SUBTIL, José. O Direito de Polícia Nas Vésperas Do Estado Liberal em Portugal
SUBTIL, José. O Direito de Polícia Nas Vésperas Do Estado Liberal em Portugal
SUBTIL, José. O Direito de Polícia Nas Vésperas Do Estado Liberal em Portugal
LIBERAL EM PORTUGAL
JoséSubtit1
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ção, tomando-a susceptível de ser instrumentalizada através de técnicas e do ao conjunto do rebanho e a cada uma das ovelhas em particular, "omi-
9
campanhas, como o estímulo ao casamento e à procriação, a regulação da nes et si~gulatim" , ?1-?ldado na longa história da construção da Igreja
sexualidade infecunda, uma nova divisão do trabalho entre o homem e a como umdade ecumemca e que, desde o século XVI, se disseminava,
mulher, a desconstrução social do tabu celibatário dos religiosos e profes- lentamente, numa política secular que, a bem dizer, jamais deixou de ser
sos, a economia das heranças ou a mobilidade social. imaginada como "arte de governo" até aos nossos dias.
Esta profusão de técnicas assentou na vigilância e controlo dos Uma migração modelar sobejamente evidenciada nos inúmeros
indivíduos de forma a conduzi-los, através de práticas disciplinares (cor- tratados que dispunham sobre as mais diversas artes de governar tudo: as
pos) e de exercícios de consciência (alma), para o "bom" caminho defini- coisas, o território, as almas, os corpos, os indivíduos e a população. E
do pela razão do Estado. Tanto os instrumentos de análise como as estru- que operou, também, a emergência e o desenvolvimento de racionalida-
turas cognitivas e as práticas de polícia construiriam, por esta forma, uma des e conhecimentos, de informações e cálculos, de uma arte direccionada
nova ficção da realidade social, novas categorias de percepção e repre- para a "construção da felicidade" de cada um e de todos, segundo princí-
sentação, isto é, novas ordens simbólicas dominadas pela invenção do pios e normas que riscavam os limites entre a "verdadeira" e a "falsa"
interesse público dares publica. vida, apontando para uma normalidade que sossegasse a sociedade e os
Se estes instrumentos de acção e intervenção política são novos, políticos. Governar pela lei e com a lei dava, por esta via, lugar a gover-
o modelo de governo não o era totalmente na medida que estava enraiza- nar pela acção permanente e positiva sobre os indivíduos, a uma paixão
do na longa tradição da pastoral cristã. Esta govemamentalidade7 signifi- por criar e alimentar um 'rebanho' exemplar.
cava a determinação e a pretensão de dirigir os governados num determi- Mas neste rebanho imaginário constituído por humanos, o dis-
nado rumo, tanto quanto possível com a melhor optimização dos recursos curso político seguia o discurso teológico que estabelecia desigualdades
naturais e materiais, ou seja, debaixo de saudáveis regimes de saúde pú- naturais na ordem social que coube a Adão na Criação (Génesis, 26: "E
blica, bem-estar, tranquilidade espiritual e segurança (bons alimentos, Deus disse: Façamos o homem à nossa imagem e semelhança; que ele
bom ar, boa água, comodidades, vida saudável, espírito são etc.). Uma domine os peixes do mar, as aves do céu, os animais domésticos e todos
peregrinação que podia, inclusive, implicar movimentos de populações no os répteis"), a começar pela criança que, como 'ser' incapaz de se condu-
território se estes proporcionassem o acesso a mais recursos, ou os pudes- zir a si próprio e próximo dos animais, mas com a capacidade para se
sem modificar para melhor, como foi o caso das explorações agrícolas, da tomar homem, ~a~ou um estatuto de protecção privilegiada (expostos,
mudança de climas ou da catequese das almas. abandonados, enJeitados, órfãos e pobres).
Governar era, portanto, cuidar tanto das populações como dos Outros humanos, desprovidos da inteligência, razão e prudência
indivíduos e do território, tal como faz o "bom pastor" ou o "timoneiro" para se poderem dirigir, foram agrupados na categoria de "menores"
de um navio, metáforas que, à época, associavam o poder do governante ~orno loucos, pród~gos, falidos, viúvas e rústicos - estes desgastados pelo
ao poder pastoral cristão que dirigia as ovelhas da Igreja8• Esta relação isolamento da sociedade - bem como pobres, miseráveis e doentes. A
entre 'rebanho' e 'população', pastor da igreja e príncipe de vassalos, todos era devida ajuda movida pelas virtudes cristãs da misericórdia e da
produzia, também, os efeitos que habilitavam à avaliação do bom ou mau caridade,_ repletas de parábolas para a salvação das almas. A compaixão
pastor, do bom ou mau príncipe, consoante o rebanho fosse bem conduzi- pela sofnme~to das desgraças do corpo gerava graças da alma, num jogo
do ou não, porque, não o sendo, 'ovelhas' e 'homens' desagregar-se-iam de contrapartidas entre o destino dos miseráveis e a dádiva dos generosos
por incúria do pastor ou do "político". Um poder simultaneamente dirigi- para cumprimento das, bem-aventuranças, pelo menos até à primeira me-
tade do século XVIII 1°.
7
Ver Ó, Jorge Ramos do. Notas sobre Foucault e a governamentalidade. Michel
9
Foucault: perspectivas. Rio de Janeiro: Achiamé, 2005. Expressão cunhada por FOUCAULT, Michel. Dits et Écrits. Paris: Gallimard, 1978
8
Sobre esta forma de dirigir sem governar, na versão política da "mão invisível", ver (v. IV).
10
HESPANHA, António Manuel. "introdução" a Hércules Confundido, Sentidos Acerca dos "menores" da sociedade, deveres e obrigações, no âmbito do direito e da
Improváveis e Incertos do Constitucionalismo Oitocentista: o caso português. Cu- tradição teológica, ver HESPANHA, António Manuel. Imbecilitas. As bem-
ritiba: Juruá, 2009. p. 7-26. -aventuranças da inferiodidade nas sociedades de Antigo Regime. São Paulo: Anna-
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A esta assistência devida, passiva e virtuosa, sobrepõe-se, ago- Por tudo o que foi dito, o Traité de la Police, de Nicolas Dela-
ra, a intervenção social do Estado de Polícia que, embora partilhando esta mare 14, é significativo na medida em que as actividades da polícia se re-
imagem do incontrolável destino divino de alguns humanos, juntou parte partem por três direcções: a) a economia e o comércio (produção de bens,
destas categorias de diminuídos no grupo de "vagabundos" e estigmati- circulação das mercadorias, formação profissional); b) a ordem e a segu-
zou-os como parasitas da sociedade por viverem sem trabalhar, à custa rança (vigilância dos indivíduos perigosos, caça aos vagabundos e men-
dos outros 11 • E, assim, se reformulou a própria classificação da pobreza e digos, perseguição dos criminosos, educação); c) a saúde e a higiene pú-
o alcance da assistência de natureza eminentemente religiosa. blica (protecção da infância, medicalização preventiva, erradicação dos
Uma assistência que ficava, agora, reduzida aos que, de facto, surtos epidémicos, conhecimento da morte, promoção do casamento e da
não podiam trabalhar por incapacidade física. Para os outros, a assistência natalidade, melhoria da qualidade dos géneros alimentares, abastecimento
piedosa e salvítica era substituída pela intervenção política e social rege- de água e limpeza das ruas).
neradora através de casas pias e outras instituições capazes de os habilitar Contudo, a saída para o modelo de governo de polícia não foi,
à dignidade do trabalho. "Todas estas casas devem ser casas de trabalho na sua formulação inicial, uma revolução sob o ponto de vista do ius
[ .. .] os pobres sadios devem ser obrigados a hum trabalho determinado" commune vigente. Na verdade, o modelo de governo familiar serviria de
por ser o melhor remédio contra a indolência e a preguiça causadas pela mote ao desenvolvimento desta nova "ciência" administrativa, ou seja, o
miséria e a pobreza 12• E que não excluía, por vezes, o próprio trabalho das poder que o príncipe passava a ter em relação aos homens e às riquezas
crianças abandonadas e pobres, uma prática que, aliás, 'atravessou todo o do Reino, era, afinal, semelhante ao poder que tinha como pai de família
período moderno em contra ciclo com a doutrina cristã 13 • para com a sua casa e os seus parentes, cuidando do seu bem-estar e au-
mentando as suas riquezas, mesmo que não pudesse tirar a uns para dar a
blume, 2010; e, na mesma linha, "O amor nos caminhos do direito: amor ejustiitia no outros. Esta potestas que lhe permitia deitar mão a certas formas discricio-
discurso jurídico moderno". A Política Perdida, Ordem e Governo antes da Mo- nárias de governo seria, doravante, manipulada para outros interesses,
dernidade. Curitiba: Juruá, 2010. p. 57-110. como o bem público e a razão de Estado, estendendo o governo da "eco-
11
Num sentido diferente, fundado na análise de modelos sociais e numa perspectiva nomia" familiar ao engrandecimento dos súbditos e a administratio dos
política que valoriza as reformas assistenciais do início da época moderna (finais do bens à obtenção da riqueza do Estado 15 •
século XV e século XVI) como instrumentos para a construção do Estado, é
fundamental a extensa obra de Laurinda Abreu como, entre outras, Igreja, caridade Esta administração policial também engendraria uma nova plu-
e assistência na Península Ibérica (sécs. XVI-XVIII): estratégias de intervenção ralidade de micro poderes e uma conflitualidade aberta com a justiça de-
social num mundo em transformação. Igreja, caridade e assistência na península vido às regras destinadas a impor, dispor e regular a disciplina social.
Ibérica (séculos XVI-XVIII). Lisboa: Colibri, 2004. p. 11-26; Políticas de caridade
e assistência na construção do Estado Moderno: a especificidade portuguesa no
Mais precisamente, esta pulsão por governar tudo e todos, criou as suas
contexto Ibérico. Las relaciones discretas entre las monarquias hispana y próprias limitações, a começar por alguns juristas que irão opor, no plano
portuguesa: las casas de las reinas (siglos XV-XIX). Arte, música, espiritualidad y doutrinário, as leis fundamentais e o direito à razão de Estado e, ainda por
literatura. Madrid: Poligemo, 2009. p. 1451-1466; Repressão e controlo da outros que, criticando as práticas de polícia, por serem monstruosas e
mendicidade no Portugal Moderno. Asistencia y caridad como estrategias de exorbitantes, amputá-las-ão de legitimidade sempre que precisarem da
intervención social: iglesia, estado y comunidad (sécs. XV-XX). Bilbao, Servicio
Editorial de la Universidad dei País Vasco, 2007. p. 95-119; Reclusão e controle
justiça e dos tribunais para redimirem pleitos e contendas.
dos pobres: o lado desconhecido da assistência em Portugal. Revista Portuguesa
de História, 1, 2003. p. 527-540. assistência, em Portugal, no século XVI", A Infância no Universo Assistencial no
12
Elementos da policia geral de hum estado. Tradução de João Rosado de Villalobos Norte da Península Ibérica (séculos XVI-XIX), Braga, ICS, 2008. p. 31-49.
14
e Vasconcellos, 2 Tomos, 1786-1787, Oficina de Francisco Luiz Ameno, p. 187-188, DELAMARE, Nicolas. Traité de la Police, ou J'on trouvera J'Histoire de son
onde se propõe que as Casas Pias sejam espalhadas por todo o Reino "regidas pelas etablissement, les fonctions et les prerogatives de ses magistrats, toutes Ies loix et
Sociedades Patrióticas de todas as Províncias", à semelhança do plano para Evora tous les reglements qui la concernent, etc., Paris (1703-1719).
cujos estatutos foram consultados em 17.06.1781. 15
O governo da casa servirá de mote ao governo de polícia, deslocando o eixo da eco-
13
ABREU, Laurinda. Un destin exceptionnel: les enfants abandonnés au travail (Évora, nomia (da família) para a política (Estado). Ver síntese deste tema em SUBTIL, José.
1650-1837). Annales de démographie historique, 2, 2005. p. 165-183; "As crianças "Justiça e Ciência de Polícia". Actores, Territórios e Redes de Poder, entre o Anti-
abandonadas no contexto da institucionalização das práticas de caridade e go Regime e o Liberalismo. Curitiba: Juruá, 2011. p. 257-274.
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As Formas do Direito: Ordem, Razão e Decisão 283
Depois, pela regulação sistémica dos diversos poderes policiais
que emergiam quando as tendências de uns não coincidiam com a de Não se pense, porém, que a concepção e a prática de polícia se
outros ou quando eram mesmo antagónicas, como foi o caso, por exem- reduzem à gestão racional. A polícia teve, também, como um dos seus
plo, da censura que oporia a Intendência Geral das Polícia à Mesa da principais objectivos a prevenção, agindo de forma estratégica, o que lhe
Comissão Geral sobre o Exame, e Censura dos Livros, ou dos conflitos conferiu um enorme poder para programar a acção governativa. A pre-
que separavam o Senado da Câmara de Lisboa, a Misericórdia de Lisboa, venção implicava, entre outras coisas, a vigilância e esta dependia da
o Desembargo do Paço e a Casa da Suplicação dos comissários de polícia, qualidade da informação, adequada a cada circunstância, lugar e tempo,
quer pela resistência à perda de competências, quer pela "arrogância" dos para orientar a mudança das práticas.
usurpadores policiais. Esta preocupação pela mudança, para prevenir e não para reme-
Uma terceira limitação é devida à medição do êxito ou fracasso diar, é essencial para se perceber que o que estava afecto à acção gover-
dos resultados da administração intendencial que, em última instância, nativa era a criação de condições que permitissem melhorar a produção
definirá a utilidade dos novos órgãos o que, sem dúvida, sujeitava a acti- de bens e a qualidade de vida dos vassalos. Podemos referir aqui, por
vidade de polícia a um mecanismo permanente de auto-avaliação. Desde exemplo, o caso das famílias que foram deslocadas das ilhas para traba-
que deixou de ser crucial saber se as práticas de polícia eram "constitucio- lharem na agricultura do Norte e no Alentejo, a abertura de estradas, a
nais" ou não, os efeitos produzidos pelas mesmas passaram a determinar, concessão de bolsas de estudo no estrangeiro, a "nacionalização" dos
em exclusivo, as suas avaliações políticas o que, se lhes emprestou um correios, a secagem de pântanos e o recrutamento de mão de obra gratuita
substancial pragmatismo executivo, também as constrangeu. com a detenção de marginais, vagabundos e ociosos.
E estas validações reflectiam, agora, o peso do saber científico Mas prevenir era, igualmente, preservar e conservar as boas
que se constituía como algo diferente dos limites jurídicos, tanto pela condições existentes, fazer com que não se deteriorassem, como espelham
dinâmica da produção de conhecimentos e suas aplicações, como pelas as políticas de apoio da Intendência Geral da Polícia à Casa Pia e às "ro-
competências dos seus agentes administrativos. Esta foi a quarta limita- das" administradas pelas misericórdias e câmaras ou em parceria.
ção do governo de polícia que opôs administrativos a cientistas, poderes a O direito de polícia à "portuguesa" deste "governo inteiramente
saberes, e estabeleceu um novo "regime de verdade", um conjunto de administrativo" foi, fundamentalmente, influenciado pelo Tratado de
proposições aceites pela ciência, passíveis de serem testadas e verificadas, Delamare como se pode ver através de três repositórios: a) um, que diz
que envolveram a política com enunciados científicos e oferecerem outras respeito às fundamentações da legislação sobre a polícia que, em que
soluções "verdadeiras" para os problemas sociais. certas passagens, são quase cópias do tratado; b) outro, pela escolha dos
O caso da Academia Real das Ciências é paradigmático. Quase campos de intervenção que constam todos do programa de Delamare; c)
todos os novos saberes e cientistas passaram por lá, a maioria dos inten- e, finalmente, a produção teórica segue de perto o mesmo tratado como
dentes, superintendentes, tratadistas e memorialistas foram sócios da sejam as memórias da Academia Real das Ciências sobre a agricultura, as
Academia. artes e manufacturas, medidas de higiene e saúde pública, criminalidade e
segurança, alimentação e assistência às crianças, em especial expostos e
Esta nova elite que se foi disseminando na Corte e nos centros enjeitados, combate de epidemias, remédios para tratar doenças, formação
de decisão à periferia fazia, cada vez mais, depender o bom governo, do prófissional dos médicos, cirurgiões e boticários, reforma dos hospitais,
governo sábio, a ponto da Coroa vir a isentar de censura os livros aprova- eliminação da ociosidade e da mendicidade, políticas de assistência social,
dos pelas diversas Faculdades da Academia com o argumento de que, por conservação de alimentos, alteração dos climas etc.
tanto saberem, não podiam enganar-se. Os produtores do discurso cientí-
fico ganhavam, deste modo, o estatuto de reguladores da "verdadeira" Também é sintomático como, decorrido mais de um século, as
economia política, ao mesmo tempo cúmplices do poder de polícia e principais funções assumidas por Diogo Inácio Pina Manique parecem ser
comprometidos com a defesa da hegemonia do saber no campo do poder retiradas do Édito apresentado por Colbert a Luís XIV (1667) para a cria-
dominante, subtraindo de prestígio o discurso jurídico e teológico. ção da polícia parisiense, a que se seguiu a nomeação de M. de La Reynie
que, tal como Pina Manique, pertencia ao mais alto tribunal régio e que
viria a escolher Delamare para seu comissário (1702).
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As Formas do Direito: Ordem, Razão e Decisão 285
16
Num trabalho recente mostrei que a origem desta mudança foi
marcada pelo terramoto de 1755, um acontecimento que proporcionou case instituições especializadas, como a Real Casa Pia de Lisboa 18, para
uma sucessão de inovações administrativas que, com o decorrer dos anos, além dos reflexos na reforma da Universidade de Coimbra, da divisão
cimentou um programa de polícia com transparência "ideológica", con- administrativa do Reino, da extinção de conventos, das leis sobre a pro-
sistência racional, técnica e científica, vindo a dar origem à criação da priedade, herança, décima e sisa (ver relação destes organismos no final
Intendência Geral da Polícia (1760) que, a partir da posse de Diogo Inácio do texto).
de Pina Manique (1780), se intrometeu nas mais diversas áreas de gover- Um quadro da administração central da Coroa que corresponde
no, criando conflitos com quase todas as autoridades, inclusive, com os à maior reforma da monarquia portuguesa desde os finais do século XVI.
secretários de Estado e o tribunal do Desembargo do Paço 17 •
Um ius policiae que abrangia mendigos e vagabundos, doentes
e sãos, trabalhadores e desempregados, comerciantes e industriais, nobres e 2 A DISCIPLINA DOS CORPOS, DAS ALMAS E DOS
vilões, clérigo regular e secular, professores e alunos, médicos, cirurgiões e BENS
boticários, caçadores e pescadores, numa palavra, toda a população. Que
se envolveu na educação, ensino, moral, segurança, saúde, produção e
Le bonheur de l 'homme, comme chacun !e sait, dépend de trais sortes
comércio de bens. Inspeccionou lugares de "perigo", "medo" e "contá-
de biens, les biens de l'âme, les biens du corps, et ceux qu'on appelle
gio" como praças públicas, tavernas, teatros, casas de ópera, hospitais, de la fortune. La privation des premiers jette les ténebres dans son es-
conventos, mosteiros, prisões, instituições de caridade, boticas, termas, prit, corrompe son Cceur, e !ui fait oublier les principaux devoirs:
lojas de comércio e fábricas. E vigiava os circuitos de difusão de ideias, celle des seconds l'abandonne à la langueur et aux souffrances; et si
contrabando e doenças, como estradas, caminhos, portos, rios, edificios les derniers !ui manquent, il est rare, sans une grâce d'en haut ou des
públicos, casas particulares, minas, florestas, cemitérios e igrejas. A ju- secours tout particuliers, qu 'il puisse jouir d'un véritable repas.
risdição da intendência seria, inclusive, alargada à reedificação da cidade Nicolas De/amare
(pontes, calçadas, fontes, limpeza de ruas, fiscalização das obras e demo- Prefácio ao Traité de la Police (1703)
lição das barracas).
Numa palavra, um ius policiae do tudo, do particular ao geral,
do geral ao particular, uma forma panóptica do exercício do poder, sem Devido à variedade temática da regulação social e política do
zonas de obscuridade, como, em certa medida, viria a ser definido por ius policiae, foram-se autonomizando, com o tempo, áreas específicas de
Bentham (I 787).
governo que vieram a tomar-se praticamente indisponíveis da justiça_ e do
O peso e o resultado desta actividade originariam, com o tempo, direito, uma vez que associaram aos seus campos de poder um conJunto
outras "polícias" especializadas. Os comissários e organismos que assu- de saberes só manipuláveis pelos agentes detentores desses capitais que,
miram este programa foram vários e fora da alçada dos tribunais e dos na proposta de Nicolas Delamame, se referiam, em primeiro lugar, aos
conselhos régios. Esta constelação orgânica e funcional, que se formou bens do corpo, progressivamente recriada pelo conceito de higiene públi-
entre o terramoto de 1755 e as invasões franceses, isto é, durante perto de ca no final do século XVIII, sobretudo a partir do tratado de polícia médi-
meio século, espelha o "irrequietismo" reformista pombalino e mariano- ca de Johann Peter Frank (1786-1792) onde é dado um destaque especial
-joanino onde emergem inspecções-gerais, intendências, superintendên- às questões da assistência sanitária. Praticamente pela mesma altura, a
cias, juntas, mesas, colégios, academias de arte, hospitais reais, bibliote- introdução do conceito de vacinação pelo médico britânico Edward Jen-
ner (1796) viria a proporcionar novos instrumentos científicos no com-
16
SUBTIL, José. O Terramoto Político (1750-1759). Lisboa: Ediual, 2008; "Evidence bate à mortalidade e um enorme progresso terapêutico. A saúde pública
for Pombalism: Reality or Pervasive Clichés?", e-JPH. [online]. 2007, v. 5, n. 2, transformava-se num objecto e num objectivo central dos governos, en-
p. 51-55.
17 18
SUBTIL, José. O Desembargo do Paço (1750-1833). Lisboa: Ediual, 1996 (capítulos Sobre o carácter 'disciplinador' da instituição, ver SUBTIL, José. A Real Casa Pia de
II e III). Lisboa (1780-1807). Actores, Territórios e Redes de Poder, entre o Antigo Regime
e o Liberalismo. Curitiba: Juruá, 2011. p. 157-170.
286 José Subtil As Formas do Direito: Ordem, Razão e Decisão 287
volvendo políticos, administradores, médicos, veterinários, farmacêuti- No prefácio à sua monumental obra, Nicolas Delamare distin-
cos, arquitectos, engenheiros, professores, padres e juízes. gue duas espécies de funções de governo tendo em atenção as finalidades
O que distingue esta mudança é a relação entre o modo de pro- e os métodos: as que diziam respeito aos negócios e interesses entre parti-
dução de bens e os recursos humanos que deslocaria para a esfera da "po- culares e as que tinham por objectivo o bem público. Estas últimas eram
pulação" uma atenção completamente diferente da que tinha sido confi- matérias do Direito Público que as Repúblicas consignaram no âmbito da
nada à família como célula da sociedade corporativa e por onde passavam Polícia, razão pela qual decidiu proceder a um levantamento do "respecti-
as preocupações do príncipe como bom pai de família. Agora, sobre a vo espírito e motivos" das "matérias de Polícia".
população impunham-se duas medidas indispensáveis: a preservação da O tratado cobre uma infinita gama de objectos, diríamos que
vida e a prevenção da morte. cobre toda a vida dos vassalos, sem distinção de privilégios e estados, em
Justamente, por isso, o primeiro grande Traité de la Police de nome do interesse geral.
Nicolas Delamare (1703), não por ser um tratado sobre uma coisa nova, Na apresentação começa por se ''provar a necessidade e a exis-
mas por ser um tratado novo sobre uma coisa velha, ganhou uma dimen- tência da Polícia, da dignidade dos seus magistrados e da submissão
são política indiscutível em toda a Europa. Na verdade, este primeiro devida às suas Leis" que dependem de três bens essenciais: "dos bens da
tratado não era já um tratado de polícia mas um tratado de várias polícias alma, dos bens do corpo e dos que apelidamos bens da fortuna. A priva-
que se vieram a autonomizar ao longo do século XVIII, em ritmos e espe- ção dos primeiros lança as trevas no espírito, corrompe o coração e leva
cializações diferentes. o homem a esquecer os seus principais deveres. A dos segundos leva-o à
Já não se tratava apenas de aplicar um arsenal legislativo e uma melancolia e ao sofrimento e se os últimos lhes faltam e, sendo as benes-
doutrina de direito mas de saber qual era a melhor forma de actuar sobre ses do Alto ou a ajuda do seu semelhante escassas, não pode gozar de um
os fenómenos sociais para se obterem os melhores resultados. O funda- verdadeiro repouso".
mento jurídico deixou, deste modo, de ocupar a centralidade da decisão, São, por isso, objecto do tratado as leis referentes à religião,
dando lugar ao conhecimento científico que passava a armadilhar as orien- costumes, bens do corpo (saúde, alimentos, habitação, comodidade públi-
tações políticas e administrativas. Diferente do governar à justiça, o go- ca viária, segurança e tranquilidade) e bens da alma (ciências, livres artes,
vernar à policiae fundamentava-se na avaliação do saber científico. virtudes, dons da graça), mas em que o corpo detém o primeiro lugar
Por isso mesmo, o aumento da população e a conservação da porque da "perfeita formação dos seus órgãos, bem como a feliz consti-
sua saúde, física e moral, dependia dos recursos sanitários, da protecção tuição do seu temperamento" resultam os outros. Os bens da fortuna ob-
dos expostos, das respostas às doenças, dos recursos médicos, da prepara- têm-se pelo comércio, manufacturas e artes mecânicas e todos podem
ção dos remédios, dos hospitais públicos, das características ecológicas aqui encontrar o "talento, o socorro de que necessitam".
dos lugares e dos bons alimentos. Revisitemos, sumariamente, o conteúdo de cada um dos doze
É o que diz o Traité de la Police de Nicolas Delamare sobre livros do tratado.
o vigor da "força de trabalho" como fundamento económico da rique- O primeiro livro aborda a "polícia" como instituição e os moti-
za das Nações. Que transforma a "população" (números, repartição vos que levaram ao seu aparecimento, os magistrados e oficiais, dignida-
espacial, longevidade e saúde) num problema político e social cuja re- des, prerrogativas e funções. Trata-se de um expediente de legitimação
solução exige técnicas de rigor (estimativas demográficas, cálculo da alicerçado num amplo repositório histórico.
pirâmide das idades, esperanças de vida, taxas de mortalidade), incita-
ções ao casamento e à natalidade, educação, formação profissional e O segundo livro contém as matérias que dizem respeito à reli-
medicalização preventiva. E para que tudo isto pudesse ser feito, e bem gião (Escritura, concílios, padres, pontífices) que ''procuraram manter
feito, o governo passava a socorrer-se do planeamento e da monitoriza- os cuidados de uma verdadeira pureza" que determinarão, em última
ção dos programas porque o fim estava na obtenção das coisas que a instância, a vida social, numa clara inspiração bíblica como a prescreve
polícia devia alcançar. que "Aquele que, estando impuro[ ...] será excluído do seu povo". (Le-
vítico, 20).
288 José Subtil
As Formas do Direito: Ordem, Razão e Decisão 289
O terceiro livro incide sobre "a matéria do coração do homem
tanto quanto me foi possível", desde o amor próprio até ao "último desre- O décimo livro é dirigido às manufacturas, às artes mecânicas e
às "ornamentação das nossas Igrejas, o vestuário, os móveis, os equipa-
gulamento", como a ''paixão desordenada pelo luxo, pela boa carne, pelo
mentos, a preparação dos alimentos e os serviços de mesa são os princi-
jogo e pelos espectáculos" que leva o homem a abandonar os seus deve-
pais objectivos das nossas Manufacturas, bem como, os empregos dos
res essenciais e a "lançá-los nas suas incapazes defesas" numa vida "sem
nossos mais simples artesãos" na linha, aliás, do livro anterior.
convicção, sensual e desocupada". Por outras palavras, a regulação da
conduta do "espírito" e do "coração". No décimo primeiro livro incluem-se directivas sobre os servi-
çais, a criadagem, "servitude e da escravatura", estipulando procedimen-
O quarto livro é dedicado às questões da saúde, alimentação,
vestuário, habitação, comodidade dos caminhos e segurança. De entre tos sobre a "família" dos que, não sendo filhos, fazem, porém, parte do
universo social.
todos, a saúde é "o primeiro e o mais desejável dos bens corporais, prece-
de aqui, todos os outros da mesma natureza". O décimo segundo livro, e último, trata da pobreza, começando
pelos cuidados que lhe são devidos, desde a religião, costumes, hábitos,
O quinto livro é destinado à alimentação e dirigido ao pão, car-
ne, peixe fresco de mar, seco e salgado, peixe de água doce, ovos, man- saúde, até à segurança pública, comércio e artes. Os pobres são distingui-
teiga e queijo, frutas e legumes, vinho e cerveja, a lenha e o carvão para dos em duas categorias: os pobres envergonhados e os pobres pedintes.
Os primeiros, são os pobres que "sofrem a suas penas em silencio, nas
preparar os alimentos, o feno e o grão que servem para alimento dos ani-
mais e cultivo das terras. suas casas e que se esforçam por subsistir mas aos quais lhes falta muita
coisa e, por vezes, tudo, quer por doença ou por falta de trabalho. São
O sexto livro trata da habitação, comunicações e transportes, estes que nós denominamos de pobres envergonhados". Os segundos, são
edificios, ruas, vias públicas, pavimentação, limpeza, correios e viaturas os que recorrem à assistência, os pobres pedintes. Mas são ainda conside-
públicas. Oferece recomendações e normas sobre as estruturas de sanea- radas outras tipologias como os "pobres sãos e os doentes", os "sãos váli-
mento básico indispensáveis à vida quotidiana. dos" e "os doentes inválidos" e, nos inválidos, ainda as "crianças, os
O sétimo livro tem por objectivo a tranquilidade pública "ain- caducos pela velhice e os estropiados ou enfermos" 19 •
da uma das mais importantes matérias da Polícia, uma vez que, não há Toda esta panóplia administrativa acabaria por influenciar e
ninguém no Estado que por ela se interesse" e onde são analisados "o marcar o reformismo da segunda metade do século XVIII, em Portugal,
temor que os puros acidentes nos provocam", como os ''perigos emi- como teremos ocasião de ver.
nentes de edificios e que devem ser observados pelos trabalhadores que
fazem a cobertura, pelos outros trabalhadores que edificam os prédios,
pelos condutores de charrete, pelos mercadores de cavalos, pelos mo- 3 DOUTRINAS SOBRE O ESTADO DE POLÍCIA EM
leiros devida à condução dos seus carros, arneses, cavalos, mulas e por PORTUGAL
outros casos semelhantes".
O oitavo livro refere-se às ciências, escolas, universidades e ar- Nos inícios do século XVII, Francisco Rodrigues Lobo, na
tes livres, bem como à regulação da disciplina que "de entre o bem que a Corte na Aldeia (1618) falava da "polícia das palavras, polícia no vestir,
Polícia nos proporciona, estes são centrais", razão porque são invocados polícia e bom estilo". A personagem do Feliciano invocava, nos seus
"os tratados dos bens da alma, do corpo e antes dos que se destinam a diálogos, o "aviso no falar, a discrição no escrever, a brandura no conver-
proporcionar os que dizem respeito aos bens denominados de fortuna". sar, a graça no parecer, a cortesia no tratar". Uma outra, a do Leonardo,
O nono livro é destinado ao comércio e tudo o que depende enaltecia "os que são governados por razão e polícia" e o Júlio dizia que
dele, à moeda, aos pesos e medidas. Não só apresenta cuidados e prescri- 19
ções como imposições normativas que se destinam a proteger o mercanti- Atentemos nos detalhes, por exemplo, do V Livro sobre Des Vivres (III Tomo, 1719),
lismo da época. no que se refere apenas aos peixes: importância dos peixes na alimentação, formas de
o cozinhar e preparar, contextos de utilização civilizacional, classificações (água doce,
salgada e ambas), características, espécies, pesca, preparação dos peixes secos ou
salgados, comércio, mercadores, caminhos e transportes, locais e exposição de venda.
290 José Subtil
As Formas do Direito: Ordem, Razão e Decisão 291
"muito contrário me parece essa lição à polícia de Corte, aonde é regra
que o homem há-de falar com a língua e ter quieto o corpo e as mãos". Vejamos alguns dos textos mais emblemáticos.
Na linha da pastoral cristã, anteriormente referida, o mercador
de livros espanhol António Alvarez publicava em Lisboa (1621), um tra-
tado de polícia cristã para orientar o governo dos reis e príncipes e, alguns
3.1 Pascoal José de Melo Freire
anos depois (1633), Frei Pedro de Santa Maria editava um outro tratado
sobre a boa criação e polícia cristã com que os pais devem criar os filhos, Sendo os principais objectos da polícia a religião, os costumes, e a
exemplos da sincronização entre a doutrina pastoral e a ciência de polícia20• subsistência, comodidades e segurança dos nossos vassalos; e deven-
do [o Imperante] a todos igualmente, como a próprios filhos, desejar
No princípio do século XVIII, no Vobulario Portuguez & La- e procurar todos os bens.
tino de Raphael Bluteau (1721) diz-se, ainda, que é com a polícia que se
governam os cidadãos para a "boa graça nas acções e gestos do corpo" e, Pascoal José de Melo Freire dos Reis
também, no "asseio, limpeza, alinho". O Novo Código do Direito Público de Portugal (c.1782)
tradicionais como o Almotacé-mor, com funções no abastecimento de vi- gião, os costumes, a subsistência, comodidade e segurança dos vassalos.
veres de Lisboa e no cuidado da limpeza das ruas, ou dos almotacés meno- E que os ministros da igreja e da justiça deviam fazer observar os ritos
res que, nas câmaras, perseguiam os mesmos objectivos, zelavam pela jus- religiosos, a disciplina dos costumes e a boa educação física e moral,
tiça dos pesos e medidas, cuidavam das fonte e guarda dos caminhos (qua- aconselhando a Real Mesa Censória a providenciar a publicação de um
drilheiros) podendo, inclusive, recorrer aos corregedores para obterem re- manual de moral para uso dos colégios, casas pias e ensino das artes.
ceitas dos impostos régios para satisfazerem estas necessidades.
Q_u~nto à subsis!ê~cia, ~omodi?ade, segurança e protecção dos
Quanto à saúde, fala da regularização da actividade dos cirurgiões, ~ens, ?s. mimstro_s de policia deviam evitar os homicídios, roubos, injú-
sangradores, médicos, boticários, e do Provedor da Saúde de Lisboa para rias, vigiar a qualidade e abundância de alimentos, segurança dos edifícios
zelar pelo estado dos alimentos e evitar lixos nas ruas. Referindo-se aos combater os incêndios, cuidar da limpeza e asseio dos caminhos estradas'
soberanos como pais dos órfãos faz incidir as suas protecções nos juízes pontes e fontes, erradicar os vadios e vagabundos, controlar o~ estalaja~
dos órfãos e das câmaras, sucedendo o mesmo aos bens dos ausentes e ?eiros, iluminar as principais cidades e vilas, assegurar rondas nocturnas
cativos através de um curador. Quanto aos hospitais públicos continua a as e~tal~gens, tavernas, casas de pasto, não permitir pobres e mendigos
entender que devem ser administrados pelo provedor a quem compete o nas igreJas e ruas, mesmo que estejam doentes ou velhos e recolhê-los
provimento do cirurgião, a assistência aos doentes (comida, cama, cura) nos ~ospitais e ~asas pias onde se albergavam os exposto; e órfãos. Ins-
e também o governo dos montepios, como misericórdias, capelas e con- peccionar as boticas, os médicos, cirurgiões e boticários manter o asseio
frarias, com excepção do Hospital de Todos os Santos e da Santa Casa ?ªs font~~' ~ios, águas e cadeias, evitar os incêndios, não ~ermitir casas de
de Misericórdia de Lisboa que estavam a cargo de um juiz da Casa da Jogos, dmgir os teatros e as peças examinadas pela Real Mesa Censória
Suplicação. evitar ~ falta de pão, vinho e azeite, taxar preços, vigiar as carnes, o peixe:
, Relativamente ao luxo recenseia vária legislação sobre o uso da as bebidas, os matadouros e açougues.
seda, ouro, prata, cordões, orlas, cristais, vidro, chapéus, máscaras e ca- Pascoal de Melo reconhecia, contudo, que não se tinha conse-
valos porque "deve-se moderar o luxo e temperar tudo por forma a que se guido gove~ar tudo isto e evitar os conflitos de jurisdição, por isso, ad-
harmonizem as despesas, os rendimentos e os gastos", acontecendo o vogava a criação de um tribunal específico que designou por "Senado e
mesmo com os funerários para se evitarem gastos desmedidos ou alongar Junta da Polícia", tendo como presidente o Intendente Geral da Polícia e
o tempo do luto. E "não sendo, nem podendo ou devendo ser todos os fof1:1ado por dois corregedores do crime, dois vereadores nobres, o En~e-
cidadãos da mesma categoria" diferencia o tratamento e as precedências nheiro mor, um deputado da Junta do Comércio, um doutor, um médico,
sociais. um matemático ou filósofo, um secretário e oficiais em número.
Aborda ainda a segurança, o uso de armas, as leis contra os va- Esta junta administraria os fundos geridos pelo Senado da Câ-
dios, vagabundos, ociosos, ciganos, jogadores, estalajadeiros, o livre- mara d~ _Lisboa e pela I?te~dência Geral ?ª Polícia. Aos corregedores
-trânsito, a emigração, os pobres e mendigos, os teatros, a religião e as co!llp~tma a s_egurança publica, ao engenheiro e filosofo a inspecção dos
corridas de toiros, olhando só a "verdade do facto". Como enuncia as leis edifícios, caminhos, pontes, aos membros da Junta do Comércio, vereado-
sobre os estudos, os colégios e as universidades sob a administração da res ~ médico, a saúde, limpeza das ruas, taxas e preços de víveres. No
Real Mesa Censória, depois Comissão Geral para Exame e Censura dos âmbito jurisdicional, como os negócios da polícia não admitiam demora
Livros, o Colégio dos Nobres e os Estatutos da Universidade de Coimbra. alvitrava que os despachos se fizessem através do Senado ou da Intendên~
Por fim, refere-se ao Intendente Geral da Polícia como o que eia Geral da Polícia, conforme as áreas de intervenção, e que os restantes
"defende sempre o bem público e antepõe a Pátria aos parentes e amigos" se despachassem pela pluralidade de votos da junta e fossem cumpridos
mas reconhece que é urgente e necessário um novo regimento para o car- por ~todos os ministros do Reino e das Conquistas, não havendo recurso
go que permita definir com rigor a sua jurisdição em relação aos juízes e senao para o monarca, embora os da Intendência Geral da Polícia pudes-
vereadores que tinham alçada sobre as leis da polícia. sem subir ao Senado da Câmara.
No Novo Código do Direito Público de Portugal, no título . Em articulação com a junta, seria criada, em cada câmara, uma
XLII, "Da polícia", estabelece como principais objectos de polícia, a reli- casa pia para os pobres, órfãos e expostos, e os doentes seriam exclusi-
294 José Subtil As Formas do Direito: Ordem, Razão e Decisão 295
vamente tratados nos hospitais. Os pobres que estivessem presos nas ca- Sobre o comércio, a agricultura e as manufacturas manifesta a
deias seriam sustentados pela mesma junta. Quando as casas pias não ideia que "Não usem mal das suas riquezas, que não as dissipem, e con-
pudessem receber os expostos, alvitrava que fossem tratados pelos vizi- sumam inutilmente" e adopta advertências para com o luxo (vestidos,
nhos à custa de uma taxa. Em todas as igrejas e conventos haveria uma trajes e adornos), os jogos, os vadios e os "homens ociosos".
caixa chamada de "caritativa" cujas esmolas seriam abertas pelos oficiais Um programa em que, afinal, se baseou, nas suas linhas gerais,
da polícia.
o Intendente Geral da Polícia e os restantes órgãos policiais criados du-
rante o pombalismo e o reinado de D. Maria I.
3.2 Francisco Coelho de Sousa Sampaio
3.3 António Nunes Ribeiro Sanches
Por Direito de Polícia entendemos a autoridade, que os Príncipes têm
para estabelecerem e proverem os meios, e subsídios, que facilitem, e
promovam a observância das suas Leis. Os meios são principalmente Todos sabem que a mais sólida base de um poderoso Estado consiste
a cultura das Disciplinas, o aumento da População, a saúde dos Po- na multidão dos súbditos, e no seu aumento, e que desta origem re-
vos, o Comércio, a Agricultura, as Manufacturas" [. .. ] "O aumento sultam as suas forças, poder, grandeza, e majestade.
da população é a principal coluna, em que se funda a segurança pú- António Nunes Ribeiro Sanches
blica, e felicidade do Estado, por isso mesmo, que se multiplicam os Prólogo ao Tratado da Conservação da Saúde dos Povos (1756)
sócios.
Francisco Coelho de Sousa Sampaio
Prelecções do Direito Pátrio, Público e Particular (1793) O Traité de Nicolas Delamare está em evidência nos tratados de
polícia médica, como o de António Nunes Ribeiro Sanches24, Tratado da
Conservação da Saúde dos Povos (1756) 25 e, depois, o Metodo para
O conceito de polícia de Melo Freire é ligeiramente diferente do aprender e estudar a Medicina (1763) em que o problema da saúde é
defendido por Francisco Coelho de Sousa e Sampaio que, poucos anos equacionado, fundamentalmente, como um problema político quando
depois, nas Prelecções do Direito Pátrio, Público e Particular (1794), afirma que compete ao governo zelar pela pureza do ar e da água, intervir
quando se refere ao Direito da Polícia como suporte da "felicidade do na alteração do clima, inspeccionar a construção dos edifícios, vigiar as
Estado", considera como seus instrumentos a cultura das disciplinas, o condições de habitabilidade, atender ao bom funcionamento dos hospitais
aumento da população, a saúde dos povos, o comércio, a agricultura e as e das prisões, controlar o movimento nos portos, as tripulações e as mer-
manufacturas 23 • cadorias dos navios, explorar adequadamente os recursos naturais das
Na cultura das disciplinas inclui as academias públicas, a proibi- regiões, assegurar a limpeza e o asseio das ruas e caminhos26 •
ção de livros perniciosos e falsas doutrinas religiosas. Para o aumento da
24
população advogava a protecção do matrimónio, o cumprimento de regras Sobre o seu perfil científico e pedagógico, ver ARAÚJO, Ana Cristina. Ilustração,
de sexualidade "Nada é mais contrário à população, e ao seu fim, que os Pedagogia e Ciência em António Nunes Ribeiro Sanches. Revista História das
vagos, e incertos coitos, os temporários concubinas, e as promíscuas coa- Ideias, 6, 1984, p. 377-394.
25
bitações de bigamia, e poligamia", a criação dos expostos, os "impedi- Tratado da Conservaçam da Saude dos Povos. Paris: Pedro Gendron, 1757, onde
mento" do estado eclesiástico, a saúde dos povos (qualidade dos alimentos, aborda a qualidade do ar e da água, inumações, ventos, climas, construção de
edificios, limpeza das vilas e cidades, ambiente das igrejas, conventos, mosteiros,
conhecimento da medicina, lugares para cura) e o sustento dos pobres. hospitais, prisões, casernas, a alimentação e o asseio individual. Edições recentes em
"Tratado da Conservação da Saúde dos Povos", Obras, Coimbra: Universidade de
23 Coimbra, 1996, p. 149-391, v. 2 e "Método para Aprender e Estudar a Medicina", v.
Prelecções do Direito Pátrio, Público e Partícular... (1794) publicadas em
HESPANHA, António Manuel. Poder e Instituições na Europa do Antigo Regime. 1, 1959, p. 1-200.
26
Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1984 (Titulo sexto, Do Direito da Policia, Collecção dos Regimentos, por que governa a repartição de Saúde do Reino.
p. 395-541). Lisboa: Impressão Régia, 1819.
296 José Subtil As Formas do Direito: Ordem, Razão e Decisão 297
A obra de Ribeiro Sanches foi, portanto, antes de mais, um tra- buição de Francisco José de Almeida para o Tratado da educação
tado geral de polícia com base num tratado de saúde pública que, pelas physica dos meninos ( 1791 ); o trabalho de António de Almeida acerca
suas implicações, extravasava para todas as áreas de governo e se apoiava da Historia da febre que grassou na cidade de Penafiel, 1792; e, de
na autoridade do conhecimento científico27 • Melo Franco, os Elementos de hygiene, editados em 1814.
Estas ideias irão influenciar a reforma dos Novos Estatutos da
Universidade de Coimbra (1772), valorizando novas disciplinas e méto-
dos para a prevenção e a conservação da saúde, em oposição à doutrina 3.4 José Pinheiro de Freitas Soares
da cura e tratamento da doença. A propósito deste tema, um outro estran-
geirado, Luís António Vemey, radicado em Itália, felicitava o marquês de Esta Ciência [polícia] porém, abrangendo muitos, e vários objectos,
Pombal por ensinar às outras "Cortes da Europa a verdadeira Lógica, toca também aquele de conservar a saúde do homem na sociedade, e
com que se deve argumentar concludentemente com os Sócios" (1767)2 8• de lhe prolongar a vida; a fim de aumentar a população, que é a pri-
meira fonte da riqueza Nacional; e daqui vem a necessidade do co-
Já nos finais do século, a publicação da Pharmacopeia Geral nhecimento da Higiene Pública, cujos preceitos versando sobre a di-
para o reino e domínios de Portugal, de Francisco Tavares, lente da Fa- recção das faculdades fisicas, e morais do homem, e sobre a salubri-
culdade de Medicina (1794) 29, traduzia o esforço que a Junta do Protome- dade dos diferentes objectos, que tem relação com a sua existência,
dicato estava a fazer para se alinhar com estas novas ideias. são da partilha imediata da Polícia Médica para a sua execução.
E, no início do século XIX, destacar-se-ão as obras de Manuel José Pinheiro de Freitas Soares
Joaquim Henriques de Paiva30 sobre o valor político da saúde; a contri- Tratado de Polícia Médica (1817)
21 E
P REIRA, Ana Leonor; PITA, João Rui. Liturgia higienista no século XIX, pistas Mas a obra fundamental, pela inovação em termos doutrinários
para um estudo. Revista de História das Ideias, v. 15, Rituais e Cerimónias (1993),
p. 437-559, onde tratam o tema da polícia médica e higienista do século XVIII como
e propostas, é de José Pinheiro de Freitas Soares (1769-1831)31, Tractado
pilares da economia da vida e abordam a influência de António Nunes Ribeiro San-
ches na reforma dos Estatutos da Universidade (1772). Nesses novos estatutos a Fa- saúde pública (ver Diccionario Bibliographico Portuguez, de Innocencio Francisco
culdade de Medicina passou a ter uma área científica reservada à higiene como disci- da Silva e Brito Aranha, Lisboa, Comissão Nacional para as Comemorações dos
plina que persegue o bem-estar fisico e moral do indivíduo e da sociedade numa linha Descobrimentos Portugueses, 2001 (Biblioteca Virtual dos Descobrimentos
doutrinária próxima de uma "religião do futuro". Os mesmos autores analisam ainda a Portugueses, CD-Rom n. 9 da Colecção Ophir), tomo XVI, pp. 12-18 e, ainda, notas
farmacopeia geral e o governo sanitário do final do Antigo Regime. Sobre o contexto biográficas em Memorias biographicas dos médicos e cirurgiões portuguezes, de
geral da reforma da universidade, ver ARAÚJO, Ana Cristina. O Marquês de pom- Rodrigues de Gusmão, pp. 15-24. Sobre o papel de Manuel Joaquim Henriques de
bal e a Universidade. Coimbra: Imprensa da Universidade, 2000. Paiva na difusão das novas ideias científicas em Portugal, ver João Rui Pita, Amorim
28
AN/TT, Ministério do Reino, maço n. 1000, caixa n. 1123. da Costa e J. P. Sousa Dias "Manuel Joaquim Henriques de Paiva e a difusão das
29 novas doutrinas e práticas da química e farmácia em Portugal", Congresso
Vigorou até ao Código Pharmaceutico Lusitano ou Tratado de Pharmaconomia de Internacional Louis Proust - teoria, prática y difusión cientificas en la química
Agostinho Albano da Silveira Pinto (1835). europea del s. XVIII, Segóvia, 1992.
30
Manuel Joaquim Henriques de Paiva, sobrinho do célebre médico António Nunes 31
José Pinheiro de Freitas Soares nasceu em Águeda (2 de maio de 1769), filho de
Ribeiro Sanches, nasceu em Castelo Branco (1752). Foi fidalgo da Casa Real, António Pinheiro e Luísa Maria de Jesus. Depois de se formar em Medicina pela
cavaleiro da Ordem de Cristo, Doutor em Medicina pela Universidade de Coimbra, Universidade de Coimbra, foi nomeado médico do partido da câmara de Aveiro com
Lente de Filosofia na mesma universidade e da cadeira de Farmácia em Lisboa, 31 anos (12 de agosto de 1800). Foi médico honorário da Câmara Real, Físico-mor do
médico da Câmara Real, deputado da Junta do Protomedicato, censor régio do tribunal Reino, censor no Tribunal do Desembargo do Paço, sócio da Academia Real das
do Desembargo do Paço, sócio da Academia das Ciências de Lisboa, da Academia de Ciências de Lisboa onde fez parte da comissão encarregue da instituição vacínica, ao
Ciências de Estocolmo, da Academia de Medicina de Madrid e da Sociedade de lado de outros ·académicos como Bernardino António Gomes, Francisco de Mello
Harlem, entre outras. Foi acusado de jacobinismo durante a invasão de Junot, Franco, José Maria Soares, Francisco Elias Rodrigues da Silveira, Venceslau Anselmo
perseguido, preso e condenado pelo Juízo da Inconfidência (24 de março de 1809) Soares e José Feliciano de Castilho. Estes académicos publicaram vários opúsculos
sendo destituído de todos os cargos. Foi depois para a cidade da Baía e reintegrado em sobre a vacina reunidos numa colecção publicada pela Academia Real das Ciências
todos os cargos por D. João VI (6 de fevereiro de 1818). Faleceu, no ano seguinte entre 1812 e 1814. Nesta colecção destaca-se o Regulamento da Instituição da
(1819), na Baía. Deixou uma vasta bibliografia sobre temas da medicina, farmácia e Vaccina e uma Breve lnstrucção do que há de mais essencial a respeito da vaccina e
298 José Subtil
As Formas do Direito: Ordem, Razão e Decisão 299
de políci~ médica, no. qual se co?1prehendem todas as matérias que po-
~em serv~r para orgamsar um r~~1men~~ ~e p_olici~ de saúde,. para o inte- sinónimo de riqueza que se traduz em vantagens positivas na concorrên-
rior do remo de Portugal (1818) que ira, md1scutivelmente mfluenciar 0 cia comercial entre os povos. Um regimento que devia ainda prever, no
priJ?eiro liberalismo (Regulamento Geral de Saúde Públi~a, 1821 )3 3 e, seu entender, um código penal, como instrumento de repressão, e dedicar
mais tarde, o modelo organizativo e funcional do Conselho de Saúde uma particular orientação sobre enterramentos, casamentos, expostos,
Pública (1836), o mais importante órgão de saúde pública do século cadeias, hospitais e matadouros.
34
XIX , cuja actividade contribuiu para separar o ramo da Higiene ("arte O seu tratado previa, ainda, uma nova concepção do exercício
de conservar a saúde, e prevenir as doenças"), da Polícia Médica (con- da medicina uma vez que apontava para que os médicos e os cirurgiões
junto de '.'regulamentos a estabelecer na arte de curar, e nos que exercem fossem responsáveis pela sua actividade profissional no plano social e
os seus diferentes ramos") para que "todos os governos se devem esmerar deontológico.
no incremento progressivo da população"35 •
Para José Freitas Soares, a segurança da saúde pública devia as-
José Pinheiro de Freitas Soares reverte para o Estado de Polícia sentar em dois pilares estruturantes: um que regulasse a saúde dos portos
a P?l!tica de conservação da saúde e propõe, também, um regimento de 36
de mar, que já existia , e um outro sobre a Polícia Médica para o interior
pol1C1a de saúde, alicerçado na ideia de que uma população saudável é do Reino para o qual pretendia contribuir com a sua obra. Excluía dos
seus propósitos a polícia da "Arte de Curar" que, no seu entendimento,
as C~ntas de observações. Foi, também, membro da Junta de Saúde Pública. Morreu devia pertencer, exclusivamente, ao Físico-mor.
em ~1sboa em 11:'larço de 1831 ou 1832. Após a revolução liberal de 1820, seguiu 0
part1d~ absolutista, sendo condecorado por D. Miguel com o foro de fidalgo Do ponto de vista organizativo, propõe a divisão do Reino em
ca".ale1;0 e uma comenda da Ordem de Cristo. Tem uma produção bibliográfica 43 "contas", tantas quantas as comarcas e corregedores, com excepção da
as~1~ala;,el sobre a ,área ci~ntífica d~ medicina e da "nobreza e consideração dos cidade de Lisboa. O nome de "cabeças da saúde" seria substituído por
me~H'.os mas tambem ~as suas qualidades e deveres". Publicou sobre a instituição
v~c1~1ca, expostos, alimentação e preparação de unguentos (ver Diccionario
"juízes da saúde" e, na capital, o cargo de provedor menor da saúde deve-
Bibbograph1co Portuguez, op. cit, t. IX, v. II, p. 89, e sobre a produção vacínica ria ser acumulado pelo ministro de cada bairro (corregedores do crime).
ver tomos V, IX, XIII).
32 No primeiro capítulo prevê, em cada comarca, um provedor-
Publicado pela Academia Real das Ciências (1818). Diccionario Bibliographico -mor da saúde, função a ser exercida pelo corregedor. Em cada câmara,
Portuguez, op. cit., v. V, t. XIII, p. 103.
33 V um Provedor-menor da saúde, a cargo do presidente da câmara e, em cada
er SUBTIL, Carlos. O Projecto de Regulamento Geral de Saúde Pública de 1821 freguesia, um juiz da saúde. Esta estrutura periférica seria administrada,
Cadernos de Saúde, Porto, 2011. ·
34 A ao centro, pela Junta de Saúde Pública onde passaria a ter assento, como
referência à obra é feita, em termos elogiosos, no primeiro número dos Annaes do vogal, o Provedor-mor da Saúde da Corte e Reino.
Conse~ho de S~ude Publica do Reino. (1838), p. 36-37 onde se refere que O "digno
e erud~to Medico portuguez" terá sido influenciado pelas mais recentes doutrina~ Os juízes da saúde ficariam encarregues de prestar informação
35
europeias. sobre os habitantes37 , nascimentos, expostos, casas da roda, certidões de
Annaes do Conselho de Saúde Publica do Reino, op. cit, p. 21-25. Estes «Anais» óbito, infanticídios, doenças das bexigas, número de doentes e moléstias
constituem a primeira publicação periódica sobre o tema da saúde pública em de acordo com uma classificação nosológica que ele próprio propunha. E
Portug~l.. O seu Director foi Francisco Inácio dos Santos Cruz (ver Diccionario indicações estatísticas sobre a população dos hospitais, cadeias, casa de
Jornahstzco Portuguez, de Augusto Xavier da Silva Pereira edição em DVD-ROM
Academia das Ciências de Lisboa e Impresa, 2009, coord~nação científica de José
expostos, misericórdias, conventos, casas de educação, estropiados, mu-
Subtil). Francisco Inácio dos Santos Cruz nasceu em Santarém (10 de Outubro de tilados, cegos, surdos, mudos, mulheres sifilíticas, moléstias contagiosas,
17~7) e_ faleceu e~ Lisboa (30 de Março de 1859). Formado em Medicina pela físicos, cirurgiões e boticários.
Umvers1dade de C01mbra (1814), foi Vice-Presidente do Conselho de Saúde Pública
(Decreto de 7 de Janeiro de 1837) e, depois, Presidente. Era sócio da Academia Real 36
Ver regimento, de 7 de Fevereiro de 1695, sobre o Provedor-mor da Saúde,
das Ciências e recebeu o título de Conselho. Da sua bibliografia destacam-se trabalhos "Regimento Que se há de observar, succendo haver peste (de que Deos nos livre) em
sobre a descrição de topografias médicas, prostituição, prevenção de incêndios e febre algum Reino, ou Provinda confinante em Portugal. Collecção dos Regimentos, por
a~a~ela on?e exprime o "desejo de ser prestável à pátria". Diccionario que governa a repartição de Saúde do Reino, op. cit. pp. 24-27.
B1bliograph1co Portuguez, op. cit., t. IX, v. II, p. 391. 37
Taxonomias: Infância, do nascimento até 14 anos; Mocidade, dos 14 até aos 28 anos;
Virilidade, dos 29 anos aos 56; e Velhice, dos 57 até à morte.
300 José Subtil
-
As Formas do Direito: Ordem, Razão e Decisão 301
Os enterros deviam ter a autorização dos juízes de saúde depois
de passada uma certidão pelo pároco e pelo facultativo, e serem só per- Sobre o casamento, nomeadamente para os que puderem coabi-
mitidos em cemitérios públicos, realizados por coveiros, com cuidados tar sem dano da sua saúde e da sua descendência, propõe restrições para
especiais quando se referissem a pessoas que tivessem sofrido epidemias. os que "são surdos a escutar a voz da Natureza", para os que se entregam
Para auxiliar estas operações apresenta alguns métodos para a desinfesta- "mais livremente à devassidão e à poligamia".
ção e purificação, cautelas sobre as casas e as roupas dos doentes conta- Adverte, severamente, os celibatários por não fazerem uso de-
giosos.
vido da procriação porque a "retenção do sémen acumulado não pode
Um outro capítulo é dedicado ao ensino da detecção dos sinais deixar de produzir danos à saúde, bem como acontece com a retençao da
de morte para evitar o enterro de vivos, providências sobre a peste e a bílis do leite das urinas" e estas pessoas "se concentram em si mesmas,
febre amarela, movimento da população e controlo de passaportes, qua- e se' tornam insuportáveis na sociedade", dando origem a suicídios e se
rentenas, criação de casas de saúde de fronteira com guarnição militar, tomam "lentos, propensos ao sono, tímidos, melancólicos" ganham "tu-
"pestilenciais dos animais", regras sobre os açougues e cavalariças. mores, cirros, cancros dos testículos, do útero, dos peitos".
Nos capítulos seguintes aborda a polícia de saúde das cadeias, a Aconselha, nesta matéria, os pais "de família devem cuidar em
separação dos presos sãos e doentes, limpeza, alimentação, ociosidade, os casar os seus filhos em idade própria; quão criminosos são os que obri-
hospitais "interessantes casas de caridade nas grandes cidades [ ... } que gam seus filhos a abraçar, contra sua vontade, Instituiçõe~, nas _quais
propriamente ditos são os asilos dos doentes pobres, mas somente para devem professar o voto de castidade; e finalmente, que nao devia ser
neles se curarem as suas doenças". Disserta, ainda, sobre a organização arbitrária a um e outro sexo a escolha do estado Eclesiástico secular, ou
dos espaços hospitalares, distribuição dos doentes, protocolos de trata- regular", uma decisão que devia pertencer à Junta da Saúde38
mento, desinfestação, limpeza e produção de medicamentos e sobre a
polícia dos expostos.
De seguida, dedica-se a uma variedade de assuntos como mata- 3.5 João Rosado de Villalobos
douros e açougues com instruções para os carniceiros, cortadores, mar-
chantes, veterinários, à classificação do gado (ovino, caprino, porcos), das Em 31 de Janeiro de 1784, no preâmbulo de uma obra francesa
aves de pena, peixes e mariscos, vegetais, fruta, cereais (trigo, cevada, sobre a polícia geral de um Estado39 que João Rosado de Villalobos,
arroz, farinhas), dá instruções para o armazenamento e venda dos produ- 38
tos alimentares, conselhos sobre os ofícios de padeiro, os preparados de Esta literatura de conselhos "higiénicos" para um bom casamento tem tradição desde,
farinha (bolos, biscoitos, bolachas, macarrão, aletria), os cuidados a ter pelo menos, meados do século XVIII. Ver, por exemplo, de XISTO, Inácio Nogueira.
Relação dos remédios úteis, e proveitosos para os que f_?rem mal cazados, e
com os "vasos" para preparar e guardar os alimentos (barro, vidro, esta- quizerem aproveitar-se dos Conselhos, que se lhe propoem, em que se lhes
nho, cobre, prata).
mostra como podem bem viver, e cumprir as obrigações de s~u estado, agra_dar a
Tece, também, considerações sobre o leite, queijo, manteiga, Deos e guardar a sua Santa Ley, como todos fomos obrigados, etc., Lisboa:
Oficina de Ignácio Nogueira Xisto, 1764.
sal, águas potáveis, cisternas, fontes, regatos, ribeiros e rios, poços, lagoas 39
e pauis. Traça orientações para a purificação das águas e apresenta tabelas Elementos da policia geral de hum estado, op. cit. Na linha dos objectiv~s
~nunciados para um bom governo de polícia, a obra aborda, entre outras, ª. econ01ma
de reagentes, disserta sobre o vinho, regras para conhecer falsificações, dos bens imóveis (terras, águas, diques, lagos, pântanos, bosques, solos, chmas, bens
qualidades de cerveja, aguardentes, licores, cafés, chocolates, vinagres, de raiz), a população, a edificação das cidades e vilas, a saú~e ~ública, ?s trans~o:Íes,
azeites, tabacos e polvilhos. 0 comércio, o crédito, a religião, as ciências, o governo domestico, as virtudes civis, a
segurança, o luxo e a mendicidade (ver índice da~ matérias, p. ~55-269). O !radutor
Refere-se, em detalhe, ao combate de incêndios, à regulação do era bacharel e professor de Retórica e Poética em Evora. Para mais desenvolvimentos
luxo, comércio de medicamentos, salubridade dos climas, às condições ver D'ÁGUA Flávio Borda. L'lntendance générale de police de la cour et du
ideais de habitação e domicílio, construção de fábricas, às artes e ofícios royaume du' Portugal: quelques réflexions sur on histoire et ses références
fabris, à necessidade de uma boa agricultura e à polícia sobre o "homem européennes (no prelo). Agradeço ao autor ter-me facultad_o o texto a~tes ~a
doente", incluindo a obrigação testamentária e o cuidado nos partos. publicação. Ver ainda, do mesmo autor, Police et Ordre pu~lic:vers une vdle des
Lumieres. Condeixa-a-Nova, La Ligne d'ombre, col. Memoires et Documents sur
Voltaire, 4, 2011.
....
302 José Subtil As Formas do Direito: Ordem, Razão e Decisão 303
como tradutor, dedica a Diogo Inácio Pina Manique, diz-se que a "Verda- das artes liberais como colégios, escolas, imprensa, venda de livros e
deira honra, gloria, e utilidade da minha Patria, foi o lembrar-me de formação dos mestres; h) Incremento do comércio, inspecção dos pesos
fazer huns Elementos originaes da Policia de Portugal [ ...}parte impor- e medidas, a segurança das feiras; i) Desenvolvimento das manufactu-
tantíssima da Politica de todos os Estados cultos da Europa" em que ras, apoiando os ofícios, as artes mecânicas, o consumo, a prevenção
"V.S. se desvela há tantos annos em polir huma Nação[ ...} he hum Ge- das fraudes, a protecção dos artistas e a melhoria das circulações dos
nio Tutelar do Patriotismo, da honra, e gloria da Nação Portugueza". E bens; j) Erradicação da pobreza, vigiando os mendicantes estrangeiros,
no prefácio afirma que a polícia é "a alma da fortuna, e abundância, da os inválidos e os "pobres envergonhados".
tranquilidade publica, e de todas as commodidades geraes" não deixando
de se queixar que a tradução lhe tem "dado alguns dissabores". Um dos capítulos mais detalhados refere-se à economia e con-
servação da "população" com comentários sobre o "numeramento" dos
Quanto às "luzes da Polícia" é assumido pelo autor do tratado habitantes, registo dos mortos, meios para aumentar os habitantes (favo-
que as suas leis devem ser ditadas "pela Razão, conformes à equidade recer casamentos, atrair estrangeiros, conservar a saúde dos povos), sus-
natural, tendentes ao bem geral, e á utilidade particular de todos os ho- tento dos vassalos e controlo da carestia de vida.
mens em todas as classes" e que as mesmas precisam de um "poder exe-
cutivo" forte "sem ser absoluto e ilimitado". Um elenco de matérias, actividades e justificações merecedoras
do elogio que presta a Diogo Inácio de Pina Manique que, tendo iniciado
O mesmo se diz sobre a verdadeira "ciência do governo" que a sua intendência há cerca de quatro anos, já suscitava, nalguns, uma pro-
deverá ser fundada nas leis constitucionais (Direito Público), leis Civis funda admiração e, noutros, uma resistência feita de ódios e escárnios.
(Direito Positivo) e leis de Polícia (Arte da Polícia). Leis estas que pode-
rão e deverão ser "superiores" quando estiverem a cargo do soberano e
dos tribunais régios, e "inferiores" quando forem da alçada dos magistra- 4 O GOVERNO DE POLÍCIA
dos e tribunais menores, competindo, à primeira, "determinar as leis e os
regulamentos" e, à segunda, a sua "execução" na medida em que os tri-
bunais não podem executar a polícia justamente porque "os princípios de 4.1 A Gestão da Aflição e da Perturbação
jurisprudência, e do Direito Positivo não contém sempre aquelles da
conveniencia, e da decência, que entrão em as vistas mais particulares da Quais foram as razões que provocaram em Portugal o governo
Policia". de polícia? Uma contaminação ideológica? Um impulso do regime? Ten-
sões no sistema político?
Como exemplo das orientações sobre as leis de polícia são re-
feridos os tratados de Polícia de Delamare, Duchesne e Clere de Brilet. Se o direito de Pcolícia estava, desde há muito, inscrito no qua-
O
dro legislativo português como a capacidade jurisdicional que os ma-
E como objectos do governo de polícia, os seguintes: a) Religião, cui-
gistrados usufruíam para intervir nalgumas áreas de governo como a cri-
dando da ordem e decência; b) Costumes, prevenindo a embriaguez, a
desordem das casa públicas, os jogos e os espectáculos; c) Saúde, ze- minalidade, mendicidade, vagabundagem, limpeza de ruas e caminhos,
lando pela pureza das águas, preço e qualidade dos víveres, modo de os aferição de pesos e medidas, por exemplo, o certo é que, em meados do
vender (como o vinho, cerveja, manteiga, azeite, leite, peixe, legumes, século XVIII, este direito transformou-se numa modalidade de governo
grãos, frutas e "hervagens") e que "haja Médicos, Cirurgiões, Parteiras que se afirmou no plano administrativo em áreas completamente novas e
hábeis, Boticas bem providas"; d) Construção e manutenção de edifícios 40
Aos corregedores pertencia-lhes a fiscalização, lançamento e arrecadação das sisas
públicos e particulares, como a inspecção de cloacas, ruas, caminhos, bem como a inspecção do cultivo das terras, obras públicas, limpeza, sanidade e
fontes, poços, canais, pontes, calçadas, etc.; e) "Formusura das Cida- polícia, isto é, o "governo económico" local assegurado, em primeira instância, pelos
des", ou seja, o alinhamento das casas, decoração das fontes e tudo que senados das câmaras (Ordenações Filipinas. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian,
contribua para uma "povoação mais agradável"; f) Segurança e tranqui- 1985, Livro I, títs. 62 e 68). Os almotacés estavam encarregues da tabelação e
terç~mento d?s géneros (alimentares e outros), da observância das taxas, pesos e
lidade pública, prevenindo acidentes, violências, furtos, vendas suspei- medidas. Os Juízes das alfândegas estavam afectos ao comércio, interno e externo,
tas, vagabundos e iluminando as ruas; g) Favorecimento das ciências e zelando pela arrecadação dos direito_s de entrada e saída (Ordenações Filipinas, op.
cit., Livro I, tít. 68).
304 José Subtil
As Formas do Direito: Ordem, Razão e Decisão 305
que disciplinou os mais diversos campos sociais, que confundiu o direito
exemplo, dos censos (nascimentos, casamentos e óbitos), registos (morta-
e a justiça, que gerou políticas de regulação na base de que o "Bem Co-
lidade endémica e sanitária), inquéritos geográficos e agrícolas, dados
mum deve preferir a tudo" (1756) 41 •
sobre o comércio, pescarias, manufacturas e educação, tombos de pinhais,
Esta inovação ocorreu na sequência do terramoto de 1755 e não cartas profissionais de médicos, cirurgiões e boticários, contas sobre a
foi determinada por qualquer dinâmica resultante de um processo políti- peste, febre-amarela, etc.
co. O regime, na sua substância organizativa, com o conjunto dos seus
Se esta dinâmica foi enraizada nos efeitos do terramoto, a partir
magistrados e tribunais, e com o direito disponível, não tinha competên-
da década de sessenta, começou a ser organizada, planeada e orquestrada
cias, conhecimentos e fórmulas para lidar com a inesperada situação cau- por dirigentes reformistas pombalinos.
sada pelo sismo, tsunami e incêndio de Lisboa42 • Teve, por isso, que en-
contrar respostas recorrendo a saberes e experiências estrangeiras, sem
tempo para grandes discussões dogmáticas, adequando as prática inusita- 4.2 A Intendência Geral da Polícia, uma Polícia para Tudo
das ao ritmo das necessidades, mesmo à custa de conflitos graves com a
esfera jurisdicional.
Desde logo, os princípios da polícia aplicados à cabeça do Rei- Sendo o aumento da população um dos objectivos mais interessantes,
e próprios de uma bem regulada Polícia por consistirem as forças e
no foram os que melhor se ajustaram à solução dos problemas de Lisboa e riquezas de um estado na multidão dos habitantes
de outras cidades do Reino como as intervenções de limpeza, abasteci-
mento de víveres, segurança pública e combate ao crime. O enterramento Diogo Inácio de Pina Munique
dos mortos fugiu à alçada eclesiástica por imposição de razões de saúde e Aviso aos provedores das comarcas do Norte (1783)
a reconstrução da cidade, com a venda em hasta pública das propriedades,
as transferências e as expropriações, obedeceria a um plano director tra- Em 25 de junho de 1760, com o argumento de que a 'justiça
çado de forma racional e autoritária43 • contenciosa" e a "polícia" são incompatíveis, e tomando como exemplo
Esta dinâmica reformista desenvolveu dissonâncias e entropias as reformas europeias, foi criado o cargo de Intendente Geral da Polícia
com os tribunais, o senado da Câmara de Lisboa, a Misericórdia de Lis- com "ampla e ilimitada jurisdição na matéria da mesma Polícia sobre
boa, o Desembargo do Paço, a Casa da Suplicação, a Real Mesa Censória, todos os Ministros Criminais e Civis", gozando do privilégio de desem-
as câmaras e os magistrados territoriais Guízes de fora, corregedores e bargador do Paço com competências para, sobre todos os delitos, preparar
provedores), quer pela resistência na perda de jurisdições, quer pela arro- os processos e deferir sobre os mesmos. Só em casos excepcionais seriam
gância política dos novos comissários que se transformavam em especia- revistos pela Casa da Suplicação, podendo, inclusive, a polícia instaurar
listas na utilização dos recursos naturais e humanos, agindo de forma simples processos verbais, "sem limitação de tempo e sem testemunhas"
concertada e obedecendo a planos e programas, como foi o caso, por até se apurar a verdade de facto, mesmo contra a "opiniões dos Doutores
Juristas, as quais são entre si tão diversas como costumam ser os juízos
41 dos homens"44•
Sobre a caridade, doentes, pobres, misericórdias e modelos assistenciais, ver ABREU,
Laurinda. Asistencia y caridad como estrategias de intervención social: iglesia, Em 07 de julho de 1760, através de uma circular de Sebastião
estado e comunidad (secs. XV-XX), op. cit. José de Carvalho e Melo, secretário de Estado dos Negócios do Reino,
42
Para o contexto iluminista da época, ver ARAÚJO, Ana Cristina. A Cultura das remetida aos corregedores e ouvidores, era provido no cargo o desembar-
Luzes em Portugal: Temas e Problemas. Lisboa: Livros Horizonte, 2003. gador Inácio Ferreira Souto.
43
Sobre a intervenção da polícia na produção do espaço urbano moderno, ver
LOUSADA, Maria Alexandre. "Una nova gramática per lo spazio urbano: la polizia e Em 22 de dezembro de 177 6, dado que a substituição interina
la cittá a Lisbona, 1760-1833, Storia Urbana, 108, 2005. p. 67-85 e, ainda, "A cidade do Intendente Geral da Polícia devia ser assegurada pelo Chanceler da
vigiada. A polícia e a cidade de Lisboa no início do século XIX, Cadernos de
Geografia, 17, 1999. E sobre o ordenamento jurídico, ver MONTEIRO, Cláudio. 44
Escrever Direito por linhas rectas, legislação e planeamento urbanístico na Baixa Documentação da Intendência Geral da Polícia, núcleo arquivístico no Arquivo Na-
de Lisboa (1755-1833). Lisboa: AAFDL, 2010. cional da Torre do Tombo (AN/TT), Ministério do Reino, com 276 livros e 604 maços
e, também, a secção sobre Segurança Pública (maços 453 a 465).
306 José Subtil
As Formas do Direito: Ordem, Razão e Decisão 307
Casa da Suplicação, cargo ocupado pelo Doutor Bartolomeu Geraldes de
Andrade que, na altura, não podia ser nomeado por "motivos atendíveis", Vejamos algumas ilustrações desta multiplicidade de funções.
a mesma recaiu no Doutor José Pinto de Morais Bacelar, desembargador Através da divulgação de editais, uma prática normativa vul-
da Casa da Suplicação e ajudante do Doutor Manuel Gonçalves de Mi- garmente usada pela Intendência Geral da Polícia, tanto nas cidades como
randa, Intendente Geral da Polícia. nas vilas, o intendente intervinha, amiudadamente, sobre a distribuição do
Em 15 de janeiro de 1780, o intendente passava a ter o título do carvão e da lenha, sobre as pescas, matadouros, venda de carne e carestia
"Meu Conselho", a auferir o vencimento de 1.600 mil réis, um ordenado de víveres, sobretudo do pão e vinho, marcando uma presença central no
superior aos dos desembargadores do Paço e dos secretários de Estado, e quotidiano das populações49 •
a responder directamente ao secretário de Estado dos Negócios do Reino. Definia 50e divulgava programas de mobilidade de famílias de umas
Em 18 de novembro de 1801, embora já em funções, era criada zonas para outras , recebia queixas de párocos sobre os mais diversos as-
formalmente a secretaria da Intendência Geral da Polícia e o Corpo de suntos, com particular incidência em casos de concubinato e mancebia, inter-
Guarda Real da Polícia de Lisboa (a pé e a cavalo) de acordo com o plano vinha nos problemas causados por epidemias e febres, controlava prostitutas,
do ministro Rodrigo de Sousa Coutinho que ficaria, doravante, a superin- por questões morais mas também de saúde pública (sífilis), vigiava as mortes
tender nos negócios da polícia45• Estas condições nunca tinham sido dadas para "aprofundar os conhecimentos das causas das doenças e evitar a mor-
à polícia o que significa que a mesma tinha andado dependente dos corpos te" e exercia autoridade sobre os médicos, ao arrepio da Junta do Protomedi-
de exército, nem sempre mobilizáveis no número e à ordem que o inten- cato, como foi o caso de uma morte repentina que 17 médicos disseram ser
dente pedia e requisitava. Por não estar disposto a respeitar a preeminência de mal dos bofes e que, depois do juiz do crime do Limoeiro mandar fazer a
dos generais, o intendente abriria disputas sérias com os militares. Conten- autópsia, por ordem do intendente, se verificou que não tinha a moléstia
das que foram motivo para consultas à rainha. (1791). Promoveu experiências de inoculação e vacinação da varíola, testou a
utilização do leite de cabra e de vaca na alimentação dos expostos, importou
Quando Diogo Inácio de Pina Manique 46 tomou posse e distribuiu as "máquinas de ressuscitar afogados". Inspeccionava o estado de
(20.05.1780), a sua jurisdição seria alargada à reedificação da cidade (pon- segurança dos edificios, nomeadamente de teatros, em caso de incêndio ou
tes, calçadas, fontes, limpeza de ruas, fiscalização das obras e demolição das catástrofe, e assegurou a iluminação de Lisboa o que lhe permitia interferir
barracas) cuja legislação urbanística tinha47 afirmado o "interesse público" no "direito" urbanístico.
para a expropriação e/ou venda forçada de terrenos48 , melhoramento da hi-
Com um obsessivo esmero, zelava pela prática dos bons costu-
giene, segurança das construções e limitação dos recursos de apelo e agravo.
mes como retratam as denúncias feitas a José de Seabra da Silva, secretá-
Ao longo da sua carreira, o novo intendente intrometer-se-ia em rio de Estado dos Negócios do Reino, sobre a expulsão do galego António
diversas áreas administrativas, criando conflitos com quase todas as auto- Luiz de Pedreira por ter desinquietado uma sobrinha do capitão de orde-
ridades, inclusive, com o próprio governo onde gozava, porém, da protec- nanças e estar a viver amancebado, ou sobre os excessos dos criados de
ção do visconde de Vila Nova de Cerveira. Pedro Alves de Melo Alvim contra a roda da Estrela (1789). E que ates-
45
tam, a um nível de maior proximidade política, as cartas remetida ao vis-
Filipe Ferreira de Araújo e Castro foi o Intendente Geral da Polícia do primeiro conde de Vila Nova de Cerveira sobre a actuação desordeira de uma fa-
liberalismo (nomeado em 1820) e depois Secretário de Estado dos Negócios do Reino mília de Alfama (1784), ou a José de Seabra da Seabra sobre os maus-
até ao regresso de D. João VI do Brasil (1823).
46 -tratos de um pai a uma filha que teve que fugir para a casa de um tio
S9bre a comparação entre a Intendência Geral da Polícia e a obra de Delamare, ver
FELIX, Patrícia. Diogo Inácio de Pina Manique, Intendant général de police de la (1789), a prisão de mendicantes por insultos aos seus dadores ou do frade
cour et du royaume de Portugal (1780-1805): pouvoir et actions face à la criminalité, Domingos de Nossa Senhora (1800;, dominicano, por ter raptado a filha
47
mémoire de maitrise en histoire moderne, Université de Mame La Vallée, [s.d.]. de Simão Aranha Cota de Meneses5 •
Desenvolvimento do tema do direito urbanístico em MONTEIRO, Cláudio. Escrever
Direito por linhas rectas, legislação e planeamento urbanístico na Baixa de 49
Lisboa (1755-1833), op. cit. Edital de 20 de Outubro de 1785 e AN/TT, Ministério do Reino, Intendência Geral da
48 Polícia, maço 453.
SUBTIL, José. O Terramoto de 1755 e a reforma da propriedade. O Terramoto de 50
1755. Impactos Históricos. Lisboa: Livros Horizonte, 2007. p. 209-225. AN/TT, Ministério do Reino, Intendência Geral da Polícia, maço 453.
51
Idem e Arquivo Histórico Ultramarino, Reino, caixa n. 183, pasta 26.
308 José Subtil As Formas do Direito: Ordem, Razão e Decisão 309
O tratamento diferenciado aos pobres, com assistência aos "me- pelas assembleias; a liberdade e indecência com que se falava nos
recedores" e repressão sobre os «válidos» para os transformar em traba- mistérios mais sagrados da religião católica romana, e na sagrada
lhadores activos, ficando a esmola reservada aos enjeitados, inválidos e pessoa do infeliz rei, e da rainha; e lendo as Memorias do Delfim, pai
52
caducos de velhice , evidencia o carácter de intervenção activa no domí- deste infeliz rei [ ....] digo a V. exa que julgo ser necessário e indis-
nio assistencial, embora diferente da preconizada por Rodrigo de Sousa pensável que sua magestade haja de mandar tomar medidas, para que
Coutinho, ambas, porém, sintomáticas do acompanhamento internacional de uma vez se tire pela raiz este mal, que está contaminando o todo, e
insensivelmente.
seguido nestas matérias por estes ministros acompanhada, de resto, por
uma dinâmica política de traduções, sobretudo de obras inglesas53 • Por isso, tudo justificava a vigilância apertada sobre formas de
Na linha da tradição à protecção das crianças, a intendência sociabilidade perigosas, leituras turbulentas e agitadoras, manifestações
procurava evitar a morte de crianças abandonadas com o reforço das re- científicas pouco ortodoxas, casas de pasto, bordéis, estalagens, manifes-
des de protecção em todas as sedes de concelho, e o envolvimento dos tações colectivas de religiosidade, festas, touradas, ópera, teatros, etc.
juízes de vintenas nas cabeças de freguesia, promovia estudos sobre leites
Foi o caso, por exemplo, da prisão do poeta Manuel Ribeiro
substitutos do leite matemo das amas, apoiava a inclusão de crianças
Gonçalves de Azevedo, conservado pela polícia em segredo durante anos,
órfãos em famílias rurais para aprenderem a agricultura e dava instruções
a espionagem sobre uma taverna do bairro de Romulares onde se junta-
severas aos ministros dos bairros e aos provedores para combaterem o
"ninho de prostituição" que constituíam as casas dos expostos54 • vam franceses que cantavam à Convenção e à morte de Luís XVI, a vigi-
lância sobre as visitas da casa do cônsul da América do Norte "temível
O combate à ociosidade, outra das funções da intendência, des- este pedreiro-livre com grau de mestre", a vasculhagem da vida de um
tinava-se a colmatar a ''falta de gentes para se ocuparem na Agricultura, irlandês, Henrique Gallwey, considerado jacobino, o controlo sobre a
nas Artes, e nas Manufacturas" por terem vindo para Lisboa procurar a vida de Brossonet "sócio de Robespierre" e amigo do padre Teodoro de
"ociosidade de mendigar", assumindo como urgente "extinguir a ociosi- Almeida e do "abade Correia", ou as miudezas sobre as actividades de
dade para deste modo evitar os vícios, e tornar úteis ao Estado aqueles comércio do suspeito Antonio Mathevon de Cumieu, negociante francês
indivíduos que lhe servem de peso". de linho e algodão 56 •
Proibiu, no plano da divisão do trabalho, que os homens ven- Implacável na censura, impôs, por iniciativa própria, penas a
dessem bolos, hortaliças, frutas e peixe "por serem de mulher" e pode- quem redigisse ou possuísse libelos difamatórios ou manifestasse preten-
rem, assim, empregar-se "na Cultura dos Campos, no exercício das Artes, sões desmedidas como foi o caso dos familiares e adeptos dos Távora que
e Manufacturas, no serviço de Reedificação da Cidade, no das Tropas
Regulares, e no da Marinha" 55 • procuravam a desforra das condenações pombalinas. Ou perseguindo quem
escrevesse cartas apostólicas não canónicas, como Francisco Manuel do
Quanto ao controlo social sobre a propaganda da revolução Nascimento, presbítero, que publicou uma epístola sobre "Em quanto pu-
francesa, o intendente, numa carta ao visconde de Vila Nova de Cerveira, nes pelos sacros foros" (1803), tendo o intendente, ameaçado infligir, sem
confessava que processo, uma pena de dez anos de degredo para Africa a quem possuísse
algum exemplar da mesma por ter "resaibos" de atheismo" 57 •
lembrando-me do que acontecia em Paris, e em toda a França, cinco
anos antes do ano de 89, pelas tabernas, pelos cafés, pelas praças e Outro exemplo, de José Anastásio da Cunha, célebre matemáti-
co (1742-1787), lente de Geometria (1773) nomeado pelo marquês de
52
Edital da Intendência Geral da Polícia (17 de maio de 1780) dirigido aos mendigos e Pombal, preso pelo Santo Oficio (1778), acusado de heresia e apostasia
vadios. por acreditar que todos os homens se salvariam sem se regularem pelos
53
Sobre este confronto, ver ABREU, Laurinda. Um sistema antigo num regime novo: dogmas da Igreja. Embora tenha dado provas de arrependimento, foi con-
permanências e mudanças nas políticas de assistência e saúde ( 1780-1840). O caso do
Alentejo. O Alentejo entre o Antigo Regime e a Regeneração. Mudanças e 56
permanências. Lisboa: Colibri, 2011. p. 141-17 5. Diccionario Bibliographico Portuguez, op. cit., t. XVII, v. VI, p. 175-179.
57
54 Este autor incluía nas suas obras O Elogio do doutor António Nunes Ribeiro Sanches
AN/TT, Ministério do Reino, Intendência Geral da Polícia, maço 453.
55 traduzido por si mas escrito por Vicq-d'Azyr. Diccionario Bibliographico
Edital da Intendência Geral da Polícia de 8 de novembro de 1785. Portuguez, op. cit. t. IX, v. II, p. 446-447.
310 José Subtil
As Formas do Direito; Ordem, Razão e Decisão 311
denado a ouvir a sentença em auto público de fé, em Coimbra, com hábito
penitencial. Esteve recluso três anos e foi, depois, degredado para a cida- grafias), de escutas em surdina dos "moscas", de denúncias e informações
pagas pela intendência.
de de Évora. Terá emprestado alguns "livros proibidos" a Rodrigo de
Sousa Coutinho e a João Baptista Vieira Godinho, tenente general que, Quando as suspeitas apontavam para uma actividade 'jacobina"
antes de morrer no Rio de Janeiro (1811), as terá passado ao mesmo mi- ou "republicana" das elites, com ou sem exageros, o intendente era cau-
nistro. Seria, porém, protegido por Diogo Inácio de Pina Manique quando teloso a definir a sua actuação, justamente por saber que várias personali-
lhe pediu (1790) para compilar os "Principias mathematicos para a ins- dades de calibre político, tantas nas estruturas civis como eclesiásticas,
trução dos alunos do colégio de S. Lucas da Real Casa Pia do Castelo de estavam "contaminadas pelo espírito das luzes", remexidas de ideias so-
S. Jorge", compensando-o com o fim do degredo 58 • bre o regime monárquico e, mais do que isso, implicadas nos processos
de mudança do regime.
Ainda outro caso, o do poeta popular Manuel Maria Barbosa du
Bocage, preso (1797) como autor de papéis "ímpios, sediciosos e satíri- O processo sobre Luís Caetano de Campos (1750) expressa o
cos", transferido para os cárceres da Inquisição, depois para o hospício circuito político melindroso destas prisões políticas. Versado nos enciclo-
das Necessidades a fim de ser doutrinado pelos padres oratianos por or- pedistas franceses, sobre quem o intendente, em carta para o visconde de
dem do intendente. Acabaria, mais tarde, por ser libertado por influência Vila Nova de Cerveira (27 de Setembro de 1798), dizia que tinha acabado
de José Pedro da Silva, dono do botequim Nicola, no Rossio, conhecido de chegar de Paris para onde havia fugido e que não o prendeu porque
colaborador do intendente (1798)59• queria falar primeiro com José de Seabra da Silva visto que lhe terá dado
um recado dizendo que o António de Araújo de Azevedo, embaixador em
No que se refere ao controlo da imprensa nacional e internacio- Haia, o recomendava como pessoa de bem. Mas rematava a carta com
nal, o intendente arregimentava colaboradores para as redacções dos jor- alguma ironia ao afirmar que "Conheço que estes recados verbais não
nais como o redactor da Gazeta de Lisboa, o médico Francisco Soares têm peso; mas por respeito deste ministro suspendi, até ter eu a honra de
Franco, que terá, segundo Heliodoro Jacinto Carneiro, publicista no jornal
; 1
Os primeiros sinais de ruptura surgmam no ano de 180682 resolução há anos, e mais grave ainda, serem os réus absolvidos ou sen-
quando o corregedor do crime da Corte deixou de exercer o cargo de juiz tenciados sem a presença ou a intervenção da junta". (1803)
assessor da junta e relator das causas sendo, então, nomeado um desem-
bargador agravista da Casa da Suplicação, Francisco Xavier Ribeiro de 87
Uma advertência séria partilhada também pelo doutor Francisco
Sampaio 83 • Tavares numa representação à rainha, onde afirmava que nos regimen-
tos do Físico-mor e Cirurgião-mor se determinava que os feitos crime
Este mau funcionamento era, aliás, manifesto nas representa- seriam despachados com o corregedor do Crime da Corte e Casa, uma
ções que os seus membros apresentavam à rainha. Por exemplo, na con- situação que não foi modificada com a criação da junta (17.06.1782),
sulta (1791) em que se expõem as terríveis consequências da falta de embora este magistrado nunca assim procedesse, nem em junta nem em
visitação das boticas e botequins "de quem é infeliz vitima a saúde Públi- sua casa, e sempre se recusara a cumprir estas ordens. Para resolver estes
ca deste reino" e onde são indicadas as providências que tinham sido problemas pedia à rainha a derrogação dos regimentos na parte em que se
suspensos por avisos régios de 10.01.1786 e de 21.11.1788. Ou na repre- determinava que o corregedor do Crime da Corte e Casa fosse juiz asses-
sentação sobre a dificuldade na implementação do regimento quando um sor da mesma (fevereiro de 1805) e se dissesse que "não se deve introme-
médico se recusou a comparecer ao serviço por ordem da junta (1799). tter nenhuma outra Justiça, ou Authoridade" no trabalho da junta.
Ou do oficio do deputado João Francisco de Oliveira84 sobre as vantagens
Um outro vogal, José de João Vieira Godinho, num oficio dirigi-
da sentença judicial que alcançaram os réus Francisco António Pereira da
do a José de Seabra da Silva, dissertava sobre as alterações que se deviam
Costa e José Martins Dias. Ou até de acções tão comezinhas como a efectuar no regimento, nomeadamente sobre a sua composição que, no
queixa do comissário de cirurgia de Viseu contra o juiz de fora (1804)
seu parecer, devia ser constituída pelo Intendente Geral da Polícia, pelo
quando chegou à terra um forasteiro que dizia curar todos os males com
Provedor-mor da Saúde e por médicos da Câmara Real (19.09.1793).
"bafo e mezinhas", tendo, por isso, sido pedida a sua prisão a que, contu-
do, se negou o juiz de fora por não reconhecer autoridade ao comissário O secretário da junta, Isidoro António Barreto Falcão, também
dajunta85 • se insurgiria com a situação ao apresentar um "Ensaio Político Médico"
de suplemento ao regimento (08.03.1794) para resolver os problemas de
Mais substantivo foi o oficio do deputado Manuel Joaquim contencioso e uma memória sobre a criação de um Tribunal Médico 88•
86
Henriques de Paiva onde vincava a ineficácia do despacho dos feitos
crime com o corregedor do Crime da Corte e Casa, funções que, no seu 87
entender, "deviam reverter para a junta porque os corregedores nunca Francisco Tavares nasceu em Coimbra (1750?), onde o seu pai exercia a farmácia
como "insigne na sua profissão", e faleceu em Lisboa (1812). Foi doutor e lente da
apoiaram a junta, e os processos criminais estarem acumulados e sem Faculdade de Medicina da Universidade de Coimbra, primeiro médico da Câmara
Real de D. João VI, Físico-mor do Reino e deputado da Junta do Protomedicato. Foi
82
Idem, p. 388. titulado de Conselheiro. Pertenceu à Academia Real das Ciências e à Academia de
83 Medicina de Barcelona. São da sua autoria dois compêndios de farmácia adoptados na
SUBTIL, José. Dicionário de Desembargadores (1640-1834). Lisboa: Ediual, 2010.
p. 219. universidade de Coimbra (Pharmacologia Libellus (1786) e Medicamentorum sylloge
84 propria pharmacologie exempla sistens (1787). Terá sido da sua autoria a
João Francisco de Oliveira, nasceu no Funchal (1761). Foi Físico-mor dos Exércitos e
~harmacopéa Geral para o Reino e Domínios de Portugal publicada em 1794. Na
agraciado com o título de Conselheiro. Provocou um escândalo na Corte a propósito de
uma aventura amorosa com uma dama da princesa D. Carlota Joaquina (Eugénia José de sua bibliografia contam-se outras obras sobre o uso das águas minerais, da quina e um
Menezes, filha dos condes de Cavaleiro) com quem fugiu, abandonando a família. Foi manual sobre reumatismo e gota (Diccionario Bibliographico Porttiguez, op. cit., t.
IX, p. 71-72).
condenado pelo Físico-mor (12 de junho de 1804) e veio depois a residir no Brasil sendo 88
recuperado por D. João VI que lhe concedeu favores e mercês com um posto O Presidente deste tribunal devia ser um ''fidalgo de grandeza e instruído nas ciências
diplomático (Diccionario Bibliographico Portuguez, op. cit., v. X, p. 262-263). naturais com afeição decisiva para com os estudos e exames desta Natureza". Os
85 deputados deviam ser dez: seis médicos e quatro cirurgiões. Estrutura regimental do
Ver pormenores na Representação da Real Junta do Protomedicato sobre a conta que
lhe dirigiu o seu comissário de cirurgia da comarca de Viseu contra o Juiz de fora da tribunal: objectos de inspecção, providências para prevenir enfermidades, casas de
mesma cidade (30 de janeiro de 1804), AN/TT, Ministério do Reino, Junta do cura dos enfermos, boticas, lojas de droguistas e hervanárias, organização dos
Protomedicato, maço 469. hospitais, regulamentação do exercício da medicina, privilégios e regalias do
86 Protomedicato, vigilância dos hospitais e supervisão dos cursos de medicina (AN/TT,
Cf. nota 31.
Ministério do Reino, Junta do Protomedicato, maço 469.)
322 José Subtil
As Formas do Direito: Ordem, Razão e Decisão 323
As hesitações régias a estes pedidos estão bem evidenciadas no 92
"rascunho" de uma Carta de Lei (sem data) onde se pode ler o seguinte: canço , este último membro do segundo colégio da Junta do Protomedi-
cato e primeiro cirurgião da Real Câmara (Alvará de 23 de Novembro 93 ).
Que sendo a arte de medicina um dos objectos da maior importância Neste documento diz-se que deveriam ser cumpridos os Regi-
que merecem a atenção do maternal cuidado[ ..] e para a conserva- mentos de 25.02.1521 e 12.12.1631, ou seja, procede-se à efectiva refun-
ção da vida e saúde[ .. } e dado a relaxação que tem havido na execu- dação dos cargos de Físico-mor e de Cirurgião-mor, em cujas jurisdições
ção e observância das leis e regimentos anteriormente repartidos pelo
físico e cirurgião mor do reino e agora ultimamente concentrada na
.
"não se deve mtrometter nenhuma outra JUstzça,
l • ou Á uthori'dade" 94 .
Junta do Protomedicato tem sido bastantes para manter em boa or-
dem o exercício pratico desta arte, para reprimir abusos, fraudes e Macedo (Janeiro de 1819, no Rio de Janeiro). Recebeu a ordem de Cristo (30.06.1804) e
contravenções e para decidir pleitos e litígios do Foro Médico que re- teve as mercês do título de barão de Alvaiázere (Rio de Janeiro, 11.02.1818), da
querem grandes conhecimentos e experiencia da mesma arte. Depois propriedade dos oficias de provedor do registo de Faguahi (Rio de Janeiro, 21.01.1809),
de ouvir muitos pareceres de muitas pessoas cheias de experiencia e e de escrivão das Marcas da Alfândega da ilha da Madeira (Rio de Janeiro, 28.08.1810)
para os quais recebeu a graça de nomear serventuários. Foi agraciado (Rio de Janeiro
de luzes e muito zelosas do serviço de Deus e meu. Hei por bem der-
04.04.1809) com o lugar de Provedor-mor da Saúde da Corte e Estado do Brasil (Leitura
rogar e suprimir a forma, que ate ao presente se exige[ ..] que se crie de Bacharéis, 1701, maço 20, n. 21 e Ordem de Cristo, letra M, maço 30, doe. 25).
[ ..} hum conselho perpetuo na Corte e cidade de Lisboa ao qual se 92
José Correia Picanço, natural de Vila de Goyana (ou Recife?), nasceu a 10 de
chamara Junta Da Real Mesa da Saúde da minha Real e Imediata novembro de 1745, filho do cirurgião-barbeiro Francisco Corrêa Picanço, natural de
protecção, ficando, por esta nova criação, e estabelecimento derroga- Sesimbra, e de D. Joana do Rosário. A sua dedicação e empenho chegaram ao
da, e abolida a Junta do Protomedicato. Será presidente da Dita conhecimento do Conde de Vila Flor (Antonio Francisco de Paulo Manoel de Souza e
Junta da Real Mesa da Saúde o Ministro Secretario de Estado dos Menezes), governador da Província, que o nomeou Cirurgiã~ do Corp_o Avulso e
Negócios do Reino, serão juiz os deputados dela, e haverá um fiscal Oficiais de Ordenança de Entrados e Reformados ( 17 66). Em Lisboa matriculou-se na
desembargador da suplicação, enquanto não passar para Agravos. Escola Cirúrgica do Hospital São José obtendo o título licenciado em Cirurgia.
Um secretário com dois oficiais alternos, todos da minha nomeação e Embarcou para França onde obteve o título de Doutor em Medicina ( 1789). Casou-se
dois contínuos, um porteiro, um meirinho 89• com a filha do seu professor Sebastier Brochet e teve três filhos: o Marechal de
Campo José Corrêa Picanço, o Desembargador António Corrêa Picanço e a Sra. !sabei
Brochot Picanço da Costa. Foi nomeado pelo Marquês de Pombal para a cadeira d~
A situação só seria, porém, alterada, mas não resolvida, após as Anatomia, Operações Cirúrgicas e Obstetrícia da Universidade de Coimbra_ e fm
invasões francesas, quando foi recriado, na Corte do Rio de Janeiro, o membro da Real Academia de Ciências de Lisboa. Exerceu o ensino de Anatomia, sua
cargo de Físico-mor e Cirurgião-mor do Reino, Estados e Domínios Ul- grande paixão, por 18 anos (03.10.1772 até ao jubileu em 28.06.1790). Foi nomeado
90 Cirurgião-mor, Primeiro Cirurgião da Real Câmara, Deputado da Real Junta do
tramarinos (27.02.1808 ), recaindo a nomeação em dois doutores alta- Protomedicato e, depois da extinção da junta, nomeado Físico-mor. Além do_ tí!111o de
mente protegidos da Corte, Manuel Vieira da Silva91 e José Correia Pi- primeiro Barão de Goiana, com que foi agraciado (182_0~, era portador de mumer~s
distinções como "Officier de la Santé" e Doutor em Med1cma pela Faculdade de Pans,
89
Idem. Fidalgo da Casa Real, do Conselho de Sua Majestade, Cavaleiro e Comendador da
90 Ordem de Cristo Cavaleiro Honorário da Torre e Espada. Publicou Ensaio sobre o
Decreto de 07.01.1809, SILVA, António Delgado da. Collecção da Legislação perigo das sepulturas nas cidades e nos seus contornos (Rio d~ Janeiro, 18_12), uma
Portugueza desde a última compilação das Ordenações. Lisboa: Typografia tradução francesa sobre o perigo das inumações dentro das igreJas e nos recmtos das
Maigrense, 1826, (legislação de 1802 a 1810), p. 716. cidades. Mirabeau faz-lhe referências na sua Memória Histórica da Faculdade de
91
Manuel Vieira da Silva (1753-1826), formado em medicina pela Universidade de Medicina. É considerado o Patrono da Obstetrícia Brasileira por defender esta
Coimbra, era natural do concelho de Ourém e exerceu, no Brasil, cargos na Corte disciplina nos cursos médicos e ter praticado, pela primei~ª-vez, ª. cesariana ~o Br~!i!;
como médico de D. João VI. Regressou ao Reino com a família real (1822). Foi da Foi um médico de grande prestígio "gosava da fama de hab1l medico e bom c1rurgiao
sua autoria o primeiro trabalho publicado sobre medicina no Brasil, Reflexões sobre e criou a Escola de Cirurgia no Real Hospital da Bahia (1808). Faleceu em 20 de
alguns dos meios propostos por conducentes para melhorar o clima da cidade do Rio de outubro de 1823 no Rio de Janeiro (Registo Geral de Mercês de D. Maria I, liv. 25, f.
301v., Habilitações da Ordem de Cristo, letra J, maços 67 e 68 e Diccionario
Janeiro (1808), Diccionario Bibliographico Portuguez, op. cit., t. VI, p. 342 e t. XVI,
Bibliographico Portuguez, op. cit., t. XII, p. 297 e t. IV, p. 284-285).
p. 123. Nasceu na Lourinhã (11 de novembro de 1753) e faleceu na Aldeia da Cruz (17 93
de novembro de 1826). Era filho de Manuel Vieira da Silva e de Josefa Luísa Borges de SILVA, António Delgado da. Collecção da Legislação Portugueza desd~ a ú!tima
Abreu, teve como irmãos Luís Vieira da Silva Borges de Abreu, monsenhor da compilação das Ordenações. Lisboa: Typografia Maigrense, 1826, (leg1slaçao de
Patriarcal, e José Vieira da Silva Borges de Abreu, capitão de ordenança. Foi casado, em 1802 a 1810), p. 651-652.
94
segundas núpcias, com Maria Ludovina Máxima de Sousa de Almeida e Vasconcelos de Nas capitanias do Brasil, os delegados comissários deviam seguir o Regimento de 16
de Maio de 1744 e, no que toca á jurisdição cível e criminal, os parágrafos 7 e 11 do
324 José Subtil
As Formas do Direito: Ordem, Razão e Decisão 325
95
Em 5 de novembro de 1808 , para se "evitarem os descuidos, e
cirurgia e medicina no Hospital da Santa Casa da Misericórdia do Rio de
enganos, e falta da necessária cautela", o príncipe regente encarregava o
Janeiro'ºº da autoria do doutor Manuel Luís Álvares de Carvalho, Direc-
Doutor Manuel Vieira da Silva, de taxar os preços dos medicamentos e
drogas no Brasil. tor dos Estudos de Medicina e Cirurgia do Estado do Brasil'º'.
No Reino, no mesmo ano, os problemas de saúde pública agra-
Mas esta nova ordem institucional, em vigor na Corte do Brasil,
vavam-se com 102
o surto de epidemias como relatam os editais de 3 e 4 de
não fazia qualquer referência à Junta do Protomedicato96 o que significa-
Julho de 1813 do doutor António Maurício Mascarenhas de Mansue-
va, de facto, que, politicamente, já não existia como se viria a verificar 10
los 3, desembargador e vereador do Senado, e Provedor-mor da Saúde
quando D. João VI reconhecia não ser "coherente com esta nova creação (peste em Malta, Alexandria e no Mediterrâneo).
a existência da Real Junta do Proto-Medicato", restabelecendo, no Rei-
no, os cargos de Físico-mor e Cirurgião-mor (07.01.1809 97 ). Em face da situação seria criada pela Regência do Reino
(28.08.1813) uma Junta de Saúde Pública 104 que aglutinava as competên-
A 98situação reclamava, porém, um novo regimento, dado em
17.09.1810 , sob proposta do Físico-mor, que substituirá o da Junta do 100
SILVA, António Delgado da. Collecção da Legislação Portugueza desde a última
Protomedicato e os do Físico-mor e Cirurgião-mor. Pelo novo regi- compilação das Ordenações. Lisboa: Typografia Maigrense, 1825 (1811-1820).
mento eram observadas várias matérias jurisdicionais, especialmente a p. 227-228.
101
criação de um Juízo Privativo do Físico-mor, formado por um juiz co- Idem, p. 361-362. Os requisitos prévios para a aprovação nos cursos exigiam saber ler
missário (médico formado pela Universidade de Coimbra, com provi- e escrever, saber ou aprender o francês e inglês, e os que soubessem Latim e
mento trienal e gozando de todos os privilégios conferidos aos magis- Geometria podiam matricular-se logo no segundo ano. O curso tinha cinco anos e o
trados), um escrivão, dois oficiais, dois visitadores examinadores (boti- plano de estudos compreendia, no primeiro ano, Anatomia Geral, Química
Farmacêutica e Teoria Médica e Cirúrgica e Prática de Curativos. No segundo ano, a
cários aprovados), um meirinho e um escrivão do meirinho. Este juiz continuação destes estudos e Fisiologia. No terceiro ano, Higiene, Etiologia, Patologia
poderia delegar, na periferia, os seus poderes e competências nos juízes e Terapêutica. No quarto ano, Instruções Cirúrgicas e Operações e Obstetrícia. No
comissários das comarcas 99, quinto ano, o prosseguimento destas matérias e Prática de Medicina. Os terceiros,
quatros e quintos anos eram formados, também, por sabáticas e dissertações em língua
Pouco tempo depois (01.04.1813), o conde de Aguiar, ministro portuguesa. Os que obtivessem aprovação nos cursos podiam requerer a carta de
Assistente ao Despacho, aprovava os planos de estudo de um curso de cirurgia e "curar enfermidades onde não houvessem médicos", ingressar no Colégio
Cirúrgico e poderem ser opositores às cadeiras desta "Escola e Reino". Depois de
Regimento de 25 de Fevereiro de 1521, preparando os processos para serem julgados enriquecerem os curricula podiam fazer exame para os médicos e obterem assim o
pelo Físico-mor ou Cirurgião-mor que apreciavam também os recursos das sentenças grau de doutor em medicina. Dois anos depois, pelo Alvará 12.07.1815, é retomada a
proferidas pelos mesmos comissários. reforma dos estudos de medicina (Alvará de 1 de Dezembro de 1804), regulados os
95
SILVA, António Delgado da. Collecção da Legislação Portugueza desde a última concursos de oposição às cadeiras dos Estudos da Universidade de Coimbra, em
compilação das Ordenações. Op. cit., p. 630-632. particular a obrigação dos opositores terem que apresentar, em cada ano, dissertações
96
Desde a chegada da Corte ao Brasil que as questões de saúde passaram a ser dirigidas sobre as matérias dos cursos que eram entregues à Congregação para serem
examinadas pelos Lentes Censores.
ao Conselho Ultramarino como foi o caso da importante questão relacionada com o 102
comércio de escravos. O secretário de Estado da Marinha e Ultramar (02.03.1807), Que invoca o Regimento de 20 de Dezembro de 1695 sobre as competências do
visconde de Anadia (D. João Rodrigues de Sá e Melo) oficializava o Conselho Guarda- mor da Casa de Saúde de Lisboa e Belém no controlo de barcos, passaportes
Ultramarino sobre a descuidada importação de escravos oriundos de Angola e as de saúde e bilhetes de navegabilidade (SILVA, António Delgado da. Collecção da
consequências desastrosas para a saúde pública e para a economia com apresentação Legislação Portugueza desde a última compilação das Ordenações. Lisboa:
de propostas sobre o combate às mesmas (vacinas, cuidados de higiene, alteração TypografiaMaigrense, 1825 (1811-1820). p. 251-252.
103
dessas rotas) de forma a aumentar o número de escravos (Arquivo Histórico Na altura era desembargador da Casa da Suplicação e corregedor de Belém. Tinha
Ultramarino, Conselho Ultramarino, caixa n. 139, doe. 10.595). sido agraciado com o título de conselheiro e fidalgo cavaleiro, Ver SUBTIL, José.
97
SILVA, António Delgado da. Collecção da Legislação Portugueza desde a última Dicionário dos Desembargadores (1640-1834). Lisboa: Ediual, 2010. p. 101.
104
compilação das Ordenações. Op. cit., p. 716. Sobre a documentação da Junta de Saúde Pública, ver ANTT, Ministério do
98
Idem, p. 799-808. Reino/Saúde, 24 maços e 4 macetes (1752-1833), em especial, Negócios de Saúde
99
Systema, ou Collecção dos Regimentos Reaes. Lisboa: Oficina de Simão Thaddeo Pública (SR), 13 maços, 1810-1833, com consultas e representações da Junta de
Ferreira, 1785. t. IV. Saúde Pública, correspondência diversa, oficias do Provedor-mor da Saúde, mapas
sanitários e muito mais.
326 José Subtil As Formas do Direito: Ordem, Razão e Decisão 327
cias de vários organismos, incluindo o Provedor-mor da Saúde da Corte e no regulamento de 07 de agosto de 1797, para uma melhor "administra-
Reino, com a missão de reprimir os "abusos, fraudes e contravenções e ção e polícia dos Hospitais Militares", um "Ramo do Meu Real Serviço o
para decidir pleitos e litígios do Foro Médico que requerem grandes mais digno do Meu Pio e Paternal Cuidado, por se dirigirá conservação
conhecimentos e experiencia da mesma arte". da vida daquella classe dos Meus fieis Vassallos que se expõem a perde-
Por Portaria de 09 de agosto de 1814 105 , esta junta passou a fa- /la pela defeza do Estado".
zer "Mappas Necrologicos dos Óbitos" e a cumprir o Regimento dos Ca- . Como inovação, o regulamento apontava para uma organização
beças de Saúde no que se refere à obrigação de só enterrar os mortos com hospitalar em tomo de quatro tipologias: i) hospitais periféricos sob pro-
uma certidão do médico ou facultativo que tenha assistido à doença ou tecção régia, a cargo das misericórdias e/ou outras instituições; ii) hospi-
procedido ao "exame do corpo". Os párocos e restante clero ficavam tais centrais com administração directa da Coroa (Lisboa e Porto) depen-
obrigados a colaborar nas "casas onde existiam cemitérios particulares" dentes da Secretaria de Estado dos Negócios do Reino; iii) hospitais ter-
como conventos, casas de educação e piedade. mais; iv) hospitais militares dependentes da Secretaria de Estado dos
i i O reconhecimento da indispensabilidade de um lazareto que Negócios da Guerra.
! permitisse purificar, em quarentena, os géneros e pessoas suspeitas de Mais tarde, o regulamento seria completado por um outro (Al-
contágio que quisessem entrar no porto de Lisboa, levou ao estabeleci- vará (14 de junho de 1816), dado no Rio de Janeiro, da autoria política do
mento de um novo lazareto, na Torre de S. Sebastião de Caparica, depen- Marquês de Aguiar, membro do Conselho de Estado e Ministro Assis-
106
dente da junta (22.10.1815) • A transferência dos serviços de saúde do tente ao Despacho 111 •
velho e inadequado presídio da Trafaria para a Caparica concluir-se-iam
no ano seguinte (05.04.1816), justamente na altura que o secretário da
junta, Luís António Rebelo da Silva, publicava ordens sobre movimentos 5 CONCLUSÃO
de barcos, denúncias em segredo e divulgava a lista de países contagiados
de peste 1°7• O Estado de Polícia em Portugal é resultado de um excesso de
Uma breve e última referência sobre a organização dos hospi- governação, fora da matriz jurisdicionalista, exigido pela situação criada
tais108 para destacar o Regulamento dos Hospitais Militares, da autoria pelo terramoto de 1755. Mas os magistrados e tribunais tentaram com-
política do secretário de Estado dos Negócios Estrangeiros e da Guerra, pensar as p_erdas de poder através, sobretudo, da sabotagem dos processos
109
António de Araújo de Azevedo (Alvará de 27.03.1805)11°, com raízes de contenc10so o que conduziu a uma conflitualidade permanente com o
105
SILVA, António Delgado da. Collecção da Legislação Portugueza desde a última governo mas, no Rio de Janeiro, seria novamente chamado a exercer o cargo de se-
compilação das Ordenações. Lisboa: Typografia Maigrense, 1825 (1811-1820). cretário de estado da Marinha e Domínios Ultramarinos e, como conselheiro de Esta-
p. 316-317. do, contribuiu para a elevação do Brasil ao Reino Unido de Portugal e dos Algarves
106 (1814). Acabaria por desempenhar, outra vez, o cargo de ministro assistente ao despa-
SILVA, António Delgado da. Collecção da Legislação Portugueza desde a última cho no ano em que faleceria (1817). Ver pormenores da sua família e da carreira
compilação das Ordenações. Op. cit., p. 369-442.
107 política em RODRIGUES, Abel Leandro Freitas. Entre o Público e o Privado: A
Idem, p. 704. O facto da febre amarela se ter espalhado pela Andaluzia obrigaria a génese do arquivo do Conde da Barca (1754-1817). Braga: Instituto de Ciências So-
junta a reunir todos os dias (23.10.1819). ciai~, Universi?~de do Minho, 2008 (?issertação de mestrado policopiada). Sobre a
108
Sobre o significado político dos primeiros regimentos dos hospitais, ver ABREU, conJuntura pohtica, ver SUBTIL, Jose. Portugal y la Guerra Peninsular. El maldito
Laurinda. O que nos ensinam os regimentos hospitalares? Um estudo comparativo afio 1808. Cuade~nos de Historia Moderna, VII, 2007. p. 101-143 (versão portu-
entre os Hospitais das Misericórdias de Lisboa e do Porto (séculos XVI e XVII). A g~esa em O maldito ano de 1808: Portugal e a guerra peninsular. Actores, Territó-
Solidariedade nos Séculos: A Confraternidade e as Obras. Porto: Santa Casa da rios e Redes de Poder, entre o Antigo Regime e o Liberalismo. Curitiba: Juruá,
Misericórdia do Porto e Alêtheia Editores, 2009. p. 267-285. 2011. p. 275-314.
109 110
António de Araújo de Azevedo iniciou a vida política como diplomata ( 1787), percor- SILVA, António Delgado da. Collecção da Legislação Portugueza. Lisboa, 1826,
rendo a Europa como embaixador nas legações de Haia, Paris, São Petersburgo e via- volume referente aos anos de 1802 a 1810. p. 308-340.
111
jou pela Alemanha, tomando conhecimento do movimento reformista das Luzes. Era o SILVA, António Delgado da. Collecção da Legislação Portugueza. Lisboa, 1825,
principal ministro de D. João VI na altura das invasões franceses sendo afastado do volume referente aos anos de 1811 a 1820. p. 505-513.
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novo ius policiae, um confronto político que acabaria por conduzir a uma 6 ORGANISMOS DO ESTADO DE
governamentalidade próxima do modelo liberal. POLÍCIA (1755-1820)
Entre todas as áreas de intervenção, a polícia da saúde pública
foi a que mais objectivou a razão do Estado de Polícia, quer pela coerên- Academia de Fortificação, Artilharia e Desenho (1790)
cia entre os seus mecanismos e princípios, quer pelos saberes e técnicas Academia do Nú (1780)
que desenvolveu, de forma surpreendente e rápida.
Administração dos Pinhais de Leiria (1783)
Para melhor avaliar o impulso e o alcance desta nova adminis-
tração policial, bastará lembrar que o quadro institucional da administra- Aula de Desenho e Arquitectura (1781)
ção da Coroa se manteve praticamente o mesmo desde a· Casa de Áustria Casa da Fundição (1751)
até ao terramoto de 1755, ou seja, ao longo de mais de século e meio 112 e Casa da Moeda (17 61, nova regulamentação embora já existisse)
que, entre meados de Setecentos e as invasões franceses (1755-1807), o
Colégio de Belas Artes e Artes Liberais (1772)
conjunto de organismos policiais criados (ver relação no final do texto), e
o crescente protagonismo das secretarias de Estado constituíram a maior Colégio Real dos Nobres (1761)
reforma administrativa da monarquia portuguesa da época moderna. Conselho do Almirantado (1795)
As práticas de polícia revestiram-se de particular importância na Corpo de Engenheiros Construtores das Novas Infra-estruturas.
medida em que conseguiram ampliar as formas de controlo social e supe- viárias (1796)
rar os modos tradicionais do exercício do poder. Erário Régio (1761)
Por outro lado, ao assumir como objectivo central o bem-estar Escolas Públicas de Artes e Gramática (1772)
físico e anímico dos vassalos, a saúde e a vida, a ordem e o crescimento
económico, a administração policial transformaria a "vida" num objecto Estatutos da Universidade de Coimbra (1772)
político instrumentalizável por novas tecnologias disciplinares que ha- Hospital Real das Caldas da Rainha ( 177 5)
veriam de conduzir à 'morte' política e institucional dos organismos Inspecção-Geral das Obras Públicas de Lisboa (1783)
polissinodais.
Inspecção-Geral do Terreiro Público (1777 e 1779)
Um Estado de Polícia que não era duas coisas.
Inspector-Geral para as Fábricas do Reino (1777)
Já não era uma monarquia corporativa fundada, ao centro, no
Intendência Geral da Polícia da Corte e Reino (1760)
pluralismo das autonomias dos tribunais e conselhos e, na periferia, nos
governos dos concelhos, comunidades, casas (nobres e eclesiásticas) e Intendência Geral das Minas e Metais (1763)
corporações. Intendente Geral da Agricultura (1765)
E não era também o Estado de Leviathan, distante, supra indi- Junta da Directoria Geral de Estudos e Escolas do Reino (1794)
vidual, esmagador e forte que se impusesse pelo monopólio dos aparelhos Junta da Providência Literária (1787)
repressivos e da lei.
Junta de Saúde Pública (1813)
Creio, pois, que a melhor forma de caracterizar o sistema políti-
co em Portugal, após o terramoto de 1755, é justamente o Estado de Polí- Junta de Todas as Fábricas deste Reino, e Águas Livres (1781)
cia de que procurámos identificar, ao longo do texto, algumas das suas Junta do Exame do Estado Actual e Melhoramento Temporal
principais linhas de força. das Ordens Religiosas (1789)
Junta do Protomedicato (1782)
112
Excepção para o Conselho da Guerra e a Junta dos Três Estados criados na sequência Junta do Subsídio Literário (1787)
da Guerra da Restauração (ver SUBTIL, José. O Terramoto Político (1750-1759).
Op. cit, capítulo II. Junta Ordinária da Revisão e Censura do Novo Código (1783)
330 José Subtil
As Formas do Direito: Ordem, Razão e Decisão 331
Mesa da Comissão Geral sobre o Exame, e Censura dos Livros
(1787) . As crianças abandonadas no contexto da institucionalização das práti-
-c-as-d---,---e-c-aridade e assistência, em Portugal, no século XVI. A Infância no Uni-
Mesa do Bem Comum dos Mercadores de Retalho (1757) verso Assistencial no Norte da Península Ibérica (séculos XVI-XIX). Braga:
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