40 Escritos (Arnaldo Antunes)
40 Escritos (Arnaldo Antunes)
40 Escritos (Arnaldo Antunes)
40 ESCRITOS
Organização:
João Bandeira
João Bandeira
quem?
mim-
guém?
Eu devo ser um pouco bandido, se tanta gente me viu com esse olho. Eu
devo ser um pouco bandido, um pouco louco, um pouco coitado, um pouco
perigoso, artista, otário.
Porque ninguém está imune ao olho do outro.
Mas nada disso se chama Arnaldo. O cara que sentou na tinta fresca.
Flagrante. Vida íntima devastada, para a visitação pública. Motivo de
estúpida apologia ou' condenação das drogas. Exemplo de perigo. Pretexto
para mentiras. Prometeu com as vísceras expostas às rapinas de furos para
as páginas policiais.
E quero falar de tudo isso um pouco. No jornal.
Que não vi o sol nascer quadrado, vi com luz elétrica. E espelhos eram
proibidos, então eu ficava sendo comigo só o que é. Sabia como estava a
minha cara depois, pelos jornais. Reconhecia esse cara.
E não escrevi nada nas paredes tão reescritas Nem meu nome.
O tempo dilatado da cadeia.
No primeiro sábado em que estive preso apareci também no Chacrinha.
Achava engraçada essa ubiquidade entre as duas jaulas. Na cela e na tevê.
Exercício constante de lidar com a diferença. Policiais e presos. Clareza
interior somada à adaptabilidade externa.
Fazer daquele um local suportável, mas não agradável. Era preciso
mantê-lo inóspito (saber a todo momento que não tinha nada a ver comigo),
mas era onde eu estava, então nem tanto e por isso mesmo. Procurava o
ponto de equilíbrio entre o desejo de sair e a capacidade de me relacionar
com aquilo.
Cartas eram bem-vindas, flores foram postas na água.
Agradecimento profundo a quem viu a minha pessoa, em vez de ver a
invasão de uma droga perigosa no mercado nacional, ou o mito da
necessidade de transgressão do artista, ou a figura do roqueiro como
marginal, ou o código penal, ou o que quer que fosse.
Contra os que me usaram de lente através da qual os monstros se
mostram.
Nem a droga da prisão, nem a droga da droga, nem a droga da piedade,
da miséria ou da glória que possa inspirar tudo isso - diminuem ou
aumentam o valor do meu trabalho com a linguagem. Clareza. Falem claro.
Dois olhos sabem ver mas não são faro.
Se eu estava ali era pra eu não estar em nenhum outro lugar. Então eu
ficava ali, tentando manter essa reverência para com a minha condição -
compreendendo como um privilégio a oportunidade de ter esses
conhecimentos.
Agora, que a discussão se faça. Condenem ou defendam publicamente
(leis, costumes, drogas, aspectos sociais, físicos, espirituais) - mas sem me
usar como exemplo de uma coisa ou de outra. Símbolo de nada. Defesa
ideológica de coisa alguma.
Eu me situo unicamente na violência arrebatadora do real. Uma coisa
sem graça. Uma piada de que ninguém riu.
6 - Tons
Ele dá aula. Que mais eu posso dizer? Eu que nunca fui bom aluno de
ninguém e estou aprendendo desde a barriga de mamãe. Antiaula. Aguilar
dá antiaula. De se aprender sem aprender. Como se aprende a cair depois
que já se sabe andar. Como quando trabalhei com ele no vídeo Sonho e
Contra-Sonho de uma Cidade, nas performances e na Banda Performática.
Que as pessoas tímidas são os melhores atores. Na tela se revelam. Que
a câmera pega uma aura que você não sabe que tem. Alquimia eletrônica.
Que quando se está no auge do cansaço, depois de filmar horas e horas, aí
às vezes saem as melhores coisas. Que você pode pisar no chão e isso não
ser nada, ou pode pisar no chão e isso ser uma performance fabulosa.
Dependendo da maneira como você faz. Assim você pode fazer qualquer
coisa, mas também não pode. Você está livre, mas com o rigor absoluto da
verdade/intensidade de cada gesto. E a beleza do lixo. E a repetição do
perigo. E a descompartimentação, ou seja: contra a lei do olho sem ouvido,
do ouvido sem tato, do tato sem sotaque e assim por diante. Ou seja: contra
a lei da pintura sem música, da música sem gesto, do gesto sem cheiro, etc.
E o profano sacralizado. E que a execução de um quadro pode durar três
segundos mas conter três milênios de ideias Que a cultura é uma prostituta,
e é assim que Aguilar a trata. Bandidagem. Dashiell Hammett revisitado. E
o não saber fazer potencializado pela coragem de fazer. E que o saber fazer
que se repete e mostra só o que já sabe não interessa. E a atitude
duchampeana dos mil projetos e esboços. Nada de obra acabada,
sedimentada na crosta do reconhecimento público. Movimento inquieto,
ebulição. E o resto que vá para os museus.
8 - Cabeça Dinossauro
Eu queria dizer que Cabeça Dinossauro é pra quem quer já. Urgência de
vida. Cabeça Renascença para quem ainda pode esperar. Eu sou desafinado
mas berro bem as palavras. Para transformá-las em coisas, em vez de
substituírem as coisas. Cansado de quem usa as palavras para se lamentar
do mundo. O que a gente não pode no mundo pode no som. Palavras
transformadas em som. No que já são. Cabeça Barroca para quem tem sexo.
Urgência de vida. Não dá a menor vontade de pertencer a essa entidade que
chamam de rock nacional. Esse papo de querer saber se o rock é ou não é
MPB (Música Pra Boi-dormir) já deu no saco. Os Titãs não estão mais
agressivos. Sempre foram. Mesmo ao cantar uma canção de amor. Eu disse
isso a vários repórteres e ninguém publicou. Preferem achar que jogamos
fora o que fomos. Tem muitas coisas ainda por saber. Do homem das
cavernas à Grécia foram milênios. Eu sou desafinado mas me entrego ao
canto quando canto. E quem pega na criança?
9 - Banal
Para quem faz rock nos anos 80, está acabando esse papo de vestir uma
canção com a roupa do arranjo. Cada vez mais, o som que se toca pertence
ao canto que se canta. A estrutura "canção" foi abalada por uma maior
proximidade entre criação e execução. Em diversas bandas, as músicas são
feitas em cima de um som que já está sendo tocado. Já não se diz "vamos
interpretar uma música", mas sim "vamos fazer um som".
A crise da canção tem diferentes sintomas. A incorporação do berro e da
fala ao canto; o estabelecimento de novas relações entre melodia e
harmonia; o reprocessamento e colagem de sons já gravados; os ruídos,
sujeira, microfonias; as novas concepções de mixagem, onde o canto nem
sempre é posto em primeiro plano, tornando-se, em alguns casos, apenas
parcialmente compreensível; a própria mesa de mixagem passando a ser
usada quase como um instrumento a ser tocado. Tudo isso altera a
concepção de uma letra entoada por uma melodia, sustentada por uma cama
rítmica-harmônica. O sentido das letras depende cada vez mais do contexto
sonoro.
Essa totalidade que o rock vem impondo, entre o que se consideraria
"canção" e "acompanhamento", se amplifica na relação entre o som e as
manifestações que o cercam. O rock (considerado no sentido mais amplo do
termo) não é música para ser apenas ouvida. É música associada a dança,
cena, atitude, performance, comportamento.
Hendrix punha fogo na guitarra. Esse fogo está lá, no vinil.
Em uma das peças de Home of the Brave, Laurie Anderson instalou
terminais de bateria eletrônica em diversas partes do corpo (calcanhares,
joelhos, pulsos, cotovelos). Ao dançar, tocava esses pontos e produzia, com
a própria dança, o som que a fazia dançar. Laurie Anderson inserindo no
universo pop um procedimento cageano.
Essa soma de linguagens não nos é estranha. A música, aqui, está
apenas cumprindo sua adequação a uma época em que os laços entre os
sentidos estão sendo reatados.
Estranho paradoxo: A mesma era das especializações, que radicalizou
as divisórias na produção, gerou, no campo das artes, a interação simultânea
de códigos. Surgiram o cinema, a TV, a arte ambiental, os happenings e
performances, ready-mades, poemas-objeto, holografias. Na música pop,
surgiram os clips. Nos estudos de linguagem, a semiótica. Simultaneidade
de sentidos. Assobiar chupando cana.
O rock, assim como as manifestações artísticas que efetivam a interação
de códigos, parece nos remeter, dentro do mundo tecnologizado, a um
estado mais primitivo. Como nas tribos, onde a música, associada à dança,
cumpre sempre uma função vital - religiosa, curativa, guerreira, de iniciação
ou para chamar chuva.
Essa inocência já foi perdida (o tempo do homem criou a música para
ser ouvida, as artes plásticas para serem vistas, a arte para representar a
vida). Mas temos outras.
Hendrix punha fogo na guitarra.
Esse fogo está solto.
15 - Sentidos simultâneos
Augusto de Campos está dizendo cada vez mais com cada vez menos.
Essa é a notícia. Para quem está por fora.
Digo isso sob o impacto do poema que estampa a capa do seu Â
margem da margem, recém-lançado pela Cia. das Letras. Quem está por
fora não precisa comprar o livro. Basta ir até a livraria e movê-lo em
diversas inclinações. A versão holográfica dá ao poema profundidade e
multiplicidade de cores, o que reforça sua condição natural, onde diversas
leituras possíveis ocorrem simultaneamente na mesma estrutura.
Além do fato quase inédito de termos uma holografia na capa de um
livro (só precedido, que eu saiba, pela revista Super Interessante - um
coquetel de curiosidades científicas, que aplicou o holograma de um cavalo-
marinho na capa de um de seus números, ano passado), há o fato inusual de
se ilustrar a capa com um poema. Ironicamente, muita gente ainda compra
livros pela capa. "Não se vende".
A condensação de sentidos chega ao máximo, nesse poema de três
enunciados (não me vendo / não se venda / não se vende), ao mesmo tempo
aglutinados pela eliminação dos espaços entre as palavras e fragmentados
pelos cortes delas entre as linhas.
Com apenas 3 letras variantes ("m" pelo "s", transformando o pronome
"me" em "se", e "o" pelo "a" e pelo "e", sucessivamente, transformando o
verbo) em 3 enunciados de 10 letras, obtemos uma complexa estrutura onde
3 pessoas verbais (singular) e 3 sentidos (a princípio) se intrincam em
diversas possibilidades de leituras. O 2o e o 3o enunciados trocam a 2a pela
3a pessoa conforme o verbo considerado (vender ou vendar). No 1o
enunciado as duas leituras coincidem na 1a pessoa, mas acrescenta-se o
gerúndio de "ver". Apenas com o verbo "vender" temos as três pessoas
apresentadas na ordem respectiva (1a, 2a e 3a). Talvez por isso se capte mais
diretamente esse sentido, ficando os outros a serem descobertos numa
segunda mirada. Assim, várias opções proporcionam diferentes
possibilidades de leitura. Há também leituras em profundidade, como por
exemplo (pegando o 1o enunciado): "não me vendo (ver), não me vendo
(vendar) e não me vendo (vender)". Na realidade são leituras simultâneas.
Sintagmas embutidos no mesmo enunciado. Como aquelas bonecas russas
de madeira, umas dentro das outras.
Todos esses sentidos parecem se completar numa mesma reflexão, de
clareza arrebatadora, onde não se ver corresponde (ao preencher o mesmo
espaço sintático) a ver (não se vendar). Ver com olhos limpos, sem o
obstáculo-eu intermediando a relação. Essa antítese encontra sua síntese na
manutenção de uma integridade - não se vender.
Pensando o poema em seu aspecto metalinguístico, notamos a coerência
de suas colocações em relação à postura crítica que Augusto e a poesia
concreta vêm assumindo há tempos: a negação da poesia confessional, que
se coloca como expressão de um "eu", pela afirmação da poesia enquanto
expressão da linguagem (não se ver); o "ver com olhos livres" de Oswald
(não se vendar); a defesa da poesia difícil, da tradição de radicalidade,
contra o consumismo fácil (não se vender).
Nesse sentido, o poema se integra adequadamente ao título do livro (À
margem da margem), num contexto onde muita poesia diluída, de cunho
confessional, é comercializada sob a égide da marginalidade.
Há dois tipos diferentes de ambiguidade em poesia. Um se refere à
abertura do discurso como um todo, em relação às diversas interpretações
cabíveis ao receptor. Outro, que vemos aqui, é o uso de uma ambiguidade
do próprio código (palavras homônimas), atribuindo-lhe sentido poético;
motivando uma coincidência arbitrária. É claro que esse segundo tipo lida
de uma maneira mais estrutural com a língua. Em vez de trabalhar apenas a
horizontalidade (extensão sintática) e verticalidade (dimensão metafórica),
Augusto passa a trabalhar a profundidade; a tridimensionalidade da
linguagem.
Temos exemplos desse procedimento pincelados na poesia de todos os
tempos, mas quase sempre como momentos de tensão dentro de um
contexto maior, como Gregório de Mattos, na primeira estrofe do soneto
Aos mesmos sentimentos - "Corrente, que do peito destilada, / Sois por dous
olhos despedida; / E por carmim correndo dividida; / Deixai o ser, levais a
cor mudada". Temos aqui a tensão presente na palavra que abre o poema
("corrente"), com os sentidos opostos de prender e jorrar conjugados. A
ambiguidade do homônimo aponta um conflito, que parece referido, nos
versos seguintes, em expressões como "correndo dividida" e "cor mudada".
Mais recentemente, temos exemplos em que a simultaneidade de
leituras é alcançada no poema todo, como Décio Pignatari em Contribuição
a um alfabeto duplo (1968):
- Big Bang.
Profundidade pra dançar: "O que é tudo isso diante da pólvora?/ (Dessa
paixão que se renova)".
Com suas duas salas separadas pela passagem da chuva, Zarif compõe
um poema ambiental onde a relação entre céu e terra deixa de ser vertical e
simultânea e passa a ser horizontal e sequencial.
Parábola da equação de Hermes Trimegisto: "O que está embaixo é
como o que está no alto".
No cartaz, nuvens pintadas cobrem exatamente as formas de todos os
continentes e ilhas de um mapa-múndi, deixando apenas os oceanos
descobertos.
Um olhar mais atento nota que os nomes desses oceanos foram
impressos invertidos.
Fazer o que faz sentido: Chuva em todas as terras.
Nenhuma chuva no mar.
Para não chover no molhado.
Para provar de uma vez por todas que um poema pode ser feito sem
palavras.
20 - Derme/verme
Muita estupidez e preconceito se têm lido nas páginas dos jornais, seja
na opinião dos próprios jornalistas, seja na declaração de pessoas do meio
artístico musical, tendo por objeto a cor da pele de Michael Jackson.
Não quero falar aqui da sua música, que continua exercendo o caminho
natural de sua genialidade; nem do espaço poderoso que ela ocupa no
mundo todo. Quero falar da clareza de Michael Jackson. Mesmo que para
isso eu tenha de aceitar a condição da imprensa em geral, que tomou essa
questão como um escudo para não comentar com o devido respeito seu
último disco.
Michael Jackson teve a pele negra. Ficou mulato em Thriller, clareou
mais em Bad e agora aparece completamente branco em Dangerous. O mal-
estar que isso vem causando é assustador, nessa beirada do ano 2000. Que
ele "negou a sua raça", "se corrompeu", "virou um monstro", entre ofensas
piores. O pior ataque dessa onda se leu numa matéria assinada por Sérgio
Sá Leitão, na seção denominada "Fique por dentro" (?), no Folhateen de
9/12/91, que, além de desprezar sem nenhum fundamento Dangerous ("O
fundamental em Michael Jackson já não é mais a música - como o era na
época de Thriller, seu álbum-emblema") e lamentar a mudança de cor
enquanto perda de identidade ("Com sua identidade diluída, falta também a
Michael Jackson a legitimidade indispensável a qualquer astro da cultura
pop"), começa (na manchete) e termina (na conclusão da matéria) com uma
frase de efeito de uma agressividade despropositada: "Michael Jackson é o
eunuco do pop". Tendo-se em conta a potência que ele representa, não
apenas em seu som, mas também como fenômeno de massas no planeta, tal
inversão só pode ser interpretada como fruto de ódio. Parece a indignação
de um membro da Ku Klux Klan defendendo a pureza racial ameaçada por
esse branco que não nasceu branco.
Brancos sempre puderam parecer mulatos, bronzear-se ao sol ou em
lâmpadas específicas para esse fim, fazer permanente para endurecer os
cabelos. Tudo isso visto com naturalidade e simpatia. Tatuagem, que é uma
técnica predominantemente usada por brancos, pode. Até mesmo aquela
caricatura do Al Johnson era vista com graça. Agora, o negro Michael
Jackson entregar seu corpo à transcendência da barreira racial desperta
revolta, reações de protesto e aversão.
O espaço da ficção é permissivo. Todo mundo acha bacana Raul Seixas
haver cantado "Eu prefiro ser essa metamorfose ambulante", ou haver
existido uma banda chamada "Mutantes". Há um consenso na aceitação da
promiscuidade racial de Macunaíma, como traço característico de nossa
identidade antropológica. Agora, quando adentramos o campo da vida real
as máscaras moralistas, racistas, preservacionistas da estagnação se
mostram, contra a liberdade individual de se fazer o que quiser da própria
pele.
É que Michael Jackson é um Macunaíma ao avesso. Se o anti-herói de
Mário de Andrade faz de si a parábola da gênese das diferenças raciais no
espaço ficcional, Michael Jackson representa, em carne e osso, a abolição
dessas fronteiras. Mas parece que, mais de cem anos depois, o Brasil ainda
não está preparado para aceitar a Abolição.
Os negros que estão condenando a mutação de Michael Jackson,
insinuando ser ela fruto de inveja de uma suposta condição dos brancos,
acabam na verdade chegando a um veredito semelhante ao do racismo
branco que diz: "Como esse negro se atreve a usar a minha cor em sua
pele?"
Michael Jackson continua cantando com o mesmo swing de quando
tinha a pele preta, e dançando cada vez mais lindamente aquela dança que
influenciou milhares de negros no mundo inteiro. Ele ostenta a pele clara
como quem diz "eu posso". E canta: "I'm not going to spend my life being a
color". E faz de seu corpo a prova de que a questão racial vai muito além da
cor da pele.
O corpo é para usar. O corpo é para ser usado. Michael Jackson está
colocando seu corpo a serviço de um tempo em que a pessoa valha antes
das raças, e o planeta antes das nações. Não se trata de extinguir as
diferenças, mas de fundar radicalmente a possibilidade de trânsito entre
elas. A miscigenação que se fez aqui (nesse país onde todos somos um
pouco mulatos ou mamelucos), diacronicamente, durante séculos, faz-se
sincronicamente nele.
Michael Jackson é preto e é branco. Não fala em nome de uma raça ou
casta, mas encarna em si a diferença. Não é mais americano porque é do
mundo todo ("Protection/for gangs, clubs,/ and nations/ causing grief in/
human relations/ It's a turf war/ On a global scale/ I'd rather hear both sides/
of the tale", canta em Black or White). O incômodo está justamente nesse
exercício de liberdade. Ele não precisa explicar nada. As respostas estão
todas na sua cara. Ou naquelas caras tão diferentes se transformando umas
nas outras, no clip de Black or White.
"...Eu me tomo as estrelas e a lua. Eu me tomo o amante e o amado. Eu
me tomo o vencedor e o vencido. Eu me tomo o senhor e o escravo. Eu me
tomo o cantor e a canção. Eu me tomo o conhecedor e o conhecido... Eu
continuo dançando... e dançando... e dançando, até que haja apenas... a
dança" (Michael Jackson, em The Dance).
22 - Canções
Uma canção não é uma letra entoada. Uma canção não é uma melodia
que diz. Uma canção é algo que ocorre entre verbo e som, sem privilegiar
nenhum deles. Ante uma canção de verdade, qualquer comentário crítico
que separa letra e música parece patético. A canção não é um código
composto pela junção de dois códigos primários, pois sua origem conjunta é
anterior a essa divisão. A palavra cantada antecede a poesia falada ou
escrita, a música instrumental, os frutos especializados do tempo do
homem.
Há quase duas décadas, Péricles Cavalcanti vem nos brindando com
alguns desses monolitos indivisíveis, nas vozes de Gal, Caetano, Miucha,
Asdrúbal Trouxe o Trombone (com o LP da trilha de A Farra da Terra,
composta por ele), entre outros. Como um moderno compositor à moda
antiga, da estirpe de "Herivelto, Caymmi, Sinhô, Assis Valente, Wilson
Batista, Noel, Heitor dos Prazeres" (que pouco gravaram, numa época em
que a divisão de papéis entre autor e intérprete era mais demarcada). Como
se desde sempre ele viesse preparando esse disco, que parece buscar, com
clareza e claridade, a especificidade da canção.
O nome do disco é a senha. E o fato de optar por arranjos com poucos
elementos, ao invés de uma massa sonora mais compacta, adequa-se bem ao
seu intento. Péricles soa como se resgatasse o sentido mais puro, original,
primário desse objeto de voz. Não por recuperação de formas ou
procedimentos do passado, mas trabalhando para a sofisticação dessa
linguagem; levando ao limite as possibilidades de condensação informativa
na mensagem cantada.
Talvez o aprimoramento desse projeto tenha nos feito esperar tanto
tempo por esse disco (que, vindo agora, com um conceito tão inteiro, não
parece uma reunião de canções feitas em épocas diversas). Talvez também
por isso permeie quase todas as faixas uma reflexão sobre a canção, o
cantar, a função e o poder da música.
O disco de Péricles abre com Dos Prazeres, das Canções, uma música
cantada numa primeira pessoa que é, ao mesmo tempo, uma pessoa e a
música - a pessoa dele ante a tradição, e a música popular brasileira, que
passa pela boca de todos aqueles compositores.
Música para ser alguém.
O disco de Péricles encerra com Eassimserá, uma salsa cantada na
terceira pessoa, sobre uma mulher que metaforiza a música latina.
Alguém para ser música.
As duas faixas, abrindo e fechando o disco, apontam para essa inteireza,
entre ser e som (presente em todo o disco, e aparecendo literalmente em
outros momentos, como no refrão de Meu Bolero). A pessoa-música da
primeira faixa vê com a ótica do criador dessas mensagens estranhamente
poderosas. A música-pessoa da última faixa é vista com a ótica do receptor,
contaminado por esse poder. Primeira e terceira pessoas / masculino e
feminino / samba e salsa (que fez "a cabeça do jazz e rock'n'roll") / o
mesmo e o outro. As duas faixas se referem a essa experiência plena em que
a música penetra e é penetrada pela vida. E as duas apontam para a
permanência no tempo, como uma espécie de resistência vitoriosa: "Eu sou
aquele que o tempo não mudou" (Dos Prazeres, das Canções); "Era assim /
É e será / É assim / E assim será" (Eassimserá).
E entre elas, preenchendo o espaço da boca ao ouvido, está o resto. A
surpreendente seleção de momentos da mais alta poesia - Joyce do
Finnegans Wake (Nuvoleta) e John Donne (Elegia), via Augusto de
Campos; Galáxias, de Haroldo de Campos (Ode Primitiva) - e sua
transformação absolutamente natural em letras de música. As canções
curtas que se bastam. A liberdade de transitar por diversos gêneros (a
maneira índia negra grega gregoriana eletrônica) com a mesma marca
pessoal. A limpidez do canto, que diz ao máximo o que as canções estão
dizendo. As contribuições tão bem colocadas de Caetano (Meu Bolero) e
Lulu (Blues da Passagem). O despojamento dos arranjos. A simplicidade
conjugada à inovação - nosso sonho e nossa proteína.
O disco de Péricles me faz pensar naquele "mistério das letras de
música", de que fala Augusto de Campos: "tão frágeis quando escritas, tão
fortes quando cantadas".
Pois é na possibilidade de imagens tão densas como "sonho proteína"
(uma conjunção de dois substantivos que se adjetivam, do porte do genial
"brutalidade jardim", de Oswald, usado por Torquato; tirando o sonho, de
sua condição abstrata, para a concretude de substância nutritiva vital,
absorvida fisicamente pelo corpo) conviverem com imagens-ready-made
eficientemente banais como "leite condensado", que reside a graça, a
potência dessa coisa que se faz "por que não? porque sim". Essa
possibilidade só existe no ambiente fundado pelo canto.
Só a mensagem cantada pode encher de novos sentidos cada sílaba;
pode criar seus próprios ritmos; pode transformar "dor" em "dou" (Dos
Prazeres, das Canções); pode falar tudo e não dizer nada (Sem Drama);
pode iluminar o paradoxo de sua própria existência, apenas com o
deslocamento de uma tônica, como na equação gertrudesteiniana, no final
de Sem Drama: "Uma canção é uma canção é uma canção".
23 - 21 metas para a televisão do futuro
"Inútil beleza
A tudo rendida,
Por delicadeza
Perdi minha vida "
Quando nos defrontamos pela primeira vez com uma cultura, seja ela
uma antiga civilização já extinta ou uma tribo recém-contactada; seus
mitos, costumes, cultos, objetos, formas de estruturar e expressar
pensamento via linguagem causam estranheza. Ao mesmo tempo, alguma
coisa em nós compreende, identifica algo comum que legitima aquelas
outras possibilidades de vida e morte. Como os dois polos de um ímã, o
espanto se dá na medida do reconhecimento. Uma sensação subterrânea,
subcutânea, ancestral, humana, estabelece um ponto de contato, muito
primário. É no abismo dessa intersecção que Tunga faz as suas coisas
(esculturas, textos, filmes, desenhos, vídeos, fotos, instalações, objetos,
ideias, montagens, coisas - pois ele não age como um especialista; ao
contrário, nutre-se criativamente nos mais diversos campos do
conhecimento, desviando seus frutos para um uso muito particular. Como
quem estuda o movimento das marés, não para navegar, ou o mecanismo do
motor de um carro, não para consertá-lo, ou o processo químico da
formação de ferrugem, não para eliminá-la. A tal condição ele próprio se
refere, em alguns momentos: "Tratava eu de cultivar espécimes com o
inconfessável propósito dos 'experimentadores ocasionais'" [em Semeando
sereias, Newcastle, 15/5/93]; "Sendo eu um entusiasta dos insetos, seus
mundos e hábitos, encontrei oportuna a viagem para avivar meu deleite de
entomólogo amador" [em Tesouro besouros, Manaus, 08/02/92]; "Ruptura e
tensão mostram que a migração de noções em diferentes campos de
conhecimento pode ser extremamente positiva para a arte" [entrevista ao
Caderno Mais! da Folha de São Paulo, 30/01/94]; "É mais importante para
a arte o contato com outras fontes do que beber sua própria água com o
risco de torná-la mais uma disciplina especializada [entrevista já citada]).
Hipertrofiando aspectos sensíveis onde nos reconhecemos e estranhamos ao
mesmo tempo. Como se tecendo a gênese de uma cultura; com suas
mitologias, cosmogonias, ciências, simbologias. Com tudo que pode haver
de terrível e de sublime nesse gesto. Bênção e crueldade.
Assim, suas criações parecem dialogar entre si, estabelecendo laços,
como as muitas faces de uma mesma cultura em formação. Toda sua obra
parece trabalhar para a construção de um sentido, ou de um sistema de
sentidos.
Por isso a recorrência às vezes obsessiva de alguns ícones, ou o uso
reincidente de alguns materiais. Por isso também as instalações com peças
ligadas fisicamente umas às outras, por sua disposição no espaço, ou
conectadas por algum outro material. Partes que se encostam.
Os polos negativo e positivo da matéria magnética encontram
correspondência nas lagartixas de duplos rabos/cabeças. Como elas
caminham para frente, a degenerada regeneração simulada por Tunga
efetiva uma versão orgânica dos ímãs, usados por ele em outras peças - os
rabos nas duas extremidades sugerindo atração / as cabeças sugerindo
repulsão. Ao mesmo tempo a lagartixa emendada (um corpo que são dois)
remete diretamente à peça-viva das xifópagas capilares. Os cabelos e
pentes, por sua vez, sendo instrumentos capazes de gerar energia
eletromagnética por atrito, tornam-se metonímia das limalhas de ferro
imantadas. As limalhas de ferro imantadas se assemelham a cabelos
cortados. Já a insensibilidade tátil dos cabelos é invertida, no despropósito
de xifópagas capilares atingirem a puberdade ainda unidas uma à outra. Tal
inversão sugere força, como em Sansão, orgulho e sagração, como para os
rastafáris - qualidades que incitam sua transformação em totens. O
crescimento descomunal dos cabelos (em oposição à condição das
lagartixas, que se refazem a partir do corte), retratado em alguns desses
"totens", metaforiza o ir infinito do túnel (no filme Ão), além da associação
física, por suas formas cilíndricas. Ao mesmo tempo, o túnel sugere a
infinitude de um útero no parto, do qual as xifópagas carregam e ostentam
seu sinal. E o nome do túnel escolhido para a filmagem é Dois Irmãos. A
referência à origem também se dá pela presença constante da clava;
primeira arma usada pelo homem - ela em si um paradoxo, enquanto
instrumento de morte primordial. As serpentes entrançadas e seu inverso,
trança de cabelos disposta sobre o chão qual uma serpente, petrificam o
olhar como o tempo petrifica os ossos em fósseis. Os ossos (como a clava)
se assemelham a cobras pelo formato cilíndrico e longilíneo, enquanto se
opõem a elas pela consistência (duro / mole). A forma ambígua entre
serpente e osso (presente tanto em Revê-la antinomia, como em Les bijoux
de Mme. Sade) sugere uma Medusa que mira seu próprio reflexo, assim
como um falo, que oscila entre os dois estados de rigidez. A xifopagia
indica atração, como os ímãs. Enquanto essa atração vai se esmaecendo,
conforme crescem os cabelos, nas lagartixas ela vai se tornando cada vez
mais potente, a partir do corte, conforme aumenta o processo regenerativo.
Atração e repulsão metaforizam também o próprio mecanismo de
estabelecer as relações mais primárias do pensamento (associação,
oposição), da linguagem (paradigma, sintagma), dos contatos de pele.
Reiterando e amplificando tais relações, encontramos também
associações fônicas, paronomásticas, entre os elementos usados por Tunga:
(fios de) cobre-cobra, (cabelo) loiro-ouro, serpente-pente, fêmur-fêmea,
ímãs-irmãs (xifópagas), tesouro-besouros, túnel-funil.
Esses são apenas alguns elos, os mais evidentes a meus olhos, dos que
compõem esse complexo emaranhado de contágios. Numa espécie de ficção
documental (texto impresso num pequeno catálogo, com fotos de alguns
trabalhos), Tunga faz ainda questão de tecer outro plano de aproximações,
dessa vez na forma de um enredo, onde o motivo de cada criação convive
com os outros numa história comum, supostamente por ele vivenciada. Essa
narrativa inclui referências a cartas, telegramas, recortes de jornal,
conversas, depoimentos, placas, documentos, inscrições em próteses,
achados paleontológicos, registros de experiências telepáticas, decifrações
de anagramas, coincidências. Todos os fatos se remetem uns aos outros,
interagindo para justificar um contexto de invenção, a que se vão
acrescentando novos signos; novas exclamações sobre as mesmas
interrogações. "Quimeras de uma cultura", como ele mesmo indica em
Semeando sereias.
Tudo é estranho. A lua boiando no céu. O sol, a chuva. Os ossos duros
cobertos de carne não tão dura. O crescimento ininterrupto dos cabelos, das
plantas. Não podermos respirar debaixo d'água. Os bichos crescerem dentro
dos ovos, das barrigas. As lagartixas se regenerarem de sua parte cortada. O
tempo transformando matéria orgânica milenar em carvão, petróleo e outras
formas de energia. Existir. Tudo no mundo é estranho por si. As obras de
Tunga vêm da estranheza natural dos fenômenos; da observação dos fatos
do mundo.
Tunga toca nos cabelos, dentes, unhas, ossos - resquícios minerais
incrustados no corpo humano.
26 - Winterverno
Aos poucos vamos podendo pisar essas pedras que Leminski nos
deixou, e que voltam sempre a nos confirmar a grandeza e a profundidade
de seu mergulho poético. Depois do corpo de poemas inéditos que veio à
luz com La Vie en Close e do deslumbrante Metaformose, recém-lançado,
podemos agora curtir esse Winterverno, fruto de um belo diálogo
intersemiótico com João Virmond. Entre as inúmeras formas de associação
gráfica entre imagem e verbo em nossa época - da ilustração à legenda, do
caligrama ao logotipo, da pintura escrita à poesia visual, do cartaz à HQ -
Winterverno tem uma face singular. A síntese verbal de Leminski e o
traçado conciso de 'João se afinaram com muita naturalidade, numa
conversa que nos aproxima da condição do hai kai, em sua origem
ideogramática (dois invernos diferentes formando o mesmo). Aqui os
códigos verbal e visual se alimentam mutuamente, ora se complementando,
ora se tensionando; ora se traduzindo, ora acrescentando um ao outro novas
significações. O resultado é de uma sintonia surpreendente, que muitas
vezes incorpora e exibe dados sobre a situação do encontro em que foram
feitos - com margem para o salto, o voo, o insight - e toda sorte de
coincidências. A simplicidade e a liberdade com que essa relação se fez, tão
intimamente, faz lembrar, por vezes, o Nascimento Vida Paixão e Morte, de
Pagu, o Romance da Época Anarquista, diário de Oswald e Pagu, ou o
Perfeito Cozinheiro de
Almas deste Mundo, diário da garçonnière de Oswald - obras/ não-obras
onde o verbal e o visual se misturam, como a própria criação se mistura à
vida. Além de momentos altamente concentrados da poesia de Leminski;
além da riqueza de soluções gráficas exploradas por João em seus desenhos;
além da delicada interação dos dois códigos; o mais belo desse livro me
parece a forma como ele incorpora em si o processo de sua feitura-exposto
no raio x dos suportes precários onde inicialmente o diálogo foi se fazendo
(e que compõem sua segunda parte). Rabiscados em folhetos publicitários,
guardanapos de bar, pedaços de embalagens, folhas de caderno, a matéria-
prima que houvesse na hora; os registros nos mostram a urgência da criação
contaminada de vida, contaminando a vida, na captação de seus
instantâneos. Um livro que foi se fazendo quase sem querer, e que foi se
fazendo querer até tornar-se um projeto comum de Paulo e João; da
expressão espontânea de uma afinidade à descoberta de uma linguagem.
27 - Poesia concreta
cor(em(come(ca(minha)beça)ça)meu)ação
cabe(em(não(cor(meu)ação)cabe)minha)ça
O amor, sem palavras. Ou. A palavra amor, sem amor. Sendo amor, ou.
A palavra ou. Sem substituir nem ser substituída por. Si, a palavra si, sem
ser de si gnada ou gnificada por. O amor. Entre si e o que se. Chama amor,
como se. Amasse (esse pedaço de papel escrito amor). Somasse o amor ao
nome amor, onde ecoa. O mar, onde some o mar onde soa. A palavra amor,
sem palavras.
31 - O receptivo
Uma vez Gil me disse que havia jogado o I Ching fazendo a seguinte
pergunta: "O que é que sou eu, afinal?". A resposta do oráculo recaiu no
hexagrama n° 2, todo formado de linhas abertas - "O receptivo", que tem
como imagem "a terra" e como atributo "a devoção".
A nitidez daquilo me impressionou, por ser tão próximo da forma como
o reconheço, como o reconhecem, como vemos que ele próprio se
reconhece. Talvez isso seja o que seja ser alguma coisa - o ponto onde todos
esses olhares convergem.
Na verdade, a questão parecia se referir ao mais íntimo de seu íntimo.
Mas em Gil isso não difere em nada da maneira como ele soa publicamente,
de forma explícita, a cada canção, a cada verso de cada canção, a cada
palavra de cada verso ou declaração; em cada palco, acorde, atitude.
Gil é o receptivo. Luz onde as sombras se assentam, e que lhes dá
contorno. Clareza que abraça o mistério sem temor. O maleável.
"Transcorrendo, transformando, tempo e espaço navegando todos os
sentidos". A natureza, o princípio feminino ("a porção melhor que trago em
mim agora"), o que recebe.
É assim que as palavras se articulam nos encadeamentos rítmicos,
melódicos, semânticos de suas canções. O "abacateiro" que atrai
"acataremos"; "bárbara bela" que se torna "barbarela", ali onde jeca total vê
"Gabriela"; o vermelho da rosa no sorvete; o sonho e o fim do sonho ao
mesmo tempo dissolvendo a noite e a pílula, da "boca do dia" à "barriga de
Maria"; a "dura caminhada" na "cama de tatame"; o "baú de prata" porque
"prata é luz do luar"; o "adeus" se dirigindo à "deusa", com o deslocamento
cinematográfico do "a"; o tempo que vai e onde vai dar, menina, do
perpétuo socorrei.
Tudo parece fazer sentido na medida em que deixa o sentido se fazer. O
casual aberto ao intencional aberto ao casual, como círculos concêntricos se
expandindo a partir da pedra, atirada com mira sobre a água sem alvo. Água
cristalina não porque reflete, mas porque corre. Onde a limpidez do sentido
vem de sua adequação ao ritmo, à linha melódica; clareza vindo da fluência.
Cadência.
Como na letra de Batmakumba (parceria com Caetano), que condensa
tantos significados enquanto parece estar apenas traduzindo
onomatopaicamente a batida do tambor. Ali onde a fala da tribo também faz
dançar.
Gil deixa que as palavras se digam, se liguem umas às outras, imantadas
pela música, para dizer o que ele tem a dizer.
Que baixe o santo, que a musa cante, que o vento sopre, que desça a
inspiração, que se creia na ideia de inspiração. Que se cumpra o pedido da
"deusa música", e se deixe "derramar o bálsamo, fazer o canto cantar o
cantar". Que o destino e a vontade, ação e inação, coincidam, colidam no
mesmo gesto. "Mesmo porque tudo sempre acaba sendo o que era de se
esperar". Que haja fé, sem esforço, pois nenhum esforço possível pode
gerar a fé. Que a raiz seja a antena e o cesto a parabólica. Que descobrir
seja inventar e que a meta dessa "metade do infinito" seja "simplesmente
metáfora".
Essa entrega, esse espírito aberto ao mundo, essa leitura pessoal da
exigência de cada circunstância e sua transformação em autoexigência,
como traço da personalidade de Gil, acabaram se traduzindo, sem paradoxo,
em intervenção radical, convicta, afirmativa das questões que foram
compondo seu ideário. Gil teve sempre a coragem de dizer as coisas em que
acreditava nos momentos precisos. Seja ao cantar "miserere nobis", ou "o
melhor lugar do mundo é aqui e agora", ou "manda descer pra ver Filhos de
Ghandi"; ou "quanto mais purpurina melhor"; ou ainda "sou um punk da
periferia", assim, na primeira pessoa-tocando pontos nevrálgicos de
contextos muitas vezes adversos, aos quais respondeu com integridade e
paciência. "Eu não sou essa quietude, eu sou a minha quietude, não a
deles", afirmava ele em 79, em entrevista ao Folhetim.
Sua quietude inquieta deu conta de abordar e abraçar, com lucidez
visionária, questões tão diversas como a contracultura, o sincretismo
religioso, a negritude, a valorização da informação cultural africana e
oriental entre nós, a ecologia, a política, a tecnologia, o carnaval, a
macrobiótica, a cultura pop, a ciência, a meditação, as relações familiares,
as relações de amor e amizade, as relações sociais, as relações de trabalho, a
ancestralidade, o mundo moderno e a consciência primitiva - em formas
que transitam livremente entre o baião, o funk, o rock, o afoxé, o samba, o
reggae etc. e ao mesmo tempo sem ser nada disso; cumprindo apenas o
sotaque particularíssimo de seu violão.
É assim que Gil foi construindo seu nicho de linguagem. Seria pouco
apontar o quanto a moderna música popular do Brasil deve a ele tudo que
conquistou em termos de construção, acabamento e atitude. Melhor notar o
quanto nele se aprofundou a afinidade com a natureza da própria música.
Pois não há como não pensar que essa reverência é uma condição dela; que
a relação de qualquer um com a música é a de um ser receptivo. E por isso
Gil é esse banho, essa aula, essa tradição viva; não pelo que fez, mas pelo
que faz. Pela capacidade de manter potente sua linguagem, atualizando
fisicamente o passado, a cada nova onda que ele espraia de seu convés, até
banhar nossos pés, na praia.
32 - Casulo
"1. O Homem não tem um Corpo distinto de sua Alma, pois o que se
denomina Corpo é uma parcela da Alma, discernida pelos cinco Sentidos,
os principais acessos da Alma nesta etapa,
2. Energia é a única vida, e provém do Corpo; e Razão, o limite ou
circunferência externa da Energia.
3. Energia é Deleite Eterno."
FIM
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