Location via proxy:   [ UP ]  
[Report a bug]   [Manage cookies]                

Marques 9788579831317 03

Fazer download em pdf ou txt
Fazer download em pdf ou txt
Você está na página 1de 39

Pedro Páramo:

Comala e o espaço encruzilhada

Gracielle Marques

SciELO Books / SciELO Livros / SciELO Libros

MARQUES, G. Geografias do drama humano: leituras do espaço em São Bernardo, de Graciliano


Ramos, e Pedro Páramo, de Juan Rulfo [online]. São Paulo: Editora UNESP; São Paulo: Cultura
Acadêmica, 2010. 141 p. ISBN 978-85-7983-131-7. Available from SciELO Books
<http://books.scielo.org>.

All the contents of this work, except where otherwise noted, is licensed under a Creative Commons Attribution-Non
Commercial-ShareAlike 3.0 Unported.

Todo o conteúdo deste trabalho, exceto quando houver ressalva, é publicado sob a licença Creative Commons Atribuição -
Uso Não Comercial - Partilha nos Mesmos Termos 3.0 Não adaptada.

Todo el contenido de esta obra, excepto donde se indique lo contrario, está bajo licencia de la licencia Creative Commons
Reconocimento-NoComercial-CompartirIgual 3.0 Unported.
2
PEDRO PÁRAMO: COMALA E O
ESPAÇO ENCRUZILHADA

Porque tinha medo das noites que


enchiam a escuridão de fantasmas. De
encerrar-se com seus fantasmas. Disso
tinha medo.
(Rulfo, 2004, p.173)

Em seu livro Pedro Páramo (1955) o mexicano Juan


Rulfo nos oferece não apenas uma história, mas várias
histórias labirínticas que são protagonizadas em Comala,
povoado que tem sabor de desdita e cheira a mel derra-
mado, no qual os sonhos vão enfraquecendo e terminam
por apagar-se como a chama de uma vela. Um mundo em
ruínas feito de murmúrios, porém que teve seus dias de
beleza. Para cobrar os anos que esteve longe de sua terra,
Dolores Preciado envia seu filho Juan, que promete à sua
mãe à beira da morte ir a Comala encontrar seu pai, Pedro
Páramo, até então desconhecido. No entanto, o povoado
onde habitaria seu pai se acha desabitado, desolado: nele
parecem existir apenas seres fantasmais. Por fim, Juan se
dá conta de que está em um mundo de mortos, de que as
pessoas com as quais se encontrou falavam de suas tumbas
58 GRACIELLE MARQUES

e de que a existência real do povoado se resume às pedras,


ao silêncio e às casas desoladas. Aterrorizado e debilitado
pelos sussurros dos mortos que testemunham a história
passada de Comala dos tempos em que seu pai era vivo,
Juan morre. As vozes silenciosas que compõem a narrati-
va se entrecruzam e encadeiam diferentes fragmentos em
torno da história da busca pelo pai.
Pedro Páramo é a figura central, o dono das terras ao
redor das quais se ligam as demais personagens e toda a vida
de Comala. Os muitos fragmentos contam sua vida desde a
infância até sua velhice, como ele se transformou no cacique
violento e ganancioso que faz uso de qualquer método para
conseguir o fim desejado. “O rancor em pessoa”, porém
que dedica um amor irrefreável a Susana San Juan, a quem
conhece desde a infância. São esses elementos, entre outros,
que dão a complexidade da personagem, pois ele é a conflu-
ência das bases psicológicas, ontológicas, míticas e sociais
que formam a fábula. O poderoso senhor não conseguirá ter
o amor de Susana e após sua morte o desespero e a afronta in-
direta do povoado ao festejar esse dia provocam a ruína total
de Comala. Ele morre assassinado por um de seus inúmeros
filhos e seu corpo tomba como se fosse um monte de pedras.
É esse povoado desértico que encontrará Juan Preciado.
Da tradição literária dos narradores da Revolução Me-
xicana, Juan Rulfo nos apresenta em sua obra Pedro Páramo
a renovação e a superação das limitações deste romance
convertendo em linguagem poética a temática do mun-
do rural latino-americano. Como afirma Carlos Fuentes
(1990, p.172, tradução nossa):

Juan Rulfo assume toda esta tradição, a desnuda, tira


do cacto os espinhos e os crava como um rosário no peito,
pega a cruz mais alta da montanha e nos revela que é uma
árvore morta de cujas ramas pendem, no entanto, os frutos,
sombrios e dourados das palavras.
GEOGRAFIAS DO DRAMA HUMANO 59

De fato, seu romance impôs à crítica especializada a


necessidade de rever seus conceitos, para fazer frente a uma
estrutura fragmentária e caótica e dar corpo a uma sucessão
de fios narrativos aparentemente dispersos. A obra requer
leituras minuciosas e múltiplas, opostas à das tradicionais,
exigindo um trabalho interminável e vigoroso da crítica
que proporciona, na medida em que é consciente de sua
problemática, novas e interessantes leituras.
A motivação que dirige nossa leitura de Pedro Páramo
surgiu da problemática que se manifesta na construção de
seu espaço carregado de significados, uma vez contextuali-
zados. A criação espaço-temporal no romance é dinâmica,
superando os esquemas tradicionais de percepção da reali-
dade como reprodução mecânica, e dialoga com o conflito
narrado e também atua sobre e em função das personagens.
Uma vez desmembrada a narrativa, encontramos cinco
ou seis núcleos narrativos que podem ser nomeados de
maneira estereotipada – a mãe, a amante, a infância, o
filho, o pai, o cacique – e que se encontram subdivididos
e distribuídos dentro de um desenho interno orgânico de
68 fragmentos. Em seguida, analisamos um conjunto de
aspectos que deverá perpassar o romance e que exemplifica
espacialidades ficcionalizadas que extrapolam os limites do
narrado e que esboçam situações do homem e seu espaço
existencial. Entre os primeiros, a construção do espaço
a partir da memória idealizada encontrada nas palavras
de Dolores Preciado e a desconstrução dessa idealização
por seu filho Juan Preciado; a relação e a identificação de
Pedro Páramo com Comala e sua amada Susana San Juan;
sua desintegração e o passado visto como ruína; a impos-
sibilidade de comunicação e a solidão das personagens em
seu espaço de origem.
Assim, partindo da perspectiva das vozes que narram,
se cria uma verdade fundamentada em encontros e desen-
60 GRACIELLE MARQUES

contros temporais e espaciais que regem, por sua vez, a vida


das personagens impondo-lhes uma incessante busca por
seu tempo e espaço.
São espaços que apresentam algumas representações
instintivas e emocionais que seriam arquétipos que nor-
teiam o homem e o colocam em face da sua existência.
Como, por exemplo, a morte; a origem da vida, mais pre-
cisamente as reiterações do espaço edênico, a viagem; o
inferno; o paraíso, que transmutaram em um mesmo campo
psicológico de desilusão.
O retorno de Preciado, o filho órfão, é valorizado, uma
vez que reafirma a necessidade de encontrar suas origens:
retorno que é mediado pelos “olhos”, metáfora especular,
e pelas recordações de sua mãe, Dolores. Enfim, pela al-
teridade que servirá de contraponto espaço-referencial:

Eu imaginava ver aquilo através das recordações da


minha mãe; da sua nostalgia, entre fiapos de suspiros.
Ela viveu sempre suspirando por Comala, pelo regresso;
mas jamais voltou. Agora, venho eu em seu lugar. Trago
os olhos com que ela viu estas coisas, porque me deu seus
olhos para ver. (Rulfo, 2004, p.26)

Esse regresso corresponde à recuperação da identidade


pessoal e humana, que se perde em condições de miséria,
injustiça e esquecimento. Por isso a mãe pede que o filho
exija o que lhe cabe: “Exige o que é nosso. O que ele tinha
de ter me dado e não me deu nunca... O esquecimento em
que nos deixou, filho, você deve cobrar caro” (idem, p.25).
Os fragmentos das recordações da mãe, Dolores, pre-
sentes na memória de Juan Preciado, são descritivos e estão
carregados de positividade e de imagens que instauram uma
visão paradisíaca de Comala. Essas imagens, no entanto,
são desconstruídas na convivência contígua à Comala do
presente da narração, estabelecendo um triste contraste.
GEOGRAFIAS DO DRAMA HUMANO 61

Nota-se que Dolores se encontra profundamente rela-


cionada à terra, ao doméstico (à cozinha, suas obrigações
domésticas). Suas recordações de Comala refazem emoti-
vamente um tempo vivido e motivam a viagem que faria
Juan Preciado, mas também tais imagens retroalimentam
seu rancor por Pedro Páramo. Dessa maneira, o retorno
desejado por Dolores é concretizado por seu filho, com a
missão de resgatar suas origens, recuperando um universo
perdido e encontrando seu pai, peça fundamental para isso.
Está nas recordações trazidas de sua mãe, mais par-
ticularmente na maneira como ela se percebeu no lugar
da existência e como o espaço condicionou suas relações
sociais, ou seja, nas dimensões espaciais interiorizadas, o
alimento necessário para a busca do paraíso edênico, onde
as diferenças se anulariam; onde Dolores apreende pelos
sentidos uma terra farta: “... Planícies verdes. Ver subir
e descer o horizonte com o vento que move as espigas, o
ondear da tarde com uma chuva de ondas triplas. A cor da
terra, o cheiro da alfafa e do pão. Uma cidade que cheira a
mel derramado…” (idem, p.43).
Os elementos que compõem essa imagem nos dão a
dimensão de seus devaneios, isto é, um mundo vasto, fértil,
marcado pelas percepções sensoriais do ver e do sentir que
por sua vez conotam também a juventude de Dolores. Sua
imaginação aumenta essas imagens, transpondo qualquer
limitação, fazendo do horizonte, que conota subjetivamente
o porvir, uma linha móvel. Alegria visual que intensifica
a sensibilidade de seus suspiros; portanto, é um ambiente
atuante e vital para sua experiência humana. Essa relação
entre a personagem e a paisagem contemplada e vivenciada
exemplifica o que Gaston Bachelard (1988, p.50) nos diz:

Toda grande imagem tem um fundo onírico inson-


dável e é sobre esse fundo onírico que o passado pessoal
coloca cores particulares. Assim, é no final do curso da
62 GRACIELLE MARQUES

vida que veneramos realmente uma imagem descobrindo


suas raízes para além da história fixada na memória. No
reino da imaginação absoluta, somos jovens muito tarde. É
preciso perder o paraíso terrestre para vivê-lo na realidade
de suas imagens, na sublimação absoluta que transcende
a toda paixão.

A perda do paraíso terrestre é justamente o que faz


Dolores e as outras personagens reviverem e ampliarem
na memória uma felicidade passada e desejada; contudo,
apenas possível na imaginação. Esse “antes” paradisíaco
encontra correlatos semânticos nas memórias de Pedro
Páramo idoso e nas recordações ultratumular de Susana
San Juan. A planície verde coberta de espigas de milho que
o vento balançava, os odores da alfafa, do pão recém-saído
do forno e do mel são produtos líricos de uma reconstrução
espacial e temporal idílica que também aparece nos montes
verdes descritos pela personagem Pedro Páramo: “[…]
Nas colinas verdes. Quando soltávamos pipas na época
do vento. Ouvíamos lá embaixo o rumor vivo do povoado
enquanto estávamos acima dele, no alto da colina, conforme
ia embora o fio de cânhamo arrastado pelo vento” (Rulfo,
2004, p.36).
As recordações de Dolores do “sabor [...] dos botões das
laranjeiras na mornidão do tempo” (idem, p.44) também
ecoam nas imagens que Susana guarda em sua memória
ultratumular: “Penso em quando os limões amadureciam.
No vento de fevereiro que rompia os talos das samambaias,
antes que o abandono as secasse; os limões maduros que
enchiam o velho pátio com seu perfume” (idem, p.113).
Todas essas imagens espaciais contêm a profundidade
de um tempo determinado como o da felicidade e convivem
justapostas na narrativa. Esses relevos projetam e corpori-
ficam as vicissitudes da grandeza humana em uma relação
de intimidade e identificação com a paisagem. De fato, a
GEOGRAFIAS DO DRAMA HUMANO 63

privação desses quadros naturais provocará a desesperada


caminhada de seres que se sentirão sem rumo, abandonados
no Cosmos, já que se identificam e se apegam intensamente
a esses espaços.
A justaposição dos diferentes tempos do passado com
o presente da narrativa e o mundo dos mortos e dos vivos
postos como simultâneos, da narrativa, corrobora esse
sentido, qual seja, ressaltar a impossibilidade da volta do
tempo passado. O que permite refazer algo, agora, são as
palavras que compõem as versões da história, contadas
pelas personagens. No entanto, é justamente no silêncio,
nos murmúrios que envolvem as personagens e suas ações
e as acompanham nos relatos que contam suas memórias,
permeando toda a narrativa, que surge a possibilidade de
entender esse mundo de rumores.
O silêncio é quebrado por um pássaro que irrompe com
seu som na chegada de Juan Preciado a Comala, por um gri-
to humano que surge de tempos remotos, por animais que
berram interrompendo o vazio da noite. Enfim, as vozes da
narrativa são precedidas por um silêncio aterrador. Porém,
a chuva e o vento ininterruptos vão fiando a narrativa em
um movimento que não separa uma dada realidade, ou
determinado relato do outro, por linhas do tempo.
Assim, embora o tempo-espaço evocado pelas descri-
ções espaciais de Pedro Páramo – quando sonha com sua
amada no banheiro – seja o mesmo das recordações de
Susana, ele não se comunica com o de Dolores, já que esta
representa para Pedro Páramo apenas a possibilidade de
ampliar os limites de sua terra e saldar suas dívidas. As-
sim exclama Fulgor, depois de acertar o casamento entre
ambos: “Venha para cá, terrinha de Enmedio. E via como
ela vinha. Como já estava aqui. O tanto que uma mulher,
afinal de contas, significa” (idem, p.62).
O casamento de conveniência (Dolores era a dona das
desejadas terras de Enmedio) e o assassinato de Toribio
64 GRACIELLE MARQUES

Aldrete também por questões de limites de terra permitem


a salvação e a ampliação dos bens da família Páramo. Por
isso o desejo de possuir a terra se encontra em disjunção
com a comunhão amorosa de ambos.
Já o sangue derramado de Toribio Aldrete permitirá a
apropriação de suas terras; porém, como veremos adiante,
sua morte desencadeará, por transferência metonímica, a
introdução de um espaço anunciador primordial na traje-
tória de Juan Preciado. É por meio dessas táticas violentas
que Pedro se apodera das terras de Media Luna e reúne em
torno de sua figura um povoado, Comala, que terá tempos
de bonança econômica, ainda que concentrada, e que viverá
enquanto essa força maior o dominar.
O universo que recria o “antes” de Comala, isto é, os
tempos de fertilidade, é vivenciado interiormente por essas
personagens em contraste com o momento “real” vivido
por elas, o que denota uma tendência subjetiva de evasão
da realidade. Dolores vive em uma situação social de de-
pendência, vive de favor na casa de sua irmã. Já Susana
San Juan relembra depois de morta um tempo-espaço de
regozijo que coincide com a época da morte de sua mãe, o
que deveria trazer-lhe tristeza e afetação pelo afastamento
a que se submeteu devido à doença contagiosa da mãe.
Portanto, suas recordações estabelecem um contraste ín-
timo entre a personagem da mãe e o momento recordado,
já que focaliza um momento de nostalgia e felicidade em
harmonia com a natureza: “E os pardais riam; bicavam as
folhas que a brisa fazia cair, e riam; deixavam suas plumas
entre os espinhos dos galhos e perseguiam as borboletas, e
riam. Era esse tempo” (idem, p.114).
Por sua vez, Pedro Páramo idoso se lembra do tempo-
espaço de sua infância em comunhão com seu amor e o
espaço circundante no momento da perda de seu poder e
diante da impossibilidade de ter Susana. Dolores significa
somente a espoliação da terra e a vê como seu paraíso, prin-
GEOGRAFIAS DO DRAMA HUMANO 65

cipalmente pelo fato de lhe haver proporcionado segurança


econômica, já que é praticamente a única a herdar as terras
da família. Susana San Juan é a busca de uma felicidade
amorosa idealizada. Sua existência marca a vida espiritual
e íntima de Pedro Páramo.
Um elemento que exerce uma força que atravessa toda a
obra é a água. Rulfo busca no poder da simbologia da água
certas combinações que se abrem para a profundidade dos
desejos e sonhos relacionados com a força material e espi-
ritual dessa substância. Gaston Bachelard dedicou-se ao
estudo das sutis variações das águas em A água e os sonhos
(1989): as águas claras, primaveris, correntes, amorosas,
profundas, dormentes, mortas, compostas, suaves, violen-
tas; a água como mestre da linguagem, entre outros.
Em Pedro Páramo, a construção do espaço concreto
se revela em elementos fugidios, imprecisos como a água,
o vento, o vazio, o binômio luz e sombra, presentes nos
fragmentos das vivências espaciais subjetivas. A caracte-
rização de Susana feita por Pedro é ilustrada pela candura
dos elementos líquidos, o contrário da relação estabelecida
por Dolores Preciado: “Seus lábios estavam molhados como
se tivessem sido beijados pelo orvalho [...] De você, eu me
lembrava. Quando você estava ali me olhando com seus
olhos de água-marinha” (Rulfo, 2004, p.36). Não é ele
quem beija seus lábios, é o orvalho, associando-o ao frescor,
uma das qualidades das águas claras, primaveris, em sua
mais simples psicologia, segundo Bachelard (1989, p.34).
Se os lábios são suaves, são água; se o olhar é inocente e
puro, é um olhar de água. A água, portanto, nessas imagens
da infância é o elemento que reflete a imaginação de uma
pureza idealizada.
Essa aparente harmonia estabelecida entre Susana e a
liquidez fugidia da água se associa tanto à pureza, à inocên-
cia do olhar, quanto à necessidade de purificação inferida
principalmente pelas relações incestuosas de Susana. A
66 GRACIELLE MARQUES

descrição de objetos situados no tempo-espaço de sua vida


em Comala e das lembranças do mar e de seu amor por Flo-
rencio é reforçada pela valorização da pureza que encontra
por meio da água a imagem ideal de sua representação. O
mundo da loucura fragmenta imagens, desmancha as for-
mas, que passam a reconstituir índices de um tempo-espaço
perdido, sustentado pelo absurdo. As geografias sonhadas
por Susana funcionam como uma tentativa de desarticula-
ção e insubmissão à organização das forças arbitrárias que
regem o mundo de Comala e de todos os que estão sob o
domínio de Pedro Páramo.
Ela também é caracterizada por elementos celestiais,
que como a água tematizam os valores da suprarrealidade.
Há uma “continuidade material da água com o céu” (idem,
p.137), assim a personagem é levada a lançar para o céu seu
olhar em busca da mesma luminosidade que encontra ao
exprimir materialmente seu amor pelas metáforas da água.
Seus sentimentos por Susana se abrem para o infinito:

A centenas de metros, acima de todas as nuvens, além,


muito além de tudo, você está escondida, Susana. Escondi-
da na imensidão de Deus, atrás de sua Divina Providência,
onde não consigo alcançar você nem ver você e aonde
minhas palavras não chegam. (Rulfo, 2004, p.37)

Essa recordação de Susana aparece juntamente com


a história de Pedro Páramo ainda criança, o que sugere a
antecipação do conhecimento da morte de Susana, ou seja,
Pedro Páramo idoso lembrando-se de sua infância e in-
troduzindo uma informação que saberia apenas na idade
adulta. Ou também, a Comala de Pedro Páramo vista por
ele ainda criança, que ressurge adjacente à história de Juan
Preciado, sonhando com a mulher que amaria e perderia.
De qualquer maneira, essa imagem de Susana em um plano
superior, acima do poder humano e do mundo decifrável, é
GEOGRAFIAS DO DRAMA HUMANO 67

vista por Pedro Páramo nos momentos finais de sua vida,


em que (re)vê Susana também por um elemento celestial,
isto é, a lua incrustada na noite.
O tempo-espaço da infância ideal desaparece com a
partida da amada. A tristeza é tão grande que a própria
tarde é significativamente construída pela percepção da
cor vermelha no espaço da despedida. O sangue espalhado
que mancha assume as conotações do sangue derramado
que significa morte, fim.

No dia em que você foi embora entendi que não torna-


ria a vê-la. Você ia tingida de vermelho pelo sol da tarde,
pelo crepúsculo ensanguentado do céu. Você sorria. Deixa-
va para trás um povoado do qual muitas vezes você mesma
me disse: “Gosto daqui por sua causa; mas odeio isso aqui
por causa de todo o resto, até por ter nascido aqui”. Pensei:
“Não regressará jamais; não voltará nunca”. (idem, p.45)

O povoado odiado, ao qual Susana regressará após a


morte da mãe por tuberculose, será reforçado pelas ima-
gens negativas de seu pai, como veremos adiante. A partir
desse momento se abrirá o tempo das ações arbitrárias, dos
crimes, da infertilidade e do perambular das personagens
e que termina na Comala que conhece Juan Preciado, que
se identifica com o inferno.
A solidão amorosa de Pedro Páramo se manifesta, como
vimos, intensa nesses espaços não fixos, difusos, místicos
e infinitos nos quais se reiteram as imagens do alto, do
celeste e do puro que constroem a dimensão espacial ínti-
ma de suas recordações de Susana. Entretanto, se Susana
está ligada ao aéreo, à água, Pedro, como o próprio nome
já confirma, se encontra ligado à terra, elemento opos-
to. Pedro Páramo era “como um tronco duro começando
a se despedaçar por dentro” (idem, p.154). Do mesmo
modo, o amor não concretizado de Susana por Florencio
68 GRACIELLE MARQUES

se encontra em um espaço oposto ao seu. Sua identificação


com a terra é vista por ela nessa caracterização: “E sua voz
era dura. Seca como a terra mais seca. E sua figura era
barrosa, ou se tornou barrosa depois?, como se entre ela e
ele se interpusesse a chuva” (idem, p.144). Ambos surgem
na imaginação de Susana relacionados com a dureza da
matéria que os compõe. No entanto, é pela atividade da
água de amolecer a terra que surgem as dimensões espaciais
subjetivas de seu amor por Florencio. Pedro Páramo, por
sua vez, aparece como se fosse terra incapaz de absorver a
água e, portanto, a impossibilidade de estabelecer vínculos
íntimos entre ambos na fase adulta, uma vez que a água
atuaria não tanto quanto substância, mas como força cria-
dora imprescindível ao surgimento tanto das formas vivas
quanto dos sentimentos amorosos. Já Florencio passa por
uma gradação na sua matéria que vai desde a terra mais
seca, passando pela imagem barrosa, que adere facilmente,
até a líquida, da chuva que desmancharia, deformaria sua
forma, possibilitando os movimentos íntimos e constantes
da água que escoa.
Outros elementos espaciais que definem as personalida-
des de Pedro Páramo e de Florencio em relação a Susana se
concentram nas oposições dia/noite, terra/água e pureza/
pecado. A primeira oposição distingue Pedro Páramo de
Florencio a partir dos correlatos claridade e escuridão,
que, por sua vez, se associam à ideia de pureza e pecado,
respectivamente:

Era cedo. O mar corria e baixava em ondas. Soltava-se


da sua espuma e ia embora, limpo, com sua água verde,
em ondas caladas.
– No mar só sei me banhar nua – disse a ele.
[…] – Gosto mais de você nas noites, quando estamos os
dois ao mesmo travesseiro, debaixo dos lençóis, na escu-
ridão. (idem, p.138)
GEOGRAFIAS DO DRAMA HUMANO 69

Pedro Páramo e Susana mantiveram uma cândida rela-


ção amorosa na infância que os unia por elementos matinais
em ambientes abertos, como banharem-se juntos em um
rio, soltar pipas. Na idade adulta, as fantasias de Susana
ainda se encontram relacionadas a esses elementos. Floren-
cio, por outro lado, aparece em seus sonhos preferindo um
ambiente oposto, ou seja, o lugar símbolo da consumação
da paixão é um quarto escuro. Dessa maneira, embora
Pedro Páramo não consiga transpor as barreiras que o
separam de Susana, os espaços de claridade e pureza que
compartilharam na infância permanecem na mente dessa
mulher, agora na imagen da força e da delicadeza do mar,
ligado à ideia de amor puro, além de propiciar os desejos
femininos mais íntimos.
A necessidade de Susana de banhar-se no mar atua
como elemento mediador de sua relação amorosa com
Florencio, ao mesmo tempo em que evoca indiretamente
as recordações da relação com Pedro Páramo. A conjunção
carnal de Susana com Florencio se faz pelas descrições que
alcançam a sensibilidade do leitor com imagens erotizadas
que ressignificam elementos da natureza para captar os
odores, os movimentos, as emoções com que ela imagina e
fantasia a penetração carnal:

[…] O mar molha meus tornozelos e vai embora; molha


meus joelhos, minhas coxas; rodeia minha cintura com seu
braço suave, dá voltas sobre meus seios; se abraça ao meu
pescoço; aperta meus ombros. Então me afundo nele, inteira.
E me entrego a ele em seu bater forte, em seu suave possuir,
sem deixar pedaço. (ibidem, grifos nossos)

A imprescindível necessidade de amar é contemplada


nos sonhos e desejos sensuais de Susana que praticamente
personificam o elemento natural, o mar. A gradação dos
verbos “molha”, “rodeia”, “se abraça”, “aperta”, “me
70 GRACIELLE MARQUES

afundo”, “me entrego”, usados para indicar a ação de


banhar-se no mar juntamente com a descrição das partes
do corpo que vão sendo molhadas, adquire ambiguidade
e chega a confundir o sujeito da ação, o mar, com Flo-
rencio no final da recordação “me entrego a ele”. É bom
recordar que essas lembranças espaciais são narradas por
Susana na primeira pessoa, assim como na recordação da
morte da mãe. Dessa maneira, é possível perceber que o
tempo-espaço é revivido intensamente por meio de recursos
expressivos como os verbos no presente do indicativo e a
gradação destes. Artisticamente esses recursos apontam
para a satisfação de suas necessidades libidinosas que se
encontram em consonância com essa paisagem natural.
Essa transposição acrescentada ao seu patrimônio interior
lhe faz companhia e lhe proporciona plenitude cósmica. No
seu caso, essa relação com a natureza ajuda a imaginação a
superar a realidade ao seu redor que apresenta um quadro
de descomunhão social e privação de liberdade.
A água nas diversas formas de sua apresentação na na-
tureza possui uma presença importante na narrativa, como
vemos. A chuva é uma das imagens poetizadas que recriam
o tempo-espaço paradisíaco, com algumas variações de
significado, que aparecem de maneira constante na obra:

A água que gotejava das telhas fazia um buraco na areia


do quintal [...]. A tormenta tinha ido embora. Agora, de
vez em quando a brisa sacudia os ramos do pé de romã
fazendo jorrar uma chuva espessa, estampando a terra
com gotas brilhantes que logo se embaçavam. As galinhas,
encolhidas como se dormissem, sacudiam de repente suas
asas e saíam ao pátio, bicando depressa, agarrando minho-
cas desenterradas pela chuva. Quando as nuvens corriam,
o sol arrancava luz das pedras, coloria tudo de um arco-íris
de cores, bebia a água da terra, brincava com a brisa dando
brilho às folhas com as quais a brisa brincava. (idem, p.35)
GEOGRAFIAS DO DRAMA HUMANO 71

Descrita por um narrador em terceira pessoa, essa pas-


sagem abre uma das divisões narrativas na qual aparece
Pedro menino pensando em sua amada. Esse tempo da
infância feliz é acariciado visualmente pela chuva atraves-
sada pelos raios de sol e pelas ondulações do vento, que
representam a força positiva de criar, e se encontra, por isso,
inevitavelmente ligado a uma esperança. Pedro se apresenta
nessa situação espacial com um espírito meditativo e terno,
cheio de um amor puro que se associa ao espaço aberto da
natureza. Porém, é em um espaço solitário e fechado que
ele desfruta de sua paixão e esse ambiente é oposto à idea-
lização do espaço relembrado – aberto –, sobressaindo-se
a contradição espacial:

– Que tanto você faz aí no banheiro, rapazinho?


– Nada não, mãe.
– Se você continuar aí vai aparecer uma cobra e vai
picar você.
– Está bem, mãe. (idem, p.35-6)

O isolamento do filho em um lugar associado à imundi-


ce e à curiosidade sexual do menino parte da percepção que
a mãe tem desse espaço e de suas concepções morais. O fato
de alertá-lo sobre a cobra explica a condenação que a mãe
faz em relação à presença do filho na latrina. No entanto, o
contraste se forma justamente pela desconfiança da mãe e
pelos pensamentos de Pedro. Os elementos espaciais nessa
sequência narrativa são reforçados pelo contraste entre
espaço aberto e fechado com seus respectivos valores de
liberdade e proibição, por parte da mãe. São, porém, anu-
lados e elevados pelas considerações do narrador, o Pedro
Páramo já adulto, que relembra esse momento da infância,
relatando à amada seu amor impregnado de um plano
geográfico vinculado ao alto, como vimos anteriormente.
72 GRACIELLE MARQUES

A chuva que introduz o tempo-espaço dos devaneios de


Pedro e sua paixão por Susana na infância também vem car-
regada da dor por pesadas lágrimas que trazem ao mundo
um sentimento de tristeza, no qual “as gotas deslizavam em
fios grossos como lágrimas” (idem, p.39). Essa paisagem
antecede as chuvas férteis da Comala que será dominada
por Pedro e ecoa novamente nas chuvas agonizantes de
Susana. A água é mais uma extensão do próprio ser que
mero jogo formal: ela vem simbolizar as forças humanas
profundas, além de fazer o leitor compreender que essa
água rege o destino dos homens. Um destino cíclico “es-
sencial que metamorfoseia incessantemente a substância do
ser”, (Bachelard, 1989, p.6), sendo que toda a infelicidade
é uma lágrima viva, um fio de vida que se une à água ou
ao fogo carregado simbolicamente pela melancolia e pelos
anúncios sinistros, como nos explica Gaston Bachelard.
Aproximando-se do momento da morte de Susana, a
chuva se faz constante na paisagem de Comala: “A chuva
amortece os ruídos. Continua-se ouvindo mesmo depois de
tudo, granizando suas gotas, fiando o fio da vida” (Rulfo,
2004, p.128). Transformada em dilúvio, sem a presença
juvenil do sol que pareceu traduzir a alegria das imagens da
Comala paradisíaca, agora altera a imagem da região jun-
tamente com as sombras, criando, enfim, uma atmosfera
de remorsos e aflições que lentamente ensurdece a vida e
mantém Susana sepultada em uma casa isolada pelas águas
da chuva.
O “fio da vida” também se metaforiza na chama, uma
luz intensificando o drama humano. Luz versus escuri-
dão e o lusco-fusco delimitam tempos diferentes e depois
os reúnem simultaneamente. Susana San Juan é um ser
diurno, ela é a luz que ilumina Pedro Páramo, sua última
consolação antes da morte, porque a noite que se apoderará
dele não tem essa luz: “Porque tinha medo das noites que
enchiam a escuridão de fantasmas. De encerrar-se com
GEOGRAFIAS DO DRAMA HUMANO 73

seus fantasmas. Disso tinha medo” (idem, p.173). O dia


aparece como elemento positivo em contraste com a noi-
te: “O dia clareava. O dia desbarata as sombras. Desfaz”
(idem, p.81). A noite, metáfora da privação do ser, do
encontro com o inconsciente, é o momento da debilitação
e do enfraquecimento.
Portanto, a mesma chama que justapõe vida e morte
desperta fantasias e vigia a noite das loucuras de Susana,
com uma languidez que produz movimentos claro-escuros
de sonhos que reanimam o passado, convertendo-se no
sonho do sonho que é o pesadelo. Como na passagem se-
guinte:

Uma rajada de ar apaga a lamparina. Vê a escuridão


e então para de pensar. Sente pequenos sussurros. Em
seguida ouve a percussão de seu coração em palpitações
desiguais. Através de suas pálpebras fechadas entrevê a
chama de luz. (idem, p.133)

A luz solitária introduzida pelo narrador em terceira


pessoa, dando-lhe a importância de uma personagem, pa-
rece não iluminar as trevas do quarto, pois sempre brilhava
com a mesma palidez. Essa luz que irradiava tênue não
representaria nenhum sofrimento se também não simbo-
lizasse a própria solidão perturbadora da alma de Susana:

Uma luz difusa; uma luz no lugar do coração, em forma


de coração pequeno que palpita como chama pestanejante.
“Seu coração está morrendo de dor” pensa. “Já sei que você
veio me contar que Florencio morreu; não se apresse por
mim. Eu tenho minha dor guardada em um lugar seguro.
Não deixe que seu coração se apague”. (idem, p.134)

A luz, a chama, instaura uma espacialização subjetiva,


uma vez que todo espaço está relacionado com a luz e com
74 GRACIELLE MARQUES

as cores e, neste caso, se subjetiviza apontando as profundi-


dades insondáveis dos sentimentos e da loucura de Susana,
deformando e sombreando suas lembranças. Nessa chama,
cruzam-se as dimensões espaciais e temporais, visto que o
tempo de duração da chama é a metáfora do drama natural
da vida e da morte. Da mesma maneira que parece iluminar
e escurecer o quarto, o tempo da duração da luz marca a
duração da vida da personagem. Associando o transitar de
almas sem destinos que habitam Comala ao sincretismo
religioso indígena/católico de acender velas para iluminar
o caminho dos mortos até sua chegada ao céu, percebemos
o diálogo e a contiguidade dos planos e dos tempos passado
e presente como um todo complementar. A sequência vida
depois morte se confunde neste quarto/tumba velado por
uma chama que se apaga e se acende criando um mundo
sem barreiras espaciais e temporais, pois Susana fala com
seu pai morto quando revive o tempo-espaço das vivências
com Florencio.
Pedro Páramo, no entanto, não percebe que sua amada
presa em uma “sepultura de lençóis” se encontra enterra-
da viva e que a fronteira que os separa é intransponível.
Mesmo depois de ter assassinado Bartolomé San Juan para
recuperar seu amor da infância e passados trinta anos, ele
não entende o porquê de ela não compartilhar os mesmos
sentimentos da infância, de amar um morto e escapar a
seus domínios:

Ele achava que a conhecia. E, mesmo se não fosse as-


sim, será que não bastava saber que ela era a criatura mais
amada por ele sobre a terra? E que além do mais, e isso era
o mais importante, serviria para que ela andasse pela vida
alumbrando-se com aquela imagem que apagaria todas as
outras recordações. Mas qual era o mundo de Susana San
Juan? Essa foi uma das coisas que Pedro Páramo jamais
chegou a saber. (idem, p.137)
GEOGRAFIAS DO DRAMA HUMANO 75

Se Susana é essa luz ativa que naturalmente foi pe-


netrando na imaginação e no coração de Pedro Páramo,
envolvendo-o de amor e carinho pela amada, tal aprofun-
damento íntimo também lhe provocará a ruptura anímica
e física. Essa mesma luz é desejada como apoio espiritual
no momento da morte como sendo capaz de converter em
simples recordações todos os seus crimes cometidos. Os
caminhos impenetráveis do mundo de Susana San Juan
contrastam com os anos de alegria e das brincadeiras que
os uniam sob uma Comala que ganha nas recordações das
personagens adultas ares paradisíacos. De maneira indireta,
Susana se relaciona com Pedro Páramo pelas recordações
do tempo-espaço dos “limões e pardais”, isto é, por meio de
um lugar comum no qual a felicidade se apresenta difundi-
da nesses elementos naturais. Destinada à loucura e ao seu
amor idílico por Florencio, Pedro Páramo acompanha seu
sofrimento dia após dia tentando encontrá-la fisicamente
nos braços de outras mulheres e amando-a obsessivamente.
A narrativa, assumindo um narrador em estilo indireto,
nos faz a seguinte pergunta: “O que aconteceria se ela
também se apagasse como se apagou a chama daquela luz
débil com a qual ele a via?” (idem, p.145). A resposta vem
na sequência narrativa e se resume ao destino imposto a
Comala por Pedro Páramo, isto é, o abandono ao cruzar
os braços na intenção de que o povoado morresse de fome.
E morre. Porque a amou, mas não pôde se comunicar com
seu mundo, se torna vulnerável e se une a Susana em um
mútuo ódio por Comala. Sem Pedro Páramo, o destino de
Comala é o fracasso, o silêncio total.
A viagem de Preciado, que revelaria o tempo-espaço das
memórias de sua mãe, Dolores, se transforma na viagem
sem volta, pois lá o primogênito de Pedro Páramo tem
o encontro com a morte das demais personagens e com
sua própria morte. Em Comala, Juan Preciado encontra
o tempo-espaço da simultaneidade, a planície deserta,
76 GRACIELLE MARQUES

marco simbólico do destino dos Páramos e das demais


personagens que se encontram sob seu domínio. É o lugar
por excelência onde se ambientam as sucessivas e contíguas
desgraças e frustrações humanas. É como herdeiro dos
crimes e culpas da família Páramo que Juan Preciado chega
ao anoitecer a Comala para encontrar-se com suas origens.
No caminho – “eu havia topado com ele em Los En-
cuentros, onde se cruzam vários caminhos” (idem, p.27) –
que o levará a Comala se encontra com Abundio, que o
guiará até lá. Esse encontro de Juan com seu irmão parri-
cida, que abre o relato, contém vários signos espaciais que
antecipam as ações narrativas. O lugar do encontro, uma
encruzilhada, é por excelência uma metáfora do entrelaçar
de diversos destinos. Mikhail Bakhtin (1988, p.350), ao
analisar os valores cronotópicos literários, afirma sobre o
cronotopo da estrada:

Parece que o tempo se derrama no espaço e flui por ele


(formando os caminhos); daí a tão rica metaforização do
caminho-estrada: ‘caminho da vida’, ‘ingressar numa nova
estrada’, ‘o caminho histórico’, etc.; a metaforização do
caminho é variada e muito planejada, mas o sustentáculo
principal é o transcurso do tempo.

A metáfora espacial do caminho como o transcurso do


tempo (andar a vida) se transforma em enigma para Pre-
ciado ao se recordar das palavras de sua mãe: “O caminho
subia e descia: ‘Sobe ou desce conforme se vai ou se vem.
Para quem vai sobe; para quem vem desce’” (Rulfo, 2004,
p.26). Ao longo do romance fica ressaltada a importância,
nas vivências das personagens, dos movimentos funda-
mentais de ascender e descender. Para chegar a Comala é
necessário descer e, à medida que Juan e Abundio vão des-
cendo ao povoado, o clima hostil é comparado ao inferno, e
nesse vale, onde se localiza Comala, as lágrimas, a solidão,
GEOGRAFIAS DO DRAMA HUMANO 77

o desamor são suas características marcantes. Também nos


sonhos de Pedro Páramo a plenitude da sensação vivida se
idealiza no modesto horizonte de Comala. Seu amor por
Susana está preso pelo “fio de cânhamo”, que poeticamente
metaforiza seu amor inocente. Situado em um espaço do
alto (“no alto da colina”), que assume conotações positi-
vas, ambos veem o povoado que se encontra em um plano
inferior – “lá embaixo” –, plano do baixo e, portanto, local
da desigualdade e degradação. Assim, o amor por Susana é
valorizado positivamente pela coordenada espacial do alto
em contraste com o plano do baixo.
Outro exemplo importante de verticalidade nos polos
direcionais alto/baixo pode ser constatado na sequência
narrativa na qual Susana desce a um poço, presa por uma
corda, na infância, na tentativa de encontrar alguma riqueza
para seu pai. Essa passagem não teria tanta importância na
narrativa se não fosse ali o lugar do encontro da menina com
sua mortalidade, a caveira sepultada, e o início da perda
de si mesma de maneira violenta, obrigada por seu pai a
enfrentar-se com o desconhecido. A corda que “era como
se fosse o único fio que a unia ao mundo lá fora” (idem,
p.131) é, como no exemplo de Pedro Páramo, o objeto que
a liga metaforicamente à lucidez, à realidade que está fora,
acima da profundidade do poço, estabelecendo o evidente
contraste. Podemos observar que o tema da loucura de
Susana encontra nas espacialidades alto/baixo e nos ob-
jetos que servem de motivos para a ambientação, isto é,
a chama da vela, a corda (“fios”), imagens que a mantêm
dramaticamente ligada à vida, à consciência e ao amor dos
quais se desprende para sempre.
Juan Preciado, para seguir seu caminho, tem que descer,
e Abundio tenta adverti-lo sobre o que o espera em Coma-
la: “Aquilo fica em cima das brasas da terra, bem na boca
do inferno” (idem, p.28). Indagado sobre Pedro Páramo,
Abundio é lacônico ao responder que aquele é “o rancor
78 GRACIELLE MARQUES

em pessoa” (ibidem). Porém, Juan vem a Comala depois de


formado “um mundo ao redor da esperança que era aquele
senhor chamado Pedro Páramo” (idem, p.25). Ou também,
como ele diz a Dorotea, “vim procurar Pedro Páramo, que
ao que parece foi meu pai. Vim trazido pela ilusão” (idem,
p.94). Neste momento da narrativa, Juan é posto em disjun-
ção com duas realidades contrastantes, isto é, a Comala
idílica e a Comala infernal, que o levará à morte. Portanto,
o caminho ambíguo contém o começo e o final que não
leva a nenhuma parte senão ao despertar da consciência da
dura travessia da ilusão inocente à descoberta de um mundo
de verdades e enganos que se confundem muitas vezes.
Outra imagem que compõe o ambiente fronteiriço, o
umbral cruzado por Juan, é o grito dos corvos, uma espécie
de avatar que o adverte sobre seu destino, já que se associa
à inospitalidade do lugar que, segundo Abundio, é pior
que o inferno, pois “muitos dos que morrem por lá, quan-
do chegam ao inferno, voltam para buscar um cobertor”
(idem, p.28).
À medida que vai avançando para o povoado de Coma-
la, o órfão Juan Preciado o descobre com olhos incrédulos,
já que pensava encontrar nesse povoado a visão de sua mãe,
Dolores, mas, quando começa a entrar em contato com o
local onde estaria localizado o povoado, se depara com a
dificuldade de encontrá-lo, pois este não condiz com as
lembranças dela. Logo nota que não se trata do jardim
edênico das recordações de Dolores: “Agora eu estava aqui,
neste povoado sem ruído. Ouvia meus passos caírem sobre
as pedras redondas que empedravam as ruas. Meus passos
ocos, repetindo seu som no eco das paredes tingidas pelo sol
do entardecer” (idem, p.30). Outro entardecer ou o mesmo
entardecer com que Pedro Páramo viu sua Susana partir e
que o despertou para os crimes e as desgraças.
Essa desconhecida realidade é constatada com decep-
ção: a primeira reação ante esse espaço insólito construído
GEOGRAFIAS DO DRAMA HUMANO 79

por ocos e ecos. Cria-se, assim, um foco conflitual, mar-


cando dois momentos importantes da existência de mãe e
filho: de um lado temos um ser chamado a conhecer um
novo lugar, Juan, no qual a largueza do mundo é convida-
tiva; e de outro, a divisão desse grande sonho, sonhado por
Dolores, com a certeza do inconciliável. Esse contraste é
problemático, uma vez que expõe o conflito da impossibi-
lidade de regressar ao paraíso.
O modo como Juan Preciado prossegue sua entrada
na cidade já nos revela a dimensão da sensibilidade em
relação à paisagem que começa a se esboçar em seu ser:
“Olhei as casas vazias; as portas cambaias, invadidas de
erva” (ibidem). Esse retrato é visto sob uma luz malévola,
um recorte metonímico que projeta uma realidade degra-
dada, enfocando, desse modo, a paisagem exterior que se
encontrará também interiorizada nas personagens, pois as
imagens idílicas que estas possuem de Comala não excluem
essa outra realidade desoladora.
Essa paisagem encontra uma explicação no tormento da
mente: “E embora não houvesse crianças brincando, nem
pombas, nem telhados azuis, senti que o povoado vivia. E
que se eu escutava somente o silêncio era porque ainda não
estava acostumado ao silêncio; talvez porque minha cabeça
viesse cheia de ruídos e de vozes” (idem, p.31). O povoado
surge então com a incompatibilidade da implantação de um
mundo sonhado, porém real, em um espaço impregnado
por uma atmosfera irreal, que é descrito pela negação de
elementos que lhe dariam vida, restando de vivacidade
apenas o silêncio, os murmúrios que guardam a história
de Comala. Essa oposição nos é apresentada pelos sentidos
da personagem, que ouve, sente, vê e toca o mundo que se
faz necessário ser ampliado para o seu conhecimento.
Se o mundo sonhado por sua mãe vai se desfazendo,
outro espaço vai sendo apresentado por Preciado. Este está
repleto de imagens que se opõem: um povoado vazio, toma-
80 GRACIELLE MARQUES

do pelos ecos, ocos, sussurros, personagens que se diluem,


calor. Ou seja, o mundo que já havia anunciado Abundio.
A próxima personagem com a qual Preciado se encontra
é Eduviges Dyada, que o introduz em um espaço fechado
que também atua como um importante antecipador da nar-
rativa. Juan Preciado é hospedado por Eduviges Dyada em
um espaço marcado pelo crime, pois é convidado a passar
a noite em um quarto onde Pedro Páramo, por intermédio
de Fulgor Sedano, assassina Toribio Aldrete. E aí que Juan
Preciado começa a morrer também. Para chegar ao quarto
reservado, ele passa por “uma longa série de quartos es-
curos, que parecia desolados”, e caminha “através de um
corredor estreito aberto entre vultos” (idem, p.33). Esse
ambiente ambíguo propicia o começo da desintegração
de Juan Preciado: “Eu me senti num mundo distante e
deixei-me arrastar. Meu corpo, que parecia afrouxar-se,
desdobrava-se diante de tudo, havia soltado suas amarras e
qualquer um podia brincar com ele como se fosse de trapo”
(idem, p.35). Hospedado no quarto do enforcado Toribio
Aldrete, ele ainda escuta seus gritos. Depois das sequências
narrativas que contam a infância de Pedro Páramo, seu
amor por Susana, seu casamento e separação com Dolores,
as mortes de Lucas Páramo e de Miguel Páramo, Damiana
Cisneros explicará esses gritos:

– Pode ser algum eco que ficou preso aqui. Neste quar-
to enforcaram Toribio Aldrete faz muito tempo. Depois
taparam a porta, até que ele secasse; para que seu corpo
não encontrasse repouso. Não sei como é que você con-
seguiu entrar, porque não havia chave para abrir a porta.
(idem, p.61)

Levado sem saber por Eduviges Dyada ao quarto que


marcaria o seu encontro com a verdadeira Comala, isto é,
um mundo condenado pela violência, por terríveis histó-
GEOGRAFIAS DO DRAMA HUMANO 81

rias e desgraças que não podem ser trancadas em quartos


escuros porque precisam cumprir sua função de castigo
e morte, este será fatalmente o destino de Juan Preciado.
Agora, acompanhado por Damiana, as descrições que
ela faz ao guiá-lo pelo povoado estão cheias de percepções
captadas por seus sentidos: “– Esta cidade está cheia de
ecos [...] Quando você caminha, sente que vão pisando
seus passos. Ouve rangidos. Risos. Umas risadas já muito
velhas, como cansadas de rir. E vozes já desgastadas pelo
uso. Você ouve tudo isso” (idem, p.71). A partir desses mar-
cos de referência, que se organizam por meio de elementos
que nos fazem depreender um mundo insólito, Preciado vai
sendo guiado por este mundo fantasmagórico, vazio, até
que se encontra sozinho com os seus sentidos e envolvido
por esses referentes espaciais fugidios.
Quando ele pensa em regressar, descobre que está preso
nesse universo, que não há caminhos que o possam levar de
volta. Então expressa essa impossibilidade com uma com-
paração que solidifica a união dos homens com a natureza:
“Senti lá no alto o caminho por onde tinha vindo, como uma
ferida aberta no negror das colinas” (idem, p.78). Seu ser se
encontra profundamente modificado, assim como também
está modificado o mundo a sua volta. Essa frase também
mostra que o homem é um indivíduo interiorizado e que,
por isso, passa a vivenciar o seu entorno intimamente, de
maneira que o espaço deixa de ser físico, isto é, visível e pas-
sa a ser sentido, deixando de se situar apenas em um plano
físico. Nesse momento ele se dá conta de que a caminhada
em direção ao baixo, ao povoado, o feriu, deixando suas
marcas simbolicamente na geografia, da mesma maneira
que a geografia agreste lhe provocará a morte.
O lugar onde estão possui uma “multidão de cami-
nhos”, mas nenhum permite conhecer “nem que seja só
um tantinho da vida”, pois se encontram em um espaço
com características infernais:
82 GRACIELLE MARQUES

Se o senhor visse a multidão de almas que andam soltas


pelas ruas... Assim que escurece, começam a sair. E nin-
guém gosta de vê-las.
[…]
E esta é a razão disto aqui estar cheio de almas; um
vagabundear de gente que morreu sem perdão e que não
conseguirá ser perdoada de jeito nenhum, e menos ainda
valendo-se de nós. (idem, p.84-5)

O mundo fantasmagórico de Pedro Páramo se converte


neste mundo sem saídas, que sobrevive na memória coletiva
como a história da violência, da dor, do medo, da miséria.
Esse espaço limita a possibilidade de mudança, porque en-
contra, nas ilusões frustradas das personagens, suas únicas
forças, imagens marcantes da imobilidade, da fatalidade
e do conformismo como visões da história e do destino
desse povoado. O caminho sonhado como possibilidade
de esperança e quebra desse destino trágico se localiza em
uma zona superior, divina e inalcançável. Por isso será “o
buraco no telhado” – “Esse que a gente vê daqui, que não
sei para onde irá – e me apontou com os dedos o buraco
do telhado, ali onde estava arrebentado” (idem, p.82) –,
um caminho tão desconhecido e inexistente quanto o que
poderia levá-lo à cidade vizinha de Contla.
Segundo o padre Rentería, o caminho que os livraria
de tantos sofrimentos “tem ar e sol, e tem nuvens. Lá em
cima um céu azul e talvez atrás dele existam canções; tal-
vez melhores vozes... Há esperança, enfim. Há esperança
para nós, contra o nosso penar ” (idem, p.51). Esse olhar
acompanha os movimentos do céu, espaço superior que
reitera a busca pelo paraíso perdido, como possibilidade de
ser em um espaço existencial que possibilita aos homens
viver com esperança e que também encontramos na visão
que nos mostra Juan quando olha para o céu antes de ver-
se morto, no encontro entre a estrela da tarde e a lua, ou
GEOGRAFIAS DO DRAMA HUMANO 83

seja, simbolizando um destino divino que, no entanto, se


desmancha com o retroceder do tempo que não consegue
contemplar essa probabilidade, como acontecerá com todas
as personagens. O peso da culpa e do pecado impede as
personagens de Comala de “erguer seus olhos ao céu sem
sentir-se sujas de vergonha. E a vergonha não tem cura”
(idem, p.84), como também as impede de salvarem-se pelos
caminhos terrestres. O caminho a Contla é simbolicamente
o caminho das disjunções espirituais e amorosas de padre
Rentería e Miguel Páramo. O primeiro vai a Contla que-
rendo conseguir comunhão religiosa com a igreja e volta
impedido de realizar os serviços do sacerdócio; o segundo
vai em busca de sua conjunção amorosa-carnal e se encontra
com a morte.
Os pares alto/baixo revestem as tensões céu/inferno
que se repartem em dois impulsos fundamentais: aceitar
os sofrimentos da vida existencial do homem, que não
se anulam com a sua morte, ligando-se à terra, ou apenas
desejar a vastidão do espaço celestial e onírico. Tal tensão
se evidencia ao longo da narrativa, em parágrafos e frases
descritivos compostos de predicativos que vão, passo a
passo, compondo as imagens dessa dicotomia.
Nesses parágrafos, a paisagem se constrói a partir de
trechos eminentemente descritivos ou sugeridos nas falas
das personagens, afirmando a força simbólica dos ele-
mentos que os compõem, sendo os elementos da natureza
muito significativos, pois expressam o universo degradado
e desolado que refletem as personagens. As casas que Juan
Preciado avista já anunciam, pela sua relação metonímico-
metafórica, os atributos das personagens e do espaço. Tam-
bém percebemos a questão da verticalidade: à medida que
descem, deixam o ar respirável para trás e entram em um
mundo passível de desalento e destruição.
Constatamos em um fragmento do diálogo de Eduviges,
“só eu entendo como o céu está longe de nós: mas sei como
84 GRACIELLE MARQUES

encurtar as veredas” (idem, p.34), a presença do firma-


mento, lugar que abarca tudo o que a vista humana não pode
alcançar e que seria acessível após a morte. A morte surge
como uma amarga convicção de que existir neste mundo é
uma questão de escolha e que nem mesmo ela pode aliviar
as penas e libertar os homens de suas dores, como desco-
brimos na narrativa. O espaço do “muito além”, expressão
recorrente na narrativa, define o mundo dos mortos ao
mesmo tempo que se confunde com a própria realidade,
em tese o mundo dos vivos, supostamente real. Fica claro
na narrativa que esses mundos se confundem tornando-se
insólitos e que, portanto, não é a intransponibilidade que
separa as personagens. É a densa interioridade dos espaços
subjetivos que delimita algumas fronteiras. Sabemos que,
embora Eduviges corte caminho, não encontrará sua amiga
Dolores nesse espaço em que imagina estar, pois volta a vi-
ver no universo humano situado abaixo do espaço desejado.
Além disso, Dolores não viu o paraíso em uma dimensão
metafísica, pois o situava em uma realidade física, ainda
que se encontrasse apenas em sua mente.
Desta maneira, o mundo sólido das personagens está
estabelecido de maneira refratária e ambígua, não podendo
ser captado por uma utópica visão de mundo linear, já que
os sentidos produzidos pela obra se lançam a perscrutar a
complexidade da alma humana.
Depois de descobrir que seu pai está morto, que Co-
mala é um povoado morto, Juan Preciado, não podendo
mais regressar, se dá conta de que na verdade também se
encontra morto e de que sua morte está fortemente marcada
pelo meio:

Saí à rua; mas o calor que me perseguia não desgrudava


de mim.
E é que não havia ar; só a noite entorpecida e quieta,
acalorada pela canícula de agosto.
GEOGRAFIAS DO DRAMA HUMANO 85

Não havia ar. Tive de sorver o mesmo ar que saía da


minha boca, parando-o com as mãos antes que ele fosse
embora. Sentia o ar indo e vindo, cada vez menos; até que
se fez tão fino que filtrou-se entre meus dedos para sempre.
Digo para sempre. (idem, p.91)

É assim que morre Juan, sufocado pelo ar e pelos mur-


múrios que brotam das paredes e o fazem morrer con-
torcido como se o tivesse enforcado a hostil paisagem de
Comala, impregnada de terror e de misérias humanas. Juan
morre simbolicamente ao anoitecer, no mesmo momento
de sua entrada na cidade e na hora do dia que coincide com
a morte de Susana, já que esta também morre ao anoitecer.
A chegada da escuridão representa, pelo que inferimos no
relato, esse momento do encontro com a morte, com o lado
obscuro do inconsciente.
A luz que prendia Susana San Juan à vida, metáfora da
própria vida e funcionando como um elemento que exorciza
o medo da ausência, se apaga trazendo sérias consequên-
cias a Comala. Na escuridão da noite o quarto de Susana
se destaca e é visto ao longe pela luz que o ilumina, que o
vigia e que o torna humano:

Faz mais de três anos que aquela janela está alumbrada,


noite a noite. Dizem, quem esteve lá, que é o quarto onde
habita a mulher de Pedro Páramo, uma coitadinha louca
que tem medo do escuro. E olha só: agora mesmo, a luz se
apagou. Não será um acontecimento ruim? (idem, p.157)

A vida que se apaga na chama da vela é a metáfora da


duração de Susana e marca sua existência, já que vai se apa-
gando à medida que ela vai deixando de viver, no momento
em que perde o uso da razão, ou seja, adoece mentalmente.
Ao fim de seu caminho, Pedro Páramo teme encontrar-
se consigo mesmo, com a noite, ou com o outro eu que foi
86 GRACIELLE MARQUES

durante sua vida. Teme ver o outro lado de sua consciência,


seu eu íntimo, a parte que escondemos de nós mesmos pelo
medo de nos reconhecermos, fantasmas que nos confun-
dem em relação ao nosso eu real:

Havia uma lua grande no meio do mundo. Eu perdia


meus olhos olhando você. Os raios da lua filtrando-se
sobre a sua cara. Não me cansava de ver essa aparição
que era você. Suave, esfregada de lua; sua boca incha-
da e suave, umedecida, colorida de estrelas; seu corpo
transparentando-se na água da noite. Susana, Susana San
Juan. (idem, p.172)

Diante do nada, “a terra em ruínas estava na frente


dele, vazia” (idem, p.173), anuncia sua morte, temendo
que esta seja como foi sua vida uma noite. Então ele cai
“desmoronando como se fosse um montão de pedras”
(ibidem). Pode-se ler nesta última imagem de Pedro Pára-
mo a própria significação de seu nome, que é o mesmo da
obra, ele termina como pedra, em um páramo, isto é, em
uma planície deserta. Essa desintegração é provocada por
seu filho Abundio, um dos tantos órfãos que, em busca de
uma ajuda para sua extrema dor, a morte de sua mulher
em um estado de grande miséria, sai sem rumo com os
sentidos perturbados. Ele perde a percepção da terra à sua
frente, a vê como uma esfera inalcançável, abstrata, que
lhe escapa como em um pesadelo, “sentia que a terra se
retorcia, dava voltas em volta dele, e depois se soltava; ele
corria para agarrá-la, e, quando já tinha a terra nas mãos,
ela tornava a ir embora” (idem, p.169). Esse encontro com
o pai, desejado por Juan, se faz ao final da narrativa pela
personagem Abundio, que está no começo da caminhada de
Juan e lhe mostra o caminho. O desmoronamento, como o
fim de Pedro Páramo, surge espiritualmente com as fissuras
do amor impossível e pelo peso de tantas culpas. A muralha
GEOGRAFIAS DO DRAMA HUMANO 87

que volta a ser apenas pedras em um, agora, mundo vazio


nos apresenta a complexidade da personagem que antes se
havia mostrado em uma faceta mais poderosa e que agora
se desfaz como um boneco.
Essa imagem, como outras que veremos, mostra a forte
relação do homem com a terra, ou do homem com o seu
destino. Essa ligação pode ser notada em outras passagens
e personagens. Para isso, alguns recursos são utilizados,
como, por exemplo, a metáfora e as comparações, que
qualificam e simbolizam a relação telúrica das personagens.
Esse exemplo, além de mostrar a questão da identifica-
ção do indivíduo com o espaço, assinala para uma repre-
sentação mais profunda que a simples caracterização das
personagens. Com efeito, ele reforça a percepção aprofun-
dada do ser humano, evidenciando seus conflitos e agonias.
Então, é pela expansão dos novos sentidos do espaço físico
que o romance constrói uma relação entre ir e vir, vertica-
lidade e horizontalidade, que condicionam não somente as
relações das personagens com o espaço, mas também com
as lutas sociais.
A percepção socioespacial nos leva para uma visão críti-
ca da geografia onde se desenvolve a ação. O uso do espaço
marca as desigualdades sociais e as relações de poder do ter-
ratenente Pedro Páramo. De acordo com Mario Benedetti:

Quando nas novas letras latino-americanas o perso-


nagem expulsa a natureza do seu lugar privilegiado na
evolução da narrativa, talvez isso signifique, entre outras
coisas, uma forma sem precedentes de postular que esse
homem da parte latino-americana do terceiro-mundo se
rebela contra uma paisagem que, de alguma forma, é um
inocente sustentáculo do poder arbitrário, da injustiça,
do tratamento desumano, do despojo. (Benedetti, 2000,
p.362, tradução nossa)
88 GRACIELLE MARQUES

Desta maneira, o espaço deixa de ser neutro, já que se


constrói em uma rede de relações socioculturais que repre-
sentam a sociedade que o formou. Essa relação existente
entre espaço geográfico e espaço social é consciente para
as personagens que aprenderam, com os seus contrastes e
injustiças, o valor que lhes é dado pelo seu entorno. O texto
aponta para uma geografia crítica, na qual a existência e as
lutas sociais têm relação com a posse da terra.
Juan Preciado volta à terra que havia pertencido à sua
mãe e que agora, no presente da narrativa, se encontra
em ruínas tanto pelo desmoronamento do poder feudal
de Pedro Páramo, quanto pelo seu arruinamento físico e
psíquico. Porém a terra continua infértil e sem esperanças
mesmo após o fim das guerras cristeras, conflito de caráter
religioso e político que antecedeu à última etapa da Revo-
lução Mexicana, da qual surgiria um México centralizado,
ou seja, comandado por um partido político único que ins-
truiria leis e encaminharia o país pelo modelo de produção
capitalista e não mais pelas ações arbitrárias de caciques e
latifundiários como Pedro Páramo.
Pedro Páramo se faz na vida a partir dos desejos de pos-
suir uma mulher e dominar as terras de Enmedio. Susana
representaria, como vimos anteriormente, a comunhão com
um passado, da adolescência, impossível de ser revivido;
no entanto, seu amor idealizado não impede que ele cometa
injustiças. Ao contrário, do amor desabrocha a maldade,
o desejo de apropriação e dominação. A confusão que o
povoado faz com a morte de sua amada confundindo-a com
uma festa desperta a ira de Pedro Páramo:

Começou a chegar gente de outras paragens, atraída


pelo repicar constante […] E assim, pouco a pouco, a coisa
se transformou em festa.
[…] A Media Luna estava solitária, em silêncio. […]
Enterraram Susana San Juan e pouca gente em Comala
GEOGRAFIAS DO DRAMA HUMANO 89

percebeu. Lá havia festa. Apostava-se nos galos, ouvia-


se música; os gritos dos bêbados e das tômbolas. Até lá
chegava a luz do povoado, que parecia uma auréola sobre
o céu cor de cinza. Porque foram dias cor de cinza, tristes
para Media Luna. Dom Pedro não falava. Não saía do seu
quarto. Jurou vingar-se de Comala:
– Vou cruzar os braços e Comala vai morrer de fome.
E foi o que ele fez. (Rulfo, 2004, p.163-4)

As badaladas que soaram para avisar a morte de Susa-


na tocaram durante três dias sem parar, ensurdecendo as
pessoas que festejavam e não se entendiam pelo barulho.
Esse sinal sonoro mal foi interpretado por pessoas que se
reuniram em Comala, vindas de várias partes, que, ao invés
de se condoerem de Pedro Páramo, aproveitam o recolhi-
mento de seu luto para fazer uma festa. Uma festa que alivia
ironicamente o povoado dos insistentes dias de chuvas.
O contraste que se cria entre o povoado em festa e a casa
em luto contribui para o estabelecimento de ambiente de
sofrimento e um vazio, uma imensa solidão que configura
uma marginalização, imobilização da personagem que fará
brotar sua ira e fará com que sacrifique Comala sentencian-
do sua morte por omissão. A morte de Susana, portanto,
provoca tanto a morte espiritual de Pedro Páramo como
a morte de Comala. Mas o povoado expira com a ilusão
de “que Pedro Páramo morresse, pois pelo que diziam ele
tinha lhes prometido herdar seus bens, e com essa esperança
alguns ainda viveram” (idem, p.119). As personagens, que
passam então a viver em um mundo de extrema solidão,
esperando ironicamente a ajuda de quem os havia abando-
nado, considerando este homem como provedor de todas as
necessidades do povoado, ainda sobrevivem, agarradas à
sombra de dom Pedro.
Esperando a morte de Pedro Páramo para que Comala
pudesse reviver, esse espaço ainda presencia as guerras
90 GRACIELLE MARQUES

civis que terminam de desfigurar a paisagem; “e quando já


faltava pouco para ele morrer aconteceram as tais guerras
dos ‘cristeiros’ e a tropa fez fieira arrebanhando os pou-
cos homens que sobravam. Foi quando comecei a morrer
de fome, e desde então nunca mais tornei a me acasalar”
(idem, p.120). O tempo e o espaço mítico se refugiam no
tempo e no espaço histórico, em um movimento circular
que permeia a construção de um espaço arruinado, que
interfere, como na sequência transcrita, no mundo interior
das personagens.
Em sua caminhada rumo à tomada de poder de Comala,
o reconhecimento de um de seus muitos filhos marca a
ascensão de Pedro. Miguel Páramo atua como seu alter ego
já que apresenta as mesmas disposições para os crimes e as
violências cometidas pelo pai. Esse vínculo entre ambos já
se estabelece no momento em que ele é apresentado a Pedro
Páramo como sendo seu filho: “o menininho se retorcia,
pequeno como era, feito uma víbora – Damiana! Tome
conta dessa coisa. É meu filho” (idem, p.106).
Miguel é mais um dos personagens que se encontram
intimamente ligados à terra, ao meio onde vivem. A com-
paração com o réptil signo da maldade é evidentemente
uma das heranças paternas, o que condiciona seu destino.
Na sequência narrativa das maldades cometidas por ambos,
o padre Rentería, responsável por levar Miguel ao pai, se
sente atrelado a um mau destino por esse mesmo fato:

“O assunto começou” [referindo-se à atitude violenta


de Miguel], pensou “quando Pedro Páramo, de coisa baixa
que era, alçou-se a maior. Foi crescendo feito praga. O ruim
disso é que obteve tudo de mim [...] E depois estendeu os
braços de sua maldade com esse filho que teve. O filho que
ele reconheceu, sabe Deus por quê. O que sei é que pus em
suas mãos esse instrumento. (idem, p.105, grifos nossos)
GEOGRAFIAS DO DRAMA HUMANO 91

A relação que identifica Miguel Páramo a elementos


naturais representantes de aspectos negativos mostra a ri-
gorosa imposição das forças telúricas que regem e decidem
seu destino e de outras personagens. Essa lógica é ilustrativa
de um determinismo geográfico que influencia de maneira
preponderante a vida das personagens e suas relações com
as demais. O fortalecimento da identificação com o natu-
ral e o instintivo chega ao ponto de tornar ambíguas suas
motivações pessoais, ou seja, de distinguir entre o que seria
racional e instintivo em suas condutas. Isso as dissolve em
um mundo de conformismo, de subentendidos, de silêncio
e incomunicação e consequentemente de perda dos sonhos
e esperanças.
Práticas coercivas e enganos dão a Pedro Páramo o domí-
nio total do território de Comala, sua dominação-apropria-
ção das terras lhe permite que todas as demais personagens
estejam submetidas a ele, coisificadas e desvalorizadas por
suas qualidades humanas. A manutenção do poder imposto
é reveladora da degradação humana: “– Este mundo, que
nos aperta por todos os lados, que vai esvaziando punha-
dos de nosso pó aqui e acolá, desfazendo-nos em pedaços
como se regasse a terra com nosso sangue” (idem, p.124).
Essa constatação é de Bartolomé San Juan, que tem sua
vida condicionada por um ir e vir devido à falta de um lugar
próprio e que, igual às outras personagens que dependem
da bondade de Pedro Páramo para sobreviver, sofre suas
espoliações. Nesta passagem, uma vez mais, o espaço ganha
vida metaforicamente e com brutalidade reduz os homens
desorientando-os, desenraizando sua identificação social e
individual, além de assinalar um confronto entre a subor-
dinação à terra alheia e a superioridade econômica e social
que possui o senhor Pedro Páramo.
Consciente do poder que adquiriu, Pedro Páramo sub-
juga os moradores de Comala e os faz perder o pouco que
possuem, obrigando homens tão ligados à terra a abandoná-
92 GRACIELLE MARQUES

la. Em sua total desconsideração pela gente do povoado, ele


é auxiliado por seu filho Miguel e seus crimes, contando
também com a ajuda de Fulgor Sedano, seu capataz, que
o mantém informado sobre o que se passa na fazenda,
seguindo sempre suas instruções. É ele quem lhe conta
de uma mulher que teve seu marido assassinado por seu
filho Miguel: “Eu sei medir o desconsolo dom Pedro. E
essa mulher carregava quilos dele. Ofereci a ela cinquenta
hectolitros de milho para que esquecesse o assunto; mas ela
não quis. Então prometi que arranjaria um jeito de corrigir
o dano. Mas ela não se conformou (idem, p.100).
O outro perde ironicamente seu valor quando o do-
mínio de um território corresponde apenas a satisfazer as
necessidades de dominação e acúmulo de riqueza, pura e
simplesmente. Desta maneira, os contatos com os demais
vão sendo impregnados rapidamente por esta relação de
apropriação e violência. Mesmo após anos de dedicação, a
vida de Fulgor Sedano, que o ajudou a roubar e a enganar
para possuir suas terras, não tem importância alguma: “Não
se preocupava com Fulgor, que afinal de contas já estava
‘mais pra lá do que pra cá’. Havia dado de si tudo que tinha
para dar; embora tenha sido muito serviçal, cada qual era
cada um” (idem, p.136). Fulgor Sedano é morto pelas costas
pelos revolucionários cristeiros; porém, logo será substi-
tuído por Sucuri, que ajuda Pedro Páramo a despistá-los.
O próprio padre Rentería tem seu sacerdócio arrui-
nado por servir aos interesses de Pedro Páramo. O bispo
da cidade vizinha de Contla critica a intervenção do dono
das terras de Comala nas questões religiosas: “Sei como é
difícil essa nossa tarefa nesses pobres povoados onde nos
abandonaram [...] não se deve entregar nossos serviços
a uns poucos, que nos darão um pouco a troco da nossa
alma” (idem, p.108). Essa situação encontra explicação
na localização geográfica do povoado e principalmente no
fato de ser Pedro Páramo o único dono das terras: “Pedro
GEOGRAFIAS DO DRAMA HUMANO 93

Páramo ainda é o dono, não é? – Esta é a vontade de Deus. –


Não acho que a vontade de Deus intervenha nesse caso”
(idem, p.109). O poder consentido por Deus é a resposta
lacônica carregada de mutismo resignado que aponta para
um profundo sentimento de agonia e que vai formando
coerentemente as imagens de um mundo desolador.
A relação entre o padre e Pedro Páramo é desfeita quan-
do aquele decide juntar-se ao movimento armado de caráter
religioso, os revolucionários cristeiros, em uma sublevação
contra o governo mexicano, na tentativa de evitar os rigores
dos artigos constitucionais que iam contra os interesses da
Igreja, o que atrasou a reconstituição econômica do país. O
desvio da fé encontra correlato na concentração de poder
por Pedro Páramo. Essas condutas, como não permitem a
construção de conceitos e valores em comum, acabam por
representar a inaptidão de organizar-se em sociedade, de se
estabelecer uma continuidade política e econômica. Enfim,
o abandono de Deus, na figura da Igreja, e o abandono da
presença do Estado, já que ainda persistem poderes locais,
como o de Pedro Páramo, que não se relacionam com o resto
do país, produzem essa condição de terras desamparadas,
que aniquila as personagens.
A transferência de atributos da terra às personagens
também é vista implicitamente neste exemplo: “Saiu a
caminho, e quando entardecia entrou direto na igreja, tal
como estava, coberto de poeira e de miséria” (idem, p.110).
Diante desse elemento negativo do espaço “pó” que quali-
fica o padre Rentería, percebemos suas angústias e aflições
e a revelação da funcionalidade do meio físico na relação
que estabelece entre personagem e espaço.
A poderosa influência de Pedro Páramo conta com a
aridez do povoado cujos referentes espaciais carregam
a condição de esterilidade: “Eu trouxe para cá algumas
sementes. Poucas; só um saquinho… depois pensei que
talvez tivesse sido melhor deixá-las por lá, onde amadure-
94 GRACIELLE MARQUES

ceriam, pois trouxe para cá só para que morressem” (idem,


p.109). Esse quadro natural adverso se configura enquanto
elemento que estruturará o destino das “mães” que condu-
zem Preciado ao realçar a identificação entre a infertilidade
do povoado e a infertilidade dessas mães, mas também se
identifica com as demais personagens, que apresentam
uma vida interior marcada pelo vazio, semelhante à terra
que apenas dá frutos ácidos.
Esse espaço desolado, invadido pelo silêncio, condi-
cionará a vida e os destinos das personagens que serão
obrigadas a partir ou a viver na condição de vivas-mortas
em um espaço que se converte em inferno: “Desde então a
terra ficou baldia e feito uma ruína. Dava pena ver a terra
enchendo-se de achaques de tanta praga que a invadiu
quando a deixaram abandonada. De lá para cá, as pessoas
se consumiram; os homens debandaram à procura de outros
‘bebedouros’” (idem, p.119).
O deslocamento dos seres no espaço funciona como
um instrumento textual que revela o nível de degradação
e injustiça humana, postos em um plano de inferioridade
e desfavorecimento econômico que lhes impõe o abandono
de seus lugares de existência. É esse mundo que desco-
bre Juan Preciado por meio de sua viagem. Uma viagem
em que procura encontrar-se a si próprio, suas origens na
identidade do pai, que é por sua vez a própria história de
todo um povoado a ele submetido, seres que se encontram
inexoravelmente ligados ao mesmo destino. Assim, a via-
gem desencadeia muitos interlocutores, seres que drama-
ticamente entretecem suas vozes para compor de maneira
inquietante um destino fatal.

Você também pode gostar