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"Nas Águas Do Tempo", Mia Couto

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mia couto

Estórias
abensonhadas
Contos
Copyright © 1994 by Mia Couto, Editorial Caminho, sa, Lisboa

A editora manteve a grafia vigente em Portugal, observando as regras do Acordo


Ortográfico da Língua Portuguesa de 1990.

Capa
Rita da Costa Aguiar
Foto de capa
José Manuel Navia/ Agence vu/ Latinstock
Revisão
Carmen T. S. Costa
Valquíria Della Pozza

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (cip)


(Câmara Brasileira do Livro, sp, Brasil)

Couto, Mia.
Estórias abensonhadas / Mia Couto. — 1a ed. — São Paulo : Com-
panhia das Letras, 2012.

isbn 978-85-359-2052-9

1. Ficção moçambicana (Português) i. Título.

12-00643 cdd-869.3
Índice para catálogo sistemático:
1. Ficção : Literatura moçambicana em português 869.3

[2012]
Todos os direitos desta edição reservados à
editora schwarcz s.a.
Rua Bandeira Paulista 702 cj. 32
04532-002—São Paulo—sp
Telefone (11) 3707-3500
Fax (11) 3707-3501
www.companhiadasletras.com.br
www.blogdacompanhia.com.br
Estas estórias foram escritas depois da guerra. Por incontá-
veis anos as armas tinham vertido luto no chão de Moçambique.
Estes textos me surgiram entre as margens da mágoa e da espe-
rança. Depois da guerra, pensava eu, restavam apenas cinzas,
destroços sem íntimo. Tudo pesando, definitivo e sem reparo.
Hoje sei que não é verdade. Onde restou o homem sobrevi-
veu semente, sonho a engravidar o tempo. Esse sonho se ocul-
tou no mais inacessível de nós, lá onde a violência não podia
golpear, lá onde a barbárie não tinha acesso. Em todo este tem-
po, a terra guardou, inteiras, as suas vozes. Quando se lhes im-
pôs o silêncio elas mudaram de mundo. No escuro permanece-
ram lunares.
Estas estórias falam desse território onde nos vamos refazen-
do e vamos molhando de esperança o rosto da chuva, água
abensonhada. Desse território onde todo homem é igual, assim:
fingindo que está, sonhando que vai, inventando que volta.
Índice

Nas águas do tempo . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 9


As flores de Novidade * . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 15
O cego Estrelinho * . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 21
Na esteira do parto . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 27
O perfume * . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 31
O calcanhar de Virigílio * . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 37
Chuva: a abensonhada . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 43
O cachimbo de Felizbento * . . . . . . . . . . . . . . . . . 47
O poente da bandeira . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 53
Noventa e três . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 57
Jorojão vai embalando lembranças . . . . . . . . . . . . 63
Pranto de coqueiro . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 69
No rio, além da curva . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 75
O abraço da serpente . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 81
Sapatos de tacão alto . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 87
Os infelizes cálculos da felicidade . . . . . . . . . . . . 93
Joãotónio, no enquanto . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 99
Os olhos fechados do diabo do advogado . . . . . . 105
A guerra dos palhaços *. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 111
Lenda de Namarói * . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 115
A velha engolida pela pedra . . . . . . . . . . . . . . . . . 121
O bebedor do tempo * . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 125
O padre surdo * . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 131
O adivinhador das mortes *. . . . . . . . . . . . . . . . . . 137
O adeus da sombra * . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 143
A praça dos deuses . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 151

Glossário . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 155

NOTA: Os textos assinalados com * são inéditos. Os restantes foram pu-


blicados no jornal Público.
Nas águas do tempo

Meu avô, nesses dias, me levava rio abaixo, enfilado


em seu pequeno concho. Ele remava, devagaroso, so-
mente raspando o remo na correnteza. O barquito cabe-
cinhava, onda cá, onda lá, parecendo ir mais sozinho
que um tronco desabandonado.
— Mas vocês vão aonde?
Era a aflição de minha mãe. O velho sorria. Os den-
tes, nele, eram um artigo indefinido. Vovô era dos que
se calam por saber e conversam mesmo sem nada fala-
rem.
— Voltamos antes de um agorinha, respondia.
Nem eu sabia o que ele perseguia. Peixe não era.
Porque a rede ficava amolecendo o assento. Garantido
era que, chegada a incerta hora, o dia já crepusculando,
ele me segurava a mão e me puxava para a margem. A
maneira como me apertava era a de um cego desbenga-
lado. No entanto, era ele quem me conduzia, um passo à
frente de mim. Eu me admirava da sua magreza direita,
todo ele musculíneo. O avô era um homem em flagrante
infância, sempre arrebatado pela novidade de viver.

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Entrávamos no barquinho, nossos pés pareciam ba-
ter na barriga de um tambor. A canoa solavanqueava,
ensonada. Antes de partir, o velho se debruçava sobre
um dos lados e recolhia uma aguinha com sua mão em
concha. E eu lhe imitava.
— Sempre em favor da água, nunca esqueça!
Era sua advertência. Tirar água no sentido contrário
ao da corrente pode trazer desgraça. Não se pode con-
trariar os espíritos que fluem.
Depois viajávamos até ao grande lago onde nosso
pequeno rio desaguava. Aquele era o lugar das interdi-
tas criaturas. Tudo o que ali se exibia, afinal, se inventa-
va de existir. Pois, naquele lugar se perdia a fronteira
entre água e terra. Naquelas inquietas calmarias, sobre
as águas nenufarfalhudas, nós éramos os únicos que
preponderávamos. Nosso barquito ficava ali, quieto,
sonecando no suave embalo. O avô, calado, espiava as
longínquas margens. Tudo em volta mergulhava em
cacimbações, sombras feitas da própria luz, fosse ali a
manhã eternamente ensonada. Ficávamos assim, como
em reza, tão quietos que parecíamos perfeitos.
De repente, meu avô se erguia no concho. Com o ba-
lanço quase o barco nos deitava fora. O velho, excitado,
acenava. Tirava seu pano vermelho e agitava-o com deci-
são. A quem acenava ele? Talvez era a ninguém. Nunca,
nem por instante, vislumbrei por ali alma deste ou de ou-
tro mundo. Mas o avô acenava seu pano.
— Você não vê lá, na margem? Por trás do cacimbo?
Eu não via. Mas ele insistia, desabotoando os nervos.

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— Não é lá. É láááá. Não vê o pano branco, a dan-
çar-se?
Para mim havia era a completa neblina e os receá-
veis aléns, onde o horizonte se perde. Meu velho, de-
pois, perdia a miragem e se recolhia, encolhido no seu
silêncio. E regressávamos, viajando sem companhia de
palavra.
Em casa, minha mãe nos recebia com azedura. E
muito me proibia, nos próximos futuros. Não queria que
fôssemos para o lago, temia as ameaças que ali mora-
vam. Primeiro, se zangava com o avô, desconfiando dos
seus não propósitos. Mas depois, já amolecida pela
nossa chegada, ela ensaiava a brincadeira:
— Ao menos vissem o namwetxo moha! Ainda ga-
nhávamos vantagem de uma boa sorte...
O namwetxo moha era o fantasma que surgia à noi-
te, feito só de metades: um olho, uma perna, um braço.
Nós éramos miúdos e saíamos, aventurosos, procuran-
do o moha. Mas nunca nos foi visto tal monstro. Meu
avô nos apoucava. Dizia ele que, ainda em juventude,
se tinha entrevisto com o tal semifulano. Invenção dele,
avisava minha mãe. Mas a nós, miudagens, nem nos
passava desejo de duvidar.
Certa vez, no lago proibido, eu e vovô aguardáva-
mos o habitual surgimento dos ditos panos. Estávamos
na margem onde os verdes se encaniçam, aflautinados.
Dizem: o primeiro homem nasceu de uma dessas canas.
O primeiro homem? Para mim não podia haver homem
mais antigo que meu avô. Acontece que, dessa vez, me

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apeteceu espreitar os pântanos. Queria subir à margem,
colocar pé em terra não firme.
— Nunca! Nunca faça isso!
O ar dele era de maiores gravidades. Eu jamais assis-
tira a um semblante tão bravio em meu velho. Descul-
pei-me: que estava descendo do barco mas era só um
pedacito de tempo. Mas ele ripostou:
— Neste lugar, não há pedacitos. Todo o tempo, a
partir daqui, são eternidades.
Eu tinha um pé meio-fora do barco, procurando o
fundo lodoso da margem. Decidi me equilibrar, busquei
chão para assentar o pé. Sucedeu-me então que não
encontrei nenhum fundo, minha perna descia engolida
pelo abismo. O velho acorreu-me e me puxou. Mas a
força que me sugava era maior que o nosso esforço.
Com a agitação, o barco virou e fomos dar com as costas
posteriores na água. Ficámos assim, lutando dentro do
lago, agarrados às abas da canoa. De repente, meu avô
retirou o seu pano do barco e começou a agitá-lo sobre
a cabeça.
— Cumprimenta também, você!
Olhei a margem e não vi ninguém. Mas obedeci ao
avô, acenando sem convicções. Então, deu-se o espan-
tável: subitamente, deixámos de ser puxados para o
fundo. O remoinho que nos abismava se desfez em
imediata calmaria. Voltámos ao barco e respirámos os
alívios gerais. Em silêncio, dividimos o trabalho do re-
gresso. Ao amarrar o barco, o velho me pediu:
— Não conte nada o que se passou. Nem a ninguém,
ouviu?

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Nessa noite, ele me explicou suas escondidas ra-
zões. Meus ouvidos se arregalavam para lhe decifrar a
voz rouca. Nem tudo entendi. No mais ou menos, ele
falou assim: nós temos olhos que se abrem para dentro,
esses que usamos para ver os sonhos. O que acontece,
meu filho, é que quase todos estão cegos, deixaram de
ver esses outros que nos visitam. Os outros? Sim, esses
que nos acenam da outra margem. E assim lhes causa-
mos uma total tristeza. Eu levo-lhe lá nos pântanos
para que você aprenda a ver. Não posso ser o último a
ser visitado pelos panos.
— Me entende?
Menti que sim. Na tarde seguinte, o avô me levou
uma vez mais ao lago. Chegados à beira do poente ele
ficou a espreitar. Mas o tempo passou em desabitual
demora. O avô se inquietava, erguido na proa do barco,
palma da mão apurando as vistas. Do outro lado, havia
menos que ninguém. Desta vez, também o avô não via
mais que a enevoada solidão dos pântanos. De súbito,
ele interrompeu o nada:
— Fique aqui!
E saltou para a margem, me roubando o peito no
susto. O avô pisava os interditos territórios? Sim, frente
ao meu espanto, ele seguia em passo sabido. A canoa
ficou balançando, em desequilibrismo com meu peso
ímpar. Presenciei o velho a alonjar-se com a discrição de
uma nuvem. Até que, entre a neblina, ele se declinou
em sonho, na margem da miragem. Fiquei ali, com mui-
to espanto, tremendo de um frio arrepioso. Me recordo
de ver uma garça de enorme brancura atravessar o céu.

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Parecia uma seta trespassando os flancos da tarde, fa-
zendo sangrar todo o firmamento. Foi então que deparei
na margem, do outro lado do mundo, o pano branco.
Pela primeira vez, eu coincidia com meu avô na visão
do pano. Enquanto ainda me duvidava foi surgindo,
mesmo ao lado da aparição, o aceno do pano vermelho
do meu avô. Fiquei indeciso, barafundido. Então, lenta-
mente, tirei a camisa e agitei-a nos ares. E vi: o vermelho
do pano dele se branqueando, em desmaio de cor. Meus
olhos se neblinaram até que se poentaram as visões.
Enquanto remava um demorado regresso, me vi-
nham à lembrança as velhas palavras de meu velho avô:
a água e o tempo são irmãos gémeos, nascidos do mes-
mo ventre. E eu acabava de descobrir em mim um rio
que não haveria nunca de morrer. A esse rio volto agora
a conduzir meu filho, lhe ensinando a vislumbrar os
brancos panos da outra margem.

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