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Caderno Poemas 9 Ano

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METAS CURRICULARES DE PORTUGUÊS

CADERNO DE APOIO

POESIA – 9.º ANO

1
Fernando Pessoa

[O aldeão]

Ó sino da minha aldeia,


Dolente na tarde calma,
Cada tua badalada
Soa dentro da minha alma.

E é tão lento o teu soar,


Tão como triste da vida,
Que já a primeira pancada
Tem o som de repetida.

Por mais que me tanjas perto,


Quando passo, sempre errante,
És para mim como um sonho,
Soas-me na alma distante.

A cada pancada tua,


Vibrante no céu aberto,
Sinto mais longe o passado,
Sinto a saudade mais perto.

O Menino da sua Mãe

No plaino abandonado
Que a morna brisa aquece,
De balas traspassado –
Duas, de lado a lado –,
Jaz morto, e arrefece.

Raia-lhe a farda o sangue.


De braços estendidos,
Alvo, louro, exangue,
Fita com olhar langue
E cego os céus perdidos.

Tão jovem! que jovem era!


(Agora que idade tem?)
Filho único, a mãe lhe dera
Um nome e o mantivera:
“O menino da sua mãe.”

2
Caiu-lhe da algibeira
A cigarreira breve.
Dera-lha a mãe. Está inteira
E boa a cigarreira.
Ele é que já não serve.

De outra algibeira, alada


Ponta a roçar o solo,
A brancura embainhada
De um lenço... Deu-lho a criada
Velha que o trouxe ao colo.

Lá longe, em casa, há a prece:


“Que volte cedo, e bem!”
(Malhas que o Império tece!)
Jaz morto, e apodrece,
O menino da sua mãe.

Se estou só, quero não ‘star,


Se não ‘stou, quero ‘star só.
Enfim, quero sempre estar
Da maneira que não estou.

Ser feliz é ser aquele.


E aquele não é feliz,
Porque pensa dentro dele
E não dentro do que eu quis.

A gente faz o que quer


Daquilo que não é nada,
Mas falha se o não fizer
Fica perdido na estrada.

In Obra Poética

O Mostrengo

O mostrengo que está no fim do mar


Na noite de breu ergueu-se a voar;
À roda da nau voou três vezes,
Voou três vezes a chiar,
E disse, “Quem é que ousou entrar
Nas minhas cavernas que não desvendo,
3
Meus tectos negros do fim do mundo?”
E o homem do leme disse, tremendo,
“El-Rei D. João Segundo!”

“De quem são as velas onde me roço?


De quem as quilhas que vejo e ouço?”
Disse o mostrengo, e rodou três vezes,
Três vezes rodou imundo e grosso,
“Quem vem poder o que só eu posso,
Que moro onde nunca ninguém me visse
E escorro os medos do mar sem fundo?”
E o homem do leme tremeu, e disse,
“El-Rei D. João Segundo!”

Três vezes do leme as mãos ergueu,


Três vezes ao leme as reprendeu,
E disse no fim de tremer três vezes,
“Aqui ao leme sou mais do que eu:
Sou um Povo que quer o mar que é teu;
E mais que o mostrengo, que me a alma teme
E roda nas trevas do fim do mundo,
Manda a vontade, que me ata ao leme.
De El-Rei D. João Segundo!”

Mar Português

Ó mar salgado, quanto do teu sal


São lágrimas de Portugal!
Por te cruzarmos, quantas mães choraram,
Quantos filhos em vão rezaram!
Quantas noivas ficaram por casar
Para que fosses nosso, ó mar!

Valeu a pena? Tudo vale a pena


Se a alma não é pequena.
Quem quer passar além do Bojador
Tem que passar além da dor.
Deus ao mar o perigo e o abismo deu,
Mas nele é que espelhou o céu.

In Mensagem

4
Camilo Pessanha

Floriram por engano as rosas bravas


No inverno: veio o vento desfolhá-las...
Em que cismas, meu bem? Porque me calas
As vozes com que há pouco me enganavas?

Castelos doidos! Tão cedo caístes!...


Onde vamos, alheio o pensamento,
De mãos dadas? Teus olhos, que um momento
Perscrutaram nos meus, como vão tristes!

E sobre nós cai nupcial a neve,


Surda, em triunfo, pétalas, de leve
Juncando o chão, na acrópole de gelos...

Em redor do teu vulto é como um véu!


Quem as esparze – quanta flor! – do céu,
Sobre nós dois, sobre os nossos cabelos?

(A Aires de Castro e Almeida)

Quando voltei encontrei os meus passos


Ainda frescos sobre a húmida areia.
A fugitiva hora, reevoquei-a,
– Tão rediviva! nos meus olhos baços...

Olhos turvos de lágrimas contidas.


– Mesquinhos passos, porque doidejastes
Assim transviados, e depois tornastes
Ao ponto das primeiras despedidas?

Onde fostes sem tino, ao vento vário,


Em redor, como as aves n’um aviário,
Até que a asita fofa lhes faleça...

Toda esta extensa pista – para quê?


Se há-de vir apagar-vos a maré,
Com as do novo rasto que começa...

In Clepsidra

5
Mário de Sá-Carneiro

Quasi

Um pouco mais de sol – eu era brasa,


Um pouco mais de azul – eu era além.
Para atingir, faltou-me um golpe d’asa…
Se ao menos eu permanecesse aquém...

Assombro ou paz? Em vão... Tudo esvaído


Num baixo mar enganador d’espuma;
E o grande sonho despertado em bruma,
O grande sonho – ó dor! – quasi vivido...
Quasi o amor, quasi o triunfo e a chama,
Quasi o princípio e o fim – quasi a expansão...
Mas na minh’alma tudo se derrama...
Entanto nada foi só ilusão!
De tudo houve um começo... e tudo errou...
– Ai a dor de ser-quasi, dor sem fim... –
Eu falhei-me entre os mais, falhei em mim,
Asa que se elançou mas não voou...
Momentos d’alma que desbaratei...
Templos aonde nunca pus um altar...
Rios que perdi sem os levar ao mar...
Ânsias que foram mas que não fixei...
Se me vagueio, encontro só indícios…
Ogivas para o sol – vejo-as cerradas;
E mãos d’herói, sem fé, acobardadas,
Puseram grades sobre os precipícios...
Num ímpeto difuso de quebranto,
Tudo encetei e nada possuí...
Hoje, de mim, só resta o desencanto
Das coisas que beijei mas não vivi…
…………………………………………………
…………………………………………………
Um pouco mais de sol – e fora brasa,
Urn pouco mais de azul – e fora além.
Para atingir, faltou-me um golpe d’asa…
Se ao menos eu permanecesse aquém…
In Dispersão

6
O recreio

Na minh’Alma há um balouço
Que está sempre a balouçar –
Balouço à beira dum poço,
Bem difícil de montar...

– E um menino de bibe
Sobre ele sempre a brincar...

Se a corda se parte um dia


(E já vai estando esgarçada),
Era uma vez a folia:
Morre a criança afogada...

– Cá por mim não mudo a corda


Seria grande estopada...

Se o indez morre, deixá-lo...


Mais vale morrer de bibe
Que de casaca... Deixá-lo
Balouçar-se enquanto vive...

– Mudar a corda era fácil...


Tal ideia nunca tive...

In Indícios de Oiro

Irene Lisboa

Escrever

Se eu pudesse havia de transformar as palavras


em clava.
Havia de escrever rijamente.
Cada palavra seca, irressonante, sem música.
Como um gesto, uma pancada brusca e sóbria.
Para quê todo este artifício da composição sintác-
tica e métrica?
Para quê o arredondado linguístico?
Gostava de atirar palavras.
Rápidas, secas e bárbaras, pedradas!
Sentidos próprios em tudo.
Amo? Amo ou não amo.

7
Vejo, admiro, desejo?
Ou sim ou não.
E, como isto, continuando.

E gostava para as infinitamente delicadas coisas


do espírito…
Quais, mas quais?
Gostava, em oposição com a braveza do jogo da
pedrada, do tal ataque às coisas certas e negadas…
Gostava de escrever com um fio de água.
Um fio que nada traçasse.
Fino e sem cor, medroso.

Ó infinitamente delicadas coisas do espírito!


Amor que se não tem, se julga ter.
Desejo dispersivo.
Vagos sofrimentos.
Ideias sem contorno.
Apreços e gostos fugitivos.
Ai! o fio da água, o próprio fio da água sobre
vós passaria, transparentemente?
Ou vos seguiria humilde e tranquilo?

Monotonia

Começar, recomeçar, interminamente repetir um


monótono romance, o romance da minha vida.
Com palavras iguais, inalteráveis, semelhantes, in-
sistir sobre o cansaço e a pobreza disto de viver...
Andar como os dementes pelos cantos a repisar
o que já ninguém quer ouvir.
Levar o meu desprecioso tempo à deriva.
Queixar-me, castigar e lamentar sem qualquer
esperança, por desfastio.
Pôr a nu uma miséria comum e conhecida, chã-
mente, serenamente, indiferente à beleza dos temas
e das conclusões.
Monotonamente, monotonamente.

Monotonia. Arte, vida...


Não serei ainda eu que te erigirei o merecido
altar.
Que te manejarei hábil e serena.

8
Monotonia! Gume frio, acerado, tenaz, eloquente.
Sino de poucos tons, impressionante.
Mas se te descobri não te vou renegar.
Tu ensinas-me, tu insinuas-me a arte da verdade,
a pobreza e a constância.
Monotonia, torna-me desinteressada.

In Um Dia e outro Dia… Outono Havias de Vir Latente, Triste

Almada Negreiros

Luís, o poeta
salva a nado o poema

Era uma vez


um português
de Portugal.
O nome Luís
há-de bastar
toda a nação
ouviu falar.
Estala a guerra
E Portugal
chama Luís
para embarcar.
Na guerra andou
a guerrear
e perde um olho
por Portugal.
Livre da morte
pôs-se a contar
o que sabia
de Portugal.
Dias e dias
grande pensar
juntou Luís
a recordar.
Ficou um livro
ao terminar
muito importante
para estudar.
Ia num barco
ia no mar

9
e a tormenta
vá d’estalar.
Mais do que a vida
há-de guardar
o barco a pique
Luís a nadar.
Fora da água
Um braço no ar
na mão o livro
há-de salvar.
Nada que nada
sempre a nadar
livro perdido
no alto mar.
– Mar ignorante
que queres roubar?
a minha vida
ou este cantar?
A vida é minha
ta posso dar
mas este livro
há-de ficar.
Estas palavras
hão-de durar
por minha vida
quero jurar.
Tira-me as forças
podes matar
a minha alma
sabe voar.
Sou português
de Portugal
depois de morto
não vou mudar.
Sou português
de Portugal
acaba a vida
e sigo igual.
Meu corpo é Terra
de Portugal
e morto é ilha
no alto mar.
Há portugueses
a navegar

10
por sobre as ondas
me hão-de achar.
A vida morta
aqui a boiar
mas não o livro
se há-de molhar.
Estas palavras
vão alegrar
a minha gente
de um só pensar.
À nossa terra
irão parar
lá toda a gente
há-de gostar.
Só uma coisa
vão olvidar:
o seu autor
aqui a nadar.
É fado nosso
é nacional
não há portugueses
há Portugal.
Saudades tenho
mil e sem par
saudade é vida
sem se lograr.
A minha vida
vai acabar
mas estes versos
hão-de gravar.
O livro é este
é este o cantar
assim se pensa
em Portugal.
Depois de pronto
faltava dar
a minha vida
para o salvar.

In Obras Completas – Poesia

11
José Gomes Ferreira

(Encontrei na Brasileira do Rossio o Manuel Mendes –


a primeira pessoa a quem li estes versos.)

Nunca encontrei um pássaro morto na floresta.


Em vão andei toda a manhã
a procurar entre as árvores
um cadáver pequenino
que desse o sangue às flores
e as asas às folhas secas...
Os pássaros quando morrem
caem no céu.

In Poeta Militante I

XXV

(Na praia. O menino aprende a linguagem das nuvens.)

Aquela nuvem
parece um cavalo...
Ah! se eu pudesse montá-lo!
Aquela?
Mas já não é um cavalo,
é uma barca à vela.

Não faz mal.


Queria embarcar nela.
Aquela?
Mas já não é um navio,
é uma Torre Amarela
a vogar no frio
onde encerraram uma donzela.
Não faz mal.
Quero ter asas
para a espreitar da janela.
Vá, lancem-me no mar
donde voam as nuvens
para ir numa delas

12
tomar mil formas
com sabor a sal
– labirinto de sombras e de cisnes
no céu de água-sol-vento-luz concreto e irreal...

In Poeta Militante II

III
(Todas as manhãs, descia a Charca em direcção ao
Colégio Colégio Francês, dirigido pelo Sr. Silva
sempre com um sorriso de fraque cínico e a palmatória
na gaveta da secretária.)

O tempo parou
no caminho para a escola
– musgo de voo,
asas de gaiola.
Às vezes no passado a morte é assim.
Continua-se vivo.

Só a gravidade muda de lei


– pedra que pára sem peso no ar do jardim
e não torno a vê-la quebrar o vidro
que eu quebrei.

XIX

(De pé, humilhado diante do quadro preto.)

Errei as contas no quadro,


preguiça de giz negro
– e é tão bom parecer estúpido!

Minado pelo sonho


– liberdade secreta,
rosto de espelho opaco.

Assim também a noite


que eu via através das janelas fechadas
– sozinho na cama quente de solidão.

E tantas, tantas somas de estrelas erradas.

In Poeta Militante III

13
Jorge de Sena

Uma pequenina luz

Uma pequenina luz bruxuleante


não na distância brilhando no extremo da estrada
aqui no meio de nós e a multidão em volta
une toute petite lumière
just a little light
una piccola... em todas as línguas do mundo
uma pequena luz bruxuleante
brilhando incerta mas brilhando
aqui no meio de nós
entre o bafo quente da multidão
a ventania dos cerros e a brisa dos mares
e o sopro azedo dos que a não vêem
só a adivinham e raivosamente assopram.
Uma pequena luz
que vacila exacta
que bruxuleia firme
que não ilumina apenas brilha.
Chamaram-lhe voz ouviram-na e é muda.
Muda como a exactidão como a firmeza
como a justiça.
Brilhando indefectível.
Silenciosa não crepita
não consome não custa dinheiro.
Não é ela que custa dinheiro.
Não aquece também os que de frio se juntam.
Não ilumina também os rostos que se curvam.
Apenas brilha bruxuleia ondeia
indefectível próxima dourada.
Tudo é incerto ou falso ou violento: brilha.
Tudo é terror vaidade orgulho teimosia: brilha.
Tudo é pensamento realidade sensação saber: brilha.
Tudo é treva ou claridade contra a mesma treva: brilha.
Desde sempre ou desde nunca para sempre ou não:
brilha.
Uma pequenina luz bruxuleante e muda
como a exactidão como a firmeza
como a justiça.
Apenas como elas.
Mas brilha.

14
Não na distância. Aqui
no meio de nós.
Brilha.

Camões dirige-se aos seus contemporâneos

Podereis roubar-me tudo:


as ideias, as palavras, as imagens,
e também as metáforas, os temas, os motivos,
os símbolos, e a primazia
nas dores sofridas de uma língua nova,
no entendimento de outros, na coragem
de combater, julgar, de penetrar
em recessos de amor para que sois castrados.
E podereis depois não me citar,
suprimir-me, ignorar-me, aclamar até
outros ladrões mais felizes.
Não importa nada: que o castigo
será terrível. Não só quando
vossos netos não souberem já quem sois
terão de me saber melhor ainda
do que fingis que não sabeis,
como tudo, tudo o que laboriosamente pilhais,
reverterá para o meu nome. E mesmo será meu,
tido por meu, contado como meu,
até mesmo aquele pouco e miserável
que, só por vós, sem roubo, haveríeis feito.
Nada tereis, mas nada: nem os ossos,
que um vosso esqueleto há-de ser buscado,
para passar por meu. E para outros ladrões,
iguais a vós, de joelhos, porem flores no túmulo.

Carta a meus filhos sobre os fuzilamentos de Goya

Não sei, meus filhos, que mundo será o vosso.


É possível, porque tudo é possível, que ele seja
aquele que eu desejo para vós. Um simples mundo,
onde tudo tenha apenas a dificuldade que advém
de nada haver que não seja simples e natural.
Um mundo em que tudo seja permitido,
conforme o vosso gosto, o vosso anseio, o vosso prazer,
15
o vosso respeito pelos outros, o respeito dos outros por vós.
E é possível que não seja isto, nem seja sequer isto
o que vos interesse para viver. Tudo é possível,
ainda quando lutemos, como devemos lutar,
por quanto nos pareça a liberdade e a justiça,
ou mais que qualquer delas uma fiel
dedicação à honra de estar vivo.
Um dia sabereis que mais que a humanidade
não tem conta o número dos que pensaram assim,
amaram o seu semelhante no que ele tinha de único,
de insólito, de livre, de diferente,
e foram sacrificados, torturados, espancados,
e entregues hipocritamente à secular justiça,
para que os liquidasse “com suma piedade e sem efusão de sangue.”
Por serem fiéis a um deus, a um pensamento,
a uma pátria, uma esperança, ou muito apenas
à fome irrespondível que lhes roía as entranhas,
foram estripados, esfolados, queimados, gaseados,
e os seus corpos amontoados tão anonimamente quanto haviam vivido,
ou suas cinzas dispersas para que delas não restasse memória.
Às vezes, por serem de uma raça, outras
por serem de uma classe, expiaram todos
os erros que não tinham cometido ou não tinham consciência
de haver cometido. Mas também aconteceu
e acontece que não foram mortos.
Houve sempre infinitas maneiras de prevalecer,
aniquilando mansamente, delicadamente,
por ínvios caminhos quais se diz que são ínvios os de Deus.
Estes fuzilamentos, este heroísmo, este horror,
foi uma coisa, entre mil, acontecida em Espanha
há mais de um século e que por violenta e injusta
ofendeu o coração de um pintor chamado Goya,
que tinha um coração muito grande, cheio de fúria
e de amor. Mas isto nada é, meus filhos.
Apenas um episódio, um episódio breve,
nesta cadeia de que sois um elo (ou não sereis)
de ferro e de suor e sangue e algum sémen
a caminho do mundo que vos sonho.
Acreditai que nenhum mundo, que nada nem ninguém
vale mais que uma vida ou a alegria de tê-la.
É isto o que mais importa – essa alegria.
Acreditai que a dignidade em que hão-de falar-vos tanto
não é senão essa alegria que vem
de estar-se vivo e sabendo que nenhuma vez

16
alguém está menos vivo ou sofre ou morre
para que um só de vós resista um pouco mais
à morte que é de todos e virá.
Que tudo isto sabereis serenamente,
sem culpas a ninguém, sem terror, sem ambição,
e sobretudo sem desapego ou indiferença,
ardentemente espero. Tanto sangue,
tanta dor, tanta angústia, um dia
– mesmo que o tédio de um mundo feliz vos persiga
não hão-de ser em vão. Confesso que
muitas vezes, pensando no horror de tantos séculos
de opressão e crueldade, hesito por momentos
e uma amargura me submerge inconsolável.
Serão ou não em vão? Mas, mesmo que o não sejam,
quem ressuscita esses milhões, quem restitui,
não só a vida, mas tudo o que lhes foi tirado?
Nenhum Juízo Final, meus filhos, pode dar-lhes
aquele instante que não viveram, aquele objecto
que não fruíram, aquele gesto
de amor, que fariam “amanhã”.
E, por isso, o mesmo mundo que criemos
nos cumpre tê-lo com cuidado, como coisa
que não é só nossa, que nos é cedida
para a guardarmos respeitosamente
em memória do sangue que nos corre nas veias,
da nossa carne que foi outra, do amor que
outros não amaram porque lho roubaram.

In Poesia II

Sophia de Mello Breyner Andresen

As pessoas sensíveis

As pessoas sensíveis não são capazes


De matar galinhas
Porém são capazes
De comer galinhas

O dinheiro cheira a pobre e cheira


À roupa do seu corpo
Aquela roupa
Que depois da chuva secou sobre o corpo

17
Porque não tinham outra
Porque cheira a pobre e cheira
A roupa
Que depois do suor não foi lavada
Porque não tinham outra

“Ganharás o pão com o suor do teu rosto”


Assim nos foi imposto
E não:
“Com o suor dos outros ganharás o pão”

Ó vendilhões do templo
Ó construtores
Das grandes estátuas balofas e pesadas
Ó cheios de devoção e de proveito

Perdoai-lhes Senhor
Porque eles sabem o que fazem

Meditação do Duque de Gandia sobre a morte de Isabel de Portugal

Nunca mais
A tua face será pura limpa e viva
Nem o teu andar como onda fugitiva
Se poderá nos passos do tempo tecer.
E nunca mais darei ao tempo a minha vida.

Nunca mais servirei senhor que possa morrer.


A luz da tarde mostra-me os destroços
Do teu ser. Em breve a podridão
Beberá os teus olhos e os teus ossos
Tomando a tua mão na sua mão.

Nunca mais amarei quem não possa viver


Sempre,
Porque eu amei como se fossem eternos
A glória, a luz e o brilho do teu ser,
Amei-te em verdade e transparência
E nem sequer me resta a tua ausência,
És um rosto de nojo e negação
E eu fecho os olhos para não te ver.

Nunca mais servirei senhor que possa morrer.

*
18
Porque

Porque os outros se mascaram mas tu não


Porque os outros usam a virtude
Para comprar o que não tem perdão.
Porque os outros têm medo mas tu não.

Porque os outros são os túmulos caiados


Onde germina calada a podridão.
Porque os outros se calam mas tu não.

Porque os outros se compram e se vendem


E os seus gestos dão sempre dividendo.
Porque os outros são hábeis mas tu não.

Porque os outros vão à sombra dos abrigos


E tu vais de mãos dadas com os perigos.
Porque os outros calculam mas tu não.

Camões e a tença

Irás ao Paço. Irás pedir que a tença


Seja paga na data combinada
Este país te mata lentamente
País que tu chamaste e não responde
País que tu nomeias e não nasce

Em tua perdição se conjuraram


Calúnias desamor inveja ardente
E sempre os inimigos sobejaram
A quem ousou seu ser inteiramente

E aqueles que invocaste não te viram


Porque estavam curvados e dobrados
Pela paciência cuja mão de cinza
Tinha apagado os olhos no seu rosto

Irás ao Paço irás pacientemente


Pois não te pedem canto mas paciência

Este país que te mata lentamente.

In Obra Poética

19
Carlos de Oliveira

Vilancete castelhano de Gil Vicente

Por mais que nos doa a vida


nunca se perca a esperança;
a falta de confiança
só da morte é conhecida.
Se a lágrimas for cumprida
a sorte, sentindo-a bem,
vereis que todo o mal vem
achar remédio na vida.
E pois que outro preço tem
depois do mal a bonança,
nunca se perca a esperança
enquanto a morte não vem.

Quando a harmonia chega

Escrevo na madrugada as últimas palavras deste livro: e tenho o


coração tranquilo, sei que a alegria se reconstrói e continua.
Acordam pouco a pouco os construtores terrenos, gente que
desperta no rumor das casas, forças surgindo da terra inesgotável,
crianças que passam ao ar livre gargalhando. Como um rio lento e
irrevogável, a humanidade está na rua.
E a harmonia, que se desprende dos seus olhos densos ao encontro
da luz, parece de repente uma ave de fogo.

In Terra da Harmonia

Ruy Belo

Os estivadores

Só eles suam mas só eles sabem


o preço de estar vivo sobre a terra
Só nessas mãos enormes é que cabem
as coisas mais reais que a vida encerra

20
Outros rirão e outros sonharão
podem outros roubar-lhes a alegria
mas a um deles é que chamo irmão
na vida que em seus gestos principia

Onde outrora houve o deus e houve a ninfa


eles são a moderna divindade
e o que antes era pura linfa
é o que sobra agora da cidade

Vede como alheios a tudo o resto


compram com o suor a claridade
e rasgam com a decisão do gesto
o muro oposto pela gravidade

Ode marítima é que chamo à ode


escrita ali sobre a pedra do cais
A natureza é certo muito pode
mas um homem de pé pode bem mais

E tudo era possível

Na minha juventude antes de ter saído


da casa de meus pais disposto a viajar
eu conhecia já o rebentar do mar
das páginas dos livros que já tinha lido

Chegava o mês de maio era tudo florido


o rolo das manhãs punha-se a circular
e era só ouvir o sonhador falar
da vida como se ela houvesse acontecido

E tudo se passava numa outra vida


e havia para as coisas sempre uma saída
Quando foi isso? Eu próprio não o sei dizer

Só sei que tinha o poder de uma criança


entre as coisas e mim havia vizinhança
e tudo era possível era só querer

21
Algumas proposições com crianças

A criança está completamente imersa na infância


a criança não sabe que há-de fazer da infância
a criança coincide com a infância
a criança deixa-se invadir pela infância como pelo sono
deixa cair a cabeça e voga na infância
a criança mergulha na infância como no mar
a infância é o elemento da criança como a água
é o elemento próprio do peixe
a criança não sabe que pertence à terra
a sabedoria da criança é não saber que morre
a criança morre na adolescência
Se foste criança diz-me a cor do teu país
Eu te digo que o meu era da cor do bibe
e tinha o tamanho de um pau de giz
Naquele tempo tudo acontecia pela primeira vez
Ainda hoje trago os cheiros no nariz
Senhor que a minha vida seja permitir a infância
embora nunca mais eu saiba como ela se diz

In Obra Poética

Herberto Helder

Não sei como dizer-te que minha voz te procura


e a atenção começa a florir, quando sucede a noite
esplêndida e vasta.
Não sei o que dizer, quando longamente teus pulsos
se enchem de um brilho precioso
e estremeces como um pensamento chegado. Quando,
iniciado o campo, o centeio imaturo ondula tocado
pelo pressentir de um tempo distante,
e na terra crescida os homens entoam a vindima
– eu não sei como dizer-te que cem ideias,
dentro de mim, te procuram.

Quando as folhas da melancolia arrefecem com astros


ao lado do espaço
e o coração é uma semente inventada
em seu escuro fundo e em seu turbilhão de um dia,
tu arrebatas os caminhos da minha solidão
como se toda a casa ardesse pousada na noite.

22
– E então não sei o que dizer
junto à taça de pedra do teu tão jovem silêncio.
Quando as crianças acordam nas luas espantadas
que às vezes se despenham no meio do tempo
– não sei como dizer-te que a pureza,
dentro de mim, te procura.

Durante a primavera inteira aprendo


os trevos, a água sobrenatural, o leve e abstracto
correr do espaço –
e penso que vou dizer algo cheio de razão,
mas quando a sombra cai da curva sôfrega
dos meus lábios, sinto que me faltam
um girassol, uma pedra, uma ave – qualquer
coisa extraordinária.
Porque não sei como dizer-te sem milagres
que dentro de mim é o sol, o fruto,
a criança, a água, o deus, o leite, a mãe,
o amor,

que te procuram.

In A Colher na Boca

Gastão Cruz

Ode soneto à coragem

O silêncio coragem não consente


o amor da linguagem o silêncio
é um incêndio grande e a nossa fala
estremece de palavras abraçadas
Há um amor do que se diz do fogo
onde sempre se esgota a nossa voz
dizer palavras é lutar se a luta
reconhece as palavras que produz
se as acende nas ruas
do sentido que o coração dos homens conseguiu
impor-lhes em silêncio incêndio grande
é a língua maior incêndio os homens
sobre a fala esgotada coragem sobre
o fogo maior incêndio o amor

In A Doença

23
cf. Romeo and Juliet, III. V. 1-36

A cotovia é
um rouxinol ainda
Os ouvidos não ouvem essa
ave que divide
e a luz que conduz a mântua não canta

Esse canto alterado


como um simples acidente da boca
era um som diferente nos teus mudos
ouvidos
da tão ameaçada madrugada

A tua boca ouve


a noite nessa ave
porém é na manhã que se transforma noutro
o canto que escurece como a luz a dor pouco
antes entre outro canto fugitiva

Vejo-te contra a pele como se não pudesse


ocultar-te de todo o movimento
dum incêndio
e a cotovia exprime
impede a tua perda

Tinha deixado a torpe arte dos versos


e de novo procuro esse exercício
de soluços

Devo agora rever a noite que te oculta


como pude esquecer que de tal modo
teria de exprimir

tudo o que já esquecera e sopra sobre


mim
como numa planície o crepúsculo

Tinha esquecido a arte dos tercetos


e toda a
outra
mas fechaste-te nela e eu descubro
no seu esse veneno esse discurso

24
Devo pois ver de novo como muda
como os sinais da voz a noite que perdura
tu deitas-te eu ensino à minha vida
esse extinto exercício

In Teoria da Fala

Nuno Júdice

Escola

O que significa o rio,


a pedra, os lábios da terra
que murmuram, de manhã,
o acordar da respiração?

O que significa a medida


das margens, a cor que
desaparece das folhas no
lodo de um charco?

O dourado dos ramos na


estação seca, as gotas
de água na ponta dos
cabelos, os muros de hera?

A linha envolve os objectos


com a nitidez abstracta
dos dedos; traça o sentido
que a memória não guardou;

e um fio de versos e verbos


canta, no fundo do pátio,
no coro de arbustos que
o vento confunde com crianças.

A chave das coisas está


no equívoco da idade, na
sombria abóbada dos meses,
no rosto cego das nuvens.

25
Fragmentos

1
Aceita o transitório; nada do que
é definitivo, dura, te pode atingir

2
Algo de visível perpassa
nos limites do ser.

3
De noite, o vento partiu
um dos vidros das traseiras.

4
Só o ruído da noite sobrevive
à luz e ao furor matinais.

5
(Se aquelas nuvens, no horizonte,
chegassem até mim...)

6
O fragmento, porém, exprime
o estilhaçar da intensidade.

7
No último fragmento, fixa
o efémero e repousa.

In Meditação sobre Ruínas

O conceito de metáfora
com citações de Camões e Florbela

Transforma-se a imagem no objecto visto:


amada no ramo pousada, ave e memória,
peças espalhadas num lugar sem história
que o poema arruma sem nada ter previsto.

Deito essa imagem num velho travesseiro,


toco-a com os dedos de um verso antigo
e digo-lhe: “Amo-te ainda; vem comigo!”,
quando ela me oferece o seu corpo inteiro.
26
Nada do que aqui está tem um fundo
na realidade em que nasce esta linguagem;
o verso engana em cada imagem,

e só dentro dele faz sentido o mundo.


Por isso te escondo aqui, figura desejada,
e tudo o resto pouco mais é do que nada.

Contas

Uma noite, quando a noite não acabava,


contei cada estrela no céu dos teus olhos;
e nessa noite em que nenhum astro brilhava
deste-me sóis e planetas aos molhos.

Nessa noite, que nenhum cometa incendiou,


fizemos a mais longa viagem do amor;
no teu corpo, onde o meu encalhou,
fiz caminho de náufrago e navegador.

Tu és a ilha que todos desejaram,


a lagoa negra onde sonhei mergulhar,
e as lentas contas que os dedos contaram

por entre cabelos suspensos do ar –


nessa noite em que não houve madrugada,
desfiando um terço sem deus nem tabuada.

In Rimas e Contas

Federico García Lorca

Romance Sonâmbulo

A Gloria Giner
e Fernando de los Ríos

Verde que te quero verde.


Verde vento. Verdes ramos.
O barco sempre no mar
e o cavalo na montanha.
Com a sombra na cintura
ela sonha na varanda,

27
verde carne, tranças verdes,
com olhos de fria prata.
Verde que te quero verde.
No alto, a lua cigana.
As coisas a estão olhando
e ela não pode olhá-las.

Verde que te quero verde.


Grandes estrelas de geada
chegam com o peixe de sombra
que abre caminho à alvorada.
A figueira esfrega o seu vento
com a lixa de seus ramos,
e o monte, gato gardunho,
eriça suas pitas acres.
Mas quem virá? E por onde?...
Ela ainda está na varanda,
verde carne, tranças verdes,
sonhando com o mar amargo.

Compadre, quero trocar


meu cavalo por sua casa,
meus arreios por seu espelho,
sua manta por minha faca.
Compadre, venho a sangrar
desde as gargantas de Cabra.
Ah, se eu pudesse, rapaz,
este contrato fechava.
Eu, porém, já não sou eu,
nem minha é já minha casa.
Compadre, quero morrer
com honra na minha cama.
De ferro, se puder ser,
e tendo lençóis de holanda.
Não vês a ferida que tenho
do peito até à garganta?
Trezentas rosas morenas
leva o teu peitilho branco.
Teu sangue ressuma e cheira
em volta de tua faixa.
Porém, eu já não sou eu.

28
Nem minha é já minha casa.
Deixai-me subir ao menos
até às altas varandas,
deixai-me subir!, deixai-me
até às verdes varandas.
Balaustradas da lua
por onde ressoa a água.

Já sobem os dois compadres


lá acima, às altas varandas.
Deixando um rasto de sangue.
Deixando um rasto de lágrimas.
Tremulavam nos telhados
candeeirinhos de lata.
Mil pandeiros de cristal
feriam a madrugada.

Verde que te quero verde,


verde vento, verdes ramos.
Os dois compadres subiram.
O longo vento deixava
na boca um gosto esquisito
de fel, menta e alfavaca.
Compadre, diz-me – onde está
tua menina amargurada?
Quantas vezes te esperou!
Quantas vezes te esperara,
cara fresca, negras tranças,
nesta tão verde varanda!

Sobre o rosto da cisterna


balouçava-se a cigana.
Verde carne, tranças verdes,
com olhos de fria prata.
Um sincelo de luar
sustenta-a sobre a água.
A noite tornou-se íntima
como uma pequena praça.
Guardas civis embriagados
na porta davam pancadas.

29
Verde que te quero verde.
Verde vento. Verdes ramos.
O barco sempre no mar.
E o cavalo na montanha.
(trad. José Bento) In Obra Poética

Carlos Drummond de Andrade

Receita de Ano Novo


Para você ganhar belíssimo Ano Novo
cor do arco-íris, ou da cor da sua paz,
Ano Novo sem comparação com todo o tempo já vivido
(mal vivido talvez ou sem sentido)
para você ganhar um ano
não apenas pintado de novo, remendado às carreiras,
mas novo nas sementinhas do vir-a-ser;
novo
até no coração das coisas menos percebidas
(a começar pelo seu interior)
novo, espontâneo, que de tão perfeito nem se nota,
mas com ele se come, se passeia,
se ama, se compreende, se trabalha,
você não precisa beber champanha ou qualquer outra birita,
não precisa expedir nem receber mensagens
(planta recebe mensagens?
passa telegramas?)
Não precisa
fazer lista de boas intenções
para arquivá-las na gaveta.
Não precisa chorar arrependido
pelas besteiras consumidas
nem parvamente acreditar
que por decreto de esperança
a partir de janeiro as coisas mudem
e seja tudo claridade, recompensa,
justiça entre os homens e as nações,
liberdade com cheiro e gosto de pão matinal,
direitos respeitados, começando
pelo direito augusto de viver.
Para ganhar um Ano Novo
que mereça este nome,
você, meu caro, tem de merecê-lo,
tem de fazê-lo novo, eu sei que não é fácil,
mas tente, experimente, consciente.
É dentro de você que o Ano Novo
cochila e espera desde sempre.
In Discurso da Primavera e algumas Sombras

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