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Extravasante

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Extravasante

Pseudônimo: Cortáz

A tranquilidade matinal daquele dia aparentava ser indiferente aos sonolentos

passageiros; o dramaturgo céu buscava entretenimento para a espectadora lua;

prenúncio de chuva, toró e de uma força atmosférica própria para arrancar telhados de

casebres, desprender roupas de varais e pôr abaixo quaisquer improvisações.

Bastou-se um pingo grosso de chuva salpicar na testa de uma idosa para que um efeito

dominó de janelas se fechando resguardasse os passageiros de um inevitável incômodo.

Eu mesmo fechei as janelas próximas a mim. Por sorte nenhuma delas emperrou, pondo

em contestação a minha virilidade masculina. O ônibus tornou-se seguro e

impenetrável: vencemos a água. Uma pena termos vencido, também, o oxigênio.

Ligeiramente os corpos se esquentaram, a testa da idosa, antes molhada pela gota da

chuva, agora padecia nos deslizes dos suores. Soma-se a isso o trânsito caótico e típico

oriundo das chuvas torrenciais na centopeia urbana de Manaus, agravando o que

corriqueiramente já é embaraçoso e estressante.

O picolézeiro nem deve ter se levantado da cama com um tempo assim; minto, lá estava

ele, apesar de que não mais para vender picolé, mas, sim, para vender guarda-chuvas ou

mercadorias convenientes ao pé-d’água; aqui é assim: no inferno se vende promessas e

no céu se vende divertimentos; negociadores não faltam.

Pois bem. Entre as poucas pessoas em pé no ônibus inerte, uma figura se destacava

pelos resmungos raivosos contidos, muxoxos e pelas sacudidas negativas e


inconformadas da cabeça. Era um homem de meia-idade, com reentrâncias nos cabelos

grisalhos e um incessante morder de língua.

A dois metros de distância, escutei dele um desabafo reprimido e posteriormente um

olhar interrogativo em minha direção.

— Cidadezinha... — repetiu, creio que a idêntica palavra de outrora.

— Complicado, né?! — exclamei, mais por socialização constrangida, ainda que

soubesse o quão agradável uma conversa poderia ser para acelerar os ponteiros do

relógio e o engarrafamento.

— Pelo visto eu nasci foi pra viver em rio, igual peixe. Cidade e asfalto, nem com nojo.

— O senhor é do interior?

— Sou de Itacoatiara. Era. Era, mas tô de mudança. Agora vou morar lá pras bandas de

Santarém, no Lago Grande do Curuai. No Pará, vê só.

— Legal...

— Não.

— Não é legal, lá?

Silêncio.

— Pode até ser que sim, mas tive de ir a contragosto. Agouro de briga de família. Causa

disso que num me alegro.

— Seus filhos te obrigaram? — tateei em curiosidade, sem querer me intrometer.

— Tenho filho não. É longa história.


— É, a vida... — complementei presumindo qual mistério trazia decepção àquela face.

Silêncio, novamente.

— Nem isso, foi mais de desonestidade de irmãos mesmo. Bagunça da grande. Tenho

oito, vivos. Meu pai — que Deus guarde e tenha — morreu e deixou uns longos

pedaços de terra pros filhos, nós oito. Mãezinha — que Deus guarde e tenha também —

morreu antes. Viveram e morreram pela terra, cuidando, arando, plantando e colhendo...

pra no final ficar tudo praquelas carniças. Nem respeito pelo pai eles tiveram. Depois da

última pá de terra no enterro, eles, sem custa nem espera, arranjaram um desenho pra

dividir o que o pai lutou tanto pra conseguir. Fui o único dos irmãos a não ir pro funeral.

Não foi por maldade ou desconsideração pelo papai; longe disso; só não fui avisado a

tempo. Fora a dificuldade de largar o trabalho aqui e me mandar pra lá. Mas pelo menos

na missa do sétimo dia eu tava presente. Lá que fiquei sabendo da presepada: dividiram

as terras, os mais novos iam ficar com as melhores porções... Já pensou numa loucura

dessas?! Dizendo eles que os mais novos iam cuidar por mais tempo. Como querendo

dizer que os mais velhos morreriam logo logo. Conversa fiada! Eu, velho como se

nota...

— Imagina, tá inteirão, pô.

— Pra eles, o contrário: quase um cadáver apodrecido. Acabei ficando com a pior

porção, por ser o mais velho deles vivo. Perto da beira do rio...

— Pelo menos a paisagem de lá deve ser bacana.

— E a Cobra Grande? Beira do rio pode ser lugar pra plantio, mas também lugar de

perda grande de terra. Vareia. Banzeiro leva tudo embora.

— Eita...
— É! A terra sendo comida pelo rio, pense só. O terreno da família pega da margem do

rio pro interior da mata de terra firme, e termina num furo de água bem escurinha. Até

um tempo desses me lembrava de quantos hectares tinham. O estresse me faz esquecer

as coisas. Sei que pouca coisa num é.

— Caraca...

— Várzea na seca dá muita terra boa pra plantio, por Deus, mas e quando o mesmo rio

que dá pra uns, tira pra outros? O terreno vai pra onde?! O rio leva até gente nas

correntezas dela, quem dirá terra, que nem braço tem.

— Então, a cada dia que passa o senhor perde um pouco mais da parte do terreno?

— Perdia! Aí que me causa o pior tipo de aborrecimento: o de família. Voltei pra

Manaus depois da missa, tinha que ir trabalhar. Mas prometi aos irmãos que ia voltar

pra resolver aquela bagunceira. Não se respeita mais homem de idade?! O mais velho de

todos eles... “Aqui é homem igual era papai”, saí dizendo e prometendo voltar pra

organizar direito aquilo. Um mês depois eu tava lá: terra mesmo eu não tinha mais, não.

Bando de miserável. Na divisão, eles separam uma parte que já tinha sido levada pelo

rio faz anos. Isso por eu morar em Manaus e não perto de Itacoatiara como todos eles.

Nesse dia tive que voltar pra cá se não teria infartado por lá.

— O rio levou todo o terreno?

— Já tinha levado, como eu disse. Sobrou ainda um terreninho mixuruca, deixei pra lá,

vou já mesmo bater cabeça. Dá nem pra levantar uma casinha de cachorro ou um

galinheiro. Eles ainda vieram com papo de que um toró tinha arrancado um pedaço

maceta da minha parte. Ele, o pedação, foi descendo o rio, “como um flutuante”,

disseram. De pouquinho em pouquinho rachando a terra e se despregando da beira. Diz


que igual aquelas bolhas na borda da xícara de café depois de a gente virar gole. Um

sobrinho jura por tudo que é mais sagrado que quase era arrastado pelo rio, pois tava

bem em cima da terra flutuante quando o temporal caiu; voltou nadando afoito pra

beira, temendo a trovoada.

— Mas, o pedaço não devia ter afundado ou se separado?

— É, mas rio violento, quem duvida?

— Não manjo de rio. Talvez tenha afundado depois e se desfeito na água, não?

— Não. Pra mim a desgraça só não foi tanta, porque dias depois uns pescadores viram a

terra esbarrando numa comunidade de bem poucas pessoas, num praial desse lago que te

falei. De boca em boca o acontecido subiu o rio e, por pena ou arrependimento cristão,

medo d’eu descobrir do milagre por cochicho dos outros, os malditos dos irmãos

decidiram me contar. Tá agora num lugar de várzea que sempre recebe terra vinda de

cima. Só tá faltando eu ir lá negociar com o pessoal da comunidade, pra acertar o

tamanho da minha parte. Nessa os meus irmãos se lascaram. Gente maldita!

— É inacreditável isso.

— São uns malditos... Perdoo não o que me fizeram. Tô em Manaus mais pra conseguir

ajuntar uma grana pra passagem e pra comprar o que for de necessidade. Nunca mais

quero saber de pegar um trânsito desses, nem ter contato com os malditos. Vou é viver

de plantio e pesca.

— Fiquei pensando aqui: como o senhor soube e comprovou pros outros que a terra era

mesmo sua? Que tinha sido arrastada inteirinha pelo rio, sem afundar? Sabe, o pessoal

gosta de inventar história... Além disso, deve ser uma distância muito grande pra

Santarém; podia ter vindo de qualquer outro lugar mais perto.


— Podia mesmo...

— Pois é.

Silêncio.

— Mas não tinha erro. Porque naquela terra flutuante era onde tava o túmulo da mamãe

e do papai, um junto do outro. Quem dirá que por isso a terra não se separou. Filhos

malditos...

— Inacreditável!

— É... Pai e mamãe devem tá no céu com vergonha mortal dos filhos. No céu eles têm

que tá... Céu limpo, de paraíso, não desse tipo aí.

— Daria uma bela reportagem essa história; um documentário inédito; coisa difícil de se

acreditar de primeira, mas... Um filme, um livro... As pessoas precisam saber disso,

cara. Pouca gente deve saber desse caso, né?

— É ruim hein! Gente ingrata é o que mais se tem no mundo.

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