Extravasante
Extravasante
Extravasante
Pseudônimo: Cortáz
prenúncio de chuva, toró e de uma força atmosférica própria para arrancar telhados de
Bastou-se um pingo grosso de chuva salpicar na testa de uma idosa para que um efeito
Eu mesmo fechei as janelas próximas a mim. Por sorte nenhuma delas emperrou, pondo
chuva, agora padecia nos deslizes dos suores. Soma-se a isso o trânsito caótico e típico
O picolézeiro nem deve ter se levantado da cama com um tempo assim; minto, lá estava
ele, apesar de que não mais para vender picolé, mas, sim, para vender guarda-chuvas ou
Pois bem. Entre as poucas pessoas em pé no ônibus inerte, uma figura se destacava
soubesse o quão agradável uma conversa poderia ser para acelerar os ponteiros do
relógio e o engarrafamento.
— Pelo visto eu nasci foi pra viver em rio, igual peixe. Cidade e asfalto, nem com nojo.
— O senhor é do interior?
— Sou de Itacoatiara. Era. Era, mas tô de mudança. Agora vou morar lá pras bandas de
— Legal...
— Não.
Silêncio.
— Pode até ser que sim, mas tive de ir a contragosto. Agouro de briga de família. Causa
Silêncio, novamente.
— Nem isso, foi mais de desonestidade de irmãos mesmo. Bagunça da grande. Tenho
oito, vivos. Meu pai — que Deus guarde e tenha — morreu e deixou uns longos
pedaços de terra pros filhos, nós oito. Mãezinha — que Deus guarde e tenha também —
morreu antes. Viveram e morreram pela terra, cuidando, arando, plantando e colhendo...
pra no final ficar tudo praquelas carniças. Nem respeito pelo pai eles tiveram. Depois da
última pá de terra no enterro, eles, sem custa nem espera, arranjaram um desenho pra
dividir o que o pai lutou tanto pra conseguir. Fui o único dos irmãos a não ir pro funeral.
Não foi por maldade ou desconsideração pelo papai; longe disso; só não fui avisado a
tempo. Fora a dificuldade de largar o trabalho aqui e me mandar pra lá. Mas pelo menos
na missa do sétimo dia eu tava presente. Lá que fiquei sabendo da presepada: dividiram
as terras, os mais novos iam ficar com as melhores porções... Já pensou numa loucura
dessas?! Dizendo eles que os mais novos iam cuidar por mais tempo. Como querendo
dizer que os mais velhos morreriam logo logo. Conversa fiada! Eu, velho como se
nota...
— Pra eles, o contrário: quase um cadáver apodrecido. Acabei ficando com a pior
porção, por ser o mais velho deles vivo. Perto da beira do rio...
— E a Cobra Grande? Beira do rio pode ser lugar pra plantio, mas também lugar de
— Eita...
— É! A terra sendo comida pelo rio, pense só. O terreno da família pega da margem do
rio pro interior da mata de terra firme, e termina num furo de água bem escurinha. Até
— Caraca...
— Várzea na seca dá muita terra boa pra plantio, por Deus, mas e quando o mesmo rio
que dá pra uns, tira pra outros? O terreno vai pra onde?! O rio leva até gente nas
— Então, a cada dia que passa o senhor perde um pouco mais da parte do terreno?
Manaus depois da missa, tinha que ir trabalhar. Mas prometi aos irmãos que ia voltar
pra resolver aquela bagunceira. Não se respeita mais homem de idade?! O mais velho de
todos eles... “Aqui é homem igual era papai”, saí dizendo e prometendo voltar pra
organizar direito aquilo. Um mês depois eu tava lá: terra mesmo eu não tinha mais, não.
Bando de miserável. Na divisão, eles separam uma parte que já tinha sido levada pelo
rio faz anos. Isso por eu morar em Manaus e não perto de Itacoatiara como todos eles.
Nesse dia tive que voltar pra cá se não teria infartado por lá.
— Já tinha levado, como eu disse. Sobrou ainda um terreninho mixuruca, deixei pra lá,
vou já mesmo bater cabeça. Dá nem pra levantar uma casinha de cachorro ou um
galinheiro. Eles ainda vieram com papo de que um toró tinha arrancado um pedaço
maceta da minha parte. Ele, o pedação, foi descendo o rio, “como um flutuante”,
sobrinho jura por tudo que é mais sagrado que quase era arrastado pelo rio, pois tava
bem em cima da terra flutuante quando o temporal caiu; voltou nadando afoito pra
— Não manjo de rio. Talvez tenha afundado depois e se desfeito na água, não?
— Não. Pra mim a desgraça só não foi tanta, porque dias depois uns pescadores viram a
terra esbarrando numa comunidade de bem poucas pessoas, num praial desse lago que te
falei. De boca em boca o acontecido subiu o rio e, por pena ou arrependimento cristão,
medo d’eu descobrir do milagre por cochicho dos outros, os malditos dos irmãos
decidiram me contar. Tá agora num lugar de várzea que sempre recebe terra vinda de
— É inacreditável isso.
— São uns malditos... Perdoo não o que me fizeram. Tô em Manaus mais pra conseguir
ajuntar uma grana pra passagem e pra comprar o que for de necessidade. Nunca mais
quero saber de pegar um trânsito desses, nem ter contato com os malditos. Vou é viver
de plantio e pesca.
— Fiquei pensando aqui: como o senhor soube e comprovou pros outros que a terra era
mesmo sua? Que tinha sido arrastada inteirinha pelo rio, sem afundar? Sabe, o pessoal
gosta de inventar história... Além disso, deve ser uma distância muito grande pra
— Pois é.
Silêncio.
— Mas não tinha erro. Porque naquela terra flutuante era onde tava o túmulo da mamãe
e do papai, um junto do outro. Quem dirá que por isso a terra não se separou. Filhos
malditos...
— Inacreditável!
— É... Pai e mamãe devem tá no céu com vergonha mortal dos filhos. No céu eles têm
— Daria uma bela reportagem essa história; um documentário inédito; coisa difícil de se