França - Paul Valéry - Anfion
França - Paul Valéry - Anfion
França - Paul Valéry - Anfion
ISBN: 978-85-63003-46-1
Entrada de Anfion.
Uma voz
Por quê? Por quê?
Deixa viver a vida...
Deixa a morte nas mãos dos imortais!
Anfion ergue o corpo, lança fora sua arma. A presa foge vivamente.
Depois de um momento de hesitação, Anfion se dirige a uma espécie
de gruta ou escavação bem pouco profunda; despoja-se da pele que
cobria seus ombros, senta-se, contempla o céu estrelado.
Surge o Sonho Amoroso, que uma dançarina quase nua figura sob
um longo manto. Ela se agita em torno dele, o acaricia, se joga,
esvoaça a cada movimento do adormecido Anfion.
AS MUSAS
Primeira musa
Eu vejo o que não é!
Segunda musa
Eu sei o que já não é mais!
Terceira musa
Eu faço o que será!
Quarta musa
Já eu, só posso amar!
Primeira musa
Minhas irmãs! Belas abelhas,
Obedeçamos ao Deus, consagremos esse mortal!
Segunda musa
Nos infernos do sono sua alma se debate!
Terceira musa
Ele suspira!
Quarta musa
Ele geme!
Segunda musa
Ele deseja...
Primeira musa
Acredita viver!...
Cuidemos, minhas irmãs, para que o excesso do
[tormento
Antes da aurora não o desperte!
Ao trabalho!
Mas, para começar, dissipemos esta desordem de
[sonhos!
A. – ENCANTAMENTO
As Musas enfeitiçam Anfion adormecido, prodigam sobre ele gestos
de encantamento, circulam ao redor de seu leito murmurando a
salmodia ou
ACALANTO MÁGICO
Homem que dormes,
A noite te ilumina
E o silêncio
É feito de Musas!
Anfion muda de posição. Enquanto levanta o braço, uma das Musas
beija-lhe a mão e o acalma.
B. – LITURGIA. SOLENE
As Musas se agrupam então ao redor de Anfion numa forma solene.
Uma aos pés, outra à cabeça, as duas outras para lá de seu corpo, de
frente para o público.
Uma musa
Oh! Que santa paz nesse rosto puro!
Uma musa
Nele se forma um sorriso abandonado aos astros...
Uma musa
Esse corpo tão claro, tão calmo, semelha-se ao altar,
À pedra sagrada...
Uma musa
E sua alma perdeu os caminhos da vida.
Uma musa
Ele é como se fosse eterno, ignorado por si mesmo!
Uma musa
Já não é mais agora senão aquele que virá a ser!
Que ele escute o abismo!
Trovão distante.
As Musas se prosternam.
As musas
Apolo!
Uma musa
Ó Causa do Sol, as trevas te adoram,
E os frágeis humanos
Sonham em seus sonos com uma esplêndida aurora
Que cai de tuas mãos!
Uma musa
Visita este mortal! Maravilha seu coração!
Que seu demônio dócil obedeça à voz
Da Santa Sabedoria,
Apolo!
Os ecos
A-po-lo!
Os ecos
Ó Deus!
Trovão distante.
Frêmito de Anfion.
As musas
Apolo!
Os ecos
Apolo!
Voz de Apolo
Escuta!
Quero ser por meio de ti presente e favorável
À raça mortal.
Ponho em ti a origem da ordem,
Habitarei teu momento mais puro,
E doravante se consumarão
Sobre a face da terra
Atos veneráveis
Onde aparecerá a celeste sabedoria!
Confio a ti a invenção de Hermes!
Entrego-te a arma prodigiosa,
A Lira!
Frêmito.
Anfion, Anfion,
Desperta o som virgem e triunfa através dele,
Buscarás, encontrarás nas cordas esticadas
Os caminhos seguidos pelos Deuses!
Nestes caminhos sagrados as almas te seguirão
E a inerte matéria e os brutos enfeitiçados
Serão cativos da Lira!
Arma-te com a Lira! Excita a natureza!
Que minha Lira dê à luz meu Templo,
E que a rocha se abale ao nome do Nome Divino!
Tira do caos para mim essas ruínas dos montes,
Oferece-me já nesta aurora um santuário claro,
Que uma imensa cidade o cerque de preces,
E que tuas mãos para mim se elevem
Para me oferecer o que criei!
Anfion!
As musas
Apolo!
Os ecos
A-polo!
Trovão surdo.
I
De repente, toca... Uma corda vibra. Som rouco e pujante, ao qual
responde uma violenta trovoada.
Olha para a Lira com um temor sagrado. Volta a si. Tenta mais uma
vez.
II
Segundo som — Outra corda tocada produz um som delicioso.
Algumas rochas sem ruído se erguem ou rolam ou deslizam na direção
do herói. Amantes e amadas aparecem, dão-se os braços, enlaçam-se
e se afastam lentamente.
Anfion
Quem me chama?
As musas
Tu mesmo!
(Salmodiado) Que te lembres de ti mesmo!
Anfion (Falado)
I
Quem fala?!... Lembro-me... Uma voz soberana
Uma voz sem rosto falou noite adentro...
Não ouvi palavras fatais?
— Tornarei a encontrar os caminhos
Das maravilhas da sombra?
II
Ó voz todo-poderosa!
Alguém disse... Falava...
Como o abismo estrelado teria falado,
Ele que parece sempre,
Através do silêncio e dos astros,
Interrogar a raça miserável
De almas efêmeras!
III
Ele disse... O Céu-que-fala
Disse:
(Melodrama)
“ANFION!
“Eu te escolhi!...
“Como escolhe o amor,
“Como um cimo é escolhido pelo raio,
“Eu te escolhi!
“Entrego-te a arma prodigiosa,
“A Lira!...
“Arma-te com a Lira! Desperta o som virgem!
“Que minha Lira dê à luz meu templo!...”
(Bem escandido.
Quase cantado.
Voz de visionário entrecortada, ofegante.)
IV
Arma misteriosa, imenso poder é o teu!
Ó grande Arma que dás a vida e não a morte!
Tu cujos sons divinos
Transpassam a alma do mundo!
Mal rocei tuas cordas de ouro
Pelo Deus duramente esticadas,
Céu e Terra se arrepiaram!
E senti a rocha tremer
Como a carne de uma mulher flagrada!
Vi
O furor e o amor nascerem nos mortais,
O furor e o amor se espalharem de minhas mãos!...
V
Terei eu ferido, tocado,
Enfeitiçado, talvez,
O Corpo secreto do mundo?
Terei, sem saber,
Comovido a substância dos céus,
E tocado o próprio Ser que a presença de
Todas as coisas esconde de nós?
Eis-me pois mais poderoso do que eu mesmo,
Eis que me encontro estranho e venerável
Para mim mesmo,
Desgarrado em minha alma, e senhor ao redor de mim!
E tremo como uma criança
Diante do que posso!
VI
Apolo, Apolo, eu te obedecerei!
Formando teus desenhos sobre a Lira
Meus dedos são deuses,
Meu coração precede os humanos!
VII
Atacarei a desordem das rochas!
Meus atos puros
Hão de sujeitar à obra sem exemplo
As ruínas dos montes, os monstros desabados
Caídos dos flancos sublimes!
VIII
Apolo, meu senhor, está comigo!
Perseguirei a obra e a beleza como a uma presa!
Apolo me possui, soa em minha voz,
Vem em pessoa edificar seu Templo,
E a Cidade que deve surgir aos olhos dos homens
Já está toda concebida cintilante
Nas Altas Moradas dos Imortais!
Ele executa, lira nas mãos, uma espécie de dança sagrada circular.
Posta-se em seguida sobre um outeiro abaixo das rochas à direita.
Grita:
POR APOLO!
CONSTRUÇÃO
A. – PRIMEIRA FASE
Marcha das Pedras.
Coro invisível
Ó milagre! Ó maravilha!
A rocha marcha! a terra é submissa a esse deus,
Que vida assustadora invade a natureza?
Tudo se abala, tudo procura a ordem,
Tudo sente em si um destino!
B. – SEGUNDA FASE
A construção se esboça. Partes de arquitetura surgem nos flancos
da montanha. Paredes, entabulamento, cimalhas tomam o lugar do
rochedo, cujos perfis irregulares assumem linhas nítidas. A silhueta do
templo se estabelece. Um pequeno edifício formado de algumas
dançarinas vestidas de túnicas reúne-se e se posta sobre uma
saliência.
C. – TERCEIRA FASE
O conjunto do cenário é transformado.
Aclamação.
Coro
Admirável Anfion, acolhe nossos louvores!
Prodigioso mortal, pai de Tebas, sê
Nosso pontífice e nosso Rei!
Sobe ao trono, sobe ao Templo,
Anfion!
Segunda musa
Busco um outro senhor!
Terceira musa
Pouco importa o que é!
Quarta musa
Já eu, era só esperança!
As Musas esvanecem.
No instante em que o Herói vai subir ao Templo, uma forma de
mulher velada, que havia entrado imperceptivelmente em cena, se
aproxima dele e lhe obstrui a passagem abrindo os braços. O cenário
se vela progressivamente. A luz enfraquece assim como a sonoridade
da música.