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Ilusão - Emiliano Perneta

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EMILIANO PERNETTA

__________________

Illusão ILLUSÃO
Plumas
Poesias diversas
Solidão
Re-Edição Virtual Comemorativa do Centenário da Satyros e dryades
Primeira Edição. Um violão que chora...
Poemas
Revista e preparada por Ivan Justen Santana,
similarmente à edição original, lançada em
Curitiba, em 20 de agosto de 1911.

_______________
Curitiba, 20 de agosto de 2011.
Typ. da Livraria Economica
Coritiba − Paraná − Brasil

― 1911 ―
Aos meus irmãos.
[ 03 ]

Prólogo

Estrellas que luzis na abóboda infinita,


Inquietamente, assim, como um olhar que fascina,
Vendo-vos palpitar, meu coração palpita,
Mordido de paixão por essa luz divina...

Largos céos ideaes, região díamantina,


Mirifico esplendor, ó perola exquisita,
Quanta cubiça vã, que nunca se imagina,
Quanto furor emfim o animo me excita !

É o impossível, pois, que eu amo unicamente,


A nevoa que fugiu, a fórma evanescente,
A sombra que se foi tal qual uma visão...

E por isso tambem, por isso é que eu supponho


Que a vida, em summa, é um grande e extravagante Sonho,
E a Belleza não é mais do que uma Illusão !
Plumas
[ 05 ]

Delirio ! assim no ar este signal eu traço...


Escarótico pois ? É bem! Vibrião do Ganges ?
Combaterei, si fôr mistér, num circo d’aço...

Dama Combaterei, embora eu saiba que me perdes,


Com versos d’oiro, que reluzam como alfanges,
Dama ! com teu orgulho ! ó dama de olhos verdes !

A noite em claro, o mundo inhospito, e dessa arte


Urdem contra a Belleza as coisas mais abjectas...
Reina o Pesar, mas como um Rei, por toda parte ;
E ordena Herodes que degolem os poetas...

Cavalleiros por terra e plumas inquiétas ;


Esqueletos, que importa ? a rir... Hei de vibrar-te
Aos quatro ventos, e com fórmas obsoletas,
Ó gladio nu ! meu esotérico estandarte !
[ 06 ]

A Gloria me sorriu como uma primavéra :


“Este diadema é teu, e este ramo d’héra
É para te cingir a fronte. Tu has de ver ! ”

O meu orgulho levantou-me... E eu cri nesse milagre de apothêoses,


E nunca poderei deixar de crer, ó deoses !
Porquanto si eu deixar, então antes morrer !

O meu orgulho levantou-me pelo braço :


“Olha, como esse abysmo é infinito ! Através
Do universo tu és grão de areia no espaço ;
Mas tudo ha de ficar um dia sob teus pés ! ”

A Vaidade me olhou : “Eu sou o antigo leito,


A purpura ideal com que te cobrirei ;
Trabalha que serás o Artista perfeito,
O Domínio, a Grandeza, o Poder e o Rei ! ” Março de 905
[ 07 ]

Vozes lindas assim como um efébo louro,


Vozes, filhas, não sei, das entranhas do Ar,
Vozes d’Apollo e de marfim e prata e ouro...

Vozes
Ó vozes de embriaguez, ardentissimas vozes,
Vozes, bem como si quebrasse, ao longe, o mar
... bercé par ce continuel bourdonnement
qu’entendent ceux qui n’entendent d’autre voix. Sob penhascos nús e rochedos atrozes !...
Francis Jammes.

Ó rumor ideal! Ó illusão secreta !


Vozes tristes, vozes doces que me chamais,
Com a saudade cruel e a lembrança completa
De um outro mundo, que eu perdi, não acho mais...

Vozes antigas como as barbas d’um proféta,


Ó vozes de paixão, ó vozes de metaes,
Ó vozes que feris a minha alma inquieta,
Vozes de multidão ruidosa sobre o cáes...
[ 08 ]

Menino, homem depois, de um assalto elle ganha


Os ermos, que transpõe, os vallos e os barrancos,
Tendo sempre a sorrir nos olhos a Chiméra...

Quando um poeta nasceu... Chegam os annos e vêm os cabellos brancos...


Todavia, elle só, em pé sobre a montanha,
Inda sonha, inda crê, inda deseja e espera !...

Quando um poeta nasceu, como o sol que desponte,


Logo por sobre o mar longas e brancas vélas
Desfraldam-se ; e por fim, tudo palpita, o monte,
O céo, a flôr, a luz ;—ó roseas bambinélas !

É um barulho de rio, um murmurio de fonte,


Uma palpitação universal de estrellas ;
Um sussuro, um fragor de beijos quentes pelas
Ondulações sem fim e rubras do horizonte !
[ 09 ]

Sorrindo pelo ar, miraculosa e a esmo,


Tudo pôde abrandar, os ventos, e a mim mesmo,
Por um prodigio emfim que eu não explico, atheos !

A Mão...
...Donde veiu essa mão nervosa, que me arranca
Dos abysmos do mal, a Mão ideal e branca,
Ao Dr. Claudino dos Santos.
A mim, que nem siquer mais acredito em Deos ?...

Tantas vezes, bem sei, e eu ouço, quando scismo,


Meu coração bater de pressa, não o nego,
Mão invisivel tem-me salvo, a mim, um cego,
Rolando como si rolasse num abysmo...

Babylonias de horror, e montanhas de lodo,


E torres de Babel, sangrentas como lava,
Eu mais afoito do que um joven deos, mais doudo,
Eu passei sem saber por onde é que passava...
[ 10 ]

Quando o encanto, porém, sorri, quando me vejo,


Ora num coração, ora noutro, que esteve
A palpitar por mim de orgulho e de desejo ;

Embarque para Cythéra Ah quando vibro assim ! É melhor, na verdade,


Que si andasse no mar, numa trirreme leve,
De prazer em prazer, de cidade em cidade...

De resto, quanto a mim, a mais doce chiméra


É sempre essa illusão de uma nova paizagem,
E por isso tambem, por isso quem me déra
Que a minha vida fosse uma grande viagem .

Quem me déra poder, à tarde, quando a aragem


Sópra rispida, entrar na primeira galéra,
E errando sobre o mar, ó rude marinhagem,
No outono, estar aqui, e ali, na primavéra!
1907
[ 11 ]

Antes morda-me o Odio assim do que a Piedade ;


Antes quero rugir, do que chorar de dôr ;
E prefiro ao pesar, que o coração me invade,

Orgulho
E abate-me a tremer, tal qual uma criança,
O furor de brandir nas mãos, como uma lança,
Ao João Itiberê.
Este Orgulho, que emfim é uma giesta em flôr !

Nasci para viver no meio do que é bello.


A miseria me causa um horror sem igual.
Eu não posso tocar de leve com o escalpello
Numa ferida, sem que isso me faça mal.

Nasci para viver no meio d’um castello,


Onde eu domine, mas com um gesto senhorial.
Não quero conhecer o mal, não quero vel-o ;
O mando d’um artista é um manto imperial.

23–12–1902
[ 12 ]

Todavia, elle é um deos. Mas, inquieto de tudo,


Que é seu, que elle inventou, do seu esforço mudo,
E da sua altivez estoica de leão,

O Enigma
Anceia para ver no meio da peleja,
Dessa reféga, desse ardor que relampeja,
Ao Dr. Clovis Bevilaqua.
Si ainda póde illudir a cruel Decepção !...

Cançado de querer decifrar o Mysterio,


Cujo limiar tocou, mas sem poder entrar,
Como os sons, como os sons longinquos d’um psalterio,
Que se fanassem com a Luz crepuscular...

Eil-o de volta emfim ao seu eremiterio,


—Batel que se perdeu um dia pelo mar—
Eil-o sem o fulgor daquelle sonho ethereo,
Que já teve na voz, que já teve no olhar...

Dezembro―903
[ 13 ]

Quando soará, porém, a hora maravilhosa,


Em que do alto de uma torre côr de rosa,
Novo rei Salomão, elle, um dia, verá,

Salomão
Entre poeira e sol, ao longe, a caravana,
Onde em meio d’um régio esplendor, que se ufana,
Ao Adolpho Werneck
Fulge o diadema da rainha de Sabá ?

Tudo o meu coração tem do rei Salomão,


A gloria, e o furor, o orgulho, e a crueldade ;
Não ambiciona dez, nem cem, nem um milhão,
Mas a terra, e o mar, o céo, e a infinidade...

Em tudo se parece, em tudo é seu irmão,


O mesmo luxo até, a mesma vaidade,
O mesmo fausto ideal, como azas de pavão,
E esse requinte, emfim, essa ferocidade...

Fev. 906
[ 14 ]

Hoje, anda em guerra o sol como um deos Marte,


É que eu me vou, é que eu me vou embora...
E que fél tão amargo de deixar-te,

No tronco d’uma arvore


Ó Natureza, ó rustica sonóra,
Virgem de pés descalços e sem arte,
Ao Mario de Barros
Que eu como um fauno desflorei agora!

Foi num começo esplendido d’outono,


Quando cheguei. A mata era um gorgeio,
Era um sussurro, languidez e somno,
E um corpo nú, e um perfumado seio.

E que gesto mais lindo de abandono,


Que abraços loucos, e que doido anceio,
Quando me vi perdido aqui no meio
Desta folhagem alta como um throno !
11―dez.―909
Sitio dos Pinhaes
[ 15 ]

Seja. Os grandes um dia hão de caír de bruço...


Hão de os grandes rolar dos palacios, infectos !
E gloria à fome dos vermes concupiscentes !

Vencidos
Embora, nós tambem, nós ! num rouco soluço,
Corda a corda, o violão dos nervos inquietos
Partamos ! inquietando as estrellas dormentes !

Nós ficaremos, como os menestréis da rua,


Uns infames reaes, mendigos por incuria,
Agoureiros da Tréva, adivinhos da Lua,
Desferindo ao luar cantigas de penuria ?

Nossa cantiga irá conduzir-nos à tua


Maldição, ó Roland ?… E, mortos pela injuria,
Mortos, bem mortos, e, mudos, a fronte núa,
Dormiremos ouvindo uma estranha lamuria ?
[ 16 ]

Mas, que importa afinal ! A mocidade toda,


Quando entravas no Circo, ó Mestre, quasi douda,
Recitava de cór a tua arte de amôr...

Ovidio
E o orgulho de beijar, que nem o exilio doma,
O corpo mais gentil do lupanar de Roma,
Julia, e basta, Nazão, filha do Imperador !...

O exilio foi cruel e asperrimo, de fome.


Foi o tédio brutal, a miseria. Curtiste
Toda especie de fél, o horror que não tem nome,
E ninguem acabou mais feio nem mais triste.

Homem algum jamais sentiu, como sentiste,


Ovidio, ó coração que a colera consome,
Quão perigoso emfim é ter esse renome,
A gloria, que é a illusão mais louca que inda existe.

1905
[ 17 ]

Fosse vaidade ou amôr, desespero ou ciume,


Que a trouxessem aqui, como um leve perfume,
Ou fossem, ai de mim ! raivas e temporaes,

Veiu
Veiu, mas com a graça e a propria luz do dia...
Ó prazer que me faz soluçar de alegria,
E respirar, e crêr nos deoses immortaes !

Dil-o tanto fulgor maravilhoso, dil-o


Este clarim de sol rubro do meu anceio,
Este verde de mar, como um somno tranquillo,
Este limpido céo azul, como um gorgeio,

Alto, bem alto, assim, para que eu possa ouvil-o,


Que ella, vencendo o mar, transpondo o serro, veiu,
Todo cheirando, em flôr, o perfumado seio,
Bella, sonóra, ideal, como a Venus de Milo...
[ 18 ]

Mas que esperar emfim ? Mais lindo do que um sonho


Tudo que é teu reluz, magnifico, risonho,
Com palmas, com florões, com Torres de Marfim...

Desde que comecei...


És um manto real, o fausto d’um Castello,
A Illusão, o Fulgor mysterioso e bello...
És tudo, meu amôr ! E has de olhar para mim ?...

Desde que comecei a te olhar, de tal modo,


Com tal encanto, com tal extase sorri,
Que tudo que eu amei, mas doudo, como um doudo,
Este Symbolo até por quem me debati,

Versos, orgulhos vãos, lá no alto, com denodo,


Pompas imperiaes, (mal os teus olhos vi,)
Como flôres, assim, das minhas mãos, eu todo
Enlevado, deixei caír ao pé de Ti !

1904
[ 19 ]

Gestos lindos e vãos do que já foi, querida,


Graça do que findou, essencia e flôr da vida,
Origens afinal secretas do teu eu...

Não é só te querer...
Quem me déra beijar tudo isso que me alegra,
No meio da nudez desse infinito Céo,
Desse Rhodano Azul, dessa Floresta Negra !

Não é só, não é só te querer, porém tudo


Que é teu, ó girasól girando sobre mim,
Com sorrisos onde ha seducções de velludo,
Attracções de luar e vozes d’um Jardim...

Sonho que me faz mal, tortura onde me illudo.


Cruel inquietação, ancia que não tem fim,
Ó delirio de ver palacios com escudo,
Reinos antigos com torreões de marfim !

Nov. de 903
[ 20 ]

Nada perdeste, a palidez que tinhas,


Esse aspecto, e essa graça quasi fatua,
E aquelle gesto teu que é o de rainhas...

Posto que Já...


Bella do mesmo modo ainda tu és,
Ó estatua de Milo, antiga estatua,
Que tanto orgulho tens calcado aos pés !

Posto que já esse frescor, e esse


Brilho com que uma vez me seduziste,
Não fuljam tanto, a primavéra existe,
E inda canta, e inda sonha, e inda floresce...

Tua belleza é um marmor que resiste


À dureza dos annos, e parece
Até que quanto mais ella envelhece,
Mais se ennobrece, embora um pouco triste...

Junho de 904
[ 21 ]

Lirios do campo com figura de mulher,


A minha decadencia é um fruto caprichoso
Desta época sem luz que não sabe o que quer,

Donzellas
Não sabe nada ; mas, ó candidez ideal,
Eu não posso querer sinão o Monstruoso,
E o bem Maravilhoso, e o bem Fenomenal !

Donzellas que passais com esse gesto ameno,


E a doce palidez emfim d’uma cecém,
Em vão esse ar é grave, e esse aspecto é sereno,
Não me olheis, não me olheis, que não vos quero bem.

Sulamitas gracis e de rosto moreno,


E claras como a luz, e cheias de desdém,
Tendes perfume, sei, mas não tendes veneno,
Sois muito lindas, sois, não vos quero porém...

Janeiro de 904
[ 22 ]

Ó furor de arrancar tremulo a minha espada,


De alevantar a voz e de chamar a mim
Cegos e surdos que não querem ouvir nada...

Justiça
Heroismo, e juventude, e gloria, e luz de um dia,
Que bom de ver surgir uma cavallaria,
Ao Ermelino de Leão
Que te erguesse do chão, como uma flôr, emfim !

Os tempos não são mais de dança nem de lança,


E o mundo vai talvez ainda peór do que eu
Suppunha : todos nós perdemos a esperança,
É o naufragio, e este horror, e tudo pereceu...

Mas através do desespero que não cança,


Através deste mal duro como um judeu,
Quando corre o teu sangue e bom como criança,
Quando te vejo, assim, mulher que se perdeu...

1903
Poesias diversas
[ 24 ] Ó meu Senhor, que bom seria,
Na praia. Esplendido esse dia.

Ideal ! Um velho, e o barco sobre o mar :


“O mar é um tumulo sem fundo,
Mas eu vou dar a volta ao Mundo,
Ao Romario Martins
Alem ! Alem !”―Quero embarcar !

É frio, frio, como gelo.


A minha vida é uma Doente,
Galopo o meu cavallo em pêlo.
Que ri funambulescamente...
Uivos roucos de temporal !...
Ri como os sinos : dlem ! dlom ! dlem !
Mas nessa noite de procella,
Olhai ! lá vem descendo o serro !
Lá corre tremula uma véla
Lá vem ! lá vem o meu enterro !
Num mar de sangue !―É o meu Ideal !
Que dôr ! que dôr ! Morri. Por Quem ?

Às vezes como um Shah da Persia,


E tu, cruel, que assim me perdes,
Envolto todo em minha inercia,
Ó vicio ! ó Dama d’olhos verdes !
Eu adormeço num divan...
Torcida como um caracol ?
Mas vem de subito a Esperança,
Mas nos teus olhos quando cuido :
Toca-me o braço, dá-me a lança :
Ah ! quem me déra ser o fluido,
“Corre ! que vão matar tua irmã !”
E ser a estrella, e ser o Sol !
No campo. Um cavalleiro passa. Ideal ! Ideal ! que me tortura !
(Campo de Troya da Desgraça) Ó fogo fatuo ! ó vã loucura !
“Guarda !―murmura―É de coral, Dama d’honor ! Lança e Arnez !
Diamante, perolas e ouro, Alem, alem, é um mar de luzes !
Estranho, fulgido thesouro...” No meio d’ossos e de cruzes ?
Não lhe roubára nenhum real ! Que importa ! Irei sangrando os pés !

A Dôr! (que olhar ! e que magreza !)


Quando essa tisica Princeza
Entra de noite o meu solar...
Queima-me um raio de martyrio,
Eu resplandeço como um lirio,
Ó Lua Nova ! a soluçar !

Ideal ! Ideal ! que fina salva !


Ideal de prata ! Estrella d’Alva !
Torre d’oiro da minha Fé !
Ideal ! Ideal ! luzente Espada !
Comtigo, vê, não temo nada !
Turris eburnea ! Arca de Noé !
[ 26 ]

Companheiro ideal ! Durante toda a viagem,


Foi o espelho fiel a reflectir a imagem,
Dos montes e dos céos, discorrendo através

Iguassú
Da floresta, ora assim como um cão veadeiro,
A fugir, a fugir alegre e alviçareiro,
Ao Joaquim de Castro.
Ora deitado aqui, quasi a lamber-me os pés !

Ó rio que nasceu, onde nasci, ó rio


Calmo da minha infancia, ora doce, ora má,
Bello estuario azul, espelhado e sombrio,
Quanto susto me deu, quanto prazer me dá !

Quantas vezes eu só, nessas manhãs d’estio,


Ao vel-o deslisar, pomposamente, lá,
Palido não fiquei, tão magestoso vi-o,
Orgulho do Brasil, gloria do Paraná !
[ 27 ]

Canção
―O meu esposo morreu
Pára um negro cavalleiro
Lá nas guerras d’El-rei,
Ao pé de antigo solar :
Tenho o punhal que o feriu,
O seu cavallo é de crina
Gravado em ouro de lei.―
Côr da Lua, côr do luar.

Com a ponta da sua adaga


Vem de longe o cavalleiro,
Torna de novo a ferir :
Vem das guerras de Alem-mar...
―Quem bate na minha porta,
Com a ponta da sua adaga
A esta hora de dormir ?
Bate à porta do solar.

―Si fores meu D. Rodrigo,


―Quem bate na minha porta,
A porta te irei abrir,
A esta hora de dormir ?―
Mas si não fores Rodrigo,
“É teu esposo, Guiomar,
Dize : que queres de mim ?
A porta lhe vem abrir.”
“Eu sou D. Rodrigo, a porta,
A porta me vem abrir”
―Perdão, senhor ! piedade !
Tem piedade de mim !

... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ...

Parte um negro cavalleiro


Para as guerras de Alem-mar,
O seu cavallo é de crina
Côr de sangue, côr de luar.
[ 29 ]

Nada peór. É bem como uma Messalina,


Que já teve e não tem e anda cumprindo a sina
Miserrima... Porém eu vejo-me tão mal,

Que até chego a sentir saudade dos mendigos,

Ebrios... Da espelunca e dos meus camaradas antigos,


Que eu sei que hão de morrer num catre d’hospital !

Muito embora que vão, alegres e cantando,


Causa terror assim pelo meio da estrada
Vêl-os a caminhar, como um sinistro bando ;
Elles têm o nariz vermelho, a face inchada...

Pelas viellas mais escuras, cambaleando,


Sem que queiram saber de nada, de mais nada,
Noctambulos, senis, passam de quando em quando,
Mas como espectros, que fogem de madrugada...
[ 30 ]

Quando o aspirei—as minhas mãos nas tuas—


Bateu-me o coração como si fôra
Fundir-se, lirio das espaduas nuas !

Esse perfume... Foi-me um goso cruel, aspero e curto...


Ó requintada, ó sabia pecadora,
Mestra no amôr das sensações de um furto !

Esse perfume― sandalo e verbenas―


De tua pelle de maçã madura,
Sorvi-o quando, ó deosa das morenas !
Por mim roçaste a cabelleira escura.

Mas ó perfidia negra das hyenas !


Sabes que o teu perfume é uma loucura :
―E o concedes ; que é um toxico : e envenenas
Com uma tão rara e singular doçura !
[ 31 ]

E debil, de mansinho, abre a janéla...


O sol casquilha, em ouro se derrama,
Fóra na balsa, como uma risada...

Convalescente E ella : “Que doce por aquella estrada


Pisar agora em luz ! Feliz quem ama,
Como eu amo esta vida, que é tão bella ! ”
Ao coronel Joaquim Ignacio.

Choveu durante largo tempo ; dia


Sobre dia choveu, e ella, doente,
E ella, palida e triste, em febre, via
Brumoso e feio o céo, continuamente.

E nem uma esperança mais ! Chovia.


Mas melhora, e, olhando o céo em frente,
Vê que o céo fulge e se enche de alegria,
De uma alegria de convalescente !
[ 32 ]

Numa idéa de forma exquisita, uma vez,


Aspirei com ardor a esplendida nudez ;

Gente que não entende um fino goso d’arte,

Versos de outr’ora Que eu era um immoral, disse-o por toda parte.

Indifferentemente eu agora caminho


Fui bom. Mas a bondade é coisa trivial :
Sobre rosas em flôr ou sobre linho ou espinho ;
A infancia, a infancia fez-me uma guerra infernal.

Automatico vou, sem pesar nem prazer ;


Fui alegre e sincero. O mundo, a rir, em troco,
Ora pois ! vamos ver o que é que vão dizer...
Abominavelmente achou que eu era um louco.

Emma, a teus pés caí, beijei-te as mãos, Esther!


Fiz tolices de quem não sabe o que é a mulher...

Com que olhar de altivez, com que fundo desprezo,


Chamastes-me coitado—olhar noutro olhar preso.

Num Paiz de Barbaros


[ 33 ]

Mas sei tambem que ha mil aspirações estranhas,


Que havemos de subir montanhas e montanhas,
Que a Natureza avança e o Homem faz-se luz…

Metamorfóses Que a Vida, como o sol, um alchimista louro,


Tem o dom de poder mudar a lama em ouro,
E em límpidos cristaes esses rochedos nús !
À Mme. Georgine Mongruel.

Sei que ha muita nudez e sei que ha muito frio,


E uma voracidade horrivel, um furor
Tão desmedido que, quando eu acaso rio,
Quantos não estarão torcendo-se de dôr.

Conheço tudo, sim, apalpo, indago, espio…


Tenho a certeza que vá eu para onde fôr,
Como o escaravelho, hei de o odio sombrio
Ver ennodoar até o seio de uma flôr.
[ 34 ]

Hoje, tudo rolou pelos abysmos, tudo,


Esse orgulho feroz, essa lança, esse escudo,
As viagens a Cythéra, e esses brazões reaes...

Noite. Deito-me aqui... Eu vou dormir, porém. O somno não sei donde
Desce por sobre mim, como uma grande fronde...
Ah que bom de dormir e não acordar mais !

Noite. Deito-me aqui anciosamente, e deito


Este fardo de dor, e esta fadiga enorme.
Faz frio. A neve cae. O vento chora. O leito
Géla. Mas vou dormir, e feliz de quem dorme.

Realmente, a vida foi como um castello informe,


Como um castello no ar, como um castello feito
De papelão, mas construido de tal geito
Que eu fiz de Marionnette, ó Marion Delorme !

Maio―910
[ 35 ]

Mas, bruscamente, emfim, ao longe, ao longe se ergue,


Como um olho de sangue, embora, aquelle albergue,

Soneto Oh ! um espectro mau, que outr’ora eu conheci !

Ao Azevedo Macedo
Dentro d’elle, eu bem sei, uma profunda valla...
É o covil da traição que envenena e apunhala...
Que se escreveu, quando se acreditou que
tendo d. Alba se ausentado por mui longes Tenho somno, porém, e vou dormir ali !
terras, nunca tornasse mais a dar novas de sua
pessoa.

É noite. E o vento, como a folha d’uma espada,


Corta, sibila, espanca, e zurze, e dilacéra,
E eu que vou, eu que vou, sózinho, pela estrada,
Eu não tenho por mim nem um raminho d’héra.

Eu não tenho por mim ninguem, não tenho nada.


Tenho a noite, este horror, esta cruel chiméra,
A minha solidão, que a mim me desespéra,
E o vento a soluçar, e a tunica gelada...
Abril de 905
[ 36 ]

Cada qual, cada qual, com um motivo diverso :


Este me dirá que foi a mania do verso
Que me veiu a matar ; aquelle, outra qualquer...

Para Ella Ao ver a minha face, em terra, friamente,


Muitos hão de pensar : coitado, era um doente...
Ninguem dirá, porém, que foi esta mulher !...

Quem um dia me vir, caido pelo chão,


Ferido pela dôr, que é o teu punhal, Yago,
No meio do sangue, assim, no meio d’um lago,
Como um funambulo torcido, mas em vão...

Ha de dizer que do meu destino aziago


A culpa teve mais minha imaginação,
Quando errava através da noite, como um vago,
Como um fantasma, só, como um ladrão.
[ 37 ]

É uma corrida doida essa corrida,


Mais furiosa do que a propria vida,
Mais veloz que as noticias infernaes...

Corre mais que uma véla... Corre mais fatalmente do que a sorte,
Corre para a desgraça e para a morte...
Mas eu queria que corresse mais !

Corre mais que uma véla, mais de pressa,


Ainda mais de pressa do que o vento,
Corre como si fosse a tréva espessa
Do tenebroso véo do esquecimento.

Eu não sei de corrida igual a essa :


São annos e parece que é um momento ;
Corre, não cessa de correr, não cessa,
Corre mais do que a luz e o pensamento...
[ 38 ]

Para onde vou ? Não sei. Qual é o meu destino ?


Tambem não sei. Porém desejo caminhar
Por essa estrada além, bem como um peregrino,
E o meu instincto é como um passaro a voar !...

Quadras

À memoria do Albino Silva

Eu de certo não sei, si venho d’um gorilla,


Ou si venho talvez do paraiso terreal...
Em todo caso pó, e quando muito argilla...
Achei-me um dia aqui ; quem sabe por meu mal !

Eu não sei d’onde vim ; mas viesse d’onde viesse,


Da poeira ou da luz, do gorilla ou de Adão,
Toda a minha ancia é de subir como uma préce,
Toda a minha ancia é de brilhar como um clarão.
[ 39 ]

D. Morte

entrando num albergue:

... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ...

—Mãi, que és tão pobre e não tens leite, Glacial, esguia, num momento,
Ó dor crescente ! ó Lua cheia ! Eu entro, sópro essa candeia...
Vida—candeia sem azeite, Queres ? olá !
Olha-me, vê, não sou tão feia ! Quem foi ? quem foi?
Pé ante pé, —o norte, o vento...
Queres ? olé ! Ah! ah! ah! ah! ah! ah! ah! ah!

... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ...
[ 40 ]

Exposto ao vento, à chuva, à neve, ao frio, ao lodo,


Palido de suôr, carregado de tedio,
A procurar em vão, nervoso e quasi doudo,
Para um irmão, que morre, um extremo remedio !

Incoherencia

Quando eu aperto assim mais leve que uma pluma,


Ó meu desejo bom, ó minha flôr de liz,
Esse teu seio nu, de carne que perfuma,
Em abraços, em beijos loucos e febris,

Não sei dizer porque, mas vem-me à fantasia,


Que em vez de estar aqui, abraçando-te nua,
Por sobre este peplum de seda, eu poderia
Andar inquieto ahi, pelo meio da rua,
Solidão
[ 42 ]

Ou na deserta e solitaria praia,


Quando o vento soluça e a onda desmaia,

Solidão Sempre que te enxergava, em vez de ter


Medo, como outros têm, tinha prazer.

Ao J. H. de Santa Ritta
Tinha um secreto gôso, uma alegria,
Tão exquisita que eu não definia.

Era como si acaso visse alguem


Desde os mais tenros annos, Solidão,
Que conhecesse, que quizesse bem...
Que adivinhei que eu era teu irmão.

Tal a mysteriosa affinidade


Onde quer que eu, andando, te encontrasse,
Que havia entre nós dois, ó Soledade !
Ó sombra, ó sonho, ó illusão fallace,

Entretanto, não sei que succedeu,


Fosse na immensidade azul do mar,
Não foste minha, e nem pude ser teu.
Todo num fim de luz crepuscular,
E era, bem comprehendo, era no meio Inda te posso amar, ó minha flôr,
Desse florido e avelludado seio, Com a mesma graça, com o mesmo ardor,

Que eu devera passar a vida, e não Com o mesmo gesto, a mesma inquietitude,
Como a passei, aqui, ó Solidão, Com que eu amei na flôr da juventude...

Entre enganos crueis e desenganos, Pois serei teu, e tu, a embriaguez


Dias e dias e annos e annos ! De quando amei pela primeira vez.

Era em teu seio, sim, como um enfermo, E teu sómente, ó flôr silenciosa,
Teu seio triste, e vasto, e nu, e ermo... Coroada de myrtos e de rosa,

Era em teu coração, que para mim Nós fugiremos, pombos ideaes,
Foi sempre aberto em flôr, como um jardim... Longe destes abutres e chacaes,

Inda tenho, porém, frescuras d’alma, Para o fundo dos valles e dos montes,
Lirios e rosas, violeta e palma... Ao pé dos lirios, em redor das fontes,
Enlaçados no mesmo abraço pois,
No mesmo beijo luminoso os dois,

Ó doce paz, ó meu doirado asylo,


De um azul melancolico e tranquillo,

Ó illusão, ó mãi das illusões,


Filosofias e religiões,

Mãi de tudo que é belo e que irradia,


Mãi do Silencio e da Sabedoria !

Dezembro 907
[ 45 ]

Eu não seria mais do que um moleiro.


Occupado, occupado, o dia inteiro,
Sem ambições jamais do que eu não vi.

I
Nem cornamusa alegre de pastores,
Nada ! Nem tudo me seriam flôres...
Mas quem me déra não saír d’ali !

Não era mais que uma pequena aldeia,


Um logarejo assim, com passarinhos,
Flôres, verdura e sol. Paizagem feia.
A egreja, um velho cura, agua e moinhos...

De quando em quando o fado, a lua cheia,


E casos mil fantasticos de velhinhos,
Com princezas no meio, com adivinhos,
E sempre lá no fundo a mesma idéa...
[ 46 ]

Podia o Orgulho uivar pela cidade,


Não me entraria em casa a Vaidade,
Eu fecharia a porta a tudo isto...

II Oh exquisita flôr que se descobre :


De viver entre os pobres como um Pobre,
Entre os humildes como Jesus Christo !

No meio desta rustica paizagem,


Que eu por felicidade descobri,
Que bom de interromper a minha viagem,
De erguer a tenda e fazer pouso em Ti.

Que doce aqui ficar nesta ermitagem !


Que bom ! que bom de me enterrar aqui !
Onde eu achei melhor camaradagem ?
Gente mais simples onde foi que eu vi ?
[ 47 ]

O vento fére rijo como açoite


Quando elle passa. É noite. Anoiteceu.
E elle não sabe onde passar a noite.

III Não sabe nada, nem por que nasceu,


Nem por que vive, nem por que se afoite...
—Esse velhinho é mais feliz do que eu !

Aquelle que ali vae nesse caminho,


Todo despido, todo, da Illusão,
Não tem um manto, o pobre, não tem linho,
Não tem mulher, não tem si quer irmão.

É mais pobre que Job, o pobrezinho,


De seu não tem, sinão esse bastão,
Que ao mesmo tempo é o seu cópo de vinho,
E a sua luz em meio a Decepção...
[ 48 ]

E oh ! que amargura, quando a noite vem,


Toda d’um roxo frio de lilaz...
Quem déra ser o lavrador, porém !

IV Entrar em casa, a mesa posta, os seus


Em de redor, a consciencia em paz,
E tudo em paz, louvado seja Deos !

Que bom si eu fosse aquelle lavrador,


Que eu nunca pude ser e que eu não sou,
Que depois de lavrar os campos, flôr,
Centeio, milho e trigo semeou...

Esse trabalho nunca lhe amargou,


Mas à hora doce e triste do sól-pôr,
Tanta canceira o pobre desfolhou,
Tanto fez, que semeou a propria dôr...

Maio 902
[ 49 ]

O meu lugar é aqui, no seio desta ruina,


Destes escombros, que reluzem como lanças,
E destes torreões, que a febre inda illumina !

V Sim, é insulado, aqui, no cimo, bem o sei !


Entre os abutres e entre as Desesperanças,
E dentro deste horror sombrio, como um Rei !

Oh para que saír do fundo deste sonho,


Que o destino me deu, e que a Vida me fez,
Se eu quando, a meu pesar, casualmente, ponho
Fóra os pés, a tremer, volvo, anciado, outra vez.

O meu lugar não é no meio de vocês,


Homens rudes e maus, de semblante risonho,
Não é no meio de tamanha insipidez,
D’um egoismo atrós, d’um orgulho medonho !

Nov. 905
[ 50 ]

Que mais hei de querer, si para aquelle


Que o destino cruel bate e repelle,
Todo desejo é inteiramente vão ?

VI Sim ! Porém o Silencio é o deos Apollo !


E tem a graça, e o gesto, e o beijo, e o cóllo
De Venus Afrodita—a Solidão !

Que outro desejo bom, que me captive,


Eu poderei achar, laços fataes,
Si naquella prisão, onde eu estive,
E onde quizera estar, já não estaes ?

É de esperança, eu sei, que o homem vive,


E é de chiméra e sonhos immortaes,
Mas, si o que desejei, eu não obtive,
Que outra fortuna posso querer mais ?
[ 51 ]

Esguia, magra, toda arcadinha,


Vime mais brando que uma velhinha.

Palida Morte ! palida Morte !

Lirio ! Sopra essa véla, vento do Norte !

Toca-a bem longe, por esses mares,


Ao Generoso Borges
Mares de prata, prata e luares...

Si Deos a esquece sobre esta valla,


Nos olhos fundos azues de serro :
Pó dos caminhos, hão de pisal-a...
Geme um salgueiro ; passa um enterro.

Ella, uma rosa, doente exangue,


Riso d’inverno, gelado escuto :
Vai ficar cega de chorar sangue...
—Passaro branco que anda de luto.

Lirio tão fino da lama tire-o :


Mão como as algas, mão que me corta,
Para entre os Lirios mais outro Lirio !
Quando eu a aperto, tisica morta.
Que olhe por ella ! que olhe por ella !
Fulgida, pura, como uma estrella !

Que quando a veja, tremulo a abrace,


Beije-lhe os olhos, olhos e face...

Mas tão etherea, mas tão algente,


Que ambos solucem convulsamente !

1899
[ 53 ]

Ó musica feral d’abelhas !


Ó zumbidos prenhes de dôr !
Magoas com manchas vermelhas,
Prazeres com gangrena em flôr !

Sol d’Inverno
Volúpia ! Embriaguez celeste !
Lingua de fogo ! A mim, o pó
Ao Serafim França
Lambe-me, como tu lambeste
As feias ulceras de Job.

Sol d’Inverno, tibio velhinho,


Ó riso enfermo ! ó riso espectro !
A mim, um doente d’hospital,
Esqueleto que estás a rir...
Quando me vens dar o teu vinho,
Rei Sol que perdeste o sceptro,
Bebo, bebo, não me faz mal.
Rei louco, Rei bom, ó Rei Lear !

Sol d’Inverno, velhinho doente,


Olhos folhas tristes d’Outono,
Que tosse e escarra o oiro e o pús !
Olhos toque d’incendio no ar...
Que bom ! Que bom ! tisicamente,
Olhos carregados de somno,
Tremer debaixo de tua luz !
Olhos 13, diabo, Azar...
Sob o teu beijo, alvas cantigas, Illusão morna dos casebres,
Manto de fulvos areaes, Bordão florido, cheio de luz,
Dormem leôas, paixões antigas, Bom riso no meio das febres,
E amaveis monstros sensuaes. Suores d’Agonia... Jesus !

Dorme tambem, ó sol d’Estio, Frio, frio !... (Que é de um Amigo ?)


Como um ebrio, meu Coração, Partes ? adeus ! nenhum lençol !
Ebrio de estrada, monstro frio, Meu Unico Amôr, meu Jazigo,
Gelado pela Decepção ! Fogão dos pobresinhos, Sol !

Amo-te, gloria da mansarda,


Amo-te, (e o vento é um punhal,)
Tu és o meu Anjo da Guarda,
O meu Lençol, meu Hospital !

Amo-te muito, como poucos,


Quando te ausentas por ahi,
Eu, os tisicos e os loucos,
Ganimos de paixão por ti !
Julho 1899
[ 55 ] Quando tu me falas, falam os aromas,
Ó boca de lirio, prateado luar !

Em seu louvor Com palavras de ouro, com aromas domas


Ondas mais revoltas que as ondas do mar.
Ao Clemente Ritz

Quando eu penso em Ti, Pomba muito mansa,


Lirio do Cedron, ó Rosa do Carmello !
Recendes-me ao nardo, Capellinha em flôr,
Tu tens a alegria da Estrella d’Orion...
Dourada da palma verde de esperança,
Quando eu te contemplo como um Setestrello
Lirio do Cedron, ó Rosa do Assor !
Regina cœlorum, Lirio do Cedron...

Entre lirios verdes, entre palmas bentas,


Fluido Sonho à Lua, vago Céo desnudo,
Entre lirios brancos, fulge o teu altar...
Sombra que perfumas como o benjoim...
Resplandecem lirios, onde Tu te assentas,
Teu passo ressôa por sobre velludo,
Ó Virgem Maria ! desejo rezar !
Quando tu caminhas, Lyra de marfim.

Ó Virgem Maria ! Mater Dolorosa !


Tudo que é murmurio, tudo que é frescura,
Minha alma a teus pés é uma criança a rir...
Ó Cheia de graça ! reluz em teu Ser...
Que teus pés me calquem—brancos pés de rosa !
Campo é teu olhar elysio de verdura ;
Tão bem eu me sinto ! deixa-me dormir...
Cordeirinhos brancos andam a pascer...
1898
[ 56 ]

É alguem, alguem talvez... Meu coração se pasma,


Todo o meu ser emfim tremulo se retráe :
Vejo pé ante pé chegar esse fantasma...

Espectro Entra. Senta-se aqui. Olha-me bem de frente,


Melancolicamente e dolorosamente,
E sem dizer palavra, em seguida, elle sae !

Chego, fecho-me aqui no quarto. Lá por fóra


Ruge o vento de dôr. Bate desesperada
A chuva nos vitraes. Eu estou só. Agora
Completamente só. E a noite é gelada.

Soffro. Quero illudir a minha dôr que chora.


Folheio este volume e não comprehendo nada.
Tento escrever, em vão. Mais, eis que sem demora,
Noto que a porta foi como que descerrada...
[ 57 ]

E emfim de todo quasi nua,


Sómente envolta em véos ideaes,
No carro d’ébano fluctua,
Pelos espaços sideraes.

Nox
Vendo-a passar, dos rendilhados
Palacios de ouro e de cristal,
Como si fossem namorados,
Os astros fazem-lhe um signal.
Escureceu. Silenciosa,
A Noite faz a toilette :
E cada vez mais se reclina
Na cabelleira tenebrosa Sobre esses coxins de velludo,
Engasta a Lua um alfinete. Sorrindo como Messalina
Para todos e para tudo...
Depois, o corpo sempre moço,
O corpo em flôr de Sulamita,
Num banho immerge até o pescoço,
Banho de estrellas que palpita.
[ 58 ]

Somente tu, flôr delicada,


Como quem veiu
Fatigada
De um passeio,

Mors Tombaste ali, silenciosa,


Sobre o sofá,
No abandono,
Palida rosa,
De um longo somno,
Nesse risonho lar,
De que ninguem te acordará !
A dôr caíu neste momento,
Como si fosse a chuva, o vento,
O raio, e bate sem cessar…
Bate e estala,
Como uma louca,
De boca em boca,
De sala em sala…
[ 59 ]

Flóra

Ao Gilberto Beltrão.

Hontem, eu me encontrei comtigo, ó primavéra,


Os labios a sorrir, como uma flôr vermelha,
Tu trazias na mão a classica corbelha,
E na fronte ideal uma corôa d’héra.

Em de redor de ti, loucamente, passava


Um turbilhão febril de raparigas, quase
Nuas, veladas só por um sendal de gaze,
Mais leve do que o som que Zéfyro soprava...
[ 60 ]

Quanto me sinto bem, ó minha doce amiga,


Eu, palido ermitão,
Aqui dentro de ti, da tua paz antiga,
Eterna solidão !

Ode à solidão
No meio do silencio immenso que me cobre,
Assim como um capuz,
À exma. snra. Baroneza do Serro Azul
Como é bom de escutar o mar quebrando sobre
Esses rochedos nus...

Vamos, é tempo de se abrir a mão de tudo,


É a mesma cousa que si habitasse um castello,
E fugir de uma vez,
E é o unico lugar
Desses caminhos de sandalos e velludo,
Onde eu me sinto grande, onde eu me sinto bello,
Doirada embriaguez...
Em face deste mar...

É tempo de dizer a tudo quanto passa


Que essencias ideaes eu respiro ! Nenhuma
O meu adeus final,
Outra região assim
Às rosas e aos rosaes, à mocidade e à graça,
Tem esse cheiro bom. A solidão perfuma
Tudo que me fez mal.
Como um jasmim...
És o retiro, a paz, o sonho, e esse caminho,
Que eu sempre quiz,
O caminho ideal, por onde eu vou, sózinho
E triste, mas feliz.

Ah para mim tu és o egregio cofre aonde,


Por suas proprias mãos,
A minha alma recolhe as lagrimas, e esconde
Os meus soluços vãos...

Bemdito seja pois esse silencio obscuro,


Bemdita sejas tu,
E esse teu ventre liso, e esse teu seio puro,
Esse teu seio nu,

Onde ao cair emfim de uma tarde de outono


Desejo adormecer,
Calmo, porém, assim como quem dorme um somno
Num seio de mulher...
Satyros e dryades
[ 63 ]

A dama foge, não deseja que eu avance...


Meu desejo, porém, é um gamo. De relance,
Vendo-a, corre a querer sugar-lhe o claro mel...

De um fauno Despe-a ; carrega-a, assim, despida, para o leito...


E, nua, em flôr, bem como um satyro perfeito,
Sobre o feno viola essa Virgem cruel !
Ao Ismael Martins

Ah! quem me déra, quando passa em meu caminho


Juno ! com seu andar de névoa que fluctúa,
Poder despil-a dessa tunica de linho...
E vêl-a nua ! Eu só comprehendo estatua nua !

Nua ! essa corça nua é branca, e é como a Lua...


Ser eu Apollo! embriagal-a do meu vinho !
Porém si estendo no ar os meus braços, recúa,
Esquiva, a dama apressa o passo miudinho...
1898
[ 64 ]

Todas, todas que viu, elle mordeu de beijos,


Enraiveceu de amôr, polluiu de desejos,
Tomado de furor, doido d’embriaguez...

D. Juan Um delirio ! Porém, D. Juan era um artista,


E portanto cruel, nervoso, pessimista,
E de resto, o infeliz nunca se satisfez !

Sensivel, como quem podia ser, apenas


Mais vão do que uma sombra um gesto perpassou,
E logo desse heróe, revoltas as melenas,
Brilhava o estranho olhar, que tanto ambicionou...

Era uma confusão. Palidas e morenas,


Cada qual, cada qual, como Deos a formou,
Não foi uma, nem dez, porém foram centenas
As mulheres por quem D. Juan desesperou...

Nov. 903
[ 65 ]

Elle não soube ler, ó heróe, o teu destino,


Um supremo desdém, um orgulho divino,
E nunca pôde ver, palido D. João,

Não sei que poeta... Através desse olhar, scismativo ou risonho,


Que não eras sinão o symbolo d’um sonho,
E essa flôr ideal e eterna da Illusão !

Não sei que poeta mau teve a lembrança, um dia,


Possuido d’um furor de plebe iconoclasta,
Baseado em não sei que falsa filosofia,
De querer te cobrir d’uma gloria nefasta...

E entre epithetos e baldões de toda casta,


Esquecendo afinal o tom dessa hierarchia,
E a pose archi-ducal e antiga da poesia,
O teu manto de rei nervosamente arrasta...
[ 66 ]

Abrindo os corações, todos, de par em par,


Apenas elle quiz transpôr o liminar,
Que estremeceu e tão branco e desfigurado...

D. Juan, mas porque foi... Lirio ou rosa, não sei, nenhuma flôr tocou,
Que uma serpente vil não tivesse manchado,
E um verme tambem não exclamasse : aqui ’stou!

D. Juan, mas porque foi um seductor, de resto


Não deixou de curtir a Decepção cruel,
Pois sempre que sonhou, enlevado num gesto,
Sorver o amôr, assim como um favo de mel,

Não sei, não sei que flôr, com odio manifesto,


Angelica, porém, com alma de Ariel,
Quando elle ia beber, inquieto, quasi honesto,
Deitava-lhe no copo o veneno e o fel.

Maio 904
[ 67 ]

E que ancia de poder fundir-vos num só beijo,


E que ancia de beijar a todas de uma vez,
Astros, dignos do meu soberano desejo !

Um dos sonetos de D. Juan Carnes, alvor de luz da manhã, que irradia,


Olhos, inundações furiosas de embriaguez,
Tranças revoltas como uma noite de orgia !
Ao Domingos Nascimento.

Todos os dias o meu coração suspira,


Umas vezes por ti, meu bem, outras por ti,
Meu novo bem, assim que se fôra uma lyra,
Ora em dó, ora em fá, ora em ré, ora em mi...

Ó torres de marfim, ó torres de safira,


Perolas ideaes, que eu nunca possui,
Quando é que poderei (a minha alma delira)
Palpitar sobre vós, bem como um colibri ?
1903
[ 68 ]

E que horrivel pesar que pois assim me veja


Condemnado a querer emfim uma mulher
Que todo o mundo quiz e todo o mundo beija...

Outro soneto de D. Juan E tenha por destino e por minha desgraça,


A infamia de beber no fundo de uma taça
Onde eu sei que bebeu um beberrão qualquer !...

Quando fulges aqui pela minha lembrança,


Ó fogo de Babel, luxuriosa flôr,
É como si fulgisse a ponta de uma lança,
E é mais odio talvez que eu sinto do que amôr.

E vingança tambem e sêde de vingança,


Sabendo que afinal foste possuida por
Tudo quanto bem quiz, atrós desesperança,
Por vaidade ou prazer, ser teu possuidor...
[ 69 ]

Tu não és, tu não és menos que uma rainha,


E parece que estou ao fundo de um clarão,
De um extase sem fim, que apenas se contém...

Ainda outro do mesmo autor Eu desejo morrer. No meio da illusão,


Ó Sodoma, porém, de inda tu seres minha,
Quem me déra viver, só p’ra te querer bem!

Ó Sodoma gentil, ó flôr maravilhosa,


Ser amado por ti, causa-me tal prazer,
Que eu não sei te dizer, minha palida rosa,
Mas depois de te amar, vale a pena morrer.

Acredita, eu não sei, perola preciosa,


De gesto mais gracil e doce de mulher ;
Que bom de te lançar, carne voluptuosa,
Por sobre os hombros nús flôres de malmequer !

Fevereiro de 1904
[ 70 ]

Os nossos olhos são uma voracidade !


Mal se avistam, não sei que loucura os invade :
Correm a se agarrar, tremulos de paixão...

Ainda outro... E pelejam, assim, agarrados e unidos,


No meio d’um fragor tragico de rugidos,
Doidos por se querer destruir, mas em vão...

Quando te vejo assim passar como um lampejo,


Não imaginas tu, causa de meu prazer,
O anceio, e o fulgôr, e o horrôr com que te vejo,
E o orgulho, e a ambição, e a fome de te ver.

Escuta : para mim, tu és um grande beijo,


Que inundasse de luz o fundo do meu ser...
E é um punhal este amôr, e é um dardo este desejo,
E nada satisfaz a ancia de te querer !

Nov de 903
[ 71 ]

Quando será, porém, ó moinho de vento,


A hora que tarda, emfim, o supplicio, o momento,
Em que eu, embriaguez celeste, hei de poder,

E finalmente o ultimo Já fatigado, já, de tudo, sim, de tudo,


Desses teus olhos vãos, mais caros que o velludo,
Anciar ao pé de ti, mas por outra mulher ?...
Ao Santa Ritta Junior

Meu encanto, meu bem, rosa de Alexandria,


Minha tulipa, meu ideal, minha illusão,
Minha loucura, meu amôr, minha agonia,
Meu céo aberto, que parece uma prisão :

Minha esperança e meu pesar de cada dia,


Ó minha luz, tu és o meu desejo vão,
E a espada, e o broquel, e a pluma, e essa alegria,
E esse delirio, e a flôr da desesperação !
[ 72 ]

Quando eu tomo esse teu cabello ondeado e louro,


E o cheiro, e palpo o teu corpo branco e felino,
Como te torces, pois, minha serpente de ouro !

Gata O teu corpo se enrola em meu corpo amoroso,


E o teu beijo me aquece e vibra como um hymno,
Animal de voz rouca e gesto silencioso !

Na brancura da pelle e no gesto macio,


A caricia tu tens e a molleza de gata :
O teu andar subtil é doce como a pata
Desse annimal pisando um tapete sombrio...

Tens uma morbidez languida de sonata.


Teu sorriso é polido, é fino e é muito frio...
Si as tuas mãos acaso eu beijo e acaricio,
Sinto uma sensação exquisita, que mata.
[ 73 ]

E era um deos, era um deos, d’uma pompa feroz.


Quando o filho do sol aos porticos assoma,
Entre eunuchos reaes e truões, alçando a voz,

Heliogabalo “Viva o Imperador !” O mundo o acclama e quer.


“Viva !” O monstro excedeu as crapulas de Roma !
Heliogabalo é um homem e é uma mulher !

É um prostibulo. E pois, tendo admirado tudo,


—Caligula a rugir dentro d’um lupanar,
Tiberio, como si fosse um fauno cornudo,
De lepras e furor a se despedaçar,—

Suppunha nada mais ter que ver, quando mudo


E apavorado, viu pela cidade entrar
O novo imperador, coberto de velludo,
Seda e ouro, e por fim bracelete e collar...

Maio de 904
[ 74 ]

O corpo é um muito mau pardieiro, bem vêdes !


E por isso tambem, embora que murmures,
Oh minha alma ! estás presa entre quatro paredes !

Amôr Cinzento
Presa ! e dilue-se o mundo ! e nem um sonho ao menos,
E nem festas ! e nem um agasalho algures,
Ao Celestino Junior
Num leito brando, nuns braços brandos de Venus !...

Em baixo é o dia fusco, é a luz mortuaria ; em cima


Rolos de fumo e cebo, ó soturna cloaca !
A Vida extincta sob uma grandeza opaca...
Nem pomos de ouro, nem cantigas de vindima !

Fumo só. Tédio só. Natureza de luto.


Cinza e betume chove. E em torno se derrama
Todo um acre vapor feralmente corrupto,
Feito de cêrdos e de batrachios e lama...

1898
[ 75 ] De um lindo céo azul, esplendido verão,
E ella a roçar em mim, como uma tentação...
E ella a passar aqui, dentro do seu corpete,
Tão leve, tão sensual, no seu andar coquette,

Borboleta A subir, a descer de tal modo, Senhor,


Que a mim me pareceu, mas sem tirar nem pôr,
Essas que andam de lá p’ra cá, coquettemente,
Ao José Gelbecke.
À noite, nos jardins, a seduzir a gente...

Hoje, uma borboleta, assim, toda amaréla,


Veiu bater aqui junto à minha janéla.
Olhei. Ella passou. Eu comecei a olhar.
De novo ella passou e tornou a passar,
Tão velludosa e ao mesmo tempo tão inquieta...
Que quereria pois aquella borboleta ?
Ia e vinha outra vez, doida, a se debater,
Com ademanes, com tregeitos de mulher...
Era um dia de sol, fino e voluptuoso,
De um grande beijo ideal, de um infinito goso,
1903
[ 76 ] III

Os meus seios estão mais rijos que uma pêra,


Tumidos de desejo e de suspiros vãos,

Versiculos de Sulamita Que bom de me fundir, como si fosse cêra,


Ao calor ideal dessas palidas mãos !

I
IV

Hontem, atraz de ti, por essas ruas, toda


Tu dizes, meu amôr, que meu umbigo é como
Furiosa, caminhei, nesta Jerusalém ;
Uma taça a ferver de espuma e embriaguez ;
Mas supondo talvez que eu estivesse douda,
Vem beber esse vinho e comer esse pomo,
A guarda me espancou e me feriu, meu bem.
Vem te embriagar de mim e da minha nudez...

II
V

Vem, Salomão gentil, vem, ó meu rei amado,


Estes labios são teus, estas coxas são tuas,
Toda a noite passei velando, não dormi
Vem, ó rei Salomão, meu corpo é todo teu,
Um instante sequer, de anceio e de cuidado...
Vem devorar aqui as minhas pomas nuas,
Tenho fome de ti, tenho sêde de ti !
O fruto saboroso e acido que sou eu...
VI

Vem, que morro por ti ! Pois mal te sinto e logo


Com a mão a gotejar, como um distillador,
A myrrha, abro-te a porta, as entranhas em fogo,
Rugindo, como si fosse incêndio, de amôr!
[ 78 ]

E que algazarra vã daquella juventude,


Ouvindo Pan soprar na sua flauta rude,

Supplica de um fauno Quando no meio de sussurros e de assombros,


Correu Apollo atraz dos lactecentes hombros
De Leucothéa uivando : eu te amo ! eu te amo ! eu te amo !
Ao Panfilo d’Assumpção
Agil, subtil, veloz, como si fosse um gamo...

—Foi neste bosque, olhai, que hontem a mais pomposa


Das lupercaes eu vi. Corôada de rosa,
E que riso cruel, tonitroante e louco,
Dos loureiros em flôr à sombra, que perfuma,
Quando Vulcano, apparecendo dahi a pouco,
Venus o corpo ideal, mais claro que uma espuma,
Entre outros braços nus, que não de seu esposo,
Cedeu ao teu furôr, ó Adonis, à tua
Venus veiu encontrar delirando de goso...
Fome, como si fosse uma bacchante nua...

Correu o vinho a flux. Os sonhos e as chiméras


Ebria, a torcer-se toda em delirios de louca,
Coroaram o deos Pan de myrtos e de heras...
Myrto rugiu de amôr, a boca em tua boca,
Resplandeceu o sol da alegria. A floresta
Enlaçada comtigo, ó satyro cornudo,
Echoou, como si fosse o proprio Olympo em festa.
Sobre essa relva, assim, tenra como velludo...
Só eu de quem jamais a duvida se arranca, Assim pois, antes ser um triste cégo, Venus,
Só eu não pude rir dessa risada franca. Ou possuir então esse prestigio, ao menos,
Adoro uma deidade, a caçadora Diana, De poder transformar-me, ó deoses, numa estatua
Mas amar sem ventura é uma batalha insana... Mais insensivel do que o marmore de Paros !

E de fato, não sei que demonio porfia


Entre nós dois, que sendo a unica alegria
Dos meus olhos, jamais lógro o puro desejo
De morrer a seus pés como a onda de um beijo...
Por Jupiter, no entanto eu juro que não posso
Domar este furor, conter este alvoroço...
Por onde quer que eu vá, luz desesperadora,
Eros o coração me enfurece a toda hora
Desses desejos vãos, inquietos e raros,
Que eu nunca vencerei, porque a belleza é fatua...
Um violão
que chora...

Ao Nestor Victor
[ 81 ]

Ter os seus cuidados


Todos em mulher,

I Tenha-os quem puder,


Que é melhor não ter,
Que os ter enganados.
Ao Miranda Rosa Junior

Amôres são rosas,


Œlhos por seu gosto
Proprias da Illusão,
Não os ponha em flôr
Rosas em botão,
Que lhe causam dôr :
Que é quando ellas são
Soffre de os não pôr,
Frescas e cheirosas.
E de os haver posto...

Flôr de maravilha,
Alma que anda cega,
Perola de Ofir,
Si por socegar,
Perola a sorrir...
Veiu a se empregar,
...Ai de quem dormir
Nesse aventurar,
Sob a mancenilha !
Muito mal se emprega...
Damas, meus senhores,
São todas iguaes...
Já porque as olhais,
Nem vos olham mais,
Nem vos têm amôres...

Julho—1900
[ 83 ]

Mas si me não encontrardes,


O que é natural emfim,

II Interrogai estas tardes,


Que hão de vos falar de mim.

Dessa tão ferrenha magoa


Sobretudo este arvoredo,
De querer vos esperar,
Que ha de vos dizer: “Eu vi,
Meus olhos se encheram d’agua
Elle passeiava, em segredo,
Salgada como a do mar.
Todas as tardes aqui.

Vós promettestes, senhora,


Passeiava tristonho e mudo,
Voltar, um dia, porém,
A pensar em não sei que,
Esperei, e até agora
Tão distrahido, que tudo
Inda não veiu ninguem...
Via como quem não vê...

Quando viréis ? Não sei. Quando


Andava, não sei, tão cheio
(O destino tem suas leis)
De torturas ideaes...
Vierdes, aqui chegando,
Um dia o pobre não veiu,
Talvez que não me encontreis...
E afinal não veio mais...”
[ 84 ]

Vós me causastes taes penas,


Tão acerbas e tão cruas,

III Não só uma vez nem duas,


Porém, senhora, dezenas,
Que eu jamais pude atinar
Ao Rodrigo Junior
Com esse vosso querer,
Sempre causando pesar,
Em vez de causar prazer.

Tantas vezes hei soffrido,


Feristes me de maneira
Que desta vez conheci
Que me nasceu a ferida,
Que tudo ficou perdido
Por onde me corre a vida,
Nas mãos em que me feri.
Bem como uma cachoeira...
E é justo que então vos diga
Entretanto, é singular
Que a mão que me faz soffrer,
Isto que pois vou dizer:
Bem que me devia ser
Quasi que sinto prazer
Amiga, e não inimiga.
De me fazerdes penar.
Allegar o bem não ha de O poeta é a eterna criança,
O coração, mas foi tal Correndo atraz da illusão,
A vossa malignidade Que lhe foge, e elle não cança
Que o allegar não faz mal : De tanto correr, em vão,
Fui por vós, senhora minha, Nessa corrida enganosa
O que não fui por ninguem ; De quem não sabe o caminho...
É que à conta vos não tinha Ora, crêr se que uma rosa
De pagar com o mal o bem. Deixasse de ter espinho !

Eu como um cego suppunha Pois tal embriaguez sentia,


Que fosses só formosura, Prazeres tão absolutos
E não afiada unha, Quando eu vos acaso via,
Que dilacera e tortura : Em horas que eram minutos,
Não pensei que dentro desse Que bem só entendo agora,
Puro perfil ideal Agora emfim é que eu sei
Pudesse haver e houvesse Que vós não ereis, senhora,
Tanto fel e tanto mal. A flôr que eu imaginei.
Tambem daqui por diante,
Isso a mim proprio jurei,
Por mais que o prazer me encante,
Vista jamais erguerei,
Nem para uma outra estrella,
Nem para uma outra dama ;
Pois para que é que hei de erguel-a,
Si tudo que vejo é lama ?
[ 87 ]

Pensais de mim que sou cego


E que sou doido perfeito.
Mas eu tambem não vos nego

IV Ter de vós igual conceito.


Assim os dois ficaremos
Pagos do bem e do mal
Para o meu coração
Que um a outro nos fazemos,
Mas sem querer afinal.

Tantos bens ambicionei,


Vós por me contrariar,
Que por mal dos meus pecados
Eu por não vos entender,
Nunca os vi realizados
Quando me dais um prazer
E talvez nunca os verei.
Logo em seguida é um pesar.
Que, ó meu passarinho verde,
E sempre mal avisado,
Tanto quizestes e eu fiz,
Julgais que tudo sou eu,
Que, como por lá se diz,
Culpa do que succedeu,
Quem muito quer, muito perde...
Quando eu sei quem é culpado...
Tudo muda a pouco e pouco, Não podemos ser unidos :
Rochedos e vendavaes, Vossos soluços de magoa
Mas vós, cada vez mais louco, Soluçam nos meus ouvidos,
Meu coração, não mudais. Os meus olhos enchem d’agua.
E assim, o mal como o bem, Separemo-nos os dois :
Que inda venha a suceder, Por esses caminhos vou,
Só de vós pode nascer, Já que sabeis quem eu sou,
De vós e de mais ninguem... E eu sei muito bem quem sois.

Eu pecco por ser sincero,


E vós por não terdes leis,
Eu já não sei o que quero,
Nem sabeis o que quereis
E não ha como se esqueça,
Por maior esforço vão,
Nem vós da minha cabeça,
Nem eu do meu coração.
[ 89 ]

Um dia, quando já
Não existires, quem,

V Quem que se lembrará


De ti ? Talvez ninguem.

Lá fóra, e à deshora,
No vasto mar, que anceia,
A lua branca gira,
Nesse profundo mar,
Um violão suspira,
De um pobre grão d’areia,
Enquanto a flauta chora...
Quem póde se lembrar ?

Em vão tu te debruças
Que pois a lua gire,
Sobre a janéla, em vão...
Que o violão soluce,
Flauta, por quem soluças ?
E um outro se debruce
Porque gemes, violão ?
E palido suspire...

A tua vida é morta,


Tu, os ouvidos feicha,
Ó pobre coração,
E a tua porta ; a ti
A ti que bem te importa
Que importa a flôr que ri,
Que alguem soluce ou não !
Que importa aquella queixa?
[ 90 ]

VI

Fragmentos de alguns versos, que


se fizeram para os Desenganos, de
regresso à terra.

Foi tal a alegria minha,


Quando outro dia eu andei
Salvo nessa embarcação,
Por esses mares remotos,
Que ergui muitas vezes a alma,
P’ra me escapar, e escapei,
De joelho, a teus pés, rainha,
Que grandes e ardentes votos
Como si fosse uma palma,
Eu fiz, senhora Sant’Anna,
Que eu erguesse aqui do chão,
Que és a mãi, si não me engana,
Que eu erguesse aqui do lodo,
Mãi dos pobres pescadores,
E tão ebrio de esperança,
Dos que vivem a pescar
Que eu me ria como doudo,
Os enganos e as dores,
Chorava como criança...
Por essas ondas do mar...
Mal, porém, toquei em terra,
Vieram tamanhos damnos,
Tanta tristeza e revez,
Tanta furia, tanta guerra,
Taes foram os Desenganos,
Tantos, tantos de uma vez,
Que eu que tanto te pedi,
Sob uma estrella tão má,
Antes não viesse aqui,
Antes eu ficasse lá !

Outubro—1906
[ 92 ]

Eu sei de tudo, sei da ultima e da primeira,


E de outras mais, e sei do sangue que rolou,
Tão grande que inundou quasi a cidade inteira...

VII Mas, Voluptuoso, vê, de resto que mais queres,


Si nem plumas e nem rosas ou malmequeres,
E nem mais uma flôr, e tudo se acabou ?...

Pobre meu coração, aqui, no meu ouvido,


Conta-me tudo, vá, porém baixinho, assim,
Ó pobre Afflicto, que tens subido e descido
Tantas vezes a Dôr, uma montanha, emfim!

Cansado. Bem o sei. E ha pouco inda perdido


Por um caminho que era tragico e ruim,
A mão furada, o pé descalço, e perseguido ;
E que pena de ti, e que pena de mim !
[ 93 ]

É o descanso, e um bem, e a paz, emfim, e tudo,


E esse sorriso como flôr, e a embriaguez,
E o leito leve, e perfumado, e de velludo...

VIII E nada, e nada bom, como o doce abandono,


Esse lethargo em que vais caír, a surdez
Desse somno animal, desse profundo somno!

Vamos, meu coração, adormece de todo,


E não acordes mais, que vão te fazer mal;
Nunca, que tudo emfim é esse lodaçal,
E não é nada mais nem menos do que lodo...

Assim dormindo, olhos cerrados, desse modo,


Tua inimiga má e boa e natural,
A tristeza, não vai te perseguir, ó doudo,
Nem a tristeza e nem a alegria afinal.
Poemas
Ao Euclides Bandeira
[ 95 ]

Baucis e Filemon
E os seus vestidos que são alvos como a paz,
Tingem-se de uma côr de sangue de lilaz.
Ha de a Morte chegar um dia... E pois que bom
Ó tarde linda, ó tarde linda como Venus,
Si fosse como a de Baucis e Filemon !
Tarde de olhos azues e de seios morenos.
Ó tarde linda, ó tarde doce que se admira,
Outono. A tarde vai num carro de velludo,
Como uma torre de perolas e safira.
Lirio, rosa, carmim, e oiro, sobretudo.
Ó tarde como quem tocasse um violino.
A tarde gira, no passeio vesperal,
Tarde como Endymion, quando elle era menino.
A luminosa flôr esthetica do Mal.
Tarde em que a terra está molle de tanto beijo,
Zéfiro, vendo-a, em seus vestidos sopra assim
Porém querendo mais, nervosa de desejo...
Da flauta rude uns sons de folha de jasmim,
Tarde como no dia em que Jupiter loiro,
Uns sons de violeta e anemona e açucena,
Por amôr de Danae, desfez-se todo em oiro.
Uns sons que inda são mais leves do que uma penna,
Tarde de se caír de joelhos, por encanto,
E tão bons, e tão bons, que ao longe o mar semelha,
E de se lhe beijar a ponta de seu manto.
A subir e a descer, um rebanho de ovelha...
Ó que tarde subtil ! ó luz crepuscular !
Com rosas no jardim e cysnes a boiar...
Outono lindo, lindo... Ao longo dos caminhos,
Como sempre, elles dois, velhinhos, bem velhinhos,
Inda mais uma vez olham essa paizagem,
Que, por assim dizer, é a sua propria imagem,
Terna como elles e com seus reflexos vagos
De ternura a tremer por sobre a flôr dos lagos...

Paizagem verde, inda mais verde que um vergel,


Com abelhas, com sol, e com favos de mel...

“Que tarde linda, meu amôr, que lindo outono !


Quem me déra dormir o derradeiro somno ! ”
—“Eu tambem, Filemon,” sorrindo Baucis diz,
“Já estou cansada, vê, de tanto ser feliz ! ”—
“Ó deoses immortaes! ó piedosos céos ! ”
Mal, porém, mal porém tinham falado, quando
Pasmo viu Filemon Baucis se transformando
Numa tilia, tambem ao mesmo tempo que ella
O via converter-se em carvalho, e singela,
Saudosamente, os dois se disseram adeos ! Janeiro de 905
[ 97 ] Outr’ora aqui vibrei meus lirios de alvoroço !
A lança de ouro às mãos rutila ! à fronte o casco
De ouro a relampejar ! e moço ! e tudo moço !
Ó moço de Damasco ! ó sonho de Damasco !

Estatua
Turbilhões sensuaes de proserpinas doudas !
Cantharidas em flôr, brancas, morenas, todas
... e olhou sua mulher para traz delle:
e converteu-se numa estatua de sal. Luxurioso amei ! amei ! Eram tão bellas !
– Ó Poentes de Outono ! ó Luas ! ó Estrellas !

O salgueiro chora, Nuvem, que uma tormenta azulada de beijos


E o vento chora fino no salgueiro, Electriza, lirial nuvem dos meus desejos !
O vento chora triste... — Um Cavalleiro Na minha alma, crueis, dormem fundos espaços,
( Ia passando sem olhar ) olha e demora... Cova sinistra ! Cruz Vermelha dos Abraços !

“Ah ! — consigo murmura — Barco esguio a dançar, carregado de aroma,


Nestes caminhos lobregos, de joelhos, Sêda, purpura, arminho e velludo da Persia,
Eu caminhei por sobre incendios de loucura, —Leito brando da minha angustia e minha inercia,
Num Eden prateado e com frutos vermelhos ! Em balanço, ondulando, uma entre mil assoma.
Alva !... não n’a beijei !... Minha vida foi como E era o Anjo a açucena endoudecida no Horto,
Em choupos verdes a correr um passarinho. E a sua voz luar do Paraiso Perdido !...
Para quando guardei o acre, exquisito pomo, Luar de um cirio sobre o azul de um lirio morto...
Ó Desejo escarlate ! ó flôr cheia de espinho ? Luar de Além, do Além, além do Indefinido !...

Ora o Valpurgio !... Só, como espectro de lua, Olha. Não vendo então que via, por seu mal,
A Lembrança !... um palôr diluido em folha rubra ! O Nú... mais nú! O Nú de um nú de Apodros nuda !
Quando evitar que o tempo o marmore pollua, Um esqueleto nú !...
E o musgo cresça, e as almas frageis cubra ? E eil-o que se transmuda,
—Outra mulher de Loth—numa Estatua de sal !
Tudo em perfume se resume, que apunhala,
E a Demencia derrama em aspérges de hysópe !
—Eia pois ! eia pois ! a caminhos de opala !... ”

E o Cavalleiro tóca o cavallo a galópe.

Foge. Um Anjo, porém, melancolico implora...


Chama-o de longe um Anjo : – Olha mais uma vez !
Estas ruinas, ó Cavalleiro, bem vês,
São tua adaga de ouro e teu arnez de outr’ora !— Abril 98
[ 99 ]

Teus exercitos, oh ! as bronzeas legiões,


Morreram nos areaes da Lybia como leões !

Azar Nos teus dominios sopra o vento Noroeste :


A mangra, o gafanhoto, a secca, a alforra, a peste.

Ao Silveira Netto
Uivam ! Lobos ? o Mar ? o Vento ? o Temporal ?
Não. É a plebe que arrasta o teu manto real.

A galope, a galope, o Cavalleiro chega :


Lá vêm as três, ó Rei, lá vêm as três donzellas...
Rei, ó meu bom senhor ! com tua filha cega.
Tende piedade, meus irmãos, orai por ellas!

—Hoje, teu adivinho assim traçou no ar :


Vêm tão brancas dizer que as noras sensuaes
A fróta d’El-Rei perdeu-se no alto mar !
D’El-Rei mataram seus maridos com punhaes.

Eu, ao descer a noite, ouvi cantar o gallo :


Tuas pratas, teu oiro, e mais ricas alfaias,
Foi a Rainha que fugiu com um teu vassalo.
Roubam do teu palacio os famulos e as aias.
Teu diadema, o sceptro, as plumas e os Broqueis, Resmungam baixo teu nome as velhas, e assim
Em poeira, e sangue, e sob a pata dos corceis ! Queimam em casa, cruz ! a palma e o alecrim.

O povo reza, que doçura ! É bom que reze ! Estão rezando por ti muitos padre-nossos;
Pela tua alma... Já são horas... Quantas ?... Trêse. Os cães estão, porém, à espera de teus ossos.

Maldito seja quem Throno nem Reino tem ! Ó ventos ! ó corvos ! que estaes grasnando no ar !
Maldito seja o Rei ! Maldito seja ! Amen ! Eis o cadaver do bom Rei de Balthazar !

No vinho que te dão, e no teu melhor pomo, Dlom ! dlem ! dlom ! dlem ! Ouve, bom Rei, de serro a serro,
No manjar mais custoso, onde entre o cinamomo, Os sinos dobram, ai ! dobram por teu enterro.

Na lynfa clara, vê, no leito eburneo, sei, Ó ventos ! ó corvos ! que estaes grasnando no ar !
Nas palavras, no ar, dão-te veneno, Rei! Eis o cadaver do bom Rei de Balthazar !

Ouvem os Arlequins missa, todos de tochas, Ventos, ó funeraes ! ventos, lamentos roucos,
E estão vestidos de sobrepellizes roxas. Ó ventos roucos, ó redemoinhos loucos !
Dlom ! dlem ! dlom ! dlem ! Bom Rei, teus ossos não são teus,
Nem o teu Throno é teu ! Louvado seja Deos !

Nem a tua alma é tua, ó Rei, depois de morto,


Pois demonios estão dançando num pé torto !

Maldito seja quem Throno nem Reino tem !


Maldito seja o Rei ! Maldito seja ! Amen !

E a galope, a galope, o Cavalleiro esguio


Vai pregar a outro Reino : a Doença, a Noite, o Frio!—

Julho—1898
[ 102 ]

Tudo, tudo me causa horror. A vida, emfim,


Como um castello desabou neste momento...
Mas, ah ! que uma mulher passa a roçar por mim...

Esperança E eu esquecido já do mal que ella me fez,


Vendo-a sorrir, assim, mais leve do que o vento
Atraz della saí correndo, inda uma vez !

Entre o Odio e o Amôr, eu vivo a debater-me.


Quando não sangra o Amôr, não ruge o Amôr, porém,
Quando aos pés me não calca o Odio, como um verme,
É o Tedio quem me vê com os olhos do desdém.

E oh ! das mãos desse fauno cupido, eu inerme,


Tal que si fosse uma donzella, uma cecém,
Sentindo que me vão ferir, que vão perder-me,
Tento escapar... Em vão ! O monstro me detém...
[ 103 ]

É singular, a bruxa diz,

Bruxa É singular ; mas, ó criança,


Espera e crê. Serás feliz,
Muito feliz ! Tem esperança !
Ao Pereira da Silva

Olhei a terra, o abysmo, a estrella,


Veiu uma bruxa um dia, e eu,
A noite immensa, infindos céos :
Que nesse tempo era menino,
“Será mais bella, inda mais bella
Mostrei-lhe a mão : a bruxa leu,
Tua sorte, crê ! Serás um deos ! ”
Linha por linha, o meu destino...

Os annos têm-se sucedido


Leu tudo, leu, e após, os olhos
Numerosissimos, porém,
Cerrando, exclama : é singular !
Cada vez mais surprehendido,
Que destino cheio de escolhos,
Espero o bem e é o mal que vem.
Altos e baixos, como o mar !
Annos têm vindo de permeio, Não sei. Porém basta lá fóra
Quem fui, de certo, já não sou ; Vibrar um hymno, que sei eu !
Às vezes quasi que não creio Para que logo exclame : é a hora,
No que essa bruxa me contou... É a hora ideal, que floresceu !

Tudo uma triste mascarada, E doido, atraz dessa esperança,


Tudo illusão, tudo chimera ; Eil-o a correr : pois apesar
E pois que já não creio em nada, De conhecer que não n’a alcança,
Meu coração por que é que espera ? Quer ver si a póde inda alcançar...

Que mais espera esse infeliz,


Que inda lhe possa dar prazer,
Si tudo, tudo quanto quiz,
Completamente, hoje não quer ?
[ 105 ]

A brisa flebil, a brisa


A vel-o correr: “Olhai,

Cavalleiro Não vê onde o cavallo pisa,


Nem p’r’onde o cavallo vai ! ”

Por esses campos, ligeiro,


Não ouve a dôr, nem o choro,
Como a luz e o pensamento,
Nem a tristeza, que sei
Vem correndo um cavalleiro,
Dentro da purpura e do ouro
Cabellos soltos ao vento...
Do seu orgulho de rei.

Nem à beira do barranco


A galope, pela estrada,
Nem do abysmo se detém
É como um cego afinal,
Aquelle cavallo branco
Não vê nada, não vê nada,
Que a todo o galope vem.
Nem o bem, e nem o mal.

Ouvindo o doido tropel,


Ao pé dessa natureza,
Páram as aguas do rio:
Debaixo daquelles céos,
“Donde vem esse corcel,
Passa como a realeza,
E o cavalleiro sombrio ? ”
Como um raio, como um deos !
Tudo para elle é um desejo, Corre, corre mais ligeiro
Que arde e scintilla no espaço Do que a luz e o pensamento,
Como o relampo d’um beijo, Dia e noite, o cavalleiro,
Como o fulgor d’um abraço. Cabellos soltos ao vento...

Doidamente, doidamente, A tunica que elle veste,


No meio de temporaes, A tunica auri lavrada,
Em doido corcel ardente Tem a côr azul celeste,
Galopa cada vez mais. Os frisos da madrugada.

Galopa. Quasi se perde Mas olhe, da mesma sêda


O sinistro domador, Vestido um dia andei eu ;
Por entre a folhagem verde, E pois que lhe não succeda
Por sobre os campos em flôr... O que a mim me succedeu !

Galopa em tal alvoroço


E tamanho orgulho tem,
Que nessa corrida o moço
Não ouve e não vê ninguem...
[ 107 ] Não ha como embarcar. Do alto d’uma equipagem
Ver o mundo ! correr o mundo ! viajar...
Poder dizer que foi a Vida uma viagem,
Que começou no mar, que se acabou no mar...

Versos para embarcar


Não ha como embarcar. É d’um furor tamanho,
É d’um delirio tal que, embora nunca mais
Ao Virgilio Varzea
Se tenha de voltar—como um punhal d’antanho,
A esperança reluz, apenas embarcais...

Tudo, tudo vai mal, e tudo é uma viella,


Não ha como embarcar. Furiosos d’insomnia,
E um beco escuro, e um charco immundo, e um triste horror ;
Enervados de dôr, que ancia d’ir para além,
Pois que bom de embarcar, um dia, a toda véla,
Ó tisicos, morrer aos pés de Babylonia,
E fugir, e fugir, seja para onde for.
Nos muros de Sichém ou de Jerusalém ?

Não ha como embarcar. A vida é um navio


Não ha como embarcar. Para onde quer que seja,
Doido, a querer partir, mordendo o pé do cáes,
Para o desterro, mil perigos através,
Vélas estão a encher, sopra o nordeste frio,
Quando os meseros vão, é como olhos d’inveja
Quando é que partes, ó navio, quando sáes ?
Que eu os vejo partir, de corrente nos pés...
Sempre que avisto o mar com as ondas inquietas, Ó terras de mysterio, ó terras de mantilha,
Sempre que o vejo assim, não sei porque será, Ó terras onde o céo é como a flôr de liz,
Mas tenho as ambições mais doidas, mais secretas, Quem me déra dormir, folha de mancenilha,
Loucuras de poder inda fugir p’ra lá. Debaixo de teu manto azul d’imperatriz !

À mercê e ao furor das ondas e dos ventos, Reinos antigos, ó paizagem de romance,
Havia de correr o mar que não tem fim, Como uma rosa que fenece num jardim,
Como Ulysses ; porém, ó tragicos momentos, Ah que bom! ah que bom! de vel-os de relance,
Sem ter uma mulher que chorasse por mim ! Com castellos feudaes, com torres de marfim !

De pé no tombadilho, em frente, à minha vista, Rainhas como flôr, graciosas donzellas,


Eu veria passar o que não vi jamais, Com gestos e com voz que me causam prazer,
A não ser através dos meus sonhos d’artista : Como seria bom que, anciado para vel-as,
—Encarnações febris, diademas imperiaes... Eu as vendo uma vez, não n’as tornasse a ver...

E cegueira ideal e vã de quem se esconde, Eu não sei, eu não sei para onde fugiria,
E loucura de quem fugiu d’uma prisão, Eu não sei, eu não sei o que ia ser de mim,
E doido, sem saber de nada, nem para onde, Quem me déra, porém, que logo fosse o dia
A correr, a correr atraz d’uma illusão ! De poder embarcar e de fugir d’aqui!
Quem déra que fosse hoje ! E enquanto a nau sulcasse
De procelloso mar entre uivos e baldões,
Eu poder, sem terror, olhando face a face
O abysmo, descrever as minhas impressões !

É bem possivel que eu, arriscando na sorte,


Notasse que por fim só me saía o azar,
E o diabo, e tudo, e o mais, e tudo, e a propria morte,
E ainda tudo, porém, que ancia de viajar !

Outubro de 1903
[ 110 ] Mas, em certa noite, por desgraça d’ella,
Tamanha brilhara no céo uma estrella,

A cigarra e a estrella Tão grande, tão viva perola d’Ormuz,


De tamanho brilho, de tamanha luz,

Ao Figueiredo Pimentel
Que tudo que amava, tudo quanto d’antes
Fulgira-lhe aos olhos, como diamantes,

No bosque uma pobre cigarra vivia,


Tudo quanto vira e déra lhe prazer,
Cantando, a coitada, de noite e de dia.
Hoje não olhava, nem queria ver...

Cantava tão cheia de um vivo prazer,


Nem aquelles campos, onde o olhar se perde,
Que feliz não sendo, parecia ser.
Nem aquellas folhas, nem aquelle verde.

Cantava tão leve, tão sonóramente,


Nem mesmo esses valles, nem os alcantis,
Que até parecia mais feliz que a gente.
Onde a pobre fôra d’antes tão feliz.

Cantava cantigas do bosque e d’além,


Foi como um delirio de paixão primeira,
Que um dia aprendera sem saber com quem...
Foi uma loucura, foi uma cegueira...
Dentro desse insecto rude dos paues, Daria orgulhosa, para ser querida,
Houve como um sonho de amplidões azues... Tudo quanto tinha, coração e vida.

Foi como si d’essa região suprema Aquelles castellos, com brazões reaes
Lhe descesse um aureo, régio diadema... De orgulhos antigos, que não morrem mais.

Foi como si um manto de uma maciez E durante a noite palida, estrellada,


De plumas descesse sobre a sua nudez... Ambas conversavam, sem dizerem nada.

Ficou deslumbrada, ficou de tal geito Conversavam juntas e unidas, assim,


Que mais parecia com um doido perfeito. Ambas debruçadas sobre um varandim...

Teve tal delirio cego, que apesar Como si a existencia fosse um cysne doce,
De viver alegre, vivia a chorar. E o universo um lago murmurante fosse...

Ella que era pobre, como uma cigarra, Nem tudo na vida são rosas, porém :
Tocando de noite e de dia a fanfarra, Si ha rosas, de certo, logo espinhos vêm...

Ella que não tinha de seu um real, No meio dos sonhos e da primavéra,
Que passava fome, que vestia mal, O inverno chega, ruge e dilacéra...
Aparece o inverno, bem como um leão, Quem era esse insecto triste e sem valor
Entre as ovelhinhas brancas da illusão. Para ser amado, para ter amôr ?

Assim, muitas vezes, tal desesperança Tão cheio que fosse da sua cantiga,
Feria a cigarra com espada e lança, Valia o coitado menos que a formiga,

Que ella até pensava, triste de uma vez, Porque ao menos esta não tem fome, nem
Fazer o que Safo certo dia fez... Frio, nem sêde, como aquelle tem...

Que suspiros flebeis! que profunda magoa ! Porém a cigarra, como a alma do povo,
Os seus grandes olhos enchiam-se d’agua. Si chorava agora, ria-se de novo.

A illusão morria triste, sem um ai, Ria-se de tudo, de tudo que não
Como a gloria morre, como a folha cáe. Fossem as loucuras do seu coração.

Realmente, como donde a gente brilha, Pois sempre lá dentro d’alma de quem soffre,
Sobre tanta coisa, tanta maravilha, Guardados no fundo doirado de um cofre,

Poderia um astro ver um fanfarrão, Ha effluvios tão vagos, horas tão subtis,
Que só tinha pennas de imaginação ? Que por mais que a pobre fosse uma infeliz,
Logo que se via como que possuida Custava-lhe tudo que tinha afinal ;
Dessa onda nervosa de goso e de vida, Mas que sonho lindo, que paixão ideal !

Tamanha doçura sentia e embriaguez, Bem comprehendia que, passando o outono,


Que esquecia tudo, doida de uma vez. Dormiria logo seu ultimo somno ;

E o estridulo canto tinha o colorido Mas que bom ao menos de poder dormir
De um amôr que sabe que é correspondido... No meio de puras perolas d’Ofir...

Assim, que importava que essa brisa, em vão, Via-se torcida dentro de uma grade,
Em vão suspirasse que era uma illusão ? A prisão de ferro chamada anciedade ;

Que importava a ella que, triste ou risonho, Via-se encerrada dentro do pesar
Tudo quanto via fosse apenas sonho ? Como numa torre, sem poder voar ;

No meio das ondas furiosas do mar, Porém que loucura mais rara e mais bella
Felizes aquelles que andam a sonhar ! Do que esse delirio de amar uma estrella ?

Esse aroma doce, que a deixava langue,


Custava-lhe a vida, custava-lhe o sangue, Nov—907
[ 114 ]

E seguiria, cada vez mais bella,


Por onde quer que fosse, e onde quer,
Cada vez mais enamorado della,

Felicidade No encalço dessa flôr, dessa mulher...

Embora fossem duros os caminhos,


Ao Gonzaga Duque
Com que transporte, com que doce amôr,
Eu pensaria que eram só arminhos,
Que eram velludos, que eram como flôr...
Quem me déra que uma vez, em meu caminho,
Eu enlevado a visse pelo luar,
E que esperança doce, e que esperança,
E tal como si fôra um passarinho
Nunca teve o mundo encanto egual :
Verde, nos verdes ramos a cantar...
Eu a correr atraz, como criança,
Dessa, que corre e foge, por meu mal !
Eu deixaria o meu socego, tudo,
Sairia como um cervo, mais veloz,
E tal o meu ardor, a minha vida,
Para seguir seus passos de velludo,
Tal o delirio vão, tal o prazer,
Seu rastro, seu perfume, sua voz...
Que si mais longa fosse essa corrida,
Mais desejos tivera de correr...
Tão enlevado, pois, tão enlevado, Eu nunca saberia d’onde ella vinha,
Que quando désse acordo um dia em mim, Nem quem era tambem jamais, e nem
Quando eu olhasse, já tivesse dado Si era uma pastora ou uma rainha,
A volta ao mundo, embriagado assim... Si era uma rosa, um sonho, ou uma cecém...

Seria uma cidade, que eu não vira, Ella seria um astro, a realeza,
Com tantas torres brancas para o ar, A encarnação de tudo que aspirei,
Cidade d’oiro antiga, de saphira O pão da minha fome de belleza,
Batida pelos ventos, pelo mar... O meu orgulho, a purpura d’um rei...

Seria um sonho de cair de giolhos, Tal a belleza, o estase, o abandono,


A soluçar, a soluçar em vão, Que tivesse desejos, mas crueis,
Por seus cabellos lindos, por seus olhos, De dar-lhe um reino, pôl-a sobre um throno,
Por seu perfume, pela sua mão... E eu assim, desesp’rado, sob seus pés...

Seria um sonho ardente, um sonho lindo, Haviam de passar annos e annos,


Nunca mais, nunca mais teria fim, E sempre, sempre ella a me seduzir,
Eu a chamal-a vem! e ella fugindo, A embriagar-me sempre com os enganos,
Eu, doido, doido, ella, a chamar por mim... A musica de perolas d’Ophir...
A minha vida toda pouco amena, Oh que sorriso leve ! que anciedade !
Antes fanada como folha vã, Todo um furor banal de ser feliz,
Floresceria mais que uma açucena, De me abraçar comtigo, Felicidade,
Mais que uma rosa verde da manhã... De te beijar, mulher que me não quiz.

No encalço dessa flôr, dessa donzella, Oh que sorriso mágico ! que enleio !
O lirio e o valle e o serro e o mar e eu, Que bom ! que bem ! nunca pensei, cruel,
Fugiriamos todos atraz della, Que houvesse assim no mundo tanto anceio,
Envolvidos na tunica d’Orpheu. Reinos tão lindos, doces como mel...

E que doçura unica, que doçura E que florido céo ! que anciã ! que vago
Feita de manto e purpuras reaes, Som mavioso ! que luar ! que flôr !
E essa paixão, crescendo, e essa loucura Eu dormiria ao fundo d’esse lago,
Os braços a estender cada vez mais... Abraçado comtigo, meu amôr...

E que delirio vão ! e que delirio Tudo feneceria, como a estrella,


De eu a querer, de anciar por sua nudez, À luz forte, hyperbolica do sol,
Como si aquelle corpo fosse um lirio, Como fenece uma rainha bella,
Que se beijasse todo d’uma vez... Um sonho bom, um lirio, um rossinol.
Tudo adormeceria o mesmo somno,
Tudo por terra havia de rolar,
Como um fino crepusculo d’outono,
Como uma torre gothica do luar.

Flôres, flôres do mal, uma por uma,


E cavalleiro, e dama, e olhos fataes,
Mãos divinas, mãos leves como pluma,
E gestos lindos, gestos imperiaes,

Tudo se acabaria, ó luz tranquilla,


Ó illusão dulcíssima ! ó illusão !
E eu sempre com a esperança de possuil-a,
Mas sem tocal-a nem siquer com a mão...
[ 118 ]

Mas carcere cruel, que te fez tanto mal,


Não tornes nunca mais, ó vagabundo ideal.

Coração livre
Não tornes nunca mais, e nunca mais te illudas,
Ao tragico furor dessas coleras mudas,
Ao Augusto Rocha

A esse enojo, afinal, que tanto odio te fez,


O incoercivel horror banal da fixidez.

Ah que emfim se rompeu o ergastulo sombrio,


Livre. É poder fugir por esse mundo a fóra...
Onde estiveste preso, ó passaro erradio !
Quem mais feliz que tu, meu coração, agora ?

Rompeu-se o espesso véo dessa brutal prisão,


Livre. O espaço é teu, é teu todo esse ar :
Onde choraste, mas de dôr, mas como um cão.
É somente bater as azas e voar...

Livre agora, porém, de tudo, sim, de tudo,


Segue essa curva azul. É o caminho mais recto,
A esse carcere azul, carcere de velludo,
Ó nomade febril, ó trovador inquieto !
Livre por condição e por indole, tu O que tiver o dom soberbo de arrancar-te
Nasceste para ser como um selvagem nú. Numa explosão sincera as lagrimas com arte.

Um selvagem, porém, que tem paixão por astros, Segue. Na fonte em que beber a ovelha, em paz,
Estatuas, capiteis, columnas e alabastros... Com as tuas proprias mãos, tu tambem beberás.

Quanto me sinto bem, e como é bom saber E a arvore sob a qual dormires o teu somno,
Fugir assim, batendo as azas de prazer ! Ha de dar-te abundante os seus frutos de outono.

Ser livre para mim é tudo quanto eu amo : E que perfume bom ! Que embriaguez assim
Não ha como poder saltar de ramo em ramo. Por esse vasto céo, por esse azul sem fim !

Não ha goso melhor, seja lá como fôr, O dia é uma canção de luz maravilhosa,
Do que esse de voar de uma para outra flôr. Que se pudesse ouvir cantar por uma rosa...

Nem orgulho maior e nem gloria tamanha Segue pois, segue pois, sem saber onde vais...
Que o delirio de andar de montanha em montanha ! Nomade, o teu destino é esse e nada mais !

Olha. Não pares no teu caminho, a não ser


Só para olhar o que fôr digno de se ver.
[ 120 ]

Cavalleiro fino como um argueiro,


Com espada d’oiro, rico falbalás,
Cabelos ao vento — Palmas ! — Cavalleiro !...

Lied — Cavalleiro, não vás !

Cavalleiro triste ( ceifa a lua nova )


Ao Julio Prestes
— Que é da sua dama ? Que é do seu gilvaz ? —
Entra p’los salgueiros caminho da cova...
— Não direi que não vás !
Num cavallo branco, valles e barrancos,
Caminha p’ras guerras em tempos de paz
Plumas todo verdes, lirios todo brancos...
— Cavalleiro, não vás!

Cavalleiro andante (fulgem armaduras!)


Galopa, galopa, sob estrellas más.
Vai correr o Mundo pelas aventuras...
— Cavalleiro, não vás !

1899
[ 121 ] Logo, logo que o pae conseguia vendel-a,
Mal se via nas mãos do seu possuidor,

A fome de Erisichton Transformava-se em flôr, ou então em cadella,


Em passaro, em veado, em boi ou em pescador.

Meu coração é como esse infeliz que um dia


Mas a fome cruel daquelle esfaimado
Céres, p’ra o castigar, deu-lhe fome roaz,
Uivava como os cães, os lobos e os chacaes,
Deu-lhe uma fome tal que quanto mais comia,
Nem bem tinha engulido o ultimo bocado,
Mais queria comer e não ficava em paz.
Sangrando de desejo, ella pedia mais...

Era a fome canina, era o horror e a furia,


Davam-lhe de comer, porém, doentia e louca,
De tal maneira que todos os bens vendeu,
Queria devorar o mundo de uma vez,
E reduzido emfim a uma extrema penuria,
O olhar como um demonio, escancarada a boca,
Vendeu o que era seu o que não era seu...
Tomada de um furor bestial de embriaguez.

Desesperado até veiu a vender a filha


E tanto desejou, afinal, e tanto ella
Metra, que era, porém, uma estrella polar,
Pediu, e soluçou, e ambicionou, e quiz,
Tinha a virtude ideal, possuia a maravilha,
Que não havendo mais com que satisfazel-a,
O dom de se poder metamorphosear...
Deu em se devorar a si proprio, o infeliz !
Março—906
[ 122 ]

E envolvido na mais completa obscuridade,


Abandonado, e só, e triste, e silencioso,
Sem a sombra siquer do orgulho e da vaidade,

Gloria
Eu tiver de rolar no olvido, que me espera,
Que ao menos possa ver o palacio radioso,
Ao I. Serro Azul
Feito de louro e sol e myrto e ramos de hera !

Quando um dia eu descer às margens desse lago


Stygio, onde Charon, mediante uma parca
Moeda de estanho vil ou cobre, que eu lhe pago,
Ha de me transportar numa sombria barca…

Quando sem um signal, sem uma prova ou marca


De affeição, eu me fôr por esse abysmo vago,
Vendo que sobre mim funebremente se arca
O céo, e junto a mim esse Charon pressago…

Curitiba, 909
[ 123 ]

Por toda a cidade

Oh que ancia de Eram vozes roucas,


Uivando, por milhões de bocas,

subir hoje mesmo Os uivos tristes da ferocidade.


Dentro desse horizonte,
a Montanha ! Sem uma linha ideal,
Sem uma ponte
Para passar além daquella bacchanal,
Todo o mundo entendia que viver
I
Era gosar apenas a nudez
D’essas mulheres núas,
Sangue e lodo
Aquelle vampirismo,
E podridão,
Aquelle sodomismo,
O mundo torcia-se todo
Aquella furia doida de beber,
No meio da immundicie e da dissolução...
De se torcer de bebado nas ruas,
Carnificina,
De se enterrar no lodo d’uma vez.
Crimes os mais vis,
A immundicie foi tal
Com Messalina
Que os dois eram irmãos, o bem e o mal...
Feita imperatriz.
Mas no meio daquella escuridão Mas sem parar, os annos iam por ahi,
Em que andavam todos de rastros, E não chegava nunca a hora desse prazer
Olhando para o chão, Que cada qual sentia dentro em si,
Sem poderem erguerem os olhos para os astros, Porém sem poder ver...
Almas sentimentaes, E damnos e gemidos
Miserrimos galés Cresciam cada vez mais ;
Dessas prisões da Vida, E o odio dos feridos
Immundas enxovias, Era como si fossem uivos de animaes...
Tinham ancias brutaes,
Desesperos crueis, loucas melancolias II
De inda poder achar uma saída...
E no meio da magoa que sobrevinha, Um pastor, porém,
Os corações se abriam de repente, Com o olhar profundo,
Como janélas se abrem à noitinha, Como todo o mundo,
Silenciosamente, Que andava em Belém,
Na esperança de ver bruxolear, Tocando o rebanho
De longe, embora, ao menos, Com o seu bastão,
Mais doce do que Venus, Uma noite olhou,
A luz crepuscular... E viu, de repente,
Um brilho tamanho,
Um brilho tão doce, Dentro daquella noite assim tão erma,
Tão suavemente, Daquella noite doce de luar,
Que elle imaginou, A velhice esqueceu de que era velha,
Que nada mais fosse A enfermidade, de que estava enferma,
Do que uma illusão. E todos com o ar de quem se ajoelha,
Mas, quanto mais via, Iam como a sorrir e a sonhar...
Quanto mais olhava,
Mais lhe parecia
Que a luz augmentava, Era uma gloria, um lirio, o encantamento,
Maior que uma estrella, A embriaguez, o goso, a essencia rara,
E de tal maneira, Cada vez mais formoso o firmamento,
Que elle deslumbrado, A noite, a noite cada vez mais clara...
Doido para vel-a,
Saíu de carreira
Por aquelle lado. Era o milagre e o sonho entrelaçados,
Como se fossem rosas, como palma :
Vendo-o partir, os valles e as montanhas, Erguiam-se do leito os entrevados,
Ó que suave musica fallaz ! Os cegos viam com os olhos d’alma...
E as arvores e as flôres mais estranhas,
Tudo saíu logo correndo atraz...
A natureza, estremecida e bella, Dentro d’aquella tunica estrellada,
Despertava com essa languidez, Da tunica de prata do ideal,
Com esse olhar macio d’uma donzella Ia sorrindo sem pensar em nada,
Que amasse emfim pela primeira vez... Sem se lembrar do bem e nem do mal...

Era um sussurro harmonioso em tudo : No meio das estradas infinitas,


Os astros eram como um sorvedoiro, Dentro d’aquelle manto azul infindo,
Nos caminhos, mais doces que velludo, De umas nervosidades exquisitas,
Caíam folhas como se fosse oiro... Ia como num sonho, ia sorrindo...

O mundo quasi que a rolar de podre, Podiam atiral-o sobre brasas,


O mundo todo cheio de piolhos, Às bestas-féras, aos leões, d’um salto;
Transbordando de vinho como um odre, Que lhe importava, si agarrado às azas
Coberto de gafeira até os olhos, Elle voava cada vez mais alto ?

Levado pelos ventos da esperança Que lhe importava, a elle, o horror da magoa,
Aos serros invios e aos alcantis, A agonia da forca e a propria cruz,
Tinha sorrisos leves de criança, Si através dos seus olhos cheios d’agua
Exaltações, e sonhos infantis... Via se abrir o céo banhado em luz ?
Que lhe importava a lama e o ódio profundo Quando ouvirei dizer : — É por ali o caminho !
Com que o feriam, si elle tinha fé, P’ra o subires, porém, é uma lucta vã,
Se elle sabia despresar o mundo, Tens de sangrar as mãos e os pés naquelle espinho,
Se elle, caíndo, ia caír em pé ?... E acreditar de tarde e descrer de manhã !

Nessa estrada não ha, não ha sinão pesares,


III Uivos de fome e dôr, e feras, e ladrões,
Que depois de arrancar-te o oiro que carregares,
No meio do furôr e do meu desengano, Hão de rir-se de ti e dessas illusões...
Quando será tambem que ha de romper-se o véo,
Para mim, que sou, mais do que o povo romano, E é além d’aquelle mar, e além d’aquelle abysmo,
O homem luxurioso, e o verdadeiro incréo ? E dos ódios brutaes, e ainda talvez
Além d’aquelle horror, e d’aquelle egoismo,
E ainda além, e ainda além de tudo quanto vês...
Quando essa luz virá, que às vezes, como um beijo,
Como o fremito azul d’uma invisivel aza, Terás de recurvar, às vezes, como um vime,
De uma ancia, que sei eu, d’um secreto desejo, Essa espinha dorsal tão dura e inflexivel,
Eu sinto palpitar e quasi que me abrasa ? Para poder subir a escada do Sublime,
Para poder chegar até o Inexprimivel.
Terás de te bater com o máximo denodo, Si o puderes vencer, porém, chegando lá,
Tomado de paixão, de colera, de furia, Tua alma ha de fulgir, mas d’uma luz tamanha,
Gladio nas mãos, assim como um artista doudo, Batendo de prazer, teu coração crerá !... —
Contra o Pecado vão e a incoercivel Luxuria...
Oh que ancia de subir, hoje mesmo, a Montanha !
Tens de arrancar do seio o esplendido Desejo,
Sem piedade e sem um suspiro siquer,
Como um troféu, como uma gloria, como um beijo
Calcando sob os pés o amôr dessa mulher...

Tens de vencer, escuta, as coleras mais cegas,


O Enojo, e o Pavor, teu camarada antigo,
O Desanimo e a Dôr, a que tanto te entregas,
E a Duvida, por fim, teu peior inimigo...

Tens de arrastar na lama o manto de velludo,


E esgotar d’uma vez essa taça de fél,
E ver caír por terra o teu orgulho, e tudo,
A purpura, e a lança, e a espada, e o broquel...
[ 129 ]

Ora, morava ali, quasi à beira do mar,

Punição do hereje Um moço, um fazedor de castellos no ar...


Tinha uma velha mãe e uma joven esposa,
Ao Leite Junior
Que era como si fosse o aroma de uma rosa.
E viviam os três numa tal união
Foi no anno de mil setecentos e trêse,
Como três almas a bater num coração !
No meio do esplendor de vasta diocese.
Ellas, mettidas em locubrações tamanhas,
Perante o tribunal da inquisição feroz,
Dia e noite a tecer como duas aranhas,
Ninguem ousava erguer os olhos nem a voz.
Teciam com amôr, com singeleza e com
Era tal o terror, então, que só de vel-o,
Arte, o linho ideal, o linho puro e bom.
O sangue dos heróes se transformava em gelo.
Elle, sempre febril, mas de aspecto risonho,
Tempos nefandos de catastrofe moral,
No marmore do verso ia gravando o sonho...
Dos holocaustos e do veneno e punhal.
Mas com tal limpidez e com uma graça tal
A vileza, a traição, a vergonha e o crime,
Como um raio de sol que ferisse um cristal.
Tudo para servir a igreja era sublime.
E por isso tambem lhe corriam as horas,
Para a louvar, emfim, para a satisfazer,
Por esse vasto azul, magnificas, sonoras,
Toda abominação era um grande prazer,
Bem como um collar de pérolas a cair,
Um prazer ideal, um prazer infinito,
Perolas do Ceylão e perolas d’Ofir...
Insaciavel, mau, diabolico, exquisito...
O tribunal, porém, da inquisição não via Quando o sangrava o amôr, um ferrão que aguilhôa,
Com bons olhos crescer essa aguia que subia... Era o abbade Manuel a luxuria em pessôa.
Causava-lhe temôr, assombrações até, Mas, sem medo de errar, tambem direi, que então
Que elle tivesse genio e não tivesse fé. Era o esteio da igreja e da religião.
Mas a imaginação dos filhos de Loyola, “Que desejais de mim, senhor abbade ? ” — “Filha,
Arrastando o bordão, de burel e sacola, O nosso encontro aqui foi uma maravilha.
Para fazer o mal terrivel e subtil, Eras a ovelha ruim, que ia se desgarrar,
É mais fertil talvez e maior que o Brasil. E eu fui, por bem dizer, teu anjo tutellar.
E pois, quando passava em certo dia pela Pude agarrar-te, por um fio de cabello,
Rua a joven mulher formosissima, ao vel-a, Que por signal é de um louro acendrado e bello...
Um abbade a chamou pelo nome. Ella, assim Intervenção talvez daquelle que nos céos
Interpellada, olhou: “Que desejais de mim ? ” Tudo vê, minha flôr. Foi o dedo de Deos.
O abbade era um senhor poderoso, que tinha Hoje, pela manhã, relendo teu marido,
A ventura de ser o amante da rainha. Eu comigo pensei: eis um homem perdido !
Tinha de D. Juan a maneira cortez, Symbolico, através do symbolo, porém,
O olhar, o gesto, a voz, o manto e a languidez. Elle diz o que quer, e à cabeça lhe vem.
Com o pulso de Sansão e a garganta de Baccho, É o inimigo, pois, mais duro e mais violento
Era gordo e taful, insolente e velhaco. Que investe contra nós, porque elle tem talento.
Tinha essas frases vãs, que sempre uma mulher Mas é um doido tambem, um pobre doido, que
Acolhe com desdém, mas ouve com prazer. Não sabe contra quem está lutando, crê...
Tenho pena de ti, mas uma enorme pena, Quando Helena chegou à casa, disse tudo.
Tu não deves seguir esse maluco, Helena, O marido cingiu a blusa de velludo,
Fui eu quem te benzeu na pia baptismal, A espada ; a mãe, porém, interveiu : que não,
E os santos oleos poz e a pedrinha de sal... Que não fizesse tal, não havia razão,
Contra aquelle que o mundo e as cousas todas rege Quem o dissera foi aquelle doce guia :
Esse doido te quer arrastar. É um hereje. Não havia razão... É porque não havia!
Vamos, foge do mal, foge da tentação, Elle, cuja cerviz ninguem ousou curvar,
Entra naquella igreja e faze a tua oração. — ” De sua mãi bastava o mais simples olhar...
A moça, erguendo o olhar, lmpido como a estrella, No outro dia, porém, quasi ao romper da aurora,
Feriu o abade assim, nervosamente bella : Vieram-no chamar: que fosse sem demora...
“Si meu marido é hereje, eu não o sei, porém Sem saberem porque, despedindo-se os três,
Posso affirmar, senhor, que elle é um homem de bem ; Choraram, como si fosse a ultima vez.
Que é incapaz de fazer o que fazeis agora,
Encontrando na rua uma pobre senhora... Elle foi posto, sem piedade nem magoa,
Nunca me prohibiu de ir à igreja, bem sei, Dentro de calabouço escuro, a pão e agua.
Mas onde elle não fôr, eu tambem não irei.” O cabello cortado à escovinha e os pés
E inclinando de leve a formosa cabeça, Algemados, assim como os pobres galés...
No seu passinho curto ella seguiu de pressa.
Findava a luz do sol, como uma guerra em paz, Mas, um dia, através daquella estreita grade,
Toda vestida assim de um rôxo de lilaz. O perfil lobrigou asqueroso do abbade,
Que lhe disse: “Tu és de uma injustiça atrós, Tremulo de remorso ante o teu creador,
De uma injustiça vil para com todos nós. Confessa o teu orgulho e abate o teu furor.
Embora penses tu e a mocidade clame E antes que desça, pois, como um fogo que arde,
Que sou mau e traidor e rancoroso e infame, A ira do Senhor, que desce cedo ou tarde,
No fundo sou cristão e sou filho de Deos : Possas remediar esse peccado vil,
Sei perdoar, não sou como vocês, atheos ! Insidioso, mau, captivante e subtil,
Todo perdão, porém, sómente frutifica Fazendo que essa flôr, cuja doçura alveja,
Quando ha luz e calor e a natureza é rica. Torne como um cordeiro ao seio bom da igreja :
Assim, ó meu irmão, sobretudo é mistér Que chorando de dôr, de vergonha e pesar,
Que haja arrependimento em ti e tua mulher... Venha hoje mesmo aqui para se confessar.
Que ambos saiam do mal criminoso e tamanho Quero vel-a tremer, quero ter esse goso,
Como as ovelhas que tornam ao seu rebanho. Aos pés daquelle que é pai todo poderoso ! ”
Foi pela penna que te perdeste, pois é E calou-se, entreolhando o prisioneiro... Em vão...
Com a penna que farás a profissão de fé... Este a rugir de dôr só respondeu-lhe : cão !
Para traçal-os já com brilho, esses poemas,
Depressa mandarei arrancar-te as algemas... Mas dessa hora em diante, ó céo piedoso e justo,
Mas teu crime maior, tua condemnação Transformou-se a masmorra em leito de Procusto,
Sobretudo provém dessa irreligião, Em dilacerações barbaras de punhaes,
Que tu levaste ao lar, ao coração da esposa, Carnificina atrós, ugolina e secreta,
Que não tem mais amôr nem fé religiosa... Mais aguda do que si fosse uma lanceta...
Para lhe mitigar a sêde mais cruel, O moribundo olhou o palido rabbino,
Faziam-no sorver taças cheias de fél. Esqueletico, nú, macerado e divino :
Entre sussurros e mysticos padrenossos, “Sei que foste, Jesus, uma espada em favor
Trituravam-lhe a carne e quebravam-lhe os ossos... Da justiça, do bem, da luz e do amôr ;
De tal modo que em breve esse pobre infeliz Hoje, porém, estás do lado do carrasco,
Não foi menos nem mais do que uma cicatriz, Dos que me fazem mal, dos que me causam asco :
E nem menos nem mais do que um triste esqueleto, Não te posso querer, sincero como sou ! ”
De longas mãos febris e de olhar inquieto... E virando-lhe a face, em verdade expirou.

Vendo o verdugo, emfim, numa dessas manhãs,


Que as torturas brutaes não tinham sido vãs ;
Vendo que finalmente a luz dessa candeia,
Sob o vento feral da morte bruxoleia,
Como um requinte mau, jesuitico, feroz,
Alçando o olhar, erguendo as mãos, erguendo a voz,
Elle fala do céo, triumfalmente bello,
Lembra que a vida é um sonho, e a morte um pesadelo ;
E antes que de uma vez se apagasse essa luz,
Deu-lhe para beijar o corpo de Jesus.
Fevereiro de 909
[ 134 ]

E, sobretudo, que acto breve


Dessa tragedia para rir...

Canção do Diabo Quando de leve, pois, de leve,


Senti a porta se entreabrir...

Aqui, um dia, neste quarto,


O quarto todo illuminou-se,
Estava eu a ruminar,
Mas de uma claridade tal,
Mas como um ruminante farto,
Como si fosse dia, e fosse
O tedio amargo, o atrós pesar...
Dia de festa nupcial.

O vento fóra pela noite,


E um vulto, bem como um segredo,
Demonio que blasfema em vão,
Mais bello do que uma mulher,
Cortava rijo como o açoite,
Sorriu-me assim : “Não tenhas medo,
Uivava triste como um cão.
Eu sou o archanjo Lucifer.

Eu meditava quanto a vida


“Tremulo de um pavor covarde,
Me foi cruel, me foi cruel :
Fugiste-me sempre, porém
Suppuz que fosse uma bebida
Sabia eu que, cedo ou tarde,
Doce, mas foi veneno e fel !
Serias meu, de mais ninguem.
“Que, ó meu querido, e pobre artista, “Teu coração, alma anciada,
Todo a fazer teu proprio mel, Teu coração, como um Romeu.
Tu sempre foste um diabolista, De tanto se bater por nada,
Um anjo mau, anjo revél. Não sei como inda não morreu.

“Ora, fugiu-te a primavéra, “Teu coração, um catavento,


E os derradeiros sonhos teus : De cá p’ra lá sempre a bater,
O céo, a mais banal chiméra, Só encontrou o enervamento,
Teu proprio Deos, teu proprio Deos. E a masc’ra do falso prazer.

“A sorte, mesmo, a prostituta, “As damas, bem como um cavallo,


Inda mais núa que Laís, Sobre esse coração d’abril,
Funambulesco ser, escuta, Passaram, quasi sem olhal-o,
Quiz todo o mundo ; e a ti não quiz. Nem abraçal-o, poeta subtil.

“O seio abriu, que tanto exhala, “Ninguem te amou, nem pôde amar-te,
Ao proxeneta e ao ladrão ; Nem te entendeu, ser infeliz,
A ti, porém, indo beijal-a, Mas eu, ó triste lirio d’arte,
A femea torpe riu-se : não ! Sempre te amei, sempre te quiz.
“O teu furor pela belleza, “E disse : aquelle é meu, aquellas
Indiferente ao bem e ao mal, Magoas cruéis são minhas, eu
Desoladora guerra accesa, Vou levantal-o até as estrellas,
E sobretudo odio infernal ; Até a luz, até o céo...

“A tua esfaimação de oiro, “Vou lhe mostrar reinos de opalas,


A sêde de subir, subir, Tantas cidades ideaes,
Além daquelle sorvedoiro Que ha de querer talvez contal-as,
D’astros e perolas d’Ofir ; Sem as poder contar jamais.

“O orgulho teu, furioso grito, “Vou lhe mostrar torres tão grandes,
Luxuriosamente cruel, Torres de ouro e de marfim,
Crescendo para o infinito, Cem vezes mais altas que os Andes,
Como uma torre de Babel, Tantas, tantas, que não têm fim.

“Orgulho infindo, orgulho santo, “E toda a glória minha, toda,


E diabolico, bem sei, A elle, cuja imaginação
Que tanto horror tem feito, tanto, Inda é mais rica e inda é mais douda
Ah! eu somente o escutei. Do que a do proprio Salomão.
“Vendo-o descer a encosta rude “Hei de lhe dar uma tão rara
Dos annos maus, o elixir Virtude, que baste elle olhar,
Eu lhe darei da juventude, Basta querer sómente, para
Que o faça rir, que o faça rir... Que o vento acalme e a voz do mar.

“Que é só bebel-o, e embora exhausto, “E hei de fazel-o de tal modo,


Embora quasi morto já, De tal fluidez, que elle por fim,
O triste e magro doutor Fausto O ser humano, o limo, o lodo,
Reflorirá, reflorirá ! Se torne bem igual a mim.

“E ha de subir comigo, um dia, “E tudo só para offuscal-o,


Ha de subir comigo, a pé, P’ra encantal-o, tenho, e lhe dou:
Por essa longa escadaria, A minha espada, o meu cavallo,
Que sóbem só os que têm fé. A minha gloria... E aqui estou.”

“E eu, o flagello, eu, o açoite, Olhei. Brilhava-lhe na fronte


Eu, o morcego, o diabo, cruz! A estrella d’oiro da manhã,
Estranho principe da noite, Como num limpido horizonte :
Hei de inundal-o só de luz ! — Eu serei teu irmão, Satan !
907
[ 138 ]

Seriam negros ou doirados os cabellos ?


Junto daquella flôr, tremeria de zelos ?
Não tombaria morto aos pés desse prazer ?

Entre essa irradiação Os olhos de que côr ? Não sei. Porém supponho
Que seriam assim tão grandes como um sonho...
Mas já passei a vida, e não a pude ver !
Ao Emilio de Menezes

Entre essa irradiação enorme, que palpita,


É possivel que um dia, eu, palido, a encontrasse,
Como a sonora luz de Venus Afrodita,
Em meio do caminho, os dois, e face a face...

E que allucinação e que febre exquisita,


Que cegueira de amôr e que illusão fallace,
Quando esse girasól, para a luz infinita,
Cá de dentro de mim, então, desabrochasse !
[ 139 ]

Nunca corri no campo o veado ou a lebre,

Uma carta E nem mesmo atirei uma simples perdiz,


Mas quando entrei na luta, eu me bati com febre,
Bati-me como um bravo, e saí-me feliz.

— Eu te escrevo esta carta, in extremis, Maria,


No meio da reféga e da fumaça espessa,
Deitado aqui por sobre um catre d’hospital,
Num crepusculo de betume e vermelhão,
O corpo exangue, os pés gelados, a mão fria,
Fluctuavas sobre mim, sobre a minha cabeça,
E reflectindo bem, não sei si faço mal.
Como si acaso fosse o proprio pavilhão.

Tu te recordas, pois, dessa tarde ? Eu me lembro


Dentro em pouco, tambem, o meu perfil tamanho
De tudo. Foi ao pé de uma giesta em flôr...
Destaque illuminou, de tal maneira que
Eu te beijei as mãos, o cabello... Dezembro
Julguei ser um heróe, mas um heróe d’antanho,
Ardia, enquanto nós mudavamos de côr...
De pluma e capacete e lança e boldriê.

Como sabes, parti noutro dia, bem cedo.


Mas, hontem, ao sair de casa, um camarada
Era preciso ter um nome ! Eu me alistei
Trouxe-me para ver as linhas de um jornal
Entre os que iam talvez morrer nesse degredo,
Que falava de ti. Olhei. Não disse nada.
Em defesa da patria e em nome de seu rei.
Mas para não caír agarrei-me ao portal.
Quando me vi a sós, tambem, d’ahi a pouco,
Tive desejos maus de estrangular alguem,
De te calcar aos pés, de fazer como um louco :
Bater-me contra dez, bater-me contra cem.

Era a hora em que o sol, como um ladrão, se esconde


Por traz dos serros e para longe de nós :
Tomei a minha espada e caminhei para onde
Eu sabia que estava o inimigo feroz.

Desafiei-os : cinco assaltaram-me, em guarda !


Eu queria morrer nesse combate, sim,
Com a graça, porém, de quem veste uma farda,
E tem orgulho de ser um espadachim.

E de facto, que sei ? após alguns minutos,


Vibraram-me no peito uma lança, caí
Sob os alfanges nús desses cosacos brutos...
Mas que importa afinal, si vou morrer por ti ! — Sitio dos Pinhaes, novembro — 909.
[ 141 ]

De paiz em paiz, de cidade em cidade,

Sombra Como um doido a tremer de infinita piedade...


E sem que saibas que eu estou presente, emfim,
Eu te possa sorrir, quando penses em mim,
Ao Leoncio Correia
Mas como nevoa em torno à palidez da Lua,
E sombra, e nada mais do que uma sombra tua...
Um dia, hei de partir, e tu has de ficar,
Como uma véla que se perdesse no mar,
A cada passo, então, hei de te acompanhar,
Por entre o nevoeiro e a cerração escura...
Como uma especie de genio familiar.
Has de ficar aqui, ó fragil creatura,
Eu hei de te seguir, eu que por meus peccados
Atirada aos baldões crueis da sorte má,
Só tenho percorrido os caminhos errados
Ora de lá p’ra cá, ora de cá p’ra lá...
Nessas estradas, mais subtil do que um ladrão,
Como se conduzisse um cego pela mão...
Tão atrós ha de ser, porém, tão exquisito,
Eu sei o que é um abysmo e conheço o perigo,
Tão despedaçador esse horroroso grito,
Onde fôres pisar, hei de pisar contigo.
Vibrado de través dessas torres de ar,
E a dôr que te ferir ha de ferir-me, pois,
Que onde quer que eu esteja, ha de me traspassar,
De modo a nos ferir, ao mesmo tempo, os dois.
Ha de ferir-me assim com tal desolação,
Quando soprar a dôr, quando rugir o vento
Com um desespero tal que hei de correr então
Sobre a tua alma em flôr, num descabellamento ;
Quando o desgosto assim, num gesto mau, talvez, Eu não creio no amôr, o amôr é um mysterio.
Te prostrar como si fosse uma embriaguez ; Debatendo-te ahi, toda, de norte a sul,
Quando quizeres te lançar ao fundo d’agua Nunca, nunca verás esse passaro azul...
Do desespero ou então aos açudes da magoa,
Recorda-te de mim e de quanto eu te quiz, E havemos nós de andar assim, annos e annos,
Não por seres feliz, mas sim uma infeliz. Por entre enganos mil e outros mil desenganos.
E eu sempre a te illudir, e eu sempre a te embalar
E has de ouvir minha voz no meio do caminho: Sobre as ondas do mar, do encapellado mar.
Não toques nesse pão, não bebas desse vinho ; E um dia, quando emfim, caíndo de fadiga,
Foge dessa tristeza, afasta esse pesar, Quizeres descançar, descança, minha amiga.
Não chores, meu amôr, que me fazes chorar. São horas de dormir, o somno não faz mal,
Não creias nesse olhar luminoso e risonho : E eu hei de te fechar os olhos afinal.
Não ames, que o amôr não é mais do que um sonho. Quando o somno vier, não faças cerimonia,
Quando essa taça um dia alguem te offerecer : Que a vida não é mais do que uma longa insomnia.
Toda de oiro a ferver espumas de prazer, Quando o somno vier descendo por ahi,
Que nem siquer o teu labio de leve a oscule. Eu não te acordarei, não chamarei por ti.
Faze mais do que fez aquelle rei de Thule : Vendo-te adormecer, as mãos em cruz no peito,
Quebra essa taça em mil pedacinhos, e após Nesse frio lençol envolta sobre o leito,
Lança os restos ao mar, de uma maneira atrós. Depois de te beijar os cabellos reaes,
Eu te amo, meu amôr, porém falo-te serio : Sabendo que jamais hei de te ver, jamais ;
Depois de te beijar as tranças velludosas,
E pôr no teu caixão os lirios e as rosas,
Eu volverei de novo, ó minha doce irmã,
Eu sombra e nada mais do que uma sombra vã,
Para esse Orco profundo e região infinita
Onde entre sombras vãs a minha sombra habita.

Dezembro – 1909.
[ 144 ]

Findou-se a tarde. Anoiteceu. A Lua,

Tristeza Toda lavada em rosas de prazer,


Vinha como de um banho, vinha núa,
Ao Alves de Farias.
Vinha prateada e limpida a escorrer...

Era de tarde. Estava aqui sósinho,


Eu nunca ouvi cantiga mais amena,
A mão por sob a face, a mão assim,
De uma melancolia mais ideal ;
Quando, me vendo do alto, um passarinho
Era de tal brandura, de tal pena,
Pensou que eu era um ramo, e veiu a mim.
De tal doçura que fazia mal !

Veiu. Desceu. Porém tão de repente,


Deixava-me no ouvido aquella trova
Tão subtilmente, tão suave — que eu,
Não sei que sonho doido de embriaguez :
Si já não fora um coração descrente,
Era como si alguem me abrisse a cova,
Pensava que do céo é que desceu...
E enterrasse-me vivo de uma vez...

Veiu. Poisou aqui, tremulo e brando,


Caía-me aqui dentro, aqui no seio,
Aqui por sobre mim, neste lugar,
Como uma grande luz crepuscular,
Neste meu coração quasi chorando,
Sem que eu soubesse d’onde foi que veiu,
E logo que poisou, pôz-se a cantar...
De que sombria região polar.
Eu era como um monge, um pobre monge, Quanta desillusão que ella me trouxe !
Dentro da minha desesperação, Quanta amargura, quanto horror cruel !
Que caminhasse para muito longe, Nesse gorgeio doce, muito doce,
Para o exilio, para a solidão... Havia travos de veneno e fel.

E tão inquieto eu ia, tão enfermo, Pungia tanto o meu pesar ardente,
Tão desolado, que fazia dó : Era tão mudo e despedaçador,
O caminho era funebre e era ermo, Que soluçando torrencialmente,
E eu ia, eu ia, horrivelmente só ! Não aliviaria a minha dôr...

Era tamanha aquella doida magoa, Eu sentia que havia no meu rosto
Que eu não podia, não podia mais, Essa exquisita côr feita de cal,
Os meus olhos se annuveavam d’agua, Esse marmore frio do desgosto,
Vendo passar meus proprios funeraes ! Esse palôr, esse palôr mortal !

Sobre o meu coração, fria, gelada, E a noite toda, o alegre passarinho


Descia a nevoa de uma dôr sem fim, Cantou, cantou, falou com a sua voz,
Como si fosse a mão que brande a espada, Ora, velludo e sêda, oiro e arminho,
Mão terrivel e triste sobre mim... Ora, nervos e dôr, violenta e atrós.
Falou de tudo quanto succedera, E que soluço, que se não acalma,
Com accentos nervosos e febris ; Que magoa intensa, que furor, emfim !
Era macia a voz, era de cêra, Quem teria morrido na minha alma
Mas como me tornava um infeliz ! Para que o coração chorasse assim ?

Como essa voz tinha ferocidades, Debaixo dos estigmas da tristeza,


Como era esfomeada e era voraz ; Eu me via mais triste do que Job,
Eu lhe rogava em meio de anciedades, Esse que o mundo com pavor despreza,
Que me deixasse, me deixasse em paz. Mais ulcerado, mais infame, e só.

E que caminhos tristes ! Que avenidas Era como si eu fosse, em noite escura,
Longas ! E que silencio tumular ! Rio das mortes a rolar, em vão,
É por aqui que passam os suicidas, Aquellas minhas aguas de amargura,
Quando vão para o ermo se enforcar. Tintas do sangue da inquietação.

E que sombrios alamos, que choro, E elle a cantar ! E eu anciado : quando


Que desespero, que afflicções brutaes ! Ha de esta ave partir, ha de voar,
Onde me levas tu, ó mau agouro, Ha de deixar-me a paz, o somno brando,
A que trevas e antros infernaes ? O somno leve, que perfuma o ar ?
Quando me has de deixar, musica langue,
Ó veneno subtil, ó embriaguez,
Tu que me estás bebendo todo o sangue,
Nervosissimamente, de uma vez ?

Mas de repente, assim como de um ninho,


Eil-o a fugir de mim ! Mal eu dei fé,
Já me havia deixado aqui sósinho,
E triste, triste, inda mais triste até !

Raiara emfim o rosiclér d’aurora,


Esse candido albor: olhei p’ra lá,
Para as bandas, por onde fôra embora,
E ó que saudade ! Quando voltará ?
[ 148 ]

Durante uma enfermidade Quem poderá saber ? Apenas sei,


Quer seja uma rainha, quer um rei,
Ao Rocha Pombo

Que elle é bem como alguem, coitado, quando


Quem poderá saber ? quem sabe lá
Soffre, não se contém, e vai falando...
D’onde viria aquelle sabiá ?

Chegou a hora triste, a hora santa,


Quem poderá saber o que elle tem,
Aperta-lhe a saudade e elle canta...
E o que lhe dóe, que o faz cantar tão bem ?

Eu que conheço a hora do pesar :


Que penas serão essas dentro da alma,
Venho, sento-me aqui, fico a escutar...
Que por mais que elle as diga, não se acalma ?

E de tanto que já o tenho ouvido,


Seria um rei o pobre, ou uma rainha,
Entendo o que elle diz pelo sentido.
Que de uma vez perdeu tudo o que tinha,

Ora são esses bosques ideaes,


E não sabendo mais onde o ganhar,
Essa frescura e não acaba mais...
Pôz-se a chorar, quero dizer, cantar ?
Ora os campos em flôr, e aquella magoa, Durante o tempo em que eu estive doente,
E aquella fonte com soluço d’agua... Foi um amigo, verdadeiramente.

Às vezes, a saudade e a embriaguez Tão bem me traduziu o coração,


Desses caminhos que elle um dia fez, Que foi mais que um amigo, foi irmão.

Dessas corridas, desses vôos doidos, E ó que irmão que elle foi, como não ha,
Dessas loucuras que fazemos todos, Eu a soffrer d’aqui, elle de lá !

No meio dos silencios mais sombrios, Até me pareceu que adivinhava:


Dos grandes ermos, dos profundos rios... Quando eu estava triste é que cantava.

Ora aquella dolencia, penso eu, E eu por triste que fosse, quando o ouvia,
Que só de imaginar que já morreu... Era com arrepios de alegria.

Que em sua terra, todo o mundo agora É que elle, à semelhança d’um poeta,
Até seu proprio nome já ignora... Mesmo cantando a magoa mais secreta,

Já não se lembra d’elle mais ninguem, Tinha sempre o seu modo de a dizer,
Nem para o maldizer, nem dizer bem... Que em vez de magoar, dava prazer...
Eu sei, porém, eu sei que o pensamento Nesses profundos lagos de cristal,
Inda é mais leve do que o proprio vento, De uma scintillação quasi ideal,

Mais leve do que a luz e do que som; De uma scintilação maravilhosa,


Sei que me vendo inteiramente bom Como si fossem lagos côr de rosa,

Hei de esquecer-te coração querido, — Melancolica, assim, cheia de magoa,


Como de resto tenho-me esquecido Longa e perdida lá no fundo d’agua...

De tanto sonho bom, por esse mundo,


De tanto sonho que dormiu no fundo,

Bem lá no fundo virgem do meu ser,


Sem que o pudesse mais tornar a ver :

Tal que si fosse a minha propria imagem,


Que eu, em caminho, um dia, de passagem,

Deixasse por ahi a reflectir


Nesses lagos de perolas d’Ofir,
[ 151 ] Ah que doce frescor ideal de mocidade !
Para vel-os assim foi que se fez o mundo,

Para os que se amam A alegria, o prazer, o ruido, a cidade,


A poesia, o luxo, aquelle céo profundo...
Ao Americo Facó

Para gosar o amôr dessas crianças, vel-as


Sobre esse lago azul, que um sussurro de brisa
Os labios confundir no mesmo sorvedouro,
Aquebranta de amôr e encrespa de desejo,
A noite se enfeitou de arrecadas de estrellas,
Curvo e leve um batel docemente deslisa,
E pôz sobre a cabeça um diadema de ouro...
Vélas a palpitar radiantes como um beijo...

Primavéras em flôr brotaram de repente,


Dentro, amoroso, vê, um casal se entrelaça,
Como romãs ideaes, bocas luxuriosas,
E enquanto sobre o azul dessas aguas quietas,
E floriram canções madrigalescamente,
Voga o batel, os dois, com o mesmo ardor e graça,
E encheram-se os jardins de lirios e de rosas...
Beijam-se, como faz um par de borboletas.

Ó que fremito bom, que beijo, e que alvoroço,


Amam-se. E em de redor do lago, que se ondeia,
E que sonho ideal, e que roseos matizes !
Como uma flauta, que soluçasse em surdina,
Não ha nada melhor do que ser bello e moço...
Pelos ramos em flôr um passaro gorgeia,
E ancioso sobre os dois o proprio céo se inclina.
Senhor, vamos rezar pelos que são felizes !
[ 152 ]

A boa estrella
Ao Aluizio França

Em criança, um dia, consciencia pura,


Mostraram-me a estrella da minha ventura.

Anciado e doido, corri para vel-a...


E vi-a. Que linda, que doirada estrella !

Lembra-me : mais tarde, consciencia langue,


Olhei-a. Ella estava coberta de sangue...

Afinal perdido de todo, quiz eu


Inda olhar e vel-a. Desappareceu....

1900
[ 153 ]

Mas ao menos, ouvi, e eu por isso me inflammo,


Para que todos que Que do fundo do meu recolhimento eu possa
Palidas mãos erguer e supplicar a vossa
eu amo sejam felizes
Magnificencia real para aquelles que eu amo.

Eu sei que o meu destino é como aquella espada


Que não sendo feliz, ao menos possa vel-os
De Breno a reluzir sobre minha cabeça,
Felizes, a gosar o prazer que não pude :
E por isso tambem, porque nada mereça,
O aroma dessa flôr de liz da juventude,
Ó deoses, para mim eu não vos peço nada.
A alegria de ser sempre moços e bellos.

Tudo que vier é bom : esta melancolia,


Sim, permitti que o mal que tenha porventura
Esta tristeza atrós, esta invasão de magoa,
De um dia os abater, como victima imbelle,
A tortura que me faz tremer os olhos d’agua ;
Caia por sobre mim, que eu sei que tenho a pelle
Tudo que vier é bom: é porque eu merecia.
Sobre os ossos, porém, insensivel e dura.

Bendita seja, pois, a mão que me assassina,


E unidos, como si fosse num longo beijo,
Bendito o que me fére e o que me apunhala,
Doce, espiritual, anciosamente mudo,
E encheu-me de pavor os caminhos de opala,
Não comprehendam jamais dentro desse velludo,
E fez caír os meus castellos em ruina...
Dentro desse prazer, dentro desse desejo,
Que ha serpentes crueis e babas de serpente, E sobretudo que, mais verde que uma palma,
E monstros, e reptís, e charcos, e venenos ; Tragam o coração, em flôres de giesta,
Mas simplesmente, olhai, mulheres como Venus, Sempre aberto, a florir para uma grande festa
Bellezas ideaes, beijos unicamente ! Dentro desses salões ariadnicos d’alma.

Que sobre elles, assim como uma aureola em brasas E possam sempre ouvir o amôr quando segréda,
Possa resplandecer o sonho de tal modo Mas assim como si fosse um suspiro apenas,
Que nem toquem siquer com os pés sobre o lodo ; Essas canções em flôr, languidas açucenas,
Por isso que sonhar é o mesmo que ter azas... Entre os álamos nus de sombria alameda...

E que bem como faz à tarde uma andorinha, E não vejam sinão a doçura da vida,
De um para outro paiz, em vindo a primavera, E não ouçam sinão o fresco idyllio eterno :
Emigrem : que isso foi minha melhor chiméra, Primavera, verão, outono, e o proprio inverno,
E eram essas tambem as ambições que eu tinha. Como quem vive ao pé de uma mulher querida.

E transpondo esse mar, que brame e ruge e espelha, E sabendo que são puramente bondade,
Julguem sempre, a sorrir, que tudo é um sonho vago, Alegria, e canção, e luz, e alvoroço,
E que esse mar não é sinão um doce lago, Não queiram ser jamais esse monstro e esse poço
De ondulações azues e bom como uma ovelha. Que sou, e sempre fui, de orgulho e de vaidade.
E tudo seja pois tão saboroso e rubro
Pomo, que de maduro em favos se derrete,
Tão azulado o céo, mas d’um azul ferrete,
Calido a enfebrecer de raiva o mês d’Outubro.

Que elles possam achar quasi aos oitenta annos,


Envelhecidos, mas com o labio risonho,
Que a existencia lhes foi mais breve do que um sonho,
Taes as venturas e tão grandes os enganos...

E um dia quando emfim, de longinquos paizes,


Chegar a morte, bem como uma dura algema,
Que elles possam dizer nessa hora suprema :
Glória aos céos imortais, que fomos tão felizes !
[ 156 ]

E de leve, em redor do meu leito fluctuas,


Ó Demonio ideal, de uma belleza louca,
De umas palpitações radiantemente nuas !

Súcubo Até, até que emfim, em caricias felinas,


O teu busto gentil ligeiramente inclinas,
E te enrolas em mim, e me mórdes a boca !

Desde que te amo, vê, quasi infallivelmente,


Todas as noites vens aqui. E às minhas cegas
Paixões, e ao teu furor, nynfa concupiscente,
Como um súcubo, assim, de facto, tu te entregas…

Longe que estejas, pois, tenho-te aqui presente.


Como tu vens, não sei. Eu te invoco e tu chegas.
Trazes sobre a nudez, fluctuando docemente,
Uma tunica azul, como as tunicas gregas…
[ 157 ] Sem ver mais nada, sem ter olhos nem ouvido,
Cego, completamente cego, e aturdido,
Dentro dessa visão inquietamente bella

Versos doirados Que fulge como si fosse a luz de uma estrella...


E distante afinal de todos e de tudo,
Envolto no ouro de um silencio de velludo,
La beauté est une promesse de bonheur.
Coroado, como um deos, dos pampanos de enganos
STENDHAL
E das rosas em flôr dos vinte e poucos annos,
Radiante de me ver, sósinho, ao fundo desta
Solidão, como quem entra um palacio em festa,
Eu não te posso ver, que não sinta o desejo
Que bom de me entregar num extase risonho,
De te envolver assim num luminoso beijo,
Num extase sem fim, num extase de sonho,
Num grande beijo nú, a pelle setinosa,
À lembrança, à loucura, à volupia exquisita,
De uma frescura ideal de petalas de rosa...
Ao luxo de sentir que uma mulher bonita
E tamanho prazer o coração me inunda,
Tem no expressivo olhar, que brilha quando passa,
Em te vendo, de luz, de embriaguez profunda,
O dom de offerecer, como uma fina taça,
Que doido esse amôr, bebado desse vinho,
Para os meus olhos nus, por um instante ao menos,
Não sei mais onde estou, não sei onde caminho.
Os delirios do amôr e da embriaguez de Venus!
Sigo. Vou por ahi, pela deserta rua,
Sem ver que anoiteceu e que nasceu a lua,
Janeiro—911
[ 158 ] Muito mais ! muito mais ! O meu amôr é tal
Que o bem de te querer, às vezes, me faz mal.

À Toi !
Causa-me raiva até e me deixa doente :
Fico a chorar e a rir, mas incoherentemente,

É num dia de sol que te escrevo esta carta,


Sem poder definir o que é que eu sinto, emfim,
No meio de uma luz radiosamente farta,
Francamente, a não ser que eu nunca amei assim.

Loira, secca, subtil, aromada, ideal,


Nunca ! Tu para mim és como uma bebida,
Assim como si fosse um vinho oriental.
Onde, um dia, eu encontro a embriaguez e a vida,

Escrevo-te ao correr da pena, quasi a esmo,


E noutro, o desespero, a tragedia cruel,
Como vivo afinal : tão fóra de mim mesmo...
A duvida sombria e amarga como fel...

E confesso-te, flôr, ó doce flôr de liz,


É que somente tu tens a força marmorea,
Que te escrevo porque não me sinto feliz.
O condão, o poder, a belleza e a gloria,

Eu te amo, vê, porém eu te amo de tal arte


De transformar-me assim, com os teus olhos nus,
Que te amo muito mais que deveria amar-te.
Maravilhosamente, ou em lama, ou em luz.
E por isso, tambem, ó flôr abençoada, Essa tristeza vã, esse hysterismo todo,
Em te vendo passar, não quero ver mais nada. Tudo isso é só porque te quero como um doido !

Tão radiante me vejo, e tão feliz, direi,


Como si fosse rico ou me tornasse um rei.

Hoje, porém, não sei que sombras e que magoa


Perpassam-me através dos olhos rasos d’agua.

Synfonias de luz andam vibrando no ar,


Mas eu, não sei por que, eu quasi a soluçar

Sinto que a destruição, o tédio e o desengano


Me invadem como si eu fosse o imperio romano.

Ando nervoso, mau, doente, quasi hostil,


Debaixo deste céo mirifico de abril.

E, volupia imortal, delicioso beijo,


Prazer que me destróe, ó rutilo desejo,
[ 160 ]

Sei que os votos que são trabalhados com arte


Hão de os deoses cumprir, ó luz maravilhosa :
— Sê, pois, bemdita, sê bemdita em toda parte !

Graças te rendo... Que onde fôres pisar, que por onde tu fôres:
A lama se transforme em petalas de rosa,
As viboras, em fruto, e os espinhos, em flôres !

Graças te rendo aqui, preciosa Senhora,


Que num simples olhar de ternura, tiveste
O dom de me elevar, assim como o fizeste,
Entre os brazões do amôr e as púrpuras d’aurora...

O dom de me fazer acreditar que veste


O humano coração, como acredito agora,
Não o lodo, porém o linho que se adora,
O linho que fulgura em pleno azul celeste...
[ 161 ]

Ai da nynfa culpada, albor de neve,


Por mais joven que fosse, por mais bella,

Adulterio de Juno Ia mudar em corça dentro em breve,


Quando não fosse pois numa cadella !
Ao Reinaldo Machado.

Juno, porém, tamanho orgulho tinha,


Un paysage, c’est um état d’âme.
AMIEL Um tamanho amôr proprio desmarcado,
Na sua aurifulgencia de rainha,
I
Que nem por isso dava um passo errado.

Juno, a belleza em flôr da primavera,


Por toda parte palpitavam beijos,
Mas a deosa de olhar quasi sombrio,
Mais lindos do que a flôr do asfodelo,
Quando tinha ciume, era uma féra,
E os desejos mais soffregos, desejos
Mais furiosa que uma loba em cio.
De despir esse corpo e de mordel-o...

Cada vez que esse Jupiter tonante


Vendo-a através do linho, que fluctua,
Se transformava numa chuva de ouro,
A mocidade grega sempre fatua,
Para as conquistas de uma nova amante,
Não podendo morder-lhe a espadua nua,
Num alvo cysne, ou simplesmente em touro,
Babujava-lhe o marmore da estatua...
Venus era a primeira a dar-lhe o exemplo
De quanto vale uma mulher devassa : II
O seu templo de amôr não era um templo,
Era uma tasca e Venus, uma taça... Vivendo sempre só quasi que todo dia,
Tinha apenas comsigo uma única alegria.
O Olympo emfim era uma borracheira, Toda linda manhã de sol saía de casa,
Era uma gargalhada, um grito insano ; Ligeira, como quem é uma deosa e tem aza.
Foi só para enganal-o a vida inteira E dentro do seu coche azul, clara e florida,
Que Venus se casou com o deos Vulcano. Levada por pavões, corria a toda brida.
Era um vôo através de campos verdejantes,
Via o infiel correr, ebrio de vinho, De palmeiras gentis, serros de diamantes,
Nayades, hamadryades, e tudo Cidades ideaes, como lirios na fralda
Quanto encontrava sobre o seu caminho, De uma montanha de perolas e esmeralda,
Como si fosse um satyro cornudo. Rios, valles em flôr, floresta colossal,
Lagos polidos como espelhos de cristal,
Via-se desejada como a femea Nesse doirado mês de outubro, o mês risonho;
Cujo perfume era o da propria rosa, E ella passava assim como si fosse um sonho.
Sua unica irmã, sua irmã gemea,
E entretanto teimava em ser virtuosa. Nessa manhã, porém, de uma estranha belleza,
Juno quiz passeiar, como qualquer burgueza.
A sandalia nos pés, a fronte coroada, III
A tunica sobre o corpo nú, e mais nada.
Maspor simples que fosse a deosa, no momento Ia indifferente,
Quasi triste, quando
Em que ella aparecia, era um deslumbramento. Olha, e de repente,
Onde quer que pousasse o exquisito velludo Como que sonhando,

Daquelle doce olhar, estremecia tudo. Ella vê dormindo,


Num somno profundo,
Era como uma luz. A natureza, quasi O pastor mais lindo
Ebria, não tinha mais que uma unica frase, Que havia no mundo.

Não tinha mais que uma só exclamação, Sorpresa de vel-o


Bello desse modo,
E o extase, o silencio, o goso, a adoração.
Beija-lhe o cabello,
Vendo-a passar por sobre as suas hastes em flôr, Quer beijal-o todo...

Inquietas de prazer, e hystericas de amôr,


Um passaro :
Diziam a sorrir languidas açucenas :
— Ó flôr mais branca do que a flôr da laranjeira !
“Quem passou por aqui foi uma sombra apenas ! ”
Ia Juno, porém, de tal modo mettida
Outro passaro :
No fundo do seu eu, da sua propria vida,
— Só faltava uma vez para ser a primeira...
Que sem vel-as talvez, palida e desdenhosa,
Calcava sob os pés a violeta e a rosa...
Um fauno :
— Ah como Endymion, o pastor, é feliz !
Outro fauno : Outro satyro :
— Pois pudéra não ser... É o rei dos imbecis ! — Nunca se viu assim tanta escurrilidade...

Uma dryade : Toda descoberta,


Sem nenhum receio,
— Que força deve ter no azul dessa pupilla Cada vez o aperta
Para poder assim chamal-a e attrahil-a... Mais junto do seio...

Com tal abundancia,


Com tal alvoroço,
Outra dryade : Que ella é quem mais ancia
— Vêde o brilho que vem desse olhar através... Tem daquelle moço.

Um joven fauno :
Um fauno :
— Sómente para mim a sorte foi cruel :
— Tem mais força no olhar do que Hercules nos pés !
Nunca pude gosar esse favo de mel...

Beija-o como louca,


Mas com taes desejos, Um passaro :
Que enche aquella boca
— Despiu se toda. Está inteiramente nua...
De um furor de beijos.

Um satyro : Um satyro :
— É um combate feroz, uma guerra da Hellade... — Nua, de uma nudez mais nua do que a Lua...
Outro joven fauno : Um fauno :
— Nunca o amôr me quiz. E, no entanto, vêde, — Estão se mordendo, os dois, com tamanho furor,
Eu e Tantalo, os dois, temos a mesma sêde... Que até parece ser mais odio do que amôr...

Uma dryade :
E ambos, que loucura, — Odio e amôr são dois inimigos, porém
Ambos, que desordem,
Nessa luta obscura Onde vai o amôr, vai o odio tambem...
Como elles se mordem !

Que doce abandono, Um passaro :


Que exquisito choro,
As folhas d’outono — De certo Juno está completamente louca :
Caíam como ouro... Introduziu-lhe em fogo a lingua pela boca !

Outro joven fauno :


Que odios a consomem,
— E eu que um dia lhe disse : ó meu amôr immenso,
Com que febre o quer,
Quando te vejo sobre uma torre de incenso, Beija-o como um homem
Beija uma mulher...
Toda coroada, assim, de myrtos e de rosas...
E com que delirio
Tudo em roda estua
Sileno bebado, interrompendo : Dessa deosa nua,
Nua como um lirio...
— Doce paixão ideal, como me apotheosas !
Flóra, que sorria, Côro de faunos, satyros e dryades :
Nunca ouviu talvez
Tanta melodia, — Mandai esse castigo, ó numens, por quem sois !
Tanta embriaguez.

Um fauno :
Mal tinham dito, ergueu-se um rijo pé de vento,
— É um horror, é um horror...
E Jupiter caiu como um raio entre os dois !

Outro fauno :
— Escandalo profundo...

Uma dryade :
— Si Jupiter souber, incendeia-se o mundo !

Como ella se entrega,


Como se enchafurda,
Cada vez mais cega,
Cada vez mais surda !

Outra dryade :
— Ah si Jupiter vem aqui neste momento...
[ 167 ] Outro passaro :
— Ah que bom de fugir! Que orgulho de ter asas!

Sol Outro passaro :


— Estou ebrio de amôr. O amôr é como o vinho.
Ao Dario Vellozo.
Que venha logo a luz. Quero fazer meu ninho...

Crepúsculo indeciso. As estrellas começam a apagar-


se, uma a uma, como lampadas que se extinguem. Zéfyro Um gallo :
sopra. E num vago sussurro harmonioso, a pouco e — Dentro desta canção, tão limpida e sonóra,
pouco, a natureza acórda. Ouvem-se vozes longinquas e
dispersas... Ha matizes de luz e purpuras d’aurora.

Um passaro : Um corvo :
— Vae despontar a luz. — Eu sou a podridão e o vento que arrasa ;
Sou a fome e a nudez... O sol é a minha casa.
Outro passaro :
— Pois que desponte logo. O monte :
Tenho ancias de subir, tenho a cabeça em fogo. — Que solidão sem par, que solidão extrema,
Hoje vou conhecer, pela primeira vez, A solidão cruel e aspera de um monte ;
A voluptuosidade, a febre, a embriaguez Mas quando o sol me tóca, é como um diadema,
De voar, de voar, ó sonho, que me abrazas ! Aurifulgindo aqui por sobre a minha fronte...
O charco : Outra arvore :
— Agua esverdeada e suja e pantano sombrio, — E que perfume tem !
Mas quando o sol me doira esta miseria, eu rio.
Outra arvore :
A floresta : — E que canções vermelhas !
— Ó delirio brutal ! Quando me mordes tu
A carne toda em flôr, o seio todo nu, Outra arvore :
Com teus beijos de fogo, eu, como a flôr do nardo, — Nós somos como a flôr, elle como as abelhas !
Recendo de prazer, e de luxurias ardo...
A terra :
Uma arvore : — Quanto me queima o sol, com os seus desejos brutos !
— Quando elle bate aqui no meio da floresta :
Que sussurro, que ardor, que anceios e que festa ! A videira :
— Ó gloria de florir e rebentar em frutos !
Uma cigarra :
— Faz tamanho rumor e tamanha algazarra, A palmeira :
Que eu supponho que o sol é como uma cigarra... — Como gentil eu sou ! E o aroma que trescala,
Quando me lambe o sol e o zéfyro me embala !
O orvalho : Um passaro :
— Ao sol eu brilho mais que a perola d’Ormuz... — Ah que alado frescor tem o romper d’aurora!

O pinheiro : Outro passaro :


— Eu sou como uma taça erguida para a luz... — É tempo de fugir, é tempo d’ir-me embora...

As fontes : Outro passaro :


— É um murmurio sem fim de horizonte a horizonte... — É nesse lago azul que hoje quero roçar
O dia quando nasce é bem como uma fonte... As azas...
Através da floresta e desse campo e desse
Valle, ha um rumor de luz, como agua que corresse... Outro passaro :
— E eu é sobre as ondas desse mar...
A abelha :
— Quando sobre o horizonte esse astro heroico assoma : Um pastor :
Que orgulho, que prazer, que vibração cruel, — Eu nunca vi o céo de uma belleza assim :
Pois é de sol e flôr, é de luz e aroma, É todo de oiro e rosa e purpura e carmim...
Que componho esta cera e fabrico este mel !
Outro pastor :
— Dentro daquelles véos ideaes do rosiclér,
A aurora tem a graça e o ar de uma mulher...
Outro pastor : Um pastor :
— Mas eil-o que surgiu, em rufos de alvoroço, — Quando o sol apparece em ondas, a belleza
Brilhantemente nu, divinamente moço, E a frescura, que espalha, é de tal natureza,
Eterno de frescor juvenil e tamanho, Tem um olhar tão bom, tão novo, tão jocundo,
Como si viesse de um maravilhoso banho, Que toda madrugada é o começo do mundo...
Feito de aguas lustraes, e aroma, e ambrosia,
E coragem, e luz, e força, e alegria... A floresta :
— Tu me beijas, ó sol, tão loucamente, espera,
Uma rosa : Que eu em pleno fulgor ideal de primavera,
— E que limpido céo ! Que espectaculo rubro ! Debaixo desse fogo ardente de teus beijos,
Em delirios de amôr e amplexos de desejos,
Outra rosa : Arrebentando em flôr, completamente louca,
— É realmente bella esta manhã de Outubro ! Offereço-te o seio, offereço-te a boca !

Um beija flôr : Um passaro :


— Eu nunca vi assim manhã tão luminosa... — Aqui, onde eu estou, deste raminho verde,
Quero subir até onde a vista se perde...
Outro beija flôr : Quero aos raios do sol minhas azas bater,
— É fina como o lirio e é ardente como a rosa... Até cair no chão, bebado de prazer...
As ovelhas :
— Luz radiosa e pura, ó fonte creadora,
Luz que faz germinar em grãos a espiga loura,
E que veste de verde os campos seminus,
Bemdita sejas, flôr, bemdita sejas, luz!

O poeta :
— Ah que sombria dôr e que profunda magoa
De não poder ser eu aquella gota d’agua,
Que depois de fulgir, assim como uma estrella,
Derrete-se na luz, funde-se dentro della !

Outubro—910
INDICE
_________

PROLOGO . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . [ 03 ] POESIAS DIVERSAS


Ideal ! . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .. [ 24 ]
PLUMAS Iguassú . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . [ 26 ]
Dama . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . [ 05 ] Canção. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . [ 27 ]
O meu orgulho levantou-me... . . . . . . . . . . . . . . . . . . [ 06 ] Ebrios... . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . [ 29 ]
Vozes . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . [ 07 ] Esse perfume... . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .. [ 30 ]
Quando um poeta nasceu... . . . . . . . . . . . . . . . . . . . [ 08 ] Convalescente . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . [ 31 ]
A Mão... . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . [ 09 ] Versos de outr’ora. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . [ 32 ]
Embarque para Cythéra . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . [ 10 ] Metamorfóses . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .. [ 33 ]
Orgulho . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . [ 11 ] Noite. Deito-me aqui... . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . [ 34 ]
O Enigma . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . [ 12 ] Soneto . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . [ 35 ]
Salomão . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . [ 13 ] Para Ella . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . [ 36 ]
No tronco d’uma arvore . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . [ 14 ] Corre mais que uma véla... . . . . . . . . . . . . . . . .. [ 37 ]
Vencidos . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . [ 15 ] Quadras . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .. [ 38 ]
Ovidio . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . [ 16 ] D. Morte . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .. [ 39 ]
Veiu . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . [ 17 ] Incoherencia . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . [ 40 ]
Desde que comecei... . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . [ 18 ]
Não é só te querer... . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .. . . . . [ 19 ] SOLIDÃO
Posto que já... . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . [ 20 ] Solidão . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . [ 42 ]
Donzellas . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . [ 21 ] Não era mais que uma pequena aldeia . . . . . . . . [ 45 ]
Justiça . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . [ 22 ] No meio desta rustica paizagem . . . . . . . . . . . . . [ 46 ]
Aquelle que ali vae nesse caminho . . . . . . . . . . . [ 47 ]
Que bom si eu fosse aquelle lavrador. . . . . . . . . . . . . [ 48 ] UM VIOLÃO QUE CHORA...
Oh para que saír do fundo deste sonho . . . . . . . . . . . [ 49 ] Œlhos por seu gosto . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .. [ 81 ]
Que outro desejo bom, que me captive . . . . . . . . . . .. [ 50 ] Dessa tão ferrenha magoa . . . . . . . . . . . . . . . . . [ 83 ]
Lirio ! . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .. [ 51 ] Tantas vezes hei soffrido . . . . . . . . . . . . . . . . . . [ 84 ]
Sol d’inverno . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .. [ 53 ] Tantos bens ambicionei . . . . . . . . . . . . . . . . . . . [ 87 ]
Em seu louvor . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . [ 55 ] Lá fóra, e à deshora . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . [ 89 ]
Espectro . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .. [ 56 ] Quando outro dia eu andei . . . . . . . . . . . . . . . .. [ 90 ]
Nox . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . [ 57 ] Pobre meu coração, aqui, no meu ouvido . . . . . . [ 92 ]
Mors . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . [ 58 ] Vamos, meu coração, adormece de todo . . . . . . . [ 93 ]
Flóra . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . [ 59 ]
Ode à Solidão . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .. [ 60 ] POEMAS
Baucis e Filemon . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . [ 95 ]
SATYROS E DRYADES Estatua . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . ... [ 97 ]
De um fauno . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . [ 63 ] Azar . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . ... [ 99 ]
D. Juan . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . [ 64 ] Esperança . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . [102]
Não sei que poeta... . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . [ 65 ] Bruxa . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .. [103]
D. Juan, mas porque foi... . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .. [ 66 ] Cavalleiro . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .. [105]
Um dos sonetos de D. Juan . . . . . . . . . . . . . . . . . . . [ 67 ] Versos para embarcar . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .. [107]
Outro soneto de D. Juan . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .. [ 68 ] A cigarra e a estrella . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .. [110]
Ainda outro do mesmo autor . . . . . . . . . . . . . . . . . . . [ 69 ] Felicidade . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .. [114]
Ainda outro... . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . [ 70 ] Coração livre . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . ..[118]
E finalmente o ultimo... . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .. [ 71 ] Lied . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . [120]
Gata . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . [ 72 ] A fome de Erisichton . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . [121]
Heliogabalo . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . [ 73 ] Gloria . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .. [122]
Amôr Cinzento . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .. [ 74 ] Oh que ancia de subir... . . . . . . . . . . . . . . . . . . .[123]
Borboleta . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .. [ 75 ] Punição do hereje . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .. [129]
Versiculos de Sulamita . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .. [ 76 ] Canção do Diabo . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . ..[134]
Supplica de um fauno . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .. [ 78 ] Entre essa irradiação . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . [138]
Uma carta . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .. [139]
Sombra . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .. [141]
Tristeza . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .. [144]
Durante uma enfermidade . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .. [148]
Para os que se amam . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .. [151]
A boa estrella . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . ... [152]
Para que todos que eu amo sejam felizes . . . . . . . . . . [153]
Súcubo . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .. [156]
Versos doirados . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .. [157]
À Toi! . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .... [158]
Graças te rendo... . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .... [160]
Adulterio de juno . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .. [161]
Sol . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .. [167]

Acabado de imprimir no dia trinta de junho de


mil novecentos e onze.

Acabado de digitar e revisar no dia dezoito de agosto de


dois mil e onze.

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