SANTOS, J. R. De. Antropologia Dos Objetos
SANTOS, J. R. De. Antropologia Dos Objetos
SANTOS, J. R. De. Antropologia Dos Objetos
objetos: coleções,
museus e patrimônios
Presidente da República
Luiz Inácio Lula da Silva
Ministro da Cultura
Gilberto Passos Gil Moreira
Presidente do Iphan
Luiz Fernando de Almeida
Diretor do Departamento de Museus e Centros Culturais
José do Nascimento Júnior
Diretor de Patrimônio Material
Dalmo Vieira Filho
Diretora de Patrimônio Imaterial
Márcia Genesia de Sant’Anna
Diretora de Planejamento e A dministração
Maria Emília Nascimento dos Santos
Procuradora- chefe
Lúcia Sampaio Alho
Coordenadora geral de Promoção do Patrimônio Cultural
Luiz Philippe Peres Torelly
Coordenadora geral de Pesquisa , Documentação e Referência
Lia Motta
G624a
Editoração
Mário Chagas e Claudia Maria Pinheiro Storino
A ssistência editorial
Tatiana Kraichete Martins
Projeto gráfico
Marcia Mattos
Editoração eletrônica
Editora Garamond Ltda.
Para
Isadora, Renata e Mariana
7 Introdução
63 Os museus e a cidade
{josé reginaldo santos gonçalves}
social ou cultural, portanto essencialmente voltada para para a descrição
e análise comparativa das categorias de pensamento e seus usos na vida
social.
Um tema recorrente atravessa os textos aqui reunidos: o papel que
os objetos materiais em geral, e em especial aqueles classificados como
itens integrantes de coleções, museus e patrimônios, desempenham no
processo de formação de diversas modalidades de autoconsciência. Nesse
sentido, eles não desempenham apenas a função de sinais diacríticos a
demarcar identidades, mas, na verdade, contribuem decisivamente para
a sua constituição e percepção subjetiva.
Em sua presença incontornável e difusa, usados privada ou publica-
mente, colecionados e expostos em museus ou como patrimônios cul-
turais no espaço das cidades, os objetos influem secretamente na vida
de cada um de nós. Perceber e reconhecer esse fato pode trazer novas
perspectivas sobre os processos pelos quais definimos, estabilizamos ou
questionamos nossas memórias e identidades.
Ao longo desses anos, contraí algumas dívidas profissionais e inte-
lectuais com instituições e pessoas, às quais devo assinalar meus agra-
decimentos.
Aos colegas, alunos e funcionários do Programa de Pós-Graduação em
Sociologia e Antropologia e do Departamento de Antropologia Cultural e
do IFCS / UFRJ, cujo apoio institucional tem sido inestimável.
Aos colegas do Laboratório de Análise Simbólica do IFCS /UFRJ, em
especial a Maria Laura Viveiros de Castro Cavalcanti, Marco Antonio Gon-
çalves, Elsje Lagrou, Ricardo Benzaquen e Lucia Lippi, os quais têm sido
fundamentais como amigos e interlocutores.
Aos integrantes dos Grupos de Trabalho e dos Seminários Temá-
ticos de Patrimônio Cultural da ABA e da ANPOCS, especialmente a
Regina Abreu, Myrian Sepúlveda dos Santos e Manuel Ferreira Lima
Filho. O diálogo que mantenho com eles tem sido dicisivo em minha
produção intelectual.
Marcia Contins acompanhou com atenção e generosidade a elaboração
de cada um desses artigos.
{josé reginaldo santos gonçalves} 11
Teorias Antropológicas
e Objetos Materiais
Essa epistemologia, cabe sublinhar, pressupõe uma naturalização das DaMatta (1980).
{josé reginaldo santos gonçalves} 15
materiais. Estes, na verdade, sempre estiveram presentes na história da
antropologia social e /ou cultural e particularmente na literatura etno-
gráfica. Alguns se tornaram célebres: os churinga nos ritos australianos
(Durkheim 2000); os colares e braceletes do circuito do Kula trobriandês
(Malinowski [1922] 1976); as máscaras dogon (Griaule 1938). Mas ao longo
da história da disciplina nem sempre os antropólogos estiveram voltados
para o estudo dos objetos materiais enquanto tema específico de descri-
ção e análise. Acompanhar as interpretações antropológicas produzidas
sobre os objetos materiais é até certo ponto acompanhar as mudanças
nos paradigmas teóricos ao longo da história dessa disciplina.
Em fins do século XIX e início do século XX, na condição de “objetos
etnográficos”, eles foram alvo de colecionamento, classificação, reflexão
e exibição por parte de autores cujos paradigmas evolucionistas e difu-
sionistas situavam-nos no macro-contexto da história da humanidade. O
destino desses objetos era não somente as páginas das obras etnográficas
(não necessariamente produzidas por antropólogos profissionais, mas
por viajantes e missionários) e das grandes sínteses antropológicas do
período, mas sobretudo os espaços institucionais dos museus ocidentais,
ilustrando as etapas da evolução sócio-cultural e os trajetos de difusão
cultural.
Objetos retirados dos contextos os mais diversos, dos mais distantes
pontos do planeta, eram re-classificados com a função de servir como
indicadores dos estágios de evolução pelos quais supostamente passaria
a humanidade como um todo. Uma máscara ritual da Melanésia poderia
ser colocada lado a lado com uma outra de origem africana. Uma vez
identificadas e descritas a sua composição material e a sua forma esté-
tica, uma delas poderia ser classificada como a que apresentava maior
complexidade e pressupondo uma tecnologia mais avançada do que a
outra. Assim sendo, indicariam estágios hierarquicamente diferencia-
dos de evolução entre as sociedades de onde vieram. Ou poderiam ser
classificadas como indicadores de um mesmo nível de complexidade e
de evolução tecnológica, o que indicaria a posição similar das socieda-
{josé reginaldo santos gonçalves} 17
fosse separar na vida social e cultural o material e o imaterial (ver Capítulo
XII deste livro).
Um ponto importante merece ser ainda assinalado para entendermos
as diferenças entre as formas como os antropólogos pensaram a categoria
“objetos materiais” ao longo da história da disciplina: nesse período, que
ficou conhecido como a “era dos museus”, diferentemente do que veio a
ocorrer em décadas subseqüentes, a relação entre etnógrafos, antropó-
logos e museus era bastante próxima. A antropologia nessa época era
de certo modo produzida nos limites institucionais dos museus (Karp &
Levine 1991; Gonçalves 1994; ver Capítulo III deste livro).
A antropologia pós-boasiana
Um autor como Franz Boas (1858-1942) ainda em 1896 formulou uma
crítica extremamente poderosa às teorias evolucionistas e difusionistas
e essa crítica se estendia aos modelos museográficos concebidos a partir
daquelas teorias. O ponto forte da argumentação de Boas é o de que esses
antropólogos pensavam os objetos materiais em função de seus macro-
esquemas de evolução e difusão, esquecendo-se de se perguntarem pelas
suas funções e significados no contexto específico de cada sociedade ou
cultura onde foram produzidos e usados. Diante de uma máscara melané-
sia e uma máscara africana, não era suficiente descrever o material com
que eram feitas, nem o estilo que as caracterizava, nem a tecnologia mais
ou menos evoluída com que eram produzidas. Era necessário saber qual
o uso dessas máscaras, e conseqüentemente qual o seu significado para
as pessoas que as empregavam em diversos contextos sociais e rituais.
Em outras palavras, era preciso saber quem as usava, quando e com quais
propósitos, o que permitiria revelar a diferença verdadeira entre uma
máscara melanésia usada em rituais religiosos e uma outra máscara usada
nas festas de carnaval em algumas sociedades ocidentais. É preciso obser-
var que a partir dessa crítica desloca-se o foco de descrição e análise dos
objetos materiais (de suas formas, matéria e técnicas de fabricação) para
os seus usos e significados e conseqüentemente para as relações sociais
{josé reginaldo santos gonçalves} 19
dos anos sessenta, o antropólogo Edmund Leach (1910-1989), ao refletir
sobre o que ele pensava ser a diferença fundamental entre o conceito de
“sociedade” e o conceito de “cultura” dizia:
142-181; Gell 1992; Almeida 1998; Price 2000; Lagrou 2000), serão pensa-
(1981; 2000; 2004);
e especialmente as
dos não mais enquanto parte de uma totalidade social e cultural que se de Luis da Câmara
Cascudo (1957; 1983
confunde com os limites de uma determinada sociedade ou cultura em- [1959]; 1962 [1954];
1983 [1963]; 1986
piricamente considerada, mas sim enquanto parte de sistemas simbólicos [1968]; 2001); artigos
que publiquei sobre
ou categorias culturais cujo alcance ultrapassa esses limites empíricos e algumas das obras
{josé reginaldo santos gonçalves} 21
pressão basilar de Marcel Mauss, como “fatos sociais totais” (Mauss 2003),
exigindo portanto que se ponham de quarentena e se problematizem as
categorias classificatórias usadas na sociedade do observador.
{josé reginaldo santos gonçalves} 23
circulação anterior e posterior em outras esferas. Antes de chegarem à
condição de objetos de coleção ou de objetos de museu, foram objetos de
uso cotidiano, foram mercadorias, dádivas ou objetos sagrados. Afinal,
conforme já foi sugerido, cada objeto material tem a sua “biografia cultu-
ral” (Kopytoff 1986) e sua inserção em coleções, museus e “patrimônios
culturais” é apenas um momento na vida social. No entanto, esse momen-
to é crucial pois nos permite perceber os processos sociais e simbólicos por
meio dos quais esses objetos vêm a ser transformados ou transfigurados
em ícones legitimadores de idéias, valores e identidades assumidas por
diversos grupos e categorias sociais.
{josé reginaldo santos gonçalves} 25
3 É interessante
observar que essa dis-
No contexto da recente literatura produzida sobre coleções e museus
cussão (sobre modos etnográficos, o centro da discussão está evidentemente nos limites da re-
alternativos de repre-
sentação etnográfica), presentação etnográfica do “outro”. A discussão se fará a partir de outras
que, para muitos,
teria sido uma criação formas de representação etnográfica que não exclusivamente os textos:
dos chamados “pós-
modernos”, é, na ver-
fotografias, filmes, exposições em museus, etc. A partir desse enfoque,
dade, um problema já as coleções e museus etnográficos deixam de aparecer como conjuntos
assinalado por Clifford
Geertz no início dos de praticas ingênuas ou neutras, para serem redesenhadas como espaços
anos 70: “...a maior
parte da etnografia é onde se constituem formas diversas da autoconsciência moderna: a do
etnógrafo, a do colecionador, a do nativo, a do civilizado, do primitivo, etc.
encontrada em livros
e artigos, em vez de
filmes, discos, exposi-
ções de museus, etc.
(Stocking 1985; Clifford 1985: 236-246; Clifford 1988; Kirshenblatt-Gimblett
Mesmo neles há, cer- 1991; Dias 1991; Hollier 1993).
tamente, fotografias,
desenhos, diagramas,
tabelas e assim por Objetos materiais como patrimônios culturais
diante. Tem feito falta
à antropologia uma
autoconsciência sobre
Em um sugestivo texto onde comenta o “poder dos objetos”, Annette
modos de represen- Weiner afirma:
tação (para não falar
de experimentos com
elas)” (1973:30). “...nós usamos objetos para fazer declarações sobre nossa identidade, nossos objeti-
vos, e mesmo nossas fantasias. Através dessa tendência humana a atribuir significa-
dos aos objetos, aprendemos desde tenra idade que as coisas que usamos veiculam
mensagens sobre quem somos e sobre quem buscamos ser. (...) Estamos intimamente
envolvidos com objetos que amamos, desejamos ou com os quais presenteamos os
outros. Marcamos nossos relacionamentos com objetos (...). Através dos objetos
fabricamos nossa auto-imagem, cultivamos e intensificamos relacionamentos. Os
objetos guardam ainda o que no passado é vital para nós. (...) não apenas nos fazem
retroceder no tempo como também tornam-se os tijolos que ligam o passado ao
futuro.” (Weiner 1987: 159).
“Existe uma moralidade das “coisas”, dos objetos em seus significados e usos conven-
cionais. Mesmo ferramentas não são tanto instrumentos utilitários “funcionais”
quanto uma espécie de propriedade humana ou cultural comum, relíquias que
{josé reginaldo santos gonçalves} 27
ser nem vendidos e nem doados, mas que integram os sistemas de trocas
recíprocas para que paradoxalmente possam ser mantidos e guardados
sob o controle de determinados grupos (Mauss 2003; Gregory 1982; Weiner
1992; Godelier 2001; Hénnaf 2002:135-207).
É possível que essa categoria universal de bens nos possa ser útil para
entender ao menos parcialmente aqueles objetos que, uma vez retirados
da circulação cotidiana, vêm a ser, no contexto das modernas sociedades
ocidentais, classificados como “patrimônio cultural”. Objetos que compõem
coleções particulares podem ser vendidos e comprados; e mesmo objetos
que integram o acervo de museus podem eventualmente ser vendidos ou
trocados; mas, em princípio, não é admitido esse procedimento para aqueles
objetos classificados como “patrimônio cultural” por determinado grupo
social. Na medida em que assim classificados e coletivamente reconhecidos,
esses objetos desempenham uma função social e simbólica de mediação
entre o passado, o presente e o futuro do grupo, assegurando a sua conti-
nuidade no tempo e sua integridade no espaço.
4 Para a já extensa
produção bibliográfi-
Nas últimas décadas, tem crescido notavelmente a literatura sobre os
ca sobre patrimônio chamados “patrimônios culturais” em diversas áreas, mas especialmente
cultural no Brasil,
vale a pena consul- na área de antropologia. Grande parte desses estudos corretamente tem
tar: Arantes 1984;
Gouveia 1985; Abreu assinalado as funções identitárias daqueles objetos materiais (ou mesmo
1996; 2003; Londres
1997; 2001; Rubino
de supostos bens “imateriais” ou “intangíveis”) na representação pública
1991; Santos 1992; de identidades coletivas (nações, grupos étnicos, grupos religiosos, bair-
Lima Filho 2001;
Proença 2004; entre ros, regiões). Aparentemente, menos ênfase vem sendo dada à natureza
muitos outros. Para
a discussão dessa mesma dos objetos eleitos como patrimônio (sua forma, o material com
que são produzidos, as técnicas de produção adotadas, seus usos sociais e
categoria no contexto
francês, especialmen-
te do ponto de vista
dos historiadores, ver
rituais) para representar uma determinada “identidade” e “memória”. Em
(Nora 1997). alguns estudos, a sugestão implícita ou explícita é de que a escolha desses
objetos seria de natureza arbitrária, contingente, materializando o que
seriam emblemas de “tradições inventadas” (Hobsbawm&Ranger 1992).
As ações que levariam a tais escolhas seriam conscientes e intencionais,
visando propósitos ideológicos e políticos em contextos sociais marcados
pelos conflitos de interesses e valores.
na “inventividade das tradições” (Sahlins 1999). Ou, parafraseando a rica patrimônio cultural;
seja enquanto patri-
sugestão de Roy Wagner, se não será oportuno considerar se não são afinal mônio genético; etc.
Nesse sentido, suas
os “patrimônios culturais” que nos “inventam” (no sentido de que cons- qualificações acom-
panham as divisões
tituem nossa subjetividade), ao mesmo tempo em que os construímos no estabelecidas pelas
modernas categorias
tempo e no espaço. Em outras palavras: quando classificamos determi- de pensamento:
economia; cultura;
nados conjuntos de objetos materiais como “patrimônios culturais”, esses natureza; etc. Sabe-
mos no entanto que
objetos estão por sua vez a nos “inventar”, uma vez que eles materializam essas divisões são
construções históri-
uma teia de categorias de pensamento por meio das quais nos percebemos cas. Podemos pensar
tural” assume uma dimensão universal e não seria apenas um fenômeno mundo. Na verdade
resultam de proces-
sificação que os elevam à condição de “patrimônios culturais”. É nesses ocidentais) ela tende
a assumir formas
{josé reginaldo santos gonçalves} 29
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e noutro caso, não se questiona o papel desempenhado por essas ins- se estabelece indireta-
mente por intermédio
como uma categoria universal, como uma prática cultural presente em o meuseógrafo; tudo
isto constitui uma
toda e qualquer sociedade humana. Nesse sentido, ganha, em alguns experiência de uma
riqueza e de uma
autores, rendimento analítico, servindo como eixo para uma análise densidade que não
teríamos razão em
comparativa. subestimar” (1973
[1954]: 418-419).
{josé reginaldo santos gonçalves} 45
3 Krzysztof Pomian é
historiador e filósofo, A coleção como mediação entre o visível e o invisível
e associado ao grupo
{josé reginaldo santos gonçalves} 47
James Clifford parte da universalidade da prática do colecionamento.
No entanto, sua ênfase desloca-se para as formas específicas que essa prá-
tica pode assumir em diferentes sociedades, e especialmente no ocidente
moderno. Segundo ele:
{josé reginaldo santos gonçalves} 49
análise crítica da ideologia da coleção mostra precisamente o esforço
sempre irrealizado no sentido de constituir essa totalidade, na medida
mesmo em que exclui o que seja considerado “inautêntico”. Em outras
palavras, o colecionamento, na perspectiva desse autor, parece um pro-
cesso dividido contra si mesmo, articulado por uma permanente tensão
entre totalização e fragmentação.
Essa perspectiva em relação às formas de representação etnográfica
define-se por oposição contrastiva em relação às formas presentes no
século XIX, com a antropologia evolucionista, e no século XX, com a mo-
derna antropologia social e cultural.
(1994: 164). Essa valorização da observação, segundo os cânones da histó- 1991; entre outros).
{josé reginaldo santos gonçalves} 51
sentidos. Mas, assinala Dias, diversos autores que focalizaram e criticaram o
que chamam de “visualismo” do conhecimento antropológico estavam vol-
tados para as metáforas visuais presentes no texto, e não para as exposições
de objetos (Fabian 1983; Clifford e Marcus 1986; Tyler 1987). E é para estas que
se dirige sua reflexão. Ela sugere que se assuma um enfoque histórico para
entender as diversas formas que pode assumir essa associação entre visão e
conhecimento antropológico. Uma vez que a visão parece se constituir num
modo privilegiado desse conhecimento, o que é para ser visto num museu
muda de um período histórico para outro – assim como mudam as relações
e a divisão entre o visível e o invisível.
A autora chama a atenção para a ênfase concedida, no século XIX, aos
objetos em detrimento das palavras. A vasta e diversificada quantidade
de coleções e museus nesse período, que já mereceu o título de “era dos
museus”, parece sustentar sua afirmação. No caso dos museus etnográficos
desse período, assinala Dias, é possível perceber duas modalidades de expo-
sição de objetos: o arranjo “tipológico” e o arranjo “geográfico”, associados
a duas diferentes modalidades de visão e dois diferentes tipos de memória,
dois diferentes modos de adquirir e reter conhecimento (1994:165).
Enquanto Pomian, como vimos anteriormente, concebe a relação vi-
sível /invisível como uma oposição universal a ser mediada pelas cole-
ções, Dias vai deslocar sua análise para o “olhar” enquanto uma categoria
histórica e culturalmente determinada, e para o entendimento de como
distintas modalidades do “olhar” podem estar articuladas a concepções
diversas sobre o que é visível e o que é invisível em diferentes culturas e
diferentes momentos históricos.
Desde o século XIX, o conhecimento antropológico tem estado asso-
ciado às metáforas visuais. Uma vez que o antropólogo é definido como um
“observador”, e que o sujeito é definido pela condição mesma daquele que
olha – e não do que é olhado – , esse conhecimento leva à objetificação do
outro. Este outro, o “primitivo”, é representado como distante no espaço
e no tempo: um tempo e espaço definidos por oposição ao discurso antro-
pológico, por sua vez definido no tempo presente e no espaço atual.
{josé reginaldo santos gonçalves} 53
calização em determinado ambiente geográfico, sua produção, seus usos
e seus significados (1994:170). Nessas modalidades de exposição é muito
comum apresentarem-se cenas da vida diária.
Esse arranjo pressupunha um outro modo de ver. Outro modo de tornar
visível o invisível. Nele buscava-se o significado dos objetos, o que exigia
que se chegasse a descobrir aquelas relações que não eram perceptíveis
imediatamente no ato de ver. Essas relações ocultas eram acessíveis apenas
através do trabalho de campo (1994:170). O olhar do espectador era solici-
tado a se projetar para além da superfície, para além do quadro horizon-
tal e mergulhar verticalmente (1994:171). Os artefatos eram expostos não
para evidenciar princípios (como no arranjo tipológico), mas para levantar
questões, levar a descobertas e desafiar os valores dos visitantes (1994:171),
uma vez que esse outro que era representado deixava de ser apenas um
personagem no processo evolutivo (como na antropologia evolucionista), e
tornava-se o representante de culturas radicalmente distintas do ocidente
(como vem a ser no discurso da moderna antropologia social e cultural). O
tipo de olhar aí presente não poderia ser o olhar desengajado que caracte-
rizava os arranjos tipológicos.
Em contraste com os arranjos tipológicos, o arranjo geográfico volta-
se para um espaço concreto, situado geográfica e temporalmente. Mas,
paradoxalmente, esses arranjos, ainda que mostrem a vida de um povo
na sua singularidade e situados geográfica e temporalmente, terminam
por apresentar a cultura como se num eterno presente, estável e imutável
(1994:171). O espectador, nessas modalidades de exposição, é convidado a
ocupar o lugar do antropólogo, como se fosse este no campo, procedimen-
to análogo ao que é articulado nas monografias clássicas (1994:172).
Outro aspecto importante assinalado pela autora é que, no caso dos
arranjos geográficos, dispensa-se a intermediação de princípios classi-
ficatórios, e pressupõe (na medida mesmo em que faz uso de manequins
e reconstruções de aldeias) a convicção de uma visão não mediada, uma
visão imediata, livre da intervenção humana (1994:172). Em contraste com
o arranjo tipológico, solicitava-se aí um olhar que implicava, em certo
{josé reginaldo santos gonçalves} 55
Ao se avaliar a autenticidade das representações articuladas por coleções
e museus etnográficos, e especificamente das exposições etnográficas, esse
valor poderá ser concebido de duas formas distintas. Ora pelo que chamei
de “autenticidade aurática”: uma concepção centrada no princípio da não
reprodutibilidade dos objetos, e voltada para a originalidade, singularidade e
permanência destes; ora pelas formas “não auráticas” de autenticidade, arti-
culadas pelo princípio mesmo da reprodutibilidade, e nas quais os objetos são
reproduzidos e transitórios (Gonçalves 1988; ver capítulo VI deste livro).
9 Faço uso aqui aqui Em uma e outra concepção de autenticidade estão presentes idéias dis-
das reflexões de Jean
Pierre Vernant sobre tintas a respeito da “imagem” (ou do objeto), ou do “visível” e sua relação
as categorias “visível”
e “invisível” na Gécia com o que é por ela representado, ou com o “invisível”. No primeiro caso,
antiga em estudos
acima citados.
a imagem (ou o objeto), ou o “visível” é entendido como uma “encarnação”
do “invisível”, uma espécie de “revelação” de uma realidade; de certo
modo, os objetos expostos são uma emanação, ou uma manifestação da
própria realidade “invisível” que eles representam (uma máscara Tukuna
é a forma “visível” da totalidade que é a cultura Tukuna).
No segundo caso, a imagem (ou o objeto), ou o “visível” é entendido
como uma “imitação da aparência”, como uma “cópia imitando um mo-
delo”, valorizando-se o “visível” em detrimento do “invisível”. O esforço
aí é no sentido de que as imagens (ou os objetos) venham a ilustrar, ou
documentar, e não manifestar a realidade que representam.
As teorias antropológicas de caráter mais universalista (e que enfa-
tizam a similaridade entre as culturas e a redutibilidade destas a mo-
delos teóricos abstratos) acompanham bem esta segunda concepção da
imagem. Já as de caráter relativista (e que enfatizam as diferenças entre
as culturas e a irredutibilidade dessas diferenças) parecem se adequar
melhor à primeira concepção a respeito das relações entre a imagem e
o que por ela é representado. No primeiro caso, temos uma visualidade
10 Para uma elabo-
ração da categoria
mediada pela “transparência”; no outro, pelo “mistério”10.
“mistério”, associada
a situações sociais
marcadas pela dife-
Discurso antropológico e visualidade
rença, ver (Burke 1966:
223-239). Mas, afinal, que podemos aprender sobre as teorias antropológicas
da cultura estudando as formas que assumem quando visualmente re-
{josé reginaldo santos gonçalves} 57
e cultural) passa a ser entendida como parte de um contexto histórico e
intelectual mais amplo. Mais que uma “disciplina”, no sentido mais estrito,
profissionalizado e acadêmico do termo, podemos perceber a antropolo-
gia como uma forma de vida, ou como um jogo de linguagem, passível de
transformações de um a outro período histórico.
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Narrativa e informação
Em um texto já bastante conhecido, escrito em 1936, Walter Benja-
min desenvolve algumas reflexões que se tornaram clássicas a respeito
do “narrador”. Ele inicia o texto com a constatação do declínio e desa-
parecimento da narrativa, de nossa capacidade de narrar, processo que
está intimamente associado à perda de nossa “faculdade de intercambiar
experiências” (1986:198). Pois é precisamente “A expriência que passa de
pessoa a pessoa [que] é a fonte a que recorreram todos os narradores”
(1986:198).
A narrativa, enquanto uma modalidade específica de comunicação
humana, floresce num contexto marcado pelas relações pessoais. O nar-
rador é alguém que traz o passado para o presente na forma de memória;
ou que traz para perto uma experiência situada num ponto longínquo
do espaço. A narrativa sempre remete a uma distância no tempo ou no
espaço. Essa distância é mediada pela experiência pessoal do narrador.
Para Benjamin, os grandes modêlos de narradores eram o velho artesão
que conhecia as tradições de sua aldeia e o marinheiro que narrava suas
experiências adquiridas em viagens.
O narrador sempre impunha a sua marca pessoal em suas estórias.
Enquanto modalidade de comunicação, a narrativa sempre deixa rastros
humanos. Como a marca das mãos do artesão num objeto que produz.
Há uma forte relação pessoal entre o narrador e suas estórias e com sua
audiência. Relação esta que passa necessàriamente pelo corpo. O narra-
dor, ao contar uma estória, faz uso do seu corpo, especialmente de suas
mãos. Segundo Benjamin:
“...a narração, em seu aspecto sensível, não é de modo algum o produto exclusivo
da voz. Na verdadeira narração, a mão intervém decisivamente, com seus gestos,
aprendidos na experiência do trabalho, que sustentam de cem maneiras o fluxo do
que é dito” (1986:221).
{josé reginaldo santos gonçalves} 65
de assimilação “... exige um estado de distensão que se torna cada vez mais
raro” (1986:204) no cotidiano de uma cidade moderna.
Com o declínio da experiência no contexto da grande metrópole, de-
senvolve-se uma outra forma de comunicação humana peculiar a esse
novo contexto: a informação. A imprensa é uma das suas manifestações.
É ela em grande parte a responsável pelo desaparecimento da narrati-
va. Com o seu advento, desaparece o contexto de relações inter-pessoais
onde floresce a narrativa. A informação é fruto de um universo marcado
pela heterogeneidade dos códigos sócio-culturais, pela impessoalidade
e pelo anonimato. A narrativa, como vimos, é fundada na possibilidade
de compartilhar experiências, portanto numa coletividade interligada
por laços afetivos. A informação dirige-se a indivíduos isolados, átomos
sociais desprovidos da rêde intensa de relações que caracteriza o narrador
e sua audiência. A informação, em contraste com a narrativa, não deixa
rastros, não deixa marcas pessoais. Enquanto a narrativa trazia estórias
que vinham de longe no tempo ou no espaço, a informação se prende ao
que é próximo. A narrativa trazia embutido um saber que vinha de longe
e dispunha portanto de uma autoridade que podia mesmo dispensar a
sua verificação pela experiência. Segundo Benjamin:
“...a informação aspira a uma verificação imediata. Antes de mais nada, ela precisa
ser compreensível ‘em si e para si’. Muitas vezes não é mais exata que os relatos
antigos. Porém, enquanto esses relatos recorriam freqüentemente ao miraculoso,
é indispensável que a informação seja plausível. Nisso ela é incompatível com a arte
da narrativa” (1986:203).
Num texto escrito em 1936, em Paris, Edmond Jaloux, citado por Ben-
jamin, diz:
“Um homem que passeia não devia se preocupar com os riscos que corre, ou com as
regras de uma cidade. Se uma idéia divertida lhe vem a mente, se uma loja curiosa
se oferece a sua visão, é natural que, sem ter de afrontar perigos tais como nossos
avós nem mesmo puderam supor, ele queira atravessar a via. Ora, hoje ele não pode
fazê-lo sem tomar mil precauções, sem interrogar o horizonte, sem pedir conselho
à delegacia de polícia, sem se misturar a uma multidão aturdida e acotovelada, cujo
caminho está traçado de antemão por pedaços de metal brilhante. Se ele tenta
juntar os pensamentos fantásticos que lhe ocorrem, e que as visões da rua devem
excitar, é ensurdecido pelos alto-falantes ... desmoralizado pelos trechos de diálo-
gos, dos informes políticos e do jazz que se insinuam pelas janelas...” (1989a:210).
{josé reginaldo santos gonçalves} 67
Nesse mesmo texto, ele acrescenta, numa caracterização da flânerie:
“Sair quando nada nos força a fazê-lo e seguir nossa inspiração como se
o simples fato de dobrar à direita ou à esquerda já constituisse um ato
essencialmente poético” (1989a:210).
Como se pode perceber, o que ganha destaque na caracterização do
flâneur é o seu compromisso com o ócio. Esse é um outro motivo que o situa
na contra-mão dos modernos processos de divisão social do trabalho. Esse
ócio no entanto esconde um intenso interêsse na vida à sua volta. Num
universo marcado pela impessoalidade e pelo anonimato garantidos pela
reserva psicológica característica do habitante das grandes cidades, o
flâneur se dedica a advinhar pelas roupas, gestos, voz, modo de caminhar,
a profissão, a origem e o caráter dos transeuntes.
Seu deslocamento pelas ruas da cidade, embora casual e ocioso, é mo-
tivado pela possibilidade de, a qualquer momento, experimentar a desco-
berta de alguma dimensão de realidade desconhecida, exótica, distante no
tempo ou no espaço. O museu pode ser um dos locais dessa experiência.
Ora, esses atributos são precisamente os que estão ausentes na carac-
terização do “homem-da-multidão”. Este pode ser descrito como o que
aconteceria ao flâneur se lhe fôsse retirado o seu ambiente. É a intensifica-
ção dos processos característicos da grande cidade, a vasta heterogenei-
dade de códigos sócio-culturais, a intensificação da atitude psicológica de
reserva do habitante da grande cidade, o aumento do tráfego e do ritmo
de deslocamento da população, que inviabilizam a experiência do flâneur,
assim como a informação inviabiliza a narrativa. O homem-da-multidão,
em contraste com o flâneur, identifica-se maniacamente com a multidão
e seu ritmo vertiginoso. Dele está ausente a dimensão subjetiva do flâ-
neur, a atitude de interêsse e curiosidade pelo que ocorre a sua volta. Ele
certamente tem sua atenção mobilizada pela multidão, mas ele se deixa
levar de modo maníaco pelo movimento desta. Ele não a observa, como
faz o flâneur, mantendo seu ritmo próprio. O homem-da-multidão tende
a se definir como um número num universo progressivamente marcado
pelo igualitarismo e pelo caráter abstrato das relações.
{josé reginaldo santos gonçalves} 69
situadas num continuum cujos polos seriam delimitados pelas figuras do
flâneur e do homem-da-multidão.
O museu-narrativa e a flanêrie
O museu-narrativa surge e se desenvolve em um contexto urbano
onde a relação com o público ainda guarda uma marca pessoal. Ele não
é um museu feito para atender grandes multidões. Quantitativamente
seu público é bem restrito; qualitativamente, seleto. É provável que nêle
caminhe confortàvelmente o flâneur; mas certamente não se reconhecerá
nesse espaço o “homem da multidão”. Dessa relação o museu-narrativa
retira uma série de características definidoras.
A fruição do museu-narrativa supõe da parte do visitante um estado
de distensão psicológica que não é mais possível no contexto de uma
grande metrópole com seu ritmo intenso, frenético, incompatível com a
flânerie. Não por acaso, Benjamin chama de “casas de sonho” os museus
parisienses do século XIX visitados pelo flâneur (1989b:422-433). Essa ex-
periência supõe aquele estado de distensão psicológica próxima da ex-
periência do narrador e dos seus ouvintes.
Essa fruição supõe, por sua vez, uma determinada configuração do
espaço do museu e dos objetos expostos. Esse espaço tende a ser identifi-
cado como um interior, a separação com relação ao espaço da rua bastante
marcada, o que repercute na iluminação. Uma grande quantidade de ob-
jetos são expostos, acumulando-se em salas e vitrines, sem textos que os
situem em algum período histórico. O deslocamento dos visitantes se faz
com lentidão. Os objetos se impõem à atenção dos visitantes, exercendo
seu poder evocativo. Moedas, móveis, espadas, medalhas, louça, quadros,
vestuário, um conjunto heteróclito de objetos ocupa amplamente os es-
paços dedicados à exposição. Esses objetos também estão ligados à expe-
riência, pelo menos à experiência de determinados grupos e categorias
sociais, por exemplo às famílias de elite. Eles desencadeiam a fantasia
do visitante, uma vez que não estão amarrados a qualquer informação
definida. Configuram um espaço propício à flânerie.
“O retrato de qualquer uma das salas arrumadas na época de Barroso nos dá a sen-
sação de que a superabundância era considerada o meio mais adequado para que
as obras adquirissem valor. Praticamente todo o acervo estava exposto. As louças
ou aparelhos de cerâmica tinham quarenta ou mais pratos, todos expostos, lado a
lado. Os objetos literalmente empilhavam-se. Armas, bandeiras, canhões, louças,
tudo em grande quantidade. Essa profusão simbolizava a capacidade que tinham
estes objetos de testemunhar sôbre a realidade. Mas estas relíquias do passado eram
mostradas ao público obedecendo a uma lógica que lhes pertencia. As peças de um
aparelho da Companhia das Indias não podiam ser separadas. É como se elas fossem
capazes de dizer mais do que qualquer um sobre o tema, eram fonte de inesgotável
saber, parte da realidade a ser descoberta por cada visitante. Quem entrasse em
uma sala jamais poderia pensar ter captado todo o sentido nela embutido. Não havia
uma “mensagem” por parte do Museu, mas milhares” (1988:44).
{josé reginaldo santos gonçalves} 71
dos seus profissionais. O profissional desse modelo de museu definirá
sua identidade fundamentalmente pela sua capacidade de identificar e
autenticar objetos. Esse tipo de relação com os objetos passa por uma
comunicação sensível – tato, cheiro, olhar – que viabiliza a identifica-
ção e autenticação dos objetos. No contexto do museu-informação esse
profissional será solicitado a desempenhar outras funções além daque-
las, ganhando o primeiro plano as funções de pesquisa, comunicação e
divulgação.
O museu-informação e a multidão
O sistema de relações sociais e o conjunto de idéias e valores a que
estou chamando “museu-informação” desenvolvem-se em função das
grandes metrópoles e de suas multidões anônimas, definindo-se a partir
de suas relações com o mercado, com um vasto público voltado para o
consumo de informações e bens culturais. Ele existe basicamente para
atender a esse público, e pelo qual vê-se na contingência de competir com
os meios de comunicação de massa. Seus visitantes, diferentemente do
flâneur, o percorrem num ritmo intenso, vertiginoso, na expectativa de
consumir informações da maneira mais rápida e econômica. É para esse
visitante que se montam os serviços de infra-estrutura dos museus assim
como todo o conjunto de atividades culturais e objetos que se vendem no
espaço dos museus e dos chamados “centros culturais”.
É nesse contexto que se desenvolvem propostas no sentido de que os
acervos museológicos assim como o “patrimônio cultural” representem
democraticamente as diversas categorias e grupos sociais existentes na
sociedade. É nesse contexto que se fala em “invenção” do patrimônio. A
idéia de “invenção” nesse contexto vem acompanhada de valores como
autonomia e liberdade assumidos por sujeitos individuais ou coletivos. Há
então uma ênfase bastante forte nas funções de comunicação dos museus.
Essas propostas manifestam a tendência à fragmentação, onde cada cate-
goria, cada grupo social e, levando ao absurdo, cada indivíduo possuiria
seu próprio museu ou seu próprio patrimônio cultural. A chamada “nova
{josé reginaldo santos gonçalves} 73
Desse processo faz parte a profissionalização do campo museológico
no Brasil, sobretudo a partir dos anos setenta e oitenta. Essa profissiona-
lização, resposta necessária às transformações por que passam os museus
e a cidade, tende no entanto a trazer consigo uma relação marcadamente
técnica e mercadológica com os objetos e com os espaços museológicos,
acentuando-se as funções de comunicação com o público, o que contrasta
fortemente com o contexto do museu-narrativa.
{josé reginaldo santos gonçalves} 75
prática dos profissionais desta Casa à época de Barroso. Essa relação teria
entrado em declínio com o advento de novos modelos museológicos a
partir dos anos setenta. Historicamente, é verdade que os “novos muse-
ólogos”, desde os anos setenta, retiraram a ênfase nas práticas de identi-
ficação e autenticação de objetos como um dos requisitos fundamentais
na formação do profissional de museus. Eu arriscaria dizer no entanto
que, apesar do declínio da valorização dessas práticas, elas talvez ainda
constituam o núcleo da identidade dos profissionais de museus. Apesar
de ocuparem uma posição marginal nos atuais currículos de museologia,
é possìvelmente por seu intermédio que a comunidade identifica, avalia
e reconhece, informalmente, no cotidiano, os seus profissionais. Nesse
sentido, acredito que haja uma continuidade profunda, uma estrutura de
longa duração a ligar os antigos e os novos profissionais de museu àquela
tradição dos antiquários.
É provável que essa distinção entre uma dimensão concreta e outra
abstrata na atividade do profissional de museu esteja ligada a uma dua-
lidade estrutural presente nos próprios objetos museológicos, dualidade
não muito diferente daquela estabelecida na teologia política medieval
entre “os dois corpos do rei”. Segundo um estudo clássico de Ernst Kan-
torowicz (1981), os reis medievais possuiam dois corpos. Um deles era
um corpo contingente e perecível e que desapareceria com a morte. O
outro era um corpo transcendente e eterno e que porisso mesmo tinha
a capacidade de representar a totalidade da ordem cósmica e da ordem
social. Assim, também os objetos museológicos possuem, de um lado,
uma dimensão contingente e perecível enquanto objetos materiais; de
outro, uma dimensão abstrata e transcendente enquanto representações
de ideais e valores sociais. As transformações que se processaram no
discurso museológico desde os anos setenta parecem indicar uma forte
tendencia no sentido de se valorizar a dimensão abstrata dos objetos, a
sua capacidade de representar valores e ideais de diferentes grupos e
categorias sociais. Faz sentido nesse contexto a valorização dos textos
em detrimento dos objetos. Estes tendem a ser mais valorizados como
{josé reginaldo santos gonçalves} 77
Não acredito que um bom diagnóstico antropológico ou sociológico
possa ser aplicado com o propósito de “melhorar” ou tornar “mais ra-
cional” o funcionamento de determinada instituição ou o ofício de seus
profissionais.
Acredito no entanto que o conhecimento produzido pelas ciências
sociais, sendo essencialmente dialógico, possa alimentar a conversação
entre diferentes sub-culturas. No caso em pauta, a sub-cultura dos cien-
tistas sociais de um lado; e de outro, a sub-cultura dos museólogos e dos
profissionais de patrimônio. Minha expectativa é que essas sugestões
possam servir, de algum modo, para manter viva, entre nós, essa con-
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{josé reginaldo santos gonçalves} 79
Os Museus e a Representação
do Brasil
expressa em relação
continuamos a viver
acreditando – graças à
faculdade da mímese
{josé reginaldo santos gonçalves} 83
enquanto produtos da chamada “cultura erudita” são igualmente incor-
porados, reinterpretados e difundidos pelos meios de comunicação. Esse
processo, é importante sublinhar, não se desenrola num mesmo plano,
onde tudo se homogeneizaria num processo de “globalização” e “trans-
nacionalização” da cultura. Na verdade, esse processo de circulação da
cultura está submetido a divisões e hierarquias, a estruturas nacionais e
locais de natureza social e simbólica, cuja lógica de funcionamento pre-
cisa ser decifrada para que se possam perceber os limites reais e avaliar
lucidamente os seus efeitos sociais.
Ao adquirir, por variados meios, objetos das mais diversas procedên-
cias, ao classificá-los como componentes de uma determinada coleção e
ao exibi-los publicamente, os museus modernos não somente expressam
como fabricam idéias e valores por meio dos quais as relações entre socie-
dades, grupos e categorias sociais são pensadas. Seu estudo nos dá acesso
aos mecanismos pelos quais essas idéias e valores circulam socialmente,
como são reproduzidos, reinterpretados e disseminados no espaço pú-
blico das sociedades modernas. Aquilo que Françoise Héritier chamou
de “simbólica elementar do idêntico e do diferente” (1979:217) é elabora-
da de modos particulares através daqueles procedimentos de aquisição,
classificação e exibição de objetos pelos museus. Oposições fundamentais
do universo social e ideológico moderno tais como civilizado /primitivo,
nacional/ estrangeiro, erudito /popular, elite /povo, passado /presente
e principalmente autenticidade / inautenticidade são representadas e
disseminadas no espaço dos museus, o que os transforma em rico material
de estudo sobre os sistemas de relações sociais e os sistemas de idéias e
valores vigentes no contexto das sociedades modernas.
Desde as duas últimas décadas do século passado, tem crescido no-
tavelmente o número de estudos produzidos sobre coleções, museus e
“patrimônios culturais”, sobretudo nas áreas de Antropologia e de His-
tória. Os primeiros concentram-se em coleções e museus etnográficos e
étnicos (Clifford 1997; 2003; Dias 1991; Stocking 1983; Karp & Lavine 1991;
Karp, Lavine & Kreamer 1992; Thomas 1991; Ames 1992; Jacknis 2002);
{josé reginaldo santos gonçalves} 85
de nosso discurso. Ou, dito de outra forma, essa excessiva familiaridade
pode levar por vezes os pesquisadores a reeditar em suas análises as idéias
e valores presentes nos discursos daqueles que são seus objetos de estudo.
A antropologia, com sua tradição de estudo do “outro”, de sociedades e
culturas radicalmente distintas das nossas, e de crítica permanente ao
etnocentrismo, pode talvez se constituir num excelente ponto de apoio
para nosso distanciamento em relação àquele universo. Antes de tudo, é
preciso colocar em perspectiva as próprias teorias ocidentais de cultura
como uma das teorias possíveis, problematizando assim a sua “univer-
salidade”.
Minha sugestão é entender os museus enquanto espaços integrantes
dos modernos “sistemas de arte e cultura” (Clifford 2003) por meio dos
quais grupos e categorias sociais representam e constituem simbolica-
2 Este artigo é um mente suas inter-relações e sua inserção na sociedade brasileira. A es-
dos resultados do
projeto “Museus tratégia assumida é a de focalizar os processos cotidianos de construção
como Sistemas Cultu-
rais: uma perspectiva
e reconstrução desses sistemas do ponto de vista de seus agentes. Assumi
antropológica”, finan- como tarefa inicial saber como os “profissionais de museus”, aqueles que
ciado pelo CNPq na
década de 90, e que são responsáveis pela formação, preservação e exibição de coleções, con-
deu continuidade aos
estudos que já vinha cebem sua atividade e que relação estabelecem entre esta e os diversos
realizando, desde a
década de oitenta,
grupos e categorias sociais que compõem a sociedade brasileira e que,
sobre os discursos do
patrimônio cultural
em princípio, devem estar representados, de formas diversas, em nossos
no Brasil . museus.
O fato de iniciar essa reflexão, assumindo o ponto de vista dessa cate-
goria – ao invés de ter iniciado pelo “público dos museus”, ou pelos “cole-
cionadores”, ou ainda pelas agências e agentes do Estado responsáveis pela
manutenção de grande parte dos museus existentes no Brasil – deve-se a
uma escolha determinada: os “profissionais de museus” (em geral “muse-
ólogos” formados em um curso universitário, mas nem sempre) ocupam
uma posição central no processo de seleção, identificação, autenticação,
preservação e exibição dos objetos que integram os acervos dos museus.
Eles fazem uma mediação social e simbólica estratégica entre a sociedade,
o Estado e o “público”.
foi ficando claro para eles que eu estava interessado não só nas teorias
ao Museu Histórico
Nacional e à Escola
relações se tornaram mais complexas e meus entrevistados deixaram então diretor da esco-
la de Museologia da
claro que estavam determinados a me esclarecer a respeito do que era Uni-Rio, que partilhou
comigo o seu refinado
um museu e o que era ser um museólogo, uma vez que minha posição era conhecimento sobre
a história dos museus
a de um estranho naquele meio. Um estranho em termos sociais, uma vez brasileiros.
{josé reginaldo santos gonçalves} 87
tas, conduzidas em sua maioria nos seus locais de trabalho, solicitamos
que nos contassem de que modo tornaram-se “museólogos” e que des-
crevessem sua trajetória profissional. Formaram-se todos, em períodos
distintos, na Escola de Museus do Museu Histórico Nacional. Em segui-
da, vieram a trabalhar inicialmente como estagiários e posteriormente
como profissionais contratados no próprio Museu Histórico ou em outros
museus públicos federais ou estaduais no Rio de Janeiro ou em outros
estados. Muitos vieram a trabalhar ou ainda trabalham como professores
na formação de museólogos.
Em linhas gerais, é possível perceber, através do depoimento dos en-
trevistados, que ao longo dos últimos setenta anos ocorreram mudanças
significativas nas concepções de museu e de seu papel social e conse-
qüentemente nos padrões de formação dos seus profissionais. Afirmar
que essas mudanças ocorreram no sentido de uma progressiva profissio-
nalização desse campo, embora não seja falso, pode induzir a uma visão
linear e teleológica da história desse campo no Brasil. Assim, talvez seja
mais prudente afirmar que esse processo de profissionalização obedece
a tensões específicas entre conjuntos diferenciados e opostos de idéias
e valores quanto ao papel social dos museus e a identidade dos seus pro-
fissionais.
Vamos analisar dois temas interdependentes que nos foram sugeridos
pelos entrevistados:
a) os padrões de formação dos profissionais de museus;
b) as funções do museu e a especificidade do trabalho dos seus pro-
fissionais.
{josé reginaldo santos gonçalves} 89
velle et Experimentation Sociale”: propõe que os profissionais de museu,
ou como ele os chama, “les gens de musée” “...tomem a palavra fora dos
circuitos oficiais; que se expressem como profissionais e pesquisadores
de sua própria disciplina, face aos teóricos de fora, aos críticos e aos fun-
cionários” (1985). Afirma ele que deve procurar uma geração interessada
no homem e no que é vivo, em oposição ao objeto e à morte (1985). Sobre a
profissão de museólogo, afirma que ela se constitui “...pelo nascimento de
uma consciência coletiva de pertencimento, de um projeto comum, de in-
teresses comuns, de práticas comuns” (1985). E ainda: “Como movimento, a
associação destaca seu compromisso na sociedade contemporânea. Como
união de grupos políticos, ela coloca em causa não as técnicas museoló-
gicas, mas suas missões fundamentais, seja para lhes valorizar, seja para
lhes contestar propondo alternativas” (1985). Assim, diferenciando-se das
organizações internacionais, as quais, segundo ele, pretendem criar uma
disciplina científica, a museologia, o MNES “...tenta aqui abrir um meio de
expressão à diversidade de comportamentos museológicos, a experiências
e pesquisas. Seu objetivo é provocar uma reflexão individual e coletiva”
(1985). Ele enumera alguns princípios do movimento:
“1. “o objeto está ao serviço do homem e não o inverso”; 2. “o tempo e o espaço não
se fecham entre muros e paredes”; 3. “a arte não é a única expressão cultural do
homem”; 4. “o profissional de museu é um ser social, um ator da mudança, um ser-
vidor da comunidade”; 5. “o visitante não é um consumidor dócil, mas um criador
que pode e deve participar da construção do futuro”; 6. “a pesquisa, a conservação,
a apresentação, a animação são funções, grupos de técnicas, mas em caso algum
missões do museu”; 7. “por que o museu, para nós, é ou deve ser um dos instrumen-
tos mais perfeitos que a sociedade se deu para preparar e acompanhar sua própria
transformação” (1985).
pelo discurso da “nova museologia”, vão provocar uma redefinição nos os profissionais de
design. Estes assu-
padrões de formação dos profissionais. Essa redefinição vem se opor aos mem, muitas vezes, a
formulação e imple-
padrões estabelecidos ao longo de algumas décadas, desde os anos trinta, mentação de projetos
museográficos em co-
quando então se institui a primeira escola de museologia do país (Dumans laboração ou não com
mus e ól o gos . D e vo
1942). e s s e come nt ár io a
A história da formação dos profissionais de museus no Brasil confunde- uma observação feita
por Lucia Lippi de Oli-
se em grande parte com a história do Museu Histórico Nacional fundado veira em comunicação
pessoal.
91
{josé reginaldo santos gonçalves}
por Gustavo Barroso. Os paradigmas museográficos que, durante os últi-
mos sessenta anos, nortearam a organização do espaço dessa instituição,
os modos como eram obtidas, organizadas e expostas suas coleções estão
intimamente associados aos padrões de formação dos “profissionais de mu-
seu” no Brasil. Gustavo Barroso em 1911 lança pelo jornal a idéia de criar
um museu histórico militar (Dumans 1942). O MHN será criado em 1922
no Governo de Epitácio Pessoa, seu cunhado, que o indica para dirigir a
recém-criada instituição. Gustavo Barroso dirigiu o MHN desde a fundação
até o ano da sua morte em 1959, quando então veio a ser substituído por
Josué Montello. Este veio a ser substituído por Léo Fonseca em 1967, o qual
permaneceu até 1972. Data de então as primeiras mudanças ocorridas na
instituição depois de décadas sob a direção de seu fundador.
O primeiro centro de formação profissional no país foi o “Curso de
Museus”, fundado pelo próprio Gustavo Barroso em 1932 (Decreto no.
21.129, de 07/03/1932), e que funcionou até fins dos anos setenta, precisa-
5 Escolas de muse- mente em 1979, nas dependências do Museu Histórico Nacional. Foi então
ologia em nível de
graduação somente transferida para a UNIRIO, onde funciona hoje como “Escola de Museolo-
gia”. Inicialmente, o “Curso de Museus” formava o que então se chamava
existem no Brasil
– a mais antiga, do
Museu Histórico, atu-
almente funcionando
“conservadores de museus” para desempenharem suas funções no Museu
na UniRio; outra que Histórico Nacional e no Museu de Belas artes como funcionários públicos
funcionou nas Facul-
dades Estácio de Sá; e (desempenhavam o cargo de “3o Oficial do Museu”). Era inicialmente um
uma terceira em Sal-
vador, na Bahia – mas curso técnico, mas em 1951, foi-lhe conferido “mandato universitário” em
em nenhum outro
lugar do mundo (com
acordo com a Universidade do Brasil, o que lhe valia a condição de curso
exceção da Holanda). superior. Ao longo de várias décadas a maioria dos profissionais de museus
Nos EEUU e na Euro-
pa, o treinamento de atuando no Brasil eram formados por essa escola. Ela tem desempenhado
um “profissional de
museu” se dá apenas um papel crucial na formação de profissionais e na disseminação de de-
terminado modelo museográfico para o resto do país. Em linhas gerais,
no nível de pós-gra-
duação, devendo o
candidato ser for-
mado em uma outra
desde os anos trinta, os museus brasileiros, especialmente os museus
especialidade. históricos, tendem a reproduzir os padrões que vieram a ser difundidos
pelo Museu Histórico Nacional.
A formação dos “conservadores de museu”, dos anos trinta até fins dos
anos sessenta, estava centrada no seu treinamento para a identificação,
“Era uma vivência cotidiana, porque 80% dos professores eram funcionários do
museu Então uma grande família, o diretor dava aula, os funcionários . Então era
difícil você não estar envolvido. (...) O aluno era chamado, como uma mão-de-obra
menos qualificada, você tem estagiários, voluntários, também”.
{josé reginaldo santos gonçalves} 93
cotidiana entre os alunos e aqueles profissionais que dirigiam e manti-
nham em funcionamento o museu. Esse fato permitia aos alunos um tipo
de formação pragmática que, nos dias de hoje, têm de buscar através de
estágios em outras instituições, uma vez que na própria Escola de Muse-
ologia não existe essa possibilidade. Alguns dos meus entrevistados criti-
cam fortemente essa ausência de um vínculo cotidiano dos alunos com a
prática profissional, o que leva a uma relação excessivamente teórica com
a profissão e uma limitada capacitação técnica fundada na experiência.
Numa relação necessária com esse padrão de formação profissional,
o significado do museu e da prática de seus profissionais era pensado a
partir de uma teia de relações interpessoais entre dirigentes, técnicos de
museus e membros de famílias de elite. O museu era pensado como um es-
paço onde se representava a história do Brasil por intermédio de coleções
que se formavam a partir dessas relações dirigentes e as famílias de elite.
Esse ponto já foi assinalado respectivamente por duas monografias que
tomam os espaço do Museu Histórico Nacional como objeto de descrição
e análise (Santos 1988) e por (Abreu 1990). Ao profissional de museu cabia
então um papel mediador entre essas famílias e o processo de identifica-
ção, preservação e exibição dos objetos que constituíam os acervos.
Os objetos, valorizados pelos seus atributos internos e pelo fato de te-
rem pertencido a membros daquelas famílias, a personagens históricos e
heróis nacionais, autenticavam as narrativas históricas sobre o Brasil. Es-
ses objetos eram em geral doados por essas famílias e as coleções formadas
recebiam o nome do antepassado celebrado. Em um estudo sobre a coleção
Miguel Calmon, do Museu Histórico Nacional, Regina Abreu (1990) chama
a atenção para a relevância dessas relações na história dessa instituição.
Essa dimensão entrará em declínio nos anos setenta e oitenta, quando
serão acionadas estruturas burocráticas, como as “associações de amigos”
para mediar suas relações com a sociedade. A nação era representada de
forma totalizadora e por intermédio dessa teia de relações e desses obje-
tos. No espaço do museu, a exemplo do que ocorria no currículo do antigo
Curso de Museus, eram os objetos que ocupavam a posição central. Estes
“O retrato de qualquer uma das salas arrumadas na época de Barroso nos dá a sen-
sação de que a superabundância era considerada o meio mais adequado para que
as obras adquirissem valor. Praticamente todo o acervo estava exposto. As louças
ou aparelhos de cerâmica tinham quarenta ou mais pratos, todos expostos, lado a
lado. Os objetos literalmente empilhavam-se. Armas, bandeiras, canhões, louças,
tudo em grande quantidade. Essa profusão simbolizava a capacidade que tinham
estes objetos de testemunhar sobre a realidade. Mas estas relíquias do passado eram
mostradas ao público obedecendo a uma lógica que lhes pertencia. As peças de um
aparelho da Companhia das Indias não podiam ser separadas. É como se elas fossem
capazes de dizer mais do que qualquer um sobre o tema, eram fonte de inesgotável
saber, parte da realidade a ser descoberta por cada visitante. Quem entrasse em
uma sala jamais poderia pensar ter captado todo o sentido nela embutido. Não havia
uma “mensagem” por parte do Museu, mas milhares” (1988:44).
95
{josé reginaldo santos gonçalves}
“Comecei a estudar os conteúdos do livro... [um livro sobre “técnica de museus”
usado tradicionalmente na Escola no tempo de Gustavo Barroso], digo, olha esses
conteúdos, não são uma coisa só, isso aqui caracteriza disciplinas específicas, na
área na museologia e na área de museografia, diferenciação essa que não era conhe-
cida por gerações de museólogos. Não havia esse conhecimento de que museologia é
uma área do conhecimento que tem uma teoria própria e que, a partir dessa teoria,
há uma prática que é a museografia, que é a escrita do museu”.
{josé reginaldo santos gonçalves} 97
À profissionalização dos museólogos corresponde uma disciplina-
rização do discurso museológico e um afastamento em relação a uma
determinada concepção de museu que eu chamei de “museu narrativa”
em contraposição ao “museu-informação” (ver Capítulo IV deste livro). No
primeiro caso, o profissional de museu está imerso numa teia de relações
pessoais por intermédio das quais circulam os objetos materiais que vêm
a ser apropriados e classificados pelos museus. Há um público restrito
e os museus constituem-se parcialmente em espaços de celebração dos
valores das elites sociais que representam a nação de modo totalizador.
No segundo, o profissional é definido pela sua autonomia, pelo saber espe-
cífico de que é detentor, assumindo a função de atender não a um público
restrito (famílias de elite) mas a um público amplo, impessoal, um público
no sentido moderno do termo.
Nesse processo de afastamento em relação ao modelo do “museu-
narrativa” passa-se de uma forte ênfase nos objetos (tanto em termos de
formação profissional quanto em termos de modelo museográfico) para
uma ênfase em estruturas conceituais, em textos, que são dominantes
no “museu-informação” (ver Capítulo IV deste livro). Os textos ganham um
papel central, enquanto os objetos tendem a assumir a função de supor-
tes materiais das mensagens veiculadas. No primeiro modelo, os objetos
mantinham a sua capacidade evocativa, na medida em que existiam como
mediadores simbólicos entre as famílias de elite e o espaço do museu, onde
se representava a nação por meio de valores transcendentes dramatizados
por heróis nacionais. No segundo modelo, os objetos passam a desempe-
nhar uma função subordinada, já que a missão principal do museu passa
a ser pensada como a de representar da maneira mais objetiva possível,
isto é, por meio de estruturas conceituais, o cotidiano dos diversos grupos
e categorias sociais que compõem a sociedade brasileira.
Os museólogos entrevistados assinalaram que o mercado de trabalho,
embora pequeno, vem se ampliando em função da criação de novos mu-
seus desde a última década e em função da própria redefinição da ativida-
de do museólogo a partir do discurso da museologia. Assim, o profissional
99
{josé reginaldo santos gonçalves}
espaço dos museus é o fato de ali se desenrolar uma linguagem específica
que é articulada por meio de espaços, imagens e objetos materiais, e que
não traduz de modo transparente uma linguagem de conceitos.
Em outras palavras: se fosse possível dizer por intermédio apenas de
palavras (por escrito ou oralmente) o que digo por meio de disposições
espaciais, imagens e objetos materiais, como se faz nas exposições nos
museus, por que gastar tantos recursos com estas? Estamos diante de
problemas específicos suscitados pela natureza da representação muse-
ográfica. Não basta dizer que os museus representam identidades nacio-
nais, identidades étnicas, religiosas, etc. É preciso responder por que essas
representações feitas por meio de objetos materiais continuam a exercer
sua magia e despertar fascínio sobre as pessoas. A pergunta expressa na
epígrafe deste artigo deve ser objeto de reflexão.
Uma sugestão é que os objetos materiais, ao contrário do que pensa-
mos usualmente, não se restringem à função de suportes de significados.
Nesse sentido, os espaços dos museus, assim como os objetos materiais que
abrigam, não são apenas instrumentos de representação ou de “invenção”
da nação ou de quaisquer outras categorias. Estas representações são
na verdade vividas como fatos, não como ficções. E os objetos materiais,
especialmente os objetos de museu, desempenham função estratégica
nesse processo. Os objetos contemplados nas exposições históricas ou
etnográficas são percebidos como metonímias de realidades distantes no
espaço ou no tempo, estabelecendo com estas uma relação de continuida-
de sensível. E nesse sentido desempenham um papel ativo, ao imprimir
realidade, materialidade e visibilidade a categorias abstratamente for-
muladas, mediando o visível e o invisível (Pomian 1987). Uma pista para
o entendimento da natureza específica da linguagem museográfica, da
sua dimensão visual e mesmo táctil, esteja talvez na advertência institu-
cional dirigida, por escrito, ao olhar de todo e qualquer visitante de um
museu: “favor não tocar”.
{josé reginaldo santos gonçalves} 101
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{josé reginaldo santos gonçalves} 109
Do ponto de vista dos modernos, a categoria patrimônio tende a apa-
recer com delimitações muito precisas. É uma categoria individualizada,
seja enquanto patrimônio econômico e financeiro; seja enquanto patri-
mônio cultural; seja enquanto patrimônio genético; etc.
Nesse sentido, suas qualificações acompanham as divisões estabe-
lecidas pelas modernas categorias de pensamento: economia; cultura;
natureza; etc. Sabemos no entanto que essas divisões são construções
históricas. Pensamos que elas são naturais, que fazem parte do mundo.
Na verdade resultam de processos de transformação e continuam em
mudança. A categoria patrimônio, tal como ela é usada na atualidade,
nem sempre conheceu fronteiras tão bem delimitadas.
É possível transitar de uma a outra cultura com a categoria patrimô-
nio. Desde que possamos perceber as diversas dimensões semânticas que
ela assume. Desde que não naturalizemos as nossas próprias represen-
tações a seu respeito. Em contextos sociais e culturais não-modernos,
ela coincide com categorias mágicas tais como mana e outras, e se define
de modo amplo, com fronteiras imprecisas e com o poder especial de se
estender e se propagar continuadamente.
A noção de patrimônio confunde-se com a de propriedade. A literatura
etnográfica está repleta de exemplos de culturas nas quais os bens materiais
não são classificados como objetos separados dos seus proprietários. Esses
bens, por sua vez, nem sempre possuem atributos estritamente utilitários.
Em muitos casos, servem a propósitos práticos mas possuem, ao mesmo
tempo, significados mágico-religiosos e sociais. Configuram aquilo que
Marcel Mauss chamou de “fatos sociais totais” (Mauss 1974). Esses bens são
ao mesmo tempo de natureza econômica, moral, religiosa, mágica, política,
jurídica, estética, psicológica, fisiológica. São, de certo modo, extensões
morais de seus proprietários e estes, por sua vez, são partes inseparáveis de
totalidades sociais e cósmicas que transcendem sua condição de indivíduos.
Esse mesmo autor assinalou: “...se a noção de espírito nos pareceu ligada à de
propriedade, inversamente esta liga-se àquela. Propriedade e força são dois
termos inseparáveis; propriedade e espírito se confundem...” (1974:133).
{josé reginaldo santos gonçalves} 111
se restringem a uma determinada área social e cultural. Transcendem
fronteiras nacionais e geográficas. É vasta sua área de ocorrência. Açores,
Canadá, Estados Unidos (Nova Inglaterra e Califórnia principalmente) e
Brasil (especialmente o sul e o sudeste do Brasil).
Em termos históricos, apresenta uma grande profundidade. Os mitos
de origem da festa referem-se à sua criação no século XIII, em Portugal.
Mas há referências à sua existência na Alemanha e na França, ainda no
século XII. Estamos diante de uma estrutura de “longa duração”.
Trata-se também de um “fato social total”, na medida em que envolve
arquitetura, culinária, música, religião, rituais, técnicas, estética, regras jurí-
dicas, moralidade, etc. O que suscita algumas questões relativamente às con-
cepções de patrimônio. Especialmente pelo fato dessas diversas dimensões
não aparecerem, do ponto de vista nativo, como categorias independentes.
Aparecem simbolicamente totalizadas pelo divino espírito santo. Este, por
sua vez, é representado não exatamente como a terceira pessoa da Santíssima
Trindade, mas como uma entidade individualizada e poderosa.
Essas festas são exemplo do que poderíamos chamar de um “patrimô-
nio transnacional”. Mas classificar essa festa como “patrimônio” exige
alguma cautela. É preciso reconhecer algumas nuances nas representa-
ções do que se pode entender por “patrimônio”.
É bem verdade que são as próprias lideranças açorianas que falam de
um “patrimônio açoriano” ou da “açorianidade”. Mas este uso está distante
das concepções assumidas pelos devotos do espírito santo em sua vida co-
tidiana. A diferença fundamental está precisamente no uso das categorias
“espírito” e “matéria”. Elas são diversamente concebidas pelos intelectuais
e lideranças açorianas, pelos padres da igreja católica e pelos devotos.
Do ponto de vista dos devotos, a coroa, a bandeira, as comidas, os
objetos (todo esse conjunto de bens materiais que integram a festa e são
propriedade das irmandades) são, de certo modo, manifestações do pró-
prio espírito santo. Do ponto de vista dos padres, são apenas “símbolos”
(no sentido de que são matéria e não se confundem com o espírito). Do
ponto de vista dos intelectuais, são apenas representações materiais de
{josé reginaldo santos gonçalves} 113
noção expressa a moderna concepção antropológica de cultura. Nesta
concepção, a ênfase está nas relações sociais, ou mesmo nas relações sim-
bólicas, mas não nos objetos e nas técnicas. A categoria “intangibilidade”
talvez esteja relacionada a esse caráter desmaterializado que assumiu a
moderna noção antropológica de “cultura”. Ou, mais precisamente, ao
afastamento dessa disciplina, ao longo do século XX, em relação ao estu-
do de objetos materiais e técnicas (Schlanger 1998). Não por acaso, são
antropólogos muitos dos que estão à frente daquele projeto de renovação
ou ampliação da categoria “patrimônio”.
Do ponto de vista dos devotos do espírito santo, o patrimônio é pen-
sado não exatamente como um “símbolo” de realidades espirituais; nem
necessariamente como representações de uma identidade étnica açoria-
na; na verdade, ela é pensada como formas específicas de manifestação
do divino espírito santo.
Afinal, os seres humanos usam seus símbolos sobretudo para “agir”
e não somente para se “comunicar”. O patrimônio é usado não apenas
para simbolizar, representar ou comunicar: ele é bom para agir. Ele faz
a mediação sensível entre seres humanos e divindades, entre mortos e
vivos, passado e presente, entre o céu e a terra, entre outras oposições.
Não existe apenas para representar idéias e valores abstratos e para ser
contemplado. Ele, de certo modo, constrói, forma as pessoas.
Esses diversos significados, vale sublinhar, não se excluem. As mesmas
pessoas podem operar ora com um, ora com outro significado. Como é o caso
da “coroa do divino”, um elemento extremamente importante desse patri-
mônio. Exposta num museu, faz a mediação entre os visitantes e a “cultura
açoriana”, torna “visível” essa dimensão do “invisível” (Pomian 1997). Numa
irmandade religiosa, circula entre os irmãos, está presente nas festas e ceri-
mônias, nos almoços rituais, manifestando concretamente a presença do es-
pírito santo, fazendo uma mediação sensível entre a divindade e seus devotos.
Nesse último contexto, não é uma simples coroa de prata. No contexto de uma
exposição museológica, é um objeto cultural, parte do chamado “patrimônio
açoriano”, aqui entendido em seu sentido estritamente moderno.
{josé reginaldo santos gonçalves} 115
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{josé reginaldo santos gonçalves} 117
1 Este artigo foi origi-
nalmente produzido
Autenticidade e a idéia de ‘aura’
com seus papéis, com a desintegração desse universo, esses papéis descolam-
IPHAN, 2003.
Entre os anos de 1987
se dos seus portadores e não servem mais como indicadores seguros nas
e 1988, quando em
trabalho de campo no
relações sociais. Como saber, com certeza, que aquele que desempenha um
Conselho Consultivo
da SPHAN; e in
papel social está sendo sincero e não está nos mistificando? Desse modo, “sin-
memoriam ao Prof.
Rafael Carneiro da Ro-
ceridade” tem a ver com o modo como apresentamos nosso self nas relações
cha, então consultor
jurídico da SPHAN; e à
Essas concepções são aplicáveis a pessoas ou objetos. No que diz res- go sobre autenticidade,
baseado no trabalho de
peito aos objetos de arte a idéia de autenticidade está ligada às modernas †Lionel Trilling, Richard
Handler chama a aten-
técnicas de reprodução (Benjamin,1969:217-254). O autêntico é equacio- ção para a presença da
categoria “autentici-
nado ao original; enquanto o inautêntico à cópia ou reprodução. Em um dade” nas ideologias
{josé reginaldo santos gonçalves} 119
últimos, exatamente por serem reproduzidos e transitórios, não guardam
qualquer relação orgânica e real com um passado pessoal ou coletivo.
Nesse contexto de desaparecimento da aura, a própria oposição autênti-
co/inautêntico tende a perder sua relevância.
Meu objetivo é explorar essas idéias no contexto dos chamados “pa-
trimônios culturais”. Acredito que, a exemplo do que ocorre com as obras
de arte na modernidade, os “bens culturais” que compõem esses patrimô-
nios, em função mesmo de sua reprodutibilidade técnica, tendem a perder
sua aura e desenvolver o que eu chamaria uma forma “não-aurática” de
autenticidade. Esse fato pode ser usado para problematizar a “autenti-
cidade” ou “realidade” de categorias como as de “nação” ou “identidade
nacional”, na medida em que esta é supostamente “expressa” ou “repre-
sentada” pelos chamados “patrimônios nacionais”.
Patrimônios Culturais:
Propriedade, Memória e Identidade
Os ideólogos da nacionalidade ou da etnicidade dedicam especial aten-
ção ao problema do “patrimônio cultural”. No contexto dos chamados mo-
vimentos étnicos assim como nos Estados nacionais é considerada como
fundamental a elaboração e implementação de políticas culturais -entre
as quais se situam as “políticas de patrimônio”- visando a construção e
comunicação de uma identidade “nacional” ou “étnica”.
O conceito de nação - e, acredito, também o de etnicidade- pode
ser entendido no contexto do moderno individualismo (Tocqueville,l945;
Dumont,1966,1983; Simmel, l97l). Segundo Dumont, a nação realiza, no
plano coletivo, a moderna concepção do “Indivíduo” como uma entida-
de autônoma, definida independentemente de suas relações com o todo
social ou cósmico (1966;1970). Segundo ele, a moderna nação é pensa-
da como uma “coleção de indivíduos” ou como um “indivíduo coletivo”
(1966:379;1983:115-131). De um modo ou de outro, a nação é equacionada
a indivíduos reais, sendo portadora dos mesmos atributos destes: caráter,
personalidade, autonomia, vontade, memória, etc. Do ponto de vista dos
{josé reginaldo santos gonçalves} 121
restaurada’ etc. Assim, do mesmo modo que uma pessoa pode ter a sua
identidade definida pela posse de determinados bens, uma “nação” defi-
ne-se a partir da posse de seus “bens culturais”.
Embora esta seja uma idéia importante para se entender o problema
dos chamados patrimônios culturais, acredito que estes apresentam um
outro aspecto igualmente importante: o seu papel mediador entre dis-
tintas dimensões de tempo. Desse modo, muitos dos “bens culturais” que
compõem o “patrimônio” estão associados ao passado ou à história da
nação. Eles são classificados como “relíquias” ou “monumentos”. Assim
como a identidade de um indivíduo ou de uma família pode ser definida
pela posse de objetos que foram “herdados” e que “permanecem” na
família por várias gerações; também a identidade de uma nação pode
ser definida pelos seus monumentos -aquele conjunto de bens culturais
associados ao passado nacional. Estes constituem um tipo especial de
“propriedade”: a eles se atribui a capacidade de evocar o passado e, desse
modo, estabelecer uma ligação entre passado, presente e futuro. Em
outras palavras, eles garantem a “continuidade” da nação no tempo.
Acredito, com Hutton (1987:386), que a capacidade desses objetos -relí-
quias, monumentos, etc- de evocar o passado está, de certo modo, fundada
na clássica “arte da memória”, na qual idéias são associadas a espaços ima-
ginários como recursos mnemônicos (Yates,1966). Na medida em que asso-
ciamos idéias e valores a determinados espaços ou objetos, estes assumem
o poder de evocar visualmente, sensivelmente aquelas idéias e valores.
Na verdade, a própria idéia de um “passado” ou de uma “memória”
como um dado relevante na construção das identidades pessoais e coleti-
vas poder ser pensada como uma invenção moderna e que data de fins do
século dezoito. É nesse contexto que emerge o gênero autobiográfico, onde
um passado narrativamente construído é usado como um instrumento de
autoconhecimento (Olney,1980). Isto pode ser feito numa escala pessoal
ou coletiva. A segunda metade do século dezenove e as primeiras décadas
do século vinte foram pródigas naquilo que Hobsbawn chamou “tradições
inventadas” (1983: 1-14). Monumentos, relíquias, locais de peregrinação
{josé reginaldo santos gonçalves} 123
A não problematização da categoria “autenticidade” desempenha um
papel importante nessa estratégia retórica. A “autenticidade” do “patri-
mônio nacional” é equacionada à suposta existência da nação enquan-
to uma unidade real, autônoma, dotada de uma “identidade”, “caráter”,
“memória”, etc. Em outras palavras, a crença nacionalista na realidade
da nação é retoricamente possibilitada pela crença na autenticidade do
seu patrimônio. Não importa que os conteúdos das definições de “patri-
mônio”, “autenticidade” e “nação” possam variar bastante em termos
históricos e sociais. Ideólogos do patrimônio -ou ideólogos da nação- con-
siderados como autoritários ou democráticos convergem na sua crença
na “autenticidade”.
Concepções de autenticidade:
Colonial Williamsburg e Ouro Preto
Gostaria de problematizar essa categoria fazendo uso de dois exemplos
de patrimônio cultural situados em dois contextos distintos: as “cidades
históricas” de Colonial Williamsburg, nos Estados Unidos; e Ouro Preto,
no Brasil. Cada um desses espaços está simbolicamente associado às idéias
de “identidade” e “memória” nacional. No entanto, do ponto de vista dos
ideólogos de patrimônio no Brasil -mas também na Europa e mesmo nos
Estados Unidos- Colonial Williamsburg tende a ser considerada como
um exemplo de “inautenticidade”. Muitos, no Brasil, usam esse exemplo
para definir, por oposição, o caráter “autêntico” do patrimônio brasileiro.
E muitos, nos Estados unidos, o usam para definir o que não deve ser um
“autêntico” trabalho de preservação histórica. Muitos preservacionistas
americanos consideram Colonial Williamsburg uma espécie de Disneylan-
dia e, portanto, carente de qualquer “autenticidade”. No entanto, Colonial
Williamsburg pode ser definida e defendida como “autêntica” por seus
ideólogos.
Obviamente não é meu propósito participar dessa polêmica. Não pre-
tendo defender a “autenticidade” ou “inautenticidade” desses espaços.
Proponho no entanto que desloquemos o centro da discussão. Ao invés
Colonial Williamsburg
Colonial Williamsburg pode ser considerada, nos Estados Unidos,
como um modelo -negativo ou positivo, segundo o ponto de vista- de
{josé reginaldo santos gonçalves} 125
preservação histórica. Nas discussões entre especialistas em preservação
histórica, Colonial Williamsburg é sempre uma referência necessária.
Muitos dividem a história do movimento preservacionista americano em
antes e depois de Colonial Williamsburg (Hosmer,1965).
Historicamente, Williamsburg, no Estado da Virginia, foi a capital do
domínio inglês na América do Norte, no século dezoito. Após a Revolu-
ção, a capital dos Estados Unidos da América mudou-se primeiramente
para Richmond e finalmente para Washington. Williamsburg entrou em
decadência e foi esquecida ao longo de todo o século dezenove.
Na segunda década do século vinte, ela veio a ser “redescoberta” e,
sob o patrocínio de John D. Rockefeller, totalmente reconstruída. Esse
trabalho de reconstrução tinha como objetivo refazer a cidade tal qual
ela supostamente teria sido urbanística e arquitetonicamente no século
dezoito, às vésperas da Revolução. Inspirado por uma ideologia naciona-
lista, o projeto de reconstrução visava à afirmação de uma identidade
genuinamente “americana” por oposição à Europa e à massa de imigrantes
europeus então existente nos Estados Unidos (Wallace,1981). Esse uso pa-
triótico de Colonial Williamsburg tem sido uma constante na sua história.
Na segunda Guerra Mundial, soldados americanos, antes de embarcarem,
eram levados a Colonial Williamsburg, onde passavam alguns dias com
o objetivo de estimular suas virtudes cívicas. Até os dias atuais, a cidade
é usada como ponto importante nas visitas oficiais de chefes de Estado
estrangeiros.
O processo de reconstrução assumiu dimensões gigantescas. Na me-
dida em que o objetivo era reconstruir Williamsburg do século dezoito,
anterior à Revolução, tudo que veio a ser construído posteriormente, ao
longo do século dezenove e inícios do século vinte, foi destruído total ou
parcialmente. Segundo depoimento de um dos presidentes da Colonial
Williamsburg Foundation sobre o processo de reconstrução:
“...82 colonial buildings, which still survived in whole or in part from the 18th
century, had been restored to their original form; 341 buildings of which, very
often, nothing but a part of a foundation survived to show their location, had been
{josé reginaldo santos gonçalves} 127
fase era colocada nos aspectos técnicos do processo de restauração e
recriação do “passado” em Colonial Williamsburg. Segundo uma frase
de J.D.Rockefeller na época: “No scholar must be able to come to us
and say we have made a mistake”(RP,1951). Esse processo de recriação
tem um sentido permanente e até os dias atuais o “passado” -isto é,
Williamsburg em 1775, às vésperas da Revolução- é objeto de intensas
e cuidadosas pesquisas por parte de historiadores, arquitetos e arqueó-
logos com vistas a oferecer um quadro cada vez mais completo, preciso
e objetivo.
Além disso, a recriação não atinge apenas os prédios, as ruas e os
objetos. Ela assume também um aspecto dramático na reencenação (re-
enactment), por parte de uma grande equipe de atores, do cotidiano de
Williamsburg no século dezoito e mais precisamente no ano de 1775. Esses
atores vestem-se tal como homens e mulheres supostamente vestiam-se
naquela época; realizam atividades econômicas e sociais da época; e fa-
lam um inglês tal qual supostamente falado naquele século. Esses atores
movimentam-se casualmente pelas ruas e prédios da cidade e fingem
ignorar a presença dos visitantes. Ao serem abordados, não saem do seu
papel e conduzem-se rigorosamente de acordo com o personagem que
esteja representando.
A cidade nos sugere a imagem de uma miniatura. O “passado” parece
existir dentro de uma redoma, desconectado de um presente, de um fu-
turo ou de um passado reais. Assim, em Colonial Williamsburg é sempre
1775. O passado é um tempo que se repete indefinidamente. O conjunto
urbanístico e arquitetônico, e mais a performance dos atores, não sugere
“antiguidade” mas sim o aspecto novo e limpo, quase ascético das coisas
recriadas. Colonial Williamsburg nos evoca poderosamente não a idéia
de um passado cujo testemunho se faça presente no aspecto “antigo” de
ruas, prédios e objetos. Em Colonial Williamsburg, esses prédios e objetos
não parecem vir de nenhum passado mas antes de um eterno presente.
O desaparecimento da “aura”, de que nos fala Benjamin, parece aqui ter
atingido um limite extremo.
{josé reginaldo santos gonçalves} 129
ria,1980), e dirigido por Rodrigo de Mello Franco de Andrade até a década
de sessenta, contribuiu intensamente para a consolidação desse culto.
Ao longo de várias décadas, essa agência concentrou suas atividades no
tombamento de monumentos arquitetônicos religiosos em grande parte
situados no Estado de Minas Gerais e, particularmente, em Ouro Pre-
to (MEC-SPHAN/pró-Memória,1982; Pró-Memória,1982). O período mais
intenso dessa atividade se estende de 1938 a 1942, decaindo progressi-
vamente nas décadas subseqüentes (Pró-Memória,1982). O culto a Ouro
Preto, às cidades históricas de Minas, ao barroco mineiro, às obras do
Aleijadinho é divulgado através de livros, artigos de jornais e revistas, e
que vêm promover o turismo na área. O conhecido Guia de Ouro Preto, de
Manuel Bandeira, é um dos exemplos. Ouro Preto é assim dimensionado
no imaginário coletivo brasileiro como poderoso símbolo da ‘identidade’
4 De certo modo, a
ideologia da SPHAN
brasileira. Um símbolo barroco e mineiro.
pode ser interpre- Ouro Preto e, por extensão, as demais cidades históricas de Minas,
tada como parte da
chamada ideologia a arquitetura e a arte barroca mineira passam a ser visualisados pelos
da “mineiridade”.
Para uma interpre- ideólogos do patrimônio em termos de uma relação metonímica com o
passado e a identidade brasileira. Em seu Guia de Ouro Preto, diz Manuel
tação sociológica da
“mineridade”, ver
Boumeny (1986).
Bandeira: “Para nós brasileiros, o que tem força de nos comover são jus-
tamente esses sobradões pesados, essas frontarias barrocas, onde alguma
coisa de nosso começou a se fixar.”(1967:44). E acrescenta: “A desgraça foi
que esse fio de tradição se tivesse partido.”(1967:44).
O patrimônio é visto assim como um meio de restabelecer os vínculos
com essa “tradição”. Acredito que o que aparece aqui, em contraste com
o que descrevemos sobre Colonial Williamsburg, é a idéia da “aura” (Ben-
jamin, 1969:221), onde os aspectos da “singularidade” e “permanência”
são enfatizados em detrimento da “reprodutibilidade” e da “transitorie-
dade”.
Patrimônio e nação
Ao contrastar esses dois espaços classificados como “patrimônios
culturais” nos Estados Unidos e no Brasil, respectivamente, não os estou
{josé reginaldo santos gonçalves} 131
Acredito que experiências como Colonial Williamsburg -e outras
similares- podem ser usadas para repensarmos nossas representações
sobre a categoria “autenticidade”. Parafraseando Benjamin, eu diria que
elas constituem um exemplo de patrimônio cultural “na época de sua
reprodutibilidade técnica”. Elas tornam explícito o caráter “artificial”,
“construído” ou “tecnicamente reproduzido” dos chamados patrimônios
culturais. Sua autenticidade é “não aurática”. Ela está fundada não numa
relação orgânica com o passado, mas na própria possibilidade, no pre-
sente, de reprodução técnica desse passado. Desse modo, somos levados
a problematizar categorias como as de “nação” que, supostamente, são
“expressas” pelos chamados patrimônios culturais. Estes, na medida em
que não consideremos como dadas sua “autenticidade” ou “inautentici-
dade”, podem ser pensados como construções sem nenhum necessário
fundamento último na “história”, na “natureza”, na “sociedade” ou em
quaisquer outras categorias reificadas com que confortavelmente bus-
camos justificar nossas crenças nacionalistas.
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{josé reginaldo santos gonçalves} 137
Monumentalidade e
Cotidiano: os patrimônios
culturais como gênero
de discurso
{josé reginaldo santos gonçalves} 141
relação a toda e qualquer iniciativa que sugira perspectivas diferentes,
antagônicas em relação às identidades e memórias que, em princípio,
representem. Essas iniciativas são vistas como ameaça à “integridade” e
à “autenticidade”, valores fundamentais dos patrimônios.
Os discursos do patrimônio se articulam enquanto narrativas, nas
quais se relata a história de uma determinada coletividade, seus heróis,
os acontecimentos que marcaram essa história, os lugares e os objetos que
“testemunharam” esses acontecimentos. Os que narram essa história o
fazem sob a autoridade da nação, ou de outra coletividade qualquer, cuja
memória e identidade são representadas pelo patrimônio.
No entanto, como nenhum gênero de discurso é uma entidade coeren-
te, como todo discurso está dividido contra si mesmo e, ao mesmo tempo,
dialogando com vários outros, os discursos do patrimônio, na medida
em que pretendem representar uma sociedade nacional, abrem-se para
outros grupos e categorias sociais, constituindo-se “zonas de contato”
entre diversos gêneros de discurso. Por exemplo, entre o palácio e a praça
pública, podendo esse contato se configurar de maneira mais ou menos
intensa, mais ou menos policiada, permitindo maiores ou menores trans-
gressões nas linhas de demarcação entre um e outro espaço.
Minha sugestão é que talvez seja rentável analiticamente pensarmos os
“patrimônios culturais” enquanto “discursos”, isto é, modalidades de ex-
pressão escrita ou oral, que partem de um autor posicionado (individual ou
coletivo) e que se dirigem e respondem a outros discursos. Isto significa dizer
que estou tomando como pressuposto que os “patrimônios culturais” não são
simplesmente uma coleção de objetos e estruturas materiais existindo por si
mesmas, mas que são, na verdade, discursivamente constituídos. Os objetos
que identificamos e preservamos enquanto “patrimônio cultural” de uma
nação ou de um grupo social qualquer, não existem enquanto tal senão a
partir do momento em que assim os classificamos em nossos discursos.
Vale a pena assinalar no entanto que quando falo em discursos, orais
ou escritos, não estou me referindo à linguagem no sentido mais estrito,
no sentido formal (enquanto gramática, sintaxe, léxico), mas às visões
O bronze e a argila
Três pontos fundamentais caracterizam a narrativa épica, segundo
Bakhtin:
1) seu tema é o passado histórico nacional;
{josé reginaldo santos gonçalves} 143
É um mundo feito de fundadores, de heróis considerados como os pri-
meiros e os melhores e que deram início a uma determinada coletividade
nacional. Mas o ponto fundamental não é precisamente o tema, mas o
fato de que nas narrativas épicas o mundo representado é transferido
para o passado. Esse mundo é congelado no passado. A posição do autor
é aquela de alguém que fala de um passado que é inacessível, e com a
atitude reverente de um descendente. Está longe de ser o discurso de um
autor contemporâneo que se dirige a leitores contemporâneos. Entre esse
passado e o autor, fica a tradição. O passado é portanto narrado com base
no que é transmitido por essa tradição e não com base na experiência
pessoal. Esse passado absoluto da narrativa épica é a fonte e o começo de
tudo que acontece posteriormente. É na verdade a memória (transmitida
pela tradição), e não o conhecimento (possibilitado pela experiência pes-
soal), que serve como fonte do impulso criador. Esse passado é sagrado,
absoluto, jamais é submetido a um ponto de vista relativo.
2) a fonte da narrativa épica é uma tradição nacional, e não a experiência
pessoal e o pensamento livre que daí decorre;
O passado épico é separado de modo absoluto em relação ao presente.
Há uma fronteira intransponível entre esse passado e a realidade contem-
porânea. Ele somente é revelado por meio da tradição. Esse é um traço
imanente dessa narrativa, assim como o é também o passado absoluto.
Esse mundo do passado é inacessível à experiência individual. Ele somente
é traduzível na linguagem da tradição e em nenhuma outra.
3) nas narrativas épicas uma distância absoluta separa o mundo da nar-
rativa do mundo da realidade cotidiana, isto é, do tempo e espaço em que
estão situados o narrador e o leitor;
A “zona de contato” entre a narrativa épica e a realidade contempo-
rânea é constituída por mínimas interações. Há uma separação absoluta
entre o que se passa no plano da narrativa e o que se passa na realidade
cotidiana. Ela é infensa a qualquer ponto de vista, a qualquer desafio da
realidade contemporânea. Por isso, somente se pode aceitar o mundo
{josé reginaldo santos gonçalves} 145
passado, portanto, torna-se relativo. Ele vai depender de pontos de vista
particulares. Não existe assim um único passado, mas vários, segundo
pontos de vista individuais ou coletivos diferenciados. O passado não é
valorizado em si, mas como um instrumento na construção do futuro.
3) o romance abre um novo espaço para a estruturação de imagens lite-
rárias, especificamente aquela zona de máximo contato com o presente,
isto é, com a realidade contemporânea em toda sua abertura;
Esse último ponto é fundamental. No romance se intensificam ao má-
ximo as interações naquela zona de contato entre a narrativa e a realidade
contemporânea. Os espaços, os tempos, os personagens, os vocabulários da
realidade cotidiana têm livre acesso ao romance. Os gêneros de discurso
cotidianos, populares, os vocabulários da praça pública são trazidos para
o interior da narrativa em pé de igualdade com os vocabulários do palácio.
A linguagem falada do cotidiano é colocada lado a lado com a linguagem
escrita. Os discursos “baixos”, voltados para o corporal e o material são
trazidos lado a lado com os discursos “elevados” voltados para o que é
espiritual e imaterial. Há um contato direto e cru entre esses gêneros de
discursos. As relações entre eles não são mediadas pela reverência e pela
etiqueta, mas pelo desafio, pela irreverência, pelo xingamento e pelo riso.
Nesse sentido, o riso das narrativas folclóricas teve um papel fundamental
na formação do romance. Foi ele que permitiu exatamente a quebra da
atitude reverente das narrativas épicas.
O que era distante na narrativa épica foi aproximado e tornado
diretamente acessível à experiência pessoal. A memória, quando é
tematizada, é a memória de indivíduos ou de coletividades individuali-
zadas, é a memória autobiográfica, não a memória heróica da narrativa
épica. O passado, na medida em que é aproximado da contemporanei-
dade, da experiência pessoal, torna-se um objeto familiar, passível
de investigação. Se comparado com o passado da narrativa épica, ele
torna-se menos transparente, ele não é mais o passado cristalino e
estável da épica; ele não ilumina mais o presente de forma exemplar
(a história, no romance, deixa de ser a “mestra da vida”, como era
O monumental e o cotidiano
Por que se vem a tornar necessário um discurso de patrimônio? A
partir de que momento e por que se começa a se falar de “patrimônio cul-
tural”? Esse discurso responde a quem, opõe-se a quem, a que outros dis-
cursos? Como se estabelecem as fronteiras do que se chama “patrimônio
cultural” no processo de formação das modernas sociedades nacionais?
Como essas fronteiras são guardadas e policiadas? Quem representa os
“patrimônios culturais”, como e contra quem?
{josé reginaldo santos gonçalves} 147
Há uma espécie de “afinidade eletiva” entre o gênero “patrimônio
cultural” e o gênero “romance”. As narrativas de patrimônios culturais
nascem com o romance. Ambos florescem, historicamente, na segunda
metade do século XVIII e primeira metade do século XIX. Os “patrimônios
culturais” são constituídos concomitantemente à formação dos Estados
nacionais, que fazem uso dessas narrativas para construir memórias, tra-
dições e identidades. Trata-se de um fenômeno que um autor chamou de
“invenção de tradições” (Hobsbawm 1983). Assim como no romance, o que
está em foco nas narrativas de patrimônio é a experiência de formação
de uma determinada subjetividade coletiva, a “nação” enquanto coleti-
vidade individualizada e, a exemplo dos indivíduos, dotada de memória,
caráter, identidade, etc. De certo modo, as narrativas de patrimônio são
romances nacionais.
Não por acaso, aparece, nesse mesmo contexto intelectual e histórico,
os antiquários. A genealogia dos modernos museus e dos discursos de
patrimônio cultural passa necessariamente pela experiência dos antiquá-
rios e sua concepção de história. São eles que vão fazer com que moedas,
medalhas e ruínas passem a ser considerados material de pesquisa his-
tórica. Até então, no modelo clássico de história, somente textos escritos
considerados como material digno de serem estudados. Os antiquários
vão valorizar aqueles objetos, não pelos ensinamentos morais que pudes-
sem trazer (a exemplo dos textos clássicos) mas pela sua verdade factual
(Momigliano 1983).
O modernos discursos do patrimônio cultural constituíram-se arti-
culadamente ao processo de formação dos Estados nacionais e, dialogica-
mente, em contraposição ao modo como os objetos que vieram a integrar
os “patrimônios nacionais” eram concebidos na sociedade do “antigo regi-
me”. Neste último, não havia um patrimônio “nacional”, mas tão somente
os patrimônios de diversos estamentos sociais, da nobreza, do clero, em
mãos de quem estavam esses bens. Na medida em que os Estados nacionais
se constituem, simultaneamente se formam “patrimônios nacionais” cujo
acesso passa a ser obrigatoriamente universal, aberto a todos os cidadãos.
1. O passado e o presente
Uma dessas modalidades de discurso dominou a cena pública desde os
anos trinta, quando da criação do então Serviço do Patrimônio Histórico
e Artístico Nacional (o SPHAN), até os anos sessenta. A outra, embora não
estivesse ausente nesse período, ganha o primeiro plano a partir do anos
setenta e oitenta do último século. Narrar o patrimônio cultural brasileiro
sob o registro da monumentalidade, ou do cotidiano, tem sido possibi-
{josé reginaldo santos gonçalves} 149
lidades constantes, e diferentemente exploradas, ao longo dos últimos
oitenta anos de história (Gonçalves 2003).
Os modos como estão relacionados e valorizados o passado e o pre-
sente configuram um dos pontos fundamentais da diferenciação en-
tre essas narrativas. No registro da monumentalidade, o passado será
considerado como hierarquicamente superior ao presente. Essa valo-
rização é expressa pela idéia de “tradição”, que desempenha um papel
crucial naquela modalidade narrativa que ocupa o espaço público nos
anos trinta. Nos textos escritos por Rodrigo Melo Franco de Andrade
(RMFA), um dos principais articuladores dessa narrativa de patrimô-
nio, a “tradição” é o que faz a mediação entre o passado e o presente
da nação. O conjunto de bens que são classificados como “patrimônio”
representam precisamente essa “tradição”, vinculando os brasileiros
de ontem aos de hoje.
Nessa narrativa, uma outra noção importante é a de “civilização”. A
nação brasileira é concebida como parte da civilização cristã ocidental,
assumindo no entanto uma configuração específica ao longo de sua for-
mação. O “patrimônio histórico e artístico” brasileiro tem uma relação de
continuidade com essa civilização. Ela é pensada basicamente por meio
da “tradição”, o que significa dizer que o passado mantém com o presen-
te uma relação, se não exemplar, como nas narrativas épicas, por certo
uma relação de continuidade, hierarquicamente valorizada. De modo a
tornar-se civilizado, o Brasil teria de relembrar se passado ou tradição
e, nesse processo, monumentos e obras de arte desempenham um papel
especial. Monumentos barrocos coloniais eram exemplos privilegiados
para inspirar a vida de homens e mulheres no presente. Considerados
monumentos no sentido clássico do termo, isto é, pela sua exemplaridade
cultural e estética, eles materializavam a “tradição”, fonte segura de uma
identidade nacional.
Em um texto famoso, o Guia de Ouro Preto, Manuel Bandeira, um colabo-
rador do SPHAN no chamado “período heróico” da instituição, dramatiza
essa valorização do passado e da tradição ao afirmar:
{josé reginaldo santos gonçalves} 151
último século e, mais recentemente, por meio da noção de “patrimônios
intangíveis”. No discurso de AM desloca-se a valorização quase exclusi-
va dos chamados “bens patrimoniais”, associados ao passado da nação,
para o que ele chamava de “bens culturais”, enquanto integrantes da
vida presente dos diversos segmentos da população. Além disso, como
conseqüência da valorização do presente, esses bens culturais serão pen-
sados como instrumentos de construção de um futuro, na construção do
“desenvolvimento”.
2. A tradição e a experiência
Quando narrado sob o registro da monumentalidade, é a tradição
que define o que seja o patrimônio cultural, deslocando-se para segundo
plano a “experiência” individual e coletiva dos bens culturais. Há uma
visão homogênea da nação. A relação entre esta, enquanto uma totalidade
homogênea, e os indivíduos, se faz pela predominância da primeira. A na-
ção é anterior aos indivíduos. Ela é que dá realidade aos indivíduos, assim
como aos segmentos específicos que integram a sociedade nacional.
No registro do cotidiano, a narrativa do patrimônio tem como ponto
de referência básico a experiência pessoal e coletiva dos diversos grupos
e categorias sociais em sua vida cotidiana. São os pontos de vista ar-
ticulados por cada uma dessas individualidades que fornecem o ponto
de partida para narrar o patrimônio. A nação deixa de ser a totalidade
homogênea representada por um patrimônio narrado no registro da mo-
numentalidade. A heterogeneidade passa a ser reconhecida como uma
configuração definidora da sociedade nacional
{josé reginaldo santos gonçalves} 153
Subjetividade e espaço público
Cada uma dessas estratégias narrativas vai trazer conseqüências dife-
rentes quanto ao modo de se conhecer o espaço público. Concebido ora no
registro monumental, ora no registro do cotidiano, ele assumirá formas
diversas. Ora um espaço público monológico, policiado, fechado; ora um
espaço tendencialmente mais aberto, polifônico.
No primeiro caso, na medida em que o patrimônio representa a nação
como uma totalidade, o espaço público é pensado como um espaço sem
conflitos, porque sem diferenças, sem pluralidade, todos os seus elemen-
tos remetidos ao valor hierarquicamente superior, que é a nação, seu
passado e sua tradição.
Já no caso das narrativas articuladas no registro do cotidiano, o es-
paço público é pensado enquanto dividido pela diversidade de pontos de
vista, pela diversidade dos gêneros de discurso que nele circulam. A nação
não é algo acabado, cuja essência seria representada pelo patrimônio. A
nação é heterogênea e está em permanente processo de transformação.
Os patrimônios fazem parte do dia-a-dia da vida dos diversos segmentos
sociais.
O que estou tentando mostrar é que existem modos diferentes de se
usar a expressão “patrimônio cultural”. E que seus efeitos são distintos.
Em um livro que intitulei A retórica da perda (Gonçalves 2003), argumento
que os discursos de patrimônio cultural funcionam a partir da figura da
“perda”. Esta é que põe em movimento esses discursos. Como se no seu
interior existisse um vazio obsessivamente preenchido por conteúdos
distintos. Identifiquei dois deles aqui. Mais importante, no entanto, que
a simples identificação, é o reconhecimento dos efeitos que uma auto-
consciência em relação a essas modalidades de discurso pode trazer para
as práticas dos profissionais do patrimônio. Entre esses efeitos está o de
nos revelar o caráter eminentemente arbitrário de cada um desses dis-
cursos e dos patrimônios tal como neles aparecem. E se são arbitrários,
se não estão fundados em nenhuma realidade última, seja a natureza, a
história, a sociedade ou a cultura (concebidas estas enquanto categorias
{josé reginaldo santos gonçalves} 155
Assim, por exemplo, se uma delas monumentaliza o barroco; a outra pode
perfeitamente monumentalizar o cotidiano, o popular.
Minha sugestão é que as categorias “monumentalidade” e “cotidiano”,
seguindo a oposição entre épica e romance, podem ser “boas para pensar”
esse conjunto de traços que definem dialogicamente as dimensões épica
e de romance que se fazem presentes nas narrativas de patrimônio. Não
por acaso, essas palavras estão bastante presentes nessas narrativas. No
jargão antropológico, elas podem ser chamadas, sem muita margem de
erro, de “categorias nativas”.
Marcel Mauss disse certa vez que o que é peculiar à perspectiva an-
tropológica é que toda instituição, toda e qualquer prática ou discurso
coletivo, será sempre “arbitrário”. Essa perspectiva pode, eventualmente,
ter um efeito terapêutico, na medida em que desperte nos profissionais
de patrimônio, e em certa medida nos próprios cientistas sociais, uma
autoconsciência em relação aos valores e idéias, em relação às narrativas
culturais que estruturam seus pensamentos e práticas.
Bandeira, M.
1938 Guia de Ouro Preto. Rio de janeiro: Publicações do SPHAN, no. 2.
Gonçalves, J.R.S.
2003 [1996] A Retórica da Perda: os discursos do patrimônio
cultural no Brasil. 2ª edição Ed. da UFRJ/SPHAN. Série Risco
Original. Rio de janeiro.
{josé reginaldo santos gonçalves} 157
Sistemas Culinários como
Patrimônios Culturais
{josé reginaldo santos gonçalves} 161
Mas o problema que nos ocupa atualmente é precisamente como ope-
racionalizar essa mudança de perspectiva. E o passo inicial é nos desfazer
dessa perspectiva individualizadora, na qual as culturas aparecem como
uma espécie de somatório de ‘traços’. Mas por que ele parece tão insistente?
É provável que ela seja parte de uma ideologia, na qual sociedade brasileira é
pensada em termos de uma evolução histórica, em que os ‘itens’ tradicionais
vão sendo progressivamente substituídos pelos itens modernos, embora os
primeiros possam persistir na forma de ‘sobrevivências’. Mas a pergunta
que temos de responder é ‘por que sobrevivem?’. Quais as funções e signi-
ficados que desempenham e que fazem com que não desapareçam?
Essa persistência, nos termos dessa ideologia, só seria garantida como
resultado de uma intervenção protetora e preservacionista do Estado.
Embora essa intervenção seja evidentemente importante, não podemos
esquecer que as chamadas ‘culturas populares’ têm suas próprias razões
para permanecer ou desaparecer. Não dependem inteiramente das in-
tervenções do Estado.
Nessa ideologia, a categoria ‘perda’, como já assinalei, desempenha um
papel fundamental. É como se todas as culturas estivessem caminhando
inexoravelmente para a fragmentação e a perda e somente de nossa in-
tervenção dependesse o seu salvamento.
É necessário problematizar essa ideologia, e considerar o problema do
ponto de vista das ‘culturas populares’. Do ponto de vista destas, as cele-
brações, linguagens, saberes, lugares, não necessariamente se perdem;
mas eles se transformam sempre.
Podemos pensar que essa ideologia da ‘perda’ já foi suficientemente
problematizada e superada. Mas na verdade ela é muito presente e parece
informar obsessivamente os discursos de preservação, que costumam ser
sobretudo discursos da ‘perda’ (Gonçalves 2003).
{josé reginaldo santos gonçalves} 163
inconscientes. Na verdade, somos já constituídos social e culturalmente
por esse sistema.
Desse modo, a exemplo de outros ‘itens culturais’, a alimentação de-
sempenha não somente uma função identitária, mas também, no plano
mais inconsciente, ela desempenha uma função constitutiva. Não basta
dizer assim que determinados alimentos são escolhidos para representar
uma identidade nacional ou regional. É preciso responder por que deter-
minados alimentos especificamente (seu modo de obtenção, de prepara-
ção, de consumo, as ocasiões em que é consumido, etc.) são coletivamente
celebrados em detrimento de outros.
Essa função constitutiva se exerce precisamente na medida em que se
desencadeiam processos de transformação de algo que é natural em algo
cultural; do que é alimento em algo classificado como ‘comida’; a transfor-
mação da ‘fome’ em ‘paladar’; da comida dos outros em ‘nossa comida’.
Mas como dar conta dessa transformação em termos conceituais? É
provável que o conceito de ‘sistema culinário’ (Mahias, M.-C. 1991) nos
possa ser útil.
Sistema culinário
Primeiramente, esse conceito desloca nossa atenção para o caráter
estruturado desse sistema e para a interdependência dos seus elementos
constitutivos.
Esses elementos constitutivos incluem:
a) processos de obtenção de alimentos (caça, pesca, coleta, agricul-
tura, criação, troca ou comércio);
b) seleção de alimentos (sólidos e líquidos; doces, salgados; etc.);
c) processos de preparação (cozimento, fritura, temperos, etc.);
d) saberes culinários;
e) modos de apresentar e servir os alimentos (marcados pela forma-
lidade ou pela informalidade);
f) técnicas corporais necessárias ao consumo de alimentos (maneiras
de mesa);
{josé reginaldo santos gonçalves} 165
do sistema social e cultural brasileiro, definem-se por suas relações com
as categorias culinárias nativas.
Assim, entre os pesquisadores da alimentação no Brasil, um autor como
Josué de Castro descreve a alimentação do ponto de vista de uma ‘geogra-
fia da fome’, portanto pelo prisma moderno da ‘nutrição’ (Castro 1957); já
Câmara Cascudo vê o sistema pelo prisma da cultura popular, focalizando
não a ‘fome’, nem a ‘nutrição’, mas o ‘paladar’ (Cascudo 1983[1967]).
Já então se pode perceber duas dimensões importantes nesse sistema:
uma delas definida pela ‘modernidade’, pela igualdade, pelas relações im-
pessoais, pelas regras da ciência médica e da tecnologia, pelos valores nu-
tritivos dos alimentos, pela necessidade de saciar a fome das populações;
e uma outra dimensão definida pela ‘tradição’, pelas ‘culturas populares’,
pelas relações pessoais, pelas regras do ‘paladar’.
O próprio Cascudo na Introdução ao seu História da alimentação no Brasil
opõe a sua perspectiva ‘etnográfica’ à visão nutricionista do problema:
“Numa velha receita de doce ou de bolo há uma vida, uma constância, uma capa-
cidade de vir vencendo o tempo sem vir transigindo com as modas e nem capitu-
{josé reginaldo santos gonçalves} 167
“...de modo privilegiado uma sociedade igualmente relacional. Isto é, um sistema
onde as relações são mais que mero resultado de ações, desejos e encontros indivi-
duais; pois aqui entre nós elas se constituem, em muitas ocasiões, em verdadeiros
sujeitos das situações, trazendo para elas o seu ponto de vista. Um ponto de vista,
claro está, que sintetiza sempre as posições de quem está engajado na própria
relação” (1988: 63-64).
“...o prato separado (como na China e no Japão) nem a combinação de pratos se-
parados que são fortes e descontínuos (como na França e na Inglaterra), mas, isto
sim, a possibilidade de estabelecer, também pela comida, gradações e hierarquias,
permitindo escolhas entre uma comida (ou prato) que é central e dada de uma vez
por todas – a comida principal – e seus coadjuvantes ou ingredientes periféricos,
que servem para juntar e misturar”(1988: 63-64).
Conseqüências
Que conseqüências podemos tirar dessas reflexões para nosso traba-
lho no Inventário?
Primeiramente, penso que devemos ser cautelosos com as categorias
que encontramos já dadas na vida social e cultural. É preciso trabalhá-las,
ao invés de usá-las tal como elas se oferecem.
Desse modo, não basta identificar, por exemplo, a mandioca e a farinha
enquanto ‘traços culturais’, enquanto itens individualizados da alimen-
tação brasileira. Isto seria naturalizar uma determinada percepção ou
‘leitura’ da sociedade brasileira. Para que se possa perceber e entender sua
funções e significados é preciso considerá-las como parte de um sistema
de relação sociais e como parte de um ‘sistema culinário’, o qual põe em
foco (ou ritualiza) os valores mais caros a essa sociedade.
É preciso considerar, por exemplo, mandioca e a farinha como uma de-
terminada categoria de alimentos, cujo significado resulta de sua posição
dentro do sistema culinário brasileiro. Mais especificamente, é preciso
considerar a natureza das relações entre ‘comidas principais’ e ‘elementos
complementares’.
Fazendo uso de algumas categorias de DaMatta, trata-se da distinção
entre ‘comida principal’ e ‘coadjuvantes’ ou ‘ingredientes periféricos’ (en-
tre eles a farinha de mandioca) e que permitem misturar. Diz ele que,
em decorrência do princípio relacional que estrutura o sistema culinário
brasileiro, “...temos sempre que usar a farinha de mandioca em sua forma
simples ou como farofa em todas as refeições. De fato, a farinha serve como
cimento a ligar todos os pratos e todas as comidas” (1988: 63).
Podemos identificar assim uma determinada categoria de alimentos
em função de sua posição no sistema culinário. Os ‘ingredientes perifé-
ricos’ teriam, nesse sistema relacional, o papel fundamental de ligar e
misturar alimentos diferentes.
{josé reginaldo santos gonçalves} 169
Nessa mesma categoria, sugiro, estaria o açúcar e a produção de doces.
Conforme assinalou Gilberto Freyre, ao elaborar uma ‘sociologia do doce’
no Brasil, a preferência nacional pelos doces traduzem o que ele chama de
‘interpenetração de etnias’, ‘interpenetração de culturas’ e ‘de classes’.
Diz ele:
“Como a música, e a própria arquitetura e até o futebol, o doce mais caracteristicamente
brasileiro tende a ser, também ele, expressão, cada dia menos, de divisões de classes,
raças e de culturas que por algum tempo se projetaram sobre os começos da cultura
brasileira e, cada vez mais, do processo de interpenetração de culturas e até de classes
que vêm crescentemente caracterizando o desenvolvimento do Brasil” (1997:26).
E ainda:
“Os doces-sinhás e os doces de rua tendem, também eles, a sintetizar-se no Brasil,
em doces que, tendo, uns, origem aristocrática, outros, se não origem, conotação
plebéia, são essencialmente brasileiros, sendo hoje já elegante, no Brasil, comer,
como sobremesa, cocada e até rapadura” (1997:26).
{josé reginaldo santos gonçalves} 171
‘Sociabilidades e cosmologias culinárias’ talvez seja uma categoria
útil para orientar o trabalho de identificação e registro do inventário
relativo a alimentação no Brasil. Elas dirigiriam nossa atenção para a
alimentação enquanto ‘fato social total’ (na concepção de Marcel Mauss),
iluminando o conjunto das relações sociais e simbólicas dentro das quais
a alimentação ganha sentido.
A categoria ‘refeições’, sua qualificação e sua distribuição entre os
opostos de pessoalidade e impessoalidade, informalidade e formalidade,
cotidiano e ritual, profano e sagrado, igualdade e hierarquia, estrutura
e anti-estrutura (Victor Turner), pode ter um papel importante nesse
trabalho de identificação e registro.
Pesquisadores e identificadores
Enquanto integrantes desse Projeto, fazemos simultaneamente o pa-
pel de pesquisadores e de agentes culturais autenticadores de determina-
dos bens que virão a ser classificados como ‘patrimônio cultural’. Há uma
tensão, uma ambigüidade entre esses papéis. Não há como pular sobre
a própria sombra. Quem identifica? O quê? Como? E em função de quais
argumentos? Como determinados bens culturais vêm a ser identificados
e autenticados como ‘patrimônio cultural’?
O ponto central que quero trazer aqui é que esse processo não é in-
teiramente consciente; e o papel de identificadores é hierarquicamente
subordinado ao papel de pesquisadores. Vou tentar explicar por que.
O reconhecimento por parte do Estado, por parte do IPHAN (o regis-
tro do bem em um dos Livros do Patrimônio Cultural) é parte integrante
de uma extensa cadeia de agências de identificação e legitimação: o
turismo, agências de viagem, os meios de comunicação, o comércio, a
academia, diversas agências do Estado em nível municipal, estadual,
federal, etc.
Em termos locais é necessário levar-se em conta o sistema de patrona-
gem (por exemplo: a freqüência de ‘pessoas importantes’ em determinados
restaurantes, apadrinhando-os). Trata-se de estratégias de ‘autenticação’
{josé reginaldo santos gonçalves} 173
Referências bibliográficas
Cascudo, L.C.
1983 [1967] História da alimentação no Brasil. 2 volumes. Ed. Itatiaia,
1986 [1968] Prelúdio à cachaça. Ed. Itatiaia.
Castro, J.
1957 A geografia da fome. São Paulo: Brasiliense.
DaMatta, R.
1988 O que faz do brasil Brasil. Ed. Rocco.
Douglas, M.
1975 “Deciphering a meal” In: Implicit meanings. Routledge. New York.
Freyre, G.
1997 Açúcar: uma sociologia do doce, com receitas de bolos e doces do Nordeste
do Brasil, pp. 11-88, Cia das Letras.
Fry, P.
2001 “Feijoada e soul food 25 anos depois” In: Fazendo antropologia no
Brasil. (Org.
Esterci, N.; Fry, P.; Goldemberg, M.). Dp&A Editora/CAPES. Rio de
Janeiro.
Gonçalves, J.R.S.
2003 [1996] A retórica da perda: os discursos do patrimônio cultural no Brasil.
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Mahias, M.-C.
1991 “Cuisine” In: le dictionaire de l’ethnologie et de l’anthropologie. PUF,
Paris.
Sahlins, M.
2000 “The sadness of sweetness; or the Native Anthropology of Western
Cosmology. In: Culture in practice: selected essays. Zone Books. (pp. 527-583).
lógicos que floresceram no Brasil nos anos setenta e cujo foco era a vida
4 A obra importante
cotidiana. Ao tempo em que escrevia seus estudos etnográficos sobre e influente de Roberto
{josé reginaldo santos gonçalves} 177
rais norte-americanos, mas, alternativamente, “Eu sempre estive aqui...”,
próprio do etnógrafo nativo (Clifford 1996). Como disse há pouco, Cascudo
sempre se definiu a si mesmo, existencial e intelectualmente, como um
“provinciano”, em oposição ao universo social e cultural da “metrópole”.
Ele transforma assim essa circunstância biográfica e geográfica em uma
perspectiva intelectual e existencial que define o seu perfil como autor.
Até certo ponto, é possível dizer que Cascudo vê o Brasil do ponto de vista
da “província” (Gonçalves, 1999).
De um ponto de vista etnográfico, é nesse momento que seus escritos
tornam-se mais interessantes. Quando ele escreve sobre cultura popular,
tomando-a como um distante objeto de pesquisa, quando ele pensa como
um estudioso de folclore, ele tende a construir suas interpretações em
termos difusionistas, buscando as origens e reconstituindo os processos
de difusão de determinados itens culturais no tempo e no espaço; ou,
eventualmente, pensa em termos funcionalistas, procurando encontrar
as funções que podem desempenhar determinados itens culturais no
contexto das relações sociais cotidianas. Em resumo, quando ele pensa
teoricamente, seus escritos parecem historicamente datados.
Mas, na maioria das vezes, Cascudo escreve como um nativo. Ele pensa
menos como um “engenheiro” e mais como um bricoleur. Suas reflexões
são sistematicamente organizadas por categorias nativas e seus escritos
seriam assim melhor descritos como uma espécie de antropologia nativa.
Na medida em que seus estudos focalizam extensivamente tópicos asso-
ciados a experiências corporais (tais como comida, bebidas, gestos, objetos
materiais, etc.), revelam um rico ponto de vista nativo sobre concepções
do corpo humano e dos sentidos na cultura popular brasileira.
Uma vez que sugiro interpretar Cascudo como um escritor que cons-
trói retoricamente sua autoria como um etnógrafo nativo (Gonçalves
5 Esse ponto é, de
certo modo, assina-
1999), expressando idéias e valores de sua própria sociedade e cultura,
lado por Margarida qual a relevância de suas categorias de pensamento para o entendimen-
de Souza Neves em
seu excelente verbe- to dessa sociedade e cultura? O que podemos aprender sobre a cultura
te sobre “Tradição:
ciência do povo” brasileira em seus escritos? Mais especificamente, o que podemos apren-
(Neves 2003)
santos, com os mortos, etc. Nesse sentido, categorias como “nutrição” e e eu na fala etnográfi-
ca. O Anjo da Guarda
“alimentação”, “comida” e “refeição”, “fome” e “paladar”, “cru” e “cozi- de Josué afastou-o
da tentação diabóli-
do”, entre outras, integram de fato um vasto sistema de categorias que ca. Não daria certo.
Josué pesquisava a
estruturam seus escritos etnográficos e sua interpretação da cultura fome e eu a comida.
Interessavam-lhe os
popular brasileira. carecentes e eu os
No início de sua História da Alimentação no Brasil (Cascudo 1983 [1963)), ele alimentados, motivos
que hurlaient de se
opõe sua própria perspectiva intelectual àquela outra, expressa por Josué de trouver ensemble.
Na sua Geografia da
Castro (1908-1973), autor de A geografia da fome (Castro 2002 [1946]) e outros Fome, (Rio de Janeiro,
1946), no prefácio,
livros e artigos sobre a experiência humana da “fome”. Se Castro escreve do Josué alude ao projeto
ponto de vista da “fome”, ele, Cascudo, afirma que escreve seus livros sobre de uma “história da
cozinha brasileira”, de
comidas e bebidas populares, do ponto de vista do “paladar” . quem me libertei tam-
bém” (1983, 16).
{josé reginaldo santos gonçalves} 179
Do ponto de vista de Castro, um sistema de alimentação funciona para
alimentar as pessoas, para satisfazer às necessidades biológicas de deter-
minada população. Argumentando nos termos de uma concepção “es-
tratigráfica” de cultura, fundada em relações funcionais entre os níveis
biológico, psicológico, social e cultural (Geertz 1973, 37), Castro entende
a fome como uma necessidade biológica a ser satisfeita de modo mais ou
menos bem sucedido pelas instituições sociais, econômicas e políticas.
Sociedade e cultura são assim pensadas como dimensões a serem aciona-
das para resolver o “problema da fome”. O “paladar” (em oposição à fome)
é assim pensado como algo suplementar e definido aleatoriamente. Mas,
do ponto de vista de Cascudo, o “paladar” é determinado por padrões,
por regras e proibições culturais. Mais que isso, o paladar, segundo ele,
é um elemento poderoso e permanente na delimitação das preferências
alimentares humanas. Ele estaria profundamente enraizado em normas
culturais. Diz Cascudo:
Assim, não pode ser facilmente modificado por políticas públicas fun-
dadas no argumento médico de que determinado alimento ofereceria
maior valor nutritivo. Para Cascudo, “É indispensável ter em conta o fator
supremo e decisivo do paladar. Para o povo, não há argumento probante,
técnico, convincente, contra o paladar...” (Cascudo 1983, 19). Modificações
do paladar, argumenta, dependerão da mesma fonte de sua formação: o
tempo.
Quaisquer sociedades ou culturas humanas vão elaborar alguma for-
ma de distinção entre fome e paladar. É importante, no entanto, foca-
lizar a natureza da relação entre essas categorias. No caso dos escritos
de Cascudo, e particularmente das categorias neles expressas, o pala-
dar desempenha uma função dominante; enquanto a fome, uma função
subordinada. Em tal perspectiva, as regras culturais e as trocas sociais
{josé reginaldo santos gonçalves} 181
Por meio dos alimentos, indivíduos e coletividades fazem conexões e es-
tabelecem distinções de natureza social e cultural. A alimentação, assim,
como já foi sugerido, não é apenas “boa para comer”.
A categoria “paladar” (em oposição explicita e implícita à “fome”)
atravessa o conjunto das reflexões de Cascudo sobre comidas e bebidas.
Mais do que uma perspectiva teórica construída em termos estritamente
acadêmicos, a concepção de Cascudo expressa uma visão corrente sobre o
tema no cotidiano da sociedade brasileira. Em outras palavras, assume-se
no cotidiano que os alimentos funcionam basicamente para expressar e
celebrar diferentes espécies de relações sociais e culturais. Eles desem-
penham diversas funções, mas não exclusiva ou principalmente aquela
de alimentar ou satisfazer a fome enquanto necessidade natural.
cultura popular brasileira, tal como descrita nessa obra), esses termos Douglas (1975).
{josé reginaldo santos gonçalves} 183
lento. Esse ritmo é usualmente associado à autoridade social e cultural,
em oposição a posições subordinadas (Cascudo 1987 [1973] 177-178). Uma
refeição implica um processo longo e complexo de preparação, apresen-
tação e consumo de alimentos e bebidas, marcando assim sua distinção
do simples ato de alimentar-se. Uma refeição é, desse modo, claramente
oposta àquela espécie de comida que as pessoas podem consumir de modo
casual na vida cotidiana. Uma “verdadeira” refeição, segundo ele, nunca
é realizada de modo apressado. Ele assinala também que uma refeição, no
contexto tradicional brasileiro, deve ser realizada em silêncio, as pessoas
fazendo um uso mínimo de palavras. Historicamente, nos termos de Cas-
cudo, as refeições são permanentes, antigas, profundamente enraizadas
em tempos ancestrais, seguindo os ritmos da tradição assim como os
ritmos cósmicos e naturais. O ato de simplesmente de “comer” não tem,
por sua vez, esse caráter antigo e permanente, sendo casual e sujeito às
transformações rápidas ditadas pela moda. As refeições são necessaria-
mente coletivas; são parte integrante de uma totalidade cósmica, natural,
social e histórica. Comer tende por sua vez a ser um ato fragmentário, ca-
sual, individualizado e eventualmente solitário. As refeições estabelecem
conexões entre os seres humanos, entre estes e divindades, entre vivos e
mortos, etc.; comer, por outro lado, conecta os seres humanos com suas
necessidades individuais, passageiras e eventuais. Uma refeição envolve
relações no contexto doméstico, mas envolve também situações altamen-
te ritualizadas cujos parceiros são criaturas distantes, como divindades,
9 Essa distinção santos, mortos (Cascudo 1983 [1963]).
pode, de certo modo,
ser aproximada da- Cascudo distingue diferentes espécies de refeições na sociedade e na
quela construída por
Walter Benjamin entre cultura brasileira. Ele focaliza a distinção entre formas tradicionais e
o contexto tradicional
do “narrador” e o
modernas de refeições. Segundo ele, até o fim do século XIX e princípio do
contexto moderno, século XX (portanto no que ele chama de “Brasil Velho”), a seqüência das
no qual se verifica a
decadência desse per- refeições diárias era organizada do seguinte modo: a primeira refeição era
sonagem (Benjamin,
1986). o “almoço”, por volta de sete horas da manhã; a segunda era o “jantar”, por
volta de meio dia; em seguida, a “merenda”, uma curta refeição em torno
de três horas da tarde; e finalmente a “ceia”, por volta de seis horas. Ainda
rias fazem sistema com técnicas culinárias, certas espécies de comidas e em março de 1963”.
Ver Pinto e Silva
bebidas, e modos específicos de apresentação e consumo (Cascudo 1982 (2003, 99).
as maneiras de mesa, as categorias de paladar ou gosto, todos esses ele- códigos culinários é a
obra de Claude Lévi-
mentos inter-relacionados compõem um código cultural por meio do qual Strauss sobre mito-
logia ameríndia. Ver
mediações sociais e simbólicas são realizadas entre os seres humanos e o Lévi-Strauss (196 4;
1966; 1968). Mas a li-
universo. Como estágios em um longo e complexo processo, esse sistema teratura recente sobre
o tema é vasta. Entre
opera uma importante transformação simbólica da natureza à cultura, os estudos na área
ótica definida pelo conceito de “sistema culinário” (Mahias 1991), perce- S. Mennell (1985); M.
Montanari (1996); S.
bemos que as formas descritas de aquisição, preparação, apresentação e Mintz (1985); J-L Flan-
drin e M. Montanari
consumo de comidas e bebidas são termos sistematicamente inter-relacio- (1996); J-L Flandrin e
J. Cobbi (1999). Um
nados, ainda que não explicitamente. Na verdade, Cascudo nos traz uma número especial da
r e v i s t a H or izontes
percepção nativa daquilo que poderíamos chamar de “sistema culinário” Antropológicos (no. 4,
{josé reginaldo santos gonçalves} 185
sua memória e experiência biográfica, Cascudo descreve as preferências
brasileiras tradicionais por determinadas comidas e bebidas, assim como
os meios específicos de as preparar, servir e consumir. A perspectiva de
Cascudo é historicamente orientada e seu foco descritivo está voltado
para um Brasil “tradicional”, que teria existido em sua inteireza até fins
do século XIX. Um Brasil do passado (o “Brasil Velho”), mas ainda assim
13 A categoria “so- existindo na forma de “sobrevivências” 13 ainda ativas em diversas mo-
brevivência”, nos
textos de Cascudo, dalidades da chamada cultura popular contemporânea no mundo rural e
não tem o sentido
estritamente evolu- urbano. Suas fontes são textos de viajantes dos séculos XVI, XVII, XVIII e
cionista ao qual está
associado. Na verda-
XIX; textos literários nacionais e estrangeiros de períodos históricos di-
de, o uso que ele faz versos; e especialmente sua experiência biográfica como membro da elite
dessa noção acompa-
nha a ambigüidade nordestina brasileira, na condição de um etnógrafo nativo. Enquanto um
com que ela aparece
nos textos de um de etnógrafo, Cascudo costumava entrevistar ex-escravos, ex-proprietários
seus autores favoritos,
James Frazer. Para
de escravos, cozinheiras, seus próprios empregados e empregadas domés-
este, a idéia de sobre-
vivência trazia, além
ticas, membros de sua família (especialmente as mulheres), cozinheiros
do sentido de algo de restaurantes, pescadores e toda sorte de pessoas envolvidas direta ou
do passado que teria
simplesmente perma- indiretamente com atividades culinárias (Cascudo 1983 [1963]).
necido ao longo do
tempo, o significado Num estilo não muito distante de James Frazer, Cascudo reúne um
de algo selvagem que
existiria ativamente
conjunto de dados históricos e etnográficos relativos ao Brasil e a outras
sob a calma superfície partes do mundo. Ali vemos um vasto acúmulo de informações sobre di-
da “civilização”, po-
dendo manifestar-se ferentes elementos ou aspectos do sistema culinário brasileiro: formas de
a qualquer momento.
Sobre esse ponto na escolha, aquisição, preparação, apresentação e consumo de determinados
obra de Frazer, ver
Stocking Jr. (1996,
alimentos e bebidas, maneiras de mesa, categorias de paladar, modos de
XXV).
lidar com os restos de comida, etc. No nível mais consciente e explícito
da organização de seu pensamento, ele ordena esses dados em uma se-
qüência histórica que se estende do Brasil tradicional ao Brasil que lhe é
contemporâneo, do século XVI ao século XX. No entanto, meu ponto é que
os escritos etnográficos de Cascudo sobre comidas e bebidas tendem a se
configurar de modo muito mais rentável, do ponto de vista descritivo e
analítico, se os lemos, não em termos dessa seqüência evolucionária, mas
de um modo sistemático e sincrônico. Nesse sentido, o Brasil tradicional
e o Brasil moderno não são apenas dois momentos numa seqüência his-
A fome e o paladar
Se focalizamos nos textos de Cascudo a fome e o paladar, não como ex-
periências naturalmente dadas, mas como categorias culturais, podemos
dizer que a categoria “paladar” domina o sistema culinário tradicional; a
fome, por sua vez, domina o sistema moderno. Segundo Cascudo, o “pa-
ladar” desempenha um papel dominante nas refeições tradicionais; mas
a “fome” tende a ser o fator dominante nas formas modernas, ocasionais
e irregulares de alimentação cotidiana (1983 [1967]).
Cascudo argumenta que no mundo moderno, especialmente nas áreas
urbanas, as refeições não desaparecem, mas tendem a ser substituídas por
práticas de alimentação ocasionais, irregulares e ligeiras. Restaurantes e
locais de venda das chamadas “fast food” substituem o espaço da comida
feita em casa. Relações sociais e culturais são substituídas por necessida-
des imediatas. O apetite e o paladar perdem espaço para a fome. Nutricio-
nistas ocupam o lugar dos cozinheiros tradicionais. Comidas enlatadas
substituem longos e complexos processos de preparação de alimentos.
Comportamentos casuais, barulhentos e apressados competem com o
ritmo lento e silencioso das refeições tradicionais (Cascudo 1983 [1967]).
Fome e paladar são desse modo pensadas como categorias intimamente
{josé reginaldo santos gonçalves} 187
ligadas a distintas formas de vida social e cultural. Poderíamos talvez falar
da diferença entre uma “cultura da fome” e uma “cultura do paladar”.
Enquanto um estudioso de folclore, com uma orientação cultural e
histórica Cascudo percebe os itens que compõem o sistema culinário
brasileiro nos termos de uma seqüência histórica. Mas, enquanto uma
etnografia nativa, seus escritos revelam o caráter sistemático das relações
entre esses itens. Do ponto de vista de Cascudo, vale ainda sublinhar, as
formas tradicionais de vida e de pensamento, enquanto “sobrevivências”,
estão ainda ativas e poderosas (ainda que não predominantes) na vida
cotidiana brasileira contemporânea.
No entanto, é importante qualificar a distinção entre os conceitos tradi-
cionais e modernos de fome e paladar. De acordo com a percepção nativa de
Cascudo, ambas as categorias estão presentes tanto no contexto brasileiro
tradicional quanto no contexto moderno. Seus escritos sugerem no entanto
que nos contextos tradicionais, esses conceitos estão totalmente embutidos
em relações sociais e culturais. Eles fazem parte de categorias totais. Nos
contextos modernos, no entanto, a fome assim como o paladar tornam-se ca-
tegorias individualizadas e autônomas (e por isso mesmo, naturalizadas) em
face das relações sociais e culturais. Nos contextos tradicionais, por exemplo,
no Brasil colonial, é possível distinguir o paladar do escravo e o paladar do seu
proprietário. O paladar é parte inseparável da persona de cada um deles. Por
outro lado, nos contextos urbanos modernos, o paladar torna-se autônomo.
Ele transforma-se em “bom gosto” (o gosto do gastrônomo) e teoricamente
independente de categorias sociais ou raciais (Flandrin 1971). A categoria
“paladar” torna-se tão individualizada, assume contornos semânticos tão
delimitados quanto a categoria “fome”, ambas fundadas numa concepção
moderna e igualitária da natureza humana (Dumont 1977; Sahlins 1996).
Comentários finais
Por que, nos escritos etnográficos de Cascudo, tópicos como comidas
e bebidas recebem tanta atenção, além de outros objetos e experiências
da vida cotidiana?
{josé reginaldo santos gonçalves} 189
gorias sociais e culturais em ampla circulação na sociedade brasileira.
Nesse sentido, eles podem ser lidos não apenas como fontes de informação
histórica e cultural. Eles são, na verdade, fontes de perspectivas para o
entendimento da cultura popular brasileira. Uma vez que Cascudo, como
um bricoleur, pensa por meio de categorias culturais nativas, ele oferece
ao leitor pontos de vista originais sobre diferentes aspectos do cotidiano
brasileiro. Mais do que qualquer outro estudioso de folclore no Brasil, seus
escritos sobre alimentação podem trazer um ponto de vista estimulante
e até o momento não plenamente explorado para o entendimento desse
e outros tópicos da cultura popular brasileira.
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{josé reginaldo santos gonçalves} 197
Tenho sublinhado que os “patrimônios culturais” seriam melhor enten-
didos se situados como elementos mediadores entre diversos domínios
social e simbolicamente construídos, estabelecendo pontes e cercas entre
passado e presente, deuses e homens, mortos e vivos, nacionais e estran-
geiros, ricos e pobres, etc. Nesse sentido, tenho sugerido a possibilidade
de pensarmos o patrimônio em termos etnográficos, analisando-o como
um “fato social total”, e desnaturalizando assim seus usos nos modernos
“discursos do patrimônio cultural” (ver Capítulo V deste livro).
Essas festas são exemplo do que poderíamos chamar de um “pa-
trimônio transnacional”. Mas classificar essa festa como “patrimô-
nio” exige alguma cautela. É preciso reconhecer algumas nuances
nas representações do que se pode entender por “patrimônio”.
É bem verdade que são as próprias lideranças açorianas que falam
de um “patrimônio açoriano” ou da “açorianidade”. Mas este uso está
distante das concepções assumidas pelos devotos do espírito santo em
sua vida cotidiana. A diferença fundamental está precisamente no uso
das categorias “espírito” e “matéria”. Elas são diversamente concebidas
pelos intelectuais e lideranças açorianas, pelos padres da igreja católica
e pelos devotos.
Do ponto de vista dos devotos, a coroa, a bandeira, as comidas, os
objetos (todo esse conjunto de bens materiais que integram a festa e são
propriedade das irmandades); são, de certo modo, manifestações do pró-
prio espírito santo. Do ponto de vista dos padres, são apenas “símbolos”
(no sentido de que são matéria e não se confundem com o espírito). Do
ponto de vista dos intelectuais, são representações materiais de uma
“identidade” e de uma “memória” étnicas. Desse ponto de vista, as es-
truturas materiais que poderíamos classificar como “patrimônio” são
primeiramente “boas para identificar”.
As classificações dos devotos são estranhas a essa concepção de patri-
mônio. Do seu ponto de vista, trata-se fundamentalmente de uma relação
de troca com uma divindade. E nessa concepção total, culinária, objetos,
rituais, mitos, espírito, matéria, tudo se mistura. Sabemos do caráter
{josé reginaldo santos gonçalves} 199
irmão, tio, etc. É na condição de chefe de uma família, de centro de uma
rede de relações de parentesco que ele assume a direção da festa.
Nessas redes de relações que participam de todos os momentos da
festa, é possível distinguir um domínio masculino e um domínio femi-
nino, cada um deles ritualmente demarcado. As categorias “homem” e
“mulher” não expressam apenas relações de gênero, no sentido moderno
desse termo. Trata-se na verdade de categorias totais, pressupondo di-
mensões morais e cósmicas.
Enquanto a “honra” (a qualidade, precedência moral pessoal) se situa
basicamente no domínio masculino, das relações entre os homens, o es-
paço da rivalidade e da competitividade, das relações com o mundo dos
negócios e da política; a “graça” situa-se no plano feminino, especialmente
no espaço das relações de dádiva e contra-dádiva entre os seres humanos
e o espírito santo; a graça é uma dádiva unilateral concedida pelo capricho
da divindade e sem possibilidade de retribuição.
Segundo Julian Pitt-Rivers:
{josé reginaldo santos gonçalves} 201
(ou irmãos), na igreja, e através das “procissões” (Contins 2003) a mediar
as distâncias físicas e simbólicas entre esses locais.
A preparação e organização da festa cabem àqueles que, sorteados
na noite do domingo de Pentecostes, ficarão responsáveis por cada uma
das sete semanas de festa. Cada um desses irmãos terá consigo a coroa
do divino durante essa semana. Sua casa, especialmente preparada para
isso, com um altar na sala de visita abrigando a coroa em posição de des-
taque, receberá diariamente os irmãos que desejem fazer alguma prece
ao divino.
Nas quintas-feiras, serve-se, depois da reza, um lanche ou um jantar.
No domingo, depois da missa e da coroação das crianças, serve-se um
almoço na irmandade ou na casa de um irmão.
As atividades de preparação, organização e realização da festa de-
pendem fortemente dos “domingas” e “mordomos”. Evidentemente, as
irmandades apóiam essas atividades em termos de trabalho e em termos
financeiros. Mas sem os domingas e mordomos a festa não é possível.
É importante assinalar que se verifica uma forte rivalidade entre
os diversos domingas, entre o mordomo e os domingas, para mostrar
quem fez a melhor festa, ou seja, quem teve o maior número de con-
vidados, e conseqüentemente a maior fartura de comidas e bebidas.
Cada detalhe da festa é rigorosamente avaliado e julgado pelos irmãos.
Um dominga que ofereceu uma festa à qual faltou comida e bebida,
ou à qual não compareceram muitos convidados, terá seu prestígio
fortemente abalado.
Cada um dos domingas e mordomos com quem conversei manifes-
taram seu intenso temor de que faltassem comidas e bebidas, ou que
faltassem convidados, ou que algum detalhe comprometesse a festa.
Uma festa bem sucedida confirma a posição social e moral superior, ou
a honra, de um dominga. Mas, uma vez que nem todas as festas podem
ser igualmente boas, muitos saem um tanto diminuídos ao fim do tempo
das festas. Cada período de festas é portanto um teste para o prestígio
pessoal de cada dominga.
{josé reginaldo santos gonçalves} 203
entre a família, a irmandade e o mundo exterior, fazendo contatos com
círculos sociais e políticos mais amplos, especialmente quando buscam
arrecadar fundos para as festas, as atividades das mulheres se desenvol-
vem predominantemente do espaço da família e da irmandade.
A elas cabe dirigir as rezas, que desempenham papel fundamental
durante as festas. A elas compete os cuidados relativos à comensalidade:
elas preparam e servem os alimentos após as rezas.
Considerando a festa em sua totalidade, há um momento que ocupa
uma posição crucial em todo o processo: a coroação. Esta é realizada em
cada um dos sete domingos até o dia de Pentecostes. Em geral, as crianças
são coroadas, e o são pelo padre, após a missa, e no interior da igreja. É
um momento vivido com muita intensidade emocional.
A coroa (e o cetro) desempenha um papel crucial. Ela está sempre, ne-
cessariamente presente em todos os tempos e lugares da festa. Se seguir-
mos o movimento desse objeto, acompanhamos todas as etapas e lugares
importantes das festas. A ela se dirigem as rezas; ela está presente nas
procissões; ela está presente nos almoços e jantares, colocada em posição
de destaque, como um hóspede de honra. Os irmãos demonstram forte
emoção quando ela chega e quando ela parte.
A coroa e o cetro são, de certo modo, uma espécie de “equipamentos
da graça”. É por seu intermédio (da coroa e do cetro, mas especialmente
da coroa) que se manifesta simbolicamente a presença da graça. Na co-
roação das crianças, mas também em outras ocasiões, quando a coroa é
levada em visita à casa de algum irmão doente, ou quando se toca com o
cetro a cabeça e o coração dos irmãos. Nas procissões apenas mulheres e
crianças carregam a coroa e o cetro.
Vale lembrar aqui o mito de origem das festas açorianas do divino.
Essas festas teriam tido início no século XIV, pela iniciativa da Rainha
Santa Izabel, em pagamento a uma promessa que fizera ao espírito santo,
para que cessassem as guerras entre seu marido, Dom Diniz, e seu filho.
Prometera que ofereceria sempre uma festa e distribuiria comidas e be-
bidas fartamente aos pobres. Em algumas versões, ela mesma coroava
{josé reginaldo santos gonçalves} 205
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{josé reginaldo santos gonçalves} 209
Ressonância, Materialidade
e Subjetividade: as culturas
como patrimônios
Patrimônio s. m. (...) 1. herança familiar 2. conjunto dos bens familiares 3. fig. Grande
abundância; riqueza; profusão (p. artístico) 4. bem ou conjunto de bens naturais
ou culturais de importância reconhecida num determinado lugar, região, país, ou
mesmo para a humanidade, que passa(m) por um processo de tombamento para
que seja(m) protegido(s) e preservado(s) (...) 5. JUR. Conjunto dos bens, direitos
e obrigações economicamente apreciáveis, pertencentes a uma pessoa ou a uma
empresa (...) (Dicionário Houaiss de Língua Portuguesa).
I.
São muitos os estudos que afirmam que a categoria “patrimônio cultu-
ral” constitui-se em fins do século XVIII, juntamente com os processos
de formação dos Estados nacionais. O que não é incorreto. Omite-se no
entanto o seu caráter milenar e sua ampla distribuição geográfica. Ela não
é simplesmente uma invenção estritamente moderna. Está presente no
mundo clássico, na idade média e a modernidade ocidental apenas impõe
os contornos semânticos específicos que ela veio a assumir (Fumaroli 1997:
101-116). Podemos dizer que, enquanto uma categoria de pensamento,
ela se faz presente mesmo nas chamadas “culturas primitivas”. Estamos
provavelmente diante de uma categoria extremamente importante para
a vida social e mental de qualquer coletividade humana.
Evidentemente, nem todas as sociedades ou culturas humanas consti-
tuem, de forma dominante, patrimônios acumulados e retidos com finali-
dades de troca mercantil. Muitas são aquelas cujo processo de acumulação
de bens tem como propósito a sua redistribuição ou mesmo a sua ostensiva
destruição, como nos casos clássicos do Kula trobriandês e do Potlatch no
noroeste americano (Malinowski 1976 [1922]; 2003 [1950]: 185-318). Nesses
contextos, cabe assinalar, existem os chamados “bens inalienáveis”, cuja
natureza é definida pela impossibilidade social e simbólica de circula-
rem amplamente, desenhando assim hierarquias fundamentais (Weiner
1992).
O que é preciso colocar em foco nessa discussão, penso, é a possibi-
lidade de se transitar analiticamente com essa categoria entre diversos
mundos sociais e culturais, iluminando-se as diversas formas que pode
assumir. Em outras palavras: como é possível usar a noção de patrimônio
em termos comparativos? Em que medida pode nos ser útil para também
entender experiências estranhas à modernidade?
II.
Ressonância
A noção de patrimônio confunde-se com a de propriedade. Mais pre-
cisamente com uma propriedade que é herdada, em oposição àquela que
é adquirida. A literatura etnográfica está repleta de exemplos de culturas
nas quais os bens materiais não são classificados como objetos separados
{josé reginaldo santos gonçalves} 213
dos seus proprietários. Esses bens, por sua vez, nem sempre possuem atri-
butos estritamente utilitários. Em muitos casos, servem evidentemente a
propósitos práticos, mas possuem, ao mesmo tempo, significados mágico-
religiosos e sociais, constituindo-se em verdadeiras entidades, dotadas de
espírito, personalidade, vontade, etc. Não são desse modo meros objetos.
Se por um lado são classificados como partes inseparáveis de totalidades
cósmicas e sociais, por outro lado afirmam-se como extensões morais e
simbólicas de seus proprietários, sejam estes indivíduos ou coletividades,
estabelecendo mediações cruciais entre eles e o universo cósmico, natural
e social. Marcel Mauss assinalou certa vez que: “...se a noção de espírito
nos pareceu ligada à de propriedade, inversamente esta liga-se àquela.
Propriedade e força são dois termos inseparáveis; propriedade e espírito
se confundem...” (2003 [1950]: 136-137). Essa categoria de objetos não apre-
senta assim fronteiras classificatórias muito definidas, sendo ao mesmo
tempo objetos e sujeitos, materiais e imateriais, naturais e culturais, sa-
1 Um exemplo consis- grados e profanos, divinos e humanos, masculinos e femininos, etc.
te naquela categoria
de objetos que Victor Nas análises dos modernos discursos do patrimônio cultural, a ênfase
Turner, num estudo
clássico, chamou tem sido posta no seu caráter “construído” ou “inventado”. Cada nação,
de “sacra”: objetos
materiais marcados
grupo, família, enfim cada instituição construiria no presente o seu pa-
pela ambigüidade e trimônio, com o propósito de articular e expressar sua identidade e sua
usados nos momen-
tos liminares dos ritos memória. Esse ponto tem estado e seguramente deve continuar presente
de passagem. Ver “Be-
twixt and between: nos debates sobre o patrimônio. Ele é decisivo para um entendimento
the liminal period in
Rites de passages”
sociológico dessa categoria. Um fato, no entanto, parece ficar numa área
(1967: 93-111).
de sombra dessa perspectiva analítica. Trata-se daquelas situações em
que determinados bens culturais, classificados por uma determinada
agência do Estado como patrimônio, não chegam a encontrar respaldo
ou reconhecimento junto a setores da população. O que essa experiência
de rejeição parece colocar em foco é menos a relatividade das concep-
ções de patrimônio nas sociedades modernas (aspecto já excessivamente
sublinhado), e mais o fato de que um patrimônio não depende apenas
da vontade e decisão políticas de uma agência de Estado. Nem depende
exclusivamente de uma atividade consciente e deliberada de indivíduos
mória e a história (tais como o patrimônio, as coleções, os museus, os literários, onde o autor
distingue o processo
monumentos, os arquivos), opera-se um trabalho cuidadoso de elimi- de ressonância de um
determinado te x to
nação das ambigüidades. Substituem-se categorias sensíveis, ambíguas em outro na forma
de “inspiração” ou de
e precárias (por exemplo, cheiro, paladar, tato, audição) por categorias “citação”, ver o artigo
abstratas e com fronteiras nitidamente delimitadas com a função de re- “Ressonâncias” de An-
tonio Candido (2004:
{josé reginaldo santos gonçalves} 215
insinua, à nossa inteira revelia, em nossas práticas e representações.
Desse modo, o trabalho de construção de identidades e memórias co-
letivas não está evidentemente condenado ao sucesso. Ele poderá, de
vários modos, não se realizar. Um texto de Marcel Proust pode talvez
iluminar esse ponto:
“É assim com nosso passado. Trabalho perdido procurar evocá-lo, todos os esforços
de nossa inteligência permanecem inúteis. Está ele oculto, fora de seu domínio e de
seu alcance, em algum objeto material (na sensação que nos daria esse objeto mate-
rial) que nós nem suspeitamos. Esse objeto, só do acaso depende que o encontremos
antes de morrer, ou que não o encontremos nunca.” (1998: 48)
III.
Materialidade
Outro ponto importante a ser considerado nessa discussão é o fato de
que o chamado patrimônio sempre foi e é “material”. Tanto é assim que
foi necessário, nos discursos contemporâneos, criar a categoria do “imate-
rial” ou do “intangível” para designar aquelas modalidades de patrimônio
que escapariam de uma definição convencional limitada a monumentos,
prédios, espaços urbanos, objetos, etc. É curioso, no entanto, o uso dessa
noção para classificar bens tão tangíveis e materiais quanto lugares, fes-
tas, espetáculos e alimentos.
{josé reginaldo santos gonçalves} 217
De certo modo, essa noção expressa a moderna concepção antropo-
lógica de cultura, na qual a ênfase está nas relações sociais, ou nas re-
lações simbólicas, mas não especificamente nos objetos materiais e nas
técnicas. A categoria “intangibilidade” talvez esteja relacionada a esse
caráter desmaterializado que assumiu a moderna noção antropológica
de “cultura”. Ou, mais precisamente, ao afastamento dessa disciplina, ao
longo do século XX, em relação ao estudo de objetos materiais e técnicas
(Schlanger 1998).
3 Para um uso analítico
Um dos possíveis corretivos proporcionados pelo uso analítico da ca-
inovador da catego- tegoria “patrimônio” em relação às teorias antropológicas seja talvez o
ria “materialidade” no
contexto da história colocar em primeiro plano a materialidade da cultura. Não há como falar
literária ver o impor-
tante artigo de Hans em patrimônio, sem falar de sua dimensão material.
Gumbrecht “O campo
não-hermenêutico e Mas, o que é importante considerar é que se trata de uma catego-
a materialidade da
comunicação” (1998
ria ambígua e que na verdade transita entre o material e o imaterial,
[1992]: 137-151).
reunindo em si as duas dimensões. O material e o imaterial aparecem
de modo indistinto nos limites dessa categoria. A noção de patrimônio
cultural desse modo, enquanto categoria do entendimento humano, na
4 Vale sublinhar que verdade re-materializa a noção de “cultura” que, no século XX, em suas
a categoria da “ma-
terialidade”, con- formulações antropológicas, foi desmaterializada em favor de noções
cebida nos termos
da oposição entre mais abstratas, tais como estrutura, estrutura social, sistema simbó-
matéria e espírito
especialmente no
lico, etc.
contexto da cultura
popular, pode ser
Um autor brasileiro que elabora em sua obra uma concepção peculiar
entendida como
do patrimônio cultural assinala a importância do que ele chama “elemen-
uma dimensão
elementar, ligada tos humildes e de uso cotidiano”. Em seu livro Rede-de-Dormir: um estudo
não só aos objetos
materiais mas aos etnográfico, publicado na década de 50, Luis da Câmara Cascudo assinala
chamados fatos bá-
sicos da existência, a inexistência de estudos sobre esse objeto e comenta:
aos sentimentos, às
paixões e ao corpo
humano, sobretudo
“Certos temas dão prestígio ao pesquisador, e outros exigem uma prodigiosa re-
suas partes inferio- tórica para valorizá-los. Um livro sobre educação, finanças, economia, assistência
res (Bakhtin 1993).
social, higiene, nutricionismo, empresta ao autor um ar de competência severa,
de idealismo prático, de atenção aos ‘altos problemas’. Quem vai se convencer da
necessidade de uma pesquisa etnográfica sobre a rede-de-dormir, a rede que nunca
mônios”, na medida em que, pela sua ressonância junto a grande parte da alimentação, as rela-
ções de vizinhança,
população brasileira, realizam mediações importantes entre o passado expressões populares,
meios de trabalho e de
e o presente entre o imaterial e o material, entre a alma e o corpo, entre transporte como a jan-
gada, e outros.
outras.
Evidentemente as monografias clássicas da antropologia estão re-
pletas de dados sobre objetos materiais e seus usos. Seu entendimento
entretanto, a partir das categorias teóricas dessa disciplina, tende a ser
concebido a partir de suas funções sociais ou de suas funções simbólicas,
deixando em segundo plano a especificidade, a forma e a materialidade
desses objetos e de seus usos por meio de técnicas corporais. O fato im-
portante a considerar é que, se nos colocarmos do ponto de vista nativo, a
vida social não seria possível sem esses objetos materiais e sem as técnicas
corporais que eles supõem. O que seria o kula sem os colares, braceletes,
sem as canoas e todo o conjunto de técnicas necessárias à sua construção
e ao seu uso?
É possível que a categoria do patrimônio, tal como a estamos explo-
rando, sublinhe, entre outras, essa dimensão material da vida social e cul-
tural. E, ao lado dessa dimensão material, é preciso assinalar a dimensão
fisiológica, ou mais precisamente, o uso de técnicas corporais. Objetos
sempre implicam em usos determinados do corpo. Afinal, pergunta Mar-
cel Mauss: o que é um objeto se ele não é manuseado?. Objetos materiais 6 “Car ce qui est vrai
des fonctions spécia-
e técnicas corporais, por sua vez, não precisam ser necessariamente en- les des organes d´un
vivant est encore plus
tendidos como simples “suportes” da vida social e cultural (como tendem vrai, e t même vrai
d´une tout autre vérité
a ser concebidos em boa parte da produção antropológica). Mas podem des fonctions et fonc-
ser pensados, em sua forma e materialidade, como a própria substância tionnements d´une
société humaine. Tout
dessa vida social e cultural. Muitos estudos, enfatizam corretamente o en elle n´est que rela-
tions, même la nature
fato de que os objetos fazem parte de um sistema de pensamento, de um matérielle des chôses;
un outil n´est rien s´il
sistema simbólico, mas deixa em segundo plano o fato de que eles exis- n´est pas manié” (Mar-
tem na medida em que são usados por meio de determinadas “técnicas cel Mauss 1969 [1927]:
214).
{josé reginaldo santos gonçalves} 219
corporais” em situações sociais e existenciais (e não apenas em termos
conceituais e abstratos). Eles não são apenas “bons para pensar”, mas
igualmente fundamentais para se viver a vida cotidiana. Desse modo, é
necessário pesquisar como, por exemplo, as roupas são produzidas, como
são adquiridas, e sobretudo como são usadas, por meio de quais técnicas
corporais, como se desfazem das roupas, como elas deixam de ser usadas,
como saem de moda, sendo reclassificadas, etc. Mais especificamente: é
preciso descrever como cada um desses processos é mediado pelas “téc-
nicas corporais” (Mauss 2003: 401-408) que integram esses sistemas.
A fim de tornar esse ponto mais preciso, talvez seja útil trazer aqui a
análise que Luis da Câmara Cascudo desenvolve sobre o objeto desse seu já
citado estudo etnográfico: a “rede-de-dormir”. Enquanto um objeto material,
a rede é indissociável de relações sociais, morais, mágico-religiosas, existindo
portanto enquanto parte indissociável de totalidades cósmicas e sociais. Mais
precisamente ela desempenha um papel fundamental no processo de media-
ção sensível entre as diversas oposições que compõem essas totalidades.
Em seu livro, Cascudo afirma que, adotada no século XVI pelos coloni-
zadores europeus, a rede-de-dormir passa a integrar a vida cotidiana da
colônia, de forma bastante extensiva, até meados do século XIX, quando
vem a ser progressivamente substituída pela “cama” (considerada então
como um objeto “civilizado”, por oposição à rede, que será associada à
“barbárie”, ao “atraso”).
No período colonial, no entanto, afirma esse autor:
“Dentro e fora do âmbito das vilas e povoações, engenhos de açúcar e primeiros cur-
rais de gado, a rede foi uma constante. Adotaram-na como solução prática e natural.
Evitava-se o transporte dos pesados leitos de madeira que vinham de Portugal e só
posteriormente começaram a ser carpinteirados no Brasil” (1983: 23).
“Quando as redes eram feitas, unidade por unidade, e não em séries, mecanicamente, es-
tavam todas dentro de moldes fiéis às conveniências tradicionais. Os tipos tinham seus
destinos, previstos, antecipados, sabidos. Eram quase sempre “...redes de encomenda” e
obedeciam aos modelos inalteráveis nas dimensões e cores. Azul, encarnado, amarelo,
verde, eram as tonalidades preferidas, evitando-se as que sugerissem tristeza, viuvez,
luto, morte, o lilás, o roxo, o negro, para os lavores e bordados ornamentais.
“As redes de cor não eram as mais caras e nem as melhores, prendas de coronéis
e fazendeiros, senhores de engenho e vigários colados da freguesia, ou qualquer
autoridade mandona. Ficavam nas residências medíocres e menos prestigiosas.
{josé reginaldo santos gonçalves} 221
O estilo era uma só cor, com nuanças e gradações. Redes com enfeites de mais
de uma cor, apapagaiada, não merecia aceitamento de gente ilustre. As redes
brancas eram as tradicionais da aristocracia rural, com varandas, varrendo o
chão. (...)” (1983: 119).
“O tamanho das varandas, com as fímbrias orladas de bolinhas, (...), figurava como
honraria. As redes de escravos, as redes pobres, não tinham varandas. As redes co-
muns, compradas nas feiras, fabricadas comumente, tinham varandas curtas. Uma
alta distinção, sinal de poderio, era ver-se alguém em rede branca, com as varandas
quase arrastando no solo. Como as redes eram feitas sob encomenda unicamente
para as pessoas graduadas vinham varandas compridas” (1983: 122).
E continua:
“O leito obriga-nos a tomar seu costume, ajeitando-nos nele, numa sucessão de 7 Aqui acompanho
uma sugestão pre -
posições. A rede toma o nosso feitio, contamina-se com os nossos hábitos, repete, sente no pensamento
de Mauss, para o qual
dócil e macia, a forma de nosso corpo. A cama é hirta, parada, definitiva. A rede é o fluxo da vida social
seria impensável sem
acolhedora, compreensiva, coleante, acompanhando tépida e brandamente, todos os objetos materiais
e sem o corpo huma-
os caprichos de nossa fadiga. Desloca-se, incessantemente renovada, à solicitação
no, ou seja, sem os
física do cansaço. Entre ela e a cama há a distância da solidariedade à resignação” “efeitos fisiológicos”
das diversas catego-
(1983: 13). rias coletivas: “Não
podemos descrever
o estado de um in-
É possível surpreender nessa descrição simultaneamente o objeto em divíduo “obrigado”,
sua materialidade, sua forma e em seus usos sociais e simbólicos. Mais ou seja, moralmente
preso, alucinado por
que a expressão emblemática de uma sociedade ou uma camada social suas obrigações, por
exemplo uma questão
determinada, esse objeto e seus usos parecem na verdade colocar essa de honra, a não ser
que saibamos qual é
sociedade em movimento. E mais precisamente, no caso específico da o efeito fisiológico e
rede de dormir, num movimento pendular, definido pela adaptabilidade não apenas psicológi-
co dessa obrigação”
ao cosmos. A rede faz mediações sensíveis entre várias oposições, entre a (Mauss 2003 [1950]
319-348).
{josé reginaldo santos gonçalves} 223
fixidez e o deslocamento, entre o interior e exterior, o privado e o público,
entre o céu e a terra, entre o self e o mundo. O uso desse objeto articula
material e simbolicamente uma forte valorização de uma subjetividade
que se define precisamente não pela ação disciplinada e voluntariosa por
meio da qual se impõe sobre o mundo, o que caracterizaria a chamada
moderna subjetividade ocidental, mas, ao invés, pela sua plasticidade e
8 Para uma discussão adaptação a esse mundo.
bastante rica da cate-
goria “subjetividade”
e como ela se confi- IV.
gura no ocidente mo-
derno em comparação
com outros contextos
Subjetividade
culturais ver Goldman
(1988). Para a noção O que pretendi ressaltar nessa exposição foi a possível utilidade ana-
de “adaptabilidade”
na concepção de
lítica da noção de “patrimônio” para iluminar determinados aspectos da
subjetividade, ver o
vida social e cultural, especificamente sua “ressonância”, sua “materia-
clás s ico de We b e r
sobre a religião na lidade” e, concomitantemente, a presença incontornável do corpo e suas
China antiga (1951).
Devo essas sugestões técnicas. Volto-me agora para o papel fundamental que desempenha a
a Ricardo Benzaquen
Araújo, em comunica- categoria do patrimônio no processo de formação de subjetividades indi-
ção pessoal.
viduais e coletivas. Em outras palavras, não há patrimônio que não seja
ao mesmo tempo condição e efeito de determinadas modalidades de au-
toconsciência individual ou coletiva. Quero dizer que entre o patrimônio
9 Alguns autores já e essas formas de autoconsciência existe uma relação orgânica e interna
chamaram a atenção
p ara e s s e asp e c to e não apenas uma relação externa e emblemática. Em outras palavras,
não há subjetividade sem alguma forma de patrimônio.
no contexto da mo-
dernidade ocidental,
assinalando, em Lo-
cke, a relação entre
A fim de desenvolver nosso raciocínio, cabe distinguir inicialmente
a moderna noção de dois significados que assumiram historicamente as concepções de cul-
indivíduo e a noção de
propriedade, expressa tura. De um lado uma concepção clássica, na qual a cultura é pensada
na categoria do “indi-
vidualismo possessi- como processo de auto-aperfeiçoamento humano. De outro, uma con-
vo” (Handler 1985);
ver também uma
cepção moderna vigente sobretudo a partir do século XVIII, fundada no
inspiradora reflexão pensamento do filósofo alemão Johann Gottfried Herder (1744 -1803) e
sobre a relação entre
as práticas de colecio- segundo a qual as culturas seriam expressões orgânicas da identidade
namento e formação
da subjetividade em das diversos grupamentos humanos. No primeiro caso, a noção de cul-
tura está associada à idéia de trabalho, de esforço constante e consciente
James Clifford (1985;
2002).
Ela talvez permita surpreender de modo tenso e simultâneo aspectos tan indemostrable
científicamente, con
da cultura que são apenas parcimoniosamente iluminados por teorias los recursos de las
disciplinas empíricas,
classificadas como universalistas (das quais seria um exemplo notável a como las valoraciones
‘más extremas’”.
obra de Claude Lévi-Strauss); ou por teorias classificadas como relativis- (Weber 1973 [1917]:
231).
{josé reginaldo santos gonçalves} 225
tas (entre as quais merece destaque a obra de Clifford Geertz). Afinal, os
patrimônios são sempre concretos e específicos, embora não irredutivel-
mente singulares; e universais, embora essa universalidade seja sempre
de natureza concreta e contingente.
É possível que aí possamos reconhecer a presença do que Marcel Mauss
chamou de “arbitrário cultural”:
“Todo fenômeno social possui efetivamente um atributo essencial: seja ele um sím-
bolo, uma palavra, um instrumento, uma instituição, seja ele a língua ou a ciência
mais bem feita, seja ele o instrumento que melhor se adapte aos melhores e mais
numerosos fins, seja ele o mais racional possível, o mais humano, ainda assim ele é
arbitrário.” (1979[1929]: 192-193).
“cultura espúria” ou “enlatada”) tal como formulada num artigo clássico ver Geertz (1978: 30).
{josé reginaldo santos gonçalves} 227
cultural” (1985: 321-322). Para ele, o indivíduo não pré-existe às formas
culturais, mas é, até certo ponto, um efeito dessas formas culturais. No
entanto, e aí está a diferença, para Sapir essas formas não são entidades
objetificadas esperando para serem descritas e analisadas. Quando são
autênticas, essas formas não se dissociam dos indivíduos, e estes as sentem
como parte deles, como sua criação e não com algo estranho. A cultura,
segundo Sapir, quando autêntica, é vivida pelos indivíduos como uma
experiência de criação, de transformação. Nela o indivíduo é pensado
“...como um núcleo de valores cultuais vivos” (1985: 318). Em resumo, a
cultura, quando autêntica, não se impõe de fora sobre os indivíduos, mas
de dentro para fora, sendo uma expressão da criatividade destes.
Outro aspecto igualmente importante na sua compreensão das “cultu-
ras autênticas” é “...a atitude adotada em relação ao passado, suas institui-
ções, seus tesouros de arte e pensamento” (1985: 325). Esse passado, no con-
texto dessas culturas, não existem na forma como determinados objetos
são apreciados através das vitrines dos museus. Na verdade, afirma Sapir,
“...o passado é de interesse cultural apenas quanto ele está ainda presente
e pode tornar-se o futuro” (1985: 325). Esse aspecto, cabe sublinhar, man-
tém uma ostensiva afinidade com a categoria “patrimônio”, tal como a
estamos explorando nestas reflexões. Ele articula-se intimamente com a
dimensão da subjetividade, uma vez que esta pressupõe sempre alguma
forma específica de continuidade entre passado, presente e futuro.
O que desejo ressaltar ao trazer essa concepção de “cultura autên-
tica”, tal como é formulada por Sapir, não é evidentemente legitimar as
estratégias intelectuais correntes que condenam certas formas culturais
à “inautenticidade” enquanto congelam outras na condição de “autênti-
cas”. Nem era tampouco o objetivo daquele autor, embora estivesse então
motivado por uma atitude de crítica da cultura moderna, e particular-
mente da cultura norte-americana. Já tive oportunidade de num artigo
chamar a atenção para a necessária discussão da autenticidade enquanto
categoria de pensamento e sua relevância nos debates culturais (Ver Ca-
pítulo VI deste livro). O que sublinho é a utilidade dessa noção de “cultura
V.
Num ensaio de 1933, Experiência e pobreza, Walter Benjamin pergunta-
va: “...qual o valor de todo nosso patrimônio cultural, se a experiência não
mais o vincula a nós?” (1986 [1933]). Numa perspectiva identificada como
“crítica da cultura”, o autor apontava a “perda da experiência” como uma
característica da modernidade. No entanto, é possível que, se concebemos
os patrimônios do ponto de vista etnográfico, se abrimos essa categoria e
exploramos suas outras dimensões, possamos encontrar formas de patri-
mônio cultural no mundo contemporâneo que estejam fortemente ligadas
à experiência. Assim, as festas religiosas populares, quando consideradas
do ponto de vista dos devotos e suas relações de troca com determinadas
divindades (ver Capítulos VI e XI deste livro). Essa dimensão existe numa
permanente tensão com aquela outra, na qual as festas são classificadas
do ponto de vista de agências do Estado (e parcialmente assumida pelos
próprios devotos) como formas de “patrimônio cultural”, “patrimônio
imaterial”, etc.
As variações de significado nas representações sobre a categoria “pa-
trimônio” oscilam possivelmente entre um patrimônio entendido como
parte e extensão da experiência e portanto do corpo; e um patrimônio
entendido de modo objetificado, como coisa separada do corpo, como
objetos a serem identificados, classificados, preservados, etc. Por um lado,
um patrimônio inseparável do corpo e suas técnicas – o corpo, que é,
{josé reginaldo santos gonçalves} 229
em si, um instrumento e um mediador social e simbólico entre o self e
o mundo (Mauss 2003 [1950]: 401-424); e por outro lado um patrimônio
individualizado e autonomizado, com a função de assumir o papel de
“representação” ou de “expressão” emblemática de categorias que são
transformadas em alguma forma de entidade, seja a nação, o grupo étnico,
a região, a natureza, entre outras.
Penso que, uma vez submetidos a esse prisma analítico, os atuais dis-
cursos (e políticas) de patrimônio cultural talvez possam assumir formas
menos onipotentes. Na medida em que esses discursos sejam expostos
ao reconhecimento da natureza ambígua e precária dos objetos que eles,
simultaneamente, representam e constituem, interrompe-se o esforço
obsessivo de objetificação dos patrimônios. Para o autor destas reflexões,
esta seria evidentemente uma expectativa ambiciosa.
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{josé reginaldo santos gonçalves} 237
debate com os evolucionistas, autores como Boas, Malinowski, Durkheim
e Mauss vão elaborar um vocabulário alternativo, onde desempenha um
papel crucial a noção etnográfica de cultura (além, evidentemente, das
noções de “trabalho de campo”, “observação participante”, “etnografia”
e outras que integram o jargão da disciplina). É nesse momento que os
antropólogos vão opor esse vocabulário aos discursos do viajante, do mis-
sionário e do funcionário da administração colonial a respeito dos chama-
dos primitivos (Clifford 1988). O que os antropólogos vão defender, e que é
a marca registrada da disciplina, é que se deveria entender os primitivos
a partir de suas próprias perspectivas, a partir das “categorias nativas”
de pensamento. O estudo da língua falada nessas sociedades passou a ser
um requisito fundamental para o entendimento de sua cultura. Há uma
íntima associação entre entender a língua nativa e entender a cultura.
O uso da noção de cultura no plural está embutido em uma nova con-
cepção da linguagem, ou linguagens, enquanto sistemas de signos, e que
está associada ao nome de Saussure. As experiências humanas, a partir
de então, vão ser pensadas através da metáfora da “linguagem”, que pas-
sa a desempenhar um papel central. Configura-se nesse momento um
vocabulário, cujos pressupostos tornam-se visíveis, agora, no final do
século. Esse período, que cobre aproximadamente dois terços do século
XX, parece tão obcecado por essa noção etnográfica de “cultura” quanto
o século XIX estava obcecado pelas noções de evolução, raça, origem,
história e progresso (Clifford 1988). Segundo essa concepção de cultu-
ra, também conhecida como “relativismo cultural”, os seres humanos
são constituídos por sistemas de signos diferenciados, através dos quais
pensam e articulam suas experiências, suas relações com a sociedade e
a natureza. A partir da obra de Saussure e dos antropólogos, postula-se
a “arbitrariedade” dos signos linguísticos, assim como a arbitrariedade
dos signos culturais que constituem as experiências humanas.
Num ensaio escrito ainda nos anos sessenta, Clifford Geertz descreveu
esse processo como o “impacto do conceito de cultura sobre o conceito
de homem” (1973). Ele argumenta que esse conceito provocou um des-
{josé reginaldo santos gonçalves} 239
no registro da singularidade; ora sustentando um modelo “científico” de
conhecimento, ora um modelo de conhecimento identificado às chama-
das humanidades. Ela permanece, no entanto, como uma palavra chave
no vocabulário dessa época. O que parece marcar o momento atual, dos
anos setenta e oitenta para cá, é uma perspectiva de distanciamento em
relação a esse vocabulário, uma atitude irônica em relação à epistemologia
que floresce no final do século XIX e início do século XX e que gerou a
antropologia social e cultural, tal como a conhecemos até hoje.
Meu ponto é o seguinte: a obsessão que une, ao mesmo tempo que di-
vide, uma e outra perspectivas talvez se explique pelo que uso que fazem
dessa metáfora fundamental do vocabulário antropológico moderno: a
noção de linguagem. Apesar das divergências, que alimentam um extenso
debate que já faz parte dos manuais de história da antropologia, essas
perspectivas convergem quanto ao modo de conceber a “linguagem” e
suas relações com dimensões extra-linguísticas.
Teoria e narrativa
Uma relação de forte tensão entre duas atitudes distintas constitui as
identidades que a disciplina assumiu ao longo de sua história, desde sua
formação. De um lado, uma atitude que poderìamos chamar de “teórica”
e que se expressa nos trabalhos daqueles antropólogos que, ao estudarem
a cultura, buscam os seguintes objetivos:
a) generalização;
b) busca de princípios e leis universais;
c) descoberta de relações de determinação no plano empírico, ou re-
lações necessárias no plano lógico;
d) subordinação do tema do indivíduo ao tema da cultura, entendida
como uma como totalidade coerente e estável (um indivíduo pensado em
termos universais, partilhando um fundo de identidade encontrável em
qualquer contexto);
e) subordinação do tema da história à regularidade dos princípios
(uma história pensada como o domínio da contingência);
{josé reginaldo santos gonçalves} 241
tor de Os argonautas do pacífico, além de outras monografias) é um caso
exemplar.
Essa oposição entre uma atitude “teórica” e uma atitude “narrativa”
poderia ser perfeitamente dispensável se ela apenas reeditasse a velha
oposição entre universalismo e relativismo, ou uma valorização da teoria
versus a etnografia. No entanto, o uso que faço dessa oposição tem a fun-
ção de iluminar um outro aspecto: o reconhecimento ou não do caráter
ficcional da cultura. Esse ponto pode ser qualificado se focalizarmos as
concepções de “linguagem” embutidas nos discursos antropológicos que
configuram o debate entre as perspectivas universalista e relativista.
O reconhecimento ou não desse caráter ficcional da cultura vai afe-
tar o modo como se concebe a etnografia, uma modalidade de produção
intelectual fundamental na identidade da disciplina. No primeiro caso,
esta deixa de ser apenas uma coleta de dados que viriam alimentar uma
reflexão teórica e definiria o próprio modo de reflexão antropológica,
onde a teoria aparece embutida na pesquisa etnográfica. É fácil encon-
trar na comunidade dos antropólogos profissionais com maior ou menor
afinidade com a pesquisa etnográfica, com maior ou menor talento para
essa atividade. É um pouco mais difícil, além de pouco convincente, que
alguém se declare contra a etnografia. Meu ponto aqui é que não é suficien-
te dizer que a prática da etnografia define a perspectiva antropológica. É
preciso, afinal, qualificar essa noção, dizer de que etnografia se trata, de
que modo ela é concebida, se não quisermos correr o risco de entendê-la
de modo restrito, como atividade de apoio à teoria, simples observação e
coleta de dados. O reconhecimento ou não do caráter ficcional da cultura
vai afetar qualitativamente o modo como podemos entender a etnografia,
tornando-a um empreendimento discursivo plural, que pode assumir
várias formas, livre de um rígido contrôle metodológico. Afinal, Malino-
wski assim como Evans-Pritchard, Boas assim como Ruth Benedict, Geertz
assim como Lévi-Strauss fizeram etnografias. Mas quanta diferença entre
seus textos.
{josé reginaldo santos gonçalves} 243
dos a serem interpretados; o que acontece é que, seguindo um ou outro
caminho, partem sempre do pressuposto de uma linguagem que fun-
cionaria basicamente enquanto ‘representação’. Representação de um
mundo exterior ou interior. Ora ela refletiria o mundo social e natural;
ora expressaria uma interioridade individual ou coletiva.
No chamado contexto pós-estruturalista, um deslocamento parece
ocorrer em relação a esse pressuposto. A pergunta mais conseqüente não
será mais exatamente se um ou outro caminho, se universalismo ou rela-
tivismo, poderá dar conta das propriedades definidoras da cultura; mas se
de fato precisamos nos ater àquele pressuposto. A questão não será mais
saber como ele é possível, mas por que ele se tornou necessário. O que vai
estar em jogo é a própria noção de linguagem com que podemos operar.
O que parece unir universalistas e relativistas é, precisamente, uma
concepção de linguagem como representação. Ambas as perspectivas
concebem essa metáfora central para a noção moderna de cultura, a lin-
guagem, restringindo-a a seu uso como representação. Nesse raciocínio,
a cultura vem a ser pensada também como representação: ou a represen-
tação de leis e princípios universais; ou a representação de significados
específicos, próprios de determinada época ou de determinada sociedade
em um momento de sua história; ou a representação de uma “mente” ou
uma “natureza humana” universais; ou a representação de contextos
sociais articulados por “teias de significado” sempre singulares.
O que vai permitir um deslocamento em relação a essa obsessiva osci-
lação entre as duas perspectivas é uma concepção da linguagem pensada a
partir dos seus múltiplos usos, na qual a função de ‘representação’ aparece
como uma possibilidade entre outras. As repercussões dessa concepção de
linguagem sobre as concepções antropológicas de cultura vão fazer com
que esta seja pensada também em termos de seus usos, de seus efeitos, e
não de propriedades intrínsecas definidoras. Conseqüentemente, o que
virá a ser enfatizado nessas concepções é a dimensão de “criatividade”
da cultura, ou seja, as múltiplas formas que podem assumir seu funcio-
namento e seus efeitos. Ela deixa, assim, de estar amarrada à função de
da cultura, tanto no sentido geral do conceito de cultura, como os antro- perspectiva distinta,
embora complemen-
pólogos usam, quanto no sentido específico de culturas ou subculturas tar, vai dizer: “This
is what Roy Wagner
singulares vividas no cotidiano de diversas sociedades. (1975) must mean by
‘the invention of cul-
Um filósofo do século XX dizia que aquilo que autores como Coperni- ture’: the particular
uma teoria verdadeira, mas um fértil e novo ponto de vista (Wittgens- tural concepts when
they are realized as
tein 1984:18). É provável que isso valha também para os antropólogos. O p e r s onal proje c t s”
(Sahlins 1985:152).
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que eles ofereceram de melhor não foram teorias verdadeiras da cultura,
mas pontos de vista férteis, que os diferentes usos da noção de cultura
tornaram possíveis. Essa contribuição pode ser reconhecida como uma
possibilidade sempre presente na chamada tradição antropológica. Já
foi assinalado que se trata de uma disciplina que jamais conheceu pa-
radigmas estáveis e hegemônicos, e que sempre esteve assumidamente
dividida contra si mesma. Roberto Cardoso de Oliveira, em um dos seus
ensaios, sugere:
“À diferença das ciências naturais, que (...) registram [os paradigmas] em sucessão
– num processo contínuo de substituição – , na antropologia social os vemos em
plena simultaneidade, sem que o novo paradigma elimine o anterior por via das
“revoluções científicas” de que nos fala [Thomas] Kuhn, mas aceite a convivência,
muitas vezes num mesmo país, outras vezes numa mesma instituição” (1988:15).
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Podemos dizer que é como participantes dessa conversação, que
pode historicamente incluir um maior ou menor número de partici-
pantes, uma variedade mais ou menos extensa de interlocutores, e que,
2 Vale assinalar
que esse ponto não
sobretudo, pode estruturar-se a partir de lógicas distintas, que cons-
parece presente truímos o conhecimento. Um conhecimento sempre parcial, exercen-
na visão de Burke,
cujo entendimento do-se sempre contra algum outro, configurando-se como um campo
da metáfora da
“conversação”, apa- multiplamente dividido entre aliados e adversários. Do ponto de vista
rentemente, restrin-
ge-se a uma lógica
da comunidade dos antropólogos, a noção de cultura tem sido, simultâ-
“simétrica” (Bateson
neamente, o objeto e o modo desse conhecimento, o conteúdo e a forma
1972), “igualitária”
(Dumont 1985), dei- dessa conversação, simultâneamente o que tranqüiliza e o que inquieta,
xando fora de foco
modalidades de con- remédio e veneno.
versação, ou diálogo,
cujas relações entre Minha sugestão é que as interpretações da cultura, em suas verten-
os interlocutores es-
tejam estruturadas a
tes “teóricas” ou “narrativas”, podem ser pensadas, numa perspectiva
partir de uma lógica wittgensteiniana, como “jogos de linguagem” ou “formas de vida”
da “complementa-
ridade” (Bateson (Wittgenstein [1953] 1989), em que a palavra “cultura” é diferente-
1972), ou da “hie-
rarquia” (Dumont mente usada e com efeitos diversos. As fronteiras entre esses jogos
1985). Penso que os
usos da noção de
não estão determinadas a priori. Através de sua separação, da quebra
“conversação” ou
de sua inter-comunicação, demarcam-se fronteiras disciplinares, que
“diálogo” poderiam
ser enriquecidos a podem ser necessárias na construção das comunidades cientificas, de
partir de uma pers-
pectiva que explo- suas linhagens e facções, e na identificação de aliados e adversários,
rasse essa distinção
no plano social e mas que não podem, afinal, funcionar como um impedimento para a
epistemológico. Essa
sugestão é trazida
reflexão. O ponto a ser assinalado é que o reconhecimento desse pro-
por DaMatta em cesso, e portanto da permanente vigência dessas opções, assim como
um artigo, no qual
comenta os usos da da necessidade de uma atitude de sistemática indecisão diante delas,
noção de “dialogia”
entre antropólogos é o que pode garantir não sòmente a continuidade, mas a vitalidade
norte-americanos
(1992: 49-77).
de nossa conversação.
Em resumo, numa perspectiva antropológica, as culturas são constituí-
das pelas metáforas por meio das quais as “inventamos”: ora como evolução,
como função, como gramática, como código, como estrutura; ora como
drama, teias de significados, textos, modos de produção textual, estratégias
discursivas, dialogia, narrativas. Nesse mesmo processo de inventarmos
“outras” culturas por meio dessas metáforas, inventamos e reinventamos,
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Este livro foi impresso em novembro de 2007, com uma
tiragem de 1000 exemplares.