas setenta semanas
para o teu povo e para a tua cidade santa,
até que cessem as faltas
e seja selado o pecado,
seja expiada a iniquidade
e estabelecida uma justiça eterna,
até que seja selada a visão e a profecia
e ungido o Santo dos Santosk.
25
Portanto, fica a saber e compreende.
Desde o momento em que é proferida a palavra
para restaurar e reconstruir Jerusalém
até que surja o príncipe ungido,
passarão sete semanas;
durante sessenta e duas semanas,
Jerusalém será reconstruída,
com a sua praça e o seu fosso,
mas serão ainda tempos de angústial.
j
Ao contrário do que sucede noutros capítulos, no c. 9 de Daniel não se trata de explicar o
sentido de uma visão, mas de revelar o significado de uma profecia bíblica. Trata-se de uma
interpretação e atualização das profecias antigas, que obedece à mesma lógica dos comentários
(pecharim) que se encontram nos textos de Qumran.
k
Nesta reinterpretação da profecia de Jeremias, os setenta anos são, na verdade, setenta semanas
de anos, ou seja, 70 x 7 anos = 490 anos. Dn 9 segue a lógica dos jubileus proposta em Lv 25,
segundo a qual o ano jubilar conclui um período de sete semanas de anos, isto é, 49 anos. Os
490 anos de 9,24 correspondem a dez jubileus. É ao termo desse período (e não nos inícios
do período persa, como sugerem 2Cr 36,20-22; Esd 1,1; Zc 1,12) que se dará a verdadeira
restauração do povo de Israel após o exílio e a purificação do Santo dos Santos, que é a parte
mais sagrada do templo. Trata-se provavelmente de uma referência à purificação do templo
na época dos Macabeus (164 a.C.; cf. 1Mac 4,36-59), ainda que o texto possa não implicar o
conhecimento dos eventos, mas apenas a esperança de que aconteçam.
l
É difícil perceber a que eventos e personagens o texto se refere. A palavra para restaurar e
reconstruir pode ser a profecia de Jeremias (Jr 29,10), datada de 597 a.C., ou a palavra pronun-
ciada agora (v. 23), datada do primeiro ano de Dario (cf. Dn 9,1). O príncipe ungido parece ser
uma referência ao sumo-sacerdote, Josué, corresponsável pela edificação do segundo templo
e declarado como ungido, tal como Zorobabel (cf. Zc 4,14), mas é igualmente possível que se
trate do persa Ciro (Is 45,1). Na lógica do texto, as sessenta e duas semanas cobrem a totalidade
do período persa e uma parte significativa do período helenístico, que são assim caracterizados
como tempos de angústia, apesar do progresso havido na reconstrução de Jerusalém.
Daniel 10 38

26
Após essas sessenta e duas semanas,
um ungido será exterminado,
mas não por causa dele mesmo.
O exército de um príncipe que então virá
destruirá a cidade e o santuário;
acabará num cataclismo
e até ao fim
será a guerra decretada, a desolaçãoa.
27
Por uma semana,
fortalecerá uma aliança sólida com muitosb;
a meio da semana,
fará cessar o sacrifício e a ofertac;
no pináculo das abominações estará o devastadord
até se completar o tempo decretado
para a destruição do devastador.’ ”

10 1
Visão final: aparição do anjoe (8,15-18; 9,20-21; Ez 1; 9; 10; Ap
1,13.15)
No terceiro ano de Ciro, rei da Pérsia, foi revelada uma palavra a Daniel,
a quem chamavam Beltechaçar. A palavra era verdadeira e referia-se a uma
grande luta. Ele compreendeu a palavra e compreendeu o sentido da visão.
2
“Naqueles dias, eu, Daniel, estive de luto durante três semanas. 3Não pro-
vei nenhum alimento preferido, nem entraram na minha boca carne ou vinho,
nem me ungi com óleo perfumado, até se completarem as três semanasf. 4No
dia vinte e quatro do primeiro mês, estando eu nas margens do grande rio, o
rio Tigreg, 5levantei os olhos e vi um homem vestido de linho, cingido com
uma faixa de ouro puro. 6O seu corpo era semelhante ao topázio e o seu rosto

a
O texto refere-se, neste ponto, ao assassinato do sumo-sacerdote Onias III em 171 a.C. (cf. 11,22;
2Mac 4,23-28). O príncipe cujo exército destruirá a cidade e o santuário é Antíoco IV Epifânio.
b
Referência aos judeus helenizantes, aliados a Antíoco Epifânio (cf. 11,30-32; 1Mac 1,11-14;
2Mac 4-5).
c
Cf. 7,25.
d
A palavra hebraica equivalente a o devastador (cf. 11,31; 12,11) contém um trocadilho com o
nome de Baal-Chamém (Baal dos céus), que corresponde na Síria ao Zeus Olímpico. O texto
refere-se à profanação do altar do templo de Jerusalém no tempo de Antíoco Epifânio, que ali
terá mandado colocar uma estátua de Zeus Olímpico (cf. 1Mac 1,54). A expressão é utilizada
no NT, no contexto da descrição da destruição do segundo templo pelos romanos (cf. Mt 24,15;
Mc 13,14).
e
Os cc. 10 a 12 formam uma unidade: Daniel recebe a aparição de um anjo que lhe revela o que
sucederá durante o período helenístico (c. 11) e lhe anuncia a vitória final do anjo Miguel e a
salvação do povo de Deus (c. 12).
f
Ao contrário do que sucede no c. 9 (cf. 9,3), o luto a que Daniel se sujeita não tem carácter
penitencial; serve apenas como preparação para as revelações de cariz apocalíptico.
g
Cf. Dn 8,1.16; Ez 1,1. O rio Tigre é um dos dois grandes rios da região da Mesopotâmia.
39 Daniel 10

brilhava como o relâmpago; os seus olhos eram como chamas ardentes e os


seus braços e as suas pernas tinham o aspeto do bronze polido; o som das suas
palavras era como o da voz de uma multidãoh. 7Só eu, Daniel, é que contem-
plei esta visão. Os homens que estavam comigo não a viram, mas apoderou-se
deles um tão grande terror que correram a esconder-se. 8Fiquei então sozinho a
contemplar esta extraordinária visão. Já não me restavam mais forças, o brilho
do meu rosto empalideceu e não consegui segurar as forças.

Diálogo entre o anjo e Daniel (8,15-19; 9,22-23)


9
Ouvi o som das suas palavras e, ao ouvir o som dessas palavras caí ator-
doado de rosto por terra. 10Tocou-me então uma mão e fez-me mover sobre
os joelhos e as palmas das mãos. 11Disse-me ele: ‘Daniel, homem predileto,
presta atenção às palavras que eu te dirijo; põe-te de pé, pois foi a ti que eu
fui agora enviado.’
Ao ouvir as palavras que me dirigia, pus-me de pé, a tremer. 12Ele conti-
nuou: ‘Não temas, Daniel, pois, desde o primeiro dia em que aplicaste o teu
coração para compreenderes e te humilhares diante do teu Deus, as tuas pala-
vras foram ouvidas e eu próprio vim por causa das tuas palavras. 13O príncipe
do reino da Pérsia opôs-me resistência durante vinte e um dias; então Miguel,
um dos primeiros entre os príncipes, veio em meu auxílio e ali o deixei, junto
dos reis da Pérsiai. 14E vim para te fazer compreender o que sucederá ao teu
povo nos dias futuros, pois esta visão refere-se ainda a esses dias’j.
15
Enquanto ele me dirigia estas palavras, inclinei o rosto por terra e guardei
silêncio. 16Nisto, alguém com a aparência de um filho de homem tocou-me nos
lábiosk. Abri a boca, falei e disse àquele que estava diante de mim: ‘Meu senhor,
por causa desta visão, fui acometido de dores e não consegui segurar as forças.
17
Como posso eu, servo do meu senhor, falar ainda com o meu senhor? Pois
agora mesmo deixei de ter força e não me resta nenhum fôlego.’
18
Aquele que tinha aparência de homem tocou-me novamente e devolveu-
-me a força; 19e disse-me: ‘Não temas, homem predileto! A paz esteja contigo!
Sê forte! Sê forte!’
Enquanto me dirigia estas palavras, recuperei as forças e disse: ‘Fala, por
isso, meu senhor, porque me devolveste a força.’ 20Ele continuou: ‘Sabes por
que vim ao teu encontro? Vou voltar agora à luta contra o príncipe da Pérsia;

h
A descrição do ser de aspeto humano que aparece a Daniel em visão é fortemente inspirada no
livro de Ezequiel (Ez 1; 9,2.3.11; 10,2.6.7; cf. Ap 1,13.15).
i
Sobre a noção de que cada nação tem o seu anjo protetor, cf. Dt 32,8-9, segundo a versão dos
Setenta. Esta é a primeira referência na Bíblia ao anjo Miguel, cujo nome significa “quem é
como Deus?” e que, de acordo com Dn 10,21; 12,1, é o protetor do povo de Israel (cf. Ap 12,7).
j
Sobre a expressão nos dias futuros, cf. 2,28 e 8,17 nota.
k
Cf. Is 6,7; Jr 1,9.
Daniel 11 40

quando eu acabar, surgirá o príncipe da Grécia. 21Mas vou anunciar-te o que


está escrito no livro da verdadea. E ninguém se esforçou comigo na luta contra
eles, a não ser Miguel, o vosso príncipe.

11 Guerras entre Selêucidas e Ptolomeus (2,36-43; 7,23-24; 8,19-22)


1
No primeiro ano do rei Dario, originário da Média, estive presente para
o fortalecer e apoiar.
2
Mas digo-te agora a verdade: a Pérsia terá ainda mais três reis e o quarto
destes reis há de acumular riqueza, mais que todos os outros. E, apoiando-se
na sua riqueza, agitará tudo e todos contra o reino da Gréciab.
3
Levantar-se-á então um rei poderoso, que exercerá domínio sobre um vasto
território, agindo à sua vontade. 4Contudo, depois de triunfar, o seu reino será
quebrado e repartido pelos quatro ventos dos céus. Não passará à sua des-
cendência, nem será tão vasto como o foi sob o seu domínio. A realeza será
erradicada e dada a outros e não aos seus descendentesc.
5
Entretanto, o rei do Sul mostrar-se-á poderoso, mas um dos seus oficiais
prevalecerá contra ele e exercerá o domínio, um domínio mais poderoso que
o do anteriord.
6
Ao fim de alguns anos, farão uma aliança e a filha do rei do Sul irá ao
encontro do rei do Norte para fazerem um acordo de justiça. Contudo, ela não
conservará a força do seu braço e a sua descendência não subsistirá, pois será
entregue ela, os que a conduziram, o seu filhoe e aquele que, naqueles tempos,
a apoiouf.
7
Um rebento das suas raízes erguer-se-á em lugar dele, atacará o exército
e conseguirá entrar na fortaleza do rei do Norte; lutará contra eles e vencerá.
8
Levará cativos, para o Egito, os deuses deles, assim como as suas imagens de
metal e os utensílios preciosos de prata e ouro. Durante uns anos, manter-se-á

a
Ainda que o texto seja de difícil interpretação, é necessário distinguir o livro da verdade dos
livros referidos em 7,10. O livro da verdade pode ser o que contém a descrição do curso da
História como acontece na literatura apocalíptica. Um paralelo oriental poderia ser a chamada
“tábua dos destinos” da mitologia babilónica.
b
Os quatro reis persas a que aqui se faz referência são, muito provavelmente, Ciro, Dario, Assuero
(ou Xerxes) e Artaxerxes, os únicos monarcas persas a que se refere o texto bíblico (cf. 7,6; Esd
4,5-7).
c
Referência ao reinado de Alexandre Magno (cf. 8,5-8).
d
O rei do Sul ou do Egito é Ptolomeu I Sóter. O general Seleuco I Nicátor, um dos seus oficiais,
acabará por se tornar independente e fundar a dinastia dos Selêucidas, que exercerá domínio
sobre os vastos territórios asiáticos conquistados por Alexandre Magno, o reino do Norte.
e
Ou: o seu progenitor, segundo o TM.
f
O texto refere-se ao casamento de Antíoco II Teos, neto de Seleuco, com a princesa Berenice,
filha de Ptolomeu II Filadelfo. Depois da morte de Antíoco II, Berenice, o filho de ambos e uma
parte da sua corte serão assassinados no decurso de uma conspiração liderada pela primeira
mulher de Antíoco, Laódice.
41 Daniel 11

longe do rei do Norte. 9Este atacará o reino do rei do Sul, mas regressará ao
seu paísg.
10
Os seus filhos levantar-se-ão para a guerra, reunindo uma multidão nume-
rosa de soldados, chegando como uma enxurrada que transborda; e de novo
levantar-se-ão em guerra até à fortalezah. 11O rei do Sul ficará furioso e sairá a
combater contra ele, contra o rei do Norte, que terá então reunido uma nume-
rosa multidão, mas essa multidão cairá na mão do rei do Suli. 12Quando esta
multidão for dispersa, ele encher-se-á de soberba e abaterá dezenas de milhares,
mas não se fortalecerá.
13
O rei do Norte voltará a constituir um exército maior que o primeiro e, ao
fim de alguns tempos, alguns anos, chegará de novo com um grande exército e
uma vasta comitiva. 14Naqueles tempos, muitos se levantarão contra o rei do Sul
e surgirão homens violentos do meio do teu povo, para cumprir a visão, mas hão
de fracassar. 15Avançará então o rei do Norte, construirá uma rampa de ataque
e acabará por capturar a cidade fortificada. As forças do reino do Sul, mesmo
as suas tropas de elite, não lhe poderão resistir. Não há força que lhe resistaj.
16
O invasor agirá conforme a sua vontade, já que ninguém lhe oporá resis-
tência. Instalar-se-á na terra formosak e esta fica toda na sua mão. 17Ele tem em
mente chegar a conquistar todo o seu reino. Estabelecerá um acordo com o rei
e dar-lhe-á em casamento uma das suas filhas, a fim de o arruinar. Mas a ideia
não vingará e não se realizará a favor delel.
18
Voltar-se-á então para as ilhas e conquistará muitas delas, até que um chefe
militar porá termo ao insulto, sem lhe responder com insultom. 19Dirigir-se-á
finalmente às fortalezas do seu próprio país, mas vai fracassar e, caindo em
desgraça, não mais será encontradon.
g
Trata-se do irmão de Berenice, Ptolomeu III Evergetes, que herdou o trono dos Ptolomeus em
246 a.C. Como vingança pelo assassinato da sua irmã, invadiu a Síria e venceu em batalha
Seleuco II Calínico, filho de Laódice. Este último acabou por se recompor do ataque e retribuir
o golpe, ainda que sem sucesso.
h
Os filhos de Seleuco II Calínico são Seleuco III Sóter e Antíoco III, o Grande.
i
A referência é à vitória de Ptolomeu IV Filopátor sobre Antíoco III em Rafia, em 217 a.C.
j
Alguns anos depois, após a morte de Ptolomeu IV, Antíoco III volta a atacar o reino dos Pto-
lomeus, agora sob a liderança de Ptolomeu V Epifânio. Vencendo o exército de Ptolomeu em
Bânias (mais tarde, Cesareia de Filipe), Antíoco passa a exercer domínio sobre o território da
Palestina, onde distintas fações parecem ter-se envolvido em conflitos violentos. O parágrafo
termina com uma referência à tomada de Sídon, em 198 a.C., por Antíoco III.
k
Sobre a expressão terra formosa, cf. nota a 8,9.
l
Antíoco III fará um acordo de paz com Ptolomeu V e dar-lhe-á em casamento a sua filha Cleó-
patra. O objetivo era usurpar a liderança de Ptolomeu V, mas Cleópatra acabou por tomar o
partido do marido e condenar ao fracasso o plano do pai.
m
Antíoco III volta-se para a Ásia Menor e acaba por conquistar um certo número de ilhas gregas,
acabando por enfrentar-se com os romanos, que lhe impõem pesada derrota em Magnésia em
190 a.C. O chefe militar é Cipião, cônsul romano, que liderou as tropas romanas em Magnésia.
n
Antíoco III retira-se para os seus domínios na Ásia e acaba por morrer assassinado em 187 a.C.,
no decurso de uma tentativa falhada de saquear o templo de Bel em Elam. O saque destinava-se
a pagar o pesado tributo que lhe tinha sido imposto pelos romanos.
Daniel 11 42

Em lugar dele erguer-se-á um outro que enviará um oficial a espoliar o


20

esplendor do reino, mas, em apenas alguns dias, será destruído, ainda que não
em resultado de fúria ou de guerraa.

Antíoco IV Epifânio (7,24-25; 8,23-25; 9,26-27)


21
Em seu lugar erguer-se-á um homem desprezado, a quem não havia sido
conferida a dignidade da realeza. Virá pela calada e apoderar-se-á do reino com
artimanhasb. 22Forças impetuosas serão dispersas e desbaratadas na sua frente e
também o príncipe da aliançac. 23E fazendo alianças em seu benefício, usará de
perfídia e, com apenas um punhado de homens, pôr-se-á em marcha e afirmará
o seu poderd. 24Atacará pela calada as regiões mais opulentas da província e fará
o que não fizeram os seus pais nem os pais dos seus pais, distribuindo entre
os seus os frutos da pilhagem, despojos e riquezas. Fará planos para atacar as
fortalezas, mas só até um determinado tempo.
25
Despertando a sua força e coragem, atacará o rei do Sul com um grande
exército. O rei do Sul envolver-se-á na luta com um exército grande e muito
poderoso, mas não lhe poderá resistir, por causa das maquinações que fizeram
contra ele. 26Aqueles que comem das suas iguarias irão arruiná-lo; o seu exér-
cito será esmagado e muitos cairão feridos de mortee.
27
O coração dos dois reis inclinar-se-á para o mal e, sentados à mesma
mesa, trocarão palavras de engano um com o outro. Mas a intenção não terá
sucesso, pois o fim continuará a ser no tempo determinado. 28O rei regressará
ao seu país com grandes riquezasf e com a intenção de atacar a aliança santag.
E, depois de o realizar, regressará para o seu país.
29
No tempo determinado, invadirá de novo o Sul, mas esta última expedição
não será como a primeira e como a última. 30Será atacado por navios de Kitim,
que lhe farão perder o ânimo e bater em retiradah. Inflamar-se-á contra a aliança
a
O sucessor de Antíoco III, Seleuco IV Filopátor, foi obrigado a procurar fundos para pagar tri-
buto aos romanos. Enviou Heliodoro a Jerusalém a fim de pilhar o tesouro do templo, episódio
relatado em 2Mac 3. Heliodoro acabará por conspirar contra Seleuco e assassiná-lo em 175 a.C.
b
A referência é para Antíoco IV Epifânio, que, na lógica do livro, adquiriu o poder por meio de
artimanhas (cf. 8,23-25).
c
O texto parece aludir neste ponto ao assassinato do sumo-sacerdote Onias III em 171 a.C. (cf.
9,26; 2Mac 4,23-28).
d
A referência é, muito provavelmente, para a aliança com Pérgamo, que lhe permitiu adquirir o
poder com recurso a uma força militar de pequenas dimensões.
e
O rei do Sul é agora Ptolomeu VI Filométor, que será derrotado por Antíoco IV, numa batalha
junto a Gaza. O autor do texto culpa os conselheiros reais pela derrota.
f
Os dois reis negoceiam de má-fé um com o outro e nenhum chega a prevalecer. Antíoco IV
regressa finalmente a Antioquia.
g
Isto é, o povo de Israel. Trata-se, muito provavelmente, de um ataque contra o templo de Jerusalém.
h
Trata-se da segunda expedição de Antíoco IV contra o Egito ptolomaico em 168 a.C. Confron-
tado pelas forças romanas que exigem a sua retirada, Antíoco vê-se obrigado a partir de mãos
vazias. A expressão Kitim deriva do nome da cidade cipriota de Kitium e serve para designar
não só os habitantes de Chipre, mas todos os povos da bacia mediterrânea (cf. Gn 10,4; 1Mac
1,1; 8,5). Mais tarde, este termo passa a designar os romanos. O texto do c. 11,30 parece ter
sido inspirado pela formulação em Nm 24,24.
43 Daniel 11

santa e agirá contra ela, mas voltou a dar atenção àqueles que tinham abandona-
do a aliança santa. 31Da parte dele erguer-se-ão forças para profanar o santuário,
a fortaleza; abolirão o sacrifício perpétuo e estabelecerão a abominação devas-
tadorai. 32Com palavras de lisonja, atrairá à apostasia os que tiverem violado a
aliança, mas o povo daqueles que conhecem o seu Deus resistirá e cumprirá.
33
Os homens sabedores de entre o povo instruirão um grande número, mas,
por um tempo ainda, sucumbirão pela espada e pelo fogo, pelo cativeiro e pela
pilhagem, durante dias. 34Ao sucumbirem, será pouca a ajuda que receberão;
muitos juntar-se-ão a eles com hipocrisia. 35Alguns dos sabedores sucumbirão,
a fim de serem provados, purificados e branqueados até ao tempo do fim, pois
ainda não é o tempo determinadoj.
36
O rei agirá segundo a sua vontade; orgulhar-se-á e exaltar-se-á acima
de todos os deuses e proferirá palavras arrogantes contra o Deus dos deusesk.
Prosperará apenas até que se encha a medida da cólera, pois foi decretado e
será cumpridol. 37Não mostra consideração pelo deus de seus pais nem pelo que
faz as delícias das mulheres; desprezará todos os deuses, pois considerar-se-á
superior a todos eles. 38Honrará, em lugar deles, o deus das fortalezas; honra-
rá, com ouro e prata, pedras preciosas e joias, um deus que os seus pais não
conheceram. 39Lidará com as mais inexpugnáveis fortalezas com a ajuda de um
deus estrangeiro e cumulará de honra aqueles que o reconhecerem: dar-lhes-á
domínio sobre muitos súbditos e distribuirá terras entre eles como recompensam.
40
No tempo do fim, o rei do Sul confrontar-se-á contra o rei do Norte, mas
este último arremeterá contra ele como um furação, com carros e cavaleiros
e grande número de navios. Invadirá ainda outros territórios e passará como
se fosse uma enxurrada. 41Invadirá também a terra formosan e muitos milha-
res sucumbirão. Apenas escaparão da sua mão os edomitas, os moabitas e os
melhores dos amonitas. 42Estenderá a sua mão em direção a diferentes países
i
O parágrafo refere-se à perseguição desencadeada por Antíoco IV Epifânio contra o povo judeu,
a partir de 168 a.C. Sobre a aliança de Antíoco com os judeus helenizantes, cf. 9,271; Mac 1,11-
14; 2Mac 4-5. Sobre a abominação devastadora, veja-se n. 102.
j
Os sabedores (em hebraico, maskilim) são um grupo de judeus que permanece fiel à aliança com
Deus e procura guiar o povo; grupo com o qual o autor do livro de Daniel se identifica (cf. Dn
12). Partilhando com os judeus liderados por Judas Macabeu o ideal da fidelidade a Deus diante
das ameaças de Antíoco Epifânio, o grupo parece, porém, ter adotado uma atitude mais pacifista.
O termo maskilim é inspirado na figura do Servo Sofredor de Isaías (cf. Is 52,13; 53,11). Sobre
as imagens adotadas na descrição do processo de purificação dos sábios, cf. Sir 2,5; Ap 7,14.
Sobre a expressão tempo do fim, cf. 8,17 e nota.
k
Cf. 7,8.20; 8,11.
l
Cf. 8,19.
m
Antíoco IV parece ter promovido, com especial devoção, o culto de Zeus Olímpico, identificado
com Baal-Chamém. O autor do texto considera que tal preferência acarretou o desprezo pelo
culto dos deuses dos seus antepassados e de Tamuz, o deus querido das mulheres (cf. Ez 8,14).
Outras fontes literárias oferecem-nos uma visão menos polémica das preferências cultuais de
Antíoco IV. A referência ao deus das fortalezas é de difícil interpretação; é possível que se trate
de um título algo depreciativo aplicado a Zeus Olímpico.
n
Cf. nota 71.
Daniel 12 44

e nem a terra do Egito escapará. 43Apoderar-se-á de tesouros de ouro e de


prata, de tudo o que há de mais precioso no Egito; e líbios e etíopes seguirão
os seus passosa.
44
Contudo, rumores vindos do oriente e do Norte perturbá-lo-ão e ele par-
tirá, cheio de fúria, a destruir e exterminar muitosb. 45Armará as tendas do seu
acampamento real entre os mares, junto à montanha santa da terra formosac.
Chegará então ao termo a sua vida, sem ter ninguém para o ajudard.

12
1
Triunfo de Miguel e ressurreição dos mortos (2,44; 7,27; 2Mac 7;
12,43-45; Mt 13,43; 1Cor 15,35-41)
Naquele tempo, erguer-se-á
Miguel, o grande príncipe,
que protege os filhos do teu povoe.
Será um tempo de angústia,
como não terá havido até então,
desde que o povo começou a existir.
Naquele tempo, o teu povo será resgatado,
todos os que se encontravam inscritos no livrof.
2
E muitos dos que dormem
no pó da terra acordarão,
uns para a vida eterna,
outros para o opróbrio e o horror eternog.
3
Os sábios resplandecerão
como a luz do firmamento
e os que tiverem conduzido muitos pelos caminhos da justiça
brilharão como as estrelas por toda a eternidadeh.
4
E tu, Daniel, guarda em segredo as palavras e sela o livro até ao tempo do
fim. Muitos andarão à procura e o conhecimento aumentará’i.
a
O texto refere-se à última expedição de Antíoco IV contra o Egito.
b
Cf. 2Rs 19,7/Is 37,7. O texto parece referir-se à revolta dos Partos, a Oriente, e dos Arménios,
a Norte, que motivou o regresso de Antíoco às regiões orientais do seu império, onde viria a
morrer em 164 a.C.
c
Isto é, entre o mar Mediterrâneo e Jerusalém.
d
Sobre os relatos da morte de Antíoco Epifânio no livro de Daniel, cf. 8,27 nota.
e
Sobre Miguel, cf. 10,13.21 e nota.
f
Cf. Ex 32,32; Is 4,3; Jr 30,7; Jl 2,2; Mt 24,15-22; Ap 3,5; 13,8; 17,8.
g
Neste parágrafo, anuncia-se tanto a libertação de Israel, com a morte de Antíoco Epifânio e o fim
da perseguição desencadeada por ele, como o juízo e a ressurreição dos que morreram. Ainda
que a linguagem da ressurreição seja usada nalgumas passagens da Bíblia em sentido figurado
ou metafórico para designar a restauração nacional (cf. Is 26,19; Ez 37; Os 6,2), parece claro
que Dn 12 se refere não só à libertação histórica do povo, mas também ao que sucederá depois
da morte, eventualmente no termo da história (cf. 2Mac 7; 12,43-45; 1Cor 15,35-41).
h
Cf. 11,33-35; Mt 13,43.
i
Cf. 8,26. Sobre a expressão tempo do fim ou fim dos tempos aqui e nos vv. 9 e 13, cf. 8,17 e nota.
45 Daniel 13

Eu, Daniel, continuava a contemplar e vi então ainda dois outros de pé, um


5

na margem de cá e outro na margem de lá do rio. 6Um deles disse ao homem


vestido de linho que estava sobre as águas do rio: ‘Para quando será o fim
destes prodígios?’j 7Ouvi então o homem vestido de linho que estava sobre as
águas do rio erguer as mãos, direita e esquerda, para os céus e jurar por Aquele
que vive para sempre: ‘Será por um tempo, tempos e metade de um tempo.
Quando a força do povo santo estiver inteiramente esgotada, então chegarão
ao fim todas estas coisas’k.
8
Eu ouvi, mas não compreendi; por isso, perguntei-lhe: ‘Meu senhor, qual é
o futuro destas coisas?’ 9Ele respondeu-me: ‘Vai, Daniel, porque estas palavras
manter-se-ão secretas e seladas até ao tempo do fim. 10Muitos serão purificados,
branqueados, postos à prova; os malfeitores praticarão a maldade. Nenhum dos
malfeitores compreenderá, mas os sabedores, esses compreenderãol. 11Desde
o tempo em que for abolido o sacrifício perpétuo e estabelecida a abominação
devastadora, terão de passar mil duzentos e noventa dias. 12Feliz daquele que
perseverar e chegar aos mil trezentos e trinta e cinco diasm. 13Mas, tu, caminha
para o fim e descansa. Levantar-te-ás para o teu destino no fim dos dias’n.

DANIEL E SUSANA

13 Susana e os dois anciãos


1
Havia um homem chamado Joaquimo que habitava na Babilónia. 2Tinha
tomado como esposa uma mulher chamada Susana, filha de Hilquias, que era

j
Cf. 8,13 e nota; 10,5.
k
Sobre a expressão um tempo, tempos e metade de um tempo, cf. 7,25 e nota.
l
Cf. 11,35 e nota.
m
Os vv. 11 e 12 acrescentam ainda mais dois números à já de si incerta cronologia do fim dos dias
ou fim dos tempos”: o v. 11 afirma que o templo estará em estado de profanação 1290 dias, ao
passo que o v. 12 parece implicar que serão afinal 1335 dias; compare-se 7,25 (três anos e meio
= 1260 dias); 8,14 (1150 dias); 1Mac 4,52-54 (três anos = 1133 dias). O texto de 12,11.12 é,
muito provavelmente, obra de glosadores que decidiram prolongar a cronologia para responder
ao atraso no cumprimento do que se esperava que sucedesse.
n
O texto em hebraico do livro de Daniel termina com o anúncio da morte e da ressurreição final
do protagonista, que é contado entre os sábios ou maskilim (cf. 12,2-3).
o
Os cc. 13-14 chegaram até nós através das versões gregas da Bíblia e das traduções nelas
baseadas, mas é provável que, na origem, tivessem sido escritos em hebraico ou aramaico.
As histórias de Susana e de Bel e o Dragão gravitam em torno da figura de Daniel, mas foram
redigidas e transmitidas, pelo menos inicialmente, de forma independente entre si e em relação
ao resto do livro. Nos distintos manuscritos gregos, onde cada uma delas é transmitida como
narrativa independente, ambas são reproduzidas junto ao livro de Daniel, mas nem sempre
no final. A história de Susana aparece, em alguns manuscritos, antes do início de Daniel. Esta
ordem corresponde à da Vulgata, que é a tradução latina de referência no Ocidente cristão e
que primeiro incluiu estas narrativas como parte integral do livro. A tradução aqui apresentada
segue a versão grega dita de Teodocião.
Daniel 13 46

muito bela e temente ao Senhor. 3Os seus pais eram justos e tinham educado
a sua filha de acordo com a lei de Moisés. 4Joaquim era muito rico e tinha um
jardim contíguo à sua casa. Os judeus costumavam reunir-se ali com ele, pois
Joaquim era o mais ilustre de todos eles.
5
Naquele ano, haviam sido constituídos como juízes dois anciãos do povo.
A eles se aplicava o que o Senhor dissera: “Da Babilónia veio a iniquidade, de
anciãos e juízes que eram considerados como quem governa o povo”a. 6Os dois
anciãos frequentavam a casa de Joaquim e todos aqueles que tinham conflitos
recorriam a elesb.
7
E aconteceu que, quando o povo se retirava por volta do meio-dia, Susana
entrava e passeava no jardim do seu marido. 8Os dois anciãos costumavam
observá-la todos os dias quando entrava no jardim para passear e ardiam de
desejo por ela. 9Deixaram corromper a própria mente e desviaram os olhos a
fim de não olharem para o céu e não se recordarem dos justos juízos. 10Estavam
os dois feridos de paixão por ela, mas não tinham revelado um ao outro as suas
ânsias, 11pois tinham vergonha de expor um ao outro o desejo que tinham de
a possuírem. 12Continuaram assim, dia a dia, a procurar com avidez ocasião
para a observar.
13
E disseram um ao outro: ‘Vamos, pois, para casa, que é hora de almoço’,
e partiram cada um por seu lado. 14Mas, voltando para trás, acharam-se os
dois no mesmo lugar e, interrogando-se um ao outro, acabaram por confessar
mutuamente o desejo que os dominava. Puseram-se então de acordo sobre o
momento propício para a poderem surpreender sozinha.
15
Estando eles à espera do dia apropriado, chegou Susana, como o tinha fei-
to nos dois dias anteriores, acompanhada por apenas duas jovens e, como estava
calor, desejou tomar banho no jardimc. 16Não se encontrava ali mais ninguém,
a não ser os dois anciãos que estavam a espiá-la, escondidos. 17Susana disse,
então, às jovens: ‘Trazei-me óleo e unguentos e fechai as portas do jardim, para
que eu possa banhar-me.’ 18Elas fizeram como lhes foi ordenado: fecharam as
portas do jardim e saíram pelas portas laterais para ir buscar o que lhes tinha
sido pedido; e não viram os anciãos, porque eles estavam escondidos.
19
Logo que as jovens saíram, os dois anciãos levantaram-se e correram para
ela. 20Disseram-lhe: “As portas do jardim estão fechadas e ninguém nos vê. Nós
estamos cheios de desejo por ti: dá-nos o teu consentimento e entrega-te a nós.
21
Se não o fizeres, testemunharemos contra ti, declarando que estava contigo
um jovem e que, por isso, mandaste embora as jovens.” 22Susana suspirou
angustiada e disse: “Estou cercada por todos os lados! Se fizer isto, sou réu

a
Trata-se, muito provavelmente, de uma citação fictícia.
b
Cf. Jz 5,5; 2Cr 19,10.
c
O mesmo motivo literário aparece em 2Sm 11.
47 Daniel 13

de morte; se não o fizer, não poderei escapar-vosd. 23Contudo, é melhor para


mim cair nas vossas mãos, sem ter feito nada, que pecar diante do Senhor”e.
24
Susana gritou então com voz fortef, mas os dois anciãos gritaram também
contra ela 25e um deles correu a abrir as portas do jardim. 26Quando as pessoas
de casa ouviram gritos no jardim, precipitaram-se pela porta lateral para ver
o que lhe tinha acontecido. 27Quando os anciãos contaram a sua versão dos
factos, os servos coraram de vergonha, pois nunca se tinha dito semelhante
coisa de Susana.

Julgamento e condenação de Susana


28
No dia seguinte, quando o povo se reuniu à volta de Joaquim, o marido
dela, apresentaram-se também os dois anciãos em conluio contra Susana e
decididos a condená-la à morte. 29E disseram diante do povo: “Mandai alguém
procurar Susana, filha de Hilquias, a mulher de Joaquim!” Foram buscá-la 30e
ela veio, juntamente com os seus pais, os seus filhos e todos os seus parentes.
31
Susana era de figura muito delicada e bela de aspeto. 32Aqueles homens
perversos ordenaram que se retirasse o véu que a cobria a fim de se satisfaze-
rem com a sua belezag. 33Os que estavam com ela e todos aqueles que a viam
choravam.
34
Os dois anciãos levantaram-se no meio do povo e puseram as mãos sobre
a cabeça de Susanah. 35Mas ela, em lágrimas, tinha os olhos postos no céu, pois
o seu coração confiava no Senhor. 36Declararam os anciãos: “Enquanto passeá-
vamos a sós pelo jardim, entrou esta mulher com duas servas; fechou as portas
do jardim e mandou embora as servas. 37Então aproximou-se dela um jovem,
que tinha permanecido escondido, e deitou-se com ela. 38Nós, que estávamos
a um canto do jardim, ao ver aquela transgressão, corremos para eles. 39Ainda
que os tenhamos surpreendido em pleno ato, não fomos capazes de agarrar o
tal jovem, porque ele era mais forte do que nós; abriu as portas e escapou-se.
40
A ela, porém, apanhámo-la e perguntámos-lhe quem era o jovem. 41Mas ela
não o quis revelar. Eis, pois, o nosso testemunho!” E, como eles eram anciãos
do povo e juízes, a assembleia acreditou neles e condenou Susana à morte.

d
O adultério acarretava a pena de morte (cf. Lv 20,10; Dt 22,24; Jo 8).
e
Cf. Gn 39,9; 2Sm 24,14; 2Mac 10,4; Sir 23,27; Mt 10,28.
f
Susana cumpre escrupulosamente o que está mandado na lei de Moisés: de acordo com Dt 22,24,
a mulher que é assediada sexualmente encontrando-se no interior de uma cidade deve gritar
por socorro. Caso contrário, a lei considera que, de algum modo, ela consente no adultério e é,
por isso, culpada e réu de morte. O que poderia condenar Susana era, neste caso, apenas o falso
testemunho dos dois anciãos.
g
No ritual de ordálio previsto para o caso de uma mulher suspeita de adultério (Nm 5,11-31), está
mandado que o sacerdote descubra a cabeça da mulher (5,18). O autor da história, contudo, dá
outro motivo para o procedimento no caso de Susana.
h
Cf. Lv 24,14.
Daniel 13 48

Susana bradou então com voz forte e disse: “Deus eterno, que conheces o
42

que está oculto e sabes todas as coisas ainda antes que aconteçama, 43Tu sabes
bem que levantaram falso testemunho contra mim; e eis que vou morrer sem
ter feito nada daquilo de que estes maldosamente me acusam.”

Intervenção de Daniel
44
Ora, o Senhor ouviu a sua voz. 45Quando a levavam para ser executada,
Deus despertou o espírito santo de um rapazinho chamado Danielb, 46que bra-
dou com voz forte: “Eu estou inocente do sangue desta mulher!” 47Todo o povo
se voltou para ele e perguntou: “Que palavra é esta que acabas de proferir?”
48
De pé no meio deles, Daniel respondeu-lhes: “Sois assim tão insensatos, ó
filhos de Israel, para condenardes uma filha de Israel sem averiguar inteira-
mente a verdade? 49Voltai ao tribunal, porque é falso o testemunho que estes
homens levantaram contra ela.”
50
O povo regressou apressadamente e os anciãos disseram a Daniel: “Vem
sentar-te no meio de nós e expõe-nos o teu pensamento, porque Deus te con-
cedeu a dignidade de ancião”c.
51
Daniel disse-lhes então: “Separai-os para longe um do outro e eu pró-
prio os julgarei.” 52Depois de os separarem um do outro, Daniel chamou um
deles e disse-lhe: “Tu que envelheceste na prática do mal, agora caem sobre
ti os pecados que cometeste anteriormente, 53proferindo sentenças injustas,
condenando os inocentes e absolvendo os culpados, ainda que o Senhor tenha
declarado: ‘Não entregareis à morte o inocente e o justo!’d. 54Diz-me, pois!
Se é verdade que viste esta mulher, debaixo de que árvore os surpreendeste
em intimidade um com o outro?” Ele respondeu: “Debaixo de um lentisco.”
55
Daniel respondeu: “Isso cairá diretamente sobre a tua cabeça! Pois o anjo do
Senhor já recebeu do Senhor o veredito e partir-te-á ao meio!”
56
Depois de o terem afastado, Daniel mandou que trouxessem o outro, a
quem disse: “Raça de cananeu e não de Judá! A beleza seduziu-te e o desejo
perverteu-te o coração. 57Assim procedíeis com as filhas de Israel e elas por
medo entregavam-se a vós, mas esta filha de Judá não consentiu na vossa
perversidade. 58Agora, pois, diz-me! Debaixo de que árvore os surpreendeste
em intimidade um com o outro?” Respondeu-lhe ele: “Debaixo de um carva-
lho.” 59Replicou Daniel: “Isso cairá também diretamente sobre a tua cabeça!
a
Cf. 2,22.
b
A história parece reportar-se ao período da infância ou adolescência de Daniel. É por esta razão
que alguns dos manuscritos a reproduzem antes de Dn 1. O facto de a história de Susana ter lugar
na Babilónia cria, contudo, um problema, já que 1,3-4.6 parece implicar que o protagonista já
era jovem quando foi exilado para a Babilónia. Estas discrepâncias confirmam o que atrás se
disse acerca da origem e transmissão de Dn 13-14 (cf. 3,2 e nota).
c
Cf. Lc 2,46.
d
A citação é de Ex 23,7.
49 Daniel 14

O anjo do Senhor aguarda já, com a espada em riste, para te partir ao meio e
aniquilar-vos aos dois!”
60
Toda a assembleia bradou com voz forte, bendizendo a Deus, que salva
os que nele esperam. 61Insurgiram-se, então, contra os dois anciãos, que Daniel
tinha apanhado a cometer perjúrio pela sua própria boca, e aplicaram-lhes o
mesmo tratamento que eles tão impiamente tinham preparado para o seu pró-
ximo: 62entregaram-nos à morte, dando assim cumprimento à lei de Moisése.
E assim foi poupada naquele dia uma vida inocente.
63
Hilquias e a sua mulher louvaram a Deus por sua filha, Susana, juntamente
com Joaquim, seu marido, e todos os parentes, porque não se encontrou em
Susana motivo de censura. 64E, daquele dia em diante, Daniel gozou de grande
consideração diante do povo.

BEL E O DRAGÃO f (14,1-42)

14 Daniel e os sacerdotes de Bel (Is 44,9-20; Jr 10,1-16; Hab 2,18-19;


Sl 115; 139)
1
O rei Astíages foi juntar-se aos seus antepassados e o persa, Ciro, her-
dou o seu reinog. 2Daniel era próximo do rei e era o mais considerado entre
todos os amigos do rei.
3
Os babilónios tinham um ídolo com o nome de Belh, ao qual dedicavam
diariamente doze medidas de flor de farinha, quarenta ovelhas e seis medidas
de vinho. 4O rei prestava-lhe culto e ia todos os dias prostrar-se diante dele.
Daniel, porém, adorava o seu Deus.
5
Disse-lhe o rei: “Porque não adoras Bel?” Daniel respondeu-lhe: “Porque
eu não presto culto a ídolos feitos por mãos humanas, mas apenas ao Deus
vivo, que criou o céu e a terra e é senhor sobre todas as criaturas”i. 6O rei
respondeu-lhe: “Parece-te que Bel não é um deus vivo? Não reparas em tudo
o que come e bebe cada dia?” 7Daniel pôs-se a rir e respondeu: “Não te deixes
enganar, ó rei: por dentro, é de barro, por fora, de bronze, e nunca provou nem
alimento nem bebida.”
8
O rei, em fúria, mandou chamar os seus sacerdotes e disse-lhes: “Se não
me disserdes quem é que verdadeiramente consome estas oferendas, morrereis.
e
Cf. Dt 19,18-21.
f
As duas cenas que compõem a narrativa incluída no c. 14 de Daniel constituem uma sátira contra
as práticas pagãs de idolatria. No Antigo Testamento, é possível encontrar outros exemplos deste
género de paródia cultual em Is 44,9-20; Jr 10,1-16; Hab 2,18-19; Sl 115; 139.
g
O rei Astíages foi um rei da Média, a quem Ciro usurpou o poder em 550 a.C., fundando assim o
império persa. O autor do texto parece, contudo, supor que a transição ocorreu de forma natural.
h
Bel era um dos epítetos de Marduc, o deus supremo da Babilónia (cf. Is 46,1-2; Jr 50,2).
i
Cf. 6,21.27; Lv 26,1; Is 46,6; Mc 14,58; At 7,48; 14,15; Rm 1,19-23.
Daniel 14 50

Mas se, pelo contrário, mostrardes que é Bel quem as consome, morrerá Daniel,
porque blasfemou contra Bel.” 9Daniel respondeu ao rei: “Faça-se conforme
a tua palavra!” Eram setenta os sacerdotes de Bel, sem contar mulheres e
crianças.
10
O rei foi então com Daniel até ao templo de Bel. 11Os sacerdotes de Bel
disseram: “Nós vamos sair lá para fora; e tu, ó rei, manda trazer a comida e
o vinho já misturado, fecha tu próprio a porta e sela-a com o teu anel. Se, ao
regressares amanhã de manhã, não encontrares tudo comido por Bel, morrere-
mos nós; caso contrário, será Daniel, que nos caluniou.” 12Ora, os sacerdotes
de Bel estavam tranquilos, pois tinham feito debaixo da mesa uma abertura
secreta, pela qual entravam todos os dias para consumir as oferendas. 13E acon-
teceu que, depois de eles terem saído, o rei mandou dispor os alimentos diante
de Bel. 14Daniel mandou os seus servos trazer cinza e espalhá-la por todo o
santuário, com a presença apenas do rei. Em seguida, saíram, fecharam a por-
ta e selaram-na com o anel do rei, antes de partirem. 15Os sacerdotes vieram
durante a noite, como de costume, juntamente com as mulheres e os filhos, e
comeram e beberam tudo.
16
Na manhã seguinte, ao romper do dia, veio o rei e, com ele, Daniel. 17“Os
selos estão intactos, Daniel?” – perguntou o rei. Daniel respondeu: “Estão
intactos, sim, ó rei.” 18Mas aconteceu que, logo que se abriram as portas, o rei
olhou para a mesa e exclamou em alta voz: “Tu és grande, ó Bel, e em ti não
há o menor engano!”
19
Daniel riu e, retendo o rei para que não entrasse, disse-lhe: “Olha para o
chão e procura saber de quem são aquelas pegadas.” 20O rei retorquiu: “O que
vejo são pegadas de homens, de mulheres e de crianças.”
21
Enfurecido, o rei mandou prender os sacerdotes com as respetivas mulhe-
res e filhos; aqueles mostraram-lhe então a abertura secreta por onde entravam
para consumir o que estava sobre a mesa. 22O rei mandou-os matar e entregou
Bel nas mãos de Daniel, que o destruiu, a ele e ao seu templo.

Daniel e o dragão (3; 6; Heb 11,33)


23
Havia também um grande dragão, a quem os babilónios prestavam cul-
to . Disse o rei a Daniel: “Não podes dizer que este não é um deus vivo.
a 24

Deves, portanto, adorá-lo!” 25Daniel respondeu: “É ao Senhor, meu Deus, que


eu adoro, porque Ele é um Deus vivo! Se tu, ó rei, me deres licença, eu próprio
matarei o dragão, sem espada nem cajado.” 26“Eu dou-te licença!” – replicou o
rei. 27Daniel pegou então em pez, sebo e cabelo e pô-los a cozer juntos. Usou
a
Os babilónios pretendiam argumentar com o facto de este dragão ou serpente ser um animal
vivo, para dizer que ele tinha mais possibilidades de ser deus que os objetos inanimados antes
referidos. Daniel consegue provar que, mesmo sendo um ser vivo, não é, apesar disso, um deus,
isto é, não é imortal.
51 Daniel 14

a mistura resultante para preparar bolos, que atirou para a goela do dragão. Ao
comê-los, o dragão rebentou. Disse então Daniel: “Vede agora a que coisas
prestais culto!”
28
E aconteceu que, ao saberem do sucedido, os babilónios encheram-se de
cólera e revoltaram-se contra o rei e, acusando-o, diziam: “O rei fez-se judeu!
Destruiu Bel, matou o dragão e massacrou os sacerdotes.” 29Apresentando-se
diante do rei, disseram-lhe: “Entrega-nos Daniel! Se não, matar-te-emos, a ti
e à tua família.”
30
Ao ver-se assim tão ameaçado pela violência, o rei foi forçado a entre-
gar-lhes Daniel. 31Eles atiraram-no para a cova dos leões, onde permaneceu
durante seis dias. 32Na cova, havia sete leões, aos quais se dava cada dia dois
cadáveres e duas ovelhas. Naquela altura, contudo, nada lhes foi dado, para
que devorassem Daniel.
33
Nesse tempo, vivia na Judeia o profeta Habacuc.b Tinha acabado de pre-
parar um cozido e de migar pão para uma caçarola e encaminhava-se para
o campo onde ia levá-la aos ceifeiros. 34 Porém, um anjo do Senhor disse a
Habacuc: “Leva essa refeição que aí tens à Babilónia, a Daniel, que está na
cova dos leões.” 35Retorquiu Habacuc: “Senhor, nunca vi a Babilónia e não
conheço essa cova.”
36
Então o anjo do Senhor agarrou-o pelo alto da cabeça e, segurando-o
pelos cabelos, transportou-o, com um sopro da sua respiração, até à Babilónia,
depositando-o no alto da covac. Então Habacuc gritou: “Daniel, Daniel, toma
a refeição que Deus te enviou!” 38Respondeu Daniel: “Lembraste-te de mim, ó
Deus, e não abandonaste os que te amam.” 39Então Daniel levantou-se e comeu.
E de imediato o anjo do Senhor fez voltar Habacuc ao seu lugar.
40
Ao sétimo dia, o rei veio para chorar Daniel. Aproximou-se da cova, olhou
para dentro e viu Daniel ali sentado. 41Clamou então com voz forte: “Tu és
grande, Senhor, Deus de Daniel, não há outro além de ti”d! 42Mandou-o retirar
da cova e, quanto aos que procuravam causar-lhe a morte, atirou-os à cova e
de imediato eles foram devorados, à vista dele.

b
Habacuc exerceu como profeta, na Judeia, durante a época neobabilónica, no período anterior
à destruição de Jerusalém (587 a.C.). A história supõe que Habacuc ainda estava vivo na época
de Ciro, o primeiro dos reis persas. Deve tratar-se, por conseguinte, de um dado ficcional.
c
Cf. Ez 8,3; At 8,39; 2Cor 12,2.
d
Cf 2:47; 3:95-96; 6:26-28; Is 45,18; 46,9.
Paralelos

1,1: 2Rs 24,1; 2Cr 36,5-7; Esd 1,7; 5,14 | 1,3: 2Rs 20,18 |1,5: 2Rs 25,29s | 1,8: Lv11; Jz 13,4.7.14; Est 4,17; Jr 35,6 |
1,12: Ap 2,10 | 1,17: Gn 41,12-16.
2,11: Gn 41,16 | 2,18: Gn 24,7 | 2,21: At 1,7; Rm 13,1; Ap 5,12 | 2,22: Sl 139,11s; Jo 12,22 | 2,28: 1Cor 2,10s;
Ap 1,1.19; 4,1 | 2,45: Mt 21,42-44 par; Lc 1,33.
3,4: Ap 5,9; 7,9; 13,7; 14,16; 17,15 | 3,5: Ap 13,14s | 3,6: Jr 29,21s. | 3,17: Sl 37,39s | 3,24: Esd 9,6-15; Dn 9
3,19 | 3,49: Tb 5,4 | 3,57: Sl 103,10-22 | 3,58: Sl 103,20; 148,2 | 3,89: Sl 136,1s.
4,5: Dn 5,11.14; 13,45 | 4,7: Ez 41,3-14 | 4,9: Mt 13,31s | 4,24: Tb 12,9; Pr 19,17; Sir 3,30 | 4,32: Is 40,22-24;
Mt 6,10.
5,2: Dn 1,2 | 5,4: Ap 9,20 | 5,11; Dn 4,5 | 5,17: Dn 2,6 |5,23: Sl 135,115-17; Jb 12,19; Is 40,20.
6,3: Dn 5,7.16.29 | 6,11: 1Rs 8,44.48 | 6,23: Dn 3,49.
7,1: Ap 13 | 7,8: Ap 13,5 | 7,9: Ap 1,14; 20,4.14 | 7,10: Jo 5,22; Ap 5,11; 20,12 | 7,11: Ap 19,20 | 7,13: Mt
8,20; 24,30; 26,24 par; Ap 1,7; 14,14 | 7,14: Dn 2,44; Mt 4,17 | 7,21: Ap 11,7; 13,7 | 7,22: Mc 1,15; Ap 20,4 |
7,24: Ap 17,12 | 7,25: Dn 11,36 | 7,26: Ap 12,14.
8,10: Ez 20,6.15; Dn 11,16.41; 12,3; Zc 7,14; Ap 12,4 | 8,13: Dn 12,6; Ap 6,10 | 8,16: Dn 9,21-23; Lc 1,19-26 |
8,17: Dn 10,15-19; Ap 1,17 | 8,26: Dn 12,4.9-13; Ap 10,4; 19,9; 21,5; 22,6
9,1: Ne 1,5-11; Jr 25, 11-14; 29,10; Br 1-2; Dn 3,25-45 | 9,4: Ex 34,6 | 9,5: Br 1,15-2-19 | 9,21: Dn 8,15-18 ;
10,9-11 | 9,24: Rm 3,24-26 | 9,25: Esd 3,1-3; Mt 3,16; At 10,38 | 9,27: 1Mac 1,54; Dn 11,31; 12,11; Mt
24,15 par.
10,6: Ap 1,13-15 | 10,9: Dn 8,16-18; 9,21-23; Ap 1,17 | 10,13: Jd 9; Ap 12,7 | 10,16: Is 6,7; Jr 1,9; Dn 7,13.
11,2: 1Mac 1,2-6; Dn 2,43; 8,23-25 | 11,30: 2Mac 5,11 | 11,36: 2Ts 2,4; Ap 13,5.
12,1: Jr 30,7; Dn 10,13; Jl 2,2; Mt 24,1 par. | 12,2 : 2Mac 7,9 ; Is 66,24; Ez 37,10 ; Mt 13,43 ; Jo 5,28-29; 1Cor 15,41s
| 12,24: Dn 8,26; Ap 10,4 | 12,7: Sir 18,1; Dn 4,31; 7,25; 8,14; Ap 19,5s | 12,10 : Ap 22,11.
13,22: Dt 22,22; Jr 29,21-23; Jo 8,4s | 13,29: Nm 5,18-22 | 13,42: Sl 33,13-15; Heb 4,13 | 13,45: Dn 4,5;
5,11.14 | 13,50: Sb 4,8s | 13,53: Ex 23,7 | 13,62: Dt 19,16-21.
14,23: Sb 15,18s; Rn 1,23 | 14,31: Dn 6,21 | 14,42: Dn 6,25.

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