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Tempos Cruzados. Escrita Etnográfica e Tempo Histórico No Brasil Oitocentista

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RODRIGO TURIN

Tempos cruzados: escrita etnogrfica e tempo histrico no Brasil oitocentista

Tese apresentada ao Programa de Ps-Graduao em Histria da Universidade Federal do Rio de Janeiro como requisito parcial obteno do grau de Doutor em Histria. Orientador: Prof. Dr. Manoel Luiz Lima Salgado Guimares.

RIO DE JANEIRO 2009

RODRIGO TURIN

Tempos cruzados: escrita etnogrfica e tempo histrico no Brasil oitocentista

Tese apresentada ao Programa de Ps-Graduao em Histria da Universidade Federal do Rio de Janeiro como requisito parcial obteno do grau de Doutor em Histria. Aprovada pela banca examinadora abaixo assinada:

Prof. Dr. Manoel Luiz Salgado Guimares (orientador) Departamento de Histria UFRJ

Prof. Dr. Jos Murilo de Carvalho Departamento de Histria UFRJ

Prof. Dr. Valdei Lopes de Araujo Departamento de Histria UFOP

Prof. Dr. Paulo Knauss de Mendona Departamento de Histria UFF

Prof. Dr. Temstocles Amrico Corra Czar. Departamento de Histria UFRGS

RIO DE JANEIRO 2009

Pretender reconstituir um passado do qual se impotente para atingir a histria, ou querer fazer a histria de um presente sem passado, drama da etnologia num caso, da etnografia no outro, tal , em todo caso, o dilema no qual o desenvolvimento delas, ao longo dos ltimos cinqenta anos, pareceu muito freqentemente coloc-las Claude Lvi-Strauss

O que ns vemos das coisas so as coisas. Por que veramos ns uma coisa se houvesse outra? Por que que ver e ouvir seria iludirmo-nos se ver e ouvir so ver e ouvir? Fernando Pessoa (Alberto Caeiro)

Agradecimentos
Agradeo a Manoel Luiz Salgado Guimares, pela orientao e pelo convvio sempre estimulante junto ao PPGHIS. De nossos dilogos, trago uma dvida intelectual (e tica) que transcende em muito os limites desta tese. Um agradecimento especial a Temstocles Czar, orientador de minha dissertao de mestrado junto Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Alm de interlocutor sempre arguto, sem seu incentivo provavelmente no teria me aventurado no Rio de Janeiro para a realizao deste doutorado. Franois Hartog, pela acolhida junto EHESS, em Paris. Agradeo igualmente CAPES, por ter me possibilitado com uma bolsa PDEE passar um perodo de meu doutorado realizando pesquisas na Frana. Agradeo aos professores Jos Murilo de Carvalho, Valdei Lopes de Araujo, Temstocles Czar e Paulo Knauss de Mendona por aceitarem participar de minha banca de defesa. Ao professor Jos Reginaldo, agradeo igualmente pela sua presena em minha qualificao, assim como professora Andra Daher, cujos seminrios muito me ajudaram. Um agradecimento s professoras Norma Crtes e Maria Aparecida, pelo acolhimento quando de minha experincia como professor subtituto junto ao Departamento de Histria da UFRJ. Sandra e Gleidis, pelas inmeras ajudas diante dos labirntos burocrticos. Aos meus colegas e interlocutores junto ao PPGHIS, em especial Naiara Damas e tala Byanca. Tase Quadros e Maria da Glria, cujo rigor acadmico e generosidade intelectual me acompanham desde os tempos de Porto Alegre. Agradeo a Graciela Bonassa Garcia, por todo o apoio e estmulo em boa parte dessa trajetria. Tenho uma dvida especial para com Rafael Benthien, Fernando Nicolazzi, Allan de Paula e Helder Cyrelli, com quem desde minha graduao compartilho experincias e expectativas no mundo acadmico e alm. Suas leituras crticas sempre foram inestimveis. Agradeo aos meus ex-alunos e hoje colegas. Presenciar sua motivao diante da reflexo historiogrfica tornou-se uma das experincias mais gratificantes durante minha estadia no Rio de Janeiro. Parafraseando o professor Roberto da Matta, sou grato aos meus alunos, que me tornaram professor. Renata Cristina Pico, com quem compartilhei as agruras finais da confeco da tese. Seu apoio e companheirismo tornaram mais leves as ansiedades do encerramento dessa etapa, assim como as expectativas daquelas que viro.

Dedico esta tese minha famlia, pelo apoio incondicional, e Renata, cujo encontro fez com que meu olhar se tornasse ntido como um girassol.

Resumo
Esta tese apresenta um estudo sobre a formao e os usos do discurso etnogfico no Brasil oitocentista, tendo por foco as relaes estabelecidas entre a escrita etnogrfica e o tempo histrico. Privilegiando alguns momentos chaves deste processo, o estudo centra-se nos textos produzidos no Instituto Histrico e Geogrfico Brasileiro, entre as dcadas de 1840 e 1870; no Museu Nacional, entre as dcadas de 1870 e 1890; assim como nos escritos de autores da chamada gerao de 1870, como Slvio Romero, Jos Verssimo, Nina Rodrigues e Euclides da Cunha. A partir de uma interrogao acerca da separao moderna dos saberes histrico e etnogrfico, pautada em oposies como escrita/oralidade, identidade/alteridade, conscincia/inconscincia e espao/tempo, procura-se reconstituir as conjunes e distenses entre o etnogrfico e o histrico ocorridas no Brasil durante os regimes monrquico e republicano. A partir do estudo desta relao, percebe-se a elaborao de um tempo histrico moderno em seus distintos espectros epistemolgicos e polticos.

Abstract
The present thesis focuses on origin and utilization of the ethnographic speech in Brazil during the 19th century, emphasizing the relationship between ethnographic writing and historical time. The references were selected by favoring key moments of this process, including texts from the Instituto Histrico e Geogrfico Brasileiro, produced between 1840 and 1870; together with texts from the Museu Nacional, written between 1870 and 1890. In addition, writings from the authors representing the named 1870s generation, such as Slvio Romero, Jos Verssimo, Nina Rodrigues and Euclides da Cunha, were also analyzed. I attempted to reconstitute the conjunctions and distensions between the ethnographic and the historical observed in Brazil during the monarchic and republican regimens, by questioning the modern division of historical and ethnographic knowledge that are based on oppositions, such as writing/orality, identity/otherness, conscience/unconsciousness, and space/time. By studying such relationship it was possible to envisage the establishment of a modern historical time and the distinct epistemological and political aspects enrolled on its construction.

Sumrio
Agradecimentos ....................................................................................................................................... 4 Resumo .................................................................................................................................................... 6 Abstract ................................................................................................................................................... 7 Introduo - Histria e Etnografia: oposio e englobamento ................................................................ 9 Captulo 1: A obscura histria indgena: o discurso etnogrfico no IHGB (1840-1870) .............. 18 1.1 Martius, o olhar estrangeiro e o dilema nacional ................................................................... 24 1.2 A escrita da nao: IHGB e os limites da etnografia ............................................................. 28 1.3 A delimitao de um campo de debate. ................................................................................... 33 1.4 O estado de natureza e a ao pedaggica ........................................................................ 40 1.5 A reabilitao do selvagem: decadncia como possibilidade de futuro ................................. 46 1.6 A restaurao jesutica e o medium da linguagem................................................................. 56 1.7 Os limites da arqueologia e a linguagem como chave da histria ......................................... 64 Captulo 2: Alegorias do selvagem: a escrita do outro e a construo de si...................................... 78 2.1 Varnhagen e a vingana da histria ....................................................................................... 78 2.2 Gonalves Dias e o missionrio da civilizao .................................................................. 92 2.3 O selvagem entre dois tempos: ou o ocaso de uma tradio ............................................ 103 Captulo 3 Dos livros ao laboratrio: modos de operao etnogrfica......................................... 120 no Museu Nacional.......................................................................................................................... 120 3.1 Uma nova presena do invisvel. ........................................................................................... 121 3.2 Uma memria disciplinar ...................................................................................................... 125 3.3 Antropologias do Museu Nacional ........................................................................................ 132 3.4 Saber olhar, saber descrever: o controle dos sentidos ......................................................... 142 3.5 Tipos, primitivos, decadentes: categorias etnogrficas, secularizao e tempo histrico ....................................................................................................................................... 154 Captulo 4 A histria profunda da nao: conjunes e distenses entre o etnogrfico e o histrico (1870-1910) ..................................................................................................................................... 168 4.1 Uma nova tessitura da histria: de qual passado devemos falar?........................................ 168 4.2 Representao social e conhecimento da sociedade:............................................................ 175 4.3 Formas e usos do etnogrfico: a etnografia esclarecendo a histria ................................... 180 4.3.1 A quebra com a tradio ............................................................................................... 180 4.3.2 Lendo a histria atravs do folclore ............................................................................. 187 4.3.3 Ver a histria: o primado da observao ................................................................. 199 4.3.4 O controle filolgico e a etnografia lingstica de Capistrano de Abreu ..................... 206 4.4 Estratos do tempo: entre primitivos e civilizados ................................................................. 213 Consideraes finais ............................................................................................................................ 223 Bibliografia.......................................................................................................................................... 226

Introduo - Histria e Etnografia: oposio e englobamento

Graas s pesquisas de Justin Stagl e de Han Vermeulen, identificou-se o aparecimento do conceito moderno de Etnografia na dcada de 17701. Este conceito teria sido formulado, em sua acepo moderna, pelos historiadores e lingistas August Ludwig Schlzer e Johan Christoph Gatterer, ambos da universidade de Gttingen. Entre os anos 1771 e 1791, mais de quarenta publicaes, entre jornais e livros, apareceram contendo os termos Ethnographie, Ethnologie, Vlkerkund e Volkskund, todos eles ligados de algum modo quela universidade2. O contexto original no qual esses termos foram formulados era o da Histria e, especialmente, das cincias auxiliares a esta, como a Geografia e a Estatstica. Todas elas eram incorporadas e relacionadas numa super-disciplina, a Histria Universal (Weltgeschichte), cujo objetivo era traar a genealogia e as interrelaes entre os diferentes povos3. Trago esses dados apenas para salientar um ponto que me parece fundamental para a compreenso do carter desse novo saber: seu nascimento deu-se no mesmo espao intelectual e pelos mesmos autores que ajudaram a forjar o conceito moderno de Histria4. Tanto a Etnografia como a Histria, portanto, tm em sua origem uma mesma base epistemolgica. Ambas se enrazam num processo de temporalizao e de secularizao de conceitos fundamentais que caracterizam a experincia histrica moderna. O processo que caracteriza a constituio da disciplina da Histria, ocorrido desde fins do sculo XVIII e consolidando-se no decorrer do XIX, foi marcado por uma srie de deslocamentos e por uma configurao nova no espao dos saberes, que incluiu desde a instituio de lugares de produo at a canonizao de certos procedimentos que garantissem a cientificidade do conhecimento do passado. Certas prticas que se encontravam enrazadas em outras tradies e com significados diversos, como a filologia, a numismtica e a

VERMEULEN, Han F. Origins and institucionalization of ethnography and ethnology in Europe and the USA, 1771-1845, in: Fieldworks and Footnotes. Studies in the history of european anthropology. Edited by Han F. Vermeulen and Arturo Alverez Roldn. London e New York, Routledge, 1995. STAGL, Justin. August Ludwig Shlzer and the study of Mankind according to peoples, in: A History of Curiosity. The theory of travel 1550-1800. London e New York: Routledge, 1995. 2 VERMEULEN, Han F. Op. Cit. 3 STAGL, Justin. Op. Cit., pp. 253-254. 4 KOSELLECK, Reinhart. Le concept dhistoire, in: KOSELLECK, Reinhart. Lxprience de lhistoire. Paris: Seuil/Gallimard, 1997.

10 cronologia, vieram assumir novas posies em um campo epistemolgico prprio Modernidade, no qual o discurso histrico ganha uma centralidade at ento desconhecida5. Para compreender essa centralidade ocupada pela Histria, que passa a agregar em torno de si uma srie de cincias auxiliares, deve-se inseri-la em uma experincia mais ampla, aquilo que podemos designar como uma cultura histrica oitocentista. Pois, essa histria, como nos diz Hartog, tornada para ns, modernos, a Histria em sua evidncia nunca foi, na Grcia e em Roma, mais que um discurso minoritrio, um dentre os que, cada um a seu modo, se encarregavam da memria e contavam a genealogia e os avatares de uma certa identidade6. Nem mesmo com o advento de uma concepo crist do tempo, desde sua formulao por Santo Agostinho, a experincia histrica veio a ocupar um lugar de destaque como elemento de inteligibilidade do mundo e dos homens7. No havia, muito menos, qualquer instituio que abrigasse a historiografia, codificando-lhe regras e legitimando seu modo de produo. Se a primeira cadeira de histria foi criada em 1504, em Mayence, seu nmero no viria a crescer significativamente seno aps meados do sculo XVIII8. justamente no ltimo tero do sculo XVIII que o historiador Reinhart Koselleck identifica o surgimento do conceito moderno de histria9. No caso alemo, esse surgimento expressou-se lingisticamente. Se antes existiam duas palavras para designar a histria, Historie (entendida como a narrativa dos acontecimentos) e Geschichte (os acontecimentos em si), o que passa ento a prevalecer nos textos o uso de Geschichte no singular, denotando no mais o plural as histrias, mas sim um novo singular coletivo (die Geschichte, a
GUIMARES, Manoel Luiz Salgado. Reinventando a tradio: sobre Antiquariado e escrita da Histria, in: Humanas, Vol. 23, n. 1/ 2, 2000, p. 119. Ver tambm MOMIGLIANO, Arnaldo. L'Histoire Ancienne et l'Antiquaire", In: Problmes d'Historiographie Ancienne et Moderne. Paris, Gallimard, 1983, pp .245-293. Para uma anlise da escrita da histria no perodo que antecede sua disciplinarizao, cf. LEVINNE, Joseph. The Autonomy of History. Truth and Method from Erasmus to Gibbon. Chicago: The University of Chiago Press, 1999; GRAFTON, Anthony. What was History? The art of History in Early Modern Europe. Cambridge: Cambridge University Press, 2007. 6 HARTOG, Franois. A histria de Homero a Santo Agostinho. Belo Horizonte, UFMG, 2001, p. 18. 7 ARENDT, Hannah. O conceito de Histria Antigo e Moderno, in: Entre o passado e o futuro. So Paulo: Perspectiva, 2003. Hannah Arendt destaca que a similaridade entre os conceitos moderno e cristo de Histria enganosa. Para Santo Agostinho, base do pensamento cristo de tempo, o problema estava em que jamais um evento puramente secular poderia ou deveria ser de importncia central para o homem, p. 98. Ao contrrio, os poderes seculares ascendem e declinam como no passado e ascendero e declinaro at o fim do mundo, mas nenhuma verdade fundamentalmente nova ser jamais novamente revelada por tais eventos mundanos, e os cristos no devem atribuir importncia particular a eles, p. 99. Ver tambm GNTHER, Hrst. Le temps de lhistoire. Exprience du monde et catgories temporelles en philosophie de lhistoire de saint Augustin Ptrarque, de Dante Rousseau. Paris: ditions de la Maison des sciences de lhomme, 1995. Principalmente captulo 1, p. 66. 8 HARTOG, Franois. A histria de Homero a Santo Agostinho. Op. Cit. p. 20. 9 KOSELLECK, Reinhart. Futuro passado. Contribuio semntica dos tempos histricos. Rio de Janeiro: Contraponto/PUC-Rio, 2006. Tambm Hanna Arendt, cujas reflexes so, de certa forma, aprofundadas por Koselleck, apontava para esse sbito aparecimento: Em qualquer considerao do conceito moderno de Histria um dos problemas cruciais explicar seu sbito aparecimento durante o ltimo tero do sculo XVIII e o concomitante declnio de interesse no pensamento puramente poltico. Op. Cit. p.111.
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11 Histria). Esta transformao, mais que um simples neologismo, indica uma mudana conceitual profunda, onde o topos da historia magistra deixa de ser operacional e um novo modo de conceber o tempo se impe. Primeiro, o que era um plural de experincias passadas (limitando um espao de experincias possveis) fica compreendido como um processo nico e englobante. Segundo, uma mesma palavra vem a expressar tanto o processo histrico quanto sua narrativa. Portanto, designando ao mesmo tempo o que acontece, a narrativa e a prpria cincia histrica, o substantivo singular die Geschichte veio a representar a histria em si e para si, a histria em absoluto, ou, como Droysen o resumiu: a histria como um saber de si mesma10. Em trabalhos recentes, Franois Hartog props como instrumento heurstico a noo de regime de historicidade11. Esta noo, formulada em dilogo com as reflexes de Arendt e Koselleck, procura servir como um questionamento acerca das diferentes relaes estabelecidas com a temporalidade, os modos como os homens articularam o passado, o presente e o futuro12. Nesse sentido, aquela passagem para um conceito moderno de histria analisado por Koselleck, onde se abria uma fissura entre o espao de experincia e o horizonte de expectativas, pode ser compreendido como o triunfo de um regime moderno de historicidade, no qual o futuro torna-se a referncia que organiza o passado. Este futuro que esclarece a histria passada, este ponto de vista e este telos que lhe do sentido, adquiriu, sucessivamente, com as vestes da cincia, a imagem da Nao, do Povo, da Repblica ou do Proletariado. Se ainda resta uma lio da histria, ela vem, por assim dizer, do futuro e no mais do passado13. Na medida em que o passado j no mais servia como um campo de experincias que circunscrevia a ao humana e a autoridade da tradio tornava-se corroda pela crtica, deixando de funcionar como um legado ou testamento14, os padres de orientao de sentido e
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KOSELLECK, Reinhardt. Op. Cit., pp. 41-60. HARTOG, Franois. O tempo desorientado. Tempo e histria. Como escrever a histria da Frana?, Anos 90, n. 7, Porto Alegre, 1997, pp. 7-28. Do mesmo autor: Rgimes dhistoricit. Prsentisme et expriences du temps. Paris: Seuil, 2003. 12 Um regime de historicidade, com efeito, no uma entidade metafsica, vinda do cu, mas um plano de pensamento de longa durao, uma respirao, uma rtmica, uma ordem do tempo, que permite e probe pensar certas coisas. HARTOG, Franois. O tempo desorientado. Op. Cit. p. 10. Essa perspectiva filia-se diretamente a uma abordagem antropolgica da relao com a historicidade. Nesse sentido, pode-se consultar as anlises desenvolvidas em DETIENNE, Marcel (org). Transcrire les mytologies. Paris: Albin Michel, 1994; assim como o dossi da revista History and Anthropology, vol. 16, n. 3, de 2005, organizado por Eric Hirsch e Charles Stewart. 13 HARTOG, Franois. O tempo desorientado. Tempo e histria. Como escrever a histria da Frana?, Op. Ct., p. 9. 14 E nesse sentido o estranho aforismo de Ren Char (Notre hritage nest prced daucun testament) pode ser entendido como uma expresso que no se restringe apenas gerao da Resistncia, mas envolve uma experincia tipicamente moderna.

12 de legitimidade da organizao social e poltica encontram-se diante de um possvel vcuo: experincia que se manifestou, com bastante freqncia, atravs de um sentimento de perda ou desorientao por parte dos indivduos. Curiosamente, a noo mesma de perda o que possibilitaria a sensao vivenciada por esse indivduo moderno de ser, como se expressou Albertine de Broglie, the first who have understood the past15. a conscincia de um distanciamento o que abre a perspectiva moderna sobre o tempo, tornando-o histrico. Ao mesmo tempo, para que a mente humana no vagasse nas trevas, como o temia Toqueville, o conceito moderno de histria, erguido sobre a noo de processo, tornou-se um referente central para a constituio de identidade daquele indivduo desorientado, como tambm uma base de legitimidade para todo pensamento poltico16. em meio a esse contexto mais amplo que a Histria vem a se constituir como uma disciplina, oferecendo um conhecimento verdadeiro e eficaz sobre o passado da sociedade. O historiador, ao se transformar em um profeta voltado para o passado, segundo expresso de Schlegel, tem como atributo estabelecer o presente como a efetivao do que era praticamente necessrio17. A atitude majoritria que configurar o trabalho desse historiador moderno pode ser representada, como destaca Stephen Bann, atravs do projeto defendido por um autor com Lord Acton, cujo interesse era to trace a clear connection between the immanent movement of history towards a progressively greater measure of liberty and the role of historian, who both contributed to and comprehended this process18. Seria atravs da enunciao criteriosa desse profeta dos tempos modernos que o passado, tornado histrico, poderia ser representado em sua maior veracidade. Caberia ao historiador reconhecer e expor

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BANN, Stephen. Romanticism and the Rise of History. New York: Twayne Publishers, 1997, p. 33. Como destaca Hannah Arendt, o sbito aparecimento do conceito moderno de histria foi concomitante ao declnio de interesse pelo pensamento puramente poltico, tpico dos sculos XVI e XVII. Nesse sentido, pode-se ter em Marx o exemplo clssico e mais bem acabado de uma conjuno, essencialmente moderna, entre um pensamento poltico clssico e a legitimidade ltima da Histria. Marx, diz Arendt, combinava sua noo de Histria com as filosofias polticas teleolgicas das primeiras etapas da epoca moderna, de modo que em seu pensamento os desgnios superiores, que de acordo com os filsofos da Histria [Hegel] se revelavam apenas ao olhar retrospectivo do historiador e do filsofo, poderiam se tornar fins intencionais de ao poltica. ARENDT, Hannah. O conceito de histria Antigo e Moderno, Op. Cit. p. 112. Koselleck tambm expressou essa conjuno: Aprs que lhistoire (Geschichte) est devenue un concept rflexive, servant dintermdiaire entre le futur et le pass et tant capable dexpliquer, de justifier ou de lgitimer, sa misson peut tre peru de diffrentes manires. Les nations, les classes, les partis, les sectes ou tout autres groupes dintrts peuvent, doivent mme, se rfrer lhistoire pour auntant que la gnalogie de leur propre position leur confre des arguments juridiques dans le champ daction politique ou social. KOSELLECK, Reinhardt. Lexprience de lhistoire, Op. Cit., p. 70. 17 Utilizo aqui os fragmentos de Schlegel, presentes no Athenum: O historiador um profeta voltado para o passado e O objeto da histria a efetivao de tudo aquilo que praticamente necessrio. SCHLEGEL, Friederich. Dialeto dos Fragmentos. So Paulo: Iluminuras, 1997, pp. 58 e 60. 18 BANN, Stephen. Op. Cit. p. 13.

13 o sentido dos acontecimentos, e ao faz-lo estaria ele contribuindo tambm para a efetivao de seu prprio enunciado, tornando-o objetivamente verdadeiro19. Para ser criteriosa, no entanto, essa enunciao precisava estar garantida por procedimentos seguros de investigao. no bojo desse processo de formao do discurso histrico que se opera aquele deslocamento referido acima, no qual certas tcnicas, por assim dizer, que antes eram dotadas de significados diversos, vm agora se posicionar como cincias auxiliares dessa Histria triunfante. A filologia, por exemplo, cujo

desenvolvimento esteve ligado ao objetivo de estabelecer a autoridade de textos eclesisticos, passa ento a oferecer disciplina histrica um meio privilegiado para se ter acesso historicidade da experincia humana20. O mesmo vale para a arqueologia. Como bem destaca Alain Schnapp, ao passar por um processo de disciplinarizao, a pesquisa arqueolgica deixa de estar vinculada a um estudo erudito voltado Antigidade clssica, para tornar-se um estudo cientfico sobre os restos materiais deixados por um passado longnquo da humanidade. A teoria das trs idades, a classificao tipolgica e a anlise estratigrfica vo ser os pilares desse novo lugar de saber ocupado pela arqueologia, entendida ento como um estudo sistemtico sobre as camadas do passado 21. Devidamente aparelhada por essas disciplinas auxiliares, a Histria passa a requerer o monoplio de enunciao sobre o passado. Sua instrumentalizao a capacitaria para separar o joio do trigo da verdade, atribuindo aos objetos seu fiel contorno, sua plena historicidade. Para isso, certo, foi necessria uma srie de prticas que visavam consolidar o historiador como uma figura reconhecida, com lugares institudos, com uma rede de sociabilidade e, principalmente, com o apoio dos Estados que buscavam usar esse discurso sobre o passado com o fim de garantir sua legitimidade poltica, como o efetivamente necessrio22. O que interessa destacar aqui, contudo, a centralidade mesma do discurso histrico como um discurso fundador, que d ordem e inteligibilidade vida na mesma medida em que a insere em um tempo histrico.

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Cf. ARENDT, Hannah. Op. Cit. p.123. Pierre Bourdieu define esse movimento como efeito de teoria. Ver BOURDIEU, Pierre. Descrever e prescrever. As condies de possibilidade e os limites da eficcia poltica, in: A economia das trocas lingsticas. So Paulo: Edusp, 1998, p. 125. 20 Sobre o desenvolvimento da filologia erudita e sua posterior relao com o discurso histrico, cf. KRIEGEL, Blandine. Lhistoire lAge classique. La dfaite de lrudition. Paris: Quadrige/PUF, 1996. 21 SCHNAPP, Alain. La conqute du pass. Aux origines de larchologie. Paris: ditions Carr, 1993, pp. 333334. 22 Para o caso francs, cf. GUIMARES, Manoel L. Salgado. Entre amadorismo e profissionalismo: as tenses da prtica histrica no sculo XIX, Topoi, n. 5, Rio de Janeiro, 2002, pp. 184-200. Ver tambm HARTOG, Franois. O sculo XIX e a Histria. O caso Fustel de Coulanges. Rio de Janeiro: UFRJ, 2003.

14 Em um mundo onde a historicidade um elemento fundante, condio inalienvel das coisas e dos homens, como pensar os indgenas, esse povo selvagem que seria, aparentemente, sem histria? Como entend-lo imerso em um tempo histrico se eles no deixaram marcas visveis atravs das quais o historiador moderno pudesse remontar s suas origens? Estariam eles condenados a um eterno presente, submetidos a um estado de natureza do qual no poderiam sair, ou, ao contrrio, seriam restos de uma civilizao antiga, ou mesmo degenerada? Que meios poderiam fornecer caminhos indiretos de acesso a essa temporalidade obscura? Pois, se em parte foram esses mesmos selvagens que motivaram a formulao de uma concepo evolutiva e processual do tempo, eles no deixavam de se apresentar ao homem ocidental moderno como um objeto fugidio, sobre o qual concentrar-seia uma longa luta de representaes, com o interesse no apenas de inclu-los naquele tempo histrico universal, como tambm de designar-lhes uma posio e um valor especficos23. Da os inmeros esforos para acessar esse obscuro passado, seja sob o ponto de vista de uma atitude missionria ou de um humanismo iluminista que procuravam incluir essa alteridade num projeto civilizatrio, seja sob um ponto de vista negativo, que refutava a possibilidade dessas populaes participarem de uma mesma conscincia histrica ocidental24. A curiosidade que o homem selvagem desperta para esse pensamento iluminista tem seus efeitos discursivos. Na mesma medida em que a Histria consolida sua centralidade no espao das cincias humanas devido ao fato de atribuir e ordenar historicidade aos homens e s coisas, dela se destacar uma outra forma de discurso, a qual se deter justamente sobre esse objeto que se furta conscincia histrica. Se a Etnografia tambm pode ser colocada, ao lado de outros saberes, como mais uma cincia auxiliar, preciso ressaltar, contudo, que ela manter uma relao bastante diferenciada com a Histria. Como salienta Michle Duchet, o prprio nascimento de um discurso etnogrfico (somando-se a um discurso etnolgico) se deve a uma recusa por parte de autores como Lafitau, Buffon e Rousseau de la non-histoire comme mode dexistence de groupes humains. Lethnographie, lethnologie, lanthropologie sont nes de ces refus et des limites mmes du discurs historique25. Portanto, na prpria constituio da centralidade da Histria dentro de um regime moderno de historicidade, surge esse discurso outro, como em um espelho, simtrico e inverso, que se ocupar por excelncia
Sobre o debate travado em torno dos selvagens pela escola de Salamanca e, posteriormente, por Lafitau, e sua relao com o desenvolvimento de uma concepo de tempo evolutivo (mas no evolucionista), conferir o excelente trabalho de PAGDEN, Anthony. La caida del Hombre Natural. Madrid: Alianza Editorial, 1988. 24 Sobre a relao do discurso etnogrfico com um humanismo iluminista, cf. DUCHET, Michle. Anthropologie et Histoire au sicle des Lumires. Paris: Albin Michel, 1995. Sobre uma viso negativa acerca desses povos sem-histria, conferir, da mesma autora, Hegel ou lhistoricit comme mode de la conscience collective, in: Les Partages des Savoirs. Discours historique, discours ethnologique. Paris: La Dcouvert, 1984. 25 DUCHET, Michle. Le partage des savoirs. Op. Cit. p. 19. Grifo no original.
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15 do selvagem, do primitivo, e mesmo do popular, instituindo-os como objetos. Essa partilha, fundada na consolidao de um mesmo espao de saber, acabaria por se mostrar, todavia, uma partilha ilusria, pois o objetivo primeiro do discurso etnogrfico era, justamente, trazer o outro para o mesmo, enquadr-lo, ainda que por vias indiretas, num mesmo plano de inteligibilidade que o discurso histrico. Como afirma Duchet: Le partage entre lhistoire et lethnologie laissait intact le noyau idologique de lune et de lautre, pour la simple raison que ctait le mme26. Com efeito, ainda que com outros mtodos e outros fins, a etnografia colocava em jogo conceitos herdados da Histria. O modo como a Etnografia vem organizar esses conceitos herdados remete a essa posio de duplo. Como j disse, ela se apresenta como um espelho, refletindo uma imagem simtrica e inversa quela sobre o qual o discurso histrico moderno se assenta. Em seu artigo sobre a oralidade em Jean de Lry (onde se apresentariam alguns aspectos pr ou protoetnogrficos), Michel de Certeau apresenta essa relao de forma magistral27. Em Lry, os elementos que posteriormente qualificariam os discursos etnogrfico e histrico ainda no estavam separados. Apesar disso (ou justamente por isso), Certeau desdobra o texto do calvinista francs com o objetivo de apontar as posies antitticas e ao mesmo tempo complementares que regem a economia desses discursos28. A etnografia se caracterizaria pelas noes de oralidade, espacialidade, alteridade e inconscincia, enquanto que a historiografia moderna se organizaria em torno de quatro noes opostas quelas: a escrita, a temporalidade, a identidade e a conscincia29. A Histria teria sua homogeneidade pautada nos documentos da atividade ocidental, atribuindo-lhe uma conscincia que poderia reconhecer. Ela desenvolve-se na continuidade das marcas deixadas pelos processos escriturrios: contenta-se em organiz-los, quando compe um nico texto atravs dos
Idem. p. 20. CERTEAU, Michel. Etno-grafia. A oralidade ou o espao do outro: Lry, in: A escrita da Histria. Rio de Janeiro: Forense Universitria, 2002. Sobre a questo de uma escrita pr-etnogrfica, conferir tambm LESTRINGANT, Frank. Le Huguenot et le Sauvage. Paris: Aux Amateurs de Livres, 1990. Para uma anlise da leitura que Certeau realiza de Lry, cf. Corps mystique, corps sauvage: Michel de Certeau, lecteur de Lry , in : LESTRINGANT, Frank. Jean de Lry ou linvention du sauvage. Essai sur lHistoire dun voyage faict en la terre du Brsil. Paris : Honor Champion, 1999. 28 Como definiria Certeau sua pesquisa a respeito dos relatos de viagem: Through a specific investigation (of the series France/Brazil), it seems to me possible to grasp the slow formation of what will receive in 1836 the name os ethnology in other words, to delineate an archeology of ethnology and to show how a science os man is detached, modified, an specified between the rupture of the Renaissance and the end os the Enligthnment. The sucessive definitions of ethnic difference or of superstition, the progressive elaboration of concepts os fable or of myth, the distinctions between writing and orality will require special attention. These points either involve strategic elements of Western culture or enact classification that refer back to the social divisions that organize knowledge, or conversely, are divisions that have structured the social agency of science. CERTEAU, Michel de. Travel narratives of the French to Brazil: Sixteenth to Eighteenh Centuries, in: GREENBLATT, Stephen (ed.). New World Encounters. Berkley: University os California Press, 1993. 29 CERTEAU, Michel. A escrita da histria. Op. Cit. p. 211.
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16 milhares de fragmentos escritos, onde j se exprime o trabalho que constri (faz) o tempo e que lhe d conscincia atravs de um retorno sobre si mesma30. J a Etnografia, exilando a oralidade para fora do campo de trabalho ocidental, a transforma em objeto extico. Enquanto que a escrita capaz de reter as coisas em sua pureza (ela arquivo) e de se estender at o fim do mundo (ela colonizadora), a fala selvagem, por sua vez, articula-se num rumor de palavras diludas to logo enunciadas, e, portanto, perdidas para sempre. A partir dessa ciso (escrita/histria x fala/presente), cria-se a estrutura bsica que motivar a operao escriturria da etnografia: o ici (aqui) e o l-bas (l)31. a partir dessa estrutura que se constri uma hermenutica do outro, uma operao que extrai efeitos de sentido da relao com o outro. Ao trabalhar com essa diferena estrutural, essencialmente binria, a escrita exerce um movimento circular que vai do mesmo ao outro, para ento fazer um trabalho de retorno, ou traduo32. Ao final da operao, onde a realidade selvagem traduzida para a verdade ocidental, autorizando um lugar de saber, o tempo produtivo recosturado, o engendramento da histria continua33. Logo, a relao entre Etnografia e Histria se mostra bastante especfica, como irms siamesas operacionalmente separadas. As noes de escrita e oralidade, conscincia e inconscincia, espao e tempo, alteridade e identidade, as quais vem embasar a suposta dualidade histria e no-histria, operam, dentro do espao de saber moderno, uma disposio que poderamos chamar de hierrquica34. Essas oposies se resolvem na medida em que a idia superior, no caso, histria, contradiz e engloba seu contrrio. Simtricas e inversas, Etnografia e Histria tm sua pretensa partilha fundada em um eixo axial constitudo por um l e por um c, uma estrutura operatria na qual o elemento hierarquizado, o discurso etnogrfico e seu objeto, o selvagem, possam retornar e fazer parte de um todo maior, englobante, que o discurso histrico. Lethnographiable pourtant ntait que lhistorifiable largi aux societs sans archives, nos diz ainda Michle Duchet,

Idem, Ibidem, p. 212. Tambm Clifford Geertz sustentar esta fonte de autoridade da etnografia: A capacidade dos antroplogos de nos fazer levar a srio o que dizem tem menos a ver com uma aparncia factual, ou com um ar de elegncia conceitual, do que com sua capacidade de nos convencer de que o que eles dizem resulta de haverem realmente penetrado numa outra forma de vida (...)- de realmente haverem, de um modo ou de outro, estado l. GEERTZ, Clifford. Obras e Vidas. O antroplogo como autor. Rio de Janeiro: UFRJ, 2002, p. 15. 32 Como afirma Hartog, a retrica da alteridade tende a ser dual. HARTOG, Franois. O Espelho de Herdoto. Ensaio sobre a representao do outro. Belo Horizonte: UFMG, 1999, p. 271. 33 CERTEAU, Michel. A escrita da histria. Op. Cit. p. 215. 34 Para uma formulao do conceito de hierarquia, tal como aqui utilizado, cf. DUMONT, Louis. Homo hierarchicus, Le systme des castes et ses implications. Paris : Gallimard, 1966. Do mesmo autor: O Individualismo. Uma perspectiva antropolgica da ideologia moderna. Rio de Janeiro: Rocco, 2000.
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17 salientando que o discurso etnogrfico no deixa de ser, em sua prpria autonomia, tambm um discurso histrico35.

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DUCHET, Michle. Le partage des savoirs. Op. Cit. p. 28.

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Captulo 1: A obscura histria indgena: o discurso etnogrfico no IHGB (1840-1870)


Podamos imaginar-nos como os primeiros homens tomando posse de uma herana maldita, que s seria subjugada custa de grande sofrimento e muito esforo. Joseph Conrad, O corao das trevas

Em sua premiada dissertao acerca do modo como deveria ser escrita a histria do Brasil, Karl Friederich von Martius apontava para os diferentes elementos sobre os quais o historiador brasileiro deveria direcionar seus esforos. Segundo o naturalista bvaro, caberia ao historiador reflexivo mostrar como no desenvolvimento sucessivo do Brasil se acham estabelecidas as condies para o aperfeioamento de trs raas humanas, que nesse pas so colocadas uma ao lado da outra, de uma maneira desconhecida na histria antiga, e que devem servir-se mutuamente de meio e de fim1. O eixo central de seu projeto historiogrfico pautava-se, portanto, na investigao acerca do modo como cada uma dessas diferentes raas teria desempenhado um papel especfico na formao desse pas novo, constituindo sua especificidade no seio da histria universal. Martius dedica, em sua dissertao, uma seo a cada um desses trs elementos apontados, sugerindo os aspectos a serem destacados assim como o melhor modo de faz-lo. A respeito dos portugueses, a quem caberia um lugar de destaque na investigao histrica, Martius indica como objetos importantes de estudo as relaes comerciais mundiais, o sistema de milcias, as faanhas martimas e guerreiras, o estado das cincias, o direito, a poesia, a Igreja, enfim, uma vasta lista de prticas e instituies que caracterizariam o processo de transferncia e implantao da civilizao nos Trpicos. Em relao s outras duas raas, a indgena e a africana, pode-se dizer que representam os elementos estranhos a esse processo, que teriam alguma influncia na formao histrica brasileira. Cada uma delas, no entanto, recebe um tratamento diferenciado, variando o grau de interesse que apresentam para a investigao histrica. Se, por um lado, o estudo desses dois grupos pode oferecer muitas comparaes sobre a ndole, os costumes e usos entre os Negros e os ndios, que sem dvida contribuiro para o aumento do interesse

MARTIUS, Karl Friederich von. Como se deve escrever a histria do Brasil. RIHGB: 6, 1844, p. 392.

19 que nos oferecer a obra2, por outro, um destaque particular dirigido aos indgenas, habitantes primitivos do territrio. A estes dedicada uma ateno especial, instigando o naturalista a perguntar-se acerca de sua historicidade questo no levantada para a populao negra. Como ele sugere, o futuro historiador do Brasil, estendendo as suas investigaes alm do tempo da conquista, perscrutinar a histria dos habitantes primitivos do Brasil, histria que por ora no dividida em pocas distintas, nem oferecendo monumentos visveis, ainda est envolta em obscuridade, mas que por esta mesma razo excita sumamente a nossa curiosidade3. Sem marcas visveis de historicidade, segundo os parmetros da cultura histrica oitocentista, essa populao parecia se encontrar em um eterno presente, impossibilitando que o investigador pudesse, atravs dos mtodos propriamente histricos (como os utilizados para a investigao da influncia portuguesa), esclarecer seu passado. Para von Martius, estes grupos humanos constituam um verdadeiro enigma (Rtsel) a ser decifrado, e, mediante procedimentos especficos de investigao, seria uma tarefa de suma importncia ao historiador brasileiro inseri-los em um tempo histrico, tornando-os, assim, inteligveis a essa Razo iluminista4. Para Martius, em suma, o historiador brasileiro no poderia deixar de ser tambm um etngrafo. Esse topos do enigma ou obscuridade da histria indgena se mostraria uma questo recorrente e importante em diferentes autores no decorrer do sculo XIX, permeando as relaes estabelecidas entres dois campos de saberes em constituio: a Histria e a Etnografia. Concomitante elaborao de um projeto historiogrfico nacional, surgia como um problema a ser resolvido a aparente falta de historicidade dos ndios brasileiros. No relatrio anual dos trabalhos do Instituto Histrico e Geogrfico Brasileiro, escrito em 1841 pelo Cnego Janurio da Cunha Barbosa, a questo vem colocada logo de incio, quando o Secretrio justifica a coleo de manuscritos que a instituio vinha publicando em sua revista:

Notareis nessa coleo que nos temos particularmente ocupado do que diz respeito aos indgenas; porque sendo muito obscura a histria da Terra de Santa Cruz em sua descoberta, e convida investigar o grau de civilizao a que haviam chegado os povos do novo Mundo antes de aparecerem s vistas de seus descobridores, fora era que nos

Idem. Ibidem. p. 406. Idem. p. 392. 4 GUIMARES, Manoel Luiz Salgado. Histria e Natureza em von Martius: esquadrinhando o Brasil para construir a nao, in: Manguinhos- Histria, Cincias, Sade. Vol. II, Jul-Out, 2000, p. 404.
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costumes dos ndios procurssemos o fio, que nos deve conduzir a tempos muito anteriores.5

Posicionamento parecido ter Varnhagen. Em artigo publicado na mesma revista, versando sobre a importncia do estudo das lnguas indgenas, ele sugeria a criao por parte do IHGB de uma seo de etnografia, a qual se ocupar dos nomes das naes (com a sinonmia quando a houver), suas lnguas e dialetos, localidades, emigraes, crenas, arqueologia, usos e costumes, os meios de os civilizar, e tudo mais tocante aos indgenas as noes geognsticas, e conjecturas geolgicas que possam esclarecer a obscura histria deste territrio antes de seu chamado descobrimento6. Gonalves Dias, por sua vez, em um texto tambm apresentado ao Instituto, reconhecia que pouco se poder dizer de um povo sem meios nem possibilidade de transmitir os seus atos posteridade, - e cujas recordaes no passam alm da memria de um homem, ou das tradies de uma famlia, - tradies, que de ordinrio reciprocamente se contradizem (...). Todavia, seguia o autor, desvendar o enigma da origem desses povos mostrava-se uma questo essencial: questo que sem dvida do mais alto interesse, mas que poderia levar o investigador a perder-se no labirnto inextricvel das pocas primitivas da histria7. A curiosidade de que falava Martius mostrava-se, portanto, um sentimento compartilhado por diferentes letrados, os quais tinham como interesse principal a construo de uma histria nacional. Com o objetivo de melhor entendermos a natureza dessa curiosidade, podemos levantar como hiptese inicial que sua origem se devia a uma recusa por parte desses autores de conceber as sociedades indgenas fora das referncias histricas. Para esses letrados, envolvidos na elaborao do que denominamos conscincia histrica moderna, os limites da alteridade se manifestavam justamente nessa recusa, pois, no processo mesmo de construo de sua tradio, configuravam as condies de possibilidade para se pensar o outro8. Porm, para transformar esta curiosidade em conhecimento
BARBOSA, Janurio da Cunha. Relatrio dos trabalhos do Instituto durante o terceiro anno social, RIHGB, Tomo III, 1841, p. 431. 6 VARNHAGEN, Francisco Adolpho de. Sobre a necessidade do estudo e ensino das linguas indigenas do Brazil, RIHGB, Tomo III, 1841, p. 49. 7 DIAS, Gonalves. O Brasil e a Oceania. RIHGB, Tomo XXX, 1867, pp. 7-9. Texto lido na presena do imperador. 8 O conceito de tradio aqui utilizado liga-se s reflexes de LENCLUD, Grad. Quest ce que la tradition? , in : DETIENNE, Marcel (org). Transcrire les mytologies. Op. Cit.; o qual segue, por sua vez, os horizontes abertos por GADAMER, Hans-Georg. Verdade e Mtodo. Traos fundamentais de uma hermenutica filosfica. Petrpolis: Vozes, 2001. O conceito de tradio, nessa perspectiva, no se refere nem a uma herana imposta aos seus herdeiros, nem a uma simples e livre inveno. A proclamao da tradio necessria, mas no suficiente. Em parte ela uma opo, as pessoas escolhem suas filiaes e referncias de pertencimento; contudo, deve-se levar em considerao tambm a condio inalienvel de ser-afetado pelo passado. Uma
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21 cientfico, em um saber ordenado e, ao mesmo tempo, ordenador, os estudiosos deveriam recorrer a procedimentos especficos de anlise, que no aqueles utilizados comumente (ou, antes, que estavam em processo de discusso e implantao) na investigao da histria nacional9. A organizao desses procedimentos estaria a cargo de uma cincia etnogrfica, capaz de desvendar o enigma representado pelos primeiros habitantes do Brasil. Esta prtica etnogrfica forneceria as regras de investigao e um quadro interpretativo atravs do qual os selvagens, seu objeto por excelncia, pudessem se tornar inteligveis, numa operao que visava sempre relacion-los e posicion-los frente ao processo histrico da nao brasileira.

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bem conhecido o papel desempenhado pelo Instituto Histrico e Geogrfico Brasileiro na formao de um discurso historiogrfico nacional. Em meio aos debates ali travados, um conjunto de temas e de regras foi estabelecido como componentes discursivos que permitem identificar a construo de uma determinada retrica da nacionalidade10. Fazendo uso desses elementos retricos, os letrados do Segundo Reinado estabeleciam uma relao com o passado pr-Independncia, cujos traos esforavam-se em resgatar, arquivar e publicar em sua revista. Com essa operao, que visava, em um primeiro momento, tornar possvel a escrita de uma futura e necessria histria do Brasil, esses letrados, como j ressaltamos, tambm estavam estabelecendo uma tradio11. Materializada atravs de textos como os de Anchieta, Nbrega, Vieira, Soares de Souza, Gandavo, entre tantos outros, esta tradio permitia tornar inteligvel um passado que deveria ser entendido agora enquanto nacional. Portanto, atravs da leitura, crtica e publicao desses autores coloniais, os letrados do IHGB podiam selecionar e valorizar certas caractersticas que pr-figuravam o devir do Imprio do Brasil, como uma unidade histrica e poltica que se efetivava enquanto realidade no momento mesmo de sua enunciao.

tradio sempre inventada ou recriada tradicionalmente, por assim dizer. A tradio , em suma, uma resposta, encontrada no passado, a uma questo colocada no presente. 9 Sobre os procedimentos de escrita da histria no IHGB e seus debates, cf. CEZAR, Temstocles A. C. Lcriture de lhistoire au Brsil au XIX sicle. Essai sur une rhtorique de la nacionalit. Le cas Varnhagen. Paris, HESS, 2002. 10 Uso aqui o termo proposto por CEZAR, Temstocles. Lcriture de lhistoire au Brsil au XIX sicle. Op. Cit. 11 Essa relao que envolvia um trabalho erudito que culminava na transformao desses textos em fontes, pode ser acompanhado em SILVA, Tase Tatiana Quadros. A Reescrita da Tradio: a inveno historiogrfica do documento na Histria geral do Brasil de Francisco Adolfo de Varnhagen (1854-1857). Dissertao de mestrado apresentada ao Programa de Ps-Graduao em Histria Social da Universidade Federal do Rio de Janeiro, 2006.

22 Essa relao entre o estabelecimento de uma tradio e a construo de um sentido para a histria do Brasil pode ser estendida, igualmente, para a formao de um discurso etnogrfico no IHGB. Como a passagem j citada de Janurio da Cunha Barbosa evidencia, a publicao de manuscritos na revista do Instituto privilegiava assuntos que dissessem respeito
s populaes indgenas. No movimento que orientava a apropriao dos textos coloniais como

fontes, pode-se perceber como os letrados do Segundo Reinado utilizaram-se desses mesmos textos inserindo-os num debate cujos contornos se desenhavam de maneira homloga construo de uma histria e de um projeto para o Brasil. Portanto, assim como a constituio de uma tradio possibilitava a construo de um sentido para o passado nacional, pode-se dizer que essa mesma tradio ofertava aos letrados do IHGB determinadas referncias que tornavam possvel um investimento discursivo sobre as sociedades indgenas As expectativas que configuravam esse debate tiveram ressonncias diretas no modo como os letrados se relacionavam com o passado, ao mesmo tempo em que esse passado limitava e possibilitava as justificativas de ao no presente12. O objetivo deste captulo analisar o modo como o saber etnogrfico foi construdo dentro do IHGB e qual a relao que manteve com o discurso histrico em formao. O argumento que procurarei apresentar centra-se em dois pontos. Primeiro, que a formao da etnografia como um discurso relativamente autnomo no IHGB, seguindo modelos de investigao e de enunciao especficos, se caracterizou por uma restrio do objeto etnogrfico na figura do selvagem. Esta restrio, longe de ser necessria, foi uma opo ou um constrangimento diante de um projeto de nao no qual a tematizao de um povo brasileiro, homogneo e indiferenciado, como fiador da soberania nacional, no interessava ser colocada. Enquanto que em outros pases europeus, como aponta Anne-Marie Thiesse, o etnogrfico, em sua expresso folclrica, filiou-se desde cedo ao investimento de criao de elementos simblicos da nao moderna, no Brasil Imperial ele no apenas significou um silenciamento quanto aos escravos, como tambm no se estendeu ao popular13. Esta restrio do objeto etnogrfico remete ao prprio projeto historiogrfico do IHGB, cujo interesse maior era estabelecer um elo de continuidade civilizadora entre o Estado Portugus e o Imprio do Brasil. A legitimidade da nao que se procurava construir estaria vinculada antes a esse papel civilizador desempenhado pelo Estado, construtor da ordem, do que pela busca das origens de um povo brasileiro.

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KOSELLECK, Reinhart. Espao de experincias e horizontes de expectativas: duas categorias histricas, Futuro passado, Op. Cit., pp.305-328 . 13 THIESSE, Anne-Marie. Fices criadoras : as identidades nacionais, Anos 90, Porto Alegre, v. 15, 2001.

23 O segundo ponto do argumento diz respeito ao modo de atuao desse saber etnogrfico, onde se apresenta um segundo nvel de relao com o discurso histrico. Como os exemplos acima indicam, o topos do enigma da histria indgena foi um motivo retrico constante para os letrados do IHGB. A formao do discurso etnogrfico constituiu-se justamente como um modo de atribuir historicidade s populaes indgenas. Um investimento que possibilitava tanto a construo de uma inteligibilidade sobre aquele objeto, como a elaborao de argumentos em torno das polticas a serem adotadas. De um lado, o resgate de um passado prprio ao selvagem se situava em uma discusso cujos referentes eram os definidores de uma concepo de humanidade; mais especificamente, de um homem liberal cristo, designado por conceitos como propriedade, religiosidade e liberdade. A alteridade indgena era, desse modo, domesticada atravs da aplicao de conceitos oriundos da tradio formadora daquela sociedade imperial14. De outro lado, a busca do passado indgena tornava-se uma arena de luta na medida em que ofertava argumentos cuja validade estaria pautada na legitimidade social atribuda Histria. A sustentao de um juzo acerca da possibilidade ou no de integrar as populaes indgenas a um projeto de nao e, por conseguinte sua histria, dependia do passado que fosse trazido luz, assim como dos modos de provar a sua veracidade. essa funo que caberia etnografia: fornecer um discurso sbio sobre o passado de sociedades que, aparentemente, seriam desprovidas de histria. Ainda que operacionalmente separados, os discursos etnogrfico e histrico mantiveram desde sua constituio dentro de um espao de saber moderno uma relao bastante prxima e, como vimos, mesmo complementares. No caso brasileiro, como o percebeu Martius, essa relao se mostraria intensificada devido necessidade desses letrados em lidarem com as alteridades internas ao Estado nacional. O historiador brasileiro tambm deveria ser um etngrafo, ainda que por constrangimentos epistemolgicos e polticos prprios ao Segundo Reinado esses saberes tivessem que ocupar espaos distintos. De todo modo, as respostas que a etnografia pudesse dar questo da obscura histria indgena teriam implicaes diretas tanto no processo de construo de uma histria nacional, como nas aes que o Estado deveria realizar em relao a essa alteridade interna. Envolvia, portanto, uma luta de representaes. Para uma mesma questo, houve diferentes respostas.

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GADAMER, Hans-Georg. Verdade e Mtodo. Traos fundamentais de uma hermenutica filosfica. Op. Cit.

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1.1 Martius, o olhar estrangeiro e o dilema nacional

Ao analisar as relaes estabelecidas no Brasil oitocentista entre Etnografia e Histria, uma questo surge logo de incio: como pensar a dualidade aqui/l para o caso brasileiro? A formao de um discurso etnogrfico foi, em parte, motivado pelo contato do mundo europeu com a selvageria Americana e Africana15. A operao que resultava em um lucro de signos (Certeau) estava pautada justamente nessa fronteira entre o eu e o outro que possibilitava um trabalho de retorno. O prprio von Martius, como um homem fronteira, estabeleceu sua narrativa sobre essa estrutura16. As experincias de ida e de volta aparecem como momentos importantes de sua escrita. Tout rcit de voyage en recouvre un autre, linfini17. De fato, o olhar do viajante jamais se realiza de forma autnoma e independente. A realidade, como bem observou Halbwachs, que jamais estamos ss18. Fazer a viagem requer sempre uma preparao prvia por parte do viajante, que, ao se colocar na expectativa de ir ao encontro do desconhecido e do longnquo, no deixa de reforar os laos que o ligam ao solo de origem19. Martius e sua comitiva, antes de partirem em direo Amrica, passam por Veneza, cuja viso evoca a involuntria recordao de imortais poetas e artistas da Europa. Naquela clebre cidade, como destaca Guimares, eles resgatam a memria de cones de uma ptria europia, a qual os viajantes naturalistas vo deixando para trs e cujos traos e vestgios buscaro reconhecer a cada nova etapa da viagem: Gibraltar, primeira etapa da viagem, tambm para von Martius a evocao dos limites das realizaes da Antigidade; o sul da

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Para uma anlise do lugar da frica nesse discurso, cf. JACQUES, T. Carlos. From savages and barbarians to primitives: Africa, social typologies, and History in eighteenth-century french philosophy, History and Theory, vol. 36, 1997, pp. 190-215. 16 Hartog define esses homens fronteira, para a experincia grega, como aqueles que delineiam os contornos duma identidade grega, compreendida como esse limite ao qual no corresponde, em realidade, nenhuma experincia. HARTOG, Franois. Memria de Ulisses. Narrativas sobre a fronteira na Grcia Antiga. Belo Horizonte: UFMG, 2004, p. 15. 17 LESTRINGANT, Frank. Jean de Lry ou linvention du sauvage. Op. Cit. p. 14. 18 Mais nos souvenirs demeurent colletifs, et ils nous sont rappels par les autres, alors mme quil sagit dvenements auxquels nous seul avons t ml, et dobjets que nous suls avons vus. Cst quen ralit nous ne sommes jamais seul. HALBWACHS, Maurice. La mmoire collective. Paris : Albin Michel. 1997. p. 52. Convm acrescentar com o autor que nossas memrias s podem ser coletivas na medida em que as categorias de percepo tambm o so, remetendo s referncias prprias tradio ou, nas palavras de Halbwachs, aos quadros sociais a que o sujeito pertence. 19 Acompanharei, aqui, o artigo de GUIMARES, Manoel L. Salgado. Histria e Natureza em von Martius. Op. Cit.

25 Espanha, um prenncio do que os aguardava do outro lado do Atlntico20. O olhar do viajante, na mesma medida em que se desloca do conhecido ao desconhecido (ou ao esperado), vai se filiando a uma tradio, a um lugar de pertencimento21. Enquanto percorre o espao, ele no deixa de remeter a um tempo e a uma memria, que a sua. Chegando Amrica, eles logo se deparam com a alteridade. Por mais que a praa do Rio de Janeiro se assemelhasse em alguns aspectos com as cidades europias, principalmente em sua arquitetura, a presena negra vem denunciar aos olhos do viajante, de imediato e por surpresa, que eles se encontram em um outro mundo: O que, entretanto, logo lembra ao viajante que ele se acha em um estranho continente do mundo, sobretudo a turba variegada de negros e mulatos (...). Esse aspecto foi mais de surpresa do que de agrado. A natureza inferior, bruta, desses homens importunos, seminus, fere a sensibilidade do europeu que acaba de deixar os costumes delicados e as formas obsequiosas da sua ptria22. Que contrastes no teriam vivenciados esses viajantes ao deixarem Veneza, cidade-smbolo de uma esttica ocidental, para encontrarem em uma cidade colonial aquela profuso de negros e mulatos! Os costumes delicados e as formas obsequiosas de sua ptria, frutos de um longo processo civilizador, tornavam aquele cenrio como algo repulsivo a seus sentidos23. A partir desse primeiro choque inicial, o momento de espanto, segue-se toda uma trajetria, onde o Brasil, de suas cidades litorneas s tribos incrustadas no serto e nas magnficas florestas tropicais, descortina-se, pela escrita, aos olhos treinados desses viajantes. Do choque, passa-se inteligibilidade, sob a mediao do olhar ordenador do naturalista24. A partida, a estada e, no menos importante, a volta. Para que essa economia da viagem produza efeitos, faz-se necessrio o trabalho de retorno25. Em 23 de agosto de 1820, aps trs anos de percurso, Martius avista o porto de Lisboa. Estava novamente em casa. Ao retornar de um mundo onde a natureza reinava soberana, influindo fortemente na constituio daquela sociedade, avistava-se agora com o seu oposto: Vindos de um pas ao
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Idem, Ibidem, p. 397. LNCLUD, Grard. Quand voir, cest reconnatre. Les rcits de voyage et le regard anthropologique, in: Enqute, N. 1, Paris, 1995. Como destaca o autor, entre o olho e o objeto sempre se interpe um esquema conceitual antecipativo que organiza a viso. 22 Apud: GUIMARES, Manoel L. S. Histria e Natureza em von Martius. Op. Cit. p. 397. 23 Vale notar que essa mesma experincia de choque foi vivenciada por outro viajante que teria uma importncia fundamental no sculo XIX, Ferdinand Denis. Como destaca Costa Lima, a repugnncia que lhe causaram os costumes da sociedade tropical, provoca uma curiosa seleo: impressiona-lhe apenas a natureza, a ela que dedica seu entusiasmo e nela que encontra o meio para a autonomizao da literatura. LIMA, Luiz Costa Lima. O Controle do Imaginrio. Razo e Imaginao nos tempos modernos. Rio de Janeiro: Forense Universitria, 1989, pp. 133-134. 24 PRATT, Mary Louise. Cincia, conscincia planetria, interiores, in: Os olhos do Imprio. Relatos de viagem e transculturao. Bauru: Edusc, 1999. 25 HARTOG, Franois. Memria de Ulisses. Narrativas sobre a fronteira na Grcia Antiga. Op. Cit., p. 27.

26 qual falta a histria, vamos-nos transportados por entre monumentos histricos de um povo laborioso; sentamo-nos de novo na Europa... e na manh seguinte, profundamente emocionados, pisamos sobre solo ptrio em sentido lato26. O reencontro com o solo europeu significava um retorno histria, aos marcos de civilizao que formavam sua identidade. A mesma ptria que fora evocada no momento de contato e de choque frente alteridade, agora novamente experimentada. Mas ser que, de fato, seria a mesma ptria? De qualquer forma, o trao que a distingue se torna mais claro: o lugar da histria. L, como destaca o viajante, o passado visvel e, mais do que isso, a base da constituio de uma identidade e de uma memria, que a sua. Do mundo da natureza, onde faltava a histria, ao mundo da cultura: Martius agora testemunha de uma realidade selvagem que pode ser relatada conscincia europia. Seu texto circular, as fronteiras sero reconhecidas, o engendramento da histria continua27. Mas como os brasileiros, esse recm criado sujeito de uma nacionalidade, poderia se apropriar do discurso etnogrfico e, com sua estrutura binria, fazer um trabalho de retorno28? Certamente, no haveria nenhum porto no velho continente para o qual pudessem voltar e se sentir em casa. Como, ento, delimitar as fronteiras? Como estabelecer seu objeto? Seria este concentrado apenas nos selvagens? Mas no seriam estes tambm, na sua condio de primeiros habitantes, brasileiros? O l no seria parte constituinte do c? E se assim fosse, no anularia aquele eixo axial sobre o qual se fundamenta a operao etnogrfica? Dever-se-ia encontrar um meio de diluir as fronteiras, tornando o outro parte do ns, ou, ao contrrio, caberia justamente um investimento de delimitao dessas fronteiras para que as partes no se confundissem? O prprio Martius, em sua dissertao premiada pelo IHGB, reconheceria e proporia algumas solues a esses dilemas, delineando um projeto historiogrfico (e etnogrfico) que

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Apud: GUIMARES, Manoel. Histria e Natureza em von Martius, Op. Cit. p. 403. A respeito dessa experincia da viagem em Martius, cujo investimento em conhecer o outro est voltado tambm para um retorno sobre si, pode-se encontrar sua maior expresso na Viagem de Goethe Itlia, publicada originalmente em 1816. Em seu relato, assim se expressa o clebre viajante quando se encontrava finalmente na cidade desejada: Agora posso confess-lo; ultimamente, eu sequer podia ver um livro em latim ou um desenho de uma regio qualquer da Itlia. O desejo de ver este pas estava mais do que maduro; satisfeito esse desejo, a perspectiva de rever os amigos e a ptria volta agora, do fundo do corao, a me enternecer, e meu retorno faz-se desejvel, tanto mais porque estou certo de que levo comigo tantos tesouros no para uso e proveito prprio, mas para que sirvam de guia para mim e para outros tambm, e pela vida toda. GOETHE, J. W. Viagem Itlia. So Paulo: Cia. das Letras, 1999, p. 148. 28 Como destaca Mattos, somente com os eventos mais prximos emancipao poltica de 1822 que a noo de brasileiro parece se encontrar pela primeira vez com a de Brasil, anunciando a constituio de um corpo poltico. MATTOS, Ilmar R. de. Um Pas Novo: a formao da identidade brasileira e a viso da Argentina, in: Brasil-Argentina. A viso do outro. Braslia: Funag, 2000, pp. 57-95.

27 possibilitasse subsumir as diferenas em uma suposta e almejada unidade-plural29. , em parte, na busca desse princpio unitrio, condio inalienvel do conceito moderno de nao, que os letrados do IHGB concentraro seus esforos. No entanto, o referente maior que garantiria a legitimidade da unidade nacional segundo os parmetros modernos, identificados com a Revoluo Francesa, permaneceria cindido, marcando a especificidade da relao entre histria e etnografia no Brasil imperial. A dificuldade, ou mesmo impossibilidade de delimitar simbolicamente o povo como fiador da soberania nacional30, teria como efeito correlato a restrio do objeto etnogrfico na figura do selvagem, caracterizando seu discurso em torno do humano e seus contornos (entendido em relao a conceitos como propriedade e liberdade). Toda a discusso sobre a questo da catequese e civilizao, mais que sinalizar o interesse do Estado na soluo do problema terra-trabalho, deflagra tambm esses limites31. A malta existiria apenas como objeto dos registros policiais, na tentativa do Estado Imperial de consolidar uma Ordem, ou como personagem esquiva e fragmentada de alguns relatos esparsos32. O negro, por sua vez, objeto comum dos textos etnogrficos produzidos na Europa, seria concebido aqui apenas na sua condio de escravo, ocupando os discursos poltico e administrativo e constituindo um enorme e ruidoso silncio dentro do IHGB33. J o ndio, alm de se tornar emblema do processo de autonomizao da literatura

Refiro-me, aqui, anlise de Benveniste acerca do pronome ns. Segundo o lingista, la personne verbale au pluriel exprime une personne amplifie et diffuse. Le nous annexe au je une globalit indistincte dautres personne. BENVENISTE, mile. Problmes de linguistique gnrale. Paris : Gallimard, 1966, p. 235. 30 Cf. DUSO, Giuseppe. Revoluo e constituio do poder, in: DUSO, Giuseppe (org). O poder. Histria da filosofia poltica moderna. Rio de Janeiro: Vozes, 2005. Segundo o autor, Igualdade e liberdade, as idias que esto se afirmando, devem determinar um povo homogneo, uma nao, na qual no h mais lugar para privilgios, nem diferenas, seno sociais, ligadas diviso do trabalho, diferenas que so funcionais utilidade comum, p. 210. Sobre as dificuldades da Amrica espanhola, mas tambm portuguesa, em adotar esses critrios diante da pluralidade de grupos sociais, conferir as anlises de Jos Carlos Chiaramonte e de Franois-Xavier Guerra presentes in: JANCS, Istvn (org). Brasil: Formao do Estado e da Nao. So Paulo: Hucitec, 2003; assim como o debate travado por PALTI, Elias. El tiempo de la politica, el siglo XIX reconsiderado. Buenos Aires: Silgo Veinituno, 2007 31 Sobre a relao entre discurso etnogrfico e o problema terra-trabalho durante o Imprio, cf. CUNHA, Manoela Carneiro da. Poltica indigenista no sculo XIX, in: Histria dos ndios no Brasil. So Paulo, Cia. das Letras, 1992, pp. 133-154. 32 Alm de relatos de viajantes, como o caso de Saint-Hilaire, que havia afirmado a existncia do Brasil e a inexistncia do brasileiro, h casos como o de Gonalves de Magalhes, em sua memria sobre a Balaiada, que se referiria ao tipo popular que habitava aquela regio. MAGALHES, Gonalves de. Memrias da Balaiada. Novos Estudos CEBRAP, n. 23, maro, 1989. importante notar, desde j, que foi dessa experincia que Magalhes retira o exemplo, posteriormente analisado, que provaria a convertibilidade imediata do indgena aos cmodos da sociedade brasileira. 33 Como analisarei em outro captulo, o negro como problema etnogrfico s aparecer no final do sculo, na pena de Slvio Romero e Nina Rodrigues. Este, por exemplo, falar do problema o negro no Brasil. RODRIGUES, Nina. Os Africanos no Brasil. Braslia: UNB, 2004, p. 24.

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28 brasileira e de tambm ocupar um lugar nos relatos da administrao do Estado, ocuparia, sozinho, a condio de objeto etnogrfico34. Existindo separados no campo social, esses elementos tambm ocupariam lugares diferenciados de enunciao. Melhor dizendo: atribuindo lugares diferenciados de enunciao a esses elementos, poder-se-ia tambm garantir sua distino e hierarquizao no campo social35. No decorrer do processo de consolidao do Estado Imperial, como destaca Ilmar Mattos, competia construir a Nao, devendo-se entender por tal a preservao da existncia da diferenciao entre pessoas e coisas, por um lado, e da desigualdade entre as pessoas, de outro, de tal forma que se uns eram considerados cidados e sditos, outros deveriam ser apenas sditos36. A preservao dessa diferenciao entre pessoas e coisas, assim como da desigualdade entre pessoas, requeria uma distino homloga no campo discursivo. O que me interessa destacar de tudo isso o fato de que nem histria nem etnografia caberia a construo do povo como elemento simblico, legitimador da soberania nacional. O problema da soberania, tal como colocado no Imprio, estava pautado justamente no governo e no equilbrio das diferenas, cuja instncia absoluta de ao decisria cabia ao monarca, atravs do poder moderador. A relao entre os saberes, nesse momento, ser profundamente marcada por esses limites, desenhados na prpria constituio do Imprio do Brasil e suas diferentes ordens hierrquicas. Enquanto o saber histrico era formado tendo em vista a reconstruo de um processo civilizador, focalizado na consolidao do Estado e na centralizao monrquica, o saber etnogrfico, por sua vez, teria sua formao marcada pela busca de historicidade das populaes indgenas, possibilitando uma chave de leitura com a qual pudessem posicion-las no corpo social em construo.

1.2 A escrita da nao: IHGB e os limites da etnografia

O debate etnogrfico no perodo imperial concentrou-se, basicamente, nos limites do Instituto Histrico e Geogrfico Brasileiro, fundado em 1838. Se a criao de uma seo dedicada exclusivamente s pesquisas arqueolgica e etnogrfica s ocorreu em 1847, efetivando-se em 1851, a presena de artigos e debates sobre essas temticas remonta s suas
Sobre a presena dos indgenas nesses relatos e sua relao com o discurso etnogrfico, cf. KODAMA, Kaori. Os filhos da brenhas e o Imprio do Brasil: a etnografia do Instituto Histrico e Geogrfico do Brasil (18401860). Tese apresentada ao Programa de Histria Social da Cultura da PUC-Rio, 2005. 35 BOURDIEU, Pierre. A fora da representao, in: A economia das trocas lingsticas, Op. Cit., pp. 107116. 36 MATTOS, Ilmar R. de. Tempo Saquarema. So Paulo: Hucitec, 2004, p. 165.
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29 primeiras reunies37. Como indicam os textos de autores como Janurio da Cunha Barbosa e Raimundo da Cunha Matos, scios-fundadores do Instituto, a elaborao de um projeto historiogrfico para a nao brasileira estaria diretamente vinculada reflexo sobre a condio do selvagem e qual a posio que ele deveria ocupar nesse empreendimento. O modo como essa reflexo foi configurada diz respeito prpria formao de um discurso etnogrfico no Brasil, delimitando suas caractersticas e restries. A criao do IHGB, proposta por integrantes da Sociedade Auxiliadora da Indstria Nacional (SAIN), visava a construo dos referentes simblicos em relao aos quais o Brasil e o brasileiro poderiam e deveriam ser pensados, garantido-lhes tanto um passado quanto um futuro. Aps o processo de emancipao e em meio aos debates entre Exaltados, Moderados e Restauradores, que movimentaram as dcadas de 1820 e 1830, o IHGB veio a se constituir como mais um locus do exguo espao pblico em constituio, onde os projetos polticos procuravam ser legitimados por meio de uma acirrada luta de representaes, envolvendo noes como Estado, sociedade, liberdade, revoluo, representatividade, etc38. Sua consolidao como um lugar de saber, no decorrer das dcadas de 1840 e 1850, convergiu com o processo de centralizao do Estado e o abrandamento das discusses referentes s identidades polticas, tal como ocorrido nos anos ps-Independncia. Nessa transio entre um debate sobre o brasileiro-cidado para a construo de uma nao brasileira, como destaca Ivana Lima, interpe-se a construo de um Estado que parece tomar para si a tarefa de conceber a identidade nacional 39. Essa mudana, que define o papel a ser desempenhado pela instituio, concretizada quando sua sede instalada no pao Imperial, em 1849, tornando-se o Imperador seu patrono e freqentador assduo. A maioria dos scios-fundadores do Instituto ocupava funes no aparelho do Estado, sendo parte significativa nascida ainda em Portugal e vinda para o Brasil durante o processo de interiorizao da metrpole40. Pertenciam, em grande parte, aos quadros polticos moderados, compartilhando, como destaca Marco Morel, um liberalismo muito prximo

A aprovao da criao de uma seo de etnografia foi publicada na Revista do Instituto, em 1847. A seo seria dirigida por Manoel de Arajo Porto-Alegre (como diretor da seo de arqueologia) e composta por Francisco Freire Allemo, Jos Joaquim Machado de Oliveira e Joaquim Caetano da Silva. RIHGB, Tomo 9, 1847, pp. 433-444. 38 MOREL, Marcos. As transformaes dos espaos pblicos. Imprensa, atores polticos e sociabilidades na cidade imperial. (1820-1840). So Paulo Hucitec, 2005. , MATTOS, Ilmar R. de. Op. Cit. , HOLANDA, Srgio Buarque de Holanda. A herana colonial sua desagregao, in: Histria Geral da civilizao brasileira. II. O Brasil Monrquico. O processo de emancipao. Rio de Janeiro, Bertrand Brasil, 1993. 39 LIMA, Ivana S. Cores, Marcas e Falas: Sentidos da mestiagem no Imprio do Brasil. Arquivo nacional, 2004, p. 138. 40 WHELING, Arno. O historicismo e as origens do Instituto Histrico, in: A inveno da Histria: estudos sobre o historicismo. Rio de Janeiro, EUGF/EUFF, 1994.

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30 quele defendido por Guizot, no qual era atribudo ao Estado um papel de destaque na consolidao de uma ordem, transformando a poltica em objeto da Razo, e no das paixes41. Essas caractersticas contribuiriam para que a elaborao de uma identidade diferenciada para a nao brasileira no implicasse em uma concepo de ruptura radical com a antiga metrpole. Ao contrrio, ainda que houvesse um investimento em estabelecer 1822 como um marco fundador (dizia-se mesmo desse evento que seria a nossa Revoluo), o projeto historiogrfico que promoviam visava estabelecer a nova nao brasileira enquanto continuadora de uma certa tarefa civilizadora iniciada pela colonizao portuguesa42. Ao mesmo tempo em que se enunciava a nao, mediante a formulao de conceitos e a produo de saberes como a geografia e a histria, implantava-se tambm um modelo de prtica social, vinculada aos eruditos que ali circulariam, com suas regras de comportamento, suas etiquetas, seus ritos, suas trocas e alianas, que em boa parte pode ser compreendido como uma fuso particular de elementos provindos dos eruditos do antigo regime com a figura do philosophe moderno, iluminista, para quem a Razo (impessoal e atemporal) seria o nico critrio de enunciao. Esta condio mista, por assim dizer, foi expressa, em parte, no prprio modelo de instituio adotado: a Academia. Aqui, no a simples capacidade do sujeito que o legitima a fazer parte da associao, como no caso das Universidades europias que ento se estabeleciam sob um modelo meritocrtico. Eram necessrios, antes, qualificativos que remetiam posio do indivduo na sociedade; as relaes sociais nas quais estava inserido; os capitais (financeiro, poltico, simblico) que possua. Integrar a instituio era uma forma de marcar uma distino, consagrar uma diferena concretizada num savoirfaire, distinguir, enfim, aquele grupo como a boa-sociedade. No deixava de ser, igualmente, no caso brasileiro, um meio de conquistar e acumular capital, um modo de acesso nobilitao atravs dos servios prestados Coroa e, por conseguinte, nao43. Alm de simplesmente consagrar um grupo que procurava impor uma dominao, a associao possibilitava tambm uma expanso condio necessria tanto para a efetivao dessa dominao, como para que o regional pudesse se projetar enquanto nacional44. Consagrao e reproduo, portanto, vieram a configurar esse lugar de saber, fornecendo um modelo do cidado-esclarecido atravs do qual a elite imperial poderia se espelhar,
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MOREL, Marco. Op. Cit. Sobre o liberalismo de Guizot, ver o excelente livro de ROSANVALLON, Pierre. Le moment Guizot. Paris: Gallimard, 1985. 42 GUIMARES, Manoel L. S. Nao e Civilizao nos Trpicos, Op. Cit., p. 6. 43 Esse o caso, por exemplo, de Varnhagen e Gonalves de Magalhes, ambos agraciados com ttulos de nobreza como consagrao de seus trabalhos. 44 O artigo 2 de seu estatuto prev: Procurar sustentar correspondencias com sociedades de igual natureza; e se ramificar nas provincias do Imperio para mais facil desempenho dos fins que se prope. RIHGB, Tomo 1, 1839, p. 22.

31 construindo a prpria imagem em contraposio ao vulgo, ao escravo e, igualmente, ao selvagem. No entanto, dizer que o IHGB, enquanto Academia, se pautava por regras de sociabilidade provindas das sociedades de corte no implica em afirmar a inexistncia de cdigos particulares, debates internos, modos de operar intrnsecos. Ainda que as homologias estruturais entre o espao do IHGB e os demais espaos socais (poltico e econmico) tenham sido bastante estreitas (e a prpria presena do Imperador nas reunies atesta essa re-produo de uma ordem social)45, no se deve negligenciar as caractersticas que especificavam aquele locus de atuao e os dispositivos intelectuais e retricos ali acionados, o que implica, tambm, no atribuir s defesas de posies assumidas pelos participantes meros reflexos ou, ainda, simples compensaes de alguma ordem sobre-determinante46. Afinal, toda argumentao tem como condio bsica de persuaso a pressuposio e a projeo de um auditrio, em relao ao qual ela se constri47. No caso em questo, como se tratava da produo de saberes que se queriam orientados por uma Razo universal e a-temporal, nos parmetros iluministas, a enunciao deveria se basear em cdigos que, em teoria, poderiam ser reconhecidos como reais, verdadeiros e objetivos tanto por adversrios polticos como por pares estrangeiros48. Havia, portanto, regras especficas a serem seguidas, critrios pertinentes aos domnios de saberes em construo, e eram estas regras, assim como a crena na sua validade, que tornava tais saberes eficazes, capazes de exercer efeitos. A eficcia desses saberes estava concentrada em seu potencial criador. Era atravs deles que os letrados procuravam delimitar os contornos espaciais e temporais da nao. A coleta e crtica de documentos, seguindo os parmetros da crtica histrica, e a divulgao de um iderio nacional por meio da histria e da geografia seriam os pilares de atuao do Instituto. Atravs dessas aes, tornava-se crucial, como o exprimia Janurio da Cunha Barbosa em seu discurso inaugural, a nacionalizao da histria, o que se faria tanto pela purificao das produes antecedentes, quanto pelo esforo coletivo de coleta e organizao dos documentos que possibilitassem a escrita da histria sob um ponto de vista

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GUIMARES, Lucia Paschoal. Debaixo da imediata proteo de sua Magestade Imperial: o Instituto Histrico e geogrfico Brasileiro (1838-1889), RIHGB, n. 388, 1995. 46 Como tambm destaca Guimares: Os critrios de admisso, ainda que no deixassem de considerar as relaes sociais e pessoais, passaram a se pautar por parmetros mais objetivos, ligados ao trabalho em uma das reas de atuao do instituto. GUIMARES, Manoel. L. S. Nao e civilizao nos Trpicos. Op. Cit. p. 10. 47 PERELMAN, Cham; OLBRECHTS-TYTECA, Lucie. Tratado da argumentao. A nova retrica. So Paulo: Martins Fontes: 2005. 48 Como destaca ainda Perelman, cada cultura, cada indivduo tem sua prpria concepo de auditrio universal, e o estudo dessas variaes seria muito instrutivo, pois nos faria conhecer o que os homens consideraram, no decorrer da histria, real, verdadeiro e objetivo. Idem, Ibidem, p. 37.

32 eminentemente nacional49. O IHGB apresentava-se, assim, como um centro de clculo na terminologia de Bruno Latour , efetivando um processo de triagem desses materiais que ali se tornariam signos, inscries de um determinado saber50. A instituio das fontes, condio fundamental para a nacionalizao do saber histrico, se processaria em torno de registros escritos, como atas oficiais e relatos de viajantes. Com isso, instaurava-se, ou melhor, reproduzia-se a ciso entre a oralidade e a escrita, atribuindo um valor especial a esta ltima como domnio da histria. sobre os traos escritos, resgatados nas diversas provncias assim como em arquivos europeus, que o historiador nacional poderia reconstruir o processo de implantao da civilizao nos trpicos, resgatando os grandes feitos do passado e estabelecendo uma identidade temporal e territorial para o Imprio do Brasil. Este esforo de construir uma identidade histrica para a nao implicava em buscar uma certa homogeneizao da viso de Brasil no interior das elites brasileiras51. Tal homogeneizao, porm, como j nos referimos, se mostraria problemtica. Nesse processo de atribuir um perfil histrico nao, entrava como questo incontornvel a atribuio de um lugar a esses outros que tambm povoavam o territrio nacional: negros e ndios. Como elementos estranhos civilizao, eles representavam um desafio quele projeto historiogrfico. Contudo, em detrimento do enorme contingente da populao escrava, o foco de ateno dos scios do Instituto acabou por centrar-se apenas na figura do indgena: objeto enigmtico que suscitava aquela curiosidade acerca de sua historicidade. Essa seleo pode ser compreendida se pensarmos dois aspectos: primeiro, o papel crucial da populao escrava para a sustentao de uma ordem econmica pautada na agricultura mercantil, importncia que justamente inibia o levantamento de questes acerca de sua condio, tal como as referentes aos indgenas; deve-se considerar, igualmente, o estatuto do negro na sociedade imperial, cujo esquema classificatrio o situava no como sujeito, mas como objeto, j que no deteria nem liberdade, nem propriedade conceitos definidores do cidado e em torno dos quais se daria a disputa pela convertibilidade ou no do selvagem52. Alm desses

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CEZAR, Temistocles. Lio sobre a escrita da histria. Historiografia e nao no Brasil do sculo XIX. Dilogos, Maring, vol. 8, 2004. 50 LATOUR, Bruno. Redes que a razo desconhece: laboratrios, bibliotecas, colees, in: BARATIN, Marc; JACOB, Christian (orgs). O poder das bibliotecas. A memria dos livros no Ocidente. Rio de Janeiro: UFRJ, 2006. 51 GUIMARES, Manoel L. Salgado. Nao e Civilizao nos Trpicos, Op. Cit. 52 A este respeito, vale citar a passagem do advogado Francisco de Melo Coutinho Vilhena, datada de 1874: o escravo um ente privado dos direitos civis; no tem o de propriedade, o de liberdade individual, o de honra e reputao; todo o seu direito como criatura humana reduz-se ao da conservao da vida e da integridade do seu corpo; e s quando o senhor atenta quanto a este direito que incorre em crime punvel. Esta passagem encontra-se citada no estudo Rafael de Bivar Marquese, onde ele analisa a especificidade d do liberalismo escravista no Brasil e Sul dos Estados Unidos do sculo XIX. MARQUESE, Rafael Bivar de. Governo dos

33 elementos, caberia ressaltar ainda que o escravo tinha no edifcio social uma posio bem definida, o que no acontecia com o indgena. justamente sobre a condio desse indgena e a posio que deveria ocupar no conjunto hierrquico da sociedade imperial que o debate etnogrfico ser concentrado. Como foi dito, as distines que se procuravam manter no campo social requeriam um investimento discursivo similar, o que acabou por produzir, no caso da formao do discurso etnogrfico no Brasil imperial, a restrio do objeto etnogrfico na figura do selvagem.

1.3 A delimitao de um campo de debate.

Logo na quarta sesso do Instituto Histrico e Geogrfico Brasileiro, realizada em 4 de fevereiro de 1839, o Secretrio Geral, Janurio da Cunha Barboza, leu para os scios presentes seis questes que deveriam orientar as discusses da casa. Dessas seis questes, todas devidamente aprovadas, quatro diziam respeito s populaes indgenas e as duas outras versavam sobre o processo de colonizao portuguesa. Os problemas levantados em relao aos primitivos habitantes do Brasil detinham-se nos seguintes pontos: as causas de sua espantosa extino; o que se deveria concluir sobre sua histria, ao momento da descoberta do Brasil; se essa populao era formada somente por grupos nmades, e no primeiro grau da associao, ou se era descendente de alguma das grandes naes do resto da Amrica, guardando traos dessas civilizaes; qual seria o melhor mtodo para se colonizar os ndios (se conviria seguir o sistema dos Jesutas); e, por fim, se a introduo dos africanos teria prejudicado a civilizao dos ndios do Brasil53. Nota-se, a partir dessa seleta lista de indagaes, o grau de importncia dado pelo Instituto para as investigaes que ajudassem a melhor compreender essa populao nativa em sua historicidade, possibilitando, assim, sua correta insero e posicionamento em uma histria nacional em constituio. Dessas questes selecionadas podemos extrair duas preocupaes principais que estaro presentes em diferentes autores que participavam da referida agremiao. Primeiro, uma busca pela especificidade histrica dessas populaes indgenas. Interessava desvendar quais eram suas origens, suas divises, sua constituio, em que estado se encontravam quando da chegada dos portugueses. Para alm da superficialidade do espao, procurava-se

escravos e ordem nacional: Brasil e Estados Unidos, 1820-1860, in: JANCS, Istvn (org). Brasil: Formao do Estado e da Nao. Op. Cit. Cf. tambm MATTOS, Ilmar R. de. O Tempo Saquarema, Op. Cit. 53 BARBOZA, Janurio da Cunha. RIHGB: Tomo I, 1839, p. 61.

34 reconstruir a profundidade do tempo. Mas interessava, acima de tudo, estabelecer um juzo definitivo sobre a questo fundamental: se esses grupos que aqui se encontravam tinham sempre permanecido neste estado de natureza ou, ao contrrio, eram formas decadas ou mesmo degeneradas de civilizaes anteriores. Uma segunda preocupao que nortear os trabalhos a possibilidade ou no de se catequizar a populao que ainda habitava o territrio, e qual seria o melhor mtodo a se adotar. Conhecimento do passado e catequizao, portanto, eram questes que, dentro do IHGB, organizariam o debate acerca da populao indgena, constituindo a base de seu projeto etnogrfico. O discurso etnogrfico desenvolvido no Instituto foi marcado, principalmente, como um modo de dar historicidade s populaes indgenas, sendo em torno dessa historicidade que os letrados buscaram construir argumentos legtimos sobre os modelos de ao a serem adotados em relao aos selvagens. Desvelar a obscura histria desses povos apresentava-se como uma etapa necessria tanto para a escrita de uma histria nacional, como tambm para que se pudesse ter algum juzo seguro sobre as aes adequadas a serem tomadas pelo Estado, j que as possibilidades de ao estariam condicionadas ou, pelo menos, justificadas, de acordo com o desenvolvimento histrico que fosse trazido luz. Degeneradas, decadas ou em permanente estado de natureza, cada uma dessas alternativas implicava em diferentes juzos de valor, assim como em distintas tomadas de posio. Como resumiria j na dcada de 1870 Couto de Magalhes, poca s existiriam duas opes, ou o extermnio ou a assimilao: No h meio termo.54 Embora Couto de Magalhes se situe em um momento j avanado desse debate (em uma espcie de momento de transio, que ser posteriormente analisado), sua formulao sintetiza de forma clara os termos nos quais a formulao do saber etnogrfico foi configurado pelos scios do IHGB.

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MAGALHES, Gen. Couto de. O Selvagem. Op. Cit. p. XXXIII. Como destaca Frank Lestringant, a composio dessas duas opes como alternativas nicas de trato com os selvagens tem seu aparecimento com o abade Prvost e o fracasso das utopias americanas. A escolha, diante dos antropfagos da Amrica ou de outros lugares, estar, da por diante, entre a reduo, maneira dos jesutas do Paraguai, e a destruio. No primeiro caso, o selvagem dobrado fora s regras de uma natureza ideal que se supe terem sido por obliteradas nele pela preguia, pela indolncia e pela perda de memria. No segundo, e a soluo que vai triunfar com Robinson Cruso, o medo se alia ao cinismo ou extrema boa conscincia para abolir no outro a insustentvel proximidade da carne e do sangue. Esse duplo sanguinrio que os persegue deve ser eliminado com urgncia de um pesadelo permanente. LESTRINGANT, Frank. O Canibal. Grandeza e decadncia. Braslia: UnB, 1997, p. 197.

35 Kaori Kodama, em sua recente tese, apontou para o fato de que a etnografia teve sua constituio caracterizada, dentro do IHGB, por uma sobreposio das referncias geogrfica e histrica. Segundo a autora:

a temtica indgena nos estudos tratados pelo Instituto ganhava importncia no s por ser parte do que consistia a compreenso da natureza do pas, o que aportava sem dvida na legitimao territorial, e no papel da geografia no Instituto, tal como deveria preconizar Cunha Mattos ao exigir seu conhecimento, como tambm porque este estudo continha parte do que passava a ser apresentado como a histria deste territrio, e que, nas palavras daquele scio-fundador, deveria revelar a marcha sucessora da civilizao da Terra de Santa Cruz. Ao se incluir o estudo dos indgenas na Histria do Brasil, seria possvel lanar luzes sobre um tempo remoto, onde aquela terra estaria fixada a par com as antigas civilizaes do mundo. Seria assim a partir de uma dupla insero do ndio como objeto de investigao: como elemento da paisagem natural brasileira o que o recorta no espao e como parte da histria dos povos antigos o que o recorta no tempo que se veria legitimado dentro do Instituto Histrico o campo da etnografia55.

De fato, o conhecimento das populaes indgenas convergia, em grande parte, com o interesse de esquadrinhar o territrio nacional, tornando-o uma paisagem familiar aos olhos da elite imperial; uma paisagem na qual o ndio seria inserido. A estreita relao entre conhecimento do territrio e descrio das populaes indgenas, que ainda se fazia presente nas preocupaes iniciais do IHGB, tambm manifestava a proximidade entre um modelo setecentista, vinculado Ilustrao Ibrica, e as prticas discursivas adotadas por letrados como Cunha Mattos, principalmente em seus trabalhos corogrficos. A proposta corogrfica apresentada por Cunha Mattos, ainda que possa ser considerada como um primeiro passo para a criao da etnografia do Instituto, como bem analisou Kodama, no tinha no selvagem seu objeto central. Sua escrita se ocupava do levantamento completo de determinada localidade, incluindo fatores como o ano de fundao da cidade ou vila, sua latitude e longitude, nmero de habitantes, praas, escolas, se os ares so saudveis, enfim, uma vasta lista de elementos que configuravam uma descrio ao mesmo tempo pictrica e instrumental da ocupao do territrio, constituindo-se, segundo Frank Lestringant, a partir de uma mimese parcial (pois restrita a determinada localidade) e minuciosa (pois qualitativa), cujo programa

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KODAMA, Kaori. Op. Cit. p. 46.

36 enumerativo virtualmente infinito56. A especificidade do gnero corogrfico remetia, assim, a uma escrita do espao, atravs da qual poder-se-ia fornecer aos olhos e ouvidos distantes uma imagem em forma de relato. primeira vista, esse modelo de escrita pode parecer como o mais apropriado ao saber etnogrfico. Afinal, etnografia caberia justamente a formulao de um saber acerca de populaes sem-histria, restritas a uma existncia meramente espacial. Contudo, essa aproximao no deve desconsiderar a especificidade que caracteriza a formao do discurso etnogrfico. Este no consiste na mera descrio de povos que ocupam um determinado territrio. A constituio de um saber etnogrfico, dentro de um espao de saber moderno, caracteriza-se, antes, pelo estabelecimento de uma interrogao cuja formulao baseia-se na ruptura instaurada entre o mundo da escrita e o mundo da oralidade, assim como nas conseqncias que essa ciso acarreta para a elaborao da experincia histrica moderna57. O esquadrinhamento do territrio nacional, dentro da diviso de saberes operada no IHGB, seria, cada vez mais, um atributo da cartografia e da geografia, responsveis pela fabricao da idia de espao nacional centrada na noo de unidade territorial e na sua continuidade em relao ao Estado portugus na Amrica58. Esse tipo de relato, segundo a tese de Renato Peixoto, assumiria no decorrer do sculo XIX uma forma voltada cada vez mais para a ordenao e a normatizao, visando antes a subordinao que a simples informao, e onde as regies seriam designadas no mais por sua individualidade, mas pelo seu pertencimento a uma unidade histrica e territorial59. No decorrer do mesmo processo, a etnografia se tornaria um discurso relativamente autnomo, focalizando como nico objeto o selvagem brasileiro e delimitando em relao a esse objeto uma srie de questes que lhe imprimiriam uma configurao prpria. com o prprio Cunha Mattos, como salientou Kodama, que a palavra etnografia vem a ser usada pela primeira vez no IHGB, em sua Dissertao acerca do sistema de escrever a Histria Antiga e Moderna do Brasil60. Aqui, diferentemente de sua escrita corogrfica, o que se procura uma ordenao do tempo. Sua dissertao fazia parte de um debate iniciado com Janurio da Cunha Barbosa, que havia proposto aos scios a formulao das verdadeiras pocas da histria do Brasil. Nas reunies
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LESTRINGANT, Frank. Corographie et paysage a la Renaissance, in: crire le monde la Renaissance. Quinze tudes sur Rabelais, Postel, Bodin et la littrature gographique. Caen: Paradigme, 1993. 57 CERTEAU, Michel. A escrita da histria. Op. Cit.; DUCHET, Michle. Le partage des savoirs. Discours historique, discours ethnologique. Op. Cit. 58 A este respeito, cf. a tese de PEIXOTO, Renato Amado. A mscara da medusa: a construo do espao nacional brasileiro atravs das corografias e da cartografia no sculo XIX. UFRJ, 2005. 59 PEIXOTO, Renato Amado. Op. Cit. p. 12. 60 MATOS, Raimundo da Cunha. Dissertao acerca do systema de escrever a Historia Antiga e Moderna do Imperio do Brasil, RIHGB, Tomo XXVI, 1863.

37 seguintes, alm de Cunha Matos, o general Jos Incio de Abreu e Lima, Jos Lino de Moura e Jos Silvestre Rebelo dariam continuidade ao debate, apresentando cada um uma proposta de periodizao61. O que se visava com esse debate era a delimitao de um sentido para a histria nacional, uma espcie de estrutura de enredo a partir do qual a pesquisa histrica pudesse ser realizada e, posteriormente, escrita62. A exemplo do que j havia sugerido Janurio da Cunha Barbosa, Cunha Matos apresentou uma classificao aberta, porm clara, dessa temporalidade nacional:
Eu abraarei de boa vontade a opinio do nosso ilustre secretrio perptuo, acerca da diviso das pocas da histria do Brasil, por ach-lo conforme ao de diversos escritores antigos e modernos. Sejam trs as pocas da nossa histria: na 1 trata-se dos aborgenes ou autctones; em 2 compreendam-se as eras do descobrimento pelos portuguezes, e da administrao colonial; e a 3 abranjam-se todos os conhecimentos nacionaes desde o dia em que o povo brasileiro se constituiu soberano e independente, e abraou um sistema de governo imperial, hereditrio, constitucional e representativo.

O modelo de periodizao mais eficiente, elaborado nessas reflexes iniciais do IHGB, acabou por se fixar em torno das trs pocas: descrio do estado dos indgenas antes do descobrimento; descobrimento e colonizao; e, por fim, a independncia. Uma classificao aberta, sem dvida, mas que no deixava de remeter a um sentido claro, servindo de suporte a uma futura escrita da histria nacional que tivesse por inteno esclarecer a formao da nao brasileira, desde suas origens at o sentido ltimo que era a sua consolidao como um Estado autnomo e independente, nos trilhos da civilizao ocidental. Nessa ordenao do tempo, o indgena teria seu lugar na medida em que era o habitante primitivo do territrio, antes da chegada dos portugueses. O grande problema desse perodo, para esses letrados, era o fato de que no havia documentos escritos que permitissem esclarecer sua histria. Na medida em que a escrita s chegou s terras brasileiras com a nau de Cabral, aquilo que havia ocorrido antes de sua chegada havia se diludo na oralidade indgena. Sobre essa poca, diz o Cunha Matos: Esta parte da histria do Brasil existe enterrada debaixo de montanhas de fabulas, porque cada tribo ao mesmo tempo que apresenta origens as mais extravagantes, no sabem dar razo clara de suas emigraes, e a atual residncia; e para cada uma dellas um sculo dos nossos, a eternidade. A histria dos
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Ver RODRIGUES, Jos Honrio. Teoria da histria do Brasil. So Paulo: Cia. Editora Nacional, 1964 ; e CEZAR, Temstocles. Lio de escrita da histria. Historiografia e nao no Brasil do sculo XIX, Op. Cit. 62 WHITE, Hayden. Trpicos do Discurso. Ensaios sobre a crtica da cultura. So Paulo: Edusp, 1994.

38 nossos aborgenes no tem sido estudada, e ningum pode afirmar autenticamente que os ndios do territrio do Brasil so da mesma raa dos peruvianos, dos chilenos, ou dos habitantes de Nova Granada63. Para Cunha Mattos, portanto, a histria indgena tambm algo que est envolto em obscuridade. Segundo ele, no seria possvel dar crdito nem aos primeiros colonizadores em seus relatos, j que estavam motivados por interesses outros, nem aos prprios indgenas, que no tinham a menor conscincia do que diziam (pois a nica memria que cultivavam era oral, e no escrita, e, portanto, no confivel). Desse modo, caberia ao investigador da histria do Brasil desfazer esse mistrio, esclarecendo, mediante procedimentos especficos de anlise, qual o passado dos aborgenes brasileiros. Vemos a, novamente, a curiosidade em esclarecer a obscura histria indgena. O que eu procuro sugerir aqui que a constituio da etnografia no IHGB viria a ser caracterizada, justamente, como um modo particular de pesquisa histrica. Como disse Cunha Mattos, era a histria dos nossos aborgenes que no havia sido ainda estudada. em funo dessa obscura histria que ele e Janurio da Cunha Barbosa promoveram o estudo da etnografia no Instituto, recusando a no-histria como modo de existncia de grupos humanos64. A necessidade de imprimir uma historicidade aos indgenas, como modo de dar-lhes inteligibilidade, impulsionou a construo de problemas e de mtodos que possibilitassem suprir essa falta. Com o desenvolvimento desse debate, a etnografia vai se consolidando, cada vez mais, em torno dessa questo acerca da historicidade dos indgenas, estabelecendo uma pauta de pesquisa que duraria, pelo menos, at a dcada de 1870. A sobreposio de referncias geogrficas e histricas, identificada por Kodama, talvez tambm possa ser entendida como uma sucesso, do geogrfico para o histrico65. Enquanto que, em um primeiro momento, existia a inteno de mapear a disposio das naes indgenas em relao a um territrio a ser conhecido e governado, dando pouco interesse ao passado histrico desses povos, com o desenvolvimento do debate o que ocorre uma concentrao discursiva sobre a condio histrica desse selvagem e da possibilidade ou no
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MATOS, Raimundo da Cunha. Dissertao acerca do sistema de escrever a histria antiga e moderna do Brasil, RIHGB, Tomo 26, 1863. p. 51. Grifos meus. 64 Cunha Matos, em um texto que s viria a ser publicado postumamente, afirmava: No h povo algum sobre a terra que deixe de saber ou de indagar a histria da sua existncia. Os selvagens da Nova Holanda, e os ndios botucodus; os negros caanges das bordas do Congo, e os jalofos das margens do Senegal; os esquims das terras rticas, e os patages do Sul da Amrica, todos tm tradies, se no to srias como as mui confusas dos indus, e dos chinas, ao menos, quanto bastam para apontarem quais foram os lugares donde seus antepassados vieram; quando se estabeleceram nos pases em que presentemente se acham. MATOS, Raimundo da Cunha. pocas brasileiras ou sumrio dos acontecimentos mais notveis do Imprio do Brasil, RIHGB, Tomo 302, 1974, p. 218. 65 O que no implica que essas duas instncias, tempo e espao, no coexistissem, sempre, no discurso etnogrfico. Ao contrrio, eram conceitos que o tornavam possvel. Porm, o que se sugere que h uma hierarquizao, no qual o tempo assume a posio de um valor central.

39 de convert-lo civilizao66. Na medida em que as alternativas polticas se restringiam ao extermnio ou assimilao, a busca pelo passado indgena assumia uma importncia estratgica, sendo este passado a ser reconstrudo o que qualificaria as atuais populaes indgenas e lhes garantiria, ou no, um lugar no projeto civilizador do imprio brasileiro. Assim, com a definio de critrios retricos que identificassem um discurso como etnogrfico, o que se percebe um movimento duplo, marcado pela restrio do objeto, o selvagem, e pelo direcionamento da reflexo, formando uma espcie de espelho sociolgico, onde este homem civilizado, ao mesmo tempo que procurava fundamentar polticas em torno da mo-de-obra e da estratificao social, estaria confrontando certos conceitos que o definiriam. Isso fica evidente quando se percebe a crescente preocupao desses letrados em discutir temas como a existncia ou no de idias religiosas nas sociedades indgenas, se estas tinham qualquer concepo de propriedade, qual era sua noo de liberdade, de que maneira tratavam o sexo feminino67, etc. Tais objetos de pesquisa remetiam, assim, aos prprios valores que constituam a sociedade imperial, com seu liberalismo cristo. A construo de um discurso sobre o selvagem, por meio da etnografia, no deixava de se apresentar como um modo desse cidado da boa sociedade imperial formular imagens de si prprio, seja por aproximaes, seja por distanciamentos. E na construo desse espelho sociolgico, o problema da historicidade dos indgenas era colocado como uma questo central, pois seria em torno dela que se estabeleceria o critrio maior de inteligibilidade e julgamento, e onde todos os demais valores teriam seu lugar. Afinal, a historicidade tornava-se, para esse homem letrado do sculo XIX, o principal suporte da construo de sua identidade e o ncleo de uma tradio que condicionava a elaborao de sentidos acerca da alteridade.

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Nesse sentido, podemos identificar em Cunha Matos uma espcie de convergncia, na qual se manifestam os dois modelos. 67 OLIVEIRA, Jos J. Machado de. A celebrao da paixo de Jesus Christo entre os Guaranys: (Epysodio de um Diario das campanhas do sul). RHIGB, Tomo IV, 1842; , do mesmo autor, Se todos os Indigenas do Brazil, conhecidos at hoje, tinham ida de uma unica Divindade, ou se a sua Religio se circunscrevia apenas uma mra e supersticiosa adorao de fetiches; se acreditavam na immortalidade da alma e se os seus dogmas religiosos variavam conforme as diversas naes ou tribus? No caso da affirmativa, que differenavam elles entre si?, RIHGB, Tomo VI, 1844.Ainda do mesmo autor, que fazia parte da seo de etnografia do Instituto: Programma sorteado na sesso de 3 de fevereiro de 1842. Qual era a condio social do sexo feminino entre os indigenas do Brasil?. RIHGB, Tomo 4, 1842.

40 1.4 O estado de natureza e a ao pedaggica

Essa pauta de debate, definida entre as dcadas de 1840 e 1860, convergiu para um cenrio no qual, grosso modo, estariam os partidrios da catequizao, ocupados com a defesa da idia de decadncia dos povos indgenas, e os que a negavam, argumentando a incapacidade dos povos selvagens de sair de seu estado de natureza68. No entanto, ainda que possamos mapear essa delimitao de um campo de debate, devemos consider-lo tambm em sua diversidade. Uma leitura atenta desses escritos etnogrficos mostra outras equaes possveis. Apesar de todos os defensores da idia de que as sociedades indgenas eram formas decadas de alguma civilizao mais avanada terem sido, igualmente, defensores da catequizao, encontram-se outros autores que alinhavam a concepo do selvagem como um tipo primitivo com a possibilidade de sua incluso na civilizao. Janurio da Cunha Barbosa, defensor emblemtico da poltica de catequese e promotor dos estudos etnogrficos no Instituto, defendia, em 1840, a opinio de que os indgenas seriam povos recm sados do estado de natureza, sendo justamente essa condio que os tornava aptos converso:

Contudo, para melhor desenvolvimento desta verdade, cumpre lembrar que quase todas as Naes ndias, encontradas nas terras compreendidas entre o Amazonas e o Prata, se devem considerar como compostas de homens apenas sados da natureza; acostumados a sustentar-se dos frutos que encontram em suas divagaes; da caa e da pesca, onde mais abundantes se lhes oferecem, sem domcilio certo, sem ptria, sem leis, sem vestgios de qualquer civilisao. A passagem repentina, portanto, de uma tal gente para o estado social, que supem muitos anos de observaes e de experincia, deve ser quase impossvel, e at mesmo fatal, porque as relaes, em que esto os povos civilizados, assentam sobre bases que totalmente faltam aos nossos indgenas; seus raciocnios so to curtos como suas necessidades; seus hbitos de vida errante e selvagem tem formado neles como uma nova natureza, dificl de vencer-se. Que cumpre pois fazer em tal caso? Aproveitar, do modo possvel, e com toda a prudncia, esses filhos das brenhas, proporcionando-lhes um trabalho compatvel com os seus hbitos de vida, e empregando ao mesmo tempo o maior desvello na educao de seus filhos, nos quais se deve firmar a maior esperana da desejada civilizao69.

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Esse cenrio tambm foi identificado por KODAMA, Kaori. Op. Cit. BARBOSA, Janurio da Cunha. Qual seria hoje o melhor systema de colonisar os Indios entranhados em nossos sertes; se conviria seguir o systema dos Juzuitas, fundado principalmente na propagao do

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O estado de natureza, como o entende Janurio, caracterizado por uma srie de ausncias: sem leis, sem domiclio, sem ptria, os indgenas so pura falta. O selvagem estaria no grau zero de sociabilidade (nomadismo), dominado pelos instintos primrios de sobrevivncia (coleta, caa e pesca). Sua condio est longe de servir como um contraponto idlico da sociedade civilizada; muito pelo contrrio, ela o aproxima da animalidade70. Contudo, necessrio ressaltar que, para o autor, esse estado de natureza no significava que era da natureza do selvagem o pertencimento a essa condio. A distino selvagens/civilizados, tal como operada por Janurio, estava submetida idia central de uma natureza humana singular e universal, sob o prisma do monogenismo cristo. Haveria, sob esta perspectiva, uma relao de continuidade entre os diversos povos da terra, e no propriamente de contigidade71. Da sua preocupao em afirmar, paradoxalmente, uma nova natureza adquirida pelos indgenas. Seus hbitos nmades teriam obliterado o desenvolvimento das bases que fundamentam as relaes civilizadas. Na medida em que suas aes estavam voltadas para a satisfao das necessidades materiais, os selvagens no conseguiam elevar-se, com suas prprias foras, a um estado no qual, dominando a natureza, produziriam a cultura. Dessa constatao, deduz-se a necessidade de direcionar o desenvolvimento das populaes indgenas, indicando-lhes os passos necessrios para a aquisio de um habitus que o projetasse para um estado de civilizao. Da inrcia do estado de natureza, caracterizado pelo movimento espacial, perptuo e sem direo do nomadismo, poderiam passar para o estado civilizado, cujo sedentarismo os lanaria no movimento temporal e ordenado da histria. Logo, se o indgena estava no primeiro grau de associao, isso no equivalia a dizer que ele no fosse capaz, enquanto humano, de adquirir os atributos necessrios civilizao. S no o poderia fazer de modo repentino. A questo chave, a, a prpria idia de
Christianismo, ou se outro do qual se esperem melhores rezultados do que os actuaes.... RIHGB, Tomo II, 1840, p. 5. Grifos meus. 70 TINLAND, Frank. LHomme sauvage. Homo ferus et homo sylvestris de lanimal lhomme. Paris: Payot, 1968. 71 WHITE, Hayden. O tema do nobre selvagem como fetiche, in: Trpicos do discurso. Ensaios sobre a crtica da cultara, Op. Cit. Segundo o autor, tanto as concepes aristotlicas quanto as idias neo-platnicas sobre a relao entre o mundo animal e o humano se estabelecem no modo da continuidade, enquanto que as teorias fisicalistas de Seplveda, Buffon, De Pauw e Linneu so concebidas no modo da contigidade. Geralmente, essa determinao ser ditada pelos interesses do classificador ou seja, se ele deseja construir um sistema em que devam ser acentuadas ou as diferenas ou as semelhanas, e se o seu desejo enfatizar as possibilidades conflituais ou conciliadoras da situao que est descrevendo. Os dois modos de relao, contnuo e contguo, tambm engendram possibilidades diferentes para a prxis: a atividade missionria e a converso, de um lado, a guerra e o extermnio, de outro p. 212. Sobre estes dois esquemas conceituais como organizadores de um olhar etnogrfico, ver tambm LENCLUD, Grard. Quand voir, cest reconnatre. Les rcits de voyage et le regard anthropologique, in: Enqute, N. 1, Paris, 1995.

42 graduao, atravs da qual se naturaliza, se no ainda o processo histrico em si (isso s ocorrer com os trabalhos ps-dcada de 1870), ao menos o processo gentico de formao das sociedades. Do estado de natureza ao estado de civilizao instaura-se uma distncia (e uma distino) de ordem temporal, ainda que no de um tempo universal ao modo das filosofias da histria72. Ao contrrio do que ocorreria quando essa naturalizao do processo gentico das sociedades, prpria das reflexes do sculo XVIII, fosse estendida ao sentido de uma histria da humanidade, cuja singularidade abrangeria toda e qualquer diversidade, a condio de estado de natureza que Barbosa atribui aos selvagens brasileiros no implicava uma naturalizao do tempo histrico como marca de distino. No havia, nesse sentido, uma negao da contemporaneidade73. Sob esta perspectiva, compreende-se a posio de Janurio em conjugar o estado de natureza e a possibilidade da catequese. Esta equao no se mostrava muito problemtica, ainda que fosse uma dificuldade a ser vencida74. Se o estado de natureza tornava necessria a observao de certos constrangimentos (no exigir capacidades que no pertencessem quele estado de formao social e moral), ele tambm possibilitava determinadas aes:

Nestes homens broncos mais fcil a catequese do que em outras Naes, que j possuem algum sistema de Religio. As verdades, que se lhes inculcam, no tem que destruir inveterados prejuzos, herdados de seus primeiros pais; elas, pelo contrrio, encantam pela novidade, e arrebatam pelas solenidades do Cristianismo, que influem respeito e venerao, e muito mais quando so acompanhados de cnticos e instrumentos msicos, de que os nossos indgenas so extraordinariamente apaixonados75.

Como crianas recm sadas das brenhas, os selvagens deviam ser objeto de uma pedagogia, cujo objetivo era torn-los homens civilizados. Mas o que qualificaria, exatamente, o conceito de civilizao? Para Janurio, este conceito identifica-se diretamente com o desenvolvimento da concepo de propriedade privada, fruto do trabalho individual:

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Para uma anlise da elaborao de uma gnese de desenvolvimento das sociedades humanas e sua insero num discurso histrico, implicando uma redefinio temporal da natureza humana, cf. BINOCHE, Bertrand. Les trois sources des philosophie de lhistoire (1764-1798). Paris : PUF, 1994. 73 FABIAN, Johannes. Time and the Other. How anthropology makes its object. New York: Columbia University Press, 1983. 74 DUCHET, Michle. Anthropologie et histoire au sicles des Lumires, Op. Cit., pp.194-226. 75 BARBOSA, Janurio da Cunha. Qual seria hoje o melhor systema de colonisar os Indios. Op. Cit., p. 15.

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Escreve um sabio filsofo moderno, que o estado da Sociedade Civil comeara no mundo, do momento em que se usaram os termos meu e teu. Os Indios, filhos da natureza, ainda no conhecem propriedade; em sua vida nomade todos os bens lhes so comuns; preciso, com muito jeito e prudncia fazel-os entrar na persuaso dos cmodos que rezultam do trabalho, e da posse exclusiva de seus frutos76.

Esta noo de civilizao, tal como presente em Janurio, liga-se diretamente reflexo desenvolvida pelos fisiocratas e economistas do sculo XVIII, para os quais a ao do homem sobre a natureza, portanto o trabalho, o que permite seu desenvolvimento como ser social77. A noo de propriedade privada seria ao mesmo tempo o critrio para avaliar o grau de desenvolvimento de uma sociedade (o nomadismo implica o no reconhecimento dos frutos do trabalho) e um fim a ser buscado por meio de uma estratgia pedaggica. Faz-los entrar na persuaso dos cmodos que resultam do trabalho, e da posse exclusiva de seus frutos significava despertar o interesse, inato ao homem, como um freio s paixes da vida selvagem78. A associao trabalho-propriedade garantiria sociedade a capacidade de prover seu bem-estar e, mais do que isso, ordenar sua existncia no tempo, provendo tambm seu futuro. Os selvagens, como as crianas, seriam desprovidos dessas noes elementares da civilizao79. Eles encontravam-se, em conseqncia, numa relao bastante distinta com o tempo histrico, j que no poderiam lanar-se para alm do presente imediato, assim como no acumulavam nada, nem sequer suas memrias. A falta de trabalho e a falta de propriedade indicariam, ao final, a conseqente falta de historicidade. O carter pragmtico da etnografia concretizava-se, portanto, na formulao de uma pedagogia que possibilitasse o desenvolvimento por parte dos indgenas de noes como trabalho e propriedade. Como resultado, o que se esperava era sua insero numa temporalidade histrica e, ao final, na prpria histria da nao80.
76 77

Idem. Ibidem. p. 16. DUCHET, Michle. Anthropologie et Histoire au sicle des Lumires, Op. Cit.; JACOB, Annie. Civilisations/sauvagerie. Le Sauvage amricain et lide de civilisation , Op. Cit. ; KUPER, Adam. The invention of primitive society. Tranformations of an Illusion. London : Routledge, 1988. 78 HIRSCHMANN, Albert O. As paixes e os interesses. Argumentos polticos a favor do capitalismo antes de seu triunfo. Rio de Janeiro : Record, 2002. 79 Essa idia de uma condio infantil dos indgenas remonta aos trabalhos da escola de Salamanca, cujo objetivo era refutar a idia aristotlica de escravido natural por meio do resgate de uma psicologia, de origem tambm aristotlica, que apontava para a condio infantil dos selvagens do Novo Mundo, legitimando, dessa maneira, o dominium espanhol. Ver PAGDEN, A. La caida del Hombre Natural. Madrid: Alianza Editorial, 1988. Do mesmo autor: Dispossessing the barbarian: the language os Spanish Thomism and the debate over the property rights of the American Indians, in: PAGDEN, A. (org). The languages os political theory in early-modern Europe. New York, Cambridge University Press, 1990. 80 Interessante notar, a esse respeito, a anlise de Henrique Jorge Rebello acerca da populao no Brasil, onde o autor atribui como uma das dificuldades para o aumento dessa populao o pequeno numero de proprietarios

44 Essa concepo dos selvagens que os associava infncia da humanidade, como indivduos recm sados do estado de natureza (ou ainda presos a ela), tambm foi compartilhada por diferentes autores como Jos Joaquim Machado Oliveira, Joaquim Caeteno Fernandes Pinheiro, Francisco Adolpho de Varnhagen e pelo Dr. Lund, de Lagoa Santa. Enquanto os dois ltimos se mostravam bastante cticos quanto possibilidade do selvagem brasileiro ascender ao estado de civilizao, os dois primeiros, a exemplo de Janurio, eram defensores do processo de catequizao. Machado de Oliveira, por exemplo, em texto sobre a condio do sexo feminino entre os indgenas do Brasil, falaria do pequeno crculo que o instinto concedia inteligncia daquelles filhos da natureza selvagem81. Segundo o autor, o selvagem encontrado no territrio brasileiro seria guiado por trs impulsos bsicos: Estes princpios fundamentais que dirigiam a vida material do homem selvagem no seu estado anti-social, ou de restrio de suas faculdades morais, eram o instinto de reproduo o da conservao da vida o de segurana pessoal82. Enquanto que no estado de civilizao encara o homem a necessidade de associar-se, a convenincia do seu bem-estar, a previso do seu futuro, o indgena, em seu estado anti-social, respeita apenas as exigncias da natureza. V-se, assim, a distncia que separa esse letrado filho das luzes desses desgraados filhos do solo brasileiro83. Enquanto que o primeiro capaz de se destacar de seu presente, lanando-se ao futuro, o segundo vive como que enrazado num eterno presente, dominado pelas necessidades materiais. Novamente aqui, a relao particular estabelecida entre as noes de propriedade e de temporalidade, condenando o selvagem a uma no-conscincia de passado e futuro, a uma imobilidade do tempo. Apesar de manifestar uma repulso por este estado de natureza, Machado de Oliveira no deixa de afirmar a necessidade de implantao de uma poltica de catequizao por parte do Estado84. Seria um imperativo moral expandir a ilustrao para as trevas, capacitando aqueles filhos da natureza a sair de seu estado anti-social. Com uma ao do Estado
existentes no pas. REBELLO, Henrique Jorge. Memoria e consideraes sobre a populao do Brasil, RIHGB, Tomo XXX, 1867. 81 OLIVEIRA, Jos Joaquim Machado de. Qual era a condio social do sexo feminino entre os indigenas do Brasil?, RIHGB, Tomo IV, 1842, p. 168. 82 Idem. Ibidem. p. 170. 83 Idem. Notcia raciocinada sobre as aldas de Indios da provincia de S. Paulo, desde seu comeo at actualidade, RIHGB, Tomo VIII, 1846, p. 250. 84 Convm ressaltar, porm, que o mesmo autor, em artigo publicado em 1842, assumia uma posio bastante negativa quanto possibilidade desse selvagem ser inserido na civilizao, ainda que parte dessa condio se devesse ao homem civilizado. Raa degenerada pelo homem civilisado, por elle prostituida, voltada sempre escravido e ignomia, ter de permanecer at a extinco se seu ultimo individuo neste estado de degradao e aviltamento, seja pela sua apoucada intelligencia, ou por essa preocupao tradicional do anathema divino, que suppe-se condemnada. OLIVEIRA, Jos J. Machado de. A celebrao da paixo de Christo entre os Guaranys, RIHGB, Tomo IV, 1842, p. 334. Necessrio notar, ainda, que esse relato tem origem em uma expedio feita pelo autor em 1816, quando o autor era ainda bastante jovem.

45 esclarecido, poder-se-ia inserir esses povos no tempo histrico, na mesma medida em que fossem inseridos na civilizao, ou seja: desenvolvendo-lhes os conceitos necessrios para a garantia de seu bem-estar. com essa inteno que ele finaliza seu artigo sobre as aldeias de So Paulo com uma citao de Delasize: Cest en les clairant et les fcondant, et non point en massacrant les populations indignes, quil doit exploiter les pays quil ajoute au monde connu les peuples quil fait entrer dans la grande familie humaine85. O cnego Fernandes Pinheiro, em suas reflexes sobre o sistema de catequese seguido pelos jesutas, tambm teceu a associao entre o selvagem e o estado de infncia da humanidade86. Ele afirmava, a exemplo de Janurio, que os indgenas seriam abertos catequizao porque na infncia das sociedades o homem eminentemente livre e s se curva a sua altiva fronte perante aquele cujo immenso poder v estampado em cada pgina do grande livro da criao. Explica-se, assim, a teocracia ser a sua forma de governo mais comum, pois adaptad[a] primeira fase da existncia das sociedades87. Esta condio, segue o cnego, deve ser estritamente observada caso se queira que a estratgia de catequizao seja bem sucedida:

O vcio radical de todos os sistemas de catequese at hoje seguidos entre ns o de no ter-se querido atender s diversas fases que ele apresenta. Enquanto o selvagem erra pelas florestas to livre como o vento, que agita os leques das suas palmeiras, o nico poder capaz de atra-lo, fazendo-lhe compreender as vantagens da vida civilizada, o da religio [...] Vem depois a necessidade de plantar em sua inteligncia os primeiros rudimentos das letras e artes [...]88.

Assim como para Janurio da Cunha Barbosa, a condio de estado de natureza no impedia que fosse possvel desenvolver um trabalho de catequizao sobre aqueles povos, ainda que tal trabalho, para ser efetivo, devesse respeitar certos constrangimentos impostos por sua condio infantil. A atribuio dessa condio de primitivos aos indgenas que difere em termos substanciais do conceito de primitivo sob uma perspectiva propriamente evolucionista - no implicava, em momento algum, a concluso de que eles fariam parte de algum tronco destacado do resto da humanidade, nem sequer que fossem irremediavelmente
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Idem, Notcia raciocinada sobre as aldas de Indios da provincia de S. Paulo, desde seu comeo at actualidade, p. 250. 86 PINHEIRO, Joaquim Caetano Fernandes. Breves reflexes sobre o systema de catechese seguido pelos jesutas no Brasil, RIHGB, Tomo XIX, 1859. 87 Idem, Ibidem. p. 381. 88 Idem, Ibidem. p. 395.

46 presos a essa condio. Muito pelo contrrio, era uma preocupao desses autores afirmar que a humanidade era constituda por um tronco nico, ainda que com modos de historicidade distintos, havendo uma relao de continuidade entre os grupos humanos enquanto filhos da criao divina. Era a afirmao desta unidade da natureza humana, dispersa em distintas historicidades, que levava legitimao de uma atitude catequtica. Para esses autores seria possvel (e mesmo necessrio, como um imperativo moral) trazer os selvagens brasileiros para os cmodos da civilizao, incutindo-lhes as noes de religiosidade, propriedade e liberdade conceitos que formavam sua prpria tradio. Para alm de uma existncia circunscrita ao espao, guiada apenas por necessidades materiais, o selvagem poderia aprender a acumular uma memria e a projetar-se no tempo. Ser civilizado tambm uma forma de prever o futuro, dominar o tempo, administr-lo de forma racional. Assim como uma criana capaz de adquirir essas capacidades, tendo conscincia de sua historicidade, segundo esses letrados os indgenas brasileiros seriam igualmente capazes de compartilhar uma tradio, bastando, para isso, uma pedagogia adequada s suas necessidades infantis.

1.5 A reabilitao do selvagem: decadncia como possibilidade de futuro

Apesar desses posicionamentos que associavam um certo primitivismo e catequese, o debate etnogrfico, em meados do sculo XIX, teve como caracterstica marcante uma polarizao. De um lado, existiam autores que buscavam defender a catequese provando que as sociedades indgenas eram formas decadas de civilizaes anteriores, e no primitivos. De outro, especialmente com Varnhagen, procurava-se provar a incapacidade dos selvagens de sair de seu estado de natureza. Assim, por mais que a equao primitivos/catequese tenha sido defendida por alguns autores, pode-se dizer que houve, naquele momento, um campo de debate com tipos de argumentao bem demarcados. Gonalves de Magalhes, Gonalves Dias, Joaquim Norberto, von Martius e mesmo Janurio da Cunha Barbosa (que, apesar de trabalhar com uma noo de primitivos, no deixaria de apontar tambm para a idia de degradao), buscaram, cada um a seu modo, garantir uma outra historicidade para os selvagens, tornando-os restos de civilizaes mais antigas. O que tornava interessante essa qualidade de dacados atribuda aos indgenas, alm de ser mais adequada teoria crist da criao e da revelao, era a concluso, da retirada, de que eles seriam igualmente capazes de constituir uma civilizao, com todos os seus atributos: comrcio, religio, governo etc. Alm disso, grande parte desses autores argumentava que a decadncia tornava mais vivel o

47 projeto de catequizao, uma vez que essas sociedades, em algum momento do passado, j teriam experimentado uma existncia social mais complexa e, por conseguinte, reconheceriam e aprenderiam com mais rapidez as prticas e valores da civilizao. A posse de um passado histrico seria, em suma, a garantia de sua capacidade de fazer parte da tradio ocidental. Varnhagen, por sua vez, ainda que buscasse as origens dos povos selvagens entre os egpcios e crios, no deixaria de afirmar sua excluso definitiva da civilizao, considerando-os como povos invariavelmente sem histria e incapazes de cultivar laos socais. De qualquer forma, para ambos os lados, a investigao que permitiria o esclarecimento e a justificao sobre esses posicionamentos seria de natureza eminentemente histrica. O resgate de um passado para esses povos tornava-se uma maneira de provar a possibilidade de sua converso civilizao, ou, ao contrrio, a sua condenao a um estado de barbrie. O topos da decadncia dos povos indgenas tem como uma referncia importante nesse cenrio a dissertao que von Martius apresentou ao IHGB. Por mais que, como salientou Karen Lisboa, Martius tenha defendido idias que o ligassem, de alguma forma, posio degeneracionista de Cornelius De Pauw, o fato que, tanto em sua dissertao como em correspondncias com os membros do Instituto, ele apontava claramente para um processo de decadncia que caberia etnografia investigar89. Contudo, o que mais interessa aqui destacar no so as possveis ambigidades presentes em sua obra, mas antes os efeitos que seu texto engendrou. Sob essa perspectiva, no h dvida de que o nome de Martius serviu, dentro do IHGB, como um emblema para os letrados que defendiam a relao decadncia/catequese. Na formao de um debate etnogrfico no IHGB, ele acabou por servir como uma autoridade que definia um lado da disputa90. Martius, em uma passagem de sua dissertao, resume o cenrio que tem sido aqui apresentado:
Ainda no h muito tempo que era opinio geralmente adotada que os ndigenas da Amrica foram homens diretamente emanados da mo do Criador. Consideravam-se
LISBOA, Karen M. A nova Atlntida de Spix e Martius: natureza e civilizao na viagem pelo Brasil (18171820). So Paulo: Hucitec, 1997. Tambm John Monteiro, em trabalho recente, aponta para o pessimismo de Martius, e sugere, ainda, que Varnhagen se filiava ao naturalista bvaro em seus estudos etnogrficos. MONTEIRO, J. M. Entre o Gabinete e o Serto: Projetos Civilizatrios, Incluso e Excluso dos ndios no Brasil Imperial, in: Tupis, Tapuias e Historiadores. Estudos de Histria Indgena e do Indigenismo. Campinas: IFCH-Unicamp, 2001(Tese de Livre Docncia). Para uma anlise diferente, mais prxima a aqui desenvolvida, cf. CEZAR, Temstocles. Como deveria ser escrita a histria do Brasil no sculo XIX. Ensaio de histria intelectual, in: PESAVENTO, Sandra J. (org). Histria Cultural. Experincias de pesquisa. Porto Alegre: UFRGS, 2003. 90 Como afirma Kodama: Diferentemente do princpio evolucionista, a discusso dos letrados do Imprio do Brasil tomava outra vertente, seguida por Martius, que como vimos, preferia afirmar a decadncia dos povos indgenas. KODAMA, Kaori. Os filhos das brenhas e o Imprio do Brasil. Op. Cit., p. 146.
89

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os aborgenes do Brasil como uma amostra do desenvolvimento possvel do homem privado de qualquer revelao divina, e dirigido na vereda das suas necessidades e inclinaes fsicas unicamente por sua razo instintiva. Enfeitado com as cores de uma filantropia e fiilosofia enganadoras, consideravam este estado como primitivo do homem; procuravam explic-lo, e dele tiravam os mais singulares princpios para o direito publico, a Religio e a histria. Investigaes mais aprofundadas porm provaro ao homem desprevenido que aqui no se trata do estado primitivo do homem, e que pelo contrrio o triste e penvel quadro, que nos oferece o atual Indigena Brasileiro, no seno o residuum de uma muito antiga, posto que perdida histria.91

De um lado, portanto, esto aqueles que consideram o selvagem como um ente primitivo. Martius se refere aqui, provavelmente, a uma certa tradio iluminista na qual a prpria idia de primitivo foi formulada, sustentando, por sua vez, uma poltica colonialista com vestes filantrpicas92. esta mesma tradio que se faz presente em autores como Janurio (ainda que este, como veremos, adote posteriormente a posio decadentista de Martius) e Fernandes Pinheiro. O naturalista nega essa idia do selvagem como primitivo, regido apenas por razes instintivas. Ainda que fosse possvel conciliar a condio de primitivos com a incluso na civilizao, Martius parece estar recusando uma determinada concepo que acaba por bestializar esse selvagem. Um historiador, diz ele, que mostra desconfiar da perfectibilidade de uma parte do gnero humano autoriza o leitor a desconfiar que ele no sabe colocar-se acima de vistas parciais ou odiosas93. O indgena, como parece sugerir em sua dissertao, tambm um ser provido de noes religiosas e jurdicas, configurando-o como ser social. Assim como os telogos que procuravam provar a pertena dos indgenas humanidade crist atravs do estudo de seus costumes, dos quais tirariam concepes bsicas da divindade, Martius, ao menos em sua dissertao, tambm parecia recusar a excluso desses indivduos de uma comunidade humana universal, agora no essencialmente crist, mas particularmente histrica e simblica. Das teogonias e mitos dos selvagens, diz Martius: Um observador filosfico no deixar de descobrir nos restos de mitos, e no balbuciamento potico, que ainda hoje se encontram vestgios muito significativos de uma perdida filosofia natural, e de um culto ainda enigmtico94. Com o uso dessa expresso, ainda hoje, o autor pressupe que determinadas caractersticas que o observador
91 92

MARTIUS, Karl F. Como se deve escrever a historia do Brasil, RIHGB, Tomo VI, 1844, p. 385. DUCHET, Michle. Anthropologie et histoire au sicle des lumires. Op. Cit. 93 MARTIUS, K. F. Op. Cit., p. 384. 94 MARTIUS, K. F. von. Op. Cit., p. 387.

49 contemporneo pode recolher das sociedades indgenas sejam, na verdade, resqucios de uma realidade passada. Essa atitude, na medida em que toma uma ao presente como representao de um passado que no mais, permite a instituio dos documentos etnogrficos. Com essa operao intelectual, cuja referncia maior concentrava-se no trabalho do jesuta Joseph-Franois Lafitau, Martius procurava suprir a falta de traos materiais nessas sociedades, motivando a extrao, a coleo e a comparao desses documentos. A recusa de considerar o presente daquelas sociedades como um tempo chapado, sem perspectiva, o levava a acreditar ser possvel, mediante a operao etnogrfica, reconstruir uma poca encoberta de escurido. No entanto, necessrio ressaltar, esse passado obscuro de que fala Martius o passado prprio s sociedades indgenas observadas, e no o passado da humanidade e, portanto, seu prprio passado. um passado do outro. Para Martius, a enorme fragmentao de tribos que se encontrava no territrio brasileiro remeteria, na verdade, a um nico e grande Povo, que sem dvida possuiu a sua histria prpria, e que de um estado florescente de civilisao, decaiu para o atual estado de degradao e dissoluo95. Esse grande Povo seria a nao Tupi, cuja existncia era indicada pelos estudos filolgicos. Os indgenas no so considerados como populaes sem histria. Muito pelo contrrio, eles teriam uma histria prpria. Ora, na medida em que essas populaes tm um passado, qualquer juzo que se fundamentasse apenas em sua constituio presente poderia se mostrar equivocado. Martius sugere, evocando o trabalho de Lafitau, toda uma agenda de trabalho a ser desenvolvida pelos letrados brasileiros. Seria apenas com um extenso esforo de comparao da linguagem e costumes, assim como de pesquisas arqueolgicas, que se poderia estabelecer a verdadeira base e valor histrico e etnogrfico dos Povos Americanos96. Em sua dissertao, portanto, Martius desenvolveu um programa etnogrfico bastante claro, apontando para um processo de decadncia das populaes nativas do territrio brasileiro. Talvez devido s circunstncias em que seu texto foi produzido e aos fins a que se destinava, dos quais ele era plenamente consciente, Martius privilegiou argumentos que permitissem positivar a presena indgena no Brasil. De qualquer modo, com esse texto ele abriu uma agenda etnogrfica que seria executada por diferentes autores no decorrer do sculo XIX, ajudando a delimitar um campo de debate entre os integrantes do IHGB. Gonalves Magalhes, a exemplo de Martius, tambm procuraria provar o estado de decadncia dos indgenas, ao contrrio do que pareceria primeira vista: Habituamo-nos
95 96

MARTIUS, K. F. von. Op. Cit.,p. 387. Idem, Ibidem, 388.

50 tanto a considerar os indgenas como selvagens sem lei nem grei, a despeito do que em contrrio sabemos continuamos a raciocinar como se eles assim fossem; talvez pelo estado de decadncia a que se acham reduzidos os que por esses sertes se refugiaram97. O que se costumava considerar como uma natureza selvagem no passaria, portanto, de mera aparncia, fruto de uma possvel decadncia que caberia investigao etnogrfica desvendar. A selvageria completa uma fico, afirma ainda Magalhes, ou uma decadncia e aberrao temporria do estado normal do homem, que dela tende sempre a sair voluntria e instintivamente, como de um estado de enfermidade98. O homem, esse singular coletivo, mesmo selvagem no deixa [..] de ser um ente racional e moral; em sua alma, bem como em seu corpo, existem todos os atributos naturais que o constituem nosso irmo [...]99. Ao estipular uma igualdade natural entre os homens, pautado na tradio bblica, Magalhes procura matizar as diferenas encontradas entre os selvagens e os civilizados100:

Como de mais um fato que o gnero humano ignora cientificamente a sua origem, o seu bero e o seu primeiro estado, devemos crer que esse mistrio sobre o seu passado, bem como o que envolve o seu futuro, entrou nos planos da Providncia. E bem pode ser, que havendo no princpio um s continente, uma s raa, uma s lingua, date a disperso das famlias, a variedade das formas, e multiplicidade das lnguas da fratura e separao da terra em vrios continentes povoados, separao devida a esse grande cataclismo a que remonta a tradio dos povos, e de que vemos incontestveis documentos geolgicos. Assim cada continente, fragmentado do nico primitivo, ter uma raa indigena, sem que por isso deixe de haver unidade de espcie humana, e o que entre os povos americanos parece indicar precedncia de outros povos que reputamos mais antigos, talvez apenas seja uma prova de contemporaneidade de civilizao, e de conformidade do espirito humano no seu primitivo e espontneo desenvolvimento101.

Essa defesa da unidade da espcie humana, promovida por Magalhes, mais do que se dirigir contra opinies que apontavam para uma diversidade original entre raas, surgidas em
97

MAGALHES, D. J. Gonalves. Os indgenas do Brasil perante a Histria, RIHGB, Tomo XXIII, 1860, p.51. Grifos meus. 98 Idem. Ibidem. p. 37. 99 Idem, Ibidem. p. 29. 100 Para uma anlise do papel da tradio bblica no incio do sculo XIX e seus efeitos no modelo etnolgico prichardiano, cf. STOCKING, George. Victorian Anthropology. New York, Free Press, 1987, Cap. 2. 101 MAGALHES, D. J. Gonalves. Op. Cit. p. 12.

51 distintos centros de criao, procurava reforar um determinado modelo etnolgico. Afinal, nesse momento, no havia nenhum autor que adotasse um discurso abertamente poligenista102. O debate etnogrfico ocorrido em torno do IHGB, no perodo em questo, tinha talvez como nica unanimidade a concepo monogenista, inserindo o curso da humanidade em uma cronologia bblica. Mesmo Varnhagen, a quem Magalhes intenciona atingir, no deixava de evocar a figura da Providncia, limitando a histria humana s referncias clssicas e bblicas. Ao reforar esse modelo etnolgico, cuja tradio tambm o ligava ao trabalho de Lafitau, o que Gonalves de Magalhes visava era o estabelecimento de uma igualdade entre os homens, que se estenderia tanto s origens como s capacidades de desenvolvimento. As diferenas que se encontram nas diversas partes do globo seriam fruto de uma fragmentao e de uma disperso, oriundas de um ncleo comum. A comparao das lnguas e costumes, como instrumento analtico que percorre as diferenas em busca de uma unidade originria, permitiria remontar a esse vazio da histria, cujas nicas indicaes seriam a tradio dos povose os documentos geolgicos. O selvagem, aqui, deixa de ser considerado como primitivo, no sentido de recmsado da natureza. A condio originria desse homem no mais o reino das necessidades materiais, mas sim a religiosidade, a racionalidade e a sociabilidade. O homem um ente religioso e supersticioso, como racional e social103. A natureza do selvagem, como a de qualquer ser humano, essencialmente social. Ao contrrio do que pressupunham autores como Fernandes Pinheiro, para quem os selvagens passariam gradualmente de um estado antisocial para um estado de sociabilidade, para Magalhes, o indgena, como todo ser humano, originalmente social. A selvageria, como ele afirmara, um mero lapso, uma patologia passvel de ser corrigida. Em conseqncia, entre ns e eles o que se interpe a contingncia, e no uma restrio de ordem natural, seja para a raa ou para o desenvolvimento histrico de grupos humanos:

Toda a diferena desses homens da natureza a ns filhos da civilizao, a do menos ao mais para alguns. No havendo entre eles diferenas e graduaes de classes e de fortunas, passava a cincia oral a todos, segundo as naturais aptides [referentes a

Essa unanimidade no se dava pelo desconhecimento de abordagens que apontavam para a desigualdade natural entre os seres humanos. Na sesso de 19 de agosto de 1847, por exemplo, mencionado o recebimento por parte do IHGB de um volume da obra de Samuel Morton, intitulada Crania Egyptiaca, que servia de continuao a Crania Americana, a qual tambm havia sido doada instituio. No entanto, no debate formado no IHGB, esse modelo de antropologia fsica desenvolvido pela escola americana no suscitou efeitos, com exceo, talvez, do Doutor Lund. 103 MAGALHES, D. J. Gonalves. Op. Cit. p. 21.

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indivduos, e no raa]. Todos tinham igual parte no trabalho e no descano. Entre ns, pela desigualdade das classes, e das posses, esto as cincias, as artes, as indstrias, o mando, e a ociosidade repartidas pelos mais afortunados; e a massa bruta, sem saber ler, condenada pela ordem social ao trabalho e misria que a materializa; acha-se em pior condio que o selvagem tanto pelo esprito como pelo corpo, e por mais ignorante que este seja nunca to estpido e brutal como a maior parte dos camponeses da Europa104.

A contraposio feita por Magalhes no centrada no fato de que ns desenvolvemos as aptides da civilizao, de acordo com um processo de desenvolvimento natural, e eles no. Curiosamente, pelo menos em relao aos demais autores, ele constri a comparao privilegiando as diferentes formas de organizao social. Nesse sentido, a distino est pautada menos em um critrio temporal do que propriamente social. O fato de que ns somos organizados por classes e eles no, seria o que mais marcaria a distino entre o homem dito selvagem e o civilizado. Isto implicaria, como ele exemplifica ao final de seu texto, a possibilidade da passagem quase que repentina (negada anteriormente por Janurio) do indgena ao meio civilizado. Em sua estada no Maranho, inclusive, Magalhes teria visto selvagens, apenas sados dos nossos matos, vestidos um dia nossa maneira, afazerem-se de repente aos nossos costumes105. Vale destacar, nessa argumentao apresentada por Magalhes, como acaba por surgir uma semelhana em meio construo da diferena. A diviso por classes, na mesma medida em que privilegia determinada poro da sociedade com o monoplio da cincia, artes e governo, condena a grande maioria, a massa bruta, a uma condio muito prxima do selvagem, ou mesmo pior. Afinal, o selvagem, por mais ignorante que seja, nunca to estupido e brutal como a maior parte dos camponeses da Europa. Magalhes, de qualquer forma, aciona como termo de comparao um outro elemento, at ento ausente: o popular, o campons. Este grupo, surgido no seio da prpria civilizao, se encontraria em uma situao to ou mais selvagem do que os indgenas encontrados no territrio brasileiro. Como sugere Magalhes, poder-se-ia dizer at que a civilizao produz uma selvageria, enquanto que o selvagem propriamente dito seria dotado de caractersticas tanto ou mais civilizadas que grande parte das sociedades modernas europias106. O jogo entre os termos, contudo, pra por

Idem, Ibidem. p. 46. Idem, Ibidem, p. 65. 106 Como destaca Starobinski, diagnsticos dessa natureza j comeam a ser formulados no sculo XIX. STAROBINSKI, Jean. A palavra civilizao, in: As mscaras da civilizao. So Paulo: Cia. das Letras, 2001.
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53 a. Ao invs de estender a comparao a ponto de fazer convergir o etnogrfico com o folclrico, como ser promovido por uma gerao posterior, ou mesmo de avanar na concluso de que a selvageria fruto da prpria civilizao, a anlise de Magalhes encerra com a simples constatao de que o selvagem brasileiro no seria um ser to estpido como pregava Varnhagen. Afinal, conclui o autor, si comparamos estes selvagens com os homens eminentes dos povos cultos, e os da classe mdia, a vantagem toda destes; mas se os comparamos a essa imensa populao ignara e embrutecida da Europa, em que o hbito da misria, da obedincia, da servido, e do rude trabalho da terra sem descanso, e sem lucro suficiente para matar-lhe a fome, extingue pouco a pouco todos os nobres sentimentos, e a ida mesmo de que so homens; a vantagem toda do selvagem, que na independncia do seu carter, na fora da sua vontade, na altivez do seu esprito, e no garbo do seu porte, conserva todos os bellos atributos da especie humana107. A liberdade dos selvagens, por oposio servido do campons [vale notar que Magalhes fala sempre do campons Europeu, induzindo ao leitor a ausncia desse tipo social no Brasil], lhes garante uma dignidade prpria, que o colocaria em um meio termo entre o homem letrado e a massa bruta, ambos frutos da civilizao. De qualquer forma, assim como no h qualquer diferena de natureza (a no ser social) entre o homem culto e a massa bruta, tambm no haveria nenhuma desigualdade natural entre civilizados e selvagens. Atravs desses exerccios de aproximao e distanciamento, Magalhes procura reabilitar o selvagem brasileiro contra as opinies que os reputavam no ltimo grau da escala humana. Tendo em Varnhagen seu alvo principal, ilustre autor da Histria geral do Brasil, Gonalves de Magalhes cuida de problematizar no apenas suas concluses, mas tambm seus argumentos, atacando em suas prprias bases. Aqui, novamente, o etnogrfico e o histrico se cruzam. Para se contrapor interpretao realizada na Histria Geral, cabia a realizao de uma dupla tarefa: restituir uma outra historicidade aos indgenas, diferente daquela narrada por Varnhagen; e, para isso, usar dos mesmos mtodos preconizados pelo historiador, invertendo suas concluses. Utilizando-se das mesmas fontes, Magalhes atribui um outro sentido para a histria daquelas sociedades:

como se o historiador mesmo no citasse o testemunho de Acunna, que faz meno de uma grande taba ou povoao de uma lgua que forneceu sua expedio quinhentas fanegas de farinha, isto , dois mil alqueires. O que prova quanto os ndios agricultavam e fabricavam, no s o necessrio para a sua subsistncia, como ainda o
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MAGALHES, D. J. Gonalves. Op. Cit., pp. 64-65.

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suprfulo para dar ou permutar. E essa grande taba, ou cidade, que no era a nica, comunicava-se com outras por caminhos abertos e transitados. Mais uma prova de que vivia em sociedade, com grandes centros de moradas fixas108.

a reconstruo histrica o que permite perceber a existncia nos povos indgenas das noes de trabalho, propriedade, e mesmo de comrcio. Eles no produziam s o necessrio para a subsistncia, e puderam mesmo prover o colonizador portugus nas suas empreitadas. Atravs da leitura e crtica das fontes, Magalhes pode afirmar, em contraposio a Varnhagen, que os indgenas tambm foram elementos ativos na formao histrica nacional: Se o Brasil hoje uma nao independente; se uma s lingua se fala em seu vasto territrio, em grande parte o devemos ao valor dos nossos indgenas, que aos Portugueses se ligaram109. Aqui, o seu discurso etnogrfico aponta para o investimento literrio que alava o indgena como smbolo da nacionalidade. No entanto, apesar dessa aproximao evidente, necessrio ressaltar que Gonalves de Magalhes, em seu texto Os indigenas do Brasil perante a Histria, no estava se utilizando de uma estrutura potica, como em A confederao dos tamoios. Ainda que os motivos fossem homlogos, ao se contrapor a Varnhagen, Magalhes precisou acionar elementos retricos especficos. Sua argumentao respeitava e fazia uso de tpicos comuns ao debate etnogrfico que se formara no IHGB. Seria atravs desse tipo de argumentao que ele poderia justificar a validade e a legitimidade no apenas de seu projeto literrio, o qual tambm requeria outros tipos de argumentao, como tambm de um modelo de poltica a ser adotado em relao aos indgenas110.

***

A temtica da decadncia dos povos indgenas esteve presente em diferentes autores, como Gonalves Dias, sobre o qual trataremos mais adiante, Joaquim Norberto e Ignacio Accioli. Todos eles recusavam a idia de que o presente das populaes nativas fosse um espelho de sua natureza, refletindo uma mesma imagem tanto para o seu passado como para seu futuro. O presente dessas populaes seria, antes, o produto de um longo processo de

Idem, Ibidem. p. 50. Grifos meus. Idem, Ibidem. p. 49. 110 Sobre o debate acerca de seu indianismo literrio, cf. os textos compilados por CASTELLO, J. A (org). A polmica sobre A confederao dos Tamoios. So Paulo: Faculdade de Filosofia, Cincias Humanas e Letras da Universidade de So Paulo, 1953.
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55 decadncia, que caberia etnografia desvendar. Essa posio implicava, em um primeiro momento, uma aproximao entre o selvagem e o civilizado. A tese do primitivismo, ainda que possibilitasse uma atitude catequtica, representava, em potencial, uma ameaa s premissas crists que eram to presentes no IHGB. A possvel identificao de um Ado negro ou selvagem era mais um fator que motivava a busca por processos de decadncia. A condio selvagem, como o expressava Magalhes, seria apenas uma anomalia temporria. Na origem de ambos, poder-se-ia encontrar uma igualdade originria111. Contudo, esse modelo etnogrfico no deixava de instaurar tambm uma distino e uma hierarquizao, pois era a este homem civilizado que estava destinada a misso de catequizar e recuperar aqueles indivduos decados. O que est em jogo, portanto, um movimento duplo, de englobamento e de hierarquizao da alteridade. Como resultado, o que se esperava era a construo do Imprio do Brasil e a manuteno de suas diferentes ordens. Com o objetivo de fundamentar essa posio, tornava-se necessria a construo de argumentos slidos, que fossem reconhecidos e aceitos num campo de debate definido. Como j foi dito, esses autores tinham que recorrer a procedimentos de investigao especficos, capazes de fornecer provas daquilo que diziam. Os procedimentos que foram acionados nesse momento concentravam-se, principalmente, na comparao das lnguas e costumes e na arqueologia. Atravs da leitura crtica dos viajantes antigos e modernos e, em menor escala, da observao pessoal, esses autores procuravam obter informaes e suprir as lacunas da histria. Mais do que isso, utilizavam-se desses instrumentos retricos com o objetivo de persuadir, produzindo uma imagem que fosse capaz de se impor ao rol de representaes daquele grupo social. O uso de tais instrumentos retricos assumia, nessa luta de representaes, uma configurao especfica. Mas antes de centrarmos a ateno sobre esses dispositivos, convm destacar o processo de restaurao de um modelo em relao ao qual esses letrados do IHGB procuravam se guiar para a elaborao de uma agenda etnogrfica.

Segundo Stocking, mesmo Prichard teria recuado diante desse perigo que representava a tese primitivista para uma concepo religiosa da humanidade: True, in other cultural spheres than religion, he tended to assume a generally progressive development from the savage state. And in 1813 he in fact suggested that this was correlated with a racial development from black to white although in later editions he retreated from this heterodoxy, which, by making Adam black, was perhaps offensive to more traditionally degenerationist biblical anthropologists. STOCKING, George. Victorian Anthropology. Op. Cit., p. 51.

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56 1.6 A restaurao jesutica e o medium da linguagem

Se no houve unanimidade em relao posio que os letrados assumiram frente s populaes nativas, pode-se dizer ao menos que, dentro do IHGB, a opo mais defendida foi a da catequese, seja pela afirmao do estado primitivo das sociedades indgenas ou pela busca de um processo de degradao. Como j foi dito, com exceo de Varnhagen e Lund, todos os demais autores que se envolveram no debate defendiam uma atitude filantrpica, incentivando a incluso dos indgenas na civilizao. Independente do modo como concebiam essas populaes, como primitivos ou decados, esses letrados propunham medidas pragmticas de catequese. Criava-se, assim, um outro debate, paralelo ao primeiro, acerca dos melhores mtodos a serem adotados para a educao do selvagem brasileiro. Nesse ponto, pode-se afirmar que houve, por parte do grupo favorvel catequese, um consenso maior sobre os caminhos a serem seguidos. De modo geral, os textos desses autores apontavam no sentido de restaurar o modelo adotado pelos jesutas, adaptando-o s necessidades atuais. A restaurao e o uso de textos dos missionrios jesutas uma das caractersticas mais marcantes da reflexo etnogrfica desenvolvida em meados do sculo XIX. Nesses textos, povoados com as premissas da segunda escolstica ibrica, os letrados do Segundo Reinado encontraram os referentes mais apropriados tanto para a construo de um quadro interpretativo que permitia tornar inteligvel a figura do selvagem, como um modelo de ao a ser imitado no que diz respeito ao modo de incluso desses habitantes primitivos. A etnografia do IHGB, motivada pelo binmio catequese/civilizao, encontrou nas cartas e sermes jesutas um importante repertrio de temas e questes que puderam ser re-apropriados dentro de um discurso propriamente etnogrfico. Essa estratgia de restaurao j era apresentada por Janurio da Cunha Barbosa, principal promotor dos estudos etnogrficos:

Sou de opinio que a catequese o meio mais eficaz e talvez o nico, de trazer os ndios da barbaridade de suas brenhas aos cmodos da socialidade(...) Apia-se esta minha opinio em muitos fatos da Histria do Brasil; e posto que neles figurem particularmente os Jesutas, quererei que deles se colha o melhor de suas Misses, rejeitando-se a influncia politica, que se arrogavam, e que foi causa de muitos

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transtornos no sistema da civilizao dos indgenas, e at mesmo de sua final expulso112.

A histria, tambm para essa questo, servia como uma espcie de laboratrio no qual as experincias realizadas no passado poderiam guiar as aes presentes. Joaquim Norberto, em sua Memoria historica e documentada das aldeas de indios da provincia do Rio de Janeiro, tambm vinha realar a utilidade desse topos da historia magistra em meio aos debates envolvendo a catequese dos ndios:

A histria dos aldeamentos de ndios na provncia do Rio de Janeiro no ser de pequeno interesse para a atualidade, em que as idas de colonizao e catequese tomam incremento, como os dois nicos meios de promover o aumento da deficiente povoao do vasto imprio americano [...]; e sendo a histria a mestra da experincia, muito convm assinalar as causas que ho contribudo para a decadncia e o aniquilamento das aldeias, ja que tanto floresceram e prosperaram, mostrando as vicissitudes por que passaram113.

As prticas mais recentes voltadas para a incluso das populaes indgenas, como afirma Norberto, eram consideradas muito pouco eficientes. Alm de se mostrarem inapropriadas s necessidades e particularidades dos selvagens, elas haviam se tornado corrompidas. Como o autor procurou mostrar em sua memria, a histria das aldeias do Rio de Janeiro oferecia exemplos tristssimos da pssima administrao que por um destino acerbo e infausto lhes coube. Com o desenvolvimento do processo de colonizao, os indgenas foram cada vez mais expropriados de suas terras e exterminados pela ganncia do conquistador portugus. A reduo do ndio f foi a mscara que moralizou por muito tempo o seu cativeiro; a cultura das terras serviu de capa para acobertar a sua aquisio, taxando-as de devolutas, e o aumento da navegao veio por sua vez em auxilio do corte das preciosas madeiras de suas matas114. Esse processo de expropriao foi coroado com a poltica pombalina, a qual, por ignorncia dos erros passados, eliminou o que havia sido realizado de positivo e implementou mais uma srie de equvocos:

BARBOSA, Janurio da Cunha. Qual seria hoje o melhor systema de colonisar os Indios entranhados em nossos sertes..., RIHGB, Tomo II, pp. 3-4. 113 SILVA, Joaquim Norberto de Souza. Memoria historica e documentada de indios da provincia do Rio de Janeiro, RIHGB, Tomo XVII, 1854, p. 109-110. 114 Idem, Ibidem, p. 112.

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Jamais lei alguma prometeu tanto pelas suas pomposas teorias e patenteou em sua prtica o pouco que podia conseguir no tendo por base a lio da experincia de dois sculos e meio de aldeamentos de ndios, quando os Nbregas e Anchietas colheram em seus ensaios tantos frutos, e legaram-lhes dias bem longos de prosperidade e paz. O Diretrio, alm de ser a rapsdia de todas as leis publicadas anteriormente sobre os ndios, todo repleto de utopias e cheio de novas disposies coarcitivas [sic] das garantias que j gozavam os filhos das florestas [...] Ao passo que ordenou o estudo do idioma nacional, prescreveu o uso da lngua geral, estigmatizando-o como inveno abominvel e diablica para faz-los permanecer em rstica e brbara sujeio, como se no conviesse o estudo de ambas, tal qual to sabiamente o ordenara o Concilio de Trento115.

Essa posio de Norberto a respeito da histria da catequese e assimilao dos ndios era igualmente compartilhada por outros autores. Fernandes Pinheiro, por exemplo, apresentou uma viso correlata em suas reflexes sobre o sistema de catequese seguido pelos jesutas116. Couto de Magalhes, j na dcada de setenta, tambm acusaria o fracasso da poltica pombalina, defendendo que o melhor modelo a ser adotado era aquele desenvolvido por Anchieta e Nbrega117. Mas a passagem de Noberto citada acima, especificamente, apresenta alguns aspectos que interessam ser aqui explorados. Um primeiro ponto a ser destacado o reconhecimento de que no houve apenas experincias malogradas de catequizao na histria brasileira. Para Norberto, os primeiros jesutas conseguiram desenvolver um modelo cuja eficcia deveria ser reconhecida. Fernandes Pinheiro afirmaria que s eles possuiam o fio de Ariadne para penetrar no labirnto da catequese118. Existia, portanto, um modelo a ser seguido. Era voltando a ateno a esses missionrios que esses letrados acreditavam poder aprender a converter as almas selvagens. O sucesso que os jesutas tiveram em suas primeiras experincias poderia ser agora novamente conquistado, bastando para isso um investimento de restaurao apoiado no conhecimento histrico. O segundo ponto que merece ser destacado da passagem citada de Norberto qual a lio que eles selecionavam como vlida; o como que possibilitaria uma poltica de catequese. Norberto acusava o Diretrio pombalino de haver prescrito o ensino das lnguas indgenas. Pombal, em sua tentativa de homogeneizar a populao sob domnio portugus, promoveu a
Idem, Ibidem, p. 154. Grifos no original. PINHEIRO, Fernandes. Breves reflexes sobre o systema de catechese seguido pelos jesutas, RIHGB, Tomo XIX, 1856. 117 MAGALHES, Couto de. O Selvagem. Op. Cit. 118 PINHEIRO, Fernandes. Breves reflexes sobre o systema de catechese seguido pelos jesutas, Op. Cit., p. 396.
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59 expanso e a utilizao da lngua portuguesa como a nica aceita oficialmente. Com isso, ele no teria respeitado as diferenas existentes entre os colonos portugueses e os selvagens americanos, impondo uma poltica indiscriminatria e, portanto, fadada ao fracasso. O exemplo fornecido pelos primeiros jesutas possibilitava justamente a aprendizagem de um modelo que evitava esse erro. Como afirmou Fernandes Pinheiro:

Ao contemplar a pasmosa desapario da raa indgena depois da companhia de Jesus, dir-se- que s estes regulares possuam o fio de Ariadne para penetrar no labirinto da catequese. A chave do enigma quanto a mim consiste em que os discpulos de S. Ignacio haviam estudado profundamente o carter e os costumes dos ndios; estudo este que seus sucessores desprezaram; ao que se deve acrescentar as absurdas medidas emanadas da corte de Lisboa119.

Civilizar, como o entendiam esses autores, no era a imposio de uma igualdade a ferro e fogo, tal como o pregava Varnhagen. Ao contrrio, a tarefa de catequese e civilizao requeria tanto um conhecimento, a construo de um saber sobre o outro, como tambm o estabelecimento de um caminho que partisse e respeitasse a realidade selvagem. O xito dos jesutas estava pautado justamente no esforo que eles tiveram em estudar os costumes e as crenas indgenas. Graas a esses estudos, eles puderam adequar os preceitos cristos s condies e referncias que os selvagens possuam. Como vimos, tambm era uma preocupao dos letrados do IHGB a observao das condies peculiares aos selvagens para que a catequese fosse eficaz. Da o papel estratgico que caberia etnografia e as lies que ela poderia aprender com a experincia jesuta. O estudo dos costumes e crenas indgenas desenvolvido pelos jesutas implicava, em primeiro plano, a atribuio de um valor estratgico questo da linguagem. Para os jesutas, como sabido, o domnio da lngua indgena era uma condio necessria tanto para o conhecimento das crenas e ritos dos gentios, a partir dos quais poderiam adaptar os preceitos cristos, como tambm para a produo de uma conscincia pautada na memria da culpa original. Como destaca Daher, nas operaes lingsticas com fins catequticos, tal como promovida pelos jesutas, est subtendido que a escrita subordina o oral pela reatualizao da memria do ndio e a conduo da lngua tupi s boas formas do verbo catlico; a lngua tupi deve inscrever-se na temporalidade da ordem da racionalidade do Imprio portugus, na homologia da lngua portuguesa; a lngua tupi tambm subordinada identidade catlica, j
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Idem, Ibidem, p. 396.

60 que semelhana distante (do Bem); por fim, pela boa proporo da gramtica, deve ser fornecida lngua tupi, desmemoriada, uma memria, que conscincia, constituda como reminiscncia da culpa do pecado original que todos os homens carregam120. Um saber, portanto, estava diretamente atrelado a uma colonizao. Nesse sentido, o estudo da linguagem se mostrava como um modo no apenas de perceber os traos da revelao esquecida, atravs de uma interrogao da fala indgena, como tambm de tornar efetiva a misso evangelizadora. nessa perspectiva que decorre todo o esforo de reduo gramatical realizado pelos missionrios, como uma etapa necessria para a domesticao do pensamento selvagem. No processo de restaurao dessa tradio, os letrados do IHGB tambm atriburam linguagem uma ateno especial. O conhecimento lingstico possibilitaria, de um lado, o contato com as tradies indgenas e a coleo de cantos e lendas; de outro, a posse de um meio de acesso conscincia selvagem, j que elementos da civilizao poderiam ser (por) ali introduzidos, facilitando o processo de assimilao. No primeiro caso, a filologia que alada como mtodo central nas pesquisas etnogrficas do IHGB. No segundo, a linguagem concebida como um instrumento de civilizao. Sobre este ponto, diz Janurio: o ensino da lngua dos ndigenas indispensvel sua catequese; e a experincia tem mostrado, desde a descoberta do Brasil, quo poderoso tem sido este meio de comunicao entre povos to distantes na escala social121. Couto de Magalhes, por sua vez, exaltaria o padre Montoya, autor de um dicionrio da lngua guarani, que, sozinho, teria evangelizado mais de cem mil ndios. Este nico fato no tornar evidente o imenso poder do homem civilizado, diante do homem brbaro, desde que esse homem civilizado dispe do intrprete para se fazer entender?122 A diferena que separa esse homem civilizado do selvagem, uma diferena nonatural, mas social, poderia ser transposta por intermdio da linguagem:

As verdades do Cristianismo que se lhes anunciavam no seu prprio idioma, penetravam mais facilmente nos seus coraes, e os faziam render pronta adorao Cruz e ao Evangelho [...] os indgenas, com muita docilidade abraam as doutrinas religiosas, que lhe so oferecidas em sua lngua, por que elas lhes abrem uma esfera

DAHER, Andra. Cultura escrita, Oralidade e memria: a lngua geral na Amrica Portuguesa, in: PESAVENTO, Sandra Jatahy (org). Escrita, linguagem, objetos. Leituras de histria cultural. Bauru: Edusc, 2004, p. 21. 121 BARBOSA, Janurio da Cunha. Qual seria hoje o melhor systema de colonisar os Indios..., RIHGB, Tomo II, 1840. 122 MAGALHES, Couto de. O selvagem. Op. Cit., p. XV.

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maravilhosa, descubrindo-lhes coisas a que no podiam chegar pela curteza de suas idias.123

O princpio de converso est ligado expanso da palavra divina a toda humanidade. A palavra divina, na exegese crist, uma s, independente do idioma em que professada ou comunicada; nisto se baseia seu universalismo tico124. Esse motivo bblico retomado pelos scios do IHGB para essa nova converso, a qual visava, agora, a incluso das populaes indgenas civilizao. Ao contrrio de Varnhagen, para quem a civilizao seria uma espcie de herana que caberia a seus herdeiros preservar e, por conseqncia, excluir aqueles que lhe eram estranhos, para os letrados favorveis catequese a civilizao vinculava-se necessariamente ao triunfo da civilizao crist. Esta perspectiva, herdada da filosofia crist e atualizada pelo catolicismo hierrquico do Segundo Reinado125, se baseia em uma temporalizao de conceitos opostos assimtricos como cristo e pago, estendendo-se, por sua vez, oposio entre selvagem e civilizado. Com isso, ainda que o estabelecimento da oposio fosse uma condio necessria, o que se visava, ao menos em princpio, era sua supresso atravs de um trabalho de incluso e hierarquizao. Ao contrrio de pares conceituais opostos como heleno e brbaro, que eram vinculados a uma separao espacial dos grupos humanos, e cuja universalizao tornava efetiva a fundamentao poltica do mundo helnico, a oposio entre pagos e cristos, tal como desenvolvida pela filosofia crist, teve como marca principal a abertura de um horizonte temporal, o tempo da salvao. Todas as posies que demarcavam os homens, os grupos, as naes, deveriam ser redimidas na f de Cristo, sendo subordinadas a uma comunidade crist singular. Ao converter-se, o cristo tornava-se um homem novo, por oposio ao velho, pago. Santo Agostinho, em sua teologia da histria, deu uma soluo elstica a essa dualidade, desterritorializando-a em funo de uma orientao temporal de carter irretornvel: o Juzo Final e o triunfo da civitas Dei. Com isso, a relao assimtrica dos conceitos opostos era temporalizada. Se ainda existiam povos alheios revelao divina, os pagos, os gentios, a temporalizao da assimetria, fundada num discurso teleolgico, vinha assegurar a priori o triunfo do cristianismo, caracterizando-a como uma religio de expanso. Essa forma elstica, como ressalta Koselleck, pde aplicar-se a diversas situaes
BARBOSA, Janurio da Cunha. Qual seria hoje o melhor systema de colonisar os Indios..., RIHGB, Tomo II, 1840, p. 14-15. 124 Sobre a relao entre a escrita e a palavra de Deus, cf. GOODY, Jack. A palavra de Deus, in: A lgica da escrita e a organizao da sociedade. Lisboa: Edies 70, 1987. 125 FREIRE, Gilberto. Sobrados e Mucambos. Decadncia do patriarcado rural e desenvolvimento do urbano. Rio de Janeiro: Jos Olympio, 1951, Vol. III.
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62 histricas126. No caso da etnografia do IHGB, pde ser reativada dentro de um processo civilizador que assumia o papel teolgico da converso, englobando e hierarquizando as populaes indgenas que ocupavam o territrio nacional. Esse modelo, que qualifica o cristianismo com uma religio de expanso e que garantia, teoricamente, seu triunfo antes mesmo de sua realizao, esteve presente, por exemplo, na justificativa teolgica da ocupao espanhola na Amrica e sua tutela em relao aos povos indgenas127. Vale dizer, assim, que se essa perspectiva inclusiva, ela tambm essencialmente hierrquica. Classificaes como cristos novos ou convertidos no indicam apenas uma pertena; so marcas que garantem uma distino. Poderamos entender esse esquema dentro daquilo que Louis Dumont denomina de incorporao hierrquica128. Ao contrrio da perspectiva evolucionista, espelho de um liberalismo que concebe uma luta de todos contra todos, a antropologia bblica essencialmente holista, enquanto hierrquica: o cristo (civilizado) no apenas se ope ao pago (selvagem), mas tambm o engloba pela converso. O uso desse esquema conceitual caracteriza a etnografia do IHGB com um carter missionrio. A associao da civilizao enquanto catequizao, aproximava a figura desse letrado oitocentista dos primeiros missionrios jesutas que tanto admiravam. Assim como os jesutas haviam feito, caberia a esse homem civilizado aprender a lngua do outro para nela transmitir a boa nova. Da a necessidade de toda uma estratgia de converso dirigida para a aprendizagem da lngua dos ndios. Novamente aqui, o exemplo jesuta faz-se presente: Por toda a parte fundaram os Jesuitas colgios, e para eles chamaram os moos que mais aptido mostravam para o estudo, e principalmente aqueles que mais queda tinham para a lngua geral129. Atravs da produo de intermedirios, poder-se-ia estabelecer um vnculo nos selvagens com a civilizao. Couto de Magalhes, Janurio da Cunha Barbosa e Joaquim Norberto propunham a criao de colgios onde se ensinasse a lngua Tupi. Essa proposta implicava na gramaticalizao da lngua indgena, o que tem por conseqncia impor-lhe uma organizao e uma lgica que no possua em sua forma oral. De um lado, o selvagem, ao aprender a sua prpria lngua segundo um padro de classificao grfico, teria sua memria profundamente transformada. De outro lado, ao ser transformada em palavra escrita, a fala indgena poderia se transformar em arquivo, condio primeira de sua insero em um tempo histrico. A gramaticalizao era, desse modo, o primeiro passo para a domesticao do
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KOSELLECK, Reinhart. A semntica histrico-politca de los conceitos contrrios assimtricos, in: Futuro passado. Op. Cit., pp. 205-250. 127 PAGDEN, Anthony. La cada del hombre natural. Op. Cit. 128 DUMONT, Louis. Homo hierarchicus, Le systme des castes et ses implications. Op. Cit. 129 SILVA, Joquim Noberto de Souza. Memria histrica e documentada..., Op. Cit. p. 137.

63 pensamento selvagem130. Domesticar os selvagens ou fazer com que eles nos entendam, o que a mesma coisa, como gostava de afirmar Couto de Magalhes. A escrita, tanto quanto a espada, continuaria a ter uma funo essencialmente colonizadora. Mediante um trabalho de retomada dos textos de Anchieta, Vieira, Nbrega, entre outros, os letrados do IHGB procuravam restaurar uma tradio. Com o estabelecimento, a crtica e a publicao desses textos, eles selecionavam as estratgias de converso desenvolvidas pelos jesutas. A restaurao, contudo, implicava em adequao, tanto aos novos interesses em jogo (a constituio de um Estado nacional), quanto s operaes intelectuais (a escrita etnogrfica). A converso civilizao promovida pelos scios do IHGB, diferentemente dos jesutas, era compreendida no apenas pela adoo dos valores cristos, mas tambm pelo desenvolvimento de conceitos, retirados da economia poltica, que conformavam sua idia de humanidade. Na viso desses letrados que ento se constituam como elite, o que definiria essa humanidade civilizada, luz de autores como Bentham e Mill, eram as noes de liberdade e propriedade, geradoras de um bem-estar 131. So estes os valores a que estavam ligadas, agora, as noes de escrita, temporalidade, memria e conscincia, que orientam o olhar de uma tradio ocidental. Se os indgenas possuam a primeira (ainda que essa fosse uma liberdade positiva, distinta da liberdade negativa dos modernos), conviria que tambm pudessem experimentar a segunda132. Como afirmava Janurio, seria introduzindo conceitos como meu e teu no que estava implicada uma reestruturao da lngua indgena que os selvagens poderiam desenvolver um habitus civilizado. O que o indgena deveria compartilhar no era mais uma memria da culpa original, mas sim traos de uma humanidade que se constituiu e se (re)constitui historicamente.

GOODY, Jack. La raison graphique. La domstication de la pense sauvage. Paris : Minuit, 1979. Para uma anlise desse pensamento liberal ingls e a formao de um discurso etnogrfico, cf. STOCKING, George W. Jr. Victorian Anthropology.Op. Cit. 132 Sobre as duas concepes de liberdade e sua relao com a formao de um regime moderno de historicidade, cf. HARTOG, Franois. O confronto com os antigos, in: Os Antigos, o passado, o presente. Braslia: UNB, 2003.
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64 1.7 Os limites da arqueologia e a linguagem como chave da histria

Como vimos nas sees anteriores, a implementao dessa nova converso seria legitimada atravs de argumentos de natureza estritamente histrica. Seria preciso resgatar a historicidade desses povos para avaliar at que ponto eles sofreram ou estariam aptos a sofrer um processo civilizador. Este processo civilizador, como vimos, vinha marcado por um carter missionrio, cujo princpio estava pautado numa estrutura conceitual herdada do pensamento teolgico. Assim como a oposio entre cristo e pago, a oposio selvagem/civilizado era entendida sob o prisma de um tempo inclusivo. O selvagem, como um ser decado, tambm poderia vir a se tornar um homem novo. Essa etnografia da decadncia, como destaca Claude Blanckaert, tem suas razes, igualmente, naquilo que poderamos chamar de uma antropologia missionria. Para os telogos missionrios, o selvagem no era propriamente um primitivo, um representante de um estado inicial da humanidade, mas antes um ser degradado, em conformidade com o mito da Queda original, sendo este mito o que mediatizava a reintroduo do aborgene do Novo Mundo em uma histria plena de significado133. a partir de sua degradao que se explicava a sua condio infantil, como fruto de um esquecimento e, portanto, um problema de educao134. Nesse sentido, a prpria idia de degradao o que permite a esses telogos promover a incluso (hierarquizada) dos povos selvagens, em plena oposio argumentao aristotlica da escravido natural. Da o esforo de autores como Acosta e Lafitau em desvelar nos costumes indgenas restos de uma religio original, cujos preceitos teriam se corrompido com o passar do tempo e com o isolamento daqueles povos. Degradao como possibilidade de salvao, assim poderamos resumir o esforo intelectual desses telogos em meio disputa da alma selvagem, ocorrida entre os sculos XVI e XVIII. O mesmo mote pode ser estendido ao debate etnogrfico formado no IHGB. Caberia ao conhecimento etnogrfico (e histria que ele permitisse resgatar) o esclarecimento e a legitimidade sobre a convertibilidade ou no do indgena. Da toda a expectativa alimentada em autores como Janurio da Cunha Barbosa, Gonalves Dias e Gonalves de Magalhes, de que a atual populao indgena fosse resqucio de uma
BLANCKAERT, Claude. Lethnographie de la dcadence. Culture morale et mort des races (XVII-XIX sicles), in: Gradhiva, n. 11, Paris, 1992, p. 50. Ver tambm GRAFTON, Anthony. New World, Ancient Texts. The power of tradition and the schok os Discovery. Cambridge: Harvard, 1992. 134 PAGDEN, A. La caida del Hombre Natural, Op. Cit. Do mesmo autor: Dispossessing the barbarian: the language os Spanish Thomism and the debate over the property rights of the American Indians, in: PAGDEN, A. (org). The languages os political theory in early-modern Europe. New York, Cambridge University Press, 1990.
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65 civilizao decada (e no degenerada)135. Na realizao desse resgate histrico, um papel central era atribudo questo da linguagem. Atravs da restaurao do modelo jesuta, os scios do IHGB consideravam a linguagem tanto um meio de extrao, coleo e comparao de mitos e lendas, como um instrumento de catequese e civilizao. Foi abordada, acima, esta sua funo instrumental. Convm, agora, uma reflexo sobre o seu carter metodolgico, o qual elevou a filologia como procedimento privilegiado para o resgate da obscura histria indgena.

***

Antes, porm, necessrio que indiquemos outros mtodos de investigao que estavam presentes na prtica etnogrfica do IHGB. Alm da filologia, encontramos tambm o recurso arqueologia. Janurio da Cunha Barbosa, no j citado relatrio anual das atividades do IHGB, aps justificar a grande quantidade de manuscritos publicados na revista, j que traziam valiosas notcias sobre o estado anterior das populaes indgenas, externou sua expectativa da existncia de monumentos que remetessem a uma civilizao anterior. Ele se refere aos monumentos de uma adiantada civilizao no Mxico e no Per, perguntando-se o porqu no haveria aqui tambm, em solo brasileiro, sinais parecidos136. Em sua opinio (diversa, portanto, daquela analisada acima, onde reputava os indgenas como primitivos), no haveria dvidas de tal existncia, ainda que fossem necessrias provas. Sua posio vinha reforada pelas prprias ilaes do Doutor Martius, quem, aps percorrer nossos sertes, tambm acreditaria que eles foram sem duvida pisados em remotos sculos por uma civilizao mais civilizada. Aps citar uma carta enviada ao IHGB pelo respeitado naturalista, onde ele apresentava a hiptese de que toda a povoao atual teria cado de uma
Essa diferena entre degradao e degenerao apresenta srias implicaes. Martius, como vimos acima, refuta, em sua dissertao, as teses de De Pauw (citado como De Panu). A degenerao, tal como entendida por De Pauw, no remetia a um estado anterior de grandeza, mas seria, antes, um estado degenerado contnuo e do qual os selvagens no poderiam sair. Da, tambm, a aproximao de Martius e dos integrantes do IHGB da posio de um Lafitau, que buscava, ao contrrio de De Pauw, provar, atravs do mtodo comparativo, a unidade do humano. Para uma anlise desse estado de degenerao em De Pauw, cf. GERBI, Antonello. O Novo Mundo. Histria de uma polmica (1750-1900). So Paulo: Cia. das Letras, 1996, cap. 3.; e DUCHET, Michle. Le partage des savoirs. Op. Cit. Cap. 4. A idia de degenerao iria ganhar um vigor maior quando um pensamento mais organicista se tornasse paradigmtico no pensamento antropolgico brasileiro. 136 Vale notar que essa expectativa vinha respaldada pela obra, bastante presente entre os scios do IHGB, do naturalista Alexander von Humboldt. Vue des cordillres et monumens des peuples indignes de lAmrique. Paris: F. Shoell, 1810. Alis, boa parte das questes relativas ao uso da linguagem e ao uso do mtodo comparativo se deve muito obra do clebre naturalista, que representa, de certa forma, a sntese do observador moderno. Para uma anlise de Humboldt, cf. PRATT, Marie Louise. Alexander von Humboldt e a reinveno da Amrica, in: Os olhos do Imprio. Relatos de viagem e transculturao. Op. Cit., pp. 195-248; e, particularmente, PAGDEN, Anthony. The receding horizon, in: European Encounters with the New World. New Haven: Yale University Press, 1993, pp. 117-140.
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66 posio muito mais nobre por diversas causas, Janurio evoca os caminhos incertos e imprevisveis da investigao histrica:

Em histria, Srs., os vestgios conduzem a conjecturas que, subindo pelos grus de probabilidade, muitas vezes nos aproximamos de fatos que o tempo tem coberto com o seu pesado manto. Um acaso levanta a ponta deste manto, e ento os acontecimentos, que rapidamente se sucederam, vagando como naus, que apenas deixam ver as marcas da sua viagem na limitada esteira de sua ppa, aparecem aos olhos do curioso observador como raios de luz que os encaminham mais seguros por entre as obscuridades dos priscos tempos137.

A pesquisa arqueolgica mostrava-se, portanto, uma atividade essencial na descoberta dessa histria perdida. Todos os sinais indicariam a sua existncia, faltando apenas esse golpe do acaso que traria aos olhos do curioso observador as marcas definitivas de uma nobre antigidade indgena. Na falta de documentos escritos, o que eles procuravam eram os restos materiais, especialmente grandes edificaes ou cidades perdidas, que revelassem a antiga nobreza dos selvagens brasileiros138. Em 1839, Janurio da Cunha Barbosa e Arajo Porto-Alegre publicariam na revista do Instituto um relatrio sobre uma possvel inscrio existente na pedra da Gvea. As concluses a que chegaram eram incertas. Mesmo aps as terem observado in locu, eles no conseguem decidir pela autenticidade ou no daquelas marcas. Por um lado, elas poderiam ser fruto dos caprichos da natureza; por outro, poderiam ter sido feitas pelas mos do homem. Afirmavam, desse modo, a necessidade de uma outra comisso que, munida dos ltimos recursos e melhores instrumentos, pudesse avaliar melhor a natureza das inscries. Ao final, expressam suas esperanas de que, em breve, fossem descobertos monumentos no territrio nacional, os quais permitiriam o esclarecimento do obscuro passado de civilizaes anteriores: A comisso no desespera da glria, que aguarda o Instituto Historico e Geogrfico, na descoberta de iguais monumentos; nem da esperana de ver aparecer em seu seio um Champoleon brasileiro, esse Newton da antiguidade Egpcia ou Cuvier do Nilo, para

BARBOSA, Janurio da Cunha. Op. Cit. p. Para uma viso mais geral do desenvolvimento da arqueologia no Brasil Imperial, cf LANGER, Johnni. A cidade perdida da Bahia: mito e arqueologia no Brasil Imprio, Revista Brasileira de Histria, So Paulo, v. 22, 2002. FERREIRA, Lcio M. Vestgios de Civilizao: o Instituto Histrico e Geogrfico Brasileiro e a construo da arqueologia imperial (1838-1870), Revista de Histria Regional, Ponta Grossa, vol. 4, n. 1, 1999.
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67 com o facho de seu gnio indagador iluminar esta parte to obscura da histria primeva do nosso Brasil139. O que motivava esses letrados a encontrar tais monumentos perdidos era a possibilidade de lanar uma luz definitiva e sbita sobre uma questo que pecava pela falta de inteligibilidade. Uma futura descoberta, mesmo feita ao acaso, seria encarada como uma revoluo no conhecimento das populaes indgenas. Ela indicaria, acima de tudo, a existncia de uma civilizao anterior, da qual os atuais indgenas seriam os restos observveis. Compreende-se, assim, toda a expectativa que esses autores nutriam quanto s pesquisas arqueolgicas. Mesmo Varnhagen alimentaria tais esperanas, de que algum vestgio surgisse do meio das florestas brasileiras. Mas, logo advertia o historiador, que no se abuse de tal crena: convm estar prevenido para seguir a pista de algum indcio; mas perder o tempo e o dinheiro a procurar, de maneira alguma140. A pesquisa arqueolgica, no entanto, no se restringia apenas busca de monumentos de civilizaes perdidas. Os trabalhos do doutor Lund, de Lagoa Santa, representam uma outra manifestao da pesquisa arqueolgica. Suas investigaes se distinguiam em alguns pontos importantes daquelas mencionadas acima. Essa distino pode se tornar mais clara ao recorrermos ao trabalho de Alain Schnapp acerca da histria da arqueologia141. Para este autor, a disciplinarizao e a transformao da arqueologia em um discurso cientfico foi acompanhada por um deslocamento de paradigma. No sculo XVII, a busca de restos da Antigidade era promovida tendo como modelo metafrico a filologia. Esse modelo filolgico conduzia os indivduos que a praticavam a constituir os sistemas de objetos em funo de um repertrio literrio ligado Antiguidade clssica142. A arqueologia que depois assumiria um carter autnomo, no final do sculo XVIII e comeo do XIX, se distinguiria do modelo anterior justamente por negar a referncia filolgica, constituindo-se como uma nova forma de conhecimento do passado da humanidade. Como diz Schnapp:
Archaiologia, Antiquitates, antiquits: durant plus de deux mille ans en Occident ces termes ont design ltude matrielle du pass, et les hommes qui sadonnaeint cette recherche taient nomms antiquaires. Dans la premire moiti du XIX sicle un
PORTO-ALEGRE, Manoel de A. & BARBOSA, Janurio da Cunha. Relatorio sobre a inscripo da Gavia, mandada examinar pelo IHGB, RIHGB, Tomo I, 1839, p. 103. 140 VARNHAGEN, Francisco A. de. Ethnographia indigena. Linguas, emigraes e archeologia. Padres de mamore dos primeiros descobridores, RIHGB, T. XXI, 2 Ed., 1849, p. 395. 141 SCHNAPP, Alain. La conqute du pass. Op. Cit. 142 Para uma anlise da arqueologia voltada para a Antiguidade clssica e sua relao com o passado, conferir tambm GRAFTON, Anthony. The Ancient City Restored: Archeology, Ecclesistical History, and Egyptology, in: Bring Out Your Dead. The past as revelation. Massachusetts: Harvard University Press, 2001.
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nouveau terme simpose progressivement, celui darchologie, et ce dplacement du vocabulaire correspond une modification du rle et de lobjet de la connaissance du pass. Les savants qui revendiquent explicitement ce qualificatif darchologue ont lambition de crer une branche nouvelle de la conaissance que ne soit plus troitement servante de la philologie mais qui embrasse toute la part matrielle de lhistoire humaine143.

No , portanto, s um outro vocabulrio que vem substituir a tradio antiquria, mas tambm um outro modo de conduzir a investigao, de colocar o problema. Pode-se dizer que as ambies arqueolgicas de Janurio de Cunha Barbosa e de Arajo Porto-Alegre estavam muito mais prximas daquele modelo filolgico. No se encontra ali a preocupao com camadas estratigrficas e com o estabelecimento de tipologias. O que procuravam, como dissemos, eram grandes monumentos, parecidos com os existentes no Mxico e no Peru. Com o doutor Lund, ao contrrio, o que encontramos um vocabulrio e uma abordagem que faz uso do segundo modelo, que pode ser denominado de naturalista144. Lund, em duas cartas endereadas ao IHGB, exps as concluses de suas pesquisas e os traos do mtodo que seguia. Em sua primeira carta, publicada em 1842, o sbio de Lagoa Santa remetia ao IHGB uma cpia do segundo fascculo de sua obra sobre a criao animal que habitava no Brasil na poca geolgica imediatamente precedente atual ordem de coisas145. No texto em questo, ele vinha resumir para os demais scios os resultados a que chegara. Mas o motivo maior que orientava a carta era outro: o problema da possvel coexistncia do homem com as grandes
SCHNAPP, Alain. La conqute du pass. Op. Cit., p. 335. Archaiologia, Antiquitates, antiguidades: durante mais de dois mil anos no Ocidente esses termos designaram o estudo material do passado, e os homens que se ocupavam com este estudo se nomeavam antiqurios. Na primeira metade do sculo XIX, um novo termo se impe progressivamente, o de arqueologia, e esse deslocamento de vocabulrio corresponde a uma modificao do papel e do objeto do conhecimento do passado. Os savants que reivindicavam explicitamente esse qualificativo de arquelogo tm a ambio de criar uma ramificao nova do conhecimento que no seja mais estreitamente serva da filologia, mas que abrace toda a parte material da histria humana. Para fazer isso, eles buscam construir um instrumento especfico necessrio classificao de objetos, a tipologia. Mas a tipologia no pode por ela mesma fornecer um quadro completo para a reconstituio do passado. necessrio assinalar os grupos de objetos e de monumentos aos perodos definidos e, portanto, observar o solo, distinguir as camadas, reconhecer as instalaes dos homens dos tempos antigos. Para esse efeito, os arquelogos recuperam a idia de estratigrafia da qual os gelogos j haviam lanada as bases. 144 Como destacou Manoel Guimares, Lund procede a um tipo de anlise que atesta sua familiaridade com os mtodos mais contemporneos da pesquisa arqueolgica, que procuravam articular as descobertas do material arqueolgico s caractersticas da regio, numa dmarche em que a anlise das qualidades estratigrficas dos terrenos onde foram encontrados os restos de ossos animais e humanos deveria contribuir para a definio de uma cronologia precisa no s dos terrenos em questo como tambm dos restos humanos presentes nesses terrenos. GUIMARES, Manoel. L. S. Reinventando a tradio: sobre Antiquariado e Escrita da Histria, Op. Cit., p. 137. 145 LUND, W. Carta escripta da Laga Santa (Minas Geraes), ao Sr. 1 Secretario do Instituto, pelo socio honorario Sr. Dr. Lund, RIHGB, Tomo IV, 1842, p. 81.
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69 espcies extintas questo que ainda no havia sido resolvida pelos naturalistas do velho mundo. Para resolver esse problema, afirmava Lund, era necessrio fazer uso de documentos especiais, de uma natureza diferente daquele utilizado na escrita da histria da atual ordem de coisas: Os arquivos em que se acham depositados os documentos relativos histria do nosso planeta, na poca geolgica de que se trata, so as cavernas furadas na pedra calcria, que entra como parte constituinte numa formao das mais extensas do interior do Brasil146. Aqui, portanto, o que o investigador deveria analisar no eram grandes edificaes que saltavam aos olhos, nem sequer inscries cravadas em rochas. Os documentos que essa abordagem arqueolgica de Lund institui so de outra natureza. Eles confundem-se com a prpria materialidade do planeta, aproximando-se, assim, da abordagem geolgica. Nas pedras calcrias, o arquelogo deve saber identificar as ossadas antigas, que com elas se misturam. Deve, ainda, distinguir suas formas, sua idade, as reaes qumicas e climticas que podem ter sofrido. S assim o pesquisador poderia chegar a alguma concluso a respeito da histria do planeta. Todas essas aptides foram usadas por Lund em sua argumentao. Primeiro, ele informa que, inesperadamente, em meio s suas escavaes em busca de fsseis de mamferos, encontrou com restos de indivduos humanos que indicariam a possibilidade da coexistncia de humanos com aqueles mamferos extintos. A primeira indagao que lhe ocorre se esses ossos no foram introduzidos ali posteriormente. De fato, diz Lund, tal introduo havia ocorrido. Contudo, todos apresentavam suficiente alterao na sua composio e textura para se reclamar para eles uma grande antigidade, de sorte que, se eles perderam o direito de servirem como documentos para decidir a questo principal da coexistncia do homem com as grandes espcies extintas de mamferos terrestres, ao menos conservam ainda bastante interesse debaixo deste ltimo ponto de vista147. V-se a perspiccia com que Lund faz uso de seus documentos, analisando-lhes a composio e textura. Com essa anlise, o sbio de Lagoa Santa conclui que o estado de conservao dos ossos por ele encontrados remeteria a uma ordem de tempo anterior ao atual estado de coisas, ou seja: uma idade de trinta sculos para cima. Fica, portanto, provado por estes documentos, em primeiro lugar que a povoao do Brasil deriva de tempos mui remotos, e indubitavelmente anteriores aos tempos histricos148.

146 147

Idem, Ibidem, p. 81. Idem, Ibidem, p. 83. 148 Idem, Ibidem, p. 84.

70 Terminada essa primeira parte da argumentao, na qual Lund insere os restos humanos em uma temporalidade que extrapola os tempos histricos, ele apresenta uma outra srie de indagaes: quem eram esses indivduos? A que raa pertenciam ? Qual a sua perfeio intelectual? Aqui, novamente, percebe-se a distancia que caracteriza o trabalho de Lund do debate ento dominante no IHGB. Pois, diferentemente de letrados como Barbosa, Dias, Magalhes e Pinheiro, Lund constri uma abordagem que privilegia os aspectos naturais da existncia humana, inserindo-os em uma tipologia eminentemente racial: Tendo achado vrios crnios, mais ou menos completos, pude determinar o lugar que deviam ocupar os indivduos, a quem tinham pertencido, no sistema antropolgico. Efectivamente a estreiteza da testa, a proeminncia dos ossos zigomticos, o ngulo facial, a forma da maxila e da rbita, tudo assinala a estes crnios o lugar entre os mais caractersticos da raa americana149. Atravs da anlise desses documentos, ele no apenas classifica os antigos americanos em uma tipologia determinada, como tambm conclui que os indivduos que habitavam a Amrica h mais de trs mil anos eram da mesma raa dos que no tempo da conquista occupavam este paiz. Ora, esta concluso que Lund lanava em 1842 poderia ser vista como uma resposta efetiva s indagaes que tanto inquietavam os letrados do IHGB. Os indgenas que habitavam o Brasil poca da descoberta seriam descendentes de um grupo racial que remontava a tempos muito remotos, e, mais do que isso, teriam permanecido praticamente iguais durante todo esse perodo. Lund tambm avalia, tendo como referncia aquela classificao, o grau de inteligncia que deveriam possuir os indivduos daquele tipo racial:

Sendo, como , suficientemente provado que o desenvolvimento da inteligncia est em relao direta com o desenvolvimento do crebro, fica sempre a inspeo do crnio um dos meios mais seguros, sendo feita com a necessria discrio, para avaliar o grau que deve ocupar o indivduo examinado, e conseguintemente a raa a que ele pertence na escala progressiva dos entes intelectuais. Aplicado este critrio aos crnios em questo, h de sair a sentena muito em desvafor das faculdades intelectuais dos indivduos de que derivam: nem podemos esperar grandes progressos na indstria e nas artes de povos, cuja organizao cerebral oferece um substrato to mesquinho para a sede da inteligncia150.

149 150

Idem, Ibidem. Idem, Ibidem, p. 85.

71 Esse modelo de abordagem, eminentemente naturalista, foge aos padres do debate etnogrfico que se firmou no IHGB. A questo da determinao da natureza humana medida por configuraes dos crnios, tal como desenvolvida por Lund, s encontraria um espao institucional e intelectual propcio na dcada de setenta, com os integrantes do Museu Nacional. No surpreende, assim, que o dr. Lund venha a ser retomado por esses pesquisadores, reconhecendo o seu trabalho e dando continuidade a ele. O que ser privilegiado, ento, no mais a insero do selvagem em uma comunidade humana restrita temporalidade bblica, mas sim a sua classificao em um quadro que remete a um tempo da natureza151. Mesmo sendo reconhecido por suas pesquisas, pode-se afirmar que Lund ocupou uma posio marginal na discusso etnogrfica do IHGB. Apesar dos possveis impactos de suas descobertas a respeito do homem americano, as poucas referncias que eram feitas a ele remetiam, antes, s suas pesquisas sobre os mamferos extintos. Afinal, a abordagem diferenciada de Lund apontava para uma situao que no ia ao encontro dos interesses etnogrficos dos scios do IHGB152. Os selvagens brasileiros, segundo o sbio de Lagoa Santa, seriam seres condenados a priori a permanecer fora do processo civilizacional, entendendo esse processo como organizado por uma estrutura imanente que delimitaria o desenvolvimento possvel. A temporalidade que se desenha nessa perspectiva, naturalizada, eminentemente exclusiva. Enquanto tal, no haveria qualquer legitimidade cientfica em sustentar uma atitude missionria. A histria do homem, como parte integrante e mesmo subordinada histria do planeta, no deixaria qualquer margem de manobra inteno evangelizadora. Em sua outra carta, Lund chegaria, inclusive, a inverter a rota migratria que ento se supunha a mais provvel: da sia para a Amrica. Para o naturalista, tendo como pressuposto que existe um desenvolvimento racial do menos ao mais aperfeioado, e na medida em que suas pesquisas indicariam um carter mais inferior ao americano se comparado ao mongol, a nica concluso que se poderia chegar que a migrao ocorreu da Amrica para a sia: Para os que querem insistir na comum origem destas duas raas, no fica pois outro expediente, seno inverter a ordem cronolgica at aqui admitida, o que viria certamente a ser mais em conformidade com a marcha ordinria da natureza, procedendo do

Esta diferena ser analisada no terceiro captulo da tese. As pesquisas de Lund suscitaram o interesse, todavia, dos integrantes da Sociedade dos Antiqurios do Norte, pois seus resultados poderiam apontar para uma possvel colonizao dos normandos em solo americano. Contudo, os resultados a que Lund chegou acabaram por frustrar essas expectativas, pois os ossos por ele encontrados diriam respeito aos habitantes primitivos do territrio brasileiro. Cf. GUIMARES, Manoel. Reinventando a tradio: sobre Antiquariado e Escrita da Histria, Op. Cit.
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151

72 imperfeito para o mais perfeito153. A principal marca de distino entre o trabalho de Lund e o debate que se configurou no IHGB pode ser encontrada a: ele trabalha com uma ordem da natureza, a qual implica tanto a considerao de um mesmo campo de abrangncia para os homens e os demais seres vivos, como a insero de marcas indelveis de distino dos homens entre si. Se, de fato, ele no avana em sua argumentao uma teoria propriamente poligenista, ele tambm no deixa de considerar os aspectos raciais como condicionamento das possibilidades humanas.

***

Voltando agora quele outro modelo de pesquisa, que ocupou um lugar hegemnico no IHGB, vejamos como a arqueologia acabou por se mostrar um mtodo limitado para os letrados envolvidos no debate etnogrfico, cedendo lugar, por sua vez, s investigaes acerca da linguagem e costumes. Apesar das esperanas e dos esforos de Janurio da Cunha Barbosa e dos demais integrantes do IHGB em buscar vestgios materiais de uma grande civilizao, nada seria encontrado que respaldasse suas expectativas. A inexistncia de tais monumentos impossibilitava a comprovao definitiva de uma antiga nobreza dos ndios. Esta ausncia, no entanto, no impediria que continuassem a sustentar a hiptese que considerava os selvagens como seres decados. J na dcada de 1870, Couto de Magalhes tambm apontaria para uma tese similar, apesar de reconhecer que at ento no havia notcias de monumentos no territrio brasileiro: Dir-se- que nossos selvagens no haviam atingido o estado de civilizao necessrio para tais criaes. No assim; os povos mais brbaros os tm erguido154. A ausncia de edificaes no seria uma prova de incapacidade dos selvagens para constituir uma civilizao, mas remeteria a alguma outra causa. Para ele, os grupos indgenas existentes no territrio nacional j tinham vivido em outra regio o tempo necessrio para transpr os primeiros perodos da barbria. Couto de Magalhes ir fundamentar sua tese no em supostos resqucios materiais, mas antes em um outro procedimento, mais adequado ao estudo dessas populaes: a lingstica, filha primognita da antropologia.

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LUND, W. Carta do Dr. Lund, escripta da Laga Santa (Minas Geraes) a 21 de Abril de 1844 Lida na sesso do Instituto de 20 de Junho deste mesmo ano, RIHGB, Tomo VI, 1844, p. 332. 154 MAGALHES, Couto de. Op. Cit. p. 33.

73 Na ausncia de restos materiais, a linguagem dos indgenas se apresentava como um indcio possvel de ser usado na tentativa de dar uma inteligibilidade ao seu passado. Gonalves de Magalhes, por exemplo, trazia para sua argumentao um juzo de valor, de ordem esttica, a respeito da lngua dos indgenas brasileiros:

A sua lingua to suave, elegante e copiosa, que segundo a opinio dos que a cultivaram e gramaticaram, no lhe levam vantagem a Grega e a Latina. Lingua (diz Montoya) tan copiosa y elegante, que con rason puede com las de fama. E Simo de Vascocelos exclama: em que escolas aprenderam, no meio dos sertes to acertadas regras de gramtica, que no falta um ponto de perfeio da praxe de nomes, verbos, conjugaes ativas e passivas? No do vantagem nisso as mais polidas artes dos Gregos e Latinos155.

O nvel de perfeio gramatical da lngua tupi, cuja observao est ligada diretamente ao seu processo de gramaticalizao, era transposto para a argumentao no como um juzo de valor, mas como um juzo de fato. A analogia tecida por Magalhes entre a lngua dos selvagens e aquela de Homero sugeriria, assim, um alto padro cultural alcanado pelos povos autctones do Brasil, ao menos em seu passado. Ao tecer um paralelo entre os selvagens e os antigos, Magalhes lanava mo do prestgio ento atribudo aos gregos e romanos, origem e modelo da civilizao. Nesse sentido, mais que tornar os antigos selvagens, o que sua operao visava como efeito era a nobilitao dos indgnas156. No um selvagem com vestes gregas, mas um grego despido em terras americanas! Contudo, apesar dessa transposio de um juzo de valor para um juzo de fato ter sido comum nas argumentaes a respeito da lngua indgena, o que mais prevalecia era uma abordagem de cunho filolgico, atravs da qual se considerava a fala indgena como um depsito de tradies. Aqui, interessava menos uma comparao de ordem esttica do que o estabelecimento de uma genealogia. A instituio da fala em documento, na medida em que supria a falta de traos materiais, tambm possibilitava ao investigador transformar a cultura indgena em um quadro fechado e acabado, dando-lhe uma coerncia formal157. A gramaticalizao e a extrao de mitos e teogonias faziam parte da construo de uma imagem do ndio, constituindo um processo de familiarizao. Toda a dinmica de criao e
MAGALHES, D. J. Gonalves de. O indigena perante a Histria, Op. Cit. p. 45. Grifos no original. Sobre o uso do paralelo entre antigos, modernos e selvagens, cf. HARTOG, Franois. Anciens, Modernes, Sauvages. Paris: Galaade, 2005. 157 PAGDEN, Anthony. The savage decomposed, in: European Encounters with the New World. New Haven: Yale University Press, 1993.
156 155

74 de formulao de prticas prprias queles grupos era, desse modo, cristalizada atravs da anlise grfica, transformando-se em objeto de anlise158. Com essa operao, o investigador poderia tecer consideraes no apenas sobre o presente congelado daquelas sociedades, mas igualmente sobre seu passado, deduzindo uma histria por meio de indcios existentes na fala do selvagem. O prprio Martius, em sua dissertao, apesar de tambm valorizar a arqueologia como um meio de esclarecer a obscura histria indgena, designa como documento mais geral e mais significativo a lngua dos selvagens. Reticente quanto disposio do IHGB para investigaes nessa rea, ele no deixa, contudo, de recomend-la aos historiadores brasileiros, sugerindo que o Instituto designasse alguns lingistas que se responsabilizassem pela redao de dicionrios e observaes gramaticais sobre estas lnguas, determinando que estes Srs. fossem ter com os mesmos ndios159. Segundo Martius, seria somente com o estudo criterioso dos radicais da lngua tupi e de seus dialetos que se poderia ter um conhecimento eficaz sobre a constituio desses povos160. Uma vez conhecida sua gramtica, poder-se-ia desenvolver estudos sobre sua mitologia, teogonia, noes de direito e relaes sociais. Na falta de restos materiais que tornassem mais evidente a existncia de uma civilizao anterior, o estudo das lnguas permitiria o conhecimento do carter espiritual desses povos, assim como a deduo de uma histria de degradao. Essa proposta de Martius vinha ao encontro dos interesses do IHGB, consolidando o estudo da linguagem como o melhor modo de resgatar a obscura histria indgena. Atravs da reduo lingstica, acrescida de um esforo de classificao e, principalmente, de uma

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BOURDIEU, Pierre. Esquisse dune thorie de la pratique. Paris: Seuil, 2000 ; GOODY, Jack. La domstication de la pense sauvage. Op. Cit. 159 MARTIUS, K. F. von. Op. Cit., p. 394. 160 Como apontou Temstocles Cezar, talvez a concepo de uma cincia lingstica de Martius tenha sido fortemente influenciada por Wilhelm von Humboldt. CEZAR, Temsitocles. Como deveria ser escrita a histria do Brasil no sculo XIX. Ensaio de histria intelectual, Op. Cit, p. 188, nota 47. De fato, em discurso lido na Academia de Cincia de Berlim, em junho de 1820, Humboldt tece as linhas gerais de uma cincia lingstica autnoma, fruto das reflexes que vinha realizando desde o incio do sculo. Sobre as populaes americanas, ele dir: Pero tambin el dialecto de la ms tosca de las naciones es una obra demasiado noble de la Naturaleza como para que la rompamos en pedazos tan casuales y la presentemos de manera fragmentaria a la consideracin. Ese dialecto es un ser orgnico e hemos de tratar-lo como tal. De ah que la primera regla sea estudiar antes que nada cada lengua conocida en su conexin interna, perseguir y ordenar sistemticamente todas las analogas que en ella quepa encontrar, con el fin de llegar a conocer as, de manera intuitiva, el enlace gramatical de las ideas que en ella existen, la extensin de los conceptos designados, la naturaleza de esa designacin y el impulso espiritual ms o menos vivo que la acompaa y que tiende hacia la ampliacin y el refinamiento. HUMBOLDT, Wilhelm von. Sobre el estudio de las lenguas en relacin con las diversas pocas de su evolucin, in: Escritos sobre el language. Barcelona: Ediciones Pennsula, 1991, p. 41. Sobre a concepo de linguagem em Humboldt e suas implicaes para o conhecimento dos povos, conferir a tima anlise do desenvolvimento da filosofia da linguagem em CASSIRER, Ernst. O problema da linguagem na histria da filosofia, in: A filosofia das formas simblicas. I- A linguagem. So Paulo: Martins Fontes, 2001, pp. 79-172.

75 atitude de comparao, os autores poderiam construir um saber eficaz sobre esses povos161. Raimundo da Cunha Matos, em sua dissertao acerca do sistema de escrever a histria do Brasil, j apontava para esse modelo de investigao como o nico capaz de suprir as lacunas existentes sobre o passado dos selvagens:

Se eu houvesse de escrever a histria dos aborgenes do Brasil, ver-me-ia to embaraado como todos os que em pocas mais ou menos remotas tem dissertado a respeito deles. Muitos historiadores improvisaram, e quizeram mostrar como fatos certos e evidentes, aqueles que nasciam de simples conjecturas. A cincia da lingstica que agora comea a cultivar-se, a que h de mostrar-nos a origem das tribos ou naes; nem esperemos que os homens que no possuem monumentos de sculos mais ou menos remotos, nos digam se se reputam autctones, ou se vieram de terras longnquas estabelecer-se nos lugares a que se acham162.

A etnografia, concebida como um modo de fazer a histria dos selvagens, no poderia se restringir a simples conjecturas. Tal como a histria propriamente dita, ela necessitava de fatos. Contudo, na falta de documentos histricos produzidos pelos indgenas, o nico mtodo capaz de fornecer tais fatos como o coloca Matos seria a cincia da lingstica. Graas a esta cincia, poder-se-ia, por meio da instituio e comparao de objetos familiares, deduzir uma histria que fugia conscincia dos selvagens. J que estes no cultivavam uma memria (poder-se-ia dizer com Ricoeur, uma memria declarativa), caberia ao etngrafo extrair da fala selvagem indcios que permitissem reconstruir seu passado com a maior verossimelhana possvel163. Joaquim Norberto, a exemplo de outros autores, usa desse argumento lingstico para emitir um juzo acerca da descendncia comum das tribos nacionais: A lngua geralmente seguida por todos os aborgines do Brasil, seus usos e costumes mais comuns, e suas tradies mais ou menos idnticas, provam que eles descendiam dos tupis, que formavam antigamente

A comparao a caracterstica metodolgica mais cara a esse modelo etnogrfico. Tendo suas bases em Lafitau, a quem Martius cita, ela se tornou um procedimento hegemnico na etnografia da primeira metade do sculo. LAFITAU, Joseph-Franois. Moeurs des sauvages amricans compares aux moeurs des premier temps. Paris: La Dcouvert, 1983. Sobre essa atitude de comparao e a experincia histrica moderna, cf. HARTOG, Franois. Du parallle comparaison, in: Entretiens dArcheologie et dHistoire, Paris: 1998. Para uma anlise da relao entre a comparao em antropologia e a sua recusa no mbito da disciplina histrica, que trata do incomparvel , cf. DETIENNE, Marcel. Comparar o incomparvel. So Paulo : Idias e Letras, 2004. 162 MATOS, Raimundo da Cunha. Dissertao acerca do systema de escrever a historia antiga e moderna do Brasil, Op. Cit., p. 133. 163 RICOEUR, Paul. La mmoire, lhistoite, loubli. Paris : Seuil, 2001.

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76 uma s nao, sem dvida ainda pouco numerosa164. Os diferentes dialetos falados pelos selvagens dispersos em solo nacional seriam, assim, variaes de uma lngua mais originria, mais pura. De semelhana em semelhana, chegar-se-ia a uma fonte comum. Essa genealogia lingstica ia de par com a concepo monogenista que esses letrados alimentavam. Do caos e da fragmentao, se poderia chegar a um tronco nico, o qual, por sua vez, seria igualmente remetido a uma descendncia mais longnqua e originria. Afinal, para grande parte desses autores, os selvagens brasileiros eram, em ltima instncia, os descendentes dos filhos de Cam. De qualquer forma, uma filologia capacitada a seguir as semelhanas existentes entre os diversos dialetos indgenas era considerada o melhor instrumento para a pesquisa etnogrfica. Esses letrados, inclusive, citavam com bastante freqncia lingistas europeus como Bunsen, Max Mller, Barton, Vater, entre outros. Percebe-se, assim, a proximidade desse modelo etnolgico desenvolvido no IHGB com aquele que George Stocking denominou de prichardiano, referindo-se ao trabalho do etnlogo ingls James Cowles Prichard165. O investimento filolgico ali realizado na constituio de uma grande famlia lingstica indoeuropia baseava-se, igualmente, na comprovao de um tronco nico do qual teriam sado os diferentes grupos humanos. Bunsen, com sua Philosophy of Universal History, tinha como inteno agrupar lnguas diversas como as Americanas, Malaias, Polinsias e Australianas sob uma nica categoria que ele denominava Turanianas. Todo esse esforo, ainda que, no caso da Inglaterra, tenha entrado em franco declnio aps a dcada de 1850, visava a comprovao cientfica da unidade psquica do homem e a sua insero numa temporalidade bblica, sustentando, por sua vez, uma filantropia colonialista crist. No debate desenvolvido no IHGB encontra-se esse mesmo esforo genealgico, como em Igncio Accioli:

Em oitenta de trs lnguas americanas, examinadas pelos Srs. Barton e Vater, tem-se reconhecido perto de setenta, cujas razes parecem ser as mesmas, e fcil de se convencer que esta analogia no acidental, por isso ela no repousa simplesmente sobre a harmonia imitativa, ou sobre esta igualdade de conformao dos rgos, que torna quase idnticos os primeiros sons articulados pelos meninos. Sobre cento e setenta palavras que tem relao entre si, h trs quintos que trazem memria a

SILVA, Joaquim Norberto de Souza. Memoria historica e documentada das aldeas da provincia do Rio de Janeiro, Op. Cit. p. 120. 165 STOCKING, G. W. Victorian Anthropology. Op. Cit. pp. 46-77.

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mantchu, a tuquese, a mongolica e a samoydea, e dois quintos que lembram da mesma forma as lnguas clticas, tschuda, a basque, a copta, e a congo166.

Esse mtodo filolgico regressivo foi o procedimento investigativo e argumentativo mais adotado pelos scios do IHGB, tanto pelos defensores da catequese, como para aqueles que a recusavam, como Varnhagen167. Ambos reconheciam a validade desse mtodo, assim como dos parmetros bblicos desse debate, procurando neles os argumentos que melhor legitimassem suas posies. Como afirmou Norberto, ser to difcil como impossvel, no j assinalar a origem dos autctones do Brasil, como mostrar as relaes que guardavam umas tribos para com outras de que foram sucessivamente se destacando, sem o perfeito conhecimento das lnguas americanas a fim de comparar-se esses grupos, que as falavam, j com mais ou menos pureza, j com mais ou menos corrupo, e a perfeita semelhana entre elas168. A maioria trilhava as semelhanas gramaticais em busca de um passado nobilitador. Outros, como Varnhagen, usavam a filologia para construir um passado para os selvagens com o objetivo, que no deixa de ser paradoxal, de negar queles povos a condio de pertencimento a uma conscincia histrica moderna, ocidental e crist. Para ambos, contudo, o estudo da linguagem era o mtodo que melhor se aliava a uma determinada concepo de natureza humana e, por conseguinte, a uma viso da histria da humanidade, em relao s quais esse letrado do Imprio do Brasil formulava sua identidade e orientava suas aes. Pode-se dizer que a linguagem ocupava, para essa antropologia bblica, um papel similar ao que vai ser ocupado, posteriormente, pelos crnios, quando o modelo de antropologia fsica vier substituir a etnografia do IHGB. Essa seleo de diferentes dispositivos para a operao etnogrfica implicava, igualmente, na elaborao de diferentes histrias para os indgenas brasileiros. Enquanto que, por meio da linguagem, os letrados do IHGB buscavam incorporar e hierarquizar os indgenas dentro de uma mesma comunidade crist e nacional (uma temporalidade inclusiva), os cientistas do Museu Nacional, por sua vez, marcariam, atravs de delimitao de tipologias raciais, traos indelveis de separao nos selvagens (uma temporalidade exclusiva). Alm desses cientistas, tambm estariam presentes outros autores que procurariam construir solues diversas para os problemas herdados da etnografia imperial. Esse , como veremos, outro debate, do qual saram diferentes histrias.
ACCIOLI, Ignacio. Disertao historica, ethnographica e politica sobre as tribus aborigenes que habitavam a provincia da Bahia ao tempo em que o Brazil foi conquistado; sobre suas matas, madeiras e animaes que a povoavam, etc, RIHGB, Tomo V, 1849, p. 219. 167 Como j foi dito, o Dr. Lund tem nesse debate uma posio marginal. 168 SILVA, Joquim Norberto de Sousa. Memoria historica e documentada das aldeas da provincia do Rio de Janeiro, Op. Cit. p. 120-121.
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Captulo 2: Alegorias do selvagem: a escrita do outro e a construo de si

A histria produzida pela etnografia, como j foi dito, tinha implicaes diretas e necessrias com a produo de uma histria nacional. At aqui, temos enfatizado os mbitos retricos e os procedimentos investigativos que caracterizavam o debate etnogrfico no IHGB. Vale ressaltar agora as sugestes de James Clifford, que prope tratar o texto etnogrfico como uma performance com enredo estruturado atravs de histrias poderosas1. Entender esses textos enquanto armados de uma estrutura alegrica nos permite uma leitura mais atenta s camadas que o compe, j que os fatos ali relatados sempre remetem a um sentido subjacente que os organiza. Logo, o que se mantm nesses textos uma dupla ateno superfcie descritiva e aos significados mais abstratos, comparativos e explanatrios2. O que eu procurarei mostrar em seguida so trs casos especficos, porm ilustrativos, dos diferentes modos como esse substrato alegrico da escrita etnogrfica produzida no IHGB remetia a um sentido maior, qual seja o da histria da nao.

2.1 Varnhagen e a vingana da histria

Francisco Adolpho de Varnhagen ocupa, na historiografia brasileira, uma posio de destaque. Desde o necrolgio de Capistrano de Abreu at s teses e dissertaes mais contemporneas, seu nome vincula-se, seja em seu aspecto genealgico seja em seu aspecto arqueolgico, ao processo de disciplinarizao da histria no Brasil3. Muito j se disse de suas concepes polticas e como estas se manifestaram em seus escritos histricos, particularmente sua Histria Geral do Brasil4. Dentro destas concepes polticas, sabe-se o lugar que Varnhagen atribua aos indgenas brasileiros e quais as aes que ele defendia que o
CLIFFORD, James.Sobre a alegoria etnogrfica, in: A experincia etnogrfica. Antropologia e literatura no sculo XX, Op. Cit., p. 63. 2 Idem, Ibidem. p. 67. 3 ABREU, Capistrano. Necrolgio de Francisco Adolfo de Varnhagen, Visconde de Porto Seguro, in: Ensaios e Estudos. Organizao de Jos Honrio Rodrigues. Rio de Janeiro: Civilizao Brasileira/INL, 1975. Entre teses e dissertaes contemporneas vale ressaltar a j citada tese de Temstocles Czar, e a dissertao de Tase Tatiana Quadros da Silva, A reescrita da tradio: a inveno historiogrfica do documento na Histria Geral do Brasil de Francisco Adolfo de Varnhagen(1854-1857),Op. Cit. 4 A esse respeito, cf. ODALIA, Nilo. As formas do mesmo. Ensaios sobre o pensamento historiogrfico de Varnhagen e Oliveira Vianna. So Paulo: UNESP, 1997; e WHELING, Arno. Estado, histria, memria: Varnhagen e a construo da identidade nacional. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1999.
1

79 Estado tomasse frente queles grupos5. O que se procura aqui situar os textos etnogrficos do autor da Histria Geral dentro do quadro de referncias que configuravam o debate etnogrfico do IHGB, tal como foi reconstrudo no primeiro captulo. Ao fazer isso, o que procuro destacar o modo como Varnhagen concebe a condio temporal dos selvagens brasileiros e como, a partir disso, sua prpria concepo de histria desenhada. O que especifica sua posio dentro do debate etnogrfico no qual se inseria era o fato de que ele procurava demonstrar, fazendo uso da mesma gramtica compartilhada pelos demais scios do IHGB, a inviabilidade de converso dos indgenas civilizao crist. Ao contrrio de autores como Gonalves Dias e Gonalves de Magalhes, que associavam o projeto civilizador com a misso catequtica, o autor da Histria Geral concebia a civilizao enquanto uma herana, fundada no poder poltico, que caberia aos seus herdeiros preservar e, assim, excluir aqueles que lhe fossem estranhos.

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Em sua entrada no debate etnogrfico, Varhagen, como Martius, elaboraria um artigo defendendo a importncia de que o IHGB se responsabilizasse pelo estudo das lnguas indgenas. Neste artigo, vemos aparecer as duas premissas bsicas da etnografia praticada no Instituto, envolvendo conhecimento do passado e catequizao. Varnhagen inicia seu texto defendendo a necessidade de que o catecmeno oua na sua prpria lngua as palavras de doura que o devem atrair e domar6. Em aparente harmonia com o projeto desenvolvido pelo IHGB, ele restaura a estratgia jesuta de uma converso da escrita e pela escrita, atravs da qual o selvagem poderia vir a compartilhar uma memria ocidental e crist7. Sugere, ainda, que os selvagens deveriam ser atrados mediante vantagens materiais, sendo este o melhor modo de gravar-lhes no corao as mximas morais do Cristianismo. O desenvolvimento da noo de propriedade, assim como as noes de religiosidade, eram, como vimos, dois requisitos para essa nova converso civilizao. Ele logo ressalta, no entanto, que seu objetivo no referido artigo bem maior:

OLIVEIRA, Laura Nogueira. Os ndios bravos e o Sr. Visconde: os indgenas brasileiros na obra de Francisco Adolpho de Varnhagen. Dissertao de mestrado. Belo Horizonte: FFCH-UFMG, 2000; e PUNTONI, Pedro. O senhor Varnhagen e o patriotismo caboclo: o indgena e o indianismo perante a historiografia brasileira, in: JANCS, Istvn (org). Brasil: Formao do Estado e da Nao, So Paulo: Hucitec, 2003. 6 VARNHAGEN, Francisco Adolpho de. Sobre a necessidade do estudo das linguas indigenas do Brazil, Op. Cit. p. 42. 7 Sobre a estratgia jusutica de converso pela escrita, cf. DAHER, Andra. Cultura escrita. oralidade e memria: a lngua geral na Amrica Portuguesa, Op. Cit., p.20.

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As nossas intenes devem ir mais longe, porque devemos olhar tanto para o presente quanto para o futuro. para o bem da Histria e da Geografia, e de todos os ramos da literatura que um dia h de ter este abenoado pas, que eu, desde j aproveitando nesta sesso a presena de to esclarecido auditrio, ouso a bem da filologia nacional reclamar, e em quanto tempo, o estudo das lnguas indigenas, que fizeram sem contestao uma pequena reao lngua colonizadora antes de a deixar aclimatar8.

O objetivo central de sua proposta , portanto, malgrado a referncia catequese e sua funo colonizadora, incentivar a produo de um arquivo. O estudo das lnguas indgenas justifica-se, em primeira instncia, como uma etapa necessria para o conhecimento histrico. Assim como o IHGB vinha coletando, arquivando e publicando os documentos escritos que permitissem a construo de uma histria nacional, fazia-se necessrio que houvesse tambm um esforo em produzir um arquivo para as populaes indgenas, antes que elas desaparecessem definitivamente9. J que elas no dominavam a escrita e no deixaram traos prprios que possibilitassem um resgate de seu passado, cabia aos estudiosos suprir essa falta, eles mesmos transformando em arquivo o que at ento era apenas fala. Atravs da reduo lingstica, em gramticas e em dicionrios, as lnguas ainda existentes poderiam ser preservadas, possibilitando sua devida classificao e, a exemplo do que ocorrera na Europa, a deduo de uma histria das invases e transmigraes dos povos aborgenes10. A converso da fala em escrita, tornando-a arquivo, serviria na construo de uma histria. O prprio Varnhagen se ocuparia desse tipo de trabalho, seja cuidando da reimpresso dos valiosos dicionrios do Padre Montoya, seja levantando hipteses acerca da origem dos povos americanos11. V-se, assim, como Varnhagen, neste primeiro texto etnogrfico, trabalha com as mesmas questes que guiavam o debate etnogrfico do IHGB, destacando o estudo da linguagem como a melhor forma de reconstruir a obscura histria indgena.

VARNHAGEN, Francisco A. de. Op. Cit. p. 43. Como destaca Hartog, no existe arquivo independentemente do historiador. Ele existe apenas a partir do momento em que se decide v-lo como tal, quando o recorte de novos arquivos avana de par com a formulao de novas questes. No ponto de partida, para que haja arquivo, preciso haver um homem letrado e, para utilizar os arquivos, trabalhar a partir de arquivos, preciso, de uma maneira ou de outra, privilegiar o escrito como mais verdadeiro, mais autntico, mais seguro que o oral (ficando bem entendido que o escrito pode mentir). HARTOG, Franois. O espelho de Herdoto, Op. Cit. p. 291. 10 VARNHAGEN, F. A. de. Op. Cit. p. 44. 11 VARNHAGEN, F. A. de. LOrigine Touranienne des Amricains Tupis-Caribes et des Anciens Egyptiens. Indique principalement par la philologie compare: traces dune ancienne migration em Amrique, invasion du Brsil par les Tupis, etc., Vienne, Librairie I. et R. de Faesy & Frick, 1876. No mesmo ano, o autor publicava, com uma introduo, a gramtica de MONTOYA, A. Ruiz. Gramatica y diccionarios arte, vocabulario y tesoro de la lengua tupi o guarani. Viena: Faesy & Frick, 1876.
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81 Como j foi dito, a posio que se tornou dominante dentro do IHGB era a partidria da catequizao dos ndios. Mesmo Varnhagen, no artigo sobre a necessidade do estudo da lngua tupi, sugeriu os melhores modos de atra-los civilizao. Contudo, pode-se supor que aquelas consideraes, at mesmo por ocuparem apenas um lugar introdutrio, tinham um papel mais de convenincia (o artigo foi lido para os scios) do que propriamente de convico. Seu objetivo maior, como foi dito, era promover a instituio de um arquivo. De qualquer forma, a partir de meados da dcada de 1840, quando o debate etnogrfico no IHGB ganhava uma configurao mais definida, Varnhagen assume uma posio na qual investe boa parte de seus esforos e a qual defenderia at a dcada de 1870. Seu Memorial Orgnico (1849), a Histria Geral (1854-1857), Os Indios Bravos e o Sr. Lisboa (1867), a segunda edio da Histria Geral (1871) e a Lorigine touranienne des Amricains (1876), so os textos que demarcam sua atuao nesse debate. Enquanto que a maioria dos letrados do IHGB promovia o argumento da catequese e civilizao, o autor da Histria Geral se tornava o representante maior do posicionamento contrrio incluso positiva dos ndios na civilizao do Imprio. A anlise que se segue tem como foco esse seu posicionamento, assim como as relaes da decorrentes entre escrita etnogrfica e discurso histrico12. O prprio Varnhagen, em um momento j adiantado do debate, narraria sua prpria experincia de converso. Em 1840, diz ele, quando viajava pela provncia de So Paulo, em plena estrada real, quase foi atacado por um grupo de selvagens que, segundo diziam, andava assaltando e aterrorizando aquelas bandas. Todas as iluses que alimentava sobre a condio dos selvagens teriam desmoronado diante deste fato: Vista faz f. A minha converso, o meu horror pela selvageria nasceu em mim em meio dos nossos sertes, e em presena, digamos assim, dessa mesma selvageria13. Desde ento, diante dessa experincia pessoal, ele havia se tornado convicto da necessidade de uma poltica mais realista com relao aos selvagens que ocupavam partes do territrio nacional: Conclui que as Provncias infestadas do flagelo dos ndios Bravos se podiam considerar peor que infestadas pelo flagelo da guerra civil, e que sem embargo mui pouco se preocupavam com isso os nossos polticos14. Independente da ocorrncia ou no desse fato, ou mesmo de sua importncia para a converso de Varnhagen, o que vale destacar a eficcia retrica que ele procura criar.
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Como o interesse maior aqui a relao entre o discurso etnogrfico e o discurso histrico, privilegiamos textos como a Histria Geral e Lorigne touranienne, dando menos nfase para obras como o Memorial orgnico. Para uma anlise mais detalhada desta obra, cf. PUNTONI, Pedro. Op. Cit. OLIVEIRA, Laura Nogueira. Os ndios bravos e o Sr. Visconde: os indgenas brasileiros na obra de Francisco Adolpho de Varnhagen. Op. Cit. 13 VARNHAGEN, Francisco A. de. Os indios bravos e o Sr. Lisboa. Lima: Imprensa Liberal, 1867, p. 36. 14 Idem, Ibidem, p. 38.

82 Afinal, torna-se difcil refutar uma experincia pessoal, na qual ele se coloca no apenas como testemunha direta, mas tambm como vtima. Contra a imagem de um selvagem livresco, idlico, que ele teria adquirido em sua formao na Europa, ope-se agora essa crua realidade de um selvagem bruto e feroz15. Alis, boa parte de seu investimento etnogrfico tem como caracterstica a construo de uma autoridade baseada nessa oposio entre o ideal e o real. O objetivo de seus estudos etnogrficos , justamente, formar uma imagem verdadeira do selvagem brasileiro, em contraste com as figuradas idias de autores como G. Dias, Magalhes e mesmo Rosseau. Se nos voltarmos para a sua obra maior, a Histria Geral, e percebermos como o indgena ali configurado, no resta dvida de que, para Varnhagen, o papel que o selvagem brasileiro poderia ocupar no modelo de civilizao que ento se implementava era bastante restrito, ou quase nenhum. No prefcio primeira edio, aps o autor afirmar o estado precrio do conhecimento etnogrfico, acrescentava: no falta quem seja de voto que se devem de todo reabilitar, por motivos cujas vantagens de moralidade, de justia ou de convenincia social desconhecemos16. A seus olhos, no haveria, portanto, vantagem nenhuma em reabilitar esses povos, mesmo que tal reabilitao fosse possvel. O foco de sua recusa est na ausncia de convenincia social; o que est em jogo o carter utilitrio da catequese indgena. Como historiador que sacrifica tudo s convices da conscincia, ele no se deixaria levar por figuradas idias de brasileirismo. Assim, j no primeiro tomo de sua obra, ele ataca a idia de reabilitao do selvagem, marcando sua posio no debate. No segundo tomo, que apareceu em 1857, Varnhagen inseriu um Discurso Preliminar com o objetivo no apenas de responder s crticas que havia recebido, mas tambm de recolocar o debate a partir de determinadas questes. Assim como Janurio da Cunha Barbosa havia levantado um rol de problemas que deveriam organizar as pesquisas no IHGB, Varnhagen selecionou uma lista de indagaes que orientavam suas pesquisas. Seu programa etnogrfico visava, basicamente, estabelecer a origem dos indgenas habitantes do territrio, determinar seu carter e, com base nessas concluses, formular as melhores

Aqui, tambm, parece que Varnhagen usa de um artifcio retrico, declarando ter alimentado, em seu passado, as idias que agora procura refutar. Contudo, pela prpria formao de Varnhagen, e, principalmente, pelas concepes polticas e histricas que sempre defendeu, mais provvel que suas posies a respeito dos indgenas no se deva mencionada experincia pessoal, mas sim que ela aparece como corolrio de sua concepo de histria e de civilizao. 16 VARNHAGEN, F. A. de. Historia Geral do Brasil, isto do descobrimento colonisao, legislao e desenvolvimento deste Estado, hoje imperio independente, escripta em presena de muitos documentos autenticos recolhidos nos archivos do Brazil, de Portugal, da Hespanha e da Hollanda. Madrid, 1854, p. XXI.

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83 medidas polticas a serem tomadas17. Os objetivos gerais so, em parte, similares aos levantados por Janurio: ambos procuram no passado indgena a legitimidade de uma ao no presente. As expectativas, contudo, eram bem diferentes. De forma sucinta e objetiva, ele apresenta as respostas a cada uma das questes colocadas, concluindo peremptoriamente: os ndios no eram donos do Brasil, nem lhes aplicvel como selvagens o nome de Brasileiros: no podiam civilizar-se sem a presena da fora, da qual no se abusou tanto como se assoalha; e finalmente de modo algum podem ser eles tomados por nossos guias no presente e no passado em sentimentos de patriotismo ou em representao da nacionalidade18. Essas palavras, como no poderia deixar de ser, renderam-lhe uma srie de crticas. A partir da publicao da primeira edio de sua Histria Geral, Varnhagen posicionou-se e foi identificado como o representante da continuidade das polticas brbaras da colonizao portuguesa19. No prlogo segunda edio, ele procurou responder a essas crticas acumuladas durante mais de uma dcada. Ao apresentar os fatos inditos que trazia a respeito da etnografia brasileira, frutos das investigaes que vinha realizando desde a dcada de 1840, o autor se defende: Foi a melhor resposta que podamos dar aos que levianamente nos acusam de preveno contra os antigos habitadores desta regio20. Se ele no adotava uma posio de incluso no que diz respeito quelas populaes, ningum poderia acus-lo, todavia, de no lhes dedicar ateno e de no contribuir para torn-los objeto de conhecimento para Varnhagen, a melhor (e nica) posio que poderiam ocupar, para alm da literatura. Se, por um lado, ele retira de sua segunda edio o Discurso preliminar, o qual tinha um carter mais afirmativo, por outro lado, ele refora a parte dedicada aos estudos etnogrficos, visando, com isso, fortalecer sua argumentao. A partir do momento em que sua posio afirmada no debate, com o Memorial Orgnico e com a primeira edio da Histria Geral, nos quais a nfase estava colocada na questo das convenincias sociais da
A lista de questes a seguinte: 1.Eram os que percorriam o nosso territrio, chegada dos christos europeos, os seus legitimos donos?2. Viviam, independentemente da falta do ferro e de conhecimento da verdadeira religio, em estado social invejvel? 3. Esse estado melhoraria, sem o influxo externo que mandou a Providencia por meio do christianismo? 4. Havia meio de os reduzir a amansar, sem empregar a coaco pela fra? 5. Houve grandes excessos de abuso nos meios empregados para essas reduces? 6. Dos tres elementos de povoao, indio, branco e negro, que concorreram ao desenvolvimento de quasi todos os paizes da America, qual predomina hoje no nosso? 7. Quando se apresentem discordes ou em travada luta estes tres elementos no passado, qual delles devemos suppor representante historico da nacionalidade hoje?. VARNHAGEN, F. A. de. Historia Geral do Brasil. Tomo II. Madrid, 1854, p. XVII. V-se, assim, que, embora estruturalmente as questes de Varnhagen apresentem uma homologia com as de Janurio (que eram mais gerais), ele imprime a elas uma especificidade que dirige o leitor para as concluses a que quer chegar. 18 Idem, Ibidem, p. XXVIII. 19 PUNTONI, Pedro. Op. Cit; Cf, tambm do mesmo autor A Guerra dos Brbaros. Povos indgenas e a colonizao do serto nordeste do Brasil, 1650-1720. So Paulo: Hucitec/Edusp, 2000. 20 VARNHAGEN, F. A. de. Histria geral do Brasil. Antes de sua separao e Independncia de Portugal. 3 Edio. So Paulo: Melhoramentos, s/d. p. XIV.
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84 catequese, seus esforos foram concentrados cada vez mais no aprofundamento das pesquisas etnogrficas, como um modo de validar suas posies. A segunda edio da Histria Geral e a Lorigine, ambas publicadas em um momento bem avanado do debate e j em sua velhice, so tanto uma expresso desse esforo, como tambm um sinal da necessidade de recorrer s premissas argumentativas que se formaram no IHGB para legitimar seu posicionamento. Atravs do conhecimento etnogrfico, ele poderia desfazer a imagem idealizada e mtica do ndio, apresentando, por sua vez, uma descrio real e verdadeira do selvagem brasileiro. Com isso, atestava a melhor linha poltica a ser adotada: a submisso da populao indgena pela fora. Varnhagen, como destacou Pedro Puntoni, estabelecia em suas consideraes sobre os indgenas uma continuidade com a tradio da Guerra dos Brbaros21. Ora, como foi analisado anteriormente, havia um esforo por parte da maioria dos integrantes do IHGB em restaurar a estratgia jesuta. Desse modo, as tomadas opostas de posio por parte Varnhagen e dos demais integrantes partidrios da catequizao implicavam, tambm, em uma seleo diferenciada em relao ao passado, restaurando tradies que melhor se ajustassem aos interesses em questo. Os usos do passado na construo de aes polticas para o presente constitua, como vimos, uma das caractersticas mais destacadas dessa experincia histrica moderna22.

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Vejamos, agora, como Varnhagen constri seu argumento etnogrfico. Na primeira edio da Histria Geral, as sees destinadas aos indgenas se encontravam no meio da obra, ocupando o oitavo captulo. Em funo das crticas recebidas, Varnhagen cede e opta por mudar a disposio original em favor da harmonia do todo23. Transferimos para o principio a seo respectiva descrio do Brasil em geral, seguindo-se as relativas aos ndios, os quais, no s onde estavam causavam grande interrupo no fio da narrao, como ficam desta forma constituindo melhor ponto de partida da obra toda, diz o autor em seu prlogo segunda edio24. Essa reorganizao, fruto, provavelmente, tanto de uma expectativa por parte da comunidade de leitores, quanto de um juzo do prprio autor quanto
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PUNTONI, Pedro. Op. Cit. p.649. REVEL, Jacques; HARTOG, Franois (orgs). Les usages politiques du pass. Paris: EHESS, 2001. 23 VARNHAGEN, F. A. de. Histria Geral do Brasil. Antes de sua separao e Independncia de Portugal. 3. Edio. So Paulo, Melhoramentos, s/d. 24 Idem, Ibidem, p. XV.

85 dimenso esttica da obra, revela uma ordem, na qual a natureza e os indgenas antecedem o encontro com os europeus. Como um melhor ponto de partida, a posio destinada aos primeiros habitantes guarda, para Varnhagen, um significado preciso, que nada tem de gratuito25. Na seo destinada aos indgenas, onde estava concentrado seu investimento nos estudos etnogrficos, Varnhagen traa em linhas fortes uma imagem negativa do ndio brasileiro. De incio, ele procura fazer um clculo da populao nativa quando do descobrimento. Mediante aquilo que Slvio Romero posteriormente chamar de uma estatstica presumida, pautada nos relatos de viajantes e cronistas, Varnhagen calcula que nem chegariam a um milho os ndios que percorriam nessa poca este vasto territorio, hostilizando-se uns aos outros (...)26. Esse nmero aparecia como bastante inferior ao que comumente se presumia. Couto de Magalhes, por exemplo, afirmava que a populao atual, mesmo aps uma drstica diminuio, estaria em torno de mais de um milho de indivduos27. Consequentemente, a quantidade de ndios existentes por volta da chegada dos portugueses seria muito maior. Varnhagen, no entanto, atribui aquela mdica populao ao fato de que esses grupos hostilizavam-se uns aos outros em constantes guerras, o que impossibilitava que se reunissem em um s corpo poltico que promovesse uma ordem, condio indispensvel para o progresso e para a civilizao. Portanto, o clculo da populao indicaria, por si s, uma caracterstica marcante dos indgenas brasileiros: seu pequeno nmero seria um indcio de sua incapacidade para estabelecer laos sociais28. A guerra, como se sabe, exerce uma funo importante na viso histrica de Varnhagen. Ela parte integrante do processo histrico da civilizao29. A guerra praticada pelos indgenas, no entanto, no assume o mesmo papel que possuiu na Histria ocidental. No caso dos selvagens, ela antes um ingrediente que os impede de sair de um estado de barbrie. O maior motivo dessa diferena seria o instinto de vingana presente na alma indgena, que o incita violncia contra o prximo. Sendo, por excelncia, um ser vingativo,
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Cf. CEZAR, Temstocles A. C. Lcriture de lhistoire au Brsil au XIX sicle. Op. Cit., pp. 553-570. Idem, Ibidem. p. 15. 27 J o estatstico F. Nunes de Sousa, em artigo publicado nO Dirio do Rio de Janeiro em fins de 1847, estimava que a populao indgena estava em torno de 800.000 indivduos. Apud: FREYRE, Gilberto. Vida social no Brasil em meados do sculo XIX. Recife, 1977, p. 44. 28 Esse era um argumento que remonta ao trabalho de Malthus, para quem a inveno de meios prprios ao cultivo da terra que d aos homens a ocasio de se agruparem em um grande nmero de indivduos e de desenvolverem suas faculdades em circunstncias favorveis. O desenvolvimento da populao liga-se, assim, prpria noo de trabalho. MALTHUS, Thomas-Robert. Essai sur le principe de population. Paris: Denol/Gonthier, 1963. Conferir tambm DUCHET, Michle. Mathus: le principe de population , in : Le partage des savoirs. Op. Cit. p. 71. 29 WHELING, Arno. Estado, Histria, Memria: Varnhagen e a construo da identidade nacional. Rio de Janeiro: Nova Fronteira,1999, cap. 5.

86 incapaz de desenvolver qualquer sentimento de abnegao, o selvagem no estaria apto a conceber valores mais nobres, abstratos, entregando-se apenas sua impulsividade instintiva:

E comeada uma vez a rixa, era transmitida de filhos a netos; pois que nessas almas, em que tanto predominavam os instintos de vingana, nenhum sentimento de abnegao se podia abrigar em favor do interesse comum e da posteridade. Nos selvagens no existe o sublime desvelo ou bairrismo, que nem sequer eles como nmades tinham bairro seu, como um sentimento elevado que nos impele a sacrificar o bem estar e at a existncia pelos compatriotas, ou pela glria da ptria .
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Logo, a nica memria que os selvagens estariam aptos a cultivar seria uma memria de vingana. Ao contrrio do homem civilizado, que somente capaz de matar e de morrer graas a um sentimento mais elevado, de patriotismo, os selvagens agiriam por puro instinto, sem nenhuma abstrao. Sem leis, sem Estado, sem religio, sem noo de propriedade, sem escrita, eles so pura falta31. A descrio etnogrfica vai se desenhando atravs da indicao dessas ausncias. E a preocupao de Varhagen em estabelecer uma ciso clara entre Etnografia e Histria vai ao encontro de seu posicionamento: De tais povos na infncia no h histria: ha s etnografia. A infncia da humanidade na ordem moral, como a do individuo na ordem fsica, sempre acompanhada de pequenez e misrias. E sirva esta preveno para qualquer leitor estrangeiro que por si, ou pela infncia de sua nao, pense de ensoberbar-se, ao ler as poucas lisongeiras pginas que vo seguir32. Portanto, mais que remeter a uma simples diviso da ordem dos saberes (o que vai se seguir uma descrio etnogrfica e no propriamente uma narrativa histrica), a partilha apresentada por Varnhagen implica em um juzo de valor frente ao objeto. O prprio fato de o indgena se reduzir a objeto etnogrfico denuncia (pois se deve a) um estado de selvageria, caracterizado por uma srie de faltas que o alijam da civilizao, objeto e sujeito da histria. Antes de descrev-los em seus hbitos e costumes, Varnhagen salienta que as populaes nativas que povoavam o territrio brasileiro, ao contrrio do que pensariam outros

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VARNHAGEN, F. A. de. Histria Geral do Brasil . Op. Cit., p. 15-16. A descrio etnogrfica de Varnhagen pode ser bem caracterizada pelas palavras de Furet: Sans lois, sans arts, sans gouvernements, bref sans histoire. Car une chelle de valeurs implicite dignifie toujours le temps, crateur dynamique des lois et des nations, au dtriment de lespace, distributeur passif des societs humaines. FURET, Franois. De lhomme sauvage a lhomme historique: lexprience amricaine dans la culture franaise au XVIII sicle, Latelier de lhistoire. Paris: Flammarion, 1982, p. 199. Vale destacar que tambm para Varnhagen, como para o caso francs analisado por Furet, o sonho americano s poderia sobreviver na literatura, e no na cincia ou na poltica. 32 VARNHAGEN, F. A. de. Histria Geral. Op. Cit., p. 24.

87 autores, constitua-se, em sua grande maioria, como um s povo. Essas gentes vagabundas, que, guerreando sempre, povoavam o terreno que hoje do Brasil, eram pela maior parte verdadeiras emanaes de uma s raa ou grande nao; isto , procediam de uma origem comum (...)33. O que lhe permite sustentar esta afirmao so os estudos por ele realizados sobre as lnguas indgenas e a origem da palavra tupi. Enquanto que outros estudiosos se deixavam enganar pela nomeclatura brbara que colhiam dos indgenas, Varnhagen salienta que todas aquelas diferentes designaes no passavam de simples alcunhas. Mesmo a grande diviso Tupi-Tapuya, compartilhada por diferentes letrados, por ele desmascarada. Alm das alcunhas, um nome geral havia, com que cada grmio designava todos os outros que lhe eram absolutamente estranhos (...) o de Brbaro, ou na lngua geral Tapui. Daqui a idia dos primeiros colonos transmitida por escritores, e ainda ultimamente por alguns acreditada, da existncia de uma grande nao Tapuia; quando Tapuias brancos chamavam os ndios aos europeus que no eram seus aliados34. Logo, toda diversidade aparente. As inmeras divises existentes entre as tribos, que tanto confundiam os observadores, eram tambm motivadas apenas por aquele instinto de vingana do homem selvagem. Um olhar mais atento (o mesmo olhar do historiador que exerce a crtica das fontes) logo perceberia que por detrs daquele emaranhado de nomeclaturas subsistia uma origem comum e traos culturais compartilhados. Reduzidos a uma nica imagem (argumento retrico comum etnografia iluminista), a grande nao Tupi, Varnhagen pode iniciar a outra etapa do seu trabalho etnogrfico: a descrio dos costumes35. Em sua descrio, alm de apontar para a srie de faltas que caracterizam a sociedade indgena e seu carter vingativo, ele faz uso de um outro topos, retomado tambm dos relatos dos missionrios: a inconstncia da alma selvagem. Os selvagens que ocupam o territrio brasileiro so falsos e infiis; inconstantes e ingratos, e bastante desconfiados36. Ora, quase toda a descrio de Varnhagen na Histria Geral, por mais que ele tivesse entrado em contato com alguns indgenas, baseada nos relatos e crnicas da poca colonial caracterstica compartilhada com os demais scios do IHGB. Nesses textos, principalmente
Idem, Ibidem, p. 16. Idem, Ibidem, p. 26. Varnhagen j havia desenvolvido estas questes em outro artigo, na verdade em uma carta dirigida ao IHGB: Ethnographia indigena. Lingua, emigraes e archeologia, Op. Cit. Assim succedeu com o nome Tapuia sobre o qual ainda hoje insiste a ignorancia ser considerado o nome de uma grande nao. (...) J o jesuta Simo de Vasconcellos (1633) nos deixou claramente explicado que no havia tal nao Tapuia; mas para ns a melhor prova desta verdade consiste no facto de chamarem os tupis tambem de tapuias os europeos seus contrarios(...), p.390. 35 Sobre essa retrica iluminista, cf. MERCIER, Roger. Image de lautre et image de soi-mme dans le discours ethnologique au XVIII sicle, in: PAGDEN, Anthony (ed.). Facing each other. The worlds perception of Europe ans Europes perception of the world. Aldershot: Ashgate, 2000. 36 Idem, Ibidem. p. 52.
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88 naqueles escritos por missionrios, a presena do argumento da inconstncia da alma selvagem pautava-se na projeo de um critrio europeu, de fundo teolgico, que pressupunha a unidade e a identidade do indivduo sob o prisma da coerncia e da no-contradio como definio do humano37. Restaurando esse esquema de interpretao, Varnhagen visa desqualificar o indgena como um indivduo apto a cultivar os costumes e crenas da civilizao. Uma vez atrado, nada garantiria sua permanncia e qualquer ocasio poderia despertar seus instintos de vingana. Presos sua liberdade positiva, no seriam capazes de se submeter a nenhuma outra instncia que no seus prprios desejos, tornando-se um risco ordem e prosperidade do bem-estar. Logo, a natureza selvagem desses indivduos tornava improvvel toda tentativa de catequizao e de traz-los a uma memria comum. Justificavase, assim, a posio assumida pelo historiador de ir contra as idias figuradas por poetas e filsofos que tornam o que brbaro em algo ideal.

vista do esboo que traamos, sem nada carregar nas cores, no sabemos como haja ainda poetas e at filsofos, que vejam no estado selvagem a maior felicidade do homem; quando nesse estado, sem o auxlio mtuo da sociedade, e sem terra a se cultivar suficientemente, h sempre, numa ou noutra poca, privaes e fome; e esta ltima aos mais civilizados converte em canibais, como nos provam as histrias de tantos stios e naufrgios. Desgraadamente o estudo profundo da barbrie humana, em todos os pases, prova que, sem os vnculos das leis e da religio, o triste mortal propende tanto ferocidade, que quase se metamorfoseia em fra...38

Diante dos fatos que a investigao etnogrfica desvela em relao condio dos indgenas que ocupam o territrio nacional, o historiador no v como esses povos poderiam ser includos num projeto civilizador, mais especificamente, no projeto poltico de construo do Imprio nos Trpicos39. A proximidade que os selvagens mantm com uma condio animal, desprovidos dos laos fundamentais de sociabilidade, testemunha contra a possibilidade de sua converso aos modos civilizados:

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HANSEN, Joo Adolfo. O nu e a luz: cartas jesuticas do Brasil, Revista do Instituto de Estudos Brasileiros, n. 38, So Paulo, 1995. Ver tambm a anlise de CASTRO, Eduardo Viveiro de. O mrmore e a murta: sobre a inconstncia da alma selvagem, in: A inconstncia da alma selvagem, So Paulo: Cosac & Naify, 2002. 38 VRANHAGEN, Histria Geral do Brasil. 3. Ed., p. 54. 39 Vale notar que nenhum letrado do IHGB, mesmo os mais fervorosos defensores da catequese, afirmava o estado selvagem como algo idlico. Neste ponto, todos iam contra as idias de Rosseau. Varnhagen usa aqui de outro artifcio retrico com o objetivo de desqualificar a posio de seus adversrios.

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Os filhos no respeitavam as mes, e s temiam, enquanto os temiam, os pais e tios. No amor no havia que buscar sentimentos morais. As delcias da verdadeira felicidade domstica quase no podem ser apreciadas e saboreadas pelo homem no estado selvagem. Rodeado de fras, ou de homens-fras, mal podem nele desenvolverse a parte afetuosa da nossa natureza, amizade, a gratido, a dedicao40.

Em suma, o selvagem no convertvel. A observao criteriosa, elaborada atravs do quadro interpretativo da etnografia e baseada, principalmente, nos textos coloniais, mostrava o selvagem em toda sua rudeza, desprovido das falsas imagens a ele atribudas. Nele, a civilizao no poderia se desenvolver, como at ento no tinha se desenvolvido. Mas, cabe agora perguntar, qual a causa ou a justificativa dessa restrio histrica converso dos selvagens civilizao? Para responder a essa pergunta, faz-se necessrio olhar o modo como Varnhagen concebe o conceito de civilizao. Para o historiador, o caminho da civilizao era um s, e estava calcado no trabalho (cultivo da terra e desenvolvimento da indstria), nas leis (regular as noes de propriedade) e na religio (laos morais de sociabilidade). Assim como para os demais participantes do debate, os conceitos que permitiam dar uma inteligibilidade aos indgenas eram os vinculados ao trabalho, propriedade, religiosidade e liberdade. Mas, ao contrrio dos partidrios da catequizao, que procuravam incluir e hierarquizar os indgenas num projeto civilizador, esses conceitos tinham para Varnhagen um papel excludente. O ponto decisivo, que justificaria a excluso dos selvagens, talvez possa ser encontrado na relao que Varnhagen estabelece entre o poder poltico e aqueles outros elementos da civilizao, apontados acima. Pode-se dizer que, diferentemente dos demais letrados do IHGB, Varnhagen no via os laos de sociabilidade como uma condio natural do homem (e sua ausncia como uma patologia, tal como o entendia G. Magalhes) e, portanto, no encarava a civilizao como uma meta a ser compartilhada por toda a humanidade. Ele no associava, em suma, a civilizao com a idia de converso. Talvez mais vinculado tradio do direito natural de Puffendorf e Vatel, Varnhagem concebe que a sociedade pr-poltica do estado de natureza desconhece qualquer relao de ordem entre os homens. Nesse sentido, o poder poltico no entendido como um dado originrio da sociedade, no uma relao natural, correlata essncia humana e sustentada pela razo, mas um elemento artificial e estranho s

40

Idem, Ibidem, p. 48.

90 determinaes originrias da natureza humana41. A sociedade e o direito, nessa perspectiva, s existem no Estado e sob a gide do poder. Esse poder, que funda a comunidade poltica, enquanto artificial, uma ao eminentemente histrica. Sua soberania est legitimada justamente nessa ao fundadora ao mesmo tempo histrica e, como o entende Varnhagen, produtora de histria. Essa artificialidade que constitui a civilizao traz como conseqncia a possibilidade de sua perda e a volta condio pr-poltica do estado de natureza. tendo em visto isso que Varnhagen procura justificar a excluso dos selvagens do projeto civilizador do imprio:

Dividios em cabildas insignificantes que umas s outras se evitavam, quando no se guerreavam, apenas podiam acudir aos interesses ditados pelo instinto da conservao vital; e, numa to grande extenso de territrio, no aparecia um s chefe que estabelecesse um centro poderoso, como havia no Per, cuja aristocracia, livre de cuidar s em resguardar-se das intempries e em adquirir diariamente o necessrio alimento, pudesse pensar no bem dos seus olhos semelhantes, apaziguando as suas contendas, e civilizando-os com o exemplo. Assim tais rixas perpetuariam neste abenoado solo a anarquia selvagem, ou viriam a deix-lo sem populao, se a Providncia Divina no tivesse acudido a dispor que o christianismo viesse ter mo a to triste e degradante estado!42

preciso, assim, entender qual o papel histrico que Varnhagen atribui ao Estado brasileiro. Para isso, faz-se necessrio vincul-lo tradio a qual pertence, remontar s suas origens para melhor esclarecer as necessidades polticas do presente. O longo caminho da civilizao, como o estabelece Varnhagen, era nico, e foi trilhado pelos Fencios, pelos Gregos e pelos Romanos, que implantaram a civilizao na Europa e com a lngua levaram Lusitnia, e que mais tarde, auxiliada na indstria pela ilustrao arbica, e, nos costumes pelas branduras do cristianismo, foi trazida a este abenoado pas(...)43. A civilizao, portanto, no pode ser simplesmente ensinada, como queriam seus adversrios, pois ela deve ser entendida como uma herana que caberia aos seus herdeiros preservar. Caso houvesse imprudncia na administrao dessa herana, nada impediria que os civilizados fossem novamente lanados a uma condio de barbrie. Nada exigiria mais constncia do
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SCATTOLA, Merio. Ordem e imperium: das polticas aristotlicas do comeo do sculo XVII ao direito natural de Pufendorf, in: DUSO, Giuseppe (org). O Poder. Histria da filosofia poltica moderna, Op. Cit., p. 107. 42 Varnhagen, F. A. Historia Geral do Brazil. 1. Ed. Op. Cit., p. 107. 43 Idem. Ibidem, 3. Ed., p. 54.

91 que o cultivo da civilizao. Enquanto que essa memria ocidental se constri (pela escrita) a partir dos Fencios, Gregos e Romanos e se estende por uma longa histria, at chegar ao solo brasileiro, a barbrie, cuja memria s poderia ser resgatada por esse historiadoretngrafo, estaria sempre limitada a um movimento no espao. H uma srie de deslocamentos e migraes, mas da no resulta nenhuma acumulao e desenvolvimento. Varnhagen narra, ao final da seo, o modo como esses dois caminhos diferentes acabaram por se cruzar, o da barbrie e o da civilizao. Ele lana, aqui, a hiptese que seria apresentada em toda sua extenso em Lorigine touranienne, na qual atribua aos selvagens uma origem longnqua, situada entre os antigos povos do mediterrneo. Esse texto pode ser considerado o fruto de todo um esforo de Varnhagen que, desde o final da dcada de 1840, se via cada vez mais obrigado a estabelecer a origem daqueles povos como um modo de classific-los e de provar a ineficcia de qualquer projeto catequtico. Com esse objetivo, ele se voltou aos estudos filolgicos, aprendendo as mais diversas lnguas antigas. Ele diz que se dedicou ao hebreu e ao fencio, ao sriaco ou armeniano, e finalmente ao rabe. No obtendo resultados, voltou-se ao assrio e ao babilnico antigo. Por fim, dedicou-se ao acadiano. Porsuivant toujours dans la conviction que lorigine des Tupis devait se rencontrer dans le monde ancien, je me suis livr quelques tudes sur le zend ou ancien iranien, sur larmnien, et sur larien ou sanscrit. Dans chacune de ces langues, sans parler des formes grammaticales, les mots dune nature primitive taient, en genral, assez diffrents de ceux de la langue tupi; et si, une fois ou lautre, on y glanait quelque parole [terme] semblable, cela ne servait qu augmenter les doutes44. Ao final, no lhe restava seno o egpcio. Ele encontrou nessa lngua, afinal, as semelhanas que o induziam a duas concluses: de ce que le peuple en question tait de la mme famille que lgyptien ancien, et que lun et lautre appartenaient ces races [oural-altaques] que lon dit gnralement touraniennes45. Por essas concluses de Varnhagen percebe-se como ele fazia uso do modelo filolgico desenvolvido por Bunsen e Max Mller, dentro da tradio prichardiana, to presente no IHGB. Mais do que isso, interessante notar como ele vai defender essa hiptese das raas turanianas em um momento tardio, onde elas j estavam bastante desacreditadas e deslegitimadas em solo europeu local de origem da publicao de sua obra (Viena). Mesmo no Brasil, essa tese logo seria atacada por autores como Slvio Romero, sinalizando uma mudana no quadro de referncia do debate etnogrfico. De qualquer forma, a esse modelo etnolgico que Varnhagen est ligado, pois

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VARNHAGEN, F. A. de. Lorigine touranienne des amricains. Op. Cit. p. IX-XX. Idem, Ibidem, p. XI.

92 nesse modelo que se configurou as premissas do debate no IHGB. Era usando desse quadro interpretativo que Varnhagen procurava provar suas concluses e legitimar sua posio. Voltando agora segunda edio da Histria Geral, podemos ver como ele transps sua tese, inserindo-a na seo dedicada aos selvagens e, mais do que isso, relacionando-a com o sentido do processo histrico no qual a nao brasileira viria a ser formada: Todas as indues, porm, que oferecemos em um trabalho especial nos levam a acreditar que os Tupis procediam, como os Guanches das Canrias, de povos navegadores do Mediterrneo, que aqui haviam aportado46. Tais povos, por sua vez, teriam uma origem muito mais remota: E hoje temos quase a convico de que houve efetivamente para o Brasil uma grande emigrao dos prprios Crios da sia Menor, efetuada talvez depois da queda de Tria47. Os Tupis seriam, em ltima instncia, descendentes da guerra que funda a ocidentaliade. A partilha original se encontraria, portanto, nesse passado clssico, onde a memria ocidental tem seu ponto zero. A partir dali, os dois caminhos foram trilhados, um no espao, outro no tempo. E agora, por capricho da Providncia, eles voltariam a se encontrar nos Trpicos. Aps os Tupis, esses descendentes dos Crios, terem invadido com inauditas crueldades as terras americanas e terem expulsado os anteriores habitantes (mais primitivos, porm mansos e timoratos), teriam que enfrentar agora a vingana da histria: A seu turno devia chegar-lhes o dia da expiao. Veio traz-lo o descobrimento e colonizao, efectuados pela Europa Christ48. A termina a Etnografia. Comea, ento, a Histria.

2.2 Gonalves Dias e o missionrio da civilizao

No sculo XIX, como vimos, a formao de uma conscincia histrica passou a fundamentar a constituio de identidade dos grupos sociais. A Histria organizava-se justamente como um discurso capaz de ordenar uma continuidade no tempo, na qual o homem moderno, como nos diz Foucault, poderia dormir o tranqilo sono do reconhecimento: como se tivssemos medo de pensar o outro no tempo de nosso prprio pensamento49. A esta
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Idem, Ibidem, p. 56. Idem, Ibidem, p. 57. 48 Idem, Ibidem, p. 59. Essa viso de Varnhagen do processo histrico liga-se sua concepo de um direito de conquista. Em seu Memorial Orgnico ele deixa claro o direito bsico que legitima a histria brasileira como continuidade do passado colonial: O Brasil pertence-nos pela mesma razo que a Inglaterra ficou pertencendo aos normandos quando a conquistaram... O primeiro direito de todas as naes conhecidas foi o da conquista. Memorial Orgnico que considerao das Assemblias geral e provinciais do Imprio, apresenta um brasileiro. Dada a luz por um amante do Brasil, 1849, p. 127. 49 FOUCAULT, Michel. A Arqueologia do saber. Rio de Janeiro: Forense Universitria, 1997, p. 14.

93 intranqilizante alteridade do passado, deveria a Histria atribuir e reconhecer uma conscincia. A Etnografia oitocentista, por mais que tivesse se constitudo como um saber sobre a alteridade no espao, tendo por seu objeto o selvagem, tambm estaria interessada na produo de uma histria. Faz parte de seu trabalho de traduo inserir uma profundidade temporal no que, at ento, se mostrava apenas como a superficialidade do espao. Nessa operao, a identidade do outro, impensvel fora do tempo de nosso prprio pensamento, estaria sendo construda. Ora, na medida em que as questes colocadas por esses letrados oitocentistas acerca das populaes indgenas estruturavam-se entre a incluso e a excluso, vimos como a produo de um discurso etnogrfico envolvia, necessariamente, uma luta de representaes. Varnhagen via-se obrigado a defender-se das acusaes quanto a seu posicionamento sobre os ndios do Brasil, envolvendo-se, inclusive, no que veio a se tornar uma clebre querela50. Sua descrio etnogrfica procurava servir como a melhor acusao possvel, demonstrando a insustentabilidade de uma viso idlica do selvagem. Sua etnografia acabava sendo uma clara e veemente justificao da histria. Gonalves Dias entrava nessa disputa, aos olhos de Varnhagen, como mais um daqueles poetas que sustentavam figuradas idias de brasileirismo. No entanto, ele participa desse debate no apenas no terreno da poesia, no qual j detinha uma consagrao51. Afinal, como a acusao de Varnhagen indica, o lugar de enunciao do autor enquanto poeta podia ser utilizado como um meio de invalidar suas afirmaes. Para que no tivesse seu juzo desclassificado, Gonalves Dias precisava recorrer a determinadas premissas argumentativas que configuravam, ento, o discurso etnogrfico praticado no IHGB. Isso no implica, de modo algum, negligenciar as estreitas relaes estabelecidas entre o discurso potico e os discursos etnogrfico e histrico, salientado por outros autores52. Contudo, necessrio ressaltar que a eficcia que o discurso etnogrfico poderia render ao discurso potico (a criao de uma adequao realidade, por exemplo) dependia, necessariamente,

Referimo-nos aqui ao debate entre Varnhagen e Joo Francisco Lisboa. A polmica envolvendo os dois autores tem sua origem na mudana de posio assumida por Lisboa, expressa no volume 3 de seu Jornal de Timon, intitulado Apontamentos, noticias e observaes para servirem histria do Maranho, mais especificamente, na nota C, na qual o autor tece consideraes sobre as opinies anti-indigenistas expressadas por Varnhagen em sua Histria Geral. LISBOA, Joo Francisco. Obras. 4 vols. So Luiz do Maranho, 1865. Para uma anlise da polmica, cf. PUNTONI, Pedro. Op. Cit.; e NOGUEIRA, Laura. Op. Cit. 51 Ele havia lanado os Primeiros Cantos em 1846. 52 Para uma tima anlise das relaes entre o discurso etnogrfico e discurso potico, cf. KODAMA, Kaori. Os filhos das brenhas e o Imprio do Brasil. Op. Cit. Segundo a autora: A ferramenta etnogrfica de que dispunha, mais do que contradiz-lo, poderia reforar seus personagens poticos. O estudo etnogrfico que realiza a mando de Pedro II muitas vezes recompunha a mesma imagem dos ndios de sua poesia. Idem, Ibidem, p. 155.

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94 do reconhecimento e do respeito s regras e procedimentos atravs dos quais aquele discurso garantia a criao de um efeito de realidade e, desse modo, a persuaso do auditrio a que se destinava53. Consciente dessa fronteira entre os discursos, tnue, mas produtiva, Gonalves Dias no deixava de compartilhar esse campo comum que legitimaria um debate: o da etnografia. Em texto apresentado ao IHGB, entre 1852 e 1853, Dias procurou contribuir com uma resposta s questes levantadas por Janurio e que organizavam o debate desde a fundao do Instituto: qual seria a origem dos indgenas e se eles seriam passveis de catequizao. O texto Brasil e Oceania foi o resultado de um programa distribudo a Gonalves Dias, no qual D. Pedro II, patrono do Instituto e interessado no andamento desse debate, requisitava a comparao dos indgenas do Brasil com aqueles da quinta parte do mundo, com o objetivo especfico de esclarecer quais deles eram mais aptos a serem inseridos no processo de civilizao. A relevncia desse texto para a presente discusso est no fato de que ele expressa a maioria das caractersticas que qualificavam o lado do debate favorvel catequizao. Ele est, nesse sentido, em perfeita oposio ao lugar ocupado por Varnhagen54. Os meios empregados, contudo, eram os mesmos: o estudo da lngua e a descrio dos costumes, ambos amparados pela comparao como um modo de estabelecer genealogias. Era com argumentos formulados dentro de um modelo etnogrfico que esses autores procuravam validar suas posies. O texto de G. Dias divide-se em duas partes. Na primeira, ele busca descrever o estado fsico e intelectual dos indgenas do Brasil, no tempo em que pela primeira vez se acharam em contato com os seus descobridores, e ver que probabilidade ou facilidade ofereciam nessa poca a empresa da catequese ou da colonizao55. Na segunda parte, ele descreve os povos da Oceania com o objetivo de compar-los com os indgenas do Brasil, deduzindo desta comparao qual deles estava mais apto para receber a civilizao56. Como primeira tarefa, o autor procura delimitar seu objeto: o selvagem brasileiro. Ao contrrio de Varnhagen, que no via na diversidade indgena seno uma profuso de nomeclaturas brbaras, para Gonalves Dias era claro que existiam dois grandes grupos ou naes habitando o Brasil: os Tupis e os Tapuias. Usando a linguagem como um modo de
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PERELMAN, Cham. Tratado da Argumentao. Op. Cit.; BOURDIEU, Pierre. A economia das trocas lingsticas, Op. Cit. 54 Varnhagen, a essa poca, no havia ainda lanado sua Histria Geral, que s viria a aparecer em 1857. No entanto, como vimos, a demarcao de seu posicionamento no debate j se dava, de forma enftica, no seu Memorial Orgnico, que veio a pblico em 1849, trs anos antes de G. Dias apresentar ao Instituto seu texto. 55 DIAS, Gonalves. Brasil e Oceania. RIHGB, Tomo XXX, 1867. p. 5. 56 Idem, Ibidem, p. 293.

95 fugir do labirinto inextricvel das pocas primitivas da histria, Dias v no vocbulo tapuys, utilizado pelas populaes litorneas para designar os inimigos do interior, uma prova convincente de sua hiptese:

Duas raas portanto, e duas pelo menos, ocupavam o territrio do Brasil: uma com a mesma lngua, fisionomia, armas, e costumes habitava o litoral. Todas as tribos desta famlia eram designadas por vocbulos tirados da mesma lngua, o que tende a estabelecer certa identidade de origem entre elas; ou o que mais notvel, essas designaes indicam de um modo incontestvel o parentesco que as unia a todas. Tupy, formado da palavra tup era a tribo me. Tamuya ou tamoyo av, - Tupimins netos, - Tobajaras cunhados e alguns outros mais57.

A comparao dos vocbulos permitia, em primeiro lugar, a constatao de uma diviso de duas grandes famlias, os Tupis e os Tapuias. A exemplo de outros autores, Dias estabelece uma dicotomia cuja tradio remonta aos relatos do perodo colonial, pautada na designao de ndios mansos e bravos58. Alm dessa constatao, a comparao dos vocbulos tambm indicava um grau de parentesco que unia as diferentes tribos do litoral sob um tronco nico. As relaes entre Tupi, como tribo me, e as demais tribos que teriam no nome uma semelhana com a fonte original, indicavam que elas haviam se separado em algum tempo e por algum motivo. Da a deduo de grandes movimentos migratrios que antecederam o estado atual dos nativos; da, tambm, a suposio de uma longa e movimentada histria da qual aquelas populaes seriam fruto59. A grande famlia Tupi parecia ser, aos olhos de Gonalves Dias, a raa ou nao dos conquistadores, que teria descido do norte em direo ao sul e ao litoral, guerreando e expulsando os seus habitantes primitivos. Ao contrrio da opinio de DOrbigny, que se deixou enganar em sua posio de observador, tomando, numa perspectiva limitada, os Guaranis como modelo da raa e deduzindo que as emigraes teriam partido dali nas direes norte e sul, Gonalves Dias, em sua posio arquimdica de leitor e confrontador de relatos, apresenta uma lgica das migraes completamente diferente. Se o sbio

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Idem, Ibidem. p. 9. MONTEIRO, John. As raas indgenas no pensamento brasileiro do Imprio, in: Tupis, Tapuias e Historiadores. Estudos de Histria Indgena e do Indigenismo. Op. Cit., pp. 170-179. 59 Como diz o autor, seu propsito tratar, antes de tudo, da sua historia anterior, se tal nome pde caber a alguns factos desconnexos, e a algumas hypotheses que por mais bem fundadas paream mal chegam quelle limite duvidoso onde o verdadeiro e o verossimil se amalgamam. DIAS, G. Brasil e Oceania, Op. Cit., p. 7.

96 DOrbigny tivesse consultado a histria do Brasil, diz Gonalves Dias, dois fatos bastariam para o convencer: primeiro, a presso que quase constantemente se observa nas tribos do norte sobre as do sul; segundo, a prpria emigrao ocorrida depois da conquista portuguesa, quando os ndios se retiraram no para o serto, mas por meio dele procurando o Amazonas e as florestas do norte60. Gonalves Dias legitima seu argumento denunciando a fragilidade da observao; mais particularmente, da observao dos naturalistas e viajantes estrangeiros61. O olho pode enganar. J o estudioso, mesmo que no tenha o contato direto com o objeto, pode adquirir uma viso mais ampla atravs do conhecimento livresco. Os livros viajam, e viaja-se nos livros. Para o homem de cincia, ver ler, saber corrigir62. Como ressalta Gonalves Dias: Pela minha parte, contentei-me de coligir, de confrontar e de combinar no que pude o que a tal respeito achei escrito, tirando concluses que me parecram justas, e formando conjecturas que se me antolharam como as mais plausveis, se no verdadeiras63. Tambm Varnhagen, como vimos, pautava sua descrio em relatos de viajantes e cronistas. interessante notar, nesse sentido, o quanto o modelo etnogrfico praticado no IHGB se baseou pouco no que hoje chamamos trabalho de campo. A observao direta, a vivncia entre grupos selvagens, ainda que tenha sido esporadicamente realizada, se apresentava como uma operao marginal, sendo, tambm, pouco utilizada como artifcio retrico nos textos desses autores64. Ao contrrio do que ocorrer a partir da dcada de setenta, quando a autpsia ganha importncia na etnografia para contrapor o ideal ao real, os letrados do IHGB faziam essa contraposio baseados, majoritariamente, na leitura e crtica dos testemunhos. A seleo e confrontao de relatos realizados por Gonalves Dias permite, dessa maneira, que ele deduza, com a maior verossimilhana possvel, o sentido da migrao dos indgenas. Vindos do norte, os Tupis teriam conquistado o litoral e empurrado para o interior
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Idem, Ibidem, p. 18. KURY, Lorelai. A Comisso Cientfica de Explorao (1859-1861). A cincia imperial e a musa cabocla, in: HEIZER, Alda; VIDEIRA, Antonio Augusto Passos (orgs). Cincia, civilizao e Imprio nos Trpicos. . Rio de Janeiro: Access, 2000, p. 35. Essa atitude se manifestava igualmente no que diz respeito escrita da histria. Como vimos com Janurio da Cunha Barbosa, pretendia-se uma nacionalizao do ponto de vista do historiador como condio para uma escrita da histria nacional. Cf. CEZAR, Temstocles A. C. Lio sobre a escrita da histria. Historiografia e nao no Brasil do sculo XIX, in: Dilogos, Op. Cit. 62 HARTOG, Franois. Memria de Ulisses, Narrativas sobre a fronteira na Grcia antiga. Belo Horizonte: UFMG, 2004, p. 119-120. 63 DIAS, Gonalves. Brasil e Oceania, Op. Cit., p. 6. 64 Ainda que autores como Varnhagen e G. Dias tenham feito viagens e entrado em contato com populaes nativas, essa presena no ganha um peso argumentativo de muito destaque. certo que esse artifcio retrico no ausente nesses autores, como fica evidente no prprio texto em que Varnhagen narra sua converso. Contudo, esse papel minoritrio da autpsia como recurso retrico se mostrar importante quando o compararmos com a escrita etnogrfica da gerao posterior, onde o primado da observao ser alado como um componente essencial ao trabalho etnogrfico. Para uma anlise do uso da autpsia em Varnhagen, cf. CEZAR, Temstocles. Lcriture de lhistoire au Brsil au XIX sicle. Op. Cit., pp. 426-429.

97 a outra raa diversssima, e entre si fraccionada, sempre em luta: os Tapuias. Estes, por sua cor de pele e pelos traos fisionmicos, pertenceriam raa mongol; enquanto que os Tupis teriam no seu aspecto alguma coisa dos ramos menos nobres da raa caucsia. V-se, assim, o estabelecimento de uma diferenciao qualitativa (ainda que consideravelmente frouxa) entre a raa conquistadora, pertencente ao grupo caucasiano, e a raa conquistada, de traos mongis65. Mais importante que a qualificao pelos caracteres fsicos, para os quais Dias dava pouca importncia66, o que vale destacar o objetivo do autor em enobrecer os Tupis, estabelecendo uma polarizao entre estes e os Tapuias, empurrados para o interior. Se Varnhagen utilizava a condio de raa conquistadora dos Tupis para validar um direito de conquista para os portugueses67, Dias, ao contrrio, procurava nobilitar esse grupo indgena, ressaltando suas qualidades. Assim, embora ambos concordem quanto a determinados fatos (o sentido da migrao reconstrudo pela investigao etnogrfica), cada um atribui a esses fatos sentidos diversos, e mesmo opostos. Para Gonalves Dias, teriam sido os Tapuias os primeiros habitantes do pas. Caracterizados como indomesticveis, nada agrcolas, nmades sempre, e caadores por excelncia, eles ocupam um dos nveis mais baixos da escala humana. Enquanto os Tupis sacrificavam os prisioneiros em meio a solenidades, pois eram eminentemente religiosos, os Tapuias, gulosos da carne humana, no sacrificavam os prisioneiros, pois no observavam solenidade alguma; mas assassinavam-nos sem piedade apanhando-os os mais das vezes desprevenidos68. Para ilustrar essa natureza selvagem e brbara dos indgenas do serto, Dias colhe de suas fontes um ilustrativo caso. Contava o padre Vasconcellos que um jesuta, ao entrar numa aldeia, encontrou uma velha beira da morte e indagou-lhe se desejava passar suas ltimas horas aproveitando das benesses da civilizao: Respondeu a velha, catequizada j: Meu neto, nenhuma coisa da vida desejo, tudo j me aborrece; s uma coisa me pudera
Claude Blanckaert aponta para a mudana no rigor classificatrio quanto aos caracteres fsicos que teria ocorrido aps meados do sculo XIX. Em contraste com as classificaes impressionistas de Edwards, a escola antropolgica de Broca teria trazido mtodos de medidas estatsticas e craniomtricas que dariam ao critrio racial uma preciso at ento desconhecida. O mesmo se pode dizer das classificaes da etnografia do IHGB quando comparadas s do Museu Nacional, por exemplo. BLANCKAERT, Claude. On the origns of French Ethnology: William Edwards and the doutrine of race, in: STOCKING, George. Bodies, Bones and Behavior. Essays on Biological Anthropology. Madison: University of Wisconsin Press, 1988, p. 46. 66 Para Dias, no s a frma do craneo pouco importante para o desenvolvimento das faculdades, como tambem que o seu volume nada influe sobre ellas. DIAS, Gonalves. Brasil e Oceania. Op. Cit.; p. 88. Kury, referindo-se participao de Dias na Comisso Cientfica de 1859, tambm destaca o quanto ele descartava a classificao fsica como um instrumento cientfico vlido. KURY, Lorelai. A Comisso Cientfica de Explorao (1859-1861). Op. Cit., pp. 46-47. 67 Como afirma Cezar, uma das principais razes do interesse de Varnhagen em estudar a lngua indgena era demonstrar que eles ne sont pas des brsiliens authentiques, ils sont les descendents dun peuple ancien qui, en plus, na pas su tirer profit du territoire quils ont occups pedant cette longue dure. CEZAR, Temstocles A. C. Lcriture de lhistoire au Brsil au XIX sicle. Op. Cit., p. 147. 68 Idem, Ibidem, p. 57.
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98 abrir agora o fastio: se eu tivera uma mozinha de um rapaz Tapuia de pouca idade, tenrinha, e lhe chupara aqueles ossinhos, ento me parece tomara algum alento: porm eu (coitada de mim) no tenho quem me v frechar um destes69. Mesmo a catequese no teria sido suficiente para saciar nessa velha indgena a gulodice da carne humana. A antropofagia, caso no se justifique pelo seu lado simblico, como nos Tupis, designa apenas o prazer da carne humana, cuja analogia com uma sexualidade desenfreada e transgressora no precisaria ser ressaltada. essa proximidade que causa o horror e, no limite, legitima, antecipadamente, a extino de uma humanidade to pouco humana70. A imagem do selvagem feroz e inconvertvel, atribuda por Varnhagen ao conjunto das populaes nativas, aparece, em Gonalves Dias, restrita a esses habitantes do interior. O serto, entendido no como uma regio especfica do nordeste brasileiro, mas como um espao de caos ainda no alcanado pela civilizao, abrigaria essa nao de selvagens no domesticveis71. Se no bastasse essa hierarquizao, Dias justifica seu maior interesse nos Tupis devido ao fato de que esse grupo foi o primeiro que se ofereceu aos olhos do europeu, o que em primeiro lugar se achou em contato com a civilisao. o encontro dessas histrias o que chama a ateno do pesquisador e o que legitima a ateno dispensada sobre os Tupis. Cabe, portanto, dirigir a este grupo a pergunta fundamental: se os americanos (Tupis) caminhavam para o progresso ou para a decadncia. Antes de responder a esta questo, Gonalves Dias tece um breve esclarecimento. Conviria, antes de emitir um juzo sobre a convertibilidade desses indgenas, delimitar o que se entende por civilizao. Para Gonalves Dias, existiriam duas acepes72. De um lado, pode-se considerar um povo civilizado aquele que detm formas institucionais e jurdicas, uma tradio artstica, indstria e hbitos sociais desenvolvidos. Contudo, pode-se tambm considerar civilizao como o desenvolvimento do cristianismo. No primeiro caso, estariam includas naes como a Turquia e a China; no segundo, toda a civilizao europia. Aos olhos dessa tradio de uma antropologia bblica, fundamentada num liberalismo cristo, que
69 70

Idem, Ibidem, p. 63. Sobre essa relao entre antropofagia e sexualidade, cf. LESTRINGANT, Frank. O Canibal. Op. Cit. Especialmente, captulos 10 e 12. 71 Para uma anlise dos diversos sentidos atribudos palavra serto, cf. AMADO, Janana. Regio, Serto, Nao, Estudos Histricos, n. 15, 1995, pp. 145-151. Sobre a noo de serto para a inteligncia do Imprio e sua relao com a civilizao, cf. MATTOS, Ilmar R. de. O Tempo Saquarema. Op. Cit., pp. 45-91 e 122-142. Ver, tambm, PEIXOTO, Renato Amado. A Mscara da Medusa. A Construo do espao nacional brasileiro atravs das corografias e da cartografia no sculo XIX, Op. Cit. 72 Como destacou Kodama, essa distino entre tipos de civilizao deve-se a Bellac, membro do Institut Historique de Paris, e sua obra Le Monde Histoire de tous les peuples. KODAMA, Kaori. Op. Cit., p. 143-144. No entanto, tambm poderamos remontar obra de Bossuet, onde essa ciso recebe toda sua justificativa teolgica e poltica. BOSSUET, Jacques-Bnigne. Discours sur lHistoire Universelle, Garnier-Flammarion: Paris, 1966.

99 se fazia bastante presente nos trabalhos etnogrficos do IHGB, a verdadeira civilizao e o Cristianismo seriam sinnimos73. Afinal, para a melhor prosperidade de um bem-estar, fundamentado na liberdade e na propriedade, a sociedade civil precisaria dos laos morais da religio crist. Feita esta ressalva, Gonalves Dias pode afirmar que os povos selvagens do Brasil (os Tupis) estariam mais aptos civilizao, no segundo sentido do termo (e nico verdadeiro), do que outros povos aparentemente mais civilizados. facil de compreender, que, tratando-se de modificar ou substituir idias, ser isso mais difcil se elas j tiverem alcanado certo grau de desenvolvimento, do que se acharem em certo ponto de decadncia74. Tanto o estado desenvolvido de certas sociedades como a chinesa, como o estado bruto de natureza, so considerados inapropriados para a atividade catequtica. A melhor situao em que se pode encontrar um povo apto a ser convertido verdadeira civilizao a decadncia. Restava saber se os Tupis se enquadrariam nessa situao. Para responder a essa pergunta, Dias recorre novamente aos dois instrumentos paradigmticos dessa etnografia: o estudo da linguagem e a comparao de costumes. No caso da lngua Tupi, o autor salienta, como j o havia feito Gonalves de Magalhes, que sua estrutura mereceu de ser comparada grega e latina. No entanto, observa ele,

demonstra mais hbito de reflexo do que encontramos no povo que a falava; abunda como bem denota Martius em expresses que indicam certa familiaridade com as consideraes matafsicas, concepes abstratas, a ponto de bastar para exprimir as verdades e os mitrios da mais espiritual de todas as religies do cristianismo; e reina em toda ela tal ordem, tal mtodo, que algum j disse que os Tupis no estavam em estado de a ter formado. Se no o estavam, e j o tinham feito, a consequncia que depois disso haviam decado .
75

A anlise da estrutura da lngua permite que se conclua de uma formao espiritual que no coincide com o estado atual que se pode observar. Como a lngua tem um ritmo de mudana diferente dos costumes (o que permite que ela seja arquivo), esse desequilbrio permite supor um estado anterior mais avanado. Remete, assim, a uma histria. graas a essa anterioridade, ainda que obscura, que o autor pode afirmar a convertibilidade dos povos indgenas. Concluiremos, pois, que os Tupis, pela invaso e pelo estado decadente em que
73 74

Cf. STOCKING, George. Victorian Anthropology. Op. Cit. p. 87. DIAS, Gonalves. Op. Cit. p. 261. 75 Idem, Ibidem, p. 264-265.

100 foram achados, se prestavam maravilhosamente a qualquer plano de catequese ou de colonizao76. Se o processo de colonizao promovido pelos portugueses no foi bem sucedido, isso no se devia aos indgenas (e a sua suposta inconstncia), mas apenas forma equivocada com que foi praticada. A atitude de enviar degradados para colonizar o Brasil e os maus tratos engendrados contra as populaes nativas depe somente contra os portugueses. Gonalves Dias, inclusive, faz os colonos passarem por brbaros, invertendo o esquema dominante. Mem de S, por exemplo, para vingar a morte de seu filho (o sentimento de vingana, como vimos, era sempre atribudo aos ndios), comeou uma guerra de surpresa e brbara, vingando-se semelhana dos selvagens, cujos costumes se repreendiam: atacavaos de noite, s subitas, por emboscadas, e matou homens, mulheres e crianas, sem poupar a pessoa viva, destruindo segundo os historiadores 300 aldeias77. A barbrie, aqui, atribuda ao colonizador. Contudo, isso no quer dizer que Gonalves Dias venha colocar em suspenso a superioridade da civilizao da qual aquele colonizador fazia parte. Nem mesmo vem criticar o ato de colonizar. No seu objetivo colocar em perspectiva seus prprios valores para compreender outro, com um olhar distanciado que caracterizaria a observao participante do comeo do sculo XX78. O que ele est defendendo, e seu discurso etnogrfico um modo de faz-lo, a adoo de mtodos mais racionais e cristos de alargar a civilizao. O objetivo que permeia seu texto garantir as condies necessrias para a promoo da incluso das populaes indgenas e sua conseqente hierarquizao dentro de uma configurao nica, crist e nacional. O uso que ele faz dos conceitos opostos de civilizao e selvageria (dos Tupis, e no dos Tapuias) remete, assim, quele esquema referido acima cuja tradio remonta oposio teolgica cristos/pagos, atualizada pela viso histrica de Bossuet e pela tradio de uma antropologia bblica. Os tupis, enquanto decados, haviam esquecido os valores de sua condio original, mas no haviam, contudo, cado ao ponto de tornar irreversvel seu processo de decadncia. Sua incluso na civilizao crist, portanto, tornava-se vivel e justificada, legitimando a ao catequtica. E, ao contrrio de Varnhagem que via na ao poltica o fundamento da sociedade, para Gonalves Dias bastava levar os preceitos cristos aos selvagens para que sua converso civilizao se realizasse: No sendo os dogmas fruto da politica, mas, pelo contrrio, sendo as sociedades

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Idem, Ibidem, p. 269. Idem, Ibidem. p. 237-238. 78 CLIFFORD, James. Sobre a autoridade etnogrfica, in: A experincia etnogrfica. Op. Cit.

101 produtos das religies, seria preciso substituir uma religio por outra para mudar-se a forma social79.

***

Na segunda parte de sua obra, o autor passa a fazer uma descrio detalhada dos costumes das sociedades que compunham a Oceania: Malaios, Polinsios e Austrlios. Estes povos, situados na outra margem do globo, funcionam como um contraponto til para melhor esclarecer a situao dos Tupis quanto sua convertibilidade. Nesta parte, diferentemente de Lafitau, que comparava os selvagens aos antigos com o intuito de perceber semelhanas, Dias compara os selvagens entre si com o objetivo de delimitar as diferenas80. O que sua comparao visava tornar claro era, justamente, as diferenas existentes entre eles, estabelecendo distintos tipos de selvageria. A descrio serve para estabelecer uma hierarquia. Os malaios se apresentariam mais desenvolvidos que os polinsios, os quais, por sua vez, superariam os austrlios. Os dois primeiros, detentores de certos dotes intelectuais, teriam costumes e crenas arraigadas, o que dificultaria a aceitao de uma civilisao j formada. Os austrlios, por sua vez, estariam muito mais prximos de um estado de natureza bruta (graas a uma degradao avanada, e no a uma condio originria). Inclusive, este termo da comparao remete a uma outra situao domstica. Gonalves Dias declara os austrlios como entes desgraadssimos no moral como no fsico, avessos a todo o ensino, falando inmeras lnguas, e colocados (diz Rienzi) no ultimo grau de embrutecimento81. Estas opinies procuram mostrar a extrema dificuldade que haveria na empresa da civilizao dos Austrlios. Esta assertiva, ao invs de se limitar ao particular, cabendo apenas populao referida, deve servir de regra geral, diz Dias: A experincia mostra que a raa preta em contato com outra qualquer se deixa sempre subjugar, o que prova de incontestvel inferioridade; e de fato os Austrlios so muito inferiores aos Guaranis, tanto no fsico como nas faculdades morais e intelectuais82. Sem precisar trocar o termo Austrlio por Africano, seus leitores saberiam reconhecer o

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DIAS, Gonalves. Op. Cit., p. 386. Lafitau esperava que la comparaison des moeurs des Amricans avec celles des Asiatiques et des nations comprises sous les nomes des peuples de la Thrace et da la Scythie il rsultera dans la suite de cet ouvrage comme une espce dvidence, que lAmrique a t peuple par les terres les plus orientales de la Tartarie. LAFITAU, J-P. Op. Cit. p. 42. 81 DIAS, Gonalves. Op. Cit. p. 392. 82 Idem, Ibidem. p. 394-395.

102 resultado da comparao. A etnografia volta a encontrar a histria, agora como elemento ausente, ou silenciado! Todo esse jogo comparativo, no entanto, apesar de apontar para outros interesses, direcionado principalmente ao esclarecimento da convertibilidade dos Tupis. Estes, na medida em que no se apresentavam em um estado mais avanado, com costumes arraigados, e nem se encontravam no ultimo grau de embrutecimento, como os negros domsticos, se mostrariam mais aptos catequizao. Poderiam compartilhar, com maior facilidade, de uma memria ocidental. Se, para Varnhagen, a partilha entre Etnografia e Histria implicava em uma separao cuja conciliao no era praticvel nem desejvel (e onde a histria encontrava-se justificada em suas aes), para Gonalves Dias a escrita etnogrfica seria um modo mais atrativo aos atores da boa conscincia humanista da sociedade imperial continuar pregando e implementando a Civilizao (crist), a Utilidade, as Luzes, a Razo e o Progresso, sem precisar excluir aquela alteridade interna: Em uma poca em que tanto se trata da colonizao estrangeira, cujas utilidades e vantagens estou bem longe de contestar, seria bem que um pouco nos voltssemos para as nossas florestas, e considerssemos se alguma antipatia h entre a filantropia e o amor da prosperidade nacional, ou se se d alguma repugnncia para que sob o mesmo impulso progridam catequese e colonizao83. Com a etnografia, portanto, esse letrado ilustrado poderia dar um lugar ao selvagem, inserindo-o num mesmo processo civilizador. Para Gonalves Dias, assim como para a maioria dos partidrios do binmio catequese/civilizao, caberia ao discurso etnogrfico a elaborao de argumentos que legitimassem esse projeto de incluso e hierarquizao. A produo, por meio da etnografia, de uma histria para as populaes indgenas, na mesma medida em que possibilitava a construo de um espelho sociolgico atravs do qual esse homem letrado da boa sociedade poderia trabalhar os conceitos que formavam sua tradio, tambm possibilitava aquele esforo de preservao da diferenciao entre pessoas e coisas, de um lado, assim como da desigualdade entre pessoas, de outro. Na construo do Imprio do Brasil e suas diferentes ordens, a escrita etnogrfica atuou como um instrumento de distino, incluindo e hierarquizando aquele outro interno representado pelo selvagem. Nessa construo de uma imagem do indgena, esses homens acabavam por encontrar a histria duas vezes: no discurso etnogrfico, como um duplo, simtrico e inverso, do discurso histrico (o qual acionava e atualizava os conceitos que formavam sua tradio); mas

83

Idem, Ibidem. p. 355.

103 tambm no seu prprio presente, na medida em que por meio de suas aes, faziam a histria84.

2.3 O selvagem entre dois tempos: ou o ocaso de uma tradio

Com a anlise dos textos de Varnhagen e Gonalves Dias, salientei como esses autores, cada qual com seu dialeto prprio, expressavam posies opostas no campo de debate etnogrfico imperial85. Seja defendendo a excluso dos indgenas de um processo civilizador, seja promovendo sua incluso hierarquizada, tanto Varnhagen como Dias recorreram a certos pressupostos comuns. Os conceitos que delimitavam os contornos da alteridade indgena, como religio, trabalho e liberdade, enrazavam-se num plano discursivo alimentado pela tradio bblica e pelo liberalismo poltico. Para a maioria dos scios do IHGB, a formulao de um discurso etnogrfico se dava por meio de um esquema conceitual cuja efetividade estava centrada em sua capacidade de incluir a alteridade, ainda que de forma hierarquizada. O par conceitual civilizado/selvagem, tal como usado por esses letrados, restaurava a funcionalidade de uma outra oposio: cristos/pagos. O que estava por trs desses conceitos opostos assimtricos, como bem salientou Koselleck, era uma experincia temporal crist, pautada na idia da converso. Assim como o pago representava um cristo em potencial, o selvagem tambm poderia ser compreendido como um ainda no civilizado. Contudo, essa condio de ainda no, longe de indicar qualquer processo evolutivo, pautado numa naturalizao do tempo, caracterizava-se antes pela possibilidade da salvao. Como salientou Gonalves de Magalhes com seu testemunho no Maranho, o que estava em jogo era a possibilidade de uma passagem repentina, portanto uma converso, do selvagem ao estado civilizado. Do mesmo modo, interessava identificar o selvagem no como um ser primitivo, mas como um decado. Pode-se dizer, assim, que o discurso etnogrfico promovido por esses letrados acionava como elemento estrutural um tempo da salvao. Essa temporalidade, de carter inclusivo, permitiria dar um lugar s populaes indgenas dentro da construo do Imprio do Brasil; mais do que isso, legitimaria tambm o papel desses letrados como agentes dessa civilizao crist a ser realizada nos Trpicos.

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DUCHET, Michle. Le partage des savoirs. Op. Cit., p. 104. Tomo essa expresso, dialeto, em sentido homlogo ao usado por Duchet em seu clssico estudo, procurando inserir esses autores num campo geral de discusso, mas sem diluir suas especificidades.

104 No caso de Varnhagen, o esquema conceitual no produzia a incorporao, mas sim uma separao. No entanto, deve-se ressaltar dois pontos: primeiro, que para provar seu argumento, ele se via constrangido a fazer uso de uma mesma gramtica, o que inclua tanto o compartilhamento de mtodos de investigao (comparao de costumes e genealogia lingstica), como o enquadramento dos indgenas em uma cronologia bblica; segundo, a separao estabelecida entre selvagens e civilizados no se dava por critrios naturais, mas por um sentido histrico: o triunfo da civilizao crist em terras americanas. A tese da origem turaniana por ele sustentada em LOrigine, j na dcada de 1870, representava um ltimo e tardio lance na tentativa de virar o jogo. As regras do jogo, no entanto, j estavam mudando; e a recepo de sua obra, como veremos no prximo captulo, seria severamente marcada por essas mudanas. O ocaso do projeto etnogrfico imperial, contudo, poder ser mais bem observado atravs da obra de um outro autor: o Gen. Couto de Magalhes. Como procurarei mostrar, seu texto marcado pela convivncia de diferentes linguagens antropolgicas. Com isso quero dizer que Couto da Magalhes faz uso tanto daquela gramtica (ou daqueles preceitos retricos) que caracterizavam o discurso etnogrfico do IHGB, como tambm acrescenta a eles uma srie de conceitos e problemas que apontam para um outro modelo de anlise. Nesse sentido, sua obra torna-se um marco importante para compreendermos um momento de transio de um espao intelectual a outro; de um campo de discusso bem delimitado, tendo seu centro organizador no IHGB, para uma fragmentao do discurso etnogrfico, quando diferentes agentes e instituies imprimem novas configuraes ao debate. O esforo de Couto de Magalhes em, de certa forma, re-atualizar o programa etnogrfico do IHGB, deflagra no apenas o esgotamento daquela tradio ( qual se filiava), como tambm indica um novo quadro conceitual de cuja legitimidade ele procurava se apropriar. A tenso que caracteriza seu texto pode ser percebida pelo modo como ele situa seu objeto. O selvagem, ali, transita entre um tempo natural e um tempo bblico, como se o autor buscasse promover uma conciliao impossvel entre o indgena degradado e o homem primitivo86. Graas a essa tenso, sua obra recebeu diferentes classificaes, seja como uma empreitada evolucionista e, nesse sentido, pde ser absorvida nos quadros do Museu Nacional , seja como mais um captulo da etnografia romntica e seus sonhos genealgicos,
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John Monteiro ressaltou como Couto de Magalhes mantinha um p na cincia da poca e outro no idealismo pr-ndio. MONTEIRO, John. Entre o Gabinete e o Serto, in: Op. Cit., p. 152. Maria Helena Machado, igualmente, salientou que o autor partia de uma abordagem evolucionista e monogenista-catlica e acompanhando a voga do nativismo indianista dos romnticos. MACHADO, Maria Helena. Um mitgrafo no Imprio: a construo dos mitos da histria nacionalista do sculo XIX, Estudos Histricos, Rio de Janeiro, v. 14, n. 25, p. 63-80, 2000.

105 como acusaria Slvio Romero. De qualquer forma, justamente por essa plurivocidade que seu texto nos interessa87.

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Nascido em 1837, bacharel formado pela Faculdade de Direito de So Paulo, Jos Vieira Couto de Magalhes ocupou, na dcada de 1860, os cargos de presidente das provncias de Gois, Mato Grosso e Par. Em 1868, ele fundava a Empresa de Navegao a Vapor do Rio Araguaia e, em 1875-76, obtinha do governo imperial a concesso da linha frrea da Minas and Rio Railway Ltd. Em 1876, publicava o livro O Selvagem, cuja produo fora encomendada pelo prprio imperador, tendo em vista a Exposio Universal do Centenrio da Independncia dos Estados Unidos, ocorrida na Filadlfia. Filiado ao partido liberal de So Paulo, teve um papel de destaque no projeto de modernizao do Brasil imperial. Um ano depois de assumir a presidncia da provncia de So Paulo, renuncia por no apoiar o regime republicano. Monarquista convicto at a morte, Couto de Magalhes pode ser caracterizado como um indivduo que procurou modernizar e revitalizar a poltica imperial em meio crise que se instalou aps de dcada de 186088. Eu no pretendo, com essa seqncia de dados biogrficos, reduzir o livro de Couto de Magalhes a um mero reflexo de sua posio social, como uma voz representante de uma classe ou como fruto de seus interesses e aspiraes polticas e econmicas. Ainda que todos esses elementos sejam causas singulares eficientes da produo da obra89, o que eu procurarei destacar aqui sua insero no debate etnogrfico configurado em torno do IHGB. O fato de ele fazer parte da elite imperial e sua obra ter sido encomendada por D. Pedro II no seria suficiente, por si s, para a compreenso de seu texto. Afinal, todos os autores analisados at aqui se enquadrariam nessa condio de elite e parte deles tambm escreveu sob
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Como ser analisado nos prximos captulos, a aparente similaridade da prtica etnogrfica sob a perspectiva geral de classificaes como evolucionismo esconde uma srie de usos heterogneos. Nesse sentido, ressalto e endosso a crtica de Jack Goody em relao a boa parte da historiografia da antropologia: Historians of this domain are intent on placing people in schools, to wich various characteristics are allotted. This is done partly for their own understending of a complex situation, partly to make comprehension easier for the reader, who likes to have his phenomena tied togheter in neat packages. There are of course some explicit schools of this kind that have a common programme. But general trends are not universal ones and their elucidation tends to underplay the contradictions, the disgreements, the multiplicy, that mark any human endeavour of this kind. The effort to aggregate may well lead to a a measure of distortion of the evidence. GOODY, Jack. Towards the study of the history of social anthropology, in: The expansive moment. Anthropology in Britain and Africa. 1918-1970. New York: Cambridge University Press, 1995. 88 Para os dados biogrficos, cf. MAGALHES, Jos Vieira Couto de. Dirio ntimo. Organizao de Maria Helena P. T. Machado. So Paulo: Cia. das Letras, 1998. 89 RINGER, Fritz. A metodologia de Max Weber. Unificao das cincias culturais e sociais. So Paulo: Edusp, 2004, pp. 71-96.

106 encomenda direta do Imperador, como o caso de Gonalves Dias (se no bastasse j estar dentro do IHGB). A pertena a essa condio social no garantia da homogeneidade dos textos, ainda que no estejam dela desvinculados. No entanto, para os fins do presente estudo, importante ressaltar a posio de Couto de Magalhes como integrante, defensor e modernizador do projeto poltico do Segundo Reinado pois, como j foi dito, a especificidade de sua investigao etnogrfica se concentra, justamente, no objetivo de re-atualizar a tradio na qual se insere. O que eu procuro sugerir, portanto, que seu texto deve ser entendido como uma tentativa tardia de revitalizao do discurso etnogrfico imperial, guardando certos traos e valores que conformavam sua identidade. A adoo de expresses e linguagens cientficas prximas a um evolucionismo no implicou, de modo algum, a renncia daqueles pilares que sustentavam o discurso etnogrfico no IHGB, com seu liberalismo cristo.

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O livro O Selvagem composto por duas partes distintas. Na primeira, Couto de Magalhes apresenta um Curso de lngua Tup viva ou Nheengat, cujo objetivo, esclarece o autor, permitir que todas as pessoas, que saibam ler e que estiverem em contato com o selvagem, possam ensinar ao mesmo selvagem a falar o portugus90. A segunda parte, intitulada Origens, costumes e Regio Selvagem, trata-se de uma tentativa de sistematizao antropolgica, onde procurou transformar toda sua experincia nos sertes em conhecimento cientfico. Esta segunda parte havia sido apresentada, originalmente, em sesso do IHGB, em 1874. A ordem de exposio de seu estudo etnogrfico segue do geral (o homem americano) ao particular (o selvagem no Brasil, suas lnguas, constituio fsica, famlia e religio, regies onde habita). O que estrutura esta ordem expositiva a necessidade de estabelecer as origens desse homem americano como condio para qualificar os selvagens que habitam o territrio nacional. Portanto, ele vai do aparecimento do homem na Terra aos movimentos migratrios dos indgenas nos sertes. Novamente, aqui, vemos como a investigao etnogrfica enraza-se em uma articulao temporal. No entanto, esta articulao temporal diferencia-se daquela que vimos ser estruturada no debate etnogrfico do IHBG. A busca das origens, em Couto de Magalhes, filia-se a um esforo de classificao que no se restringe a uma genealogia lingstica, mas abrange um modelo formal cujos critrios so

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MAGALHES, J. V. Couto de. O Selvagem. Op. Cit., Advertencia.

107 universais e naturais. em relao natureza dessa articulao temporal que abordarei o texto de Couto de Magalhes, na tentativa de posicion-lo frente ao debate etnogrfico oitocentista. Ao ler a segunda parte de sua obra, deparamo-nos com algumas afirmaes a este respeito. Logo no incio de seu texto, ele situa o estudo do homem como vinculado s transformaes geolgicas: Aqueles que estudam as diversas revolues por que tem passado a terra, desde o perodo em que fazia parte da grande nebulosa que se decomps no sistema solar, at nossos dias, ficaro convencidos de que os fnomenos que ns denominamos vitais esto intimamente ligados a tais revolues91. O homem, assim, no apresentado como um objeto autnomo. Para chegar a ele, faz-se necessrio antes associ-lo ao processo de formao da Terra e, dentro desse processo, ao surgimento dos fnomenos vitais. O quadro de trabalho colocado dentro de uma cronologia que extrapola os limites do tempo dos homens. Estes s haveriam aparecido na poca ternria. Estas consideraes, como Couto de Magalhes iria reconhecer depois, implicavam uma necessria reviso dos textos bblicos:

Contando-se o tempo pela vida dos patriarcas tal qual ela foi escrita por Moiss, Ado e Eva no existiram a mais de cinco mil anos. Os textos do Velho Testamento hebraico devem ser revistos porque, pela forma por que esto traduzidos, eles envolvem um erro que destri pelos fundmentos toda a teoria da revelao imediata, do pecado original e da redeno; porque, assentando-se todas elas no fato da criao daquela famlia cinco mil anos, fica a revelao destruda com a existncia de geraes humanas por muitos milhares de anos antes de Ado e Eva, povoando j todos os valles da terra, inclusive os da Amrica.92

importante destacar desde j que Couto de Magalhes no est preocupado em atacar ou mesmo desqualificar o texto bblico. As consideraes cientficas trazidas por ele a respeito da antiguidade do homem na terra visam apenas revisar o testamento hebraico, e no desmenti-lo93. Inclusive, o problema no estaria no prprio Testamento, seno em sua traduo. Entre a autoridade da linguagem cientfica por ele adotada - pautada em descobertas

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Idem, Ibidem, p. 1. Grifos meus. Idem, Ibidem., p. 39. 93 Como destaca Manoel Salgado Guimares, referindo-se ao trabalho arqueolgico do dinamarqus Ramus Nyerup, do incio do sculo XIX, esta perspectiva de uma expanso da cronologia clssica estava longe de ser aceita sem contestaes. GUIMARES, Manoel L. S. Para reescrever o passado como histria: o IHGB e a Socidade dos Antiqurios do Norte, in: HEIZER, Alda; VIDEIRA, Antonio Augusto Passos (orgs). Cincia, civilizao e Imprio nos Trpicos, Op. Cit., p. 11. Para uma viso mais geral desse processo, cf. ROSSI, Paolo. Os sinais do tempo. So Paulo: Cia. das Letras, 1992; e SCHNNAP, Alain. La conqute du pass. Op. Cit.

108 geolgicas e em um novo campo de abordagem arqueolgica enquanto autnoma cultura filolgica - e a autoridade dos textos bblicos, no haveria uma necessria antinomia. A coexistncia desses modelos ser analisada adiante. O que interessa apontar, por enquanto, a presena mesma desse aparato discursivo que inseria o estudo do homem numa agenda contgua s cincia naturais. Assim como existiria uma ordem natural de desenvolvimento do globo terrestre e de seus fenmenos vitais, da mesma forma haveria etapas de desenvolvimento inerentes histria humana. A antropologia demonstra que o homem fsico passou sempre de um perodo mais atrasado para um mais adiantado; a histria demonstra a mesma coisa a respeito do homem moral94. H um sentido, portanto, tanto para o fsico quanto para o moral (ainda que ele trate essas esferas separadamente). Estabelecida essa lei, o autor tem sua disposio uma grade formal na qual pode dispor e classificar seu objeto. Mais especificamente, Couto de Magalhes adota como critrios de classificao as idades da pedra e dos metais95. Alm desses critrios, ele faz uso igualmente de outras etapas vinculadas produo: A filosofia e a histria ensinam, que o homem em relao a indstria alimentar foi primeiramente caador e pescador, depois pastor, e s depois de haver percorrido esses dois perodos que foi agricultor96. Esse aparato evolucionista (e Couto de Magalhes no deixa de mencionar a obra de Darwin, o que no quer dizer que seu evolucionismo seja igual ao do naturalista ingls) lhe permite ao mesmo tempo criar e resolver problemas referentes ao desenvolvimento dos indgenas brasileiros. Nossos selvagens, ele se indaga, que j eram agricultores, no tinham sido pastores; como explicar estes fatos?97. Sua resposta, j que no pode haver exceo s regras, vem da deduo lgica de que o Brasil s possuiu os seus selvagens por via de emigrao, e que esta deveu ter tido lugar depois que esses homens haviam transposto em outra regio o primeiro periodo da civilisao ou barbria humana98. A histria dos indgenas, portanto, poderia ser reconstruda agora no apenas atravs de uma investigao genealgica, mas tambm como fruto de dedues lgicas, uma vez que sua existncia temporal estaria submetida a regras universais de desenvolvimento. Ao adotar esse esquema interpretativo, Couto de Magalhes no estaria mais tratando apenas da obscura histria indgena. Ao recorrer a essa vertente do pensamento antropolgico, ele opera em relao a uma linha temporal nica e, acima de tudo, natural.
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Idem, Ibidem, p. 24. Idem, Ibidem, p. 9. 96 Idem, Ibidem, p. 29. 97 Idem, Ibidem, p. 23. 98 Idem, Ibidem, p. 26.

109 Como diria Joseph-Marie Degrando uma figura importante nessa tradio -, estudar os povos selvagens torna-se, a partir de ento, tambm um modo de esclarecer os pontos obscuros de nossa histria primitiva99. Nas palavras de Couto de Magalhes:

E se verdadeira a teoria de que o homem pensou da mesma forma, qualquer que fosse a sua raa, enquanto esteve no perodo de barbarismo que termina-se com a fundio dos primeiros metais, a histria do pensamento da raa americana, nesse periodo, no s a de uma poro da humanidade; a de toda a humanidade, em perodo identico100.

A unidade psquica do homem, base para essa formulao que tomava corpo em meados do sculo XIX, reduz a diferena graas ao vetor temporal. Na medida em que haveria uma natureza humana fundamentalmente igual, baseada em sua unidade psquica, e que ela seguiria leis universais de desenvolvimento, todas as sociedades estariam associadas a um mesmo plano evolutivo101. Contudo, por alguma misteriosa razo, nem todos os grupos humanos se encontravam num mesmo estgio de desenvolvimento. Mas era justamente essa coexistncia que tornava possvel reconstruir conjenturalmente a histria da humanidade, graas ao mtodo comparativo102. tendo em vista esse plano intelectual que Couto de Magalhes exclama: Que imenso museu vivo no possumos para preparar a histria do pensamento primitivo da humanidade!103. Sua vasta experincia em viagens pelo interior do Brasil transforma-se, ento, numa enriquecedora viagem ao passado. Deslocar-se no espao deslocar-se no tempo. A observao presente da vida selvagem proporciona uma viso da histria no aquela viso construda atravs da historiografia tradicional com sua cor local, mas da histria no escrita, que antecedia os registros conscientes da humanidade104.
DEGRANDO, Joseph-Marie. Introduction aux Mmoires, in COPANS, Jean e JAMIN, Jean. Aux Origines de lanthropologie franaise. Les mmoires de la Societ des observateurs de lhomme en lan VIII, Paris: Jean Michel Place, 1994, p. 58. Cf. HARTOG, Franois. Du parallle la comparaison, in: Anciens, Modernes, Sauvages. Op. Cit, pp. 197-220. Grifo meu. 100 MAGALHES, J.V. Couto de. Op. Cit., p. 152. Grifos meus. 101 Como destaca John Zammito, com a obra de Locke e sua vasta difuso entre os crculos letrados do sculo XVIII, uma viso sensualista do desenvolvimento cognitivo humano foi estendida ao seu desenvolvimento histrico. By framing the question of human consciousness as the history of human understanding, Locke initiated a general temporalization of human faculties. There was, decisively, a convergence from both conceptual poles, nature and (human) history, toward a synthetic middle ground. Nature came increasingly to be conceived as temporalized (e.g. Buffon), while human history presumed a measure of universality if only to encompass the profound otherness that this variety presented to the observer. ZAMMITO, John. Kant, Herder, and the bird of Anthropology. Chicago: University of Chicago Press, 2002, pp. 225-229. 102 STOCKING, George. Race, Culture and Evolution. Chicago: Chicago University Press, 1984, 26. 103 MAGALHES, J. V. Couto de, Op. Cit., p. 153. 104 Sobre o papel da cor local na historiografia brasileira do sculo XIX, cf. CEZAR, Temstocles. Lcriture de lhistoire au XIX sicle. Op. Cit., pp. 118-124.
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110 Essa perspectiva de trabalho, como veremos, colocaria a autpsia como um componente retrico fundamental para a escrita etnogrfica. Afirmamos acima que esse esquema reduzia a diferena na medida em que singularizava o homem e o situava numa mesma ordem temporal, com suas etapas necessrias de desenvolvimento105. Poderamos, contudo, inverter essa afirmao. Se, por um lado, esse selvagem deixa de ser indagado acerca de sua prpria historicidade (a obscura histria indgena), integrando, agora, as origens de nossa prpria histria o que reduziria a diferena; por outro lado, talvez seja mais correto dizer que esse quadro de anlise instaura uma outra diferena. Essa nova diferena pode ser qualificada como uma alocronia, para usar o termo proposto por Johannes Fabian106. Na medida em que o passado indgena deixa de ser um enigma em si mesmo e passa a representar o passado nico da humanidade, ele no apenas passa a compartilhar de um mesmo plano evolutivo, mas, mais importante, -lhe atribudo um distanciamento temporal. Ou seja, o fato de ele estar presente observao no significa mais que ele possa ser considerado um contemporneo. O que torna significativa sua presena a possibilidade de representar um ausente: o passado do prprio observador. nesse sentido que Fabian fala da negao da contemporaneidade como um pressuposto do pensamento antropolgico moderno. Reinhart Koselleck, em suas investigaes acerca do tempo histrico, denominou essa experincia de simultaneidade do no contemporneo107. Dessa nova experincia temporal surge a possibilidade do viajante moderno poder comparar os tempos, o seu e o do objeto observado, sem esconder a satisfao de tomar conscincia de seu prprio lugar: A o vapor, passando por entre as numerosas aldeias de ndios que ainda andam ns, apresenta em contraste os dois extremos da cadeia humana: a raa mais civilizada que usa desse primeiro agente do progresso, e o homem n, imagem viva da primeira rudeza e barbaridade selvagem de nossos maiores108. esta concepo de uma imagem viva, disponvel ao observador, o que passa a qualificar o selvagem e sua alteridade temporal.

Essa singularizaro, faz-se necessrio ressaltar, se dava no plano psquico, pois era tendo como a priori a unidade psquica do homem que se poderia, dentro da tradio do evolucionismo social, reconstruir as etapas de desenvolvimento. Havia, claro, a idia de que, devido a certos fatores, certos povos ficariam retidos em estgios de desenvolvimento; o que no implicava que, na origem, eles no compartilhassem as mesmas capacidades psicolgicas. Como afirma Stocking: In the beginning, black savages and white savages had been psychologically one. But while white savages were busily acquiring superior brains in the course of cultural progress, dark-skinned savages had remained back near the beginning. Although united in origin with the rest of mankind, their assumed inferiority of culture and capacity now reduced them to the status of missing links in the evolutionary chain. STOCKING, George W. Victorian Anthropology. Op. Cit., p. 185. 106 FABIAN, Johannes. Time and the other. Op. Cit., p. 33. 107 KOSELLECK, Reinhart. Futuro passado. Op. Cit. 108 MAGALHES, J. V. Couto de. Op. Cit., p. 181. Grifos meus.

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111 O que interessa destacar de tudo isso o fato de Couto de Magalhes operar com uma linguagem que remete naturalizao do tempo. Sua indagao deixa de se dirigir apenas ao passado especfico das sociedades indgenas. No seria mais possvel, nessa perspectiva, estabelecer o indgena como um ser decado de uma condio originria, tal como o fazia boa parte dos letrados do IHGB109. Agora, sob a categoria de primitivo, o selvagem passava a ser encarado como a origem da humanidade, sendo o seu presente o passado do observador. A categoria de primitvo, como lembra Fabian, no se qualifica pelo seu contedo; no designa nenhuma sociedade em particular. Ela deve ser entendida, antes, como uma categoria formal e essencialmente temporal110. Mas, cabe agora perguntar, at que ponto esse evolucionismo de Couto de Magalhes se realizava em todas as suas conseqncias? At que ponto era levada sua naturalizao do tempo histrico? Mais importante: em que medida sua abordagem representava uma quebra com a tradio da etnografia bblica do IHGB? Antes de analisar essas questes, necessrio deixar claro que no existe o evolucionismo enquanto um corpo de premissas homogneas. No possvel, por exemplo, identific-lo simplesmente com a obra de Darwin e seus efeitos. Mesmo antes do aparecimento de Origem das Espcies, os tpicos que norteavam uma abordagem evolucionista j circulavam em diferentes autores111. Quando essas idias se difundiram em meados do sculo XIX, operou-se, inclusive, a apropriao de certos nomes como antecedentes ou precursores. Um exemplo clssico disso a leitura que se fez de Buffon, instituindo-o como referncia para o estabelecimento de uma histria natural do homem, atravs da qual estudava-se sua distribuio geogrfica e classificava-o de acordo com seu lugar na escala evolucionria da civilizao112. Alm disso, se tomarmos o evolucionismo no seu sentido mais amplo, envolvendo a naturalizao do tempo e o estabelecimento de critrios que permitem classificar etapas de desenvolvimento, teramos que levar em considerao os diferentes modos como essas idias gerais receberam configuraes especficas em tradies intelectuais distintas113.

A partir de ento, no haveria mais decados, mas apenas degenerados. FABIAN, Johannes. Op. Cit., p. 77. 111 Como j afirmamos acima, e assim tambm como Stocking mostra em seu estudo, o evolucionismo social do sculo XIX se deve, em boa parte, retomada dos quadros conceituais de autores como Hume, Locke, Smith e Robertson. STOCKING, George. Victorian Anthropology. Op. Cit. Ver tambm BLANCKAERT, Claude. La nature de la societ. Organicisme et sciences sociales au XIX sicle. Paris: LHarmattan, 2005, p. 44. 112 BLANCKAERT, Claude. Buffon and the natural history of man, History of the Human Sciences, vol. 6, n. 1, 1993. 113 Pode-se, por exemplo, comparar quando e como essas idias foram desenvolvidas na Inglaterra, na Frana e na Alemanha. Para uma anlise desses trs casos, cf., retrospectivamente, STOCKING, George. Victorian Anthropology. Op. Cit.; BLANCKAERT, Claude. On the origins of the french ethnology, in: STOCKING,
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112 Para a presente investigao, contudo, o que vale destacar a relao que esse pensamento evolucionista que encontra seu lugar ao lado das filosofias da histria mantm com a tradio da antropologia bblica. Como afirma Stocking, os evolucionistas procuravam desenvolver uma explicao naturalstica para as manifestaes especificamente humanas que eram atribudas a uma origem divina. They are asked to show that language, science, religion, morality, and law and by extension, other divinely ordained institutions such as human marriage had grown up naturally as part of mans development from savagery to civilization114. A formao desse discurso esteve vinculada a uma severa crtica s concepes que se baseavam em algum elemento transcendente sociedade. A moral e a religio eram colocadas como objetos a serem esclarecidos, como frutos do processo evolutivo, e no sua causa. A religio, assim, no era mais o ponto do qual se partia, mas o que precisava ser explicado. Com esse esquema, o selvagem assume uma nova posio. Ele no se situa mais nas margens da histria humana como um ser degradado, detendo, assim, sua prpria historicidade que necessitaria ser reconstruda atravs de uma investigao genealgica e cuja inteligibilidade poderia ser dada atravs do paralelo com os Antigos115. Como j foi dito, ele era agora incorporado dentro de uma lgica imanente e secularizada do desenvolvimento humano, sendo considerado um sobrevivente (survival)116. Essas diferentes concepes temporais implicavam, igualmente, atitudes filantrpicas distintas. Enquanto que a tradio bblica estava pautada na idia de converso, o evolucionismo assume como forma de ao social a idia de reforma. Entre as muitas diferenas que caracterizam esses dois modelos, cabe, por enquanto, destacar apenas uma: na converso, o selvagem estaria sempre pronto para a salvao; na reforma, o selvagem ainda no estava preparado para a civilizao. Na primeira, temos uma relao temporal inclusiva; na segunda, uma relao temporal exclusiva117.

George (org). Bones, Bodies and Behavior, Op. Cit.; ZAMMITO, John. Kant, Herder and the Bird of antropology. Op. Cit. 114 STOCKING, George. Victorian Anthropology. Op. Cit., p. 149. 115 HARTOG, Franois. Anciens, Modernes, Sauvages. Op. Cit. Como destaca o autor, a partir de ento entre os Modernos e os selvagens no haveria mais a intermediao dos antigos como elemento domesticador da diferena; p. 216. 116 Isso pode ficar claro se compararmos as atitudes comparativas de Lafitau e a de Tylor. Enquanto o primeiro buscava comparar os costumes dos selvagens para encontrar ali uma religio originria e, assim, provar sua pertena a uma origem e a uma natureza humana comum, fruto da criao e da revelao, Tylor, por sua vez, tomava como a priori a unidade psquica do homem para ento construir seus comparveis. Para Lafitau, a unidade do humano seria uma concluso a ser buscada, enquanto para Tylor uma condio para a reconstruo antropolgica. Vale ressaltar, ainda, que para esse evolucionismo social monogenista as raas no so uma codio originria, mas frutos de desenvolvimentos diferentes. 117 FABIAN, Johannes. Op. Cit., p. 26.

113 Voltemos agora a Couto de Magalhes e os limites (ou peculiaridades) de seu evolucionismo. Uma primeira considerao a ser feita diz respeito ao papel que Couto de Magalhes atribui Providncia. Em uma passagem, na qual procura defender a miscigenao do indgena com o branco, ele no faz uso de argumentos naturalistas, mas atribu um desgnio divino como garantia da ordem vital : Deus organizou a vida com leis to sbias e inflexveis, que no possivel supr-se que tais cruzamentos fossem fecundos, si a Providncia Divina no tivesse em vista um melhoramento e um progresso na espcie118. Se h uma ordem do tempo e um sentido de desenvolvimento da humanidade, eles no so devidos a uma dinmica intrnseca a sua constituio (cuja analogia com o organismo era paradigmtica a esse tipo de raciocnio119); so regidos, antes, por uma vontade divina. Sua atitude etnogrfica tomava como pressuposto essa condio:

Por muito rude e brbara que primeira vista parea uma instituio qualquer de um povo, ela deve ser estudada com respeito. As instituies fundamentais dos povos, qualquer seja o grau de civilizao ou barbria, so o resultado necessrio das leis eternas de moral e justia que Deus criou na conscincia humana, leis que no fundo so as mesmas no selvagem ou no homem civilizado, embora suscetveis de manifestaes diversas, segundo o grau de adiantamento a que cada um tem chegado120.

Como vimos acima, Couto de Magalhes, ao adotar a ordem do tempo vinculado geologia, no buscava desqualificar a referncia bblica, mas apenas revis-la. Seu argumento era de que, como estavam traduzidas, as afirmaes da Bblia, comparadas s descobertas cientficas, iam contra a teoria da criao, a revelao e a redeno. Portanto, longe de negar a revelao e a ordem divina em favor de uma postura cientfica secularizada, seu objetivo tentar concili-las. Esta atitude de reviso e conciliao a marca de seu pensamento antropolgico. Tambm podemos identificar essa atitude atravs do uso que ele faz do conceito de civilizao. Logo na Introduo, quando apresenta a origem e o objetivo do seu texto, ele deixa claro o sentido com o qual emprega a palavra: No grande concurso, que se vai abrir em Filadfia, ha uma seo paras cincias; nessa, merecero por certo especial ateno aquelas obras que se referirem ao homem americano, e aos esforos feitos pelas raas conquistadoras
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MAGALHES, J. V. Couto de. Op. Cit., p. 98. BLANCKAERT, Claude. La nature de la societ. Op. Cit. 120 MAGALHES, J. V. Couto de. Op. Cit., p. 131.

114 para chama-lo comunho da civilizao crist121. Em outra passagem, na qual ele retoma a oposio entre assimilao e extermnio, tambm vem especificado a que tipo de civilizao sua afirmativa se refere: A experincia de todos os povos, e a nossa prpria, ensinam que no momento em que se consegue que uma nacionalidade brbara entenda a lngua da nacionalidade crist que lhe est em contato, aquela se assimila a esta122. Como vimos anteriormente, o conceito de civilizao que informava a agenda etnogrfica do IHGB identificava-se essencialmente com o cristianismo. A religio, aqui, no entendida como uma mera etapa do desenvolvimento psquico da humanidade, sendo substituda, posteriormente, por uma viso positiva e cientfica. Enquanto que no quadro evolucionista o sentimento religioso diz respeito a um desvio da razo em seu processo de desenvolvimento, para os letrados do IHGB religio (crist) e civilizao formavam como que um nico conceito. Da a dificuldade de Couto de Magalhes em conciliar a teoria da revelao, que considerava necessrio revisar, com seu esquema de interpretao evolutivo. Se, por um lado, ele afirmava a seqncia necessria que ia do politesmo ao monotesmo, ele no deixava de sugerir, entretanto, uma estreita semelhana entre o sentimento religioso do indgena e do civilizado:

Creio que no necessito de outros fatos para demonstrar, que os pobres selvagens tributavam a seus deuses sentimentos to puros de gratido como aqueles que ns os cristos tributamos ao nosso Deus. Na orao que nos foi ensinada por Cristo, o modo de exprimir nossa relao fundamental para com o Criador a palavra pai. Eles empregam o nome de mi; em que que isto expressa a ausncia absoluta de idia de gratido para com o Criador, como pretenderam os portugueses e sobretudo os espanhis?123

Alm do sentimento religioso, que seria diferente, mas igual, o juzo que ele tece a respeito da lngua dos indgenas tambm expressa sua caracterstica ambigidade: Pelo lado da perfeio ela admirvel; suas formas gramaticais, embora em mais de um ponto embrionrias, so contudo to engenhosas que, na opinio de quantos a estudaram, pode ser comparada s mais clebres124. Embrionria e perfeita, documento de em perodo de aglutinao e ao mesmo tempo comparvel s mais clebres, a lngua selvagem, mecanismo

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Idem, Ibidem, p. XVIII. Idem, Ibidem, p. XXXII. Grifos meus. 123 Idem, Ibidem, p. 125. 124 Idem, Ibidem, p. XXXVI.

115 de sua decomposio, reflete a situao temporal instvel em que Couto de Magalhes coloca seu objeto. Sua escrita situa-se entre oposies, na tentativa de concili-las. Entre uma concepo da religio como erro da razo e outra como revelao (entre Locke e Lafitau), ou entre uma lngua embrionria e outra perfeita, Magalhes procura encontrar seu lugar. Com isso, no estou querendo menosprezar os traos evolucionistas de sua obra. O que estou procurando apontar o fato de que esse evolucionismo vem temperado por uma viso liberal-crist que torna seu texto rico de ambigidades. Essas ambigidades podem ser observadas, principalmente, no modo como ele entende o papel social da etnografia. O que mais fica evidente ao leitor de seu texto o carter pragmtico da obra, explicitado j na primeira frase do prefcio: Eu no escrevi este livro, amigo leitor, por ambio de glria literria, e sim com a de ser til, concorrendo com uma pedra para o edifcio de grandeza de nossa ptria125. tendo em vista sua utilidade, e no seu valor cientfico, que ele roga ao leitor que julgue seu livro. evidente o artifcio retrico a presente, com sua falsa modstia. Ainda assim, esta vinculao direta entre a sua investigao etnogrfica e a ao social apresenta-se como o elemento central para compreendermos sua escrita. O grande objetivo pragmtico de seu livro era oferecer argumentos cientficos que validassem o projeto de incluso dos indgenas, inserindo-os como uma possvel sada para a crise de mo-de-obra que se instalava no imprio. Em diferentes passagens, como a j citada acima, Couto de Magalhes ressalta as alternativas que se colocam ao homem civilizado diante dos selvagens: O constante testemunho da histria demonstra que por toda parte, e em todos os tempos em que uma raa brbara se ps em contato com uma raa civilizada, esta se viu forada ou a extermin-la, ou a ensinar-lhe sua lngua126. Entre estas alternativas, ele no nutre dvidas: papel do homem civilizado trazer os selvagens aos cmodos da sociabilidade. Portanto, Couto de Magalhes herda e d continuidade aos plos do debate etnogrfico do IHGB, organizado entre os defensores da catequese e os partidrios da excluso dos indgenas127. As justificativas para essa posio so duas: uma utilitria e outra moral. No que diz respeito aos ganhos prticos,
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Idem, Ibidem, p. VII. Idem, Ibidem, p. VII. 127 Vale notar, contudo, que Couto de Magalhes no atribui a Varnhagen a posio de opositor catequese. Dentro de sua atitude conciliatria, ele procura desenhar a posio dos letrados do IHGB como homognea. Se certo que um membro do Instituto sustenta a barbara opinio, de que a raa selvagem do Brasil deve ser exterminada ferro e fogo, opinio que nunca vi manifestada em nenhum dos escriptos daquelle eminente brasileiro, no menos certo que tal opinio singular; e que todos os esforos da associao ho sido dirigidos at o presente no sentido de estudal-a; esse o primeiro passo para assimil-la nossa sociedade. Idem, Ibidem, p. 183-184.

116 ele destaca a conquista de duas teras partes do nosso territrio, a aquisio de mais de um milho de braos aclimatados, o controle de nossas comunicaes interiores e, por fim, a preveno de grande efuso de sangue humano, e talvez despesas colossaes128. Ele se d o trabalho, inclusive, de calcular os provveis custos com que o Estado deveria arcar caso optasse por uma poltica de extermnio. Quanto justificativa moral, Couto de Magalhes associa o papel civilizador com a misso catequtica: Promover isto: seria tambm promover a realizao daquele sublime mandato que Cristo confiou a todo povo cristo diante de um povo brbaro; e cita, em seguida, as palavras do Evangelho: Ide aqueles que jazem sentados nas sombras e trevas da morte, e dirigi seus passos pela estrada da paz129. O papel histrico que confiado ao homem branco civilizado, portanto, filia-se a um papel teolgico, o da converso. Do mesmo modo que os demais letrados do IHGB, Couto de Magalhes associa o ato de civilizar com a misso catequtica. Mas como realiz-la? Novamente, aqui, a referncia bblica faz-se presente: Quando Deus quis propagar o cristianismo no se satisfez que os apstolos o pregassem no dialeto siro-caldico que falavam: fez baixar sobre eles o Esprito-Santo, afim de que pudessem falar todas as lnguas130. Essa apropriao que Magalhes faz das Escrituras dirige-se ao mago de sua proposta catequtica. Seu programa para a civilizao dos ndios baseava-se em trs pilares: a) as colnias militares espalhadas pelo territrio nacional, b) os intrpretes que promoveriam a comunicao entre selvagens e civilizados, e c) os missionrios, que promoveriam a converso dos indgenas (entendida no sentido mais amplo, de incluso civilizao crist, e no apenas crena na palavra divina). Segundo ele, o Brasil j teria o primeiro e o terceiro elementos, faltando apenas organizar as condies para a formao do segundo. Era nos intrpretes que ele depositava toda sua esperana catequtica. Fica evidente, ento, o quanto Couto de Magalhes compartilhava da tradio etnogrfica do IGHB, adotando como premissa bsica a converso lingstica, da escrita e pela escrita. E assim como os demais letrados do IHGB, ele encontrava no exemplo jesuta um modelo a ser seguido de perto. Ao destacar a incrvel eficcia dos missionrios jesutas, que em menos de cinquenta anos, tinham amansado quase todos os selvagens da costa do Brasil, ele aponta que seu segredo nico foi assentar a sua catequese na base do intrprete, base esquecida pelos catequistas modernos, que por isso to pouco ho conseguido131. J vimos como ele reverenciava o padre Montya por ter, sozinho, catequizado mais de cem mil
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Idem, Ibidem, p. XIII. Idem, Ibidem, p. XLII. 130 Idem, Ibidem, p. 119. 131 Idem, Ibidem, p. XXXVIII.

117 ndios. Couto de Magalhes enfatizava, assim, que o nico modo de converter o selvagem seria o aprendizado de sua lngua para, atravs dela, transmitir os conceitos e valores da civilizao crist. dentro desta perspectiva que a primeira parte de seu livro produzido, oferecendo uma gramtica bastante instrumental para que pudesse ser usada por qualquer um que entrasse em contato com os selvagens. Como j foi ressaltado, uma diferena essencial entre o quadro evolucionista e a antropologia bblica diz respeito forma de ao social a que esto vinculadas. Faz parte da linguagem evolucionista, seja em seu aspecto organicista ou biolgico, a idia de reforma da sociedade. Conceber a sociedade como um processo evolutivo, anlogo aos organismos vivos, ou como composta por indivduos cujas caractersticas biolgicas a determinam, implica em legitimar certos agentes sociais, os cientistas, socilogos e antroplogos, a agirem como mdicos do social132. A analogia entre a sociedade e a natureza tinha por conseqncia a naturalizao da poltica. Essa bio-poltica, de que nos fala Foucault, seria a expresso maior de um regime antropolgico que tomava a vida, em seu aspecto autogestor, como paradigma de inteligibilidade do social. Caberia a esses reformadores da sociedade a manuteno de seu equilbrio orgnico. Junto a essa viso organicista, a naturalizao do tempo impunha ao social certas limitaes. Os primitivos, tanto internos quanto externos, no estariam mais sujeitos a uma ao filantrpica de cunho cristo. O distanciamento temporal que marcava sua condio implicava uma distncia de ordem natural, e no mais arbitrria. O arbitrrio expulso desse regime discursivo. No se poderia, com um simples voluntarismo, fazer os selvagens saltarem da idade da pedra revoluo industrial. Da a idia que se torna lugar comum no pensamento evolucionista, de que era tarefa da cincia arquivar, o mais rpido possvel, todos os traos existentes dessas sociedades antes que elas fossem extintas do globo. A constituio de um grande arquivo da humanidade vinha acompanhada do pressuposto do desaparecimento inevitvel de parte dessa mesma humanidade. Em contraste com isso, a perspectiva da converso caracteriza-se por um carter eminentemente inclusivo e incorporativo, fundamentado num tempo da salvao. Os outros, aqui, eram vistos como candidatos salvao. O que caracteriza a escrita etnogrfica de Couto de Magalhes, como j dissemos, a sua ambigidade, seu esforo em situar o
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BLANCKAERT, Claude. La Nature de la societ. Op. Cit. Segundo o autor, era inteno dos organicistas do sculo XIX por um fim Revoluo Francesa. Isso pode ser tambm evidenciado por historiadores como Guizot e Thierry, que procuravam transformar a Revoluo em passado. Cf. HARTOG, Franois. O sculo XIX e a Histria. O caso Fustel de Coulanges. Op. Cit. A idia de reforma vinculada ao evolucionismo foi destacada tambm por STOCKING, George. Victorian Anthropology, Op. Cit.

118 selvagem entre dois tempos. O mesmo vale para a posio que ele assume quanto incorporao do selvagem. Fiel perspectiva evolucionista, ele afirma que o selvagem ainda se encontra na idade da pedra e suas necessidades coincidem com esse estgio de evoluo. Devido inflexvel lei da seleo natural, o selvagem estaria mesmo condenado extino, cabendo ao estudioso a coleo das curiosas pginas de uma literatura que daqui a alguns anos ter desaparecido133. Contudo, Magalhes d um tom bastante peculiar a essa condio. Enquanto que no evolucionismo o distanciamento temporal uma distino de ordem natural, e no arbitrria, Couto de Magalhes, em diferentes passagens, sugere que esse distanciamento deveria ser entendido como um problema de educao, e portanto social: Aqui no Brasil as raas mestias no apresentam inferioridade alguma intelectual; talvez a proposio contrria seja a verdadeira, se levarmos em conta que os mestios so pobres, no recebem educao, e encontram nos prejuzos sociais uma barreira forte contra a qual tem de lidar antes de fazer-se a si uma posio134. Ou, ainda:

Mas, dizem, o indio preguioso, estpido, bbado, traioeiro e mau. Coitados! eles no tm historiadores; os que lhes escrevem a histria ou so aqueles que, a pretexto de religio e civilizao, querem viver custa de seu suor, reduzir suas mulheres e filhas a concubinas; ou so os que os encontram degradados por um sistema de catequese, que, com mui raras excees, inspirada pelos mveis de ganncia ou da libertinagem hipcrita, e que d em resultado uma espcie de escravido que, fosse qual fosse a raa, havia forosamente de produzir a preguia, a ignorncia, a embriaguez, a devassido e mais vicios que infelizente acompanham o homem quando se degrada135.

A exemplo do que j afirmara Gonalves de Magalhes e Gonalves Dias, o autor de O selvagem acaba por culpar os maus tratos e a m previdncia dos conquistadores pelo carter estacionrio das populaes indgenas. Diante desta situao de imprudncia legada pelo perodo colonial, Couto de Magalhes, fazendo eco aos apelos dos demais letrados do IHGB, reclama uma atitude mais crist e liberal frente ao que restou dos selvagens brasileiros: Em nossa situao de raa conquistadora, ns que tomamos o solo a esses infelizes, e que os vamos dia a dia apertando mais para os sertes, temos o dever, como cristos, de arranc-los da barbrie sanguinolenta em que vivem, para traz-los comunho do trabalho e da
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MAGALHES, J. V. Couto de. Op. Cit., p. 146. Idem, Ibidem, pp. 102-102. 135 Idem, Ibidem, p. 189.

119 sociedade em que vivemos136. E, a despeito das possveis limitaes que a condio de primitivo acarretaria, ele no deixa de nutrir a expectativa de incorporao das populaes indgenas civilizao. Fiel, agora, aos preceitos catequticos da converso lingstica do IHGB, ele afirma: Desde que o selvagem possui, com a inteligncia da lngua, a possibilidade de compreender o que civilizao, ele a absorve to necessariamente como uma esponja absorve o lquido que se lhe pe em contato137. Ou, como gostava de afirmar: Domesticar os selvagens ou fazer com que eles nos entendam, o que a mesma coisa.

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Idem, Ibidem, p. 187. Idem, Ibidem, p. XXXII.

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Captulo 3 Dos livros ao laboratrio: modos de operao etnogrfica no Museu Nacional

O verdadeiro esprito positivo consiste em ver para crer, em estudar o que , a fim de concluir disso o que ser, segundo a ordem geral da invariabilidade das leis naturais Auguste Comte. Discurso sobre o esprito positivo.

1876. Desde a publicao do primeiro nmero da Revista do IHGB, quase quarenta anos se passaram. Durante esse tempo, das primeiras interrogaes propostas por Janurio da Cunha Barbosa s ltimas tentativas de Varnhagen em provar suas teses, pode-se perceber a formao, a consolidao, mas tambm a dissoluo de um debate que ocupou boa parte dos letrados e das pginas da Revista. Deslocando-se dentro de uma mesma ordem de questes, de procedimentos e de objetivos, esses autores constituram e se posicionaram de acordo com algumas oposies, das quais as mais importantes foram, sem dvida,

assimilao/extermnio e decadncia/estado de natureza. 1876, ano de publicao do primeiro nmero dos Archivos do Museu Nacional, peridico que vinha representar uma nova fase da instituio, dirigida desde 1875 por Ladislau Netto. Mais do que isso, os trabalhos que viriam a ser desenvolvidos no Museu marcariam um novo captulo na histria da antropologia no Brasil. Adoo de teorias evolucionistas, utilizao de tcnicas craniomtricas, coleo tipolgica de objetos indgenas, todas essas caractersticas so marcas reconhecidas de uma ruptura com a tradio da antropologia bblica1. Mas essa ruptura, que se inscreve numa j consolidada diviso da historiografia da antropologia em termos de escolas, no deve congelar a anlise desses textos, ainda que auxilie para sua inteligibilidade. Interrogar o modo como se deu essa mudana, atravs de uma reconstruo de suas operaes etnogrficas, talvez sirva como um caminho que evite as armadilhas de classificaes apriorsticas a partir de um quadro geral de evoluo camuflada. Mais do que indagar se o evolucionismo ou qualquer outra escola se fez presente e em que medida ele representou uma distoro em relao a seu modelo puro, o objetivo deste captulo acompanhar como os domnios do etnogrfico, do etnolgico e do antropolgico foram (re)construdos pelos autores que atuaram no Museu Nacional; o modo como eles se posicionaram em relao quilo que, no IHGB, designava essas saberes; mas tambm a relao que mantinham com os debates

SOTOCKING, George. Race, Culture, Evolution. Essays in the history of anthropology. Op. Cit.

121 internacionais, no no sentido de cpia ou de apropriao (o que implicaria, logicamente, a suposio de um estado original qualquer), mas numa relao que implicava sempre a construo de imagens especulares do que seria esse espao cientfico e antropolgico internacional2. Nessa perspectiva temporal ampliada, se certos detalhes podem ficar invisveis, outras caractersticas no entanto podem ser melhor visualizadas, contribuindo para a compreenso dos caminhos percorridos na formao de um discurso (seria melhor falar em discursos) antropolgico no Brasil oitocentista3. Com isso, talvez aquela ruptura possa ser visualizada sob outro ngulo, no para neg-la, certamente, mas para redimensionar o prprio processo do trabalho intelectual, suas retomadas e rearranjos, suas inovaes e esquecimentos, enfim, tudo aquilo que envolve a experincia de inserir-se numa tradio e de atuar nela4.

3.1 Uma nova presena do invisvel.

No primeiro captulo da tese apresentei algumas recorrncias daquilo que denominei o topos da obscura histria indgena. Atravs dessa frmula, os autores procuravam circunscrever o domnio que caberia investigao etnogrfica. A aparente falta de traos visveis de uma existncia histrica, de um passado que tornasse inteligvel aquelas populaes, era o que motivava todo o trabalho de reduo gramatical, de descrio de costumes, a busca por monumentos perdidos. A presena desse invisvel que era o passado indgena representou para aqueles letrados uma fonte de inquietao ou, ao menos, um motivo sobre o qual fundar um saber. etnografia, entendida como um modo especfico de escrita da histria, caberia trazer visibilidade novamente aquilo que os indgenas, por si ss, no poderiam resgatar atravs de uma memria. Graas a um exerccio comparativo-genealgico, as palavras tupi-guaranis vinham se colocar ao lado de linguas mortas como o fencio, o egpcio, o grego. Operao que, pelo jogo contnuo de semelhanas, tinha por efeito inserir uma profundidade temporal no que, at ento, era apenas voz. Nessa tarefa, toda uma luta de representaes foi deflagrada, j que dependia do valor desse passado a legitimao dos juzos sobre a assimilao ou a excluso dessas populaes de um projeto de histria nacional. Com o ocaso dessa tradio, contudo, esse passado tornado presente novamente se fez obscuro.

Para essa questo, cf. WERNER, Michael; Zimmermann, Bnedicte (orgs). De la comparaison lhistoire croise. Paris: Seuil, 2004. 3 HEILBRON, J. A regime of disciplines. Toward a historical sociology of discilinary knowledge, in CAMIC, C. & JOAS, H. (orgs). The dialogical turn. Roles for sociology in the post disciplinary age. Lanham: Rowman and Littlefield, 2003, pp. 23-42. 4 ABGABEN, Giorgio. Enfance et histoire. Paris: Payot, 2002.

122 O que chama a ateno, quando nos voltamos para os textos produzidos pelos integrantes do Museu Nacional, a retomada do topos da obscura histria indgena. Ladislau Netto, por exemplo, em artigo de 1877, vinha afirmar:

Pretender prescrutar luz, ainda por ora vacilante da antropologia e da arqueologia qual a origem to remota quanto obscura dos povos americanos, o mesmo fora que se tentssemos alumiar, com a lmpada mortia do mineiro, as anfractuosidades das fendas profundas de vastssima caverna5.

Ou ainda, como se expressaria Carlos Wiener, no primeiro nmero dos Archivos:

A vegetao do Brazil d ao solo um aspecto virgem desde que o homem o abandona. Esta vegetao porm escondendo os vestgios de seu antigo habitante no consegue apaga-los; e pois quantos maravilhosos descobrimentos no poder-se-ho ainda fazer nesta regio! Nos sambaquis, como talvez na base de muitas rvores seculares das florestas brasileiras, no fundo de alguma gruta ou nos desmonoramentos de alguma montanha encontrar-se-o, sem dvida, muitas pginas instrutivas da histria do gnero humano.6

E mesmo Joo Baptista de Lacerda, responsvel pela seo de anatomia e fisiologia do Museu, no deixava de apontar, em artigo sobre a conformao dos dentes, para esse domnio onde o silncio e a invisibilidade ainda se colocavam como um espao negativo a ser ocupado pela etnologia:
Aqui na imensa vastido deste mundo novo esto encerrados segredos que a cincia precisa desvendar, tesouros ocultos que a mo do homem no pde ainda tocar. Entretanto, as questes referentes etnologia e antiguidade do homem na Amrica no passaram sequer pelas primeiras provas; o que quer dizer que lhes tem faltado o apoio de grande nmero de fatos, nico pedestal slido sobre o qual se pde levantar uma doutrina cientifica
7

NETTO, Ladislau. Tembets (adornos labiaes de pedra) da coleco archeologica do Museu Nacional, AMN, Vol. 2, 1877, p. 72. 6 WIENER, Carlos. Sobre os sambaquis do sul do Brazil, Archivos do Museu Nacional (doravente AMN), Rio de Janeiro, Vol. 1, 1976, p. 20. 7 LACERDA, Joo Baptista. Nota sobre a conformao dos dentes, AMN, Rio de Janeiro, Vol. 1, p. 78.

123 Ora, diante dessas colocaes que se reproduzem nos primeiros nmeros do Archivos do Museu Nacional, seria, no mnimo, legitimo indagar: e todo o debate que ocupava, h quarenta anos, os letrados do IHGB? No seriam suas inmeras investigaes e teses direcionadas para o esclarecimento dessa questo? Porque, ento, essa histria se mostrava novamente to obscura? Seria, como afirma Lacerda na citao acima, pela ateno e pela descoberta de fatos slidos? Mas essa mesma disposio, em enunciao quase idntica, j no havia sido pronunciada por Cunha Mattos, quando este afirmava que a etnografia, assim como a histria, deveria ser erigida sobre fatos comprovados e irrefutveis? Todo o esforo dos letrados do IHGB no foi justamente o de estabelecer tais fatos e, assim, fazer visvel a invisibilidade da histria indgena? Se a histria sempre reescrita, como salientava Ricoeur, no pela simples descoberta ou acmulo de fatos8. Assim como a histria no um saber puramente acumulativo, muito menos o a etnografia. Esta tambm sempre uma re-escritura9. O que implica dizer que no nos atendo ao objeto, e muito menos ao sujeito, que essa nova inquietao acerca da obscuridade da histria indgena pode ser mapeada. Pois esse novo espanto no se deve nem a uma reivindicada complexidade do objeto, nem a uma atribuda incompetncia do sujeito. Longe se serem constantes sobre as quais poderamos nos ater como um fio de Ariadne em meio ao labirinto da histria, a enunciao e seu sujeito so construes histricas e, acima de tudo, relacionais. Desse modo, graas a um novo rearranjo da ordem dos saberes e das prticas intelectuais que, de repente, um novo objeto no apenas se mostra obscuro como tambm estendido retrospectivamente s enunciaes do passado10. Dessa forma, pode-se falar ento tanto dos erros do passado como da tarefa herclea que cabe ao presente. A uma nova invisibilidade, a necessidade de uma nova etnografia:

Ao Museu Nacional, to eficazmente iniciado nos trabalhos transcendentes da experimentao, como nas mais elevadas cogitaes da filosofia evolucionista, de

8 9

RICOEUR, Paul. Lhistoire, la mmoire, loubli. Op. Cit. Para uma discusso do texto etnogrfico enquanto processo de escritura, ver CLIFFORD, James. A experincia etnogrfica. Antropologia e literatura no sculo XX. Op. Cit. 10 Um estudo que continua notvel a esse respeito FOUCAULT, Michel. Naissance de la clinique. Paris: PUF, 1963. Para uma discusso geral sobre as identidades disciplinares, cf. BOUTIER, J., REVEL, J., PASSERON, J-C. (orgs). Quest-ce quune discipline? Paris: ditions de lcole des Hautes tudes en Sciences Sociales, 2006.

124
crer que venha a caber, em no muito remoto futuro, a gloriosa misso de quebrar o sigilo que prende e oculta o fecho desse assunto.11

O que vem caracterizar essa nova invisibilidade, como deixa a entender a passagem de Ladislau Netto, a nova relao que vai regular o olhar do cientista na constituio de seu objeto. Melhor dizendo, no um sujeito transcendental nem um objeto na sua pura empiria que mudam, mas a linguagem (suas regras e sua prtica) na qual tanto o objeto como o sujeito de saber tomam forma. No caso, Ladislau Netto indica dois elementos dessa configurao: o trabalho de experimentao e a perspectiva evolucionista. Eles compem um campo de linguagem prprio, diverso daquele acionado pelos letrados do IHGB. A experimentao, enquanto prtica privilegiada de construo de positividade acerca do indgena, juntamente com o evolucionismo, com sua conseqente secularizao e naturalizao do tempo histrico, vm marcar uma ruptura em relao velha etnografia e seu objeto, o selvagem. No h, assim, uma identidade comum entre o selvagem de Varnhagen e Gonalves Dias e o primitivo de Ladislau Netto e Joo Baptista Lacerda. Do selvagem ao primitivo, da biblioteca ao laboratrio, uma nova prtica intelectual configurada. O que no implica dizer, contudo, que no existam traos de continuidade entre esses dois momentos. Ao contrrio, esses traos existem e so essenciais para compreender o trabalho dos cientistas do Museu Nacional e os debates internos ali ocorridos. A continuidade entre esses dois momentos e lugares, me parece, est menos nos plos da relao de saber do que numa determinada herana que a tradio do IHGB legou a esses cientistas e da qual se ficeram herdeiros, herticos ou ortodoxos. Seguindo, em parte, as sugestes de Luiz de Castro Faria, John Monteiro e Jens Andermann, pode-se adiantar que uma das caractersticas mais marcantes do trabalho antropolgico do Museu Nacional, alm da ruptura inscrita na anlise naturalista da vida nua e da preocupao com uma razo da biopoltica, como afirma Andermann, est na re-atualizao de certas oposies12. Mas essas oposies, e aqui me distancio da anlise dos ltimos dois autores, representada menos pelos pares tupi/tapuia enquanto uma dicotomia estruturada pela relao passado/presente, do que por aquelas outras que cercavam o trabalho etnogrfico do IHGB, tal como o expus anteriormente. Ou seja, continuam operando no Museu, atravs de seus debates internos, as oposies
11

NETTO, Ladislau. Tembets (adornos labiaes de pedra) da coleco archeologica do Museu Nacional, AMN, Vol. 2, 1877, p. 196-197. 12 FARIA, Luis de Castro. Antropologia. Espetculo e Excelncia. Rio de Janeiro: UFRJ, 1993; MONTEIRO, John M. As raas indgenas no pensamento brasileiro do Impro, in: Tupis, Tapuias e Historiadores. Estudos de histria indgena e do indigenismo. Campinas: Unicamp, 2001; ANDERMANN, Jens. Espetculos da diferena: a Exposio Antropolgica Brasileira de 1882, Topoi, n. 9, 2006.

125 assimilao/excluso e estado decadente/estado de natureza, ainda que reformuladas pela linguagem naturalista. Esses pares no dizem tanto respeito a um passado nobre tupi e um presente brbaro tapuia, representando aquele passado um mito sacrificial da civilizao, mas antes uma disposio que se aplica ao presente mesmo e se estende ao passado. O que faz com que o saber etnogrfico continue operando de modo anlogo ao modo como operava no IHGB, ou seja: a etnografia se colocaria ainda como um saber voltado prioriariamente para os indgenasm - silenciando sobre a populao negra -, e assumiria tambm como tarefa principal escrever a histria dessas populaes. Uma nova luta de representaes sobre o passado indgena e sua condio temporal tomava forma, pois era esse passado que continuaria a qualificar o seu presente. Outras histrias, outra temporalidade, mas a permanncia de oposies estruturantes. O que nos faz lembrar que no existe nem diacronia absoluta e nem sincronia absoluta, mas que cada evento histrico representa um corte diferencial entre diacronia e sincronia, instaurando entre elas uma relao significante13. Entre rupturas e continuidades, uma nova definio dos trabalhos etnogrfico, etnolgico e antropolgico constituda.

3.2 Uma memria disciplinar

Esse movimento de reconfigurao do espao de saber etnogrfico, enquanto um trabalho de reescrita, impulsionou tambm um trabalho de memria. Para construir um novo lugar de fala sobre o indgena, delimitando as novas operaes da escrita etnogrfica, esses autores colocavam-se como historigrafos de sua prpria disciplina, constituindo, assim, uma memria disciplinar14. Este exerccio, ainda que no completamente ausente das pginas da Revista do IHGB, aparece como uma marca caracterstica desse momento de redefinio do campo. E no apenas para a produo etnogrfica brasileira. Podemos comparar esse trabalho de construo de uma memria disciplinar, ocorrido no Museu Nacional, com o que desenvolveu, por exemplo, Paul Broca em seu esforo de consolidar o campo de pesquisa da antropologia francesa, centrado na Societ dAnthropologie de Paris, estabelecendo rupturas e linhagens com as
13

AGAMBEN, Giorgio. Rflexions sur lhistoire et sur le jeu, in: Enfance et histoire. Op. Cit., p. 139. Esse mesmo tipo de reflexo desenvolvida por Reinhart Koselleck, ver: Estrutura e histria, in: Futuro passado. Op. Cit. 14 GUIMARES, Manoel L. Salgado. A cultura histrica oitocentista: a constituio de uma memria disciplinar, in: PESAVENTO, Sandra Jatahy (org). Histria Cultural: experincias de pesquisa. Porto Alegre: UFRGS Editora, 2003.

126 produes anteriores. Essa nova cincia, a antropologia, como destaca Blanckaert, se dotait dune mmoire en slectionnant des ouvres dornavant riches de sens15. Nas comemoraes dos dez primeiros anos de fundao da Societ dAnthropologie, Broca apresentou um texto no qual propunha uma viso retrospectiva sobre os esforos que ocasionaram nesses ltimos dez anos, na cincia antropolgica, tantas descobertas e tantos progressos16. Ele reconhece, contudo, que o avano proporcionado pela Sociedade tambm se devia a precursores. Nomes como Buffon, Camper, Blumenbach, Prichard, William Edwards, Retzius so evocados dentro de uma herana comum. Instituies tambm so lembradas, notadamente a Societ des Observateurs de lHomme, com sua vida efmera, e a Societ dEthnologie de Paris, fundada por Edwards. A simples nomeao dessas referncias, no entanto, nos diria pouco sobre o modo de funcionamento desse trabalho de memria. Mais importante, o modo como Broca vai apontando negatividades e positividades em cada tentativa frustrada de construo do saber antropolgico. A Sociedade dos Observadores do Homem, apesar de toda a intuio de Jauffret de fundar uma histria natural do homem, acabou se prendendo a questes filosficas e filantrpicas. No intervalo de tempo entre essa primeira tentativa e a fundao da Sociedade de Etnologia, o que viriam a ser as cincias auxiliares da antropologia foram desenvolvidas: lingstica, geologia, paleontologia, arqueologia. Mas nenhuma viso de conjunto ainda era possvel. Broca descreve o trabalho da Sociedade fundada por Edwards como direcionada para o estudo da histria particular de certas raas, de seus caracteres intelectuais e morais, de seus costumes, suas lnguas e aptides, seu papel na civilizao17. E define esse campo de preocupaes como prprios da etnologia. A partir daqui, Broca empreende dois movimentos capitais para a construo da identidade do que seria sua disciplina. Primeiro, aps agregar aquela srie de cincias auxiliares num campo de investigao centrado nos caracteres intelectuais e morais sob a perspectiva histrica, ele subordina esse campo que denomina de etnologia como uma rea englobada pela antropologia. Segundo movimento, aponta para uma quase inerente relao que o campo etnolgico mantm com a atitude filantrpica. Em suas palavras, a etnologia : lune des branches les plus importantes de lanthropologie, mais qui entranent aisment les esprits hors des voies scientifiques et se prtent aux spculations
BLANCKAERT, Claude. LAnthropologie en France. Le mot et lhistoire (XVI-XIX sicle), Bulletins et Mmoires de la Societ de lAnthropologie. Hommes, ides, moments. Sur la direction de C. Blanckaert, A. Ducros, J.J. Hublin, Tomo I, n. , Paris, 1989. 16 BROCA, Paul. Histoire des progrs des tudes Anthropologiques depuis la fondation de la Societ. Paris: Typographie A. Hennuyer, 1870. 17 Idem, p. CX.
15

127 les plus hasardes, lorsquelles ne sont pas mantenues sur le terrain de la realit par la main puissante de lobservation18. Conclui-se, portanto, que a impossibilidade dos

Idelogos e das primeiras sociedades de etnologia (pois so includos no juzo de Broca os trabalhos da Sociedade Etnolgica de Londres, de matriz essencialmente prichardiana) conseguirem fundar o saber antropolgico, se devia ausncia de um critrio de positividade capaz de impedir que as especulaes filosficas e as demandas filantrpicas contagiassem o conhecimento do homem. Boa parte da atuao de Broca, inclusive, destinava-se a construir uma clara separao entre o conhecimento antropolgico e as demandas sociais e polticas, fossem elas ligadas governamentalidade, para usar o termo proposto por Foucault, seja para as legitimaes colonialistas19. Mas necessrio ressaltar que essa separao promovida por Broca, como mostra Blanckaert, estava mais vinculada a uma poltica de afirmao da disciplina do que propriamente a um carter neutro do saber20. Afinal, o prprio Broca no deixaria de tocar em questes da ordem da governamentalidade a partir de sua posio de cientista21. Os efeitos dessa retrica da cientificidade, que tambm estar presente nos trabalhos do Museu Nacional, sero abordados posteriormente. O que interessa destacar no momento o ponto de inflexo que coordena a viso retrospectiva de Broca em sua construo de uma memria disciplinar. O que marca uma ruptura entre essa etnologia pr-cientfica e os vertiginosos progressos alcanados pela Sociedade de Antropologia a adoo de um mtodo que garantisse uma distncia quase nula entre o ver e o dizer. Esse primado da observao, segundo Broca, s poderia ser conquistado pela anatomia: Or quelle est la partie la plus positive de lanthropologie, si ce nest lhistoire naturelle de lhomme, cest--dire lanatomie et la biologie de lhomme?22. Ao construir a antropologia nos moldes desse saber clnico23, Broca procurava oferecer ao conhecimento do homem esse grand mythe dun pur Regard qui serait pur Langage: oeil qui parlerait

18 19

Idem, Ibidem. FOUCAULT, Michel. A governamentalidade, in: Microfsica do Poder. Rio de Janeiro: Graal, 1979. Ver tambm do mesmo autor; Naissance de la biopolitique. Paris: Seuil, 2004. 20 BLANCKAERT, Claude. La crise de lanthropomtrie: des arts anthropotechniques aux drives militantes, in: Les politiques de lAnthropologie. Paris: LHarmatann, 2001. 21 BROCA, Paul. Sur la prtendue dgnrescence de la population franaise. Paris: Imprimerie de E. Martinet, 1867. 22 BROCA, Paul. Histoire des progrs des tudes Anthropologiques depuis la fondation de la Societ, Op. Cit., p. CXVIII. 23 A grande maioria dos scios da Sociedade tinham formao em medicina, cf. BLANCKAERT, Claude. Lanthropologie personifie. Paul Broca et la biologie du genre humain, in: Memires dAnthropologie. Prface de Claude Blanckaert, Paris: Jean Michel Place, 1989.

128 como o definiu Foucault24. Livre das especulaes filosficas e das demandas filantrpicas, esse saber antropolgico, como puro olhar, garante no apenas sua positividade cientfica, como tambm uma perspectiva privilegiada para o olhar retrospectivo sobre seu prprio passado. Como foi dito acima, na constituio de uma nova relao de saber que um novo objeto formado no presente e estendido ao passado, construindo uma memria disciplinar. Um processo anlogo ocorreu no Museu Nacional. Logo no primeiro nmero dos Archivos, Joo Baptista de Lacerda e Rodrigues Peixoto tomaram a iniciativa de reclamar uma tradio. Eles iniciam seu artigo Contribuies para o estudo anthropologico das raas do Brazil com dois pargrafos que chamam a ateno pela semelhana que possuem com a tradio construda por Broca:

Haver, quando muito, um sculo, que a antropologia, a mais nova de todas as cincias, comeou a oferecer um campo imenso s investigaes dos sbios; j ento Blumenbah tinha acumulado um grane material, tirado craniologia, para estabelecer a distino das raas humanas, e Buffon, lanando as bases da histria natural do homem, havia criado a etnographia ou descrio dos povos. Seguindo o caminho traado por esses dois representantes da cincia do sculo passado, Retzius, Morton, Prichard, Wagner, concorreram, cada um por sua parte, para aumentar os domnios da antropologia, cujos horizontes foram se dilatando medida que cincias, suas auxiliares, iam fazendo novos progressos. Todo esse imenso material acumulado custa de laboriosas investigaes, durante quasi um sculo, veio servir de base para os modernssimos estudos de Broca, Pruner-Bay, Quatrefages, Wirchow, Topinard e outros, cujos trabalhos mais prticos, e cujas vistas mais largas tendem hoje a dar uma nova face cincia antropolgica25.

A mesma seqncia, que vai de Blumenbach e Buffon at Broca, passando pela formao das cincias auxiliares, apresentada. Isso indica, claramente, a opo desses autores por filiar-se a um ramo especfico do debate antropolgico, aquele representado por Broca e a Sociedade de Antropologia de Paris. Assim como para Broca, o que vem distinguir a positividade e as vistas mais largas do saber antropolgico so os estudos prticos, ou seja: um tipo de observao do objeto que no se perca em questes

24 25

FOUCAULT, Michel. Naissance de la clinique, Op. Cit, p. 115. LACERDA, Joo Baptista de; PEIXOTO, Rodrigues. Contribuies para o estudo anthropologico das raas indigenas do Brazil, AMN, 1876, Vol. I, 47.

129 especulativas. Lacerda e Peixoto, na seqncia de sua argumentao, lamentam que no Brasil tais estudos no tenham ainda encontrado fervorosos adeptos entre os homens cientificos, quando sabido que muitas questes importantes atinentes aos caracteres tnicos, lingsticos e arqueolgicos das raas indgenas do Brasil ainda no puderam ser elucidadas por falta de bons elementos26. Assim, os autores vm afirmar novamente a obscuridade do objeto que as pesquisas levadas pelo IHGB, jamais mencionadas diretamente, no teriam conseguido esclarecer. Os caracteres tnicos, lingsticos e arqueolgicos, pedras angulares da etnografia do IHGB, no se baseariam em bons elementos. Para Lacerda e Peixoto, esses bons elementos s poderiam ser fornecidos pelos caracteres fsicos, tirados anatomia, caracteres que ocupam um lugar proeminente na antropologia27. Logo, nessa observao clnica, realizada num espao especfico, o laboratrio, que a antropologia se realiza como um saber positivo do homem, cujas conseqncias para a operao etnogrfica sero fundamentais. Nesse processo, o etnogrfico e o etnolgico so englobados e subordinados como ramos de um saber que vem reclamar o monoplio de enunciao legtima acerca dos indgenas. Contudo, necessrio ressaltar que essa memria disciplinar, inscrita num projeto de definio da cincia antropolgica, no tinha um carter homogneo no Museu Nacional. No possvel afirmar que sejam representativas do modelo de antropologia da instituio, muito menos do Brasil no final do sculo XIX ainda que tenham adquirido uma fora preponderante. No que diz respeito esfera do Museu, houve tenses internas, disputas ainda que no explicitadas acerca da definio do trabalho antropolgico. E nestas tenses que podemos visualizar aquele processo de mudanas e continuidades, diacronia e sincronia que parece caracterizar a atuao intelectual dos integrantes do Museu Nacional. J foram ressaltadas pela historiografia as diferenas que caracterizam o trabalho de Ladislau Netto e Joo Baptista de Lacerda28. Essa diferena, cujo teor abordarei a seguir, refletiu-se no modo como delinearam as positividades e as tradies do saber antropolgico. Se, para Lacerda, lingstica e arqueologia no passavam de cincias auxiliares formadas num perodo pr-cientfico da antropologia e cuja ineficincia deveria dar lugar observao anatmica, para Ladislau Netto a positividade da antropologia se
26 27

Idem, Ibidem. Idem, p. 48. 28 Cf. SCHWARCZ, Lilia Moritz. O Espetculo das raas. Cientistas, Instituies e questo racial no Brasil. 1870-1930. So Paulo: Cia. das Letras, 1993; e DOMINGUES, Heloisa M. Bertol, S, Magali Romero, GLICK, Thomas (orgs). A recepo do darwinismo no Brasil. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz, 2003.

130 sustentava em dois pilares de mesma estatura: a lingstica e a craniometria29. Somava-se a elas, ainda, a arqueologia, completando a trade que sustentava o saber antropolgico. Ladislau Netto no seria o nico a privilegiar a arqueologia e a lingstica em funo dos caracteres fsicos. Carlos Wiener, Frederico Hartt e Ferreira Penna, para mencionar apenas alguns, tambm concentraram seus esforos nesses domnios de pesquisa. O que interessa destacar no momento como essa distino leva Ladislau Netto a se inscrever numa tradio diferente daquela apresentada por Lacerda e Peixoto. Em primeiro lugar, Ladislau Netto no teceu em seus escritos uma histria da antropologia strito sensu. Sua maior preocupao, a este respeito, foi construir uma memria do Museu Nacional enquanto instituio e seu lugar nela30. Dentro dessa memria institucional, no entanto, possvel extrair algumas observaes a respeito do entendimento que ele tinha do carter e das funes do saber antropolgico. Ainda que sua histria do Museu tivesse a clara funo de conquistar do governo imperial a simpatia e verbas, um programa do que deve ser a cincia natural e o lugar da antropologia so claramente delineados. Em seu relato, um lugar de destaque dado a Buffon, que apareceu realmente como a incarnao da cincia no meio dia da Europa31. Depois vieram nomes como Cuvier, Jussieu, Lamarck, Lacepede. Contudo, esses nomes no representam nenhuma ruptura, mas so simplesmente a continuao do projeto buffoniano. O que representa, aos olhos de Netto, a seguinte constatao:

Quando estes ilustres naturalistas vieram no alvorecer do sculo atual descortinar em prelees fascinadoras, aos olhos e aos ouvidos de todas as classes da sociedade, essas leis maravilhosas em que toda a parte se nos reflete a omnipotncia divina, as abbadas dos anfiteatros do jardim das Plantas pareciam repercutir ainda o eco solene e harmonioso das frases eloqentes de Buffon32.

Essa escolha de Buffon como fundador das cincias naturais e, poderamos acrescentar, da antropologia, emblemtica no que diz respeito ao modo como Ladislau

29 30

NETTO, Ladislau. Revista da Exposio Antropolgica, p. IV. NETTO, Ladislau. Investigaes historicas e scientificas sobre o Museu Imperial e Nacional do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro, Instituto Philomatico, 1870. 31 Idem, p. 7. 32 Idem, Ibidem.

131 Netto delineia os mtodos e as funes das cincias e, em particular, do estudo das populaes indgenas33.

As cincias naturais com todas as suas teis aplicaes, na indstria e nas artes; a demonstrao eloqente das grandes verdades do Gnesis; a histria plstica da humanidade; os costumes e caracteres dos povos antigos e modernos; as fases diversas por que tem passado todos os povos da terra; em fim, a fauna, a flora e a idade geognstica de todas as zonas do globo, - tudo isso so conhecimentos que se vo colher nos museus de histria natural34.

O tipo de museu, como lugar de saber, que Ladislau Netto visa estabelecer, no deixa de apresentar um forte carter buffoniano. Com isso, quero destacar principalmente dois aspectos que atravessam, de forma tensa e ambgua, toda sua produo: sua inscrio como naturalista, atento descrio de uma histria natural na qual o homem se insere; e, ao mesmo tempo, a manuteno de uma ordem divina como substrato ordenador dessa histria. O objetivo do museu seria oferecer aos olhos do observador um extrato do mundo, atravs do qual pudesse, pela comparao, visualizar no apenas a diversidade da natureza e dos costumes, mas igualmente as fases de desenvolvimento da natureza e dos povos tal como inscrita numa ordem divina. No surpreende, assim, que ele parea mais um lamarckista cristo, poderamos dizer, que propriamente um darwinista, graas sua recusa de uma evoluo cega. Temos, assim, dentro do Museu Nacional, ao menos duas memrias sendo construdas. Uma que destaca a ruptura, reconstruindo uma histria com suas fases prcientficas e cientficas; e outra, baseada na continuidade de um projeto naturalista iluminista com um vis cristo. Essa diviso representa, igualmente, a atualizao de uma das grandes polarizaes que estruturaram a formao do discurso etnogrfico, entre monogenismo e poligenismo35. Mas essa atualizao, deve-se ressaltar, s ganha sentido quando entendida dentro de um processo histrico particular, no caso, da formao de um discurso etnogrfico no Brasil oitocentista. Como procurarei mostrar a seguir, essa atualizao se processou atravs de uma retomada das posies herdadas do IHGB, seja na recusa da
33

BLANCKAERT, Claude. Buffon and the Natural History of Man : Writing History and the "Foundational Myth" of Anthropology, History of the Human Sciences, vol. 6, n 1, 1993, p. 13-50. 34 NETTO, Ladislau. Investigaes historicas e scientificas sobre o Museu Imperial e Nacional do Rio de Janeiro. Op. Cit., p. 4. 35 STOCKING, Geroge. Race, Culture and Evolution. Op. Cit.; BLANCKAERT, Claude. Monognisme et polygnisme en France de Buffon Broca (1749-1880). Dissertation doctorale, Universit de Paris, 1981.

132 histria e da historicidade indgena pela antropologia fsica de Lacerda, atualizando Varnhagen; seja na recusa de Netto em compreender essas populaes como fora da histria, ligando-se tradio letrada do IHGB.

3.3 Antropologias do Museu Nacional

Assim como no IHGB havia uma diversidade de perspectivas sobre o trabalho etnogrfico e a histria indgena, necessrio reconhecer tambm no Museu Nacional uma heterogeneidade. Isso vale tanto para aqueles trabalhos produzidos especificamente por funcionrios do Museu, como Ladislau Netto, Carlos Hartt, Ferreira Penna e Baptista Lacerda, quanto para aqueles que se inseriram indiretamente nesse espao intelectual, como Joaquim Serra, Barbosa Rodrigues e Eunpio Deir. Diversidade que a escolha de uma abordagem puramente institucional no permitiria perceber36. O objetivo desta seo do captulo apontar para essa diversidade e indicar em que medida ela pode ser entendida como a configurao de um novo debate, estruturado a partir de alguns conceitos e questes centrais. Caso fossemos seguir a diviso historiogrfica por escolas, e situssemos os trabalhos do Museu Nacional no quadro ou da antropologia fsica francesa ou no do evolucionismo, poderamos concluir com alguma segurana: aquela oposio da velha etnografia do IHGB entre estado de natureza e decadncia no mais fazia sentido e desapareceu definitivamente. E poderamos atestar isso nas prprias palavras de Ladislau Netto:
Se, porm, do azo a estas cogitaes o costume do tembet ou do botoque que, na ausncia daquele, fora to geralmente adotado, - cogitaes mais ou menos tendentes hiptese de que muitas das naes americanas, na poca do descobrimento da Amrica, decresciam de um estado moral e intelectual relativamente adiantado que haviam chegado seus maiores, outras cogitaes me assaltam que, verdadeiros tropeos contra esse desenvolvimento de idias, obrigam-me a crer nunca houvessem tais povos se erguido a um nvel de cultura intelectual muito superior quele em que o surpreendeu a civilizao europia37.

36

A insipincia do espao intelectual brasileiro oitocentista e a conseqente fluidez que isso acarreta no que diz respeito aos agentes, me parece, tornam bastante limitada uma seleo puramente institucional, ainda que importante. 37 NETTO, Ladislau. Tembets (adornos labiaes de pedra) da coleco archeologica do Museu Nacional, AMN, Vol. 2, 1877, p. 128.

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Devido a uma ordem necessria e universal, configurada dentro de um tempo secularizado, naturalizado e linear, no caberia outra condio temporal aos indgenas seno a de primitivos. Contudo, no mesmo artigo, Ladislau Netto no deixa de construir seu argumento em sentido oposto. Na investigao sobre a origem do uso dos tembets, ele se v obrigado a entrar na cerrada discusso a respeito das origens das populaes indgenas, mais especificamente das possveis rotas migratrias das quais os habitantes da Amrica seriam frutos. A certa altura dessa reconstruo, quando trata da possvel existncia da jade no Vale do Rio Doce o que seria um claro indcio de migrao e do uso do tembet - ele afirma:

Existam ou no, porm, j ali os vemos, a esses fragmentos de mirakits, com o nome de tembets. E fato digno de reparo: ao passo que muitas tribos da mesma regio tomaram como denominao da rodela de madeira, que substitui entre elas o tembet, o appelido de guimua ou gnima, outras ainda ali conservam o primitivo nome tembet, apenas com uma tal ou qual reduo desta palavra palavra mais simples; fato este de que no so raros entre povos que decaem de um estado de cultura intelectual anteriormente mais desenvolvido entre seus antepassados38.

No desenvolvimento do argumento, inclusive, Netto recorre j ento tradicional associao com os povos Incas e Toltecas, encontrando neles o elo entre a fonte original de migrao as populaes tartaro-japonesas - e as tribos brasileiras que desceram o Amazonas. Ningum menos que Manco Capac se mostraria como prova dessa ligao histrica:

Manco Cacap [sic], cujos hbitos nos revelam a cada momento sua origem tartarojaponesa tinha furadas as orelhas e raspado o cabelo, de que s no alto da cabea conservava a trana caracterstica que ainda hoje usada pelos habitantes do extremo oriental da sia39. Manco Cacap, porm, descendente, filho ou neto talvez, do chefe da tribo migradora, o representante natural de uma raa ilustre, e a um tempo a expresso mais eminente dos enrgicos esforos de todo um povo; e este povo, a quem retemperou por largos e aflitssimos anos o amargor do exlio, que o mesmo dizer o relutar ininterrupto pela existncia, nada menos que o emigrado de Anahuac, o fautor dos cermios do

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Idem, p. 155. Grifos meus. Idem, p. 156.

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Maraj e o criador do culto rendido ao tembet nas umbrosas e opulantes ribas do Amazonas40.

No pretendo, com essas passagens, apontar para as contradies de Ladislau Netto, mas apenas indicar que a ambigidade que caracteriza seus textos pode ser encarada como o sinal de uma permanncia cuja caracterstica no se enquadraria na classificao por escolas e cuja fora talvez marque uma especificidade do discurso etnogrfico brasileiro otiocentista. Enquanto o quadro terico evolucionista de Netto o leva a afirmar a condio primitiva das tribos brasileiras, a reconstruo histrica que executa o faz encontrar um ancestral ilustre para os indgenas. A mesma oposio entre estado de natureza agora entendido como primitivo, propriamente dito e civilizao decadente, alternativas acerca da existncia ou ausncia de um passado histrico dos selvagens, volta a estruturar o discurso etnogrfico. Na Revista da Exposio Anthropologica Brazileira, publicada em 1882, essa oposio e a diversidade de perspectivas aparece de maneira sintomtica. Na apresentao da Revista, Ladislau Netto a insere de forma explcita: Seriam tais entidades a primeira forma plstica o blastoderna psicolgico da individualidade humana -, ou representariam pelo contrrio o embrutecimento atvico de ascendentes mais perfeitos?41. E por mais que Netto chegue a indicar a possibilidade da autoctonia das populaes da Amrica, por ele negada em outros momentos, e, ainda, desenhe um quadro de evoluo da humanidade como um singular coletivo (fazendo coexistir um princpio psquico evolucionista com referncias bblicas), ao final ele retoma o tema da obscuridade da histria indgena, lanando seu esclarecimento para o futuro devido ausncia de provas suficientes:
Nenhum testemunho at hoje se nos ofereceu ainda, convincente, eficaz e decisivo, que negue ou confirme qualquer dessas duas presumes antropolgicas. Limitemo-nos, pois, nas dvidas do presente, ao invs de conturbar, sem provas firmes, a histria do passado, a preparar, sobre bases positivas os alicerces do futuro42.

O topos da obscura histria indgena e a oposio que cercava a representao de seu passado podem ser percebidos ao longo dos artigos que compem a Revista da Exposio Anthropologica, assim como nos nmeros dos Archivos do Museu Nacional. Para ficar com
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Idem, p. 157. NETTO, Ladislau. Revista da Exposio Anthropologica Brazileira. Rio de Janeiro: Typographia de Pinheiro e C., 1882, p. III. 42 Idem, p. VII

135 apenas alguns exemplos, podemos citar o artigo do mesmo Ladislau Netto, publicado na Revista, sobre o elemento japonez na America, onde volta a afirmar que a dinastia Inca estaria na tradio dos reis do antigo Japo43; ou ainda o artigo de Joaquim Serra sobre as civilizaes extintas. Aps apontar a ausncia na Exposio de documentos referentes aos outros povos da Amrica, alm das tribos brasileiras, Serra afirma que pouco se poderia afirmar acerca das aptides do homem americano quando fossem eliminados da anlise esses documentos que falam de tantas civilizaes extintas no mundo de Colombo, e apenas entregue critica cientfica os objetos que atestam um viver selvagem, uma arte deficiente e uma indstria rudimentria44. A crtica de Serra Exposio organizada pelo Museu Nacional concentrava-se na seleo operada pelos organizadores; seleo que, inclusive, teria deixado de fora objetos da populao negra e do popular. Ao concentrar-se apenas nos ndios e, ainda, em alguns objetos retirados exclusivamente das tribos brasileiras, os cientistas no teriam como responder questo colocada por Netto sobre o obscuro passado. Nesse ponto, Serra retoma Humboldt que, inquerindo se o estado selvagem da Amrica era a aurora de uma sociedade, ou os destroos de uma civilizao extinta, inclinava-se para a ltima hiptese45. Logo no primeiro nmero dos Archivos do Museu Nacional deflagramos um debate com o mesmo teor, travado entre Carlos Wiener e Ferreira Penna. Este debate se deu no campo da arqueologia; mais especificamente, tinha como objeto os sambaquis assunto que passou a ocupar uma posio de destaque dentro da discusso arqueolgica a partir da dcada de 1870. Em seu artigo, Wiener fez uso da comparao entre os restos por ele observados nos sambaquis do sul do Brasil e os usos e costumes ainda presentes nas tribos selvagens:

Chamando a esclarecida ateno de v.s para estas breves consideraes, reccomendolhe como prova inconcussa da origem mais provvel dos sambaquis os vestgios de ignio, achados de ordinrio nas camadas inferiores dessas colinas artificais, sobre as quais de crer acendessem os indgenas suas fogueiras noturnas, como ainda hoje praticam nas costas da provncia do Paran e do Espirito Santo, nos pontos desertos que escolhem para as grandes pescas do inverno, em tudo semelhante a essas de seus antepassados46.

REAB, p. 154. Idem,, p. 90 45 Idem, Ibidem. O topos tambm estaria presente, por exemplo, em PENNA, Domingos Soares Ferreira Apontamentos sobre os ceramios do Par, AMN, Vol. 2. 46 WIENER, Carlos. Estudos sobre os sambaquis do sul do Brazil, AMN, Vol. 1, p. 12.
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136 A comparao, como operador de inteligibilidade tanto do passado como do presente dos indgenas, o levava a concluir categoricamente sobre o estado que caracterizaria essas populaes em sua existncia temporal. Para Wiener, no restava dvidas do modo como os objetos e as prticas indgenas deveriam ser classificados: primitivos. O uso que ele faz desse conceito deixa pouco espao para ambigidades, referindo-se claramente a um estado primeiro da Humanidade do qual os indgenas no puderam sair47. Inclusive, tendo em vista provavelmente as discusses travadas no IHGB, Wiener nega peremptoriamente a cronologia ento utilizada por seus antecessores que tinha no dilvio um marco temporal para situar os indgenas, classificando-a como extravagante48. Ele opta, antes, por uma classificao tipolgica, segundo critrios de um tempo secularizado e naturalizado, dividindo os sambaquis em trs categorias distintas de acordo com suas formas49. Estas formas representariam, igualmente, uma sucesso temporal - atravs da qual o cientista pode vislumbrar o caminho necessrio da histria da Humanidade e reconhecer-se na negatividade desse espelho sociolgico. Os sambaquis, esse amontoado de conchas, nada mais seriam do que frutos da indolncia dos indgenas, signo de seu primitivismo. Uma anlise da primeira categoria de sambaquis por ele definida revelava um quadro anterior mesmo ao processo de civilizao, antes que as separaes natureza/cultura, fsico/moral, pudessem se desenvolver. Os indgenas que ali habitavam seriam seres nmades, ainda no homens porque canibais e incapazes de constituir uma civilizao, cujo fundamento estaria no reconhecimento da individualidade:

Certamente no se acham ainda firmadas as leis sociais entre um povo que s v no seu semelhante um objeto de alimentao; elas s existem desde o dia em que o homem, prezando a sua individualidade, sente horror ante uma tal prtica. por isso que a partir desse momento, tributa-se respeito ao que deixa de viver, enterram-no e a apario do tmulo certamente o ndice do grande passo dado pelo bpede carnvoro (antopfago) para tornar-se homem.

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A certa altura o autor afirma: No nos pronunciaremos sobre a edade desses monticulos de detritos seno depois de estudos ulteriores; entretanto, julgamos no ter demasiada ousadia, declarando que muitos desses samabaquis no tem mais de dois ou tres seculos, e que nesta epocha o aborigene do Brasil se achava na edade da pedra. Pronunciando esta palavra: edade da pedra que segundo os dados geraes da archeologia, resume uma srie de dados methodicamente classificados, poderiamos dispensar-nos de fallar das aptides dos homem do sambaqui. Idem, p. 19. 48 Idem, p. 25. 49 CHAPMAN, Willian Ryan. Arranging ethnology: A. H. L. F. Pitt Rivers and the typological tradition, in: STOCKING, George (org). Objects and Others. Essays on Museums and Material Culture. Madison, The University of Wisconsin Press, 1985.

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A partir deste momento somente, isto , o dia em que a individualidade fsica respeitada, a individualidade moral pode desenvolver-se e o progresso tornar-se ento possvel e necessrio50.

Seria somente na terceira categoria de sambaquis que ele pde encontrar a primeira pedra de tudo quanto a civilizao tem podido erigir de grande e de belo. A existncia de tmulos tornava-se um indcio do desenvolvimento da concepo de individualidade por parte dos indgenas, uma espcie de alvorecer de sua auto-conscincia enquanto sujeitos51. No mais restos de libaes, mas monumentos, esses tmulos indicariam o respeito e o cultivo da memria: respeita-se esta memria e recorda-se aos viventes por um monumento, primitivo, verdade, mas que se torna um dos mais curiosos para a histria da humanidade52. O que guia seu olhar na caracterizao daqueles restos materiais, dotando-os de sentido a partir de uma perspectiva temporal particular, o reconhecimento da individualidade e o respeito ao passado como signos primeiros da civilizao. Da imagem invertida e simtrica representada pelo primitivo nmade e canibal, refletida a partir de uma tica cientfica e liberal-burguesa, Wiener tece esse movimento de passagem da natureza cultura, um movimento essencialmente gradativo e linear, cuja forma paradigmtica encarnada numa concepo filosfica da histria, numa temporalizao que lhe fornece os meios de construo de si e de compreenso do outro. No mesmo nmero dos Archivos, Ferreira Penna publica um artigo indo de encontro s concluses de Wiener. Tomando como objeto os sambaquis do Par, o naturalista viajante do Museu Nacional visa, ainda que de forma reticente, devido s inmeras dificuldades que teve em sua viagem e observao, contrapor-se aos juzos formulados por seu colega. A divergncia se dava principalmente sobre a questo da natureza do canibalismo e no culto aos mortos. Para Ferreira Penna, os indgenas no comeriam uns aos outros de forma indiscriminada, apenas para se alimentarem, como afirmava Wiener. Longe de ser uma atitude natural, porque animal, ela se enquadra dentro de uma ao cultural ainda que selvagem, evidentemente. A questo central, portanto, est em refutar aquele ponto negativo, anterior ao estado de cultura, atribudo aos indgenas por Wiener. Assim como para Janurio da Cunha Barbosa, algumas dcadas antes, o indgena, apesar de selvagem, um ser eminentemente

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Idem, pp. 17-18. BLUMENBERG, Hans. Imitacin de la naturaleza. Acerca de la prehistoria de la idea del hombre credor, in: Las realidades en que vivimos.Barcelona: Paidos, 1999; MARRAMAO, Giacomo. Poder e secularizao. As categorias do tempo. So Paulo: UNESP, 1995, pp. 77-157. 52 PENNA, Domingos S. Ferreira. Breve noticia sobre os sambaquis do Par, AMN, Vol. 1, p. 18.

138 social. O mesmo vale para o culto aos mortos. O fato de no haver tmulos nos sambaquis no indicaria necessariamente uma indiferena dos seus habitantes diante da morte do prximo. Tal ausncia poderia ser explicada, antes, por uma forma cultural distinta: Se durante a estao falecia algum destes Malacofgos, seu corpo, na forma do costume geral dos selvagens, era sepultado ali mesmo, no meio das conchas amontoadas e o mais perto possvel da rede em que dormia o pai, me, irmo, filho ou mulher do falecido53. Sintomtico ainda da posio de Ferreira Penna em relao ao estado temporal dos indgenas o fato de ele denominar, mais de uma vez, aqueles restos materiais como antiguidades indgenas54. Longe de ser gratuito, esse uso encerra uma valorao positiva, associando os documentos do passado indgena com aqueles dos antigos propriamente ditos; ou seja, englobava no termo antiguidades, cuja longa tradio de estudos promovida por eruditos e antiqurios ocupava um lugar central na cultura letrada europia55, os estudos sobre as populaes da Amrica. Longe de ser uma novidade, pois essa associao tem incio no processo mesmo de descoberta e colonizao56, ela se mostra, contudo, sintomtica. Em um espao onde as filiaes tericas traadas remetiam a uma excluso da comparao entre antigos e selvagens, sendo estes analisados em si mesmos57, a atitude de Ferreira Penna procura dar continuidade a uma tradio, expressada no Brasil pelos letrados do IHGB, de positivao do indgena atravs da valorao de seu passado. A recusa da animalidade do indgena, assim como a recusa de sua no-historicidade, vo de par em sua argumentao. nesse sentido que se opera a comparao por ele tecida entre gregos e selvagens. Na

tentativa de denominar algo que, em princpio, se mostrava ininteligvel, ele recorre tradio:

V-se do exposto, que no temos um nome com que se possa designar, de um modo geral, os diferentes depsitos dos objectos em questo, e claro que se deve procurar um que satisfaa a todas as exigncias da cincia. Os antigos Atenienses tinham, fora dos muros de sua cidade, uma olaria a que chamavam, segundo a forma latina, Ceramicus; a olaria foi removida para dar lugar a

Idem, p. 96. Grifos no original. Ele usa essa expresso tanto no artigo do primeiro volume dos Archivos como no artigo publicado no segundo volume, dedicando ambos Ladislau Netto e colocando-os como contribuio s pesquisas que o diretor do Museu vinha realizando. 55 WEISS, R. The renaissance discovery of classical antiquity. Oxford, Blackwell, 1969; GRAFTON, A. Defenders of the text. The tradition of scolarship in an age of science (1450-1800), Cambridge: Harvard, 1991. 56 GRAFTON, A. New World, Ancient Texts. Op. Cit. 57 HARTOG, Franois. Anciens, Modernes, Sauvages. Op. Cit., p. 216.
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um edifcio especial reservado a receber os corpos dos bravos que morriam na guerra em defesa da ptria. Foi removida a olaria, mas o logar conservou e o edifcio adotou o primitivo nome Ceramicus. esta palavra Ceramicus que eu emprego, modificando-a em sua terminao, para adapt-la ao gnio de nossa lngua58.

Em outra passagem, com o objetivo de criar uma imagem familiar ao leitor, ele recorre novamente aos antigos para descrever o vesturio de uma mulher estampada em uma urna: Esta aparncia do vestido recordaria o costume, seguido pelos antigos Gregos, de cobrirem de riqussimas vestes os corpos dos mortos que pertenciam s altas classes da sociedade, costume provavelmente imitado dos antigos Egpcios59. Desse modo, o recurso tradio servia para domesticar a alteridade, inserindo-a num quadro de inteligibilidade e, acima de tudo, positiv-la frente s consideraes que reputavam os indgenas como seres primitivos e alheios aos fundamentos primeiros da civilizao. Por oposio Wiener, Ferreira Penna reconhece nos indgenas a conscincia da individualidade, o culto memria e o estabelecimento de laos familiares. Mais do que isso, suas investigaes arqueolgicas demonstrariam tambm o processo de decadncia dessas populaes, havendo em seu passado um grau superior de civilizao revelado pelas camadas de vasos por ele encontrados nos sambaquis: Que as trs camadas de vasos to distintos entre si, por seus ornatos, representam outras tantas fases de uma civilizao decrescente60.

***

A presena do topos da decadncia no veio desacompanhado da questo da assimilao. Ela est presente, de diferentes formas, em Joaquim Serra, Barbosa Rodrigues e Ladislau Netto. Para os dois primeiros, a assimilao operava-se ainda nos termos da catequese. Barbosa Rodrigues acusava que a pretendida barbrie dos selvagens se devia, na verdade, s perseguies de que os indgenas eram alvo:

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PENNA, Domingos Soares Ferreira. Apontamentos sobre os Ceramios do Par, in: AMN, Vol. 2, p. 48. Idem, p. 57. 60 Idem, p. 53, grifos no original.

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Anualmente registram-se fatos de correrias selvagens, quando, entretanto, poderiam estar civilizados, se em vez de ferro e de fogo fosse empegado o Evangelho, porque o descimento desses indios no tem por fim o roubo e o assalto, mas sim a procura de transaes com os civilisados! Recebidos bala, respondem flechas, nisto no so brbaros61.

A poltica de assimilao a ferro e fogo, tal como vinha sendo praticada e defendida, revertia a barbrie para o lado civilizado. Inverso retrica comum, pelo menos desde Lry e Montaigne, ela vinha legitimar mais uma vez a defesa da colonizao pelo evangelho como melhor forma de incorporar hierarquicamente estas populaes ao corpo social do Imprio: O ndio, fora das doutrinas e dos meios que empregam os civilizados, so geis, trabalhadores e inteligentes: a fatal civilizao que mata-lhes a inteligncia, traz o atrofiamento das famlias e os inutiliza. Civilizai-o com o Evangelho, e terei homens to aptos como o da raa Europia62. A defesa mais veemente da catequizao veio, todavia, de Joaquim Serra. Em seu artigo Meios de catechese, ele lamenta a existncia de vozes polticas que se colocaram contra a aprovao de verbas para as aes missionrias. Ao resgatar o debate travado entre Varnhagen e Joo Francisco de Lisboa, ele condena a posio do autor da Histria Geral do Brazil em defender a volta das bandeiras como meio civilizador. De maneira sintomtica, ele encontra na proposta de Couto de Magalhes esse verdadeiro elo entre as discusses do IHGB e do Museu Nacional - o meio mais correto de encaminhar a poltica de catequese. Por fim, aps recusar a comparao com o utilitarismo yankee que exterminou os pelesvermelhas, toma como contra-exemplo escritores da Amrica do Sul, que apreciam o servio do ndio, que dele tiram proveito, aconselhando a catequese e a civilizao pelos meios brandos e suasrios63. No a excluso radical, como nos Estados Unidos, mas uma incorporao hierrquica, nos moldes ibricos - poderamos acrescentar64. No artigo O indio e o missinrio, desenvolve ainda uma defesa desse personagem que, segundo ele, teria sido e ainda seria to importante para a civilizao das populaes indgenas no Brasil. A valorizao da tradio jesuta novamente se faz presente, levando a uma compreenso das atitudes que pareceriam to reprovveis naqueles missionrios: As piedosas mentiras dos jesutas tinham um fim disciplinador, para facilitar a catequese. Como corolrio dessa

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REAB, p. 47. Idem, p. 150. 63 REAB, p. 51. 64 MORSE, Richard. O espelho de Prspero. So Paulo: Cia. das Letras, 2000.

141 disputa acerca das aes polticas a serem efetuadas no presente, encerra-se um trabalho de valorizao de elementos do passado e mesmo a construo subliminar de um sentido histrico para a Histria do Brasil: Eles empreenderam empresas colossais, e foram vitimados em servio da causa do progresso. Os nomes de Aquaviva, Pedro Bueno, Afonso Pacheco, Igncio de Azevedo e trinta e nove companheiros mortos, a esto para atestar a abnegao do missionrio65. Com essa operao, Joaquim Serra no apenas contrape-se a uma viso negativa sobre os jesutas, a qual os associava a um obscurantismo, mas os insere mesmo como mrtires do progresso, conciliando-os com uma tradio filantrpica iluminista no que segue a tradio do IHGB. No que diz respeito a Ladislau Netto, a incluso dos povos indgenas no necessitaria da figura do missionrio. A Providncia, aqui, agiria por outros meios. Devido a sua justaposio de um tempo naturalizado e de uma ordem divina, a assimilao dessas alteridades internas seria algo inerente ao processo histrico. Inclusive, raro ver qualquer posicionamento explcito de Netto acerca das discusses polticas sobre esse tema. Seu olhar aqui no o do poltico, mas do naturalista. Assim como em seus estudos sobre as trepadeiras, onde afirma a passagem dessas plantas de uma situao passada que as condenaria a sucumbir, a uma situao presente, na qual resistiram e deixaram filhos a quem transmitiram toda a energia de suas foras66, do mesmo modo analisa o processo de adaptao e, portanto, de incluso dos ndios e negros civilizao. Em determinado momento, ele denomina esse processo de o inconsciente da histria. Assim, no haveria nem mesmo o que disputar, j que a excluso ou a incluso no seriam opes a serem discutidas na esfera poltica, mas constataes a serem realizadas pelo naturalista. Nesse sentido, as nicas questes que podem ser feitas dizem respeito elucidao do modo como a incluso se processou na histria brasileira: Depende ainda de definitiva soluo o reconhecer-se qual das duas raas, preta ou vermelha, devemos ns maior cpia de hbitos hoje inveterados na populao brasileira e mais particularmente nas do Norte do Imprio67.

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REAB, p 51. NETTO, Ladislau. Aperu sur la thorie dvolution. Confrence faite Buenos Aires dans la sance solennele, celbre en so honneur par la Societ Scientifique Argentine. Rio de Janeiro: Imprimerie du Messager du Brsil, 1883 67 REAB, p. 5.

142 3.4 Saber olhar, saber descrever: o controle dos sentidos

O trabalho de construo de uma imagem dos indgenas produzido no IHGB tinha como base principal os relatos de viagem e dos missionrios. Ainda que a observao pessoal tenha sido um recurso utilizado, ela aparece muito pouco enquanto operador discursivo68. Em sua maior parte, os letrados do IHGB recorriam a fontes como Thvet, Lry, Soares de Souza, Nbrega, Anchieta, Vieira, entre outros, dos quais retiravam informaes acerca das populaes indgenas. Mais do que isso, o uso desses testemunhos tambm se inscreveu em um trabalho de retomada de tradies. o caso de Varnhagen, leitor de Soares de Souza, e dos demais letrados ao restaurar a tradio jesuta. Nesse sentido, a construo de seu olhar sobre o selvagem vinha mediada por olhares outros69. A viso que vinha do passado possua autoridade, ainda que no fosse imune a crticas. Ela auxiliava na focalizao do objeto, principalmente graas ao fato desses testemunhos terem visto os indgenas quando estes ainda se encontravam em seu estado mais puro, antes do contato com o europeu. Com os cientistas do Museu Nacional, esse intercmbio entre olhares sofre uma ruptura sensvel. A partir de agora, os olhares do passado so situados no espao do maravilhoso, do mtico, do ingnuo, do interessado. Em parte como conseqncia da construo da memria disciplinar, so olhares desprovidos de um aparato conceitual cientfico70. Por outro lado, so carregados de preconceitos e supersties. Os relatos do passado, nos quais se incluem os do IHGB, vinham ofuscados por questes metafsicas e filantrpicas. Uma tarefa necessria agora se impe: remover as grossas camadas que encobriram por muito tempo a verdadeira face do selvagem e mostr-lo em sua verdade. Convm, assim, seguir esses autores em seu trabalho de limpeza e de estabelecimento de um olhar direto, sem intermedirios, sobre o selvagem. Nesse esforo, eles no esto apenas retocando manchas velhas em um quadro: esto fundando mesmo um novo objeto.

*** A crtica aos viajantes e cronistas construda basicamente em cima daquilo que no viram, no puderam ou no souberam ver. As causas dessa miopia dos antigos so inmeras. Uma delas pode ser atribuda m f do testemunho, cujo diagnstico se processa nos moldes de uma crtica histrica. o que vemos, por exemplo, no juzo que Hartt tece
68 69

HARTOG, Franois. Espelho de Herdoto. Ensaio sobre a representao do outro. Op. Cit. HARTOG, F. Memria de Ulisses. Op. Cit. 70 Sobre o processo que vai dos relatos de viagem profissionalizao dos relatos de campo, cf: BLANCKAERT, Claude (org). Le terrain des sciences humaines (XVIII-XX sicles). Paris: LHarmattan, 1996.

143 sobre Thvet j designado, desde a acusao de Lry, como mentiroso71: Em primeiro lugar Thevet gastou muito pouco tempo no Brasil, e no sabia a lngua Tupi. Era um homem crdulo e pouco honesto, e o livro dele est, como mostrou Lry, cheio de erros. Devemos ento receber com muita cautela o que narra um tal autor, especialmente quando fala sobre um assumto to difcil de se entender, como o da religio de uma tribu selvagem72. A grande chave de crtica dos viajantes antigos, contudo, se processa em um sentido diverso ao da crtica histrica. Eles no se atm ao trabalho de comparao e de cotejamento da fonte para separar aquilo que falso do que verdadeiro. O grande problema desses relatos no est no contedo da informao, mas na forma como foi adquirida. A distino que esses cientistas constroem em relao aos textos do passado uma distino metodolgica, que se encerra numa definio especfica do saber cientfico. A crtica se dirige, por exemplo, ao efeito que a prpria presena da testemunha em uma natureza to rica causa aos sentidos. Lacerda julga que a inverossimilhana dos relatos se devia a esse efeito de maravilhamento a que o viajante estava exposto nas selvas tropicais:

Opinies diferentes, muitas delas mesmo pouco verossimilhantes, so as dos primeiros autores que escreveram sobre as substncias que entram na composio do urari; em muitas dessas descries parece ter a verdade se imiscuido com o maravilhoso, cuja poderosa atrao no deixa de exercer-se sobre os espritos, mesmo os mais positivos, ao avistarem-se com as colossais selvas americanas e com as infinitas riquezas que se ostentam no meio dessas imensas solides percorridas por uma raa vigorosa de homens vivendo a vida nmade e peregrina do selvagem73

H uma distncia enorme entre essa economia do olhar que se estabelece no Museu Nacional e aquela praticada por viajantes como Humboldt e Martius. Se, para estes, a presena diante do maravilhoso da natureza fazia parte fundamental da experincia em boa parte esttica - do conhecimento, constituindo-se num todo onde os sentidos e o ambiente deveriam convergir, para os cientistas do Museu Nacional essa presena era fonte de erros e falsos julgamentos, devendo submeter-se a um rgido controle74. Chacun voit [les] choses sa manire et les voit souvent autrement que ses voisins. Telle est la cause des contradictions
71

Ver LESTRINGANT, Frank. Jean de Lry ou linvention du sauvage. Essai sur lHistoire dun voyage faict en la terre du Brsil. Paris : Honor Champion, 1999. 72 REAB, p. 73. 73 LACERDA, Joo Baptista. Aco physiologica do Urari, AMN, vol. 1, p. 35. 74 RICOTTA, Lucia. Natureza, cincia e esttica em Alexander von Humboldt. Rio de Janeiro: Mauad, 2004.

144 sans nombre qui existent entre les descriptions des divers voyagers, como diria Broca em suas instrues pesquisa antropolgica75. A subjetividade do pesquisador deveria ser anulada para que no interferisse na visualizao do objeto. Da a necessidade de construir mecanismos que possibilitassem o controle dos sentidos. Como bem define Nlia Dias: Dicipliner les sens de lobservateur, mesurer et contrler lobservation, attnuer les carts entre des observations prises par diffrents observateurs, dterminer les critres qui font quun observateur est digne de confiance et par l que ses observations peuvent tre verifies, tel sont qualques-uns des protocoles de mthode qui rgissent la pratique anthropologique76. Daquele posicionamento de Lacerda, dois pontos merecem destaque. Primeiro, a associao que faz do viajante com o selvagem. O viajante naturalista, ao colocar-se em grandes expedies e infiltrar-se como um aventureiro no meio dessas imensas solides, acabaria perdendo as caractersticas que o distinguiriam enquanto raa vigorosa para tornarse um nmade, transformando-se, portanto, em um selvagem. No resultaria dessa experincia conhecimento cientfico, mas apenas relatos recheados de elementos mticos. Um segundo aspecto a destacar a inverso que resulta dessa crtica ao modelo dos viajantes naturalistas: no o cientista que deve ir natureza, mas a natureza ao cientista. Mesmo quando esse viajante da estatura de um Humboldt ou de um Martius, seus relatos devem ser apreciados a partir da experincia laboratorial. No caso da ao do urari, Lacerda reconhece o valor dos testemunhos de Humboldt, Martius e Castelnau, que assistiram in locu a preparao da substncia pelos indgenas. No entanto, suas consideraes s podem servir como indicaes e hipteses, e no como saber positivo. Para que a impresso torne-se conhecimento, deve passar por outro tipo de experincia. Lacerda tem que reproduzir em laboratrio aquilo que acontece a milhares de quilmetros, nas selvas amaznicas. Para isso, ele faz uso das amostras que o Museu Nacional possui. Dentre as dez especimens de urari disponveis, ele escolhe a mais recente. Ento segue-se a experincia:

Em um porco da India, inoculamos na cxa uma pequena poro dessa soluo concentrada; no fim de um minuto o animal caiu; ligeiro tremor convulsivo agitou por um instante os msculos da cabea e os membros anteriores; depois a vida pareceu completamente extinta. Dez minutos depois abrimos o cadver do pequeno animal, o corao contraa-se e dilatava-se,

75

BROCA, Paul. Instructions gnrales pour les recherches anthropologiques. Paris, Victor Masson, 1865. Citado por DIAS, Nlia. La mesure des sens. Les anthropologues et le corps humain au XIX sicle. Paris, Aubier, 2004. p. 167. 76 DIAS, Nlia. Op. Cit., p. 183.

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como se a vida ainda persistisse, e durante mais de meia hora essa concentrao se fez em nossa presena com pequenas interrupes, recomeando logo que com a extremidade de uma pina excitvamos o orgo a contrair-se. Enquanto o orgo central da circulao procurava assim sustentar os ltimos lampejos de vida, os intestinos executavam os movimentos peristlticos com energia e desdobravam-se em diferentes sentidos77.

Aquilo que uma ao cotidiana nas tribos indgenas (prtica de caa) e objeto de observao para os viajantes naturalistas, torna-se experimento nas salas do Museu Nacional. Diferentemente dos viajantes que observam e descrevem um fenmeno cuja existncia depende do local e das circunstncias em que ocorre, Lacerda reproduz sob condies controlveis o evento para descrev-lo. Ao reproduzir o evento, seu objetivo faz-lo falar, deixando que sua voz no se confunda com outros rudos que perturbariam a percepo78. Ele age para que o urari possa agir por si mesmo e, assim, tornar-se testemunha de uma (a sua) verdade, tal como o vcuo de Boyle79. Sua ao, portanto, caracteriza-se por um movimento de descontextualizao, isolando o fenmeno que originalmente aconteceria numa selva tropical, em meio a correrias, suor, gritos, ritos e outros elementos que perturbariam os sentidos do observador e que, portanto, devem ser depurados e fazendo com que ele se mostre em todas as suas fases, tornando-se visvel na superfcie dos tecidos do pequeno animal que definha diante de seus olhos. A morte ilumina, ao final, a verdade do corpo vivo como ressalta Foucault80. Neste caso, contudo, no se trata da morte natural, apenas observada, mas uma morte fabricada, parte do experimento laboratorial. No mesmo nmero dos Archivos onde foi publicado o artigo sobre a ao do Urari, Lacerda e Peixoto fazem um estudo dos ndios Botocudos. Eles transportam a anlise experimental para o estudo antropolgico. Aqui, novamente, no a ida a campo e muito menos a leitura de viajantes e cronistas o que sustenta a operao etnogrfica. Verifica-se, em primeiro lugar, o mesmo procedimento de reduo e descontextualizao: O trabalho que
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LACERDA, J. B. de. AMN, Vol. 1, p. 41. Cf. LATOUR, Bruno. Esperana de Pandora. Bauru: UDESC, 79 SHAPIN, Steven; SCHAFFER, Simon. Leviathan and the air pump. Hobbes, Boyle and the experimental life. Princenton: Princenton University Press, 1989. 80 Como ressalta Foucault: Ce qui cache et enveloppe, le rideau de nuit sur la vrit, cest paradoxalement la vie; et la mort, au contraire, ouvre la lumire du jour le noir coffre des corps: obscure vie, mort limpide, les plus vieilles valeurs imaginaires du monde occidental se croisent l en trange contrasens qui est le sens mme de lanatomie pathologique, si on convient de la traiter comme un fait de civilisation du mme ordre, et porquoi pas, que la trsnformation dune culture incinrante en culture inhumane. La naissance de la clinique. Op. Cit., p. 170.

146 vamos submeter apreciao do mundo cientfico apenas uma contribuio ao estudo antropolgico das raas indgenas do Brazil; quisemos aproveitar da resumida coleco de crnios, que possui o Museu Nacional, esses poucos elementos que a estavam esquecidos e que bem aproveitados podem constituir a base de estudos mais completos no futuro81. Esse material, que o Museu j possua e que estava esquecido, eles os transformam em documento. Em operao anloga realizada pelo historiador, que transforma restos materiais em testemunhos, e testemunhos em documentos, Lacerda e Peixoto realizam, com a escolha daqueles crnios, o primeiro passo de sua operao etnogrfica82. Uma vez selecionado o material, eles o interrogam: descrevem seus caracteres anatmicos, tiram as medidas craniomtricas, comparam com outras amostras (notadamente crnios de outras colees, como de Morton e Blumenbach) e, por fim, comparam os seis crnios entre si83. Ao final, lanam suas concluses, que podem ser resumidas na seguinte constatao:

O predomnio da dolicocefalia nesta srie vem trazer mais um argumento valioso para provar que o tipo das raas americanas em geral dolicocfalo; por outro lado a existncia na srie de alguns subdolicocfalos e de um mesaticfalo parece indicar que o tipo primitivo da raa dos Botocudos tende a modificar-se pelo cruzamento com outra raa de tipo diferente, e esta presumo tanto mais bem fundada, quanto vemos aparecer na mesma srie crnios mesorrhinios e leptorrhinios, o que inculca mistura de raas84.

Essa anlise comparativa das amostras de crnios permite, por um lado, uma reduo no que diz respeito ao nmero real de indgenas e tribos espalhados pelos Brasil, liberando o cientista do esforo de percorrer longas distncias e adentrar em inspitas florestas, e, por outro, uma ampliao, na medida em que se pode agora visualizar esses espcimes ao lado de outras do mundo inteiro - uma diminuio da escala que permite uma ampliao do olhar. Ao final, essa operao tem como resultado principal a classificao dos indgenas brasileiros. Essa classificao, orientada por um quadro de referncia fixo, fornecido pelos estudos de Broca, dispe os indivduos em tipos puros. A raa americana, segundo os autores, em geral dolicocfala.

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LACERDA, Joo Baptista; PEIXOTO, Rodrigues. Contribuio para o estudo anthropologico das raas indigenas do Brazil, AMN, Vol. 1, p. 48. 82 CERTEAU, Michel de. A operao historiogrfica, in: A escrita da histria. Op. Cit. 83 LACERDA, Joo Baptista; PEIXOTO, Rodrigues. AMN, Vol. 1, ., p. 71. 84 Idem, p. 71.

147 Esse carter experimental do trabalho antropolgico pode ser visualizado, ainda, sob uma outra perspectiva, no artigo sobre a fora muscular e a delicadeza dos sentidos dos indgenas, escrito por Lacerda para a Revista da Exposio Antropolgica. O argumento se inicia, novamente, pela contraposio entre relatos do passado e experimento cientfico. Todos os escritores e viajantes, que tm publicado informaes relativas aos nossos indgenas, so acordes em consider-los dotados de grande fora muscular85. Contudo, acrescenta Lacerda, se a salincia dos msculos do indgena podem levar facilmente o observador a aceitar essa opinio, quando se desce verificao experimental, fica-se admirado de se encontrar a negao daquele asserto86. De maneira anloga ao experimento com o porco da ndia, o objetivo desse experimento reproduzir o evento em laboratrio. Ele escolhe cinco indivduos, trs pertencentes tribo dos Xerentes e dois Botocudos, e lhes aplica o dinammetro de Mathieu instrumento que permitiria medir o esforo muscular. Para completar o experimento, seleciona como termo de comparao um indivduo da raa branca, de musculatura medocre, a quem submete mesma medio. Aps fazer com que esses indivduos realizassem um esforo muscular no laboratrio, Lacerda constata que a agulha do dinammetro marcava para os indgenas um nmero menor ao do conseguido pelo branco. Como concluso, afirma que a identidade dos resultados em experincias repetidas no podia deixar dvida de que a fora muscular do brao do indgena era inferior do homem branco civilizado87. Aqui, novamente, o que est em jogo a anulao da subjetividade do observador em nome de uma verdade que se auto-revela. Se Lacerda age, para que os corpos selvagens e civilizados tornem-se testemunhas de si mesmos. Ele segue, portanto, a ambio expressa por Topinard de que o eterno objectif de la science anthropologique est de substituer un chiffre, une formule, un mot, une phrase88. A concluso metodolgica de seu experimento a da falibilidade dos sentidos e a necessidade de construir mecanismos que tornem nula a distncia entre aquilo que e aquilo que se diz, no havendo entre o olho e a letra a carga de subjetividade que caracteriza os relatos antigos. A positividade do saber antropolgico, que est na base da operao etnogrfica de Lacerda, consiste justamente em fazer o corpo falar - uma fala livre da contaminao das especulaes filosficas e filantrpicas que teriam impedido, por tanto tempo, a constituio da antropologia como uma cincia.

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LACERDA, Joo Baptista de. REAB, p. 6. Idem, Ibidem. 87 Idem, Ibidem. 88 Citado em DIAS, Nlia. Op. Cit., 168.

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***

Como vimos, contudo, no havia no Museu uma homogeneidade da atividade antropolgica. Assim como diferentes tradies foram construdas e posicionamentos divergentes adotados em relao aos indgenas, no havia igualmente um mtodo nico de investigao. A antropologia fsica, laboratorial, de Lacerda, ainda que tenha conquistado um espao significativo dentro do Museu, coexistiu com outras abordagens. A arqueologia, o estudo da linguagem, a descrio etnogrfica so algumas das que merecem mais destaque. O que importa destacar desses diferentes meios de construir um saber sobre o indgena a lgica que orientou suas prticas. De um lado, todos eles convergiam, em menor ou maior grau, com a ambio de Lacerda em construir um saber positivo, uma especializao e profissionalizao da pesquisa, onde a subjetividade fosse anulada ou, ao menos, controlada. Nesse sentido, percebemos uma reformulao no modo como as pesquisas arqueolgica e filolgica foram desenvolvidas no Museu. De outro lado, contudo, essas diferentes prticas encerravam em si posicionamentos distintos, cujo sentido pode ser melhor definido a partir da re-atualizao do debate acerca do indgena que procurei mapear na seo anterior. Assim como Lacerda, Carlos Wiener tinha uma clara preocupao em distinguir sua pesquisa das observaes produzidas pela curiosidade de viajantes e amadores. Estes, ainda que tenham mencionado os sambaquis, pouco lhe deram ateno, pois no souberam reconhecer a importncia daqueles restos materiais para o estudo das populaes indgenas89. Aquilo que parecia aos olhos dos curiosos viajantes um amontoado de conchas, apresentavase agora, para o cientista, como depsitos to interessantes que contm os numerosos vestgios de povos agora extinctos. Da mesma forma que para Lund, algumas dcadas antes, o que estava em questo no eram grandes monumentos visveis, mas traos materiais que se confundiam com a natureza, permanecendo escondido dos olhares amadores. A Arqueologia deveria apresentar-se como um ramo do saber que requeria do olhar do cientista uma percepo treinada, uma capacidade de tornar visvel o invisvel e, mais ainda, de anular a subjetividade em nome de uma verdade auto-suficiente. Wiener afirma que, ao partir para Santa Catarina, onde investigaria os sambaquis, no possuia idia alguma positiva sobre a natureza dos objetos que ia estudar. Longe de se mostrar como um empecilho, essa situao lhe parecia vantajosa j que no haveria entre seu olhar e os objetos observados um acmulo

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WIENER, Carlos. AMN, Vol. 1, p. 3.

149 de informaes disparatadas fornecidas por viajantes do passado: A vantagem, porm, da pr-noo, forosamente insuficiente, que tinha ao partir, foi-me de alta valia por deixar ao meu juzo ulterior uma completa imparcialidade90. Sua apresentao dos resultados organizada, inclusive, no sentido de separar claramente a parte descritiva da analtica: No ajuntarei a esta parte do presente trabalho, nem as reflexes que me ocorreram, nem comentrio algum, por entender que uma descrio metdica dos sambaquis deve originar, s de per si, no esprito do leitor, uma idia muito clara sobre a origem e fim desses depsitos91. Separao que tem por objetivo distinguir a sua fala, reservada apenas para a sntese final, dos objetos apresentados ao leitor. A exposio que Wiener faz do sambaqui segue, assim, a ambio de uma descrio capaz de fazer convergir o olho e a letra, capaz de fazer ver aquilo que, atravs do dizer, se mostra. No a descrio da cor local dos romnticos, mas uma descrio seca, direta, metdica. A funo do mtodo, aqui, justamente produzir essa convergncia que se deve, simultaneamente, ao reconhecimento e negao da subjetividade do olhar92. Seguindo um modelo expositivo j presente nas cartas de Lund, ele inicia pela topografia, se estendendo natureza material dos objetos, suas formas e disposio. Compe um cenrio onde natureza e cultura se misturam e cujo carter demonstrativo e efeito de persuaso est na capacidade do cientista em saber ver e saber ler, em descrever uma realidade e saber reconhecer nela os sinais em suma, na separao desses dois momentos: a construo de uma empiria (limpa da subjetividade) e sua decifrao. J os trabalhos arqueolgicos de Ladislau Netto e Ferreira Penna, ainda que valorizem a modernizao dos mtodos e a autpsia, possuem um tom distinto daquele empregado por Wiener. O diretor do Museu, ao narrar o surgimento de seu interesse pelo assunto, identifica uma passagem operada entre sua condio inicial de simples colecionador de materiais esparsos para um amadurecimento enquanto pesquisador experimentado93. Em suas descries, tambm faz uso da legitimao da autpsia enquanto operador discursivo. A expedio arqueolgica, tambm para ele, se distancia tanto das viagens amadoras e enciclopdicas como da busca por referncias retiradas dos relatos de viajantes do passado94. Suas descries dos materiais, contudo, no apresentam uma separao marcada em relao s consideraes do observador. A seleo dos materiais (vasos, urnas, tangas) e o modo de
Idem, p. 4. Idem, Ibidem. 92 CRARY, Thomas. Op. Cit. 93 NETTO, Ladislau. Archologie brsilienne. Rio de Janeiro, Typ. e lith. De Machado & C., 1885. 94 Ver RIVALE, Pascal. Les instructions archologiques franaises pour le Prou au XIX sicle: deux exemples, deux conceptions distinctes de la recherche pour un domaine dtude en qute didentit, in: BLANCKAERT, Claude (org). Le terrain des sciences humaines (XVIII-XX sicles). Op. Cit. pp.175-200.
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150 estud-los (comparao com objetos de outros continentes, incluindo os antigos, cotejamento com fontes escritas e anlise das imagens neles representadas) parecem manter uma vinculao do trabalho arqueolgico com uma tradio mais humanista do que com a tradio da arqueologia enquanto trabalho de naturalista. O enfoque maior o da civilizao e dos costumes, representados por objetos e imagens, e menos as consideraes sobre a decomposio qumica de ossos ou a composio dos materiais, por exemplo95. Suas anlises desses objetos, inclusive, no deixariam de recorrer s elucidaes filolgicas como um suporte de leitura. o que se percebe, por exemplo, em seu estudo sobre o Tembet: Chamavam-lhes eles simplesmente Tembet (pedra do lbio) sem suspeitarem, siquer, de que nessa denominao, to singelamente eloqente, envolvia-se-lhes toda a lenda de sua terra natal, toda a genealogia de sua irrequietas e belicosas tribus, todo o eplogo da evoluo antropolgica de sua antiga raa96. A modernizao da arqueologia brasileira que teria ocorrido a partir da Exposio Antropolgica por ele organizada, e da qual se orgulhava, no parece, portanto, representar uma ruptura radical com aquela praticada no IHGB. No por acaso que em sua carta Renan, na qual resumia suas concluses sobre a falsificao das possveis inscries fencias encontradas no Rio de Janeiro (e onde segue o procedimento de uma verdadeira crtica histrica contra falsrios), ele arrematasse o juzo final com uma dupla confisso, misturando o orgulho do cientista com a tristeza de sua descoberta:

Deux sentiments opposs se partageaient mon esprit; je rassentais une sorte de plaisir, une joie de conscience reconnatre, constater la fraude, et pourtant, dun autre ct, jtais envahi par un vif regret, par une indfinissable tristesse em voyant se dissiper, comme un dcevant mirage, tout le valeur de ce document qui me semblait jusqu ce moment, malgr mes doutes, le seul probable, lunique admissible tous le gards, pour rendre tmoignage de la prsence de grands navigateurs de lantiquit sur ce ct de lAtlantique97.

A mesma expectativa pela descoberta de grandes civilizaes presente no IHGB alimentava sua curiosidade cientfica, ainda que constatasse pelas suas pesquisas a pequena
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No que poderamos vincul-lo a uma tradio antiquria. Cf. HASKELL, F. The dialogue between Antiquarians and Historians, in: History and its images. Art and the interpretation of the past. New Haven: Yale University Press, 1993. 96 NETTO, Ladislau. Apontamentos sobre os Tembets, AMN, Vol. 2, p. 105. 97 NETTO, Ladislau. Lettre a Monsieur Renan propos de linscription phnicienne apocryphe. Rio de Janeiro, Lombaerts & C., 1885.

151 possibilidade de isso ocorrer. De todo modo, assim como Ferreira Penna, ele no deixaria de se referir aos objetos estudados como antiguidades e muito menos abandonaria a hiptese de encontrar um passado mais ilustre para as populaes indgenas do Brasil. A arqueologia, praticada nesse modelo humanista de leitura dos objetos mais como signos culturais que naturais, assumia, para Ladislau Netto, um papel preponderante na tentativa de iluminar a obscura histria indgena. Craniometria e arqueologia eram colocadas pelos integrantes do Museu Nacional como os dois suportes para a antropologia. As divergncias se davam, contudo, no peso que cada um deveria receber e no modo de pratic-los. Como vimos, tal divergncia se traduziu em diferentes memrias disciplinares. Mas alm desses dois ramos de pesquisa, convm analisar ainda o papel que a filologia, a pesquisa sobre a lngua indgena, assumiu nesse processo de reformulao do saber antropolgico. Em sua filiao perspectiva de uma antropologia fsica, Lacerda acusava, seguindo Broca, a etnologia de no ter conseguido alar-se como cincia devido ausncia de bases slidas sobre as quais se apoiar. O estudo da linguagem, para ele, se apresentava como pouco positivo, dando margem a conjecturas no passveis de verificao. Para alguns pesquisadores do Museu Nacional, portanto, a lngua deixa de ser o melhor indcio para resgatar a historicidade dos selvagens, pois seu alcance seria muito limitado e sua forma sujeita s contingncias da histria. Tal posicionamento pode ser bem evidenciado pelas afirmaes de Paul Broca. Para o antroplogo francs, por mais que a lngua pudesse render informaes teis, a investigao antropolgica devia se pautar em caracteres mais fixos, como o estudo de crnios. Como diz Broca,

nous possdons, pour grouper et classer les races humaines, pour dterminer leurs analogies et leurs dissemblances, des caractres dun ordre tout diffrent, tirs de lorganisation physique de ces races. La mthode naturelle, qui doit tre la ntre, nous oblige tenir compte de tous les caractres, et ceux que fournit la linguistique mritent certainement toute notre attention; mais cette mme mthode nous oblige, en outre, donner la primaut, suivant le principe de la subordination des caractres, ceux qui prsentent le plus de fixit98.

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BROCA, Paul. La linguistique et lAnthropologie, Bulletins de la Societ dAnthropologie, T. III, 1862. In: Memires dAnthropologie. Op. Cit, p.247.

152 Em contraste linguagem, os caracteres fsicos teriam uma maior continuidade, e portanto uma identidade, no decorrer do tempo. O que est por trs de tal seleo a ambio de escapar contingncia histrica, dada a necessidade de encontrar os tipos puros. Compreende-se, assim, a recusa (expressa pelo silenciamento) por parte de autores como Lacerda dos trabalhos produzidos no IHGB a partir da linguagem indgena. Enquanto esses cientistas buscavam um tempo da natureza, onde se inclua o homem, o IHGB visava, antes, resgatar um tempo do homem, para o qual a linguagem, expresso maior dessa humanidade, seria a melhor referncia de acesso. Da, novamente, a distino do trabalho arqueolgico humanista e naturalista. Mas voltemos questo da linguagem. O que primeiro chama a ateno quando olhamos para os artigos publicados nos Archivos e na Revista da Exposio, o pequeno espao que o estudo da lngua ocupa como mtodo de investigao das populaes indgenas. Alm de um artigo de Ferreira Penna, publicado no terceiro volume dos Archivos, e um apontamento para a gramtica boror de autoria do Alferes Jos Augusto Caldas, no volume doze, alguns artigos na Revista da Exposio fecham o conjunto de textos filolgicos produzidos no Museu99. Ainda que parcos, eles no deixam de ser significativos, uma vez que percebemos neles mais alguns traos de continuidade e de ruptura com a tradio do IHGB presente no Museu Nacional. Tomarei com caso de estudo os pequenos textos publicados por Joaquim Serra na Revista da Exposio Anthropologica. Este jornalista liberal e abolicionista no fazia parte do corpo de empregados do Museu, mas teve uma presena considervel nas pginas da revista que Mello Moraes organizou sobre a Exposio Anthropologica100. Suas contribuies destacam-se no apenas pela nfase que deu questo da linguagem indgena, mas tambm por propor um rol de problemas antropolgicos que pouco ocuparam os integrantes do Museu. Em relao lngua indgena, especificamente, defendeu o projeto de literatura indianista de Gonalves Dias e Jos de Alecar e, para isso, recorreu indiscriminadamente a figuras distintas como Lry, Montoya, Carlos Calvo, Varnhagen, Southey e Orbigny. Segundo ele, aqueles que estudam os ndios e as lnguas que eles falam sabem belamente que uma falsidade a asseverao de que, nem pelos hbitos, nem pelo idioma, o aborgine seja capaz de entrar no quadro da literatura ptria101. Interessante perceber como, assim como j havia feito Dias, ele procura legitimar o indianismo literrio a partir de um discurso propriamente etnogrfico,

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nmero deartigos na revista REAB, p. 35.

153 reconhecendo na linguagem indgena o meio privilegiado para se conhecer sua cultura e seu passado. Mas Serra no se atm apenas a essa valorizao da linguagem indgena. O seu trabalho de positivao dessa alteridade interna, que inclui um projeto de incorporao, promove igualmente uma identificao entre o eles e o ns. Para isso, ele recorre diversas vezes ao conceito de mestiamento, cuja fortuna estava sendo traada simultaneamente por outros autores, no ligados ao Museu, como Slvio Romero. No mesmo artigo sobre a lngua tupi, a legitimao da poesia indianista vem reforada pela constatao de que o sangue indgena tambm nosso pelo mestiamento. E no apenas o indgena. Sua maior inovao nesse quadro de discusso do Museu Nacional est em deslocar o olhar dos leitores em direo a um objeto ausente e ao qual ele reclama a necessidade de uma abordagem etnogrfica: Na seo bibliogrfica da exposio antropolgica h um grande vazio. Falta o livro que, tratando da poesia popular, sirva de base para os estudos etnogrficos e comparativos102. A entrada do popular enquanto objeto etnogrfico, colocado pela primeira e nica vez dentro dos quadros do Museu Nacional (talvez com uma exceo, o artigo sobre atavismo de Netto), marca uma continuidade e um deslocamento em relao tradio a qual Serra se filiava explicitamente. Enquanto que no IHGB a lngua indgena foi alada ao estatuto de documento principal do passado indgena, que necessitava ser resgatado para ser incorporado, e no Museu Nacional foi relegada a segundo plano, em nome da modernizao dos mtodos craniolgicos e arqueolgicos, Serra se apropria do mtodo lingstico mas o desloca para um objeto novo, cuja identidade j no pode ser claramente definida entre o eles e o ns. A etnografia, enquanto um modo de fazer a histria do outro, de repente ganha o espao anteriormente ocupado com exclusividade pela escrita da histria. Melhor dizendo, diferentemente dos trabalhos etnogrficos e antropolgicos do IHGB e do Museu Nacional, que recortaram como nico objeto a obscura histria indgena, Serra amplia o leque de investigao tanto para a populao negra como para o popular, assumindo para si a tarefa de esclarecer agora a formao do povo brasileiro. Lembrando os trabalhos pioneiros de Almeida Garret e Jos de Alencar, ele aponta para a necessidade de aplicar s canes populares aquilo que etnografia vinha fazendo com a linguagem indgena: Num cancioneiro nacional, melhor do que qualquer outra fonte de informaes, bem se pode estudar o fnomeno etnogrfico pelo mestiamento da linguagem103. Mais do que trazer discusso antropolgica o problema o negro, como diria Nina Rodrigues, diante de um
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Idem, p. 75. Idem, Ibidem.

154 contexto abolicionista, essa operao realizada por Serra implicava igualmente em uma mudana da relao entre os saberes etnogrfico e histrico. Os pares de oposies que marcaram a formao desses saberes, oralidade e escrita, identidade e alteridade, espao e tempo, conscincia e inconcincia, marcando a definio de seus objetos e de suas prticas, tornam-se, a partir de ento, fludos. A etnografia, ao tomar para si o objeto da histria, a formao nacional, mas aplicando os seus mtodos, vai promover a construo de uma temporalidade prpria, distinta daquela da historiografia. Ainda que Serra no tenha levado adiante essas implicaes, mas apenas acusado a ausncia no Museu Nacional, outros autores como Silvio Romero, Euclides da Cunha e Capistrano de Abreu, de modos distintos, como veremos, j estavam trilhando esse caminho.

3.5 Tipos, primitivos, decadentes: categorias etnogrficas, secularizao e tempo histrico

De acordo com George Stocking, em seu importante estudo sobre a antropologia vitoriana, o final da dcada de 1850 marca uma mudana profunda no que diz respeito aos conceitos, aos mtodos e s implicaes polticas do saber antropolgico. Essa mudana teria sido motivada pela reao de uma gerao de intelectuais que viam, nas palavras de Stocking, the world of their adulthood as a product of unprecendedly rapid and far-reaching historical change so rapid and far-reaching that the world into wich their fathers had been born seemed a radically different one104. A sensao de que um mundo havia sido perdido, a oposio entre um mundo rural, mais prximo ao ritmo da natureza, e um mundo urbano, caracterizado por uma acelerao contnua, so tpicos que passavam a se fazer presentes nos testemunhos desses intelectuais britnicos. Pensadores como Stuart Mill, como salienta

Bowler, felt that the past was dead in the sense that it could no longer be looked upon as a source of authority105. O Crystal Palace, com sua arquitetura e a exibio dos trabalhos da indstria de todas as naes, parecia aos olhos de uma gerao mais velha um precipcio no tempo, uma disjuno temporal onde o antigo e o moderno, colocados em contato, revelavam-se completamente distintos. Essa experincia moderna de perda do mundo seria

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STOCKING, George. Victorian Anthropology, Op. Cit., p. 208. BOWLER, Peter. The invention of progress. The Victorians and the Past. Oxford, Blackwell, 1989.

155 uma das marcas da formao de uma nova experincia do tempo106. A visualizao de diferentes estratos temporais coexistindo lado a lado colocava-se como uma questo para esses intelectuais, os quais procuravam, atravs da antropologia, da histria, da paleontologia e de outros saberes, explicar tanto a contnua acelerao vivenciada pelas sociedades industriais europias como a esttica existncia de outras sociedades. O evolucionismo, nessa chave, inscrevia-se como uma nova Weltanschaung, um quadro de inteligibilidade que informava, ao mesmo tempo, a legitimidade daquela acelerao e um programa de pesquisa sobre os grupos humanos. O modelo de antropologia bblica que at ento predominava no estudo das populaes no-ocidentais, estruturado a partir de uma busca genealgica cujo ponto final era marcado pela ciso revelao/esquecimento, deixa de ser operatrio. Os marcos temporais da antiguidade do homem so radicalmente estendidos a partir de descobertas arqueolgicas. Conceitos como o de decadncia, que implicava a considerao de histrias particulares das sociedades, so substitudos por uma nova rede conceitual que tem por caracterstica estabelecer grandes singularidades, sendo a maior delas representada pelo prprio conceito de histria como um singular coletivo107. O papel filantrpico sustentado pela antropologia bblica, pautado na idia da evangelizao, perde espao para uma justificativa mais secularizada, pautada na cincia, cuja preocupao no est mais centrada nas almas, mas nos corpos. Os fenmenos sociais, da mesma forma que o mundo natural, passam a ser entendidos como submetidos a leis invariveis que atuam uniformemente tanto no passado como no presente. Em suma, essa mudana no paradigma antropolgico pode ser encarada como parte de um processo mais amplo de secularizao e naturalizao das aes humanas e, conseqentemente, do tempo histrico. Como vimos nos dois primeiros captulos, o discurso etnogrfico desenvolvido pelos letrados do IHGB se processava dentro dos parmetros bblicos, assumindo sua forma especfica em relao s questes que preocupavam a boa sociedade do segundo reinado. Um dos objetivos desse captulo tem sido justamente mapear os traos de continuidade e ruptura em relao a esse discurso anterior. A partir de uma anlise da construo de diferentes memrias disciplinares, dos problemas que orientavam a busca pela nova obscuridade da histria indgena e dos mtodos que garantiam a construo desse saber,
Alguns trabalhos importantes nessa direo so ARENDT, Hannah. O conceito de histria antigo e moderno, in: Entre o passado e o futuro. Op. Cit.; BANN, Stephen. The rise of historicism. Op. Cit.; Koselleck, Reinhardt. Futuro passado. Op. Cit.; MARRAMAO, Giacomo. Poder e secularizao. Op. Cit. Para uma crtica dessa noo de perda do mundo, ver BLUMENBERG, Hans. The legitimacy of modern age. Cambridge: MIT Press, 1985. 107 KOSELLECK, R. Historia magistra, in: Futuro Passado. Op. Cit.
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156 procurei seguir esses traos que distanciavam, mas tambm ligavam, os trabalhos do Museu Nacional queles produzidos no IHGB. Nesta seo, pretendo focalizar a anlise em dois autores especficos, Ladislau Netto e Joo Baptista de Lacerda, com o objetivo de acompanhar a construo temporal implcita em suas operaes etnogrficas. Atravs da escrita desses autores, possvel oferecer uma perspectiva sobre esse complexo processo de secularizao que caracteriza a modernidade. Mas antes convm delimitar, ainda que brevemente, o que se entende por secularizao. Desde a importante obra de Lwith, pelo menos, esse conceito vem sendo objeto de inmeros debates e usos108. No pretendo, aqui, de maneira alguma resgatar todas as discusses que envolvem esse debate, mas apenas apontar para alguns elementos que, acredito, tornem ele um instrumento heurstico importante para se pensar o tempo histrico moderno e, mais especificamente, as experincias etnogrficas aqui estudadas. A apario do termo, inicialmente em lngua francesa, se deu no sculo XVI, significando a transferncia de um religioso ao estado secular. Com a paz de Westfalia, em 1648, o termo ganhou uma primeira ampliao, sendo usado para se referir passagem dos bens eclesisticos s mos seculares. Tendo como origem o direito cannico, o conceito se estrutura, assim, na oposio entre o espiritual e o secular. Mas no sculo XVIII e com a Revoluo Francesa que o conceito ampliado para alm da esfera do direito cannico, graas a um processo de metaforizao que o torna um instrumento hermenutico da filosofia da histria. Nessa chave, o que importa destacar a substituio operada entre as oposies espiritual/secular e passado/presente. Na medida em que o processo histrico entendido, em seus diferentes espectros polticos, como um processo de secularizao, a prpria oposio espiritual/secular temporalizada como pode ser atestado, por exemplo, na obra de Comte com suas trs fases de evoluo da humanidade. Diferentemente da diviso das duas cidades agostinianas, a perspectiva moderna do tempo o concebe como pura imanncia onde a salvao no se encontra mais num alm, mas estendido a uma expectativa de futuro terreno. Desse modo, como nos diz Koselleck, a oposio entre passado e futuro passa a ocupar o posto central, despendendo a oposio entre o aqui e o alm109. Pode-se resumir, portanto, para os fins especficos da presente discusso, esse processo de secularizao como caracterizado por algumas transformaes bsicas: a
LWITH, Karl. Meaning in history. Chicago, The University of Chicago Press, 1949. Isso no que diz respeito ao tempo histrico, mas uma referncia central anterior WEBER, Max. A tica protestante e o esprito do Capitalismo. Braslia: UNB, 1981. Para um mapeamento crtico desse debate, cf. MARRAMAO, Giacomo. Cu e Terra. So Paulo: Editora da Unesp, 1994. 109 KOSELLECK, Reinhart. Acortamiento del tiempo y aceleracin. Un estudio sobre la secularizacin, in: Aceleracin, prognosis y secularizacin. Valencia: Pre-Textos, 2003.
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157 centralidade deslocada de Deus para o homem; a salvao no mais buscada apenas no trmino da histria, por meio da ao divina que irrompe o curso do tempo, mas pelo prprio desenvolvimento e execuo do processo histrico; a acelerao no diz respeito mais ao tempo fsico, como nas expectativas milenaristas, mas antes aos prprios eventos. Assim, da transcendncia imanncia, v-se surgir essa idia do sujeito produtor da histria, ou, nos termos propostos por Koselleck, da disponibilidade da histria110. E a linearidade e a irreversibilidade desse tempo, cujo sentido est na prpria ao do homem, acaba por desembocar numa filosofia poltica. O poltico, agora, como salientou Marramao, no opera mais sobre um universo de signos, mas sobre o sentido111. Ainda que distintas, as expectativas escatolgicas e as expectativas desse tempo histrico moderno guardam semelhanas. As esperanas depositadas nas cincias da natureza, na tcnica como garantia da emancipao e libertao do homem, conservaram um resduo de expectativas crists. La antiga finalidad ultraterrena de la salvacin futura fue integrada en la historia como esperanza mundana, temporalizada, y, a travs de su repercusin moral, la aceleracin serva de gua para la accin de los hombres autnomos112. Em termos polticos o importante saber quem acelera ou retarda a quem, o que, onde e quando. Delimitadas essas caractersticas bsicas desse processo de secularizao, convm agora analisar em que medida e de que formas as construes temporais implcitas nas escritas etnogrficas de Ladislau Netto e Joo Baptista de Lacerda se inscrevem nesse processo de constituio de um tempo histrico moderno e, mais especificamente, na elaborao de uma temporalidade nacional.

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Em seus estudos sobre o evolucionismo no Museu Nacional, Regina Gualtieri, Heloisa Bertol Domingues e Magali Romero S destacaram, com propriedade, os principais elementos que caracterizam o trabalho de Ladislau Netto113. Com apoio nessas anlises, procurarei

KOSELLECK, Reinhart. Sobre a disponibilidade da histria, in: Futuro Passado. Op. Cit. MARRAMAO, Giacomo. Poder e secularizao. Op. Cit. p. 115. 112 KOSELLECK, R. Acortamiento del tiempo y aceleracin. Un estudio sobre la secularizacin, Op. Cit., p. 58. 113 GUALTIERI, Regina Cndida Ellero. O evolucionismo na produo cientfica do Museu Nacional do Rio de Janeiro (1876-1915); DOMINGUES, Heloisa Maria Bertol; S, Magali Romero. Controvrsias evolucionistas
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158 apenas seguir as ambigidades e a textura temporal construda por Netto, dando nfase para o modo como os indgenas (e, em menor escala, os negros) so inseridos nela114. Desse modo, pretendo apontar para a continuidade, mais funcional do que de contedo, que une a sua escrita etnogrfica quelas produzidas no IHGB por autores como Janurio da Cunha Barbosa e Gonalves Dias. J ressaltei anteriormente algumas das ambigidades que cercam a produo de Ladislau Netto. Irei retom-las agora, de maneira mais sistemtica, pois me parece que elas so os melhores indcios para mapear esse processo de continuidade e ruptura que venho destacando. Assim como em Couto de Magalhes, o uso de novos conceitos e mtodos vem de par com a retomada de velhas questes e projetos. Com fim de tornar mais clara a exposio, vou dividi-la em trs focos: a relao homem/natureza; a caracterizao do tempo; o lugar do indgena nessa construo temporal. A oposio homem/natureza, dentro da tradio crist, estruturada pelas oposies espiritual/secular, alma/corpo. Uma das caractersticas que marcariam o evolucionismo, como destaca Stocking, seria a supresso dessas oposies atravs do entendimento de que o homem e sua histria estariam vinculados s mesmas leis que regem o mundo natural. No por acaso que os conceitos que vm fundar as cincias sociais no final do sculo XVIII e incio do XIX provenham, em boa parte, justamente do campo das cincias naturais e mdicas115. Eram essas cincias que forneciam um quadro de questes e mtodos para se abarcar o social enquanto este no detinha uma autonomia prpria. A formao de Ladislau Netto se inscreve nessa tradio. Suas pesquisas centravam-se no campo da botnica, atravs do qual conquistou reconhecimento e espao no incipiente campo cientfico brasileiro at se tornar diretor do Museu Nacional. Suas pesquisas sobre as trepadeiras, onde discutia com as teses darwinistas, lhe renderam elogios internacionais. Como destacou Gualtieri, nesses estudos Netto se apresentava mais como um lamarkista, defendendo a idia de adaptao dos organismos em relao ao ambiente onde vivem, do que propriamente um darwinista. E como afirma ainda a autora: interessante notar que as posies assumidas por Netto para interpretar os fenmenos biolgicos, dando relevncia ao estmulo ambiental como causa das transformaes dos seres vivos, reapareceram quando ele se manifestou quanto evoluo da humanidade. A mesma lgica que regia a organizao do mundo vegetal e animal, no
no Brasil do sculo XIX, in: S, M. R.; DOMINGUES, H. M. B.; GLICK, T. (orgs). A Recepo do darwinismo no Brasil. Op. Cit. 114 Uso aqui essa noo a partir das sugestes de RAO, Velcheru Narayana; SHULMAN, David; SUBRAHMAYAN, Sanjay. Textures du temps. crire lhistoire en Inde. Paris: Seuil, 2004. 115 HEILBRON, Johan. The Rise of Social Theory. Minneapolis, University of Minessota Press, 1995, pp. 164191.

159 entender de Ladislau Netto, orientava a natureza humana116. De fato, o paralelismo entre natureza e homem constante nos trabalhos de Netto. Da mesma forma que organismos vegetais e animais, o homem estaria sujeito a uma lgica de desenvolvimento caracterizada por uma ascensional e ininterrupta evoluo. Mesmo ao considerar a hiptese da autoctonia dos americanos, em relao qual mantm uma atitude de reserva, Netto recorre analogia com as espcies animais para garantir uma uniformidade da evoluo humana:
E aceita que seja essa doutrina americana, nada mais natural do que admitir, para os nossos autctones mais cultos, a lenta mas ascensional e ininterrupta evoluo, que seguiram seus semelhantes na Europa e na sia. Nada mais natural, digo, porque se a abelha americana, que nunca viu trabalhar a abelha do antigo continente, produz mel e cera, exatamente com os mesmos rgos, utilizando as mesmas substncias, e fazendo sua colmia com os mesmos elementos e com os mesmos alvolos perfeitamente exagonais, em tudo conforme executa o outro hymenptero dalm do Atlntico; e se da mesma sorte a formiga, o pssaro, e todos os animais de cada familia, o mesmo fazem num continente como no outro, a cujo solo entretanto no se prende ramo algum da sua ascendncia, claro que neste fenmeno influem unicamente a homologia dos rgos e a co-relao das faculdades dos individuos semelhantes, e destas afinidades provm a natural tendncia de cada animal para satisfazer, por certos e determinados meios, todas as funces indispensveis subsistencia117.

O uso da analogia com as diversas espcies de animais serve, aqui, para garantir a unidade psquica do homem e sua conseqente evoluo mesmo diante da hiptese de autoctonia dos povos americanos. O homem, assim, entendido em sua singularidade e universalidade. Em todos os lugares onde habita, ele detm as mesmas disposies para garantir sua sobrevivncia. O que muda no so suas faculdades nem a estrutura de seus rgos, mas seu desenvolvimento moral. este desenvolvimento que pode caracterizar os diferentes grupos, dotando-lhes de especificidades. Mas a natureza em si continua nica118. Essa cuidadosa distino operada por Netto retoma a distino de base da antropologia iluminista entre o fsico e o moral, entre a universalidade do homem e sua diversidade de
GUALTIERI, Regina. O evolucionismo na produo cientfica do Museu Nacional do Rio de Janeiro (18761915), Op. Cit., p. 61. 117 REAB, p. IV. 118 Sendo de semelhante natureza e de aptides identicas, em todos os homens primitivos, o orgo da intelligencia, a atteno de cada um desses individuos foi primeiro atrahida pelos menos phenomenos; e as suas idas, comparaes e raciocinios foramsucessivamente esenvolvendo-se na apreciao, a mais e mais justa, da frma dos animais, do aspecto da vegetao, da figura do Sol e da Lua, ou do contorno das nuvens e das montahas. REAB, p. V.
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160 moeurs119 - produto da observao e imitao da natureza. Assim, se ele se inscreve nessa tradio de pensar o social a partir das cincias biolgicas, sua filiao se daria muito mais prxima a Buffon do que a Cuvier. As causas da diversidade de costumes no estariam nas disposies inatas dos diferentes povos, mas em causas externas que atuaram sobre eles: Assim tambm na individuao e na consubstanciao de um povo de um continente causas inmeras foram intervindo sobre a sua psquica evoluo, as quais ou ergueram-no ao mais alto gru de aperfeioamento moral, ou aviltaram-no ao nvel somenos do bruto, ou ainda, contrabalanadas as aes de progredimento e retrogradao, deixaram-no estacionado nesta astenia moral em que ficaram algumas naes do Oriente astenia mil vezes pior que a morte120. A partir de um ncleo comum que define o homem em sua unidade, sua histria o que explica a evoluo, a decadncia e a imobilidade (que, para Netto, seria o pior dos trs estados) dos grupos humanos. Os valores que definem a civilizao no so apangio natural de um tipo ou outro de raa, mas antes conquistas que se processaram no tempo:

que o sentimento do belo absoluto, como o do justo, tal qual o concebemos e o definimos, no poderia ser o apangio natural da inteligncia inculta, seno o atributo moral adquirido, a pouco e pouco ampliado e finalmente aperfeioado pelas numerosas geraes que se lhe adaptaram na rpida evoluo psquica da civilizao; sentimento, na verdade, to esplendidamente desenvolvido na idade urea da Grcia que ainda hoje no se lhe equipara o de que se jactam os pases mais adiantados da Europa Ocidental121.

Logo, se entre a evoluo fsica e a evoluo moral podem ser estabelecidas analogias, Netto procura manter uma distino entre esses dois domnios, afirmando uma complexidade maior e uma especificidade ao segundo. Isso traz, como conseqncia, a necessidade de tambm distinguir entre um tempo da natureza e um tempo do homem. A escolha dos Gregos como modelo de perfeio moral, nesse sentido, no gratuita. Netto distingue, portanto, uma evoluo da natureza e uma evoluo que ele denomina como evoluo social, vinculado ao desenvolvimento intelectual do gnero humano122. Essa evoluo, ele deixa claro, no se deu uniformemente, mas atravs de uma ramificao genealgica. Entre o indivduo do raa indo-germnica (e a noo de raa utilizada por
SMITH, Roger. The language of human nature, in: FOX, Christopher; PORTER, Roy; WOLKLER, Robert (orgs). Inventing human science. Eighteenth-Century Domains. Berkeley, University of California Press, 1995. 120 NETTO, Ladislau. AMN, Vol. 2., p. 149. 121 Idem, p. 110. 122 Idem, p. 113.
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161 Netto deve ser entendida mais como produto da histria do que uma distino original) e um selvagem a distncia seria maior do que entre este ltimo e um macaco. Mas note-se: o que ele procura com essa comparao menos destacar a animalidade do selvagem que enfatizar a perfectibilidade do homem. nesse movimento que vai do fsico ao moral que o homem se define e esse movimento de perfectibilidade moral que marca a separao entre as duas evolues, a da natureza e do homem. Ao mesmo tempo nica, porque vinculada universalidade do homem, e ramificada, de acordo com a contingncia histrica, essa evoluo intelectual pode ser visualizada a partir do estudo dos diferentes povos. Da o papel da antropologia: identificar as etapas da evoluo moral e seu sentido. Com isso, o antroplogo assume como dupla tarefa a responsabilidade de dar a entender o movimento histrico da humanidade e, ao mesmo tempo, indicar as direes a serem seguidas para que esse movimento se realize da melhor forma. Contudo, a descoberta das leis da evoluo no implica em afirmar, para Netto, a pura imanncia do processo histrico. O objetivo das cincias, para o diretor do Museu Nacional, sempre foi o de demonstrar as grandes verdades do Gnesis123. Se h um sentido para as evolues da natureza e do homem, este sentido est inscrito numa ordem divina. Da termos definido, anteriormente, Netto como um lamarckista cristo. A doutrina evolucionista, como afirmou, no vinha se contrapor religio, mas antes submeter-se ao seu irresistvel domnio124. Nessa perspectiva, a construo da temporalidade inscrita em sua escrita etnogrfica guarda traos importantes com uma tradio crist, o que se revela, inclusive, no modo como ele insere os indgenas nessa ordem do tempo. O fenmeno do atavismo se mostrava, para Ladislau Netto, de fundamental importncia no que diz respeito compreenso da possibilidade e do modo de incluso de ndios e negros numa mesma ordem temporal, cujo vetor era constitudo pela civilizao ocidental125. A importncia do estudo do atavismo se daria pela mistura de raas ocorrida no Brasil, j que os produtos dessas misturas manifestariam caractersticas herdadas de diferentes etapas evolutivas. A partir de algumas observaes pessoais, tomadas ao acaso, ele procura identificar determinadas tendncias no processo de mestiamento. Para ele, as manifestaes atvicas se mostrariam mais pronunciadas na puberdade dos indivduos, principalmente com os negros, tendendo a desaparecer com o tempo. Alm disso, ele ainda atribui certos valores a cada mistura, os quais serviam como traos de distino fsicos e

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NETTO, Ladislau. Investigaes sobre o Museu Nacional, Op. Cit., p. 4. REAB, p. 113. 125 Idem, p. 4.

162 morais. Neste artigo, Netto refere-se a elementos de ordem fsica e moral sem marcar muito a separao por ele antes privilegiada. Contudo, de se notar a importncia que ele d educao moral como fator amenizador dos elementos atvicos, ainda que os efeitos dessa educao fossem limitados pelo grau de degradao de cada ramo. De toda forma, fica implcito o papel que deve caber ao influxo da civilizao no gerenciamento desse fenmeno. O reconhecimento do atavismo significava poder fazer um balano das contribuies e dos males que os elementos herdados de negros e ndios trariam civilizao:
Depende ainda de definitiva soluo o reconhecimento a qual das duas raas, preta ou vermelha, devemos ns a maior parte dos hbitos hoje inveterados na populao brasileira e mais particularmente na do Norte do Imperio. Posto que muita cor local de tais hbitos nos tenha sido transmitida pelos autctones, fora confessar que a maior das prticas de nossos sertanejos puramente africana, e em abono verdade confesso que, se muitas delas, se quase todas, direi, so com efeito deplorveis, algumas felizmente adaptaram-se s necessidades de nosso povo, atalhando-lhes os efeitos e dissipando-as inteiramente126.

Como j foi dito, a discusso sobre a incluso das alteridades internas, para Netto, no se dava no campo da poltica, mas era apangio da cincia. Qualquer ao poltica de incluso deveria passar, antes, pelo crivo de um estudo antropolgico que determinasse em que medida essa incluso j se processava no tempo. As possibilidades e os limites de ao sobre esse processo dependia da elucidao de seu sentido. Ao final, o que se mostra nos escritos de Netto uma reformulao do projeto de incluso hierrquica j discutido nos captulos anteriores. Negros e ndios, ao mesmo tempo que fazem parte de uma natureza humana comum, so marcados por traos de distino que denunciam seu atraso e degradao. Semelhantes, mas diferentes, a relao entre civilizados e primitivos implicaria numa relao de tutela127. Uma tutela intermediada no mais pela figura do missionrio, mas do cientista. Conhecer as causas e caractersticas dessa evoluo ramificada apresentava-se como etapa fundamental para a orientao de uma poltica. Ao antroplogo, como cientista mas, tambm de certa forma, como um clrigo, caberia desvendar os desgnios que do o sentido quilo que Netto chamava de epopia da criao. Afinal, a evoluo, longe de seguir as leis cegas darwinistas, obedeceria a uma providncia de ordem divina, garantia da adaptao de cada
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REAB, p. 5. Para uma anlise das prticas de institucionalizao dessa forma de poder, cf. LIMA, Antonio Carlos Souza. Um grende cerco de paz. Poder tutelar, indianidade e formao do Estado no Brasil. Petrpolis: Vozes, 1995.

163 parte ao todo128. As expectativas que Netto mantm na cincia enquanto redentora da humanidade mostra-se, nesse sentido, um exemplo daquilo que Koselleck apontava como uma transferncia das expectativas escatolgicas crists: Ah! cherchons, messieurs, par la culture de lintelligence et llevation morale de notre nature, par ltude la plus srieuse des lois sociologiques, briser les fers qui nous enchanent au rest de la cration!129. Do missionrio ao cientista, da salvao evanglica ao gerenciamento do processo histrico atravs da cincia, vemos a reocupao funcional para questes de base que permaneciam.

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Joo Baptista de Lacerda, como vimos, concentrava sua pesquisa antropolgica no laboratrio, fazendo uso da fisiologia. O estudo de crnios, das fibras musculares, dos tecidos do corpo, constituam a principal base para se ter sobre os indivduos algum juzo positivo, livre de especulaes e questes filantrpicas. Diferentemente de Ladisau Netto, Lacerda procurava sempre enfatizar a no separao entre o fsico e o moral. Como demonstra o resumo do curso de Antropologia por ele ministrado em 1877, era no estudo do corpo e de seu funcionamento que se poderia chegar a alguma explicao sobre o homem e sua ao. O curso constitudo apenas de descries fisiolgicas, do funcionamento digestivo ao sistema nervoso central. Nessas prelees, ele encaminhava a ligao entre o funcionamento dos rgos s manifestaes dalma: Como complemento ao estudo das funes do crebro e para explicar as perturbaes ntimas que se originam de certos sentimentos dalma, ocupouse em uma s preleo com mostrar as influncias que se exercem reciprocamente entre o corao e o crebro130. Haveria, assim, uma continuidade entre o moral e o fsico, sendo que o segundo seria a causa do primeiro. A prioridade do fsico sobre o moral, como destaca Blanckaert a respeito de Broca, torna-se um axioma do fazer antropolgico131. Outro ponto a se destacar o fato de que essa antropologia fsica no toma os conceitos das cincias
Como diz Netto em outro artigo: os vegetais armados deste modo pela natureza para a luta pela vida so os Alexandres e os Napolees do mundo vegetativo; deu-lhes o Criador toda a energia dos conquistadores e no h de cortar-lhes o passo. NETTO, Ladislau, AMN, 1878, 198). 129 NETTO, Ladislau. Aperu sur la thorie dvolution. Confrence faite Buenos Aires dans la sance solennele, celbre en so honneur par la Societ Scientifique Argentine. Rio de Janeiro: Imprimerie du Messager du Brsil, 1883, p. 20. 130 LACERDA, Joao Baptista de. AMN, Vol.2, 167. 131 BLANCKAERT, Claude. Lanthropologie personnifie. Paul Broca et la biologie du genre humain, Op. Cit., p. VIII.
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164 mdicas para os transferir metaforicamente sociedade. Lacerda, como Broca, no procura entender o social como um organismo. Suas abordagens vo em outra direo. no indivduo que a antropologia fsica, como a fisiologia, se detm. No um organicismo, mas um biologismo132. Eles no procuram explicar os grupos sociais fazendo uso de analogias com os rgos e seu funcionamento, mas a partir dos prprios rgos. por isso Lacerda inicia seu curso de Antropologia com uma discusso sobre a funo do aparelho digestivo, pois atravs do funcionamento do corpo que a ao do indivduo na sociedade pode ser explicado. Desde seus primeiros trabalhos, Lacerda sempre defendeu a tese poligenista. Esse ponto de partida apresenta implicaes fundamentais para a representao da historicidade indgena. O seu poligenismo implica, em primeiro lugar, a considerao de tipos puros. O grande objetivo da antropologia, para ele, justamente chegar a uma delimitao completa desses tipos. Retirada dos trabalhos de Broca, essa noo implicava a definio de uma unidade de comparao anatmica que seria estvel no tempo, no sujeita a mudanas. A partir do estudo de indivduos, poder-se-ia estabelecer um padro mdio, cuja unidade serviria, por sua vez, para classificar outros indivduos. Os tipos representariam, ao final, a prpria diviso natural da srie das raas humanas. No corpo dos indivduos, subsumidos a sries e tipos, estariam todos os condicionamentos de sua existncia, inclusive os de sua existncia temporal. Longe de haver qualquer unidade psquica ou mesmo fsica a respeito do homem em sua singularidade, cada corpo conteria em si caractersticas que o distinguiriam dos corpos de outras raas. Tais caractersticas seriam determinadas pela sua capacidade muscular, pelo sistema nervoso central, pelo formato da caixa craniana. Desse modo, Lacerda pode, por exemplo, selecionar uma parte qualquer do crnio e, atravs dela, estabelecer, sem recorrer a qualquer outro expediente, o grau de inteligncia que estaria condenado aquele indivduo, alm do que qualquer educao moral pudesse intervir. o que ele faz nos seus estudos sobre a conformao dos dentes dos americanos: Percorrendo toda coleco de Morton e a nossa, que existe no Museu Nacional, descobre-se logo primeira vista um certo cunho de animalidade impresso na dentadura dos crnios americanos133. O mesmo vale para a

determinao da possibilidade e dos limites que cada tipo apresenta para tornar-se um sujeito histrico, uma vez que no seria possvel ter um mesmo critrio temporal para aplicar aos diferentes tipos. No seriam, portanto, os condicionantes externos que provocariam os processos de degradao, astenia ou desenvolvimento de que falava Ladislau Netto. Ao
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BLANCKAERT, Claude, La nature de la Societ. Op. Cit. p. p. 73. REAB, p. 91.

165 contrrio, o que seriam diferentes etapas evolutivas para o evolucionismo, apresenta-se a essa antropologia fsica como caractersticas intrnsecas aos corpos. Entende-se, assim, porque o topos da decadncia das sociedades indgenas deixa de ter sentido para Lacerda. No apenas a questo da decadncia deixa de ter sentido, como o prprio tempo histrico no pode ser atribudo aos indgenas. Em poucas palavras, o tempo deles no o tempo nosso em um sentido muito mais radical do que o da perspectiva evolucionista. Na viso evolucionista dos antroplogos vitorianos ou, antes ainda, em De Grando, eles so o nosso passado, da a frmula de que viajar no espao uma maneira de voltar no tempo134. Como vimos no caso de Ladislau Netto, graas a uma evoluo ramificada, seria possvel visualizar as diferentes etapas evolutivas em sociedades ainda existentes. Na perspectiva poligenista, por sua vez, essas sociedades pertencem a um tempo outro, quem sabe mesmo um no-tempo. Ao adotar essa perspectiva, muito prxima s consideraes de Broca, Lacerda opera uma recusa da temporalidade, j que o tempo no representaria, para os selvagens, um agente ativo135.

Pelo que toca, porem, raa pr-histrica da Lagoa Santa, cujos restos foram recolhidos por Lund nas cavernas prximas quela localidade, temos atualmente razes para afirmar que os caracteres distintivos no se perderam com o tempo, antes transmitiram-se intactos atravs de uma longa srie de sculos s geres que viveram ainda em nossos tempos e foram talvez coevas do descobrimento da Amrica136.

Mais do que uma recusa da contemporaneidade, como indica Fabian para a naturalizao do tempo na antropologia evolucionista, o que caracteriza esse discurso poligenista, no limite, afirmao de um objeto que apenas - nem foi, nem ser137. Aqui, se a histria um singular, sua coletividade no abarca os selvagens. A histria e a historicidade, pelo menos tal como a tradio ocidental a entende, no lhes dizem respeito. A busca das origens serve apenas para delimitar o tipo puro. Nesse sentido, Lacerda trabalha com uma

DEGRANDO, Joseph-Marie. Introduction aux Mmoires, in COPANS, Jean e JAMIN, Jean. Aux Origines de lanthropologie franaise. Les mmoires de la Societ des observateurs de lhomme en lan VIII, Paris: Jean Michel Place, 1994; para uma anlise dessa relao, HARTOG, Franois. Anciens, Modernes, Sauvages. Op. Cit. 135 Para essa questo, ver BLANCKAERT, Claude. Lanthropologie personifie. Paul Broca et la biologie du genre humain, Op. Cit. 136 AMN, Vol. IV, p. 44. 137 FABIAN, Johannes. Time and the other. Op. Cit., pp. 11-21.

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166 efetiva separao dos saberes138. A antropologia fsica o nico discurso apropriado para tratar desse objeto cuja especificidade no est na ausncia de memria e na falta de traos materiais, mas por estar fora da histria. A antropologia, em suma, no seria um modo de escrita da histria indgena, mas de sua no historicidade. Mas assim como Broca teve dificuldades em manter essa classificao em seus tipos puros, recusando a temporalidade, Lacerda e Peixoto tambm se vem obrigados a distinguir entre um tipo puro original e as misturas entre raas ocasionadas pelo acaso da histria139.

O predomnio da dolicocefalia nesta srie vem trazer mais um argumento valioso para provar que o tipo das raas americanas em geral dolicocfalo; por outro lado a existncia na srie de alguns subdolicocfalos e de um mesaticfalo parece indicar que o tipo primitivo da raa dos Botocudos tende a modificar-se pelo cruzamento com outra raa e tipo diferente, e esta presumo tanto mais bem fundada quanto vemos aparecer na mesma srie crnios mesorrnios e leptorrnios, o que inculca mistura de raas.

A srie morfolgica poligenista acaba por inserir-se, assim, numa dimenso temporal, mas sem ceder ao evolucionismo darwiniano monogenista. A idia de autoctonia e de uma diferenciao natural entre espcies ou tipos humanos (essa indefinio dos termos de classificao comum no poligenismo oitocentista) continua a ser o princpio de base dessa operao etnogrfica. O que implica dizer: o fato de Lacerda e Peixoto falarem em mistura e inserirem uma dimenso temporal na srie morfolgica, no resulta em reconhecer uma historicidade aos indgenas enquanto agentes. Nesse caso, o tempo deles um tempo outro, passvel de ser reconstrudo apenas pela comparao craniomtrica e pela anlise experimental. uma temporalidade imanente ao corpo, aos tecidos, s fibras musculares, que determina seu modo ser e seu vir a ser. Se o futuro, para um branco braquicfalo, um horizonte de expectativas aberto, cuja produtividade est na ao criadora do sujeito (homo faber), para um indivduo do tipo dolicocfalo como o americano, passado, presente e futuro fundem-se num mesmo estado de imobilidade: o que leva-nos a admitir que no decurso de muitos sculos a raa dos Botocudos no tem subido um s grau na escala da intelectualidade; o seu ngulo facial de Cloquet de 67140. Excludos da histria, o nico tempo que lhes

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DUCHET, Michle. Le partage des saviors. Op. Cit., pp. 128-132. BLANCKAERT, Claude. Lanthropologie personifie, Op. Cit, pp. xxi-xxxi. 140 LACERDA, J. B. ; PEIXOTO, R. Contribuies para o estudo anthropologico das raas indigenas do razil, AMN, VOL. 1, p. 74.

167 cabe esse no-tempo ao qual a natureza os condenou: Pela sua pequena capacidade craniana os Botocudos devem ser colocados a par dos Neo-Caledonios e dos Australianos, isto , entre as mais notveis pelo seu grau de inferioridade intelectual. As suas aptides so, com efeito, muito limitadas e difcil faz-los entrar no caminho da civilizao141. A constatao de ordem fsica, de uma disposio inerente ao corpo do selvagem, suficiente para a concluso do fim da catequese, assim como para as discusses sobre a possvel substituio da mo de obra escrava: Trazidos para o meio civilizado, eles continuam a revelar a mesma inaptido. A consequncia importante desse fato seria que o nosso indgena, mesmo civilizado, no poderia produzir a mesma quantidade de trabalho til, no mesmo tempo, que os indivduos de outra raa, especialmente da raa negra142. Restaria como tarefa apenas o arquivamento de amostras e o estudo cientfico dessa populao condenada a desaparecer: Tambem eles esto prestes a extinguir-se como raa, sendo provvel que em meio sculo no se possa encontrar mais o tipo puro143. V-se, assim, que no h qualquer perspectiva, para Lacerda, de uma incluso justificada das alteridades internas em um corpo nico. Caberia, apenas, duas alternativas: ou o desaparecimento, no caso dos indgenas, ou a continuao da coexistncia de partes distintas, como brancos e negros. Estas duas alternativas se justificariam, ao final, pelo processo histrico estar perfeitamente em harmonia com as leis cegas e fatais da natureza144. E este processo, como deixa a entender, s poderia ser produto de uma das partes.

141 142

Idem, 71-72. REAB, p. 7. 143 Idem , p. 2 144 Idem, p. 146.

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Captulo 4 A histria profunda da nao: conjunes e distenses entre o etnogrfico e o histrico (1870-1910)
Tomada a ethnographia como base para os estudos historicos e sociaes, quantos problemas no esto ahi a tentar-nos!. Slvio Romero Prefcio Quadros e Crnicas, de Mello Moraes Filho

4.1 Uma nova tessitura da histria: de qual passado devemos falar?

Nos captulos anteriores, ao tratar dos debates etnogrficos ocorridos no IHGB e no Museu Nacional, iniciei as anlises apontando para a recorrncia nos textos de uma inquietao manifestada no topos da obscura histria indgena. Este topos, para o discurso etnogrfico produzido nas duas instituies, marcava um ponto de partida, uma espcie de vazio a ser preenchido. Sua lgica estava organizada em torno das oposies que configuraram as separaes entre os saberes etnogrfico e historiogrfico. Desse modo, oposies como escrita/oralidade, identidade/alteridade, conscincia/inconscincia vinham demarcar o terreno tanto da histria como da etnografia, cabendo a esta ltima a tarefa de traduzir, mediante operaes especficas, o outro para o mesmo, o esquecimento para a memria, o oral para o escrito. Enquanto que a histria deveria coligir e organizar os documentos da nao, narrando sua formao no seio das civilizaes ocidentais, etnografia restava o estudo dos povos sem histria ou, ainda, dos povos inconscientes de sua histria. No caso especfico dos textos aqui estudados, a recorrncia do topos da obscura histria no IHGB e no Museu Nacional, como foi visto, encobria modos bastante distintos de constituir a operao etnogrfica. A construo do objeto, o modelo de restrio do sujeito enunciante, a instituio dos documentos, os mtodos de anlise, assim como as ordens temporais elaboradas, eram consideravelmente diferentes. Contudo, para alm dessas diferenas, procurei tambm identificar algumas identidades que, acredito, possam estabelecer uma ligao entre o saber etnogrfico do IHGB e do Museu Nacional. Um desses elos de continuidade, essencial para o presente captulo, diz respeito restrio do discurso etnogrfico basicamente s sociedades indgenas. Ainda que se possa encontrar uma ou outra exceo cuja existncia, poderia dizer, vem apenas confirmar a regra bastante clara essa orientao do discurso etnogrfico imperial no trato com as populaes indgenas. Mesmo que

169 a questo o negro, como a chamaria Nina Rodrigues, tivesse se imposto em determinados momentos aos cientistas do Museu Nacional, ela no deixaria de assumir uma posio bastante marginal, e s vezes camuflada, nas investigaes ali realizadas. Esta restrio, por sua vez, torna-se compreensvel diante da caracterstica hierarquizante do projeto da elite do Segundo Reinado em construir o Imprio em suas diferentes ordens o que acarretaria, por sua vez, diferentes discursos para cada parte do todo. Quando se falava, portanto, de obscura histria, era para os indgenas que se estava apontando. Esses letrados e cientistas, trabalhando em instituies estatais que procuravam monopolizar e legitimar os lugares de fala desses saberes, mantiveram-se sintonizados com as questes de ordem poltica que caracterizaram o Segundo Reinado. Ao tratar, agora, dos usos que a etnografia vai receber por parte de autores cuja vinculao s instituies formadas no Imprio era menos orgnica, por assim dizer, e que traziam consigo expectativas divergentes quelas da elite imperial, me parece que um bom modo de apontar para o carter da mudana que vai sofrer o discurso etnogrfico seguir o aparecimento de um outro tpico nos textos desses autores. Este novo lugar comum igualmente vinculava-se ao passado e, assim como o anterior, vinha qualificar o papel do saber etnogrfico. Contudo, diferentemente da obscura histria indgena, o que ele procurava promover no era a separao de saberes, mas sua conjuno. esta conjuno, em seus distintos espectros intelectuais e polticos, que procurarei analisar neste captulo. Jos Verssimo, em seus Estudos Brasileiros, quando ainda se dedicava aos estudos etnogrficos e folclricos, antes, portanto, de desenvolver uma crtica literria pautada no impressionismo francs, vinha saudar a adoo dos estudos folclricos no cenrio intelectual brasileiro1: E esta, sem duvida alguma, a grande importncia dos estudos folclricos: servirem mais do que os fatos da histria para mostrarem-nos a formao e o desenvolvimento de uma nacionalidade nascente2. Desta passagem, vale destacar a curiosa sentena de que o esclarecimento da histria no advm da reconstruo dos fatos dessa mesma histria. Duas questes podem ser colocadas diante dessa afirmao de Verssimo. Primeiro, qual histria estaria ele se referindo; ou, melhor dizendo, a quais princpios narrativos aplicados como modelo de (re)presentao do passado3? Segundo, o que os estudos
Sobre o lugar dos estudos etnogrficos na trajetria de Jos Verssimo, cf. BARBOSA, Joo Alexandre. A Tradio do Impasse. Linguagem crtica e crtica da linguagem em Jos Verssimo. So Paulo: tica, 1974; NETO, Jos Maia Bezerra. Jos Verssimo: pensamento social e etnogrfico da Amaznia, Dados, vol. 43, n. 3, Rio de Janeiro, 1999. 2 VERISSIMO, Jos. Estudos Brazileiros (1877-1885). Par: Tavares Cardoso, 1889, p. 154. Grifos meus. 3 Para um estudo dos princpios da narrativa - onomasiolgico [a questo do sujeito], axiolgico [a questo da grandeza], metodolgico [a questo da verdade], teleolgico [a questo da utilidade], arqueolgico [a questo do
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170 folclricos (e, poderamos acrescentar, etnogrficos) ofereceriam para que esta histria fosse finalmente esclarecida? Talvez uma resposta a estas questes possa ser indicada a partir de uma outra passagem, agora de Silvio Romero, cujos estudos folclricos serviam de referncia para Verssimo. Diz Romero:

Um olhar lanado sobre nossa histria, no sobre a histria escrita por A ou B, por Varnhagen ou Pereira da Silva, velhos declamadores retricos, mas a histria no escrita, a tradio flutuante e indecisa de nossas origens e ulterior desenvolvimento, num olhar ali lanado ir descobrir com alguma dificuldade os primeiros lineamentos de nossas lendas e canes populares4.

A oposio sugerida por Verssimo aqui explicitada. Poderamos traduzi-la, agora, da seguinte maneira: no so os fatos narrados pela historiografia produzida por autores como Varnhagen que permitiriam esclarecer o sentido da histria nacional. claro, contudo, que esse deslocamento apontado entre escrita da histria romntica e passado nacional s funciona na medida em que se transfere um referente alheio quela representao histrica. pelo fato de no estarem falando de um mesmo passado que Verssimo e Romero deslocam a historiografia romntica para o campo da retrica significando esta, a partir de ento, um vazio da linguagem: Fazia-se mais retrica do que psicologia, mais divagaes estticas do que anlises etnolgicas. Estamos fartos de apologias poticas e de cismares romnticos; mais gravidade de pensamento e menos ziguezagues de linguagem5. Assim, do mesmo modo que os letrados do IHGB tiveram que se opor s escritas estrangeiras da histria nacional para impor uma escrita verdadeiramente nacional da sua histria6, uma nova gerao tinha como tarefa desfazer-se do modelo historiogrfico erigido no IHGB entre as dcadas de 1840 e 1870 para fazer valer uma nova conformao (valorativa, epistemolgica, narrativa e poltica) do trabalho historiogrfico. Com essa estratgia de uma transferncia escamoteada, a linguagem historiogrfica romntica esvaziada de sentido. E uma vez essa tradio tornada nada mais que um ziguezague de linguagem, o passado vem tornar-se novamente obscuro, esperando ser esclarecido.

incio] e etiolgico [a questo da causa] confira-se o estudo de MURARI PIRES, Francisco. Mithistria. Sao Paulo: Humanitas, 1999. 4 ROMERO, Slvio. Estudos de Poesia Popular do Brasil, Rio de Janeiro: Vozes, 1977, p. 38 5 Idem, p. 38. 6 CEZAR, Temstocles. Lio sobre a escrita da Histria. Historiografia e nao no Brasil do sculo XIX, Dilogos, Maring, v.8, n.1, 2004, p. 11-30.

171 O que caracteriza esse passado de que falam Slvio Romero e Jos Verssimo, cujo sentido no pode mais ser definido a partir da coleta e organizao de fatos histricos? Como afirma Romero, esse passado vem a ser qualificado como uma tradio flutuante e indecisa. No seria possvel compreend-lo somente com o estabelecimento de datas e eventos, pois estes marcariam apenas uma linha superficial, ou mesmo artificial, encobrindo os movimentos profundos da histria. Ningum melhor que Euclides da Cunha, usando das metforas por ele to apreciadas com a geologia, vinha definir esse novo substrato do discurso histrico: Da mesma forma que o gelogo interpretando a inclinao e a orientao dos estratos truncados de antigas formaes esboa o perfil de uma montanha extinta, o historiador s pode avaliar a altitude daquele homem, que por si nada valeu, considerando a psicologia da sociedade que o criou7. O indivduo, assim como o fato, nada valem em si mesmos, ganhando sentido apenas quando situados em estratos mais profundos, visveis apenas ao olhar treinado8. Portanto, pode-se resumir que esse movimento de definio de um novo modelo de escrita da histria construdo pela oposio entre superficialidade e profundidade, vinculando-se, por sua vez, oposio entre artificialidade e autenticidade9. O passado que essa histria deveria resgatar, e que se torna um lugar comum nos textos do final do oitocentos, qualifica-se assim como um passado profundo da nao. Do mesmo modo que, para Romero, o Brasil teria duas histrias, uma retrica e vazia, e outra ainda a ser feita, profunda e autntica, Euclides da Cunha tambm apontava para essa dicotomia usando o caso peruano: O Peru tem duas histrias fundamentalmente distintas. Uma, a do comum dos livros, teatral e ruidosa, reduz-se ao romance rocambolesco dos marechais instantneos dos pronunciamentos. A outra obscura e fecunda. Desdobra-se no deserto. mais comovente; mais grave; mais ampla10. Ou, ainda, como afirmaria Capistrano de Abreu em seu famoso necrolgio de Varnhagen - no qual ao mesmo tempo em que se faz herdeiro v-se tambm obrigado a matar o pai - a histria puramente documental do Visconde deveria ganhar a profundidade de fatos mais amplos e radicais:

Ele poderia escavar documentos, demonstrar-lhes a autenticidade, solver enigmas, desvendar mistrios, nada deixar que fazer a seus sucessores no terreno dos fatos:
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CUNHA, Euclides. Os Sertes. Edio Crtica organizada por Walnice Nogueira Galvo. So Paulo: Brasiliense, 1985, p. 207. 8 Essa relao entre indivduo e sociedade pode ser bem visualizada no livro de Romero A Histria do Brasil ensinada pela biografia de seus heris. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1903. 9 LIMA, Nsia Trindade. Um serto chamado Brasil: intelectuais e representao geogrfica da identidade nacional. Rio de Janeiro: Revan/IUPERJ/UCAM, 1999. 10 CUNHA, Euclides. Os Brasileiros (1907), in Um Paraso Perdido. Ensaios Amaznicos. Braslia: Senado Federal, 2000, p. 181.

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compreender, porm, tais fatos em suas origens, em sua ligao com fatos mais radicais de que dimanam; generalizar as aes e formular-lhes a teoria; represent-las como conseqncias e demonstraes de duas ou trs leis basilares, no conseguiu, nem consegui-lo-ia11.

Logo, o passado que esses autores estavam buscando reconstruir passava longe de ser um passado factual resgatado atravs da erudio antiquria. O trabalho de erudio, ainda que necessrio, no permitiria chegar queles estratos mais profundos do movimento histrico. A tradio historiogrfica qual se opunham no oferecia, em suma, os instrumentos capazes de perfurar a superfcie da histria. Aqui nos deparamos com a segunda questo levantada a partir da sentena de Verssimo: o que os estudos folclricos e etnolgicos ofereceriam a este respeito? Porque estes autores se voltavam para a etnografia como um remdio linguagem vazia da retrica e da erudio documental? Quais os efeitos, enfim, que o uso da etnografia acarretaria para a re-escrita da histria nacional, para a representao desse passado profundo? Como entender a afirmao de um Nina Rodrigues, por exemplo, de que dos seus estudos etnogrficos se habilitar a receber a justa interpretao da histria ptria abundantes esclarecimentos?12 Mais do que responder a estas questes, o objetivo deste captulo explorar os usos e os efeitos que essa conjuno entre os saberes histrico e etnogrfico produziu no Brasil a partir da dcada de 1870. A nova obscuridade da histria, que vinha marcar um vazio a ser ocupado pelo saber etnogrfico, no se direcionava mais ao passado indgena como havia ocorrido no IHGB e no Museu Nacional , mas antes ao passado da nao. A etnografia, ao tomar para si o objeto cujo domnio identificava o labor historiogrfico (a formao nacional), mas aplicando os seus mtodos, vai promover a construo de uma temporalidade prpria, distinta daquela que vinha sendo trabalhada pela historiografia imperial. E este deslocamento que ir produzir novos efeitos de conhecimento, enraizados, por sua vez, em novas representaes polticas e em novas expectativas intelectuais. O que estes autores estavam promovendo, nas suas distintas configuraes, pode ser comparado ao que ocorreu no cenrio francs da dcada de 1830. Ali, a conjuno entre etnografia e histria tambm foi usada num esforo de resgatar um passado profundo da Frana, no acessvel a partir da pura pesquisa documental de fatos e personagens. Como fica claro pelo dilogo estabelecido entre William Edwards, fundador da Sociedade Etnolgica de
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ABREU, Capistrano de. Necrolgio de Francisco Adolfo de Varnhagen, Visconde de Porto Seguro, in: Ensaios e Estudos, 1 Srie, Rio de Janeiro: Civilizao Brasileira/ INL, 1975, p. 90, 12 RODRIGUES, Nina. Os Africanos no Brasil. Braslia: UNB, 2004, p. 25.

173 Paris, e os irmos Thierry, expoentes da historiografia liberal da gerao de 1830, juntamente com Guizot, a busca pelo sentido histrico da nao francesa deveria se dar numa dimenso plurissecular e, acima de tudo, tratar dos movimentos profundos que constituram a populao francesa13. No uma histria poltica, mas da populao. a essa histria profunda, que Amede Thierry procurou elaborar com sua Histoire des Gaulois, que se dirige Edwards com o objetivo de esclarec-la a partir da etnologia. Em sua carta a Amede Thierry, versando sobre os caracteres fisiolgicos das raas humanas considerados em suas relaes com a histria, Edwards elaborava o mesmo tipo de questo encontrada em Verssimo e Romero: Qua lhistoire dmler avec la psichologie? Quelle lumire peut-elle en emprunter?14. Em suas viagens pela Europa, ele observou os diferentes caracteres raciais constitudos pela populao europia, procurando diferenciar tipos distintos presentes em uma mesma nao. Seu objetivo, como afirmava, era tirar partido de ces observations pour jeter quelque jour sur um point obscur de lhistoire15. Desse modo, o que estava em questo em sua proposta eram as limitaes do mtodo histrico para se chegar a esses estratos mais profundos da histria, deixando lacunas cuja pesquisa documental no poderia preencher16. Da o papel da etnologia e a importncia da observao treinada desse especialista para o esclarecimento da histria ptria:

On peut esprer de voir bientt remplir ces lacunes; car ces peuples sont peu loigns, et touchent presque de toutes parts la France. Encore faut-il les visiter, les tudier avec soin, ne pas se contenter d'une vue superficielle. Nous connaissons mieux nos antipodes que nos voisins, les peuples sauvages que les peuples les plus anciennement polics, ceux qui n'ont aucun document historique que les nations qui ont rpandu sur elles-mmes et sur les autres les lumires de l'histoire. .
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BLANCKAERT, Claude. On the origins of the French Ethnology, in: STOCKING, George. (org). Bones, Bodies, Behavior. Op. Cit.; Conferir tambm: GAUCHET, Marcel. Les Lettres sur lhistoire de France dAugustin Thierry. Lalliance austre du patriotisme et de la science, in: NORA, Pierre (org). Les Lieux de Mmoire. Vol 1. ditions Quarto Gallimard, Paris, 1997. 14 EDWARDS, William, Des caractres physiologiques des races humaines considrs dans leurs raports avec lhistoire. Lettre M. Amede Thierry. Chez Compre Jeune, 1829, p. 2 15 Idem, p. 82. 16 Como ele afirma: Si l'histoire , en s'appuyant sur les documents qui lui sont propres , procdait toujours avec certitude dans la recherche de l'origine et de la filiation des peuples , il serait inutile d'avoir recours d'autres sciences pour l'clairer. Mais elle ne saurait toujours remonter si haut sans risquer souvent de s'garer; et si des preuves nouvelles, puises des sources trangres, ne venaient pas fortifier ses conclusions, elles demeureraient souvent douteuses. Idem, p 97. 17 Idem, p. 114.

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174 Essa breve incurso pelo caso francs, diferenas parte, serve como um termo de comparao para tornar mais claro os efeitos de conhecimento e as implicaes polticas que a conjuno entre saber etnogrfico e saber histrico poderia acarretar. A etnografia, habituada a lidar com documentos de um carter distinto daqueles usados pelo historiador, tambm trabalhava com uma ordem temporal mais larga, detendo-se nos grandes processos migratrios e na caracterizao dos povos seja pelos aspectos fsicos, lingsticos, culturais. No se detendo nos aspetos polticos, em eventos ou personagens pois estes elementos no diziam respeito s populaes selvagens o saber etnogrfico construa uma tessitura da histria particular, de longa durao, annima e, para usar a expresso de Capistrano de Abreu, com fatos mais radicais. Uma vez transposta a linha demarcatria na qual foi constitudo a oralidade, a alteridade, a inconscincia -, e tomando para si o objeto histrico, a nao, o discurso etnogrfico mostrava-se um instrumento rico em possibilidades. Como afirmou Romero, no trecho que serve de epgrafe para o presente captulo: Tomada a ethnographia como base para os estudos historicos e sociaes, quantos problemas no esto ahi a tentar-nos!18. Importante ressaltar, contudo, que a utilizao do discurso etnogrfico para o esclarecimento da histria s ganhava sentido diante de expectativas sociais e opes intelectuais especficas. No caso francs, essa gerao de 1830 buscava, como bem analisou Pierre Rosanvalon, romper tanto com o voluntarismo contratualista como com a sociedade de ordens do Antigo Regime, promovendo, antes, o entendimento da sociedade como um todo orgnico, devendo o poder ser um resumo dessa sociedade19. Le pouvoir ne fait pas la societ, il la trouve, como diria Guizot. A essa viso de uma sociedade democrtica, massificada, correspondia uma arte do governo que devia, ento, conhec-la para geri-la20. Percebe-se, assim, o interesse que haveria em esclarecer a formao histrica da nao francesa como um conjunto etnologicamente constitudo, sendo necessrio, para isso, deter-se nos processos migratrios e nas caractersticas etnolgicas de sua populao. Aqui, como queria Edwards, a etnologia poderia vir esclarecer a histria. Convm, portanto, traar um perfil das expectativas que passaram a orientar a prtica intelectual desses jovens autores que se lanavam no espao letrado a partir da dcada de 1870. A busca por um passado profundo da nao, a necessidade que sentiam de delimitar etnologicamente sua populao em sua formao histrica, estava tambm estritamente
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ROMERO, Slvio. Prefcio a FILHO, Mello Moraes. Quadros e Crnicas . Rio de Janeiro: Garnier, s/d., p. VII. 19 ROSANVALON, Pierre. Le moment Guizot. Paris: Gallimard, 1985. 20 FOUCAULT, Michel. A governamentalidade, Microfsica do Poder, Op. Cit.

175 vinculado a novas expectativas e a novos conceitos polticos. A conjuno dos saberes etnogrfico e histrico por eles produzida, tal como no caso francs, aliava-se a uma nova forma de representar a sociedade e de intervir nela.

4.2 Representao social e conhecimento da sociedade:

Em 3 de Dezembro de 1870, no primeiro nmero do jornal A Repblica, publicado o Manifesto Republicano, assinado por um grupo constitudo basicamente por profissionais liberais, entre mdicos, advogados, jornalistas e engenheiros. Neste manifesto, vinha colocada a seguinte questo: Temos representao nacional?21. O objetivo deste texto era, justamente, trazer o tema da representao social para a esfera pblica, contrapondo o modelo de soberania institudo pela monarquia com uma soberania que deveria ser, segundo estes autores, ao mesmo tempo originada e delegada pela prpria sociedade:
A questo clara e simples. Ou o prncipe, instrumento e rgo das leis providenciais, pela sua s origem e predestinao, deve governar os demais homens, com os predicados essenciais da inviolabilidade, da irresponsabilidade, da hereditariedade sem contraste e sem fiscalizao, porque o seu poder emana da Onipotncia infinitamente justa e infinitamente boa; ou a Divindade nada tem que ver na vida do Estado, que uma comunho a parte e estranha a todo interesse espiritual, e ento a vontade dos governados o nico poder supremo e o supremo arbitro dos governos22.

Diante de tal contraposio, entre um poder que emana da Divindade e um poder emanado do povo, bvia a escolha feita pelos autores, e, nesse sentido, eles so taxativos: No reconhecendo ns outra soberania mais do que a soberania do povo, para ela apelamos. Nenhum outro tribunal pode julgar-nos: nenhuma outra autoridade pode interpor-se entre ela e ns23. Assim, discutir a questo da representao social implicava em dois movimentos correlatos: reestruturar o conceito de soberania e trazer para o cenrio poltico a figura do povo. Como bem afirmou Jos Murilo de Carvalho, tratava-se da implantao de um sistema de governo que se propunha, exatamente, trazer o povo para o proscnio da atividade

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A Repblica, 3 de Dezembro, 1870. Idem. 23 Idem.

176 poltica24. Recorrente em inmeros panfletos, artigos e livros, o uso dessa categoria como instncia ltima de legitimao poltica e intelectual, verdadeiro tribunal plenipotencirio, vem marcar o ltimo quartel do sculo XIX25. Como notou Jean Pierre Faye para o caso francs, a noo de povo introduziu soberania do povo26. A partir da Revoluo Francesa, cuja referncia vai ser usada pelos republicanos mais radicais como Silva Jardim e Lopes Trovo, a associao entre soberania e povo envolve uma ampla remodelao conceitual, atingindo diferentes nveis que vo desde a representao poltica s prticas intelectuais. Tal como constava na Declarao dos Direitos Humanos, proposta por Robespierre Conveno: O povo soberano: o governo sua obra e sua propriedade, os funcionrios pblicos so seus empregados27. Contra as concepes que trabalham com uma noo de soberania transcendente sociedade, a produo desse gigante soberano vem trazer para o interior da prpria sociedade a dinmica de sua (auto)instituio. Como destaca Elias Palti, o problema para pensar a idia de um povo unificado e soberano derivar j no do carter transcendente do poder, seno, precisamente, de sua radical imanncia28. A representao social deve originar-se da vontade do povo e estar sempre submetida a ela. Somando-se a esta emergncia de uma soberania que se exerce sobre si mesma, o conceito de nao igualmente vem desempenhar um papel renovado nessa linguagem poltica. Ainda que o IHGB, desde sua fundao, tenha colocado como problema definir a nao em sua formao histrica, j vimos na seo anterior como esse projeto passou a ser desqualificado por escritores a partir da dcada de 1870, os quais vinham contrapor uma histria retrica e vazia a uma escrita da histria profunda e autntica29. Como destacou ngela Alonso em seu estudo, esses novos liberais, cientificistas, positivistas foram antagonistas do universo mental e das instituies saquarema. Esta gerao construiu uma crtica coletiva s instituies polticas e aos modos de pensar cristalizados como tradio
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CARVALHO, Jos Murilo. Os bestializados. O Rio de Janeiro e a Repblica que no foi. So Paulo: Cia. das Letras, 1998. p. 11. 25 Como afirma o mesmo autor, apesar das concepes distintas envolvendo a noo de povo, este aparecia como um elemento comum: O movimento republicano era constitudo de uma frente ampla de interesses, que abrangia escravocratas e abolicionistas, militares e civis, fazendeiros, estudantes, profissionais liberais, pequenos comerciantes. A idia de povo, de ptria tinha o mrito de unir a todos, evitando embaraos. Idem, p. 48. 26 FAYE, Jean-Pierre. Le gant souverain, Histoire Le Peuple, n. 8, Avril-mai-juin, Paris, 1981, p. 73. 27 ROBESPIERRE, Maximilien. Sobre a Nova Declarao dos Direitos, in: Discursos e Relatrios na Conveno, Rio de Janeiro: EdUERJ/Contraponto, 1999, p. 92 28 PALTI, Elias. El tiempo de la politica, el siglo XIX reconsiderado. Buenos Aires: Silgo Veinituno, 2007, p. 114. 29 Essa contraposio, traduzida numa oposio entre uma escrita da histria monrquica e uma escrita republicana, foi analisada em minha dissertao. TURIN, Rodrigo. Narrar o passado, projetar o futuro. Slvio Romero e a experincia historiogrfica oitocentista. UFRGS, 2005.

177 poltico-intelectual do Segundo Reinado: o liberalismo estamental, o indianismo romntico, o catolicismo hierrquico30. Essa contraposio, movida por uma experincia de

marginalizao poltica e pela busca de novos espaos, trazia como necessidade repensar a nao sob outras bases conceituais. A nao, portanto, deixava de ser algo dado para se tornar, novamente, um problema a ser resolvido. O que interessa destacar aqui a vinculao entre o aparecimento do conceito de soberania nacional, centrado no povo, e a busca pela construo de uma histria nacional pautada em estratos profundos, justamente no anonimato da formao de sua populao. Nesse sentido, a afirmao de Jos Verssimo bastante enftica ao marcar o hiato que existiria no Brasil imperial entre governantes e povo, assim como sua traduo em termos de viso histrica: "A Histria feita com um elemento, o povo; , pois, o povo, e no o governo, quem em definitivo pode radicalmente mudar as condies de uma nao, cujos vcios e defeitos - cumpre insistir - so antes seus que dos que administram e dirigem"31. A tarefa que se colocavam era, assim, a de redefinir a nao atravs da caracterizao do povo, uma vez que seria apenas com a delimitao de um perfil desta entidade soberana que se poderia identificar qual o sentido que uma representao nacional deveria adotar. Com isso, importante ressaltar, esses intelectuais tambm formavam sua prpria identidade como mediadores e intrpretes da vontade popular. Novamente de maneira homloga Frana da dcada de 1830, com autores como Quinet e Michelet, vemos no Brasil a proliferao a partir de ento de verdadeiros profetas intelectuais32. Caberia a eles o poder espiritual de falar em nome do povo e para o povo, identificando seus desgnios. Slvio Romero, em manifesto publicado um ano aps a proclamao da Repblica, desenhava com linhas fortes essa vinculao quase que sacerdotal entre intelectual e povo:

O povo, e, quando dizemos o povo, referimo-nos quela grande parte da nao que os aristocratas de todos os tempos chamaram desdenhosamente o terceiro e o quarto estado, de onde, reparai bem, em sua maioria saiu sempre o nosso glorioso exrcito; os homens de letras, e, quando dizemos os homens de letras, referimo-nos a todos aqueles que, tomando a si os encargos intelectuais da ptria, foram, no curso de quatro

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ALONSO, ngela. Idias em movimento. A gerao 1870 na crise do Brasil-Imprio. So Paulo: Paz e Terra, 2002, p. 170. Ver tambm MATTOS, Ilmar R. Do Imprio Repblica, Estudos Histricos, Rio de Janeiro, vol. 2, n. 4, 1989. 31 VERSSIMO, Jos. A educao nacional. Porto Alegre: Mercado Aberto, 1985, p. 43. 32 CHARLE, Christophe. Les intellectuels en Europe au XIX sicle. Essai dhistoire compare. Paris: Seuil, 2001, p. 146.

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sculos, os fatores mais enrgicos e mais desinteressados de nosso progresso; plebe e pensadores, sempre estados duas foras aqui unidas! A histria o testemunha.
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A valorizao da cultura popular, promovida por escritores como Slvio Romero e Jos Verssimo, se enraizava num movimento mais amplo que envolvia, ao mesmo tempo, a reestruturao dos conceitos polticos, a reformulao da tradio imperial a partir de uma crtica s bases histricas que a sustentaram e, por fim, uma redefinio do papel do intelectual34. Desse modo, como frisa Anne-Marie Thiesse, a cultura popular que assim se encontra promovida como fundamento da cultura nacional no se confunde com a cultura viva do campesinato: trata-se, sobretudo, de um artefato que certamente toma emprestado desta cultura popular alguns elementos, mas que, antes de tudo, destina-se a operar uma renovao da cultura letrada35. O que estava em jogo, mais do que um interesse extico pelo popular, era a instaurao de novas representaes polticas e intelectuais capazes de fazer valer uma nova viso do social. No mesmo movimento atravs do qual o povo era trazido ao cenrio do discurso poltico e intelectual, fazia-se necessrio tambm tom-lo como objeto da cincia. Para que esses intelectuais pudessem falar em nome do povo, eles deveriam conhec-lo. Uma vez que a representao nacional era definida a partir de uma dinmica inerente sociedade, por mecanismos imanentes a ela, as questes a serem respondidas eram: no que consiste a nao? Como definir o povo? Quais os sentidos histricos que o formaram e o dirigem? Em suma, j que o poder no poderia ser uma instncia transcendente sociedade e nem, muito menos, pautar-se numa autoridade do passado nos termos do constitucionalismo histrico, essa mesma sociedade, para alm de sujeito da representao social, deveria tornar-se sujeita a um saber, que dela extrai uma Verdade. Como bem resumiu Palti esse processo: A noo de representao social , em definitivo, inseparvel de um saber, de uma cincia do social; pressupe uma determinada sociologia36. No por acaso que o surgimento e os

ROMERO, Slvio. "Mensagem dos homens de letras do Rio de Janeiro ao governo provisrio da Repblica do Brasil", In: Novos estudos de literatura. Rio de Janeiro: Garnier, 1897, p. 260. 34 Como afirma Roberto Ventura, Slvio Romero "traz cena histrica o escritor combatente, em conflito com o status quo, que no deveria viver, como muitos romnticos, sombra da Coroa, sob o manto do mecenato". VENTURA, Roberto. "Slvio Romero, historiador literrio", In: Revista Tempo Brasileiro, Rio de Janeiro, 145, abr-jun, 2001. p. 58. 35 THIESSE, Anne-Marie. Fices criadoras: as identidades nacionais, Anos 90, n. 15, Porto Alegre, 2001/2002, p. 10. 36 PALTI, Elias. Op. Cit., p. 223.

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179 arrefecimentos das cincias sociais estivessem sempre estreitamente ligados s vicissitudes polticas modernas37. Elas Palti associou essa mudana no conceito de soberania na Amrica Ibrica com o aparecimento do positivismo. Poderamos acrescentar, no entanto, que junto com a noo de representao nacional uma srie de saberes tomaram forma nas ltimas trs dcadas do sculo XIX no Brasil. O interesse pelos estudos folclricos, nas obras de Celso de Magalhes, Slvio Romero, Jos Verssimo, Araripe Jnior, entre outros, talvez seja um dos indcios mais claros ainda mais quando estes trabalhos so contrapostos aos raros estudos anteriores, como o de Jos de Alencar. Tambm a retomada dos estudos etnogrficos sob outras bases, numa ruptura bastante acentuada com a etnografia bblica do IHGB, mostra-se como uma estratgia ao mesmo tempo cientfica e poltica pois que outro saber melhor que este para esclarecer e definir os contornos do gigante soberano? Anne-Marie Thiesse salientou esse aspecto ao afirmar que o procedimento etnogrfico aparece, ento, como uma via de acesso privilegiada para a arqueologia do nacional38. Compreende-se, assim, a proliferao do uso do etnogrfico e sua transposio a outros domnios, como a literatura e a poltica. Uma sentena to comum no final do oitocentos, como a literatura a expresso da sociedade39, tem sua vinculao direta com essa outra: o poder a representao da sociedade. A conjuno entre o etnogrfico e o histrico, tal como procuro aqui investigar, insere-se desse modo num processo mais amplo de secularizao de conceitos fundamentais que davam forma organizao poltica e prpria concepo da sociedade. Entre estas mudanas, essa conjuno permitiu a elaborao de uma tessitura da histria e de uma ordenao do tempo essencialmente modernos. O que estes intelectuais estavam promovendo pode ser bem resumido atravs daquilo que Jaques Rancire denominou de um triplo contrato implcito na confeco de uma potica do saber:

Um contrato cientfico que obriga a descobrir a ordem escondida sob a ordem aparente substituindo as correlaes e os clculos exatos de um processo complexo na escala
No caso francs, por exemplo, desde a Revoluo Francesa Terceira Repblica as cincias sociais tiveram sua fortuna estreitamente ligada s vicissitudes polticas. Cf, a este respeito, HEILBRON, Johan. The rise of social theory. Op. Cit.; CLARK, Terry Nichols. Prophets and Patrons. The French University and the emergence of the social sciences. Cambridge: Harvard University Press, 1973. 38 THIESSE, Anne-Marie. Op. Cit, p. 9. 39 ABREU, Capistrano. A literatura brasileira contempornea (1875), Ensaios e Estudos, 1 Srie, Op. Cit., p. 37. Nesse sentido, a afirmao de Costa Lima a respeito de Romero, de que ele teria trazido a letra social ao estudo da literatura, pode ser estendido a esse processo mais amplo de redefinio de toda uma rede conceitual. LIMA, Luiz Costa. A crtica literria na cultura brasileira do sculo XIX, in: Dispersa Demanda: ensaios sobre literatura e teoria. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1981.
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dos nveis e das grandezas visveis da poltica; um contrato narrativo que comanda a inscrio das estruturas deste espao fechado ou as leis deste processo complexo nas formas legveis de uma histria que comporta comeo e fim, personagens e acontecimentos; um contrato poltico que liga o invisvel da cincia e o legvel da narrao s restries contraditrias da idade das massas: grandes regularidades da lei comum, grande tumultos da democracia, revolues e contra-revolues; segredo escondido das multides e narrao legvel para todos e ensinvel a todos de uma histria comum .
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4.3 Formas e usos do etnogrfico: a etnografia esclarecendo a histria

4.3.1 A quebra com a tradio

No que consistia se opor tradio imperial para esses intelectuais que estavam tomando para si a tarefa de uma renovao da interpretao da histria do Brasil a partir da etnografia? Essa a primeira questo a ser respondida para se compreender os rumos e os efeitos do discurso etnogrfico em sua conjuno com o discurso histrico. Para comear a respond-la, tomarei como guia o livro publicado por Slvio Romero em 1888, intitulado Ethnographia Brazileira, no qual compilava uma srie de artigos e opsculos escritos desde 187641. Nesses textos, Romero promove um verdadeiro desmonte da tradio etnogrfica imperial, atacando os principais elementos que a estruturavam e que foram analisados nos dois primeiros captulos desta tese. Paralelamente anlise da crtica feita pelo escritor sergipano, irei somando outros testemunhos para reforar o tom coletivo, diferenas parte, que caracterizava esse movimento. Logo de incio, Romero procura colocar em questo a prpria cientificidade do que at ento havia sido produzido sobre a etnografia brasileira:

Quem no ter noticia das curiosidades que sobre os indgenas, ainda h poucos anos, de toda a parte nos assaltavam.

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RANCIRE, Jaques. Os nomes da Histria. Um ensaio de potica do saber. Pontes: So Paulo, 1994, p. 1617. 41 ROMERO, Slvio. Ethnographia Brazileira. Rio de Janeiro: Livraria Clssica de Alvez & Cia., 1888.

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A palavra curiosidades, que a fica, no exprime de modo algum que cientificamente notveis descobertas nos tenham sido reveladas; refere-se s abundantes inutilidades que ento apanhavam-nos por todos os lados.42

Vale lembrar como essa palavra era usada pelos prprios letrados do IHGB para justificar um investimento etnogrfico sobre as populaes indgenas. A aparente falta de historicidade do selvagem vinha despertar a curiosidade daqueles homens da boa sociedade imperial, os quais comeavam a se entender, justamente, como sujeitos histricos. No caso de Romero, a palavra curiosidade, devidamente grifada, tem o objetivo claro de contestar a cientificidade do que foi produzido no IHGB, relegando seus trabalhos ao campo da mera retrica e dos devaneios indianistas. Verdadeira petio de princpio, sua crtica vem deslegitimar a agenda etnogrfica do IHGB desqualificando a competncia dos sujeitos que a praticavam; para Romero, a curiosidade era apangio dos diletantes: Ns outros por toda verdade tnhamos as esquisitices dos diletantes, e as inocncias dos Selvagens do Brasil perante a Histria43. Importante frisar que o desmonte da tradio etnogrfica imperial, e no s para Romero, visava incluir aqueles que se colocavam como herdeiros dela, ainda que procurassem revitaliz-la atravs da adoo de mtodos mais modernos. Esse o caso, por exemplo, de Couto de Magalhes44. Em seu opsculo sobre o texto Regio e Raas Selvagens, que Magalhes apresentou ao IHGB e que estaria includo posteriormente em seu livro O Selvagem, Romero afirmava: Sem dvida o seu autor quis encarar o selvagem pelo moderno mtodo e com as novas idias; de certo ainda ele se mostra abalizado para o trabalho que empreendeu. Contudo, ressaltava o crtico: Pela leitura da monografia do Dr. Couto de Magalhes, e somente por ela, ficar-se-ia bem perto do antigo terreno das velhas noes45. A estreita vinculao de Couto de Magalhes com o projeto etnogrfico desenvolvido no IHGB tambm foi notada por outros autores, como Jos Verssimo e Nina Rodrigues. O mdico baiano acusava a pretenso teolgica da interpretao que Magalhes fazia dos contos indgenas, vendo nas lendas do jaboti o pensamento de educar a inteligncia do selvagem por meio de uma fbula ou parbola, o que o levou a emprestar aos pobres ndios sentimentos e raciocnios de povos cultos e at a moral crist de que Couto de Magalhes estava

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Idem, p. 5 Idem, p. 6. 44 Alm de Couto de Magalhes, outros autores como Ladislau Netto e Batista Rodrigues sero alvos de crtica. 45 Idem, p. 8.

182 possudo46. A crtica de Verssimo segue o mesmo tom, colocando em questo os usos que Magalhes fazia da comparao para nobilitar os indgenas: No vemos, como o Sr. Couto de Magalhes, no nosso mito as lies de uma moral elevada e s vezes subtil que no podia ser produto de pocas de to atrasada civilizao. No nos parece justa a comparao que faz o ilustre etnlogo desses produtos literrios (?) do selvagem brasileiro com as fbulas de Esopo e de Fedro47. A insero do ponto de interrogao aps o termo literrio serve para Verssimo causar um estranhamento no leitor, denunciando assim o improprio que seria qualificar aquelas narrativas indgenas como obras literrias. Haveria, para ele, uma diferena essencial entre mito e literatura. Enquanto esta um produto consciente de um autor individual, o mito uma produo annima e inconsciente. Seu interesse nos contos indgenas, portanto, antes de tudo etnogrfico, e no esttico. De todo modo, o que est presente na crtica de ambos a impossibilidade absoluta de comparar os indgenas seja com as sociedades ocidentais crists, seja com a civilizao dos antigos. Os indgenas, enquanto primitivos, s podem ser comparados com outras sociedades no mesmo estgio evolutivo, ou seja, igualmente primitivas48. Assim, o trabalho de aproximao entre civilizado e selvagem efetuado tanto por autores como Gonalves de Magalhes quanto por Couto de Magalhes, atacado por essa gerao. E isso vai se manifestar, igualmente, no ataque aos mtodos e linguagem atravs da qual a realizavam: a tese da decadncia, a genealogia lingstica, a tradio jesuta, seus referentes bblicos, a orientao exclusiva para as populaes indgenas; enfim, os pilares da etnografia do IHGB sero sistematicamente demolidos em nome de outra linguagem e de outro uso da etnografia. A gramaticalizao e a comparao de vocbulos da lngua indgena, como foi visto, eram as chaves de leitura principais da etnografia do IHGB. Atravs dessa economia da traduo, tendo como modelo a gramtica latina, esses autores recuavam o passado indgena at as civilizaes antigas, tentando remontar sua origem. Esse sonho genealgico era denunciado por Romero em seu livro: O avesamento em abusar de certos processos linguisticos como methodo scientifico tem contribuido para o descredito dos estudos

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RODRIGUES, Nina. Africanos no Brasil, Op. Cit., p. 223. VERSSIMO, Jos. Estudos Brasileiros, Vol. 1, p. 17. Da mesma forma Verssimo criticava a idia de que os indgenas teriam um Deus supremo, apontando ainda para as contradies do texto de Magalhes: Entretanto, o Sr. Couto de Magalhes, que de lastimar no tenha tido um verdadeiro princpio de crtica cientfica que o dirigisse na concepo do seu precioso livro, imbudo ainda das idias que todo povo ou raa, no importa em que perodo de seu desenvolvimento moral, h de ter uma religio com um Deus supremo, admite, sem mais provas, para o selvagem brasileiro um princpio superior qualificado com o nome de Tupan, a quem parece que atribuiam maior poder do que os outros, apesar de haver antes, no mesmo perodo, escrito que a idia de um Deus todo poderoso e nico no foi possuda pelo mesmo selvagem. Grifos no original. Idem, p. 39-40. 48 HARTOG, Franois. Anciens, Modernes, Sauvages, Op. Cit.
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183 americanos (...)49. Para ele, ainda que no descartasse a lingstica como mtodo de investigao, afirmava que essa cincia, porm, no s por si um guia seguro para a filiao das raas humanas50. Mesmo autores como Baptista Caetano e Capistrano de Abreu, que concentravam seus esforos etnogrficos nos estudos lingsticos, procuravam se distanciar daquele modelo genealgico. Capistrano, em seus escritos, sempre salientava o ponto de ruptura representado pelo trabalho do etnlogo alemo Karl von den Steinen51. Segundo o historiador cearense, Steinen formulou novas bases para uma classificao mais rigorosa52 e abriu o que no exagero chamar uma nova poca para a nossa etnografia selvagem53. A crtica de Capistrano, na esteira dos novos procedimentos lingsticos que Steinen trouxe das Universidades alems, pautava-se justamente no perigo de estabelecer falsos termos de comparao para a lngua indgena como haviam feito tanto os missionrios coloniais como os letrados do IHGB. A crtica lingstica genealgica leva imediatamente crtica a seu objetivo: o resgate de um passado indgena que os aproximasse dos antigos. J vimos Verssimo desqualificar o uso da comparao feito por Magalhes a respeito dos mitos indgenas e das fbulas antigas. As aproximaes entre o selvagem e os antigos no deixava tambm de ser uma aproximao entre selvagem e civilizado, enquanto se elegia os antigos como modelo da civilizao. Este jogo aproximativo, realizado atravs da reconstruo de um passado indgena, duramente criticado pelos autores agora estudados. Novamente recorrendo Ethnologia Brazileira de Slvio Romero, v-se como ele ataca todas as associaes feitas pelos letrados do IHGB na busca por uma origem dos indgenas entre os povos antigos: Quanto distava a sobriedade do grande Lund da afouteza charlatanesca de uns pretensiosos nossos conhecidos que andam aqui no Brazil a dizer que os Tupys eram os Carios, ou os Normandos, ou os Mongoes, ou os Phenicios, e no sei mais que povos que colonisaram a America!54. Implcitos nessa crtica esto os trabalhos tanto daqueles que buscavam um passado para nobilitar os indgenas e justificar uma ao catequtica, caso de Gonalves Dias, como tambm a investigao de Varnhagen, que, ligando os indgenas com os Crios, visava mostrar como nunca desenvolveram e nem poderiam desenvolver uma
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ROMERO, Slvio. Ethnographia Brazileira. Op. Cit., p. 15. Idem, p. 18. 51 PROTTI, Beatriz. A rede de Capistrano de Abreu (1853-1927): uma anlise historiogrfica do r-txa hu-niku-~i em face da Sul-americanstica dos anos 1890-1929. Tese apresentada ao Programa de Ps-Graduao em Semitica e Lingstica Geral, do Departamento de Lingstica da Faculdade de Filosofia, Letras e Cincias Humanas da Universidade de So Paulo, 2006. 52 ABREU, Capistrano. Ensaios e Estudos, Vol. 1, Op. Cit., p. 155. 53 Idem, Vol. III, 1976, pp. 156-157. 54 ROMERO, Slvio. Ethnologia Brazileira, Op. Cit., p. 88.

184 civilizao. O desmonte dessa tese decadentista se estende tambm ao trabalho de Couto de Magalhes. Apesar de ele trabalhar com as categorias evolucionistas, no deixava de atribuir, como foi visto, um passado mais avanado aos selvagens. Contra a tese de Magalhes de que os indgenas do Brasil j teriam passado pelo perodo pastoril, Romero afirma:

Admira que o anthropologista olvidou-se tanto de uma lei geralmente reconhecida: sempre que as populaes emigram levam consigo as suas indstrias, e entre elas os seus animais domsticos. No viu o nosso autor que, se os selvagens do Brasil houvessem em outra parte passado pelo periodo pastoril, teriam para a sua nova residncia trazido os achados de uma tal evoluo? Pois que! Na viagem ter-se-hiam esquecido de tal adiantamento? No possivel55.

Uma vez que Magalhes adota a perspectiva evolucionista, mantendo, porm, um dilogo com o debate decadentista, Romero no v dificuldades em mostrar as incongruncias e contradies ali presentes. Seja qual for o critrio de classificao adotado, o evolucionismo sempre implica em uma lgica necessria e universal de desenvolvimento56. Da a frase, recorrente nesses autores, de que a natureza no d saltos. Aps apresentar diferentes classificaes, baseadas em atividades como a indstria e a religio, Romero voltava a desconstruir o argumento de Couto de Magalhes: De todas as classificaes o nosso gentio ocupa sempre a primeira fase, segundo os testemunhos mais bem fundados. O Dr. Couto de Magalhes, sem prova bastante, no-lo d no terceiro estgio da terceira classificao( ou seja, agricultor, e no, como deveria ser, caador)57. Do mesmo modo, Celso de Magalhes tambm se mostraria taxativo em seus artigos sobre o folclore brasileiro, ao afirmar que o ndio nunca passou de caador. Ainda hoje, nas poucas tribos e colnias que se encontram no interior do Maranho, e as quais tivemos ocasio de ver, o ndio leva a mesma vida e tem os mesmos costumes que antigamente58. Estas asseres, escritas na dcada de 1870, s ganham seu pleno sentido quando inseridas nesse esforo de desmonte da tradio imperial. A tese decadentista, mesmo quando transportada para uma linguagem evolucionista, estava associada a elementos em relao aos quais esses jovens escritores procuravam a todo custo se distanciar: as referncias bblicas, a tradio jesuta, o indianismo. Para alguns desses autores, ainda, mesmo o velho debate sobre a possibilidade de catequizar os indgenas deveria ser

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Idem, p. 39. STOCKING, George. Race, Culture, Evolution, Op. Cit. 57 ROMERO, Silvio. Ethnographia Brazileira, p. 40. 58 MAGALHES, Celso de. A poesia popular Brasileira, Op. Cit., p. 39.

185 suplantada, uma vez que se enraizava numa concepo equivocada da historicidade e num filantropismo cristo. A clebre querela entre Varnhagen e Lisboa, por exemplo, deixaria de fazer sentido, j que passavam a identificar o problema no mais como um problema poltico ou moral, mas antes como eminentemente cientfico. Diante do desaparecimento dos indgenas, a questo que deveria ser colocada no era mais catequizar ou no catequizar. Como afirmou o mesmo Celso de Magalhes: Mas a questo no esta. Houve a dissoluo, o acabamento quase total da raa. Pois bem, quais as razes que atuaram sobre esse fato?59. Slvio Romero, Nina Rodrigues, Celso de Magalhes, Euclides da Cunha, Jos Verssimo, todos eles se posicionavam de forma parecida, deslocando a questo da filantropia para a cincia. Afinal, a ordem temporal em relao qual trabalhavam no permitia mais esse gnero de questo. O tempo, uma vez concebido como singular, universal e necessrio, no deixava margens a aes missionrias no modelo ainda adotado no IHGB60. Enquanto que, para os letrados do Segundo Reinado, a decadncia indgena poderia ser lida como uma possibilidade de futuro, para esses autores da dcada de 1870 a tese decadentista representava uma contraditio in adjecto, um arcasmo que deixava de ter sentido na medida em que o tempo era naturalizado. Como afirmaria Romero: Desaparecem assim o velho estribilho de uma pretensa grande cultura dos povos do Brasil, que, por imensas catstrofes, retrogradaram, e a enfadonha tese do mongolismo, ces ridicules robinsonades, como disse um sbio europeu61. Essa naturalizao do tempo, cujo teor ser discutido mais adiante, contrapunha-se, portanto, a uma viso profundamente crist presente nos debates etnogrficos do IHGB. Nina Rodrigues, por exemplo, criticava a metafsica espiritualista do Imprio, a qual levava defesa de uma concepo de livre-arbtrio incompatvel com as concluses da antropologia acerca das aes dos homens em seus diferentes condicionamentos evolutivos62. Slvio
Idem, p. 37. Mesmo as propostas positivistas substituam a filantropia crist por uma prtica tutelar, o que implicava num gerenciamento do Estado cujo objetivo era criar e guardar espaos prprios aos indgenas, onde estes pudessem desenvolver-se por si prprios segundo uma lgica imanente ao processo histrico. 61 ROMERO, Silvio. Ethnographia Brazileira, Op. Cit., p. 88. 62 RODRIGUES, Nina. As raas humanas e a responsabilidade penal no Brasil. Salvador: Progresso Editora, 1957, p. 50. Como afirma Roberto Ventura: A existncia de raas no-brancas desmentiria princpios fundamentais ao liberalismo, como o livre-arbtrio e a capacidade de discernimento, sendo obstculo implementao de sistema poltico com bases democrticas e representativas. Como cada raa se encontra em estdios evolutivos distintos, prope que a legislao penal brasileira seja dividida em cdigos distintos, adaptados s condies raciais e climticas de cada uma das regies do pas, abandonando a unidade legal defendida pelo direito clssico. VENTURA, Roberto. Estilo Tropical. Histria cultural e polmicas literras no Brasil. So Paulo: Cia. Das Letras, 2000. Para uma anlise da obra de Nina Rodrigues, cf. CORREA, Mariza. As iluses da liberdade. A escola Nina Rodrigues e a Antropologia no Brasil. Bragana Paulista: Editora So Francisco, 2001; e COSTA, Hilton. Horizontes raciais: a idia de raa no pensamento social brasileiro: 18801920 (Dissertao). Porto Alegre: UFRGS, 2004.
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186 Romero, por sua vez, no poupava esforos em demolir as teses turanianas presentes tanto nos letrados do IHGB como nos escritos de seu desafeto Tefilo Braga. Esta tese, produzida no seio da antropologia prichardiana, matriz atualizada no IHGB, apresentava-se a seus olhos como a traduo etnogrfica de uma concepo bblica da histria do Homem63. Nem mesmo Ladislau Netto, igualmente divulgador do evolucionismo, ficou fora dessa filiao crist de uma viso da histria: ainda o velho e esterilizante esprito de procurar a todo custo paralelos e filiaes no velho mundo para os americanos. Este esquecido resduo da ortodoxia bblica a ficou a perturbar as mais decisivas conquistas do americanismo64. Este monogenismo bblico, atualizado pelo catolicismo hierrquico do Imprio, alimentava-se, como foi visto em captulos anteriores, de uma restaurao da tradio jesuta. Este fato, igualmente, no passou despercebido nesse desmonte da tradio imperial. Slvio Romero, aps lamentar os paralelos e filiaes buscadas por Ladislau Netto, ainda acrescentaria: Inaugurado no sculo XVI pelos jesutas, nunca mais se desapegou das pesquisas da cincia livre
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. Enquanto os letrados do IHGB se voltavam para os

ensinamentos dos primeiros jesutas, ao mesmo tempo em que lhes atribuam um papel histrico positivo na formao nacional, autores como Celso de Magalhes rechaavam toda e qualquer contribuio desses agentes para o desenvolvimento do Brasil: Para ns, foi uma das causas mais fortes que atuaram sobre ns, para o estado de esfacelamento a que hoje chegamos, e no qual nos conservamos, com uma pacincia e uma paz de esprito admirveis66. Por fim, esses escritores acusavam a tradio imperial de concentrar exclusivamente nos indgenas seu investimento etnogrfico. Este exclusivismo iria ser associado, obviamente, ao indianismo que autores como Gonalves de Magalhes e Gonalves Dias alavam como modelo para uma literatura nacional. Aqui, novamente, vai ser explorada a contraposio entre um Brasil real e um ideal, entre um Brasil autntico e outro retrico. O ruidoso silncio dos textos etnogrficos do IHGB a respeito dos negros passa a ser denunciado ao mesmo tempo como uma vergonha para a cincia e como uma hipocrisia social67. Em seus ensaios
ROMERO, Slvio. Ethnographia Brazileira, Op. Cit. Desprezemos de uma vez as theorias fantasiosas e que lembram o velho biblicismo. Tal o turanismo do Sr. Teophilo Braga, prova de seu atrazo em semelhante assunto, p. 91. 64 Idem, p. 140. 65 Idem, ibidem. 66 MAGALHES, Celso de. A poesia popular brasileira, Op. Cit., p. 43. 67 Como afirma, por exemplo, Nina Rodrigues: Diversa a situao se, de pblico, se tem de tratar do indgena, do negro ou do mestio. A inconvenincia, as suscetibilidades pessoais so para logo invocadas como irritantes mordaas. Refolha-se a linguagem, mitigam-se os conceitos, instintiva a tendncia a exagerar a benevolncia dos juzos; nem basta calar a verdade, urge fantasiar dotes, exaltar qualquer qualidades mesmo comuns ou medocres RODRIGUES, Nina. Os africanos no Brasil, Op. Cit., p. 16.
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187 sobre a poesia popular, Romero formularia a este respeito uma sentena destinada a fazer fortuna: uma vergonha para a cincia do Brasil que nada tenhamos consagrado de nossos trabalhos ao estudo das lnguas e das religies africanas (...) ns que temos o material em casa, que temos a frica em nossas cozinhas, como a Amrica em nossas selvas, e a Europa em nossos sales, nada havemos produzido neste sentido! uma desgraa!68. Se para os letrados do IHGB o negro, enquanto escravo, era objeto da economia poltica, para Romero a questo agora traz-lo para o discurso etnogrfico: O negro no s uma mquina econmica; ele antes de tudo, e mau grado sua ignorncia, um objeto de cincia69. Genealogia lingstica, tese decadentista, referncias bblicas, tradio jesuta, indianismo: todos esses elementos formavam, portanto, um conjunto que dava forma ao projeto etnogrfico do IHGB e em relao ao qual esses autores procuravam se desfazer para a impostao de conceitos e mtodos diferenciados. O desmonte da tradio imperial

impunha-se como um requisito necessrio para legitimao de um novo modelo de operao etnogrfica.

4.3.2 Lendo a histria atravs do folclore

Um primeiro movimento de convergncia entre o etnogrfico e o histrico se deu atravs do investimento nos estudos folclricos. Ainda que o termo tenha sido cunhado apenas no sculo XIX, assim como sua sistematizao enquanto cincia especializada, o interesse pelos contos populares remonta ao sculo XVIII70. dessa poca a descoberta e o reconhecimento de um nvel cultural diferente, estranho e alheio (ou, como muitas vezes o definem, curioso)71. A partir de ento, como destaca Revel, qualquer curiosit, qualquer
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ROMERO, Slvio. Estudos sobre a poesia popular do Brasil, Op. Cit., p. 34. Sentena que iria ser retomada por diferentes autores, como Nina Rodrigues e Euclides da Cunha. Este, em seu Os Sertes, afirmava: Os dous outros elementos formadores, aliengenas, no originaram idnticas tentativas. O negro banto, ou cafre, foi at neste ponto nosso eterno desprotegido. Somente nos ltimos tempos um investigador tenaz, Nina Rodrigues, subordinou a uma anlise cuidadosa a sua religiosidade original e interessante. CUNHA, Euclides. Os Sertes, Op. Cit., p. 142. 69 ROMERO, Slvio. Estudos sobre a poesia popular do Brasil, Op. Cit., p. 35. 70 O interesse pelos contos populares j est presente em Perrault, mas inserindo-se numa lgica de sociabilidade de corte. Sua incluso dentro de um programa cientfico tem como momento chave as pesquisas levadas a cabo por Schlzer na Universidade de Gottingen. A partir da, o interesse pelo estudo etnolgico dos povos encerra-se na elaborao de uma histria universal. Cf. STAGL, Justin. August Ludwig Schlzer and the Study of Mankind According to Peoples, in: A History of Curiosity, Op. Cit. A respeito da formulao do termo e da sistematizao de uma agenda de pesquisa contgua etnografia, ver STOCKING, George. Victorian Anthropology, Op. Cit.; Conferir ainda VELAY-VALLANTIN, Christine. Lhistoire des contes. Paris: Fayard, 1992. 71 REVEL, Jacques, Intelectuais e cultura popular, in: A inveno da sociedade, Op. Cit., p. 91.

188 vestgio, qualquer fragmento de prticas populares posto a descoberto, fornecia uma prova de um passado enterrado72. Este estranhamento vinha de uma nova experincia do tempo, na qual o passado, uma vez representado sob o signo da perda, passa a ser ao mesmo tempo lamentado e desejado73. Essa concepo passadista, que afirma o inevitvel desaparecimento dessa expresso popular, motiva, por sua vez, um esforo arquivstico. Da o projeto de salvaguardar uma oralidade em vias de extino. A partir de ento, o conto repertoriado, inventariado, classificado segundo definies e normas de uma prtica intelectual especfica: a dos folcloristas74. No interessa aqui, contudo, refazer o percurso dessa histria, mas apenas salientar como o estudo folclrico, ou ao menos o que viria a ser assim chamado, encerra-se num duplo propsito: uma agenda de pesquisa vinculada ao resgate de expresses autnticas e originais de uma identidade histrica, assim como na formulao de sistemas de representaes polticas. Estes propsitos assumiram tons e aspectos diferenciados de acordo com cada situao, seja na fundao de institutos como a Academia Cltica, na Frana, seja nas pesquisas dos intelectuais alemes desde Herder, atravs das quais buscavam construir uma unidade cultural alem diante de sua fragmentao poltica75. No Brasil, o interesse pelo folclrico tardio. Apenas na segunda metade do sculo XIX inicia-se de forma contundente a coleta de contos, cantos e poesias populares76. somente com autores como Celso de Magalhes, Jos de Alencar, Mello Moraes, Slvio Romero e Jos Verssimo que a pesquisa folclrica passa a ocupar um lugar nos debates letrados oitocentistas. Meu interesse, aqui, no reconstruir a cronologia desse debate, tampouco fazer uma anlise esmiuada de cada autor77, mas apenas interrogar de que modo o surgimento dessas pesquisas folclricas estava vinculado quele processo de construo de uma histria profunda da nao. Mais especificamente, busco compreender como a emergncia desses escritos folclricos contribuiu, atravs de operaes intelectuais particulares, para a definio do povo como objeto de cincia e para a naturalizao do tempo no Brasil nas ltimas dcadas do sculo XIX.

Idem, pp. 91-92. BANN, Stephen. Romanticism and the rise of history. Op. Cit. 74 VELAY-VALLANTIN, Christine. Op. Cit. 75 REVEL, Jacques. Op. Cit., p 94. A respeito dos intelectuais alemes, cf. RINGER, Fritz. O declnio dos mandarins alemes, So Paulo: Edusp, 2000, pp. 91-128. 76 Como lembra Cristina Betioli, antes disso existem alguns raros escritos, como o do padre Miguel do Sacramento Lopes Gama que, em 1834, publicou uma descrio da festa do Bumba-meu-Boi no jornal recifense O Carapuceiro. RIBEIRO, Cristina Betioli. Folclore e Nacionalidade na literatura brasileira do sculo XIX, Tempo, n. 20, vol. 10, jan. 2006, Niteri, p. 157. 77 Para isso, remeto dissertao de RIBEIRO, Cristina Betioli. O norte. Um lugar para a nacionalidade. Dissertao apresentada ao curso de Teoria e Histria literria da Universidade Estadual de Campinas, 2003.
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O clebre sistema literrio desenvolveu-se no Brasil de 1820 a 1870, e nem uma s palavra proferiu sobre as nossas canes populares78. Assim Slvio Romero se referia ao romantismo em seus estudos sobre a poesia popular. Ao traar uma memria da disciplina, os poucos autores que so inseridos nesse espao fundacional so Celso de Magalhes, Jos de Alencar, Couto de Magalhes, Jos de Antonio Freitas, Tefilo Braga, Carlos Koseritz79. Romero ocupa a maior parte de seus estudos discutindo as contribuies e os equvocos de cada um, destacando, entre outras coisas, as concepes atrasadas de Couto de Magalhes e Jos de Alencar, porque vinculadas ao indianismo romntico, e as contribuies modernas de Celso de Magalhes e Carlos Koseritz80. Em um movimento harmnico com a redefinio do papel que esses intelectuais queriam para si prprios como agentes legitimados a delimitar e enunciar os novos conceitos que deveriam orientar os rumos da nao, usavam o discurso folclrico como um canal privilegiado para trazer o conceito de povo para o cenrio cientfico e poltico. Isso implicava em nobilitar, de certa forma, o popular, contrapondo-se a uma tradio aristocrata que seria a expresso daquela ciso j mencionada entre elite e povo: Tais se afiguram por certo a todos aqueles que pensam que numa nao as classes propriamente populares nada so, e que tudo o que de grande esse povo tem, se acha concentrado na classe dos letrados, donde saem os pretensiosos do governo e os pretensiosos da imprensa, os chamados estadistas e os chamados escritores81. O que estes autores estavam realizando, de diferentes formas, era re-equacionar categorias como elite/vulgo e popular/letrado, com o objetivo, ao mesmo tempo, de alar o popular como objeto digno da cincia e, mais ainda, como objeto central para uma cincia do social , assim como se
ROMERO, Slvio. Estudos sobre a poesia popular do Brasil, Op. Cit., 54. Idem, pp. 54-55. Nomes que, como destaca Cludia Neiva de Matos, no haveria grande coisa a acrescentar lista. MATOS, Cludia Neiva de. A poesia popular na Repblica das Letras. Slvio Romero Folclorista. Rio de Janeiro: UFRJ/FUNARTE, 1994, p. 41 80 Cludia de Neiva Matos resume bem a posio de Romero em relao a cada um desses autores: A Celso de Magalhes liga-o a filiao perspectiva evolucionista; mas critica nele o ter negado a influncia indgena e depreciado o elemento negro. Em Couto de Magalhes, elogia o trabalho de coleta mas censura a falta de mtodo e o apego ao indianismo. Jos Antnio de Freitas pecaria gravemente pela insistncia na tese do turanismo e pelo realce exagerado do fator portugus. Slvio aplaude o antilusitanismo de Alencar mas critica-lhe os desvios retricos. Finalmente, concorda em larga escala com Araripe Jnior e Carlos de Koseritz, o que pode ter alguma relao com o fato de estes dois escritores lhe haverem feito a deferncia de lhe enderearem parte de seus prprios estudos. MATOS, Cludia de Neiva. Op. Cit., p. 47. Vale notar como os elementos criticados em autores como Alencar e Magalhes esto ligados aos tpicos que configuravam a crtica tradio imperial, como o turanismo e os desvios retricos. A simpatia de Romero por Araripe Jnior e Carlos de Koseritz, alm do motivo apontado pela autora, me parece que tambm pode ser encontrado justamente na convergncia entre eles de um uso do folclore como mecanismo cientfico moderno de delimitar o gigante soberano perspectiva no presente nem em Alencar, nem em Magalhes, vinculados, como estavam, tradio imperial. 81 ROMERO, Silvio. Estudos sobre a poesia popular do Brasil, Op. Cit., p. 188. Grifos no original.
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190 colocar como verdadeiros porta-vozes desse mesmo objeto. Os estudos folclricos estavam inseridos no apenas como documento de identidade, mas tambm como um instrumento de representao poltica. Como j foi frisado, a emergncia de um debate sobre a representao social requeria, necessariamente, uma cincia do social. Este , justamente, o tom que os estudos folclricos vo assumir, constituir-se como uma cincia que tem por seu objeto nada menos que a fonte da soberania poltica. Para analisar o uso desse discurso folclrico, me centrarei em trs elementos: a instituio do documento, a forma de coleta e, por fim, o trabalho de interpretao. Antes mesmo de definir no que consiste esta entidade, estes intelectuais vm atribuir ao povo o estatuto de fonte, da qual emana a essncia a ser procurada. Jos de Alencar iniciava seu texto afirmando que nas trovas populares que sente-se mais viva a ingnua alma de uma nao82. Mello Moraes Filho, por sua vez, em seu estudo sobre as festas e tradies populares, salientava: na intimidade desse povo inculto, na convivncia direta com essa gente que conserva os seus usos adequados, que melhor se pode estudar a nossa ndole, o nosso carter nacional, deturpado nos grandes centros por uma pretendida e extempornea civilizao que tudo nos leva, desde as noites sem lgrimas at os dias sem combate83. Por fim, Celso de Magalhes, de forma mais taxativa: A poesia popular um ato srio e fatal, que se origina do vasto complexo de circunstncias, que presidem civilizao e ao desenvolvimento de um povo84. As trs citaes acima tm em comum o fato de privilegiarem a poesia popular como documento, um material capaz de representar uma verdade autntica no acessvel por outros meios. Contudo, elas tambm j mostram uma divergncia na concepo e no trato com esse mesmo material. Para Alencar e Mello Moraes, a poesia popular um documento de ingenuidade e de pureza, caractersticas que ganham sentido na contraposio com algo que j no mais. Assim, como se expressa Mello Moraes, a civilizao deturpada e extempornea dos grandes centros que faz com que esse letrado olhe para essa produo iletrada com um ar saudoso e melanclico. Aqui, o tom aquele verdadeiramente passadista, de lamentao de uma poca perdida85. Com Celso de Magalhes percebe-se algo distinto. No h ali qualquer tom de sentimentalismo. Ainda que considere o material igualmente
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ALENCAR, Jos. O nosso cancioneiro (1874), in: COUTINHO, Afrnio (org). Caminhos do pensamento crtico, Vol. 1. Rio de Janeiro: Pallas, 1972, p. 168. 83 FILHO, Mello Moraes. Festas e Tradies populares do Brasil. Rio de Janeiro: Tecnoprint, s/d., p. 27. 84 MAGALHES, Celso de. Op. Cit., p. 69. 85 Das nossas festas ningum mais se lembra; os laos de famlia quase no existem; do dia de Ano-Bom, de grandioso e expansivo que era, nem nos restam vestgios!. FILHO, Mello Moraes. Festas e Tradies populares, Op. Cit., p. 49.

191 como um produto sob o signo da alocronia, ele no toma a poesia popular para lamentar uma perda, seno para esclarecer o futuro. Como ato srio e fatal, essa produo iletrada est determinada por um complexo de circunstncias do qual ela , ao mesmo tempo, um fator. ndice e fator do processo civilizacional, a poesia popular alada ao estatuto de documento essencial para a reconstruo dessa histria profunda. A relao que esses intelectuais mantm com a poesia popular revela, ainda, uma ambigidade intrnseca. Por um lado, h um estranhamento, um distanciamento; por outro, no deixam de estabelecer com o documento uma relao de identidade, de reconhecimento. Esta identidade constitutiva da atividade do folclorista; afinal, aquilo que coletam diz respeito, de alguma forma, prpria construo de si. Mello Moraes, em seu prefcio segunda edio da coleo de contos populares de Romero, apontava o lugar onde o popular e a identidade do folclorista se encontravam: O livro de Sylvio Romero, portanto, singular em nossas lettras, retrata com exatido as nossas noites da infncia nas provncias do norte, outrora, quando em nossos lares a famlia se reunia descuidosa, e nos sertes os arvoredos bamboleavam as ramas, orchestra dos ventos, como uma dansa area de gigantes86. No mesmo tom saudosista, Mello Moraes reconhece-se naqueles textos ao relembrar sua infncia, quando ainda experimentava a poesia popular em sua vivacidade. Agora, no entanto, s poderia reviv-la na memria. Da a importncia que reconhece no livro de Romero: servir como instrumento de acesso a um passado que no mais, de uma pureza corroda pelo tempo. Esta vinculao de identidade do folclorista com a poesia popular, centrada na infncia, recorrente nesses textos do final do sculo XIX. Slvio Romero, por exemplo, sempre se referia sua infncia em Lagarto, Sergipe, quando teve os primeiros contatos com as tradies populares atravs das amas de leite, das mes-pretas87. Mas tomarei a seguinte citao de Jos Verssimo para estabelecer mais uma distino, agora no modo como essa relao de identidade passa a ser experimentada por esses autores que trabalhavam com uma grade conceitual de um tempo evolutivo e naturalizado:
Mal sabamos ns que quando crianas ouvamos das nossas amas, das mes pretas, como lhes chamvamos, ao sero, ao nos acalentarem, essas histrias que tanto nos divertiam, conhecidas por histria da carocha, mal sabamos ns, digo, que ouvamos as primeiras manifestaes da arte primitiva, de uma esttica ante-histrica, e mais, as
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FILHO, Mello Moraes. Histrias e Costumes. Rio de Janeiro: H. Garnier, s/d., p. 125. DEIAB, Rafaela de Andrade. A me-preta na literatura brasileira: a ambigidade como construo social (1880-1950). Dissertao de mestrado apresentada ao departamento de Antropologia da USP, 2006.

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tradies teolgicas das velhas raas, que, como acontece com o conto da gata borralheira, nos vinham desde os mais remotos tempos do bero da histria da Humanidade, a ndia, atravessando inmeras geraes j mortas, at ns crianas perdidas na querida e meiga obscuridade do lar domstico88.

A ligao entre infncia e poesia popular, aqui, deixa de ser operada atravs de uma rememorao puramente subjetiva e saudosista. O reconhecimento produzido a partir do contato com o material folclrico de outra ordem. Verssimo usa a experincia pessoal, marcada pelo uso do pronome ns, para estabelecer uma equivalncia entre a infncia individual e a infncia da humanidade. As imagens e histrias com as quais cresceu na obscuridade do lar domstico no diziam respeito apenas sua condio infantil, mas principalmente condio infantil do produto e de seus produtores, em relao aos quais se distanciou na medida em que cresceu. Assim, a poesia popular no mais apenas um documento da nossa infncia, mas tambm dos mais remotos tempos do bero de Humanidade. A construo da identidade e do distanciamento, aqui, se d num plano eminentemente temporal, mas de um tempo universal e natural, constitudo por estgios necessrios de desenvolvimento dos quais as mes pretas e suas histrias seriam um documento. Se a identidade se estabelece atravs do reconhecimento de uma pertena, pois se trata de um mesmo processo temporal, as posies distintas nesse processo, quando adulto/civilizado, garantem o distanciamento89. A poesia popular passa, ento, a ser considerada primitiva. Esta condio da poesia popular enquanto documento faz com que sua coleta seja mais recomendvel atravs de sujeitos especficos: as mulheres e as crianas. Se a poesia popular documento de um pensamento infantil, porque primitivo, nada mais natural que colher das prprias crianas as manifestaes populares: Parece-nos este o verdadeiro meio de obter de forma definitiva, simultaneamente tnica e artstica do conto: faz-los redigir por crianas, verdadeiro ponto de transio entre a alma popular e a inteligncia culta90. Diferentemente de um Michelet, por exemplo, para quem a relao entre povo e criana se dava no plano da

VERISSIMO, Jos. Estudos Brasileiros, Op. Cit., p. 15. FABIAN, Johannes. Time and the Other. Op. Cit. 90 BRAGA, Tefilo. Cancioneiro de msicas populares, Porto: Typographia Occidental, 1893, p. VIII. Do mesmo modo afirma Romero: Esses versinhos e brinquedos so os restos de antigas crenas e prticas, que, sendo abandonadas pelas classes mais cultas do povo, acharam seu ltimo asilo nalma fetichista e divina das crianas ROMERO, Slvio. Estudos sobre a poesia popular, Op. Cit., p. 188.
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193 simplicidade/autenticidade91, para esses autores a criana era quase um representante momentneo dos perodos animistas e fetichistas da humanidade. A concepo evolucionista da unidade psquica do homem alimentava essa transferncia do nvel individual ao histrico, do primitivo ao civilizado. Alm dessa homologia, as mulheres tambm assumem nesse esquema um lugar importante de transmisso, e mesmo de autoria: As mulheres no so somente o principal arquivo das tradies orais; so tambm as autoras de muitas destas tradies92. Crianas e mulheres so posicionadas nesse espao de alteridade, onde o maravilhoso, o mtico, a superstio, ainda no foram domesticadas pela razo. Mas como proceder na coleta desse material? Assim como as concepes distintas do documento levam a conceitos distintos de tempo, o modo de coleta indica igualmente usos diferentes do material folclrico. Jos de Alencar faz uma interessante comparao em seu texto entre o coletor de poesia popular e o restaurador: Na apurao das cantigas populares, penso eu que se deve proceder de modo idntico restaurao dos antigos papis93. A idia de uma corrupo da pureza original, causada pelo tempo, faz com que o escritor tente restaurar o material, devolvendo-lhe sua cor local. Aquilo que colhido num determinado presente, atravs do relato oral, vem coberto de poeira e manchas que denunciariam seu estado alterado. esta alterao que convm remover, tal como se devolvesse a um quadro antigo suas cores originais: Onde o texto est completo somente espo-lo e raspar alguma crosta que porventura lhe embote a cor ou desfigure o desenho. Se aparecem solues de continuidade provenientes de escaras de tinta que se despegou da tela preciso suprir a lacuna, mas com a condio de restabelecer o trao primitivo94. Jos de Alencar segue o que j Garret havia feito com as poesias populares portuguesas95. Tambm para o escritor portugus fazia-se necessrio corrigir, restaurar, lapidar o material folclrico. Aqui, as produes populares deveriam servir como modelo de linguagem literria e ajustar-se, portanto, aos cdigos letrados. contra essa posio que se colocam autores como Slvio Romero e Celso de Magalhes. Para esses autores, o maior defeito em que pode incorrer um coletor de poesia popular pretender corrigi-la, refaz-la96. A cientificidade da pesquisa folclrica requeria, agora, o rigor do mtodo. O relato oral, enquanto documento, tinha que valer por si mesmo, sem qualquer interferncia do coletor:
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Segundo Michelet: Os simples so, em geral, aqueles que dividem pouco o pensamento, que, no sendo dotados dos mecanismos de anlise e abstrao, vem as coisas de forma una, inteira, concreta, tal como a vida lhes apresenta. MICHELET, Jules. O Povo. So Paulo: Martins Fontes, 1988, p. 133. 92 Idem, p. 185. 93 ALENCAR, Jos de. Op. Cit., p. 179. 94 ALENCAR, Jos. Op. Cit., p. 169. 95 GARRET, Almeida. Romanceiro e Cancioneiro Geral, vol. I. Lisboa, 1843. 96 ROMERO, Slvio. Estudos sobre a poesia popular, Op. Cit., p. 129.

194 Declaramos ainda mais que todos os romances, xcaras, cantigas, etc., que se citem aqui, ou que se tenham de publicar, foram bebidas na tradio oral do povo, e apresentam-se estremes de composio ou correo nossas, no tm arrebiques nem postios, os quais destruram a sua originalidade97. De modo inverso a Alencar, a originalidade do relato no se encontra num passado qualquer, o qual deveria ser restaurado pelo coletor, mas antes na sua prpria enunciao. O que interessa ao folclorista agora a forma presente em que o material narrado. Isso no quer dizer que deixa de haver uma busca pelo passado. O que qualifica essa mudana de mtodo na coleta da poesia popular justamente o passado que agora se pretende reconstruir. Enquanto Alencar buscava limpar as variaes que o material teria sofrido com o tempo, Celso de Magalhes e Slvio Romero entendem que apenas atravs dessas variaes que poderiam definir a originalidade do material e, mais importante, o processo histrico que o condicionou:

Quem o autorizou a reunir, amalgamar, a seu bel-prazer, as suas cinco verses de provncias diferentes? No sabia Alencar que o interesse da poesia popular todo etnogrfico, e que para esse fim o mais aprecivel so as variantes de um mesmo canto, porque so elas que nos habilitam a conhecer como cada populao modificou, adaptou ao seu meio a lio primitiva?98.

Entramos aqui na etapa de interpretao do documento. Uma vez o material recolhido, a oralidade transposta para a escrita tornando-se documento, faz-se necessrio o trabalho de traduo operado pela palavra racional que encontra nos mitos populares seu campo de atuao. voz estranha e alucinada que brota da mitologia, novamente inscrita na linguagem, responde a interpretao que se escreve ao modo de uma cincia99. De fato, como destaca Detienne, o mito vai o ser o domnio do escandaloso, do chocante, do embaraador, do maravilhoso. justamente nessa extravagncia de uma imaginao popular, primitiva, que se concentra o trabalho de leitura, de comparao, de reduo, enfim, de domesticao. Nossas populaes tm, como natural, ainda uma larga porta aberta para o

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MAGALHES, Celso de. A poesia popular brasileira, Op. Cit., p. 32. ROMERO, Slvio. Estudos de poesia popular, Op. Cit., p. 129. 99 DETIENNE, Marcel. A Inveno da Mitologia, Rio de Janeiro: Jos Olympio, 1992, p. 27.

195 maravilhoso, diz Romero100. Celso de Magalhes encontrava sempre um mesmo princpio nas poesias populares: existe sempre o mesmo fundo maravilhoso ou cavalheiresco101. Este trabalho de traduo pode assumir diferentes modos. Pode-se, por exemplo, encontrar nele o pitoresco, tal como o faz Mello Moraes: Nos costumes nativos de nossas populaes campesinas h uma face to amena e pitoresca, que verdadeiramente delicia o artista que se ocupa desses assuntos102. Aqui o estranhamento reduzido ao extico, cor local prpria a esse espao idlico em relao ao qual o letrado vivencia uma perda imaginria. H, ainda, a leitura moral dos contos, j criticada por Verssimo e Nina Rodrigues: Como sabido, o jabuti no tem fora; a custa de pacincia ele vence e consegue matar a anta na primeira lenda; a mxima pois que o bardo selvagem quis com ela plantar em seu povo foi esta: a constncia vale mais que a fora103. Nesta chave, o conto passa a ser uma alegoria que remete a valores nobres, nobilitando, no mesmo movimento, o selvagem. Inclusive, essa leitura aplica um modelo retirado dos altos cdigos letrados para tecer uma comparao cujo efeito no era em absoluto mitificar a literatura, mas sim literarizar o conto indgena: H nisto uma fora de verossimilhana cuja beleza no seria excedida por Lafontaine [sic]104. Seguindo o mesmo tipo de comparao, Alencar iria associar o material folclrico por ele levantado com a poesia idlica dos antigos, como Virglio. Dentro de um gnero pastoril, ele identifica um cunho pico representado pela luta do homem com a natureza105. Mas Alencar tambm aponta em outra direo: a poesia popular poderia igualmente servir como meio de leitura do processo histrico nacional. Esse processo se caracterizaria pelo que chamou de abrasileiramento da lngua106. A coleta dos contos populares e sua restaurao pelo literato contribuiriam, desse modo, como um elemento ativo, abrasileirando o instrumento das idias e formando a identidade nacional107. Assim, graas aos contos populares, onde reside a alma ingnua da nao, o folclorista pode identificar a constituio da identidade nacional seguindo a singularizao de sua lngua. Essa leitura metonmica, onde a parte vale pelo todo, abre a Alencar uma viso panormica da histria, permitindo identificar seus desgnios: a regenerao da tradio ocidental, crist, no Novo
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ROMERO, Slvio. Estudos de poesia popular, Op. Cit., p. 51. MAGALHES, Celso de. A poesia popular brasileira, Op. Cit., p. 47. 102 FILHO, Mello Moraes. Festa e tradio populares, Op. Cit., p. 27. 103 MAGALHES, J. V. Couto de. O Selvagem, Op. Cit., p. 156. 104 Idem, p. 157. 105 VERSSIMO, Jos. Estudos Brazileiros, Op. Cit., p. 169. Ele ainda tece uma comparao com a poesia homrica: H no poemeto, como viu, traos da simplicidade homrica, ou antes do estilo sbrio e enrgico do povo, em que foi vazada a poesia do grande pico, p. 185. 106 LIMA, Ivana Stolze. Cores, Marcas e Falas: sentidos da mestiagem no Imprio do Brasil. Rio de Janeiro: Arquivo Nacional, 2003, cap. 3. 107 ALENCAR, Jos. Op. Cit., p. 172.

196 Mundo: a Providncia nos seus impenetrveis desgnios havia preparado a Amrica para a regenerao das raas exaustas do Velho Mundo108. O que garante essa leitura metonmica da histria nacional como regenerao do Velho Mundo, para Alencar, a lgica providencial que a rege. Afinal, para ele, as lnguas, como todo o instrumento da atividade humana, obedecem lei providencial do progresso; no podem parar definitivamente109. Adequando e atualizando, talvez, a herana secular do tpico do translatio imperii, Alencar desenha uma perspectiva com tons messinicos para o futuro nacional. Novamente contra essa interpretao do escritor romntico, se colocam os autores que procuravam retirar da leitura histrica seus aspectos moralizantes e providenciais. Celso de Magalhes acusava duramente todos esses professores pedantes e papa-missas, querendo provar a verdade da legenda admica, do ideal messinico e de outras mil baboseiras balofas e malficas (...). Para ele, a matria foi, e h de ser o grande princpio de vida e atividade, o fato sensvel e papvel no qual a cincia h de apoiar-se para caminhar110. Esse materialismo radical de Magalhes vinha de encontro a toda e qualquer concepo espiritualista, pautada nos dualismos corpo/alma, natureza/costumes. A antropologia, da qual o folclore era um ramo, deveria substituir todas as consideraes metafsicas que definiam o homem e sua histria por dados concretos, empricos, naturais111. Para tanto, uma reformulao conceitual se fazia necessria. O interesse nos fatores climticos e raciais mostrava-se justamente como uma tentativa de conceber uma lgica imanente histria, desprovida de qualquer elemento transcendente: Para ns, em literatura como em poltica, a questo de raa de grande importncia, e ela o princpio fundamental, a origem de toda a histria literria de um povo, o critrio que deve presidir ao estudo dessa mesma histria. Pensando assim, j se v que, estabelecidos os princpios, as conseqncias e as concluses devem ser fatais 112. Inicia-se, ento, todo um esforo em estabelecer tais critrios imanentes histria. Querelas sero travadas para definir quais destes fatores seriam mais determinantes. Celso de Magalhes, Araripe Jnior, Slvio Romero, Euclides da Cunha, Nina Rodrigues, Capistrano
Idem, p. 169. Sobre a presena dos tropos lingsticos na escrita histrica, cf. WHITE, Hayden. Metahistria. A imaginao histrica do sculo XIX, Op. Cit. 109 Idem, p. 187. 110 MAGALHES, Celso de. Op. Cit., p. 36. 111 Essa contraposio entre antropologia e religio assumiu contornos radicais igualmente na Frana da terceira Repblica, com autores como Broca e, principalmente, os agentes que se fizeram herdeiros dele. Essas referncias so usadas pelos intelectuais brasileiros, mas, mais importante, convm salientar a homologia entre esses sujeitos que defendiam um regime republicano laico, cientfico, livre de todas as amarras herdadas de um antigo regime. Cf., HECHT, Jennifer Michael. The end of the soul. Scientific modernity, atheism, and anthropology in France. New York: Columbia University Press, 2003. 112 MAGALHES, Celso de. Op. Cit., p. 35.
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197 de Abreu, cada um indicava seja o clima, a raa, a geografia ou, ainda, uma equao entre todos, como os elementos ativos do processo histrico. A escolha de cada princpio, como colocou Magalhes, determinava as conseqncias e as concluses, mas o que importava, ao final, era retirar da exegese histrica qualquer elemento transcendente mundanidade da evoluo. atravs destes critrios que estes autores realizavam suas leituras do material folclrico. Tal operao consistia em dois pilares principais: estabelecer uma unidade coerente para a poesia popular e, paralelamente, determinar-lhes os elementos de desvio, de modificao, de adequao. Seria nestes resduos de diferena provocados pelo tempo que estaria a especificidade do povo. O estabelecimento de um sistema cultural coerente implicava, ao mesmo tempo, em determinar-lhe a singularidade. Como foi visto, diferentemente de Alencar, interessava a esses autores visualizar nos relatos populares coletados as marcas de adequao. Mas no que consistiriam elas e como identific-las? Para Alencar as deturpaes deveriam ser elididas, sendo necessrio para tanto uma verdadeira capacidade imaginativa e intuitiva do coletor: Este trao primitivo e original, como conhec-lo quem no tenha o dom de o adivinhar? A est justamente a dificuldade; sem uma rigorosa intuio do pensamento, que produziu o poema popular, e do centro em que ele vivia, no possvel conseguir essa ressurreio literria113. Novamente, a originalidade aqui alocada em um tempo e espao outros, os quais convm ressuscitar graas a uma disposio emptica do folclorista. Uma vez esse presente anulado e o passado ressuscitado pelo escritor, seria possvel, enfim, identificar a especificidade na qual o nacional deveria se espelhar114. Estaria no passado a fonte e o sentido da regenerao buscada por Alencar. Ora, justamente uma inverso dessa ordem argumentativa que fazem autores como Romero, Verssimo e Magalhes. Para eles, o investimento folclrico e etnogrfico tem como caracterstica no tanto esclarecer o presente pelo passado, mas antes o passado pelo presente. O privilgio dado ao presente da enunciao visa capturar aquilo que a fala traz de novo, o que vivo na voz do povo, pois este elemento que permitir, retrospectivamente, dar sentido ao processo histrico. Tomemos um exemplo. Em seu artigo sobre os estudos de poesia popular brasileira, de Slvio Romero, Jos Verssimo rev algumas de suas teses anteriores, as quais, segundo ele, ainda estariam influenciadas pelo indianismo romntico. Diante da leitura da obra de
ALENCAR, Jos. Op. Cit., p. 179. Esse poder da escrita de ressuscitar o passado, tanto para a histria como para o folclore, est presente igualmente em Michelet, com qual Alencar guarda importantes semelhanas. Sobre a escrita de Michelet, conferir o estudo de BARTHES, Roland. Michelet. Paris: Points, 1995.
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198 Romero, das poesias e contos ali reunidos, ele assumiu um outro olhar sobre a formao do povo brasileiro. O material folclrico agora lhe indicava a forte miscigenao ocorrida na histria brasileira, entre negro, ndio e portugus. Graas ao mtodo de coleta do material, que levava para o papel a fala sem qualquer tipo de retoque, assim como pelo modo de o ler, ficaria claro ao folclorista o elemento que singularizou a histria nacional. No livro de Romero constavam verses por ele recolhidas no interior do Brasil, assim como verses retiradas de folcloristas portugueses, como Almeida Garret e Tefilo Braga. O objetivo era cotejar as diferentes verses, fazendo ver quais eram os resduos de diferena presentes no material brasileiro. essa operao que Verssimo destaca e a qual fez mudar sua viso da histria brasileira. Para demonstrar isso, ele cita, entre outros, o romance D. Baro, mostrando as duas verses, brasileira e portuguesa:

D. Baro, que era macaco, De nada se arreceiou; Chamou pelo seu moleque Uma carta lhe entregou.

A verso portuguesa:
D. Baro, como discreto De nada se receiou Chamou pelo seu criado Uma carta lhe entregou

O que o intrprete busca so os indcios no texto que denunciem a transformao do original em uma variante. Normalmente, essa leitura destaca a insero de palavras alheias tradio na qual o original foi produzido. Neste caso, as palavras macaco e moleque sinalizariam para um processo de mestiamento entre a tradio portuguesa e as tradies de ndios e negros, servindo como prova do carter da formao nacional: Naquele nico verso esto as trs raas formadoras do nosso povo, a portuguesa, a africana e a americana. O era macaco pertence a esta ltima de cuja lngua era a palavra macaco, assim como seu moleque em lugar de seu criado da lio portuguesa genuinamente africano, e ambos perfeitamente brasileiros. Este verso, conclui Verssimo, um mestio115. O cotejamento entre os contos brasileiros e portugueses, ambos coletados e transcritos mediante a autpsia do folclorista, seria capaz de produzir, portanto, um campo de viso que, partindo da valorizao do presente, permitiria o acesso a um tempo profundo no visvel
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VERSSIMO, Jos. Estudos Brasileiros, Op. Cit., p. 156-157.

199 por outros meios. O resduo de diferena, denunciado por palavras, por corruptelas, por associao de imagens ou valores, indicaria um sentido em relao ao qual o passado poderia ser esclarecido. No acessvel por outros meios, a investigao etnogrfica e seu primado da observao que lanam e guiam o olhar do investigador em direo a um passado que s existe enquanto resduo no presente. Como diria Celso de Magalhes, em seu trabalho de leitura da poesia popular: Parece-nos estar assistindo ao desenvolvimento progressivo dessa nova ndole, transformao rpida desse gnio predominante, medida que a populao ia sentindo os efeitos fsicos do clima e da posio geogrfica116. O material folclrico faz ver aquilo que os documentos histricos no possibilitariam. E a adulterao encontrada, como afirma Verssimo, alm de acesso a esse passado profundo, serve tambm como prova de sua veracidade: Semelhante adulterao , ainda sociologicamente, um fato importante para corroborar a opinio daqueles que souberam ver na formao da nacionalidade brasileira, alguma coisa acima de um mero resultado de combinaes polticas, to ineficazes sempre como causas de tais efeitos117. Na fala popular, transcrita e interpretada por esses letrados, estava a chave para acessar aquele passado profundo, distinto da histria poltica, esclarecendo o sentido da formao nacional e delineando, no mesmo movimento, os contornos desse gigante soberano em relao ao qual esses intelectuais do final do oitocentos ansiavam ser os porta-vozes.

4.3.3 Ver a histria: o primado da observao

Em seu discurso de recepo por ocasio do ingresso de Euclides da Cunha na Academia Brasileira de Letras, em 1906, Slvio Romero sada o j ento celebrado autor dOs Sertes, destacando a sua contribuio para um benfico e urgente esforo de reflexo sobre a realidade nacional118. A partir do diagnstico de Euclides, que afirmava em seu livro a existncia de duas naes que se desconhecem, separadas no espao e ainda mais no tempo119, Romero conclama a necessidade imperiosa de estudos que abarcassem essa parte das nossas gentes, que a maior parte da nao e aquela que tem mantido a nossa

MAGALHES, Celso. Op. Cit., p. 92. Idem, p. 155. 118 ROMERO, Slvio. Recebendo Euclides na Academia (extrato do discurso de 18-12-906), in: CUNHA, Euclides da. Um paraso perdido. Ensaios amaznicos. Seleo e coordenao de Hildon Rocha. Braslia: Senado Federal, 2000. Sobre a trajetria e consagrao de Euclides, cf. ABREU, Regina. O enigma de Os Sertes. Rio de Janeiro: Rocco/Funarte, 1998. 119 ROMERO, Slvio. Recebendo Euclides na Academia (extrato do discurso de 18-12-906), Op. Cit., p. 96.
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200 independncia, porque aquela que sempre trabalhou e ainda trabalha, sempre se bateu e ainda se bate...120. Caberia aos estudiosos no mais se perder em discusses polticas e literrias, mas voltar sua viso aos doze milhes de brasileiros que habitam todo o interior do pas: matas, sertes, campos gerais, chapadas, chapades e planaltos, fora das restritas gentes das grandes vilas e cidades da costa ou mesmo do centro121. O prprio Euclides, em seu discurso, faria o seguinte diagnstico acerca da historiografia nacional: nossa histria, reduzida aos mltiplos sucessos da existncia poltico-administrativa, falta inteiramente a pintura sugestiva dos homens e das coisas, ou os travamentos de relaes e costumes que so a imprimidura indispensvel ao desenho dos acontecimentos122. Tanto Euclides quanto Romero, como foi visto no incio deste captulo, estavam associando um novo modo de encarar a histria nacional com uma atitude necessria de observao e reconhecimento de uma outra realidade, divergente daquela que tinha sido produzida pela tradio imperial. O que buscavam era uma histria profunda da nao. Alm disso, ambos manifestavam a preocupao em valorizar a descrio, a pintura sugestiva dos homens e das coisas. Contra uma imagem cristalizada que teria sido construda pela gerao romntica e pelos viajantes a respeito do Brasil, estes autores procuravam realizar uma descrio nua e verdadeira dos espaos e das gentes nacionais. Neste movimento, estavam configurando um novo campo de viso, recortando zonas cada vez mais crveis e aptas a representar uma imagem do Brasil. A valorizao de uma descrio da realidade nacional, pautada na observao pessoal, filiava-se assim quela busca por um passado profundo. Cabe indagar, portanto, como se dava essa relao entre a autpsia da etnografia e representao da histria nacional. Em seu estudo sobre a formao do narrador de fico no Brasil oitocentista, Flora Sssekind contraps a atitude dos escritores da virada do sculo com aqueles das dcadas de 1830 e 1840. Segundo a autora, enquanto estes se serviam abundantemente das descries dos viajantes que passaram por aqui na confeco de uma paisagem nacional, aqueles, ao contrrio, procuravam se despir completamente dos relatos alheios, estabelecendo um contato direto com a natureza123. Uma passagem ilustrativa dessa atitude, citada por Flora Sssekind, aquela na qual Euclides da Cunha descreve sua experincia ao ver, pela primeira vez, o Amazonas:
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Ibidem. Idem. p. 98. 122 CUNHA, Euclides. Academia Brasileira de Letras (Discurso de recepo), in: Contrastes e Confrontos. Porto, Livraria Chardon, de Llo e Irmos, 1923. p. 272. Grifos meus. 123 SSSEKIND, Flora. O Brasil no longe daqui. O narrador, a viagem. So Paulo: Cia. Das Letras, 1990.

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Ao revs da admirao ou do entusiasmo, o que sobressalteia geralmente, diante do Amazonas, no desembocar do ddalo florido do Tajapuru, aberto em cheio para o grande rio, antes um desapontamento. A massa de guas , certo, sem par, capaz daquele terror a que se refere Wallace; mas como todos ns desde muito cedo gizamos um Amazonas ideal, merc das pginas singularmente lricas dos no sei quantos viajantes que desde Humboldt at hoje contemplaram a Hylae prodigiosa, com um espanto quase religioso sucede um caso vulgar de psicologia: ao defrontarmos o Amazonas real, vemo-lo inferior imagem subjetiva h longo tempo prefigurada124.

O autor ope a uma imagem idealizada, uma realidade concreta, sendo o critrio de tal realidade nada mais que a observao direta daquele que escreve. Observao esta que desmonta as expectativas alimentadas pela leitura dos viajantes e cronistas, entendidas, agora, como singularmente lricas produzidas em parte por aquilo que o autor, em outro texto, chamaria de um exlio subjetivo125. outro o olhar de Euclides. Como destaca Sssekind, afirmava-se, ento, de modo quase programtico, uma linha direta com a Natureza, um primado da observao das peculiaridades locais126. Para esses autores, tratava-se de desarmar o olhar alimentado e viciado pelas leituras tanto dos viajantes estrangeiros como dos cronistas coloniais. Esse confronto entre um olhar desarmado e uma tradio de relatos vai estruturar boa parte dos textos produzidos no final do oitocentos. De maneira homloga ao que foi visto com os cientistas do Museu Nacional no captulo anterior, o que se buscava aqui era a construo de um olhar puro, como se a tradio fosse um elemento de desvio, de corrupo, e no mais fonte de autoridade127. A questo era ver para crer, tornar a presena e a observao direta do autor critrios de validade do texto. Ao analisar a retrica da alteridade operada pelas Histrias de Herdoto, Franois Hartog apontou para os meios pelos quais o texto exerce seus efeitos: Fundamentalmente, quando perguntamos sobre as condies de visibilidade, o que se encontra em jogo a questo do visvel e do dizvel: eu vejo, eu digo; eu digo o que vejo; eu

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CUNHA, Euclides. Impresses Gerais, Um paraso perdido. Ensaios Amaznicos, Op. Cit., p. 115. CUNHA, Euclides. Plano de uma cruzada, in: Contrastes e Confrontos, Op. Cit.. Diz o autor: Porque afinal lastimvel que ainda hoje procuremos nas velhas pginas de Saint-Hilaire... notcias do Brazil. Alheiamo-nos desta terra. Creamos a extravagncia de um exlio subjetivo, que dela nos afasta, enquanto vagueamos como sonmbulos pelo seu seio desconhecido, pp. 86-87. 126 SSSEKIND, Flora. Op. Cit., p. 33. 127 HARTOG, Franois. Rgimes dhistoricit. Op. Cit.

202 vejo o que posso dizer; eu digo o que posso ver128. Essa inscrio do olhar no texto, como destacou Hartog, se processa atravs de marcas de enunciao - de um eu vi, em primeiro lugar, mas igualmente de eu ouvi129. As consideraes do historiador francs nos levam a refletir sobre a adequao necessria entre o visvel e o dizvel, assim como a relao entre a viso e a persuaso. Contra o Amazonas ideal, fruto do olhar lrico dos viajantes, Euclides contrape um Amazonas real, apresentando como critrio de realidade sua prpria viso. Como se o olho tivesse a capacidade natural, o privilgio epistemolgico de acessar o real e apreend-lo naquilo que enfim, como se entre o olho e a coisa vista no existisse um esquema conceitual que antecipasse a viso130. Entre o ver e o ler, o primado cabe ao primeiro: No perptuo desequilbrio, entre o que imaginamos e o que existe, verificamos, atnitos, que a idealizao mais afogueada, apagam-no-la os novos quadros da existncia131. Nina Rodrigues, igualmente, ao invs de lamentar no ter conhecido certas publicaes de Ellis sobre o animismo africano antes de seu contato com negros iorubas da Bahia, mostravase, ao contrrio, feliz por ter tido a chance de realizar a observao sem os filtros prvios da leitura: Ao contrrio, desprovido de guia, o nosso estudo teve que inspirar-se pura e exclusivamente na observao direta e pessoal do fenmeno132. Sem filtros, seu olhar chegou s mesmas concluses do cientista ingls: E com satisfao que o encontramos agora quase todo confirmado pelas observaes daquele cientista133. Assim, sua observao no carecia de uma leitura prvia que guiasse seu olhar. A viso, precedendo a leitura, confirma e se v confirmada por aquela tambm fruto da observao. Nos Cantos populares do Brasil, de Slvio Romero, vemos uma profuso dessas marcas fortes de enunciao. O leitor depara-se a cada pargrafo com expresses como Tivemos ocasio de verificar..., Lembramo-nos de um velho que..., Escreveramos um livro inteiro, se fossemos descrever as da espcie que temos presenciado, No Lagarto, cidade da provncia do Sergipe, foi que melhor as estudamos, Noutras provncias temos

HARTOG, Franois. O espelho de Herdoto. Ensaio sobre a representao do outro, Op. Cit., p. 280. Segundo Hartog, trata-se de um convite a levar-se mais longe a investigao, recolocando-se a questo do efeito do texto de histria, o que significa recolocar tambm a questo do gnero histrico e retomar a pergunta sobre o lugar e a funo do historiador na sociedade. Um estudo sobre o olhar do historiador e o olho da histria ofereceria talvez uma via de abordagem? Tenta-se pois fazer uma arqueologia do olhar do historiador ou, pelo menos, tenta-se escrever sobre isso alguns fragmentos, p. 39. 129 Idem, p. 273. 130 LENCLUD, Grard. Quand voir, cest reconnatre. Les rcits de voyage et le regard anthropologique, in: Enqute, N. 1, Paris, 1995. 131 CUNHA, Discurso de recepo, Contrastes e confrontos, Op. Cit., p. 269. 132 RODRIGUES, Nina. Os Africanos no Brasil, Op. Cit., p. 245. 133 Idem, ibidem.

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203 presenciado134. O uso repetido dessas marcas de presena busca produzir no leitor uma espcie de efeito de verdade, como se no houvesse interferncias entre a coisa vista e a palavra dita. Como vimos, o mtodo de coleta dos materiais folclricos baseava-se inteiramente nessa presena e numa transcrio literal da oralidade para a escrita. O que importa, em suma, anular toda a distncia entre o ver e o dizer: instituir um puro olho que seria pura linguagem135. Como afirma ainda Romero: Para melhor concatenao de idias, e pela necessidade de s afirmar aquilo que tenho visto e estudado de perto, que vou referindo as descries das festas populares s localidades, onde as apreciei. Tenho porm as mais completas provas, no testemunho de pessoas insuspeitas, de que por todas as provncias do imprio as janeiras foram muito populares e concorridas136. Assim, tanto sua observao pessoal como a observao de pessoas insuspeitas (no s por terem visto, mas principalmente por terem visto a mesma coisa) servem como prova da uniformidade da poesia popular brasileira. A necessidade de referir suas descries aos lugares onde as apreciou tem por funo fazer da presena um operador de crena, situando cada relato num lugar e tempo especficos ocupado pela narrador. Este efeito de crena pode, ainda, como o caso de Euclides da Cunha, em Os Sertes, ser construdo atravs de uma ciso entre o observador e o narrador, garantindo para o discurso um efeito objetificante 137. Euclides (e essa estratgia tambm no ausente em Romero), faz uso constante dessa ciso, produzindo um distanciamento que, estrategicamente, faz o leitor ver com os olhos desse observador observado: E por mais inexperto que seja o observador ao deixar as perspectivas majestosas, que se desdobram ao Sul, trocando-as pelos cenrios emocionantes daquela natureza torturada, tem a impresso persistente de calcar o fundo recm-sublevado de um mar extinto, tendo ainda estereotipada naquelas camadas rgidas a agitao das ondas e da voragens...138. Esse distanciamento entre observador e
ROMERO, Slvio. Cantos populares do Brasil. Rio de Janeiro: Jos Olympio, 1954. As passagens se encontram, respectivamente, nas pginas 44, 46, 52, 55. 135 FOUCAULT, Michel. La naissance da la clinique, Op. Cit. 136 ROMERO, Slvio. Estudos sobre a poesia popular do Brasil, Op. Cit., p. 48. 137 Cf. NICOLAZZI, Fernando. Um estilo de histria: a viagem, a memria, o ensaio. Sobre Casa Grande & Senzala e a representao do passado. Tese de doutorado apresentada ao Programa de Ps-Graduao em Histria da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, 2008. O autor faz uma anlise apurada, em seu quarto captulo, da figura do observador na construo narrativa de Os Sertes. Segundo Nicolazzi, o texto euclidiano marcado por aquilo que Anthony Pagden definiu como the objeticfying habit, ou seja, pela idia de ruptura entre sujeito-observador e objeto-observado; apenas do estabelecimento e na manuteno constante dessa diferena que um saber positivo sobre o serto pode ser produzido. Tal a razo tambm para a distino, fundamental para a obra, entre o observador-viajante e o narrador, pp. 163-164. 138 CUNHA, Euclides. Os Sertes, Op. Cit., p. 103. A mesma estratgia seria utilizada em seus escritos Amaznicos, onde Euclides intercala enunciaes marcadas pela primeira pessoa com outras nas quais aciona esse observador impessoal: No Amazonas, em geral, sucede isto: o observador errante que lhe percorre a bacia em busca de variados aspectos sente, ao cabo de centenas de milhas, a impresso de circular num itinerrio
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204 narrador, contudo, no visa anular a presena, mas apenas garantir uma objetividade do que visto atravs de um distanciamento daquele que narra. A figura de um observador impessoal, uma terceira pessoa que se sabe ser o prprio autor, pode ser ocupada, alm disso, pelos vrios leitores que percorrerem o texto, tornando-se estes testemunhas vicrias do que narrado. O efeito de presena continua servindo como fonte de autoridade do relato. Desse modo, a valorizao do que chamaramos hoje de trabalho de campo, cuja institucionalizao s se deu a partir da dcada de 1920, tem nesses autores um marco importante, associando o perfil do trabalho etnogrfico autoridade da presena139. James Clifford teceu uma rica comparao entre duas imagens que representam paradigmas distintos na forma de descrever a alteridade140. Estas imagens so a alegoria impressa na obra Les meurs des sauvages amricains, de Lafitau, e o frontispcio de Os argonautas do Pacfico Ocidental, de Malinowski. O relato do jesuta, destaca Clifford, apresentado no como um produto de observao de primeira mo, mas como um produto da escrita em um gabinete repleto de objetos
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Nas palavras de Michel de Certeau, o

frontispcio de Lafitau descreve a operao envolvida em reconstruir a histria no laboratrio142. O colecionismo exerce ainda aqui um papel fundamental, a exemplo das Wunderkammer que se formavam desde o Renascimento. J a fotografia que ilustra o livro de Malinowski aponta para um modelo de operao distinto. O fronstipcio de Os argonautas, como toda fotografia, afirma uma presena - a da cena diante das lentes; e sugere tambm uma outra presena a do etngrafo elaborando ativamente esse fragmento da realidade trobriandesa143. esta presena o elemento de autoridade principal desta operao etnogrfica em suas etapas de inscrio, transcrio e descrio144. Da o modo predominante
fechado, onde se lhe deparam as mesmas praias ou barreiras ou ilhas, e as mesmas florestas e igaps estirando-se a perder de vista pelos horizontes vazios; o observador imvel que lhe estacione s margens, sobressalteia-se, intermitente, diante de transfiguraes inopinadas. CUNHA, Euclides. Impresses gerais, Um paraso perdido. Ensaios Amaznicos, Op. Cit., p. 126. 139 Acerca do trabalho de campo e sua histria, cf. SANJEK, Roger (org). Fieldnotes. The making of Anthropology. Ithaca: Cornell University Press, 1990; BLANCKAERT, Claude (org). Le terrain des sciences humaines (XVIII XX sicles), Op. Cit. 140 CLIFFORD, James. Sobre a autoridade etnogrfica, in: A experincia etnogrfica. Antropologia e literatura no sculo XX. Organizao de Jos Reginaldo Santos Gonalves. Rio de Janeiro: UFRJ, 2002. 141 Idem, p. 18. O quadro composto por uma jovem mulher sentada numa escrivaninha em meio a objetos do Novo Mundo, da Grcia Clssica e do Egito. Ela est acompanhada por dois querubins que ajudam na tarefa da comparao e pela barbuda personagem do Tempo, que aponta para uma cena que representa a fonte primordial da verdade brotando da pena do escritor. A imagem para a qual a jovem mulher dirige seu olhar a de um conjunto de nuvens onde esto Ado, Eva e a serpente. Acima deles esto o homem e a mulher redimidos do Apocalipse, de cada lado de um tringulo que irradia e ostenta Yahweh, em alfabeto hebraico. Idem, p. 17. 142 CERTEAU, Michel de. Writing vs. Time: History and Anthropology in the Works of Lafitau, Yale French Studies, No. 59, Rethinking History: Time, Myth, and Writing (1980), p. 43. 143 CLIFFORD, James. Op. Cit., p. 18. 144 CLIFFORD, James. Notes on (Field)notes, in: SANJEK, Roger (org). Fieldnotes. The making of Anthropology, op. Cit., pp. 47-70.

205 no moderno trabalho de campo ser expresso na seguinte frmula: Voc est l... porque eu estava l145. Ora, esta contraposio entre Lafitau e Malinowski poderia ser facilmente transposta contraposio entre a operao etnogrfico do IHGB e o novo modelo de enquete etnogrfica proposto por esses autores do final do oitocentos. Enquanto que os letrados do IHGB faziam largo uso dos relatos de viajantes e dos cronistas coloniais, autores como Slvio Romero e Euclides da Cunha procuravam adequar da forma mais direta possvel aquilo que visto quilo que dito, sendo a viso o suporte fundamental da escrita. Mas esse trabalho de inscrever o olhar como operador de crena no se resume apenas questo da autoridade da presena. Se a viso torna-se uma condio da escrita, necessrio igualmente saber ver. Assim, desqualifica-se a escrita do outro no apenas pela ausncia de observao direta, como tambm pela incapacidade do observador. O erro dos cronistas estava justamente no fato de que seu olhar, alm de estar coberto pelo maravilhoso, foi incapaz de perceber a relao das partes com o todo, fragmentando, assim, o real em uma mirade de particularidades: Aos nossos cronistas faltou sempre uma viso superior, de conjunto, permitindo-lhes abranger outras relaes alm da marcha linear dos roteiros que seguiam, ou dos objetivos definidos que buscavam146. O que distingue, para Euclides, a geografia mtica desses cronistas e a geografia real, a ser feita, a capacidade de, ao mesmo tempo, saber ver e fazer ver o real em sua totalidade. A observao no deveria se ater ao particular, nem ser traduzida na forma de uma descrio detalhada, no gnero da ekphrasis147. Para esses autores, se a histria no se l, v-se, como diz Euclides, essa viso deve assumir um carter sinptico. Ou seja: deve ser lanada de cima, abranger a totalidade, traduzir a sistematicidade que cerca o mundo num todo organizado. No se trata de observar os detalhes de cada parte, mas de tudo ver simultaneamente148. Como para Polbio, poderamos dizer, a unidade orgnica da histria que exige que o historiador saiba fazer abstrao de sua condio de parte, para se elevar altura da viso do todo149. Nas palavras

Idem, ibidem. CUNHA, Euclides. A geografia real e a mitolgica, Um paraso perdido. Ensaios Amaznicos, Op. Cit., p. 281. 147 ZANGARA, Adriana. Voir lhistoire. Thories anciennes du rcit historique. IIe sicle avant J.-C. Ile sicle aprs J.-C. Paris: Vrin/EHESS, 2007. Conferir tambm o mtodo de descrio corogrfica analisado por LESTRINGANT, Frank. Corographie et paysage a la Renaissance, in: crire le monde la Renaissance. Quinze tudes sur Rabelais, Postel, Bodin et la littrature gographique, Op. Cit. 148 HARTOG, Franois. vidence de lhistoire. Ce que voient ls historiens. Op. Cit., p. 149 ZANGARA, Adriana, Op. Cit., p. 47.
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206 de Romero: Um conhecimento que no se generaliza, fica improfcuo e estril, e, assim, a histria pinturesca deve levar histria filosfica e naturalista150. Esse primado da observao, tanto como fonte de autoridade do relato como apreenso sinptica do mundo, vai de par com uma rede conceitual que conforma a realidade a um complexo de foras naturais organicamente constitudas. Como dissemos, entre o olhar e o objeto sempre existe um esquema conceitual que organiza a viso. V-se aquilo que se pode ver. Contudo, enquanto estratgia retrica, a separao entre teoria e observao fundamental para esses autores, ainda que uma deva reforar a outra. Como no caso mencionado de Nina Rodrigues, a observao direta do fenmeno que deve encontrar-se com e garantir a verdade do conceito, ou mesmo redefini-la. De todo modo, como afirma Fernando Nicolazzi, a observao passa a definir os passos da narrativa; o que se v no estado mais determinado a priori pelo que foi lido151. A leitura no mais a fonte privilegiada de autoridade do saber, mas antes o ter estado l e o ter visto.

4.3.4 O controle filolgico e a etnografia lingstica de Capistrano de Abreu

Esse primado da observao como controle da verdade do enunciado e como base para uma viso da histria, utilizado de forma abundante por autores como Nina Rodrigues, Euclides da Cunha e Slvio Romero, encontrou uma problematizao maior na obra de Capistrano de Abreu. Falando de lugares distintos, mas inter-relacionados, e ao mesmo tempo constituindo esses lugares, Capistrano estabeleceu uma ordem diversa entre o ver e o dizer. Como historiador e como etngrafo, pautado, de um lado, na filologia e, de outro, numa lingstica especfica, ele no deixou de tentar esclarecer a histria a partir da etnografia mas o fez a partir de mecanismos intelectuais diferentes daqueles utilizados por boa parte de seus compatriotas contemporneos. Em uma srie de artigos publicados em 1880 na Gazeta de Notcias, intitulados Histria Ptria152, Capistrano de Abreu vem contrapor-se tese apresentada por Slvio Romero em A literatura Brasileira e a Crtica Moderna livro publicado no mesmo ano,

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ROMERO, Slvio. Histria da Literatura Brasileira, Op. Cit., p. 55. NICOLAZZI, Fernando. Op. Cit., p. 168. 152 ABREU, Capistrano. Histria Ptria, In: Ensaios e Estudos. 3 srie. Rio de Janeiro: Civilizao Brasileira, 1976. pp. 103-124.

207 onde o crtico sergipano havia coletado alguns artigos escritos ainda em sua juventude153. Contra a tese de Romero, que afirmava ser o africano o elemento de diferenciao entre o brasileiro e seu ascendente europeu, Capistrano vai defender a hiptese de que a possvel individualidade do brasileiro encontrava-se antes na influncia do clima e na contribuio histrica exercida pelo elemento indgena. O que me interessa ressaltar aqui, no entanto, no so as concluses desses autores que ento procuravam conquistar um lugar no espao letrado carioca, mas sim o caminho atravs do qual essas afirmaes eram elaboradas154. Para afirmar a preponderncia de um ou de outro fator na formao da nacionalidade, Capistrano e Romero recorreram a diferentes procedimentos. A crtica de Capistrano toma por base justamente essa distino metodolgica, procurando invalidar o argumento de Romero. O historiador cearense, aps adiantar a sua tese, aponta o erro no qual Romero teria cado: ele baseia sua anlise unicamente na viso. Enfim, diz Capistrano, a nica base que S. S. tem para afirmar a proposio a vista; e S. S. sabe quanto o testemunho dos sentidos pouco significante em debates cientficos, - em questes em que h outros meios e instrumentos de prova155. Ou seja, Slvio Romero teria se deixado enganar por falsas aparncias, construindo sua leitura histrica a partir de indcios no confiveis. Seria cientificamente ingnuo afirmar a preponderncia do africano na formao histrica do brasileiro pautado apenas pelo testemunho contemporneo. A viso da atual populao mestia levaria a crer que a miscigenao entre o africano e o europeu se deu em muito maior escala do que entre o europeu e o indgena. Mas isso no prova nada, diz Capistrano, e pode levar a um falso conhecimento. Afinal, segue o historiador, perfeitamente explicvel os poucos vestgios deixados pelos indgenas na atual populao: A aparncia fsica do ndio no difere tanto do europeu, quanto a deste difere do africano, de sorte que o mestio dos primeiros no se distingue to facilmente quanto o dos segundos156. Portanto, a viso atual da populao brasileira, tendo como critrio as tonalidades de cor e os seus fentipos, pouco serviria para esclarecer o processo de sua formao. Do mesmo modo, a coleta dos cantos populares no se mostraria um elemento seguro de anlise. Como foi visto, o mtodo de Romero consistia em
ROMERO, Slvio. A literatura Brasileira e a Crtica Moderna, In: Op. Cit. p. 42. Retomo, aqui, uma discusso travada em minha dissertao de mestrado, atualizando a discusso entre Capistrano e Romero para os fins especficos deste trabalho, cuja origem, em parte, se situa justamente na referida querela, TURIN, Rodrigo. Narrar o passado, projetar o futuro. Slvio Romero e a experincia historiogrfica oitocentista, Op. Cit. 154 Slvio Romero chegara ao Rio de Janeiro um ano antes, ingressando como professor no Colgio Dom Pedro II em 1880. Capistrano havia se mudado para o Rio em 1875, trabalhando na Livraria Garnier e como professor at 1879, quando consegue uma colocao como redator na Gazeta de Notcias. 155 ABREU, Capistrano. Op. Cit. p. 110. 156 Ibidem.
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208 coletar os contos e compar-los com os de origem portuguesa, para da perceber os desvios representados, por exemplo, pela insero de palavras de outras tradies. A concluso de Romero era a de que os negros teriam infludo de forma muito mais significativa que os ndios, uma vez que as palavras africanas se faziam mais presentes no material folclrico. A este respeito, Capistrano ainda intima Romero, pedindo-lhe que olhe para a Europa e me diga quais os vestgios deixados pelos brbaros nas lnguas romnicas157. No , pois, recomendvel acreditar no que se v. So necessrios outros meios e instrumentos para chegar verdade histrica. Se o testemunho da viso pouco confivel, ele o , contudo, somente quando so os sentidos do prprio historiador que esto em jogo. A sensibilidade deste enganosa, pois o que ele v pode ser apenas aparncia, fruto de um processo desconhecido. Ao contrrio do que pode parecer, a influncia fsica e lingstica do elemento africano que salta aos olhos, no teria sido este o que mais influiu na formao nacional, e sim o indgena. Mas como Capistrano procura provar sua hiptese? Curiosamente, tambm pelo testemunho da viso. O que difere a atitude de Capistrano e a de Romero que o primeiro vem reafirmar o estatuto de uma certa histria cientfica, a qual no pode fazer-se seno no passado. Fazer histria [no sculo XIX], como diz Hartog, significa ir aos arquivos e desenrolar, mas unicamente no passado, longas cadeias de acontecimentos158. preciso voltar ao passado e dele tirar a luz para a compreenso do presente. Entre o ver e o saber deve, ento, existir uma etapa de mediao que nada mais que o mtodo crtico de uma histria que se quer cientfica. Desse modo, a nica forma de construir um conhecimento histrico vlido, como defende Capistrano, dar toda a autoridade aos documentos escritos, s vozes e aos olhos do passado, sendo que eles viram o que aconteceu quando estava acontecendo. Tambm para Capistrano, como j notou Ricardo Benzaquen, o testemunho visual, a autpsia, uma das principais regras do mtodo histrico159. Esse testemunho, contudo, como bem analisou Benzaquen, s vem a ser vlido na medida em que institudo como documento, no momento em que se transforma em rastro de um acontecimento passado que cabe ao historiador desvelar160. Por conseguinte, em Capistrano, o convencimento do argumento no vem tanto de um eu vi inicial, mas de um eu li manifestado pelas notas de roda-p (ou no fim do texto,
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Idem. p. 111. HARTOG, Franois. O espelho de Herdoto, Op. Cit.,. P. 278. 159 ARAJO, Ricardo Benzaquen de. Ronda Noturna, Estudos Histricos, n. 1, 1989, pp. 28-54. 160 Essa processo do documento ao arquivo discutido por RICOEUR, Paul. Lhistoire, La mmoire, loubli, Op. Cit; sua aplicao por parte de Capistrano tambm foi muito bem analisado na dissertao de OLIVEIRA, Maria da Glria. Crtica, mtodo e escrita da histria em Capistrano de Abreu (1853-1927). Dissertao apresentado ao Programa de Ps-Graduao em Histria da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, 2006.

209 como preferia), nos parmetros daquilo que Anthony Grafton denomina de narrativa dupla, onde o historiador, ao mesmo tempo em que narra os acontecimentos, expe as fontes que utilizou explicitando que o que diz fruto de uma pesquisa disciplinada161. Contra o argumento de Romero, que baseia o que diz no que v, Capistrano distanciase do presente e recorre aos documentos. E, a partir dessa investigao, ele pode afirmar que a verdade histrica, a que mana do estudo dos cronistas e do confronto das fontes originais, esta: Os tupinambs eram numerosos162. Para provar tal afirmao, ele recorre ao testemunho de Cardim e outros que viram e estiveram l, efeito de crena que os habilita a serem tomados como fontes histricas confiveis163. Pelo confronto dessas vozes e olhos do passado, Capistrano pode desvelar a verdade que se esconde por detrs de uma falsa aparncia, papel prprio da cincia, revelando a forte presena do indgena na formao nacional. O controle filolgico, em suma, seria uma garantia possvel contra a subjetividade da viso164. Enquanto componente fundamental do saber histrico, ele permitiria estabelecer juzos verdadeiros acerca do passado recorrendo distino fundamental entre fontes primrias e secundrias165. Outra caracterstica que deve ser ressaltada no trabalho de Capistrano a forma como ele relacionou os saberes histrico e etnogrfico. Enquanto boa parte de seus contemporneos se esforava em unir os dois, aplicando os mtodos da etnografia histria, Capistrano procurou sempre manter separados esses saberes. Essa separao, contudo, no se dava graas a uma natureza qualquer do objeto, como para Varnhagen, mas antes devido s peculiaridades em relao obteno de documentos. O que fundamentava a separao, em suma, era oposio entres sociedades orais e sociedades com escrita. A ausncia de escrita por parte das sociedades indgenas requeria do investigador mtodos especficos de anlise. Assim, a etnografia que Capistrano pratica centra-se toda num processo de gramaticalizao. Contudo, sua etnografia lingstica est muito distante daquela produzida anteriormente no IHGB. Entre as muitas diferenas, pode-se apontar, por exemplo, a recusa em aplicar o modelo das lnguas do velho mundo na transcrio e gramaticalizao das lnguas indgenas: O mtodo defeituoso que os induzia a aplicarem nos idiomas do Novo
GRAFTON, Anthony. As origens trgicas da erudio. Op. Cit. ABREU, Capistrano. Op. Cit. p. 111. 163 Cf. CEZAR, Temstocles. Quando um manuscrito torna-se fonte histrica: as marcas de verdade no relato de Gabriel Soares de Souza (1587). Ensaio sobre uma operao historiogrfica, In: Histria em Revista, Pelotas, NDH/UFPel, 6, dez. 2000, pp. 37-58. 164 DIAS, Nlia. La mesure des sens. Les anthropologues et le corps humain au XIX sicle, Op. Cit; no que diz respeito ao conhecimento histrico, especificamente, conferir o papel do ceticismo na formulao da crtica histrica moderna em BORGHERO, Carlo. La certezza e la storia. Cartesianismo, pirronismo e conoscenza storica. Milo : Angeli, 1983. 165 MOMIGLIANO, Arnaldo. L'Histoire Ancienne et l'Antiquaire", In: Problmes d'Historiographie Ancienne et Moderne, Op. Cit.
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210 Mundo a craveira do latim166. Alm disso, sua preocupao no est centrada em uma genealogia de carter bblico, mas antes em construir um sistema cultural desses povos, tal como o preconizava a linhagem etnogrfica alem qual se filiava167. Em seu estudo sobre os Bacaeris, Capistrano afirmava o lugar a partir do qual estava falando, assentado sobre o livro de Steinen, cujo sistema de transcrio fontica adota com ligeiras variantes (...)168. Como j foi dito, Steinen representava para Capistrano uma verdadeira fundao dos estudos etnogrficos americanos. Suas anlises lingsticas, como destacou Beatriz Protti em sua tese, em nada se assemelhavam ao que era produzido no Brasil: No de admirar que, no momento da elaborao do r-txa hu-ni-ku-~i, fosse uma rdua tarefa garimpar material sobre as lnguas Pano nas livrarias do Rio de Janeiro. Os trabalhos que Capistrano de Abreu publicou sobre os Caxinaus no aludem a qualquer autor brasileiro, num silncio que sinaliza a ausncia de produo cientfica nacional na rea169. A nica referncia nacional reconhecida por Capistrano Baptista Caetano, cujos estudos de filologia se destacavam pelo rigor tcnico. Como fica claro na citao acima de Capistrano, o modelo de anlise lingstica que segue baseado na fontica. Atravs de um cdigo elaborado para transcrever os sons, ele procurava encontrar um equivalente grfico mdio adequado fala indgena170. O problema, alm de no haver um cdigo universalmente adotado, estava tambm no fato de os indgenas produzirem sons em nada parecido com os nossos. Sua observao, assim, se atinha aos movimentos corporais realizados no ato da enunciao: Irineu profere-o levantando a lngua dobrada aos dentes superiores e depois, ou ao mesmo tempo, retirando-a, ou elevando-a, para o palato mole: pois uma supradental velar171. Por meio de uma observao cuidadosa e tcnica, ele visava conseguir alcanar o

ABREU, Capistrano. Os bacaeris, Ensaios e Estudos. 3 srie, Op. Cit., p. 175. O mesmo juzo ser afirmado no artigo sobre os Caxinaus, quando se refere s gramticas anteriores: O valor destas pequeno: a preocupao de encontrar casos e verbo substantivo, como os do latim, viciam-nas profundamente, p. 201. 167 Essa linhagem pode ser remontada obra de Herder e Humboldt, encontrando sua atualizao em Bastian, fundador do Museu Etnolgico de Berlin. Para uma anlise dessa tradio, cf. Bunzl, Matti. Franz Boas and the Humboldtian tradition: from volksgeist and natonalcharakter to na anthropological concepto of culture, in: STOCKING, George. Volkgeist as method and ethic. Essays on boasian ethnography and the german anthropological tradition. Madison: Universitu of Wisconsin Press, 1996. Cf. igualmente KRANK, Erwin H. Viajar preciso: Theodor Koch-Grnberg e a Volkerkunde alem do sculo XIX, Revista de Antropologia, So Paulo, 2005, v. 48, n. 2; e TRAUTMANN-WALLER, Cline (dir.). Quand Berlin pensait les peuples. Anthropologie, ethnologie et psichologie (1850-1890). Paris: CNRS, 2004. 168 ABREU, Capistrano. Os Bacaeris, Op. Cit., p. 159. 169 PROTTI, Beatriz. Op. Cit., p. 80. 170 A phonetica do r-txa hu-ni ku-~i [...] offerece difficuldades singulares, dignas de um Jespersen, um Rousselout ou um Gonalves Vianna. No me gabo de tel-as resolvido; no me animei siquer a enfrentalas: a pronuncia figurada aqui apenas uma mdia, digamos uma pronuncia de seringueiro, que os indios comprehendam sem grande esforo. ABREU, Capistrano. r-txa hu-ni ku-~i, APUD: PROTTI, Beatriz. Op. Cit., p. 159. 171 ABREU, Capistrano. Os Bacaeris, Op. Cit., p. 161.

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211 grande objetivo da comunidade de americanistas na qual estava inserido: a reproduo dos textos indgenas com a menor interferncia possvel da subjetividade do estudioso172. Com essa busca de uma adequao entre o som e a escrita, Capistrano poderia, por fim, transformar a fala em documento173. Diante da constatao do desaparecimento das populaes indgenas, tratava-se de estabelecer um arquivo, o qual permitiria que estas populaes se tornassem objeto de estudo para alm do presente etnogrfico . A partir desse esforo de arquivamento, poder-se-ia, enfim, realizar o trabalho de interpretao. Esse trabalho, contudo, se distingue do modo como Capistrano interpretava os documentos histricos. Ele no realizava mais um exerccio filolgico de verificao de autenticidade, nem procurava encontrar um encadeamento de eventos na forma de narrativa. Beatriz Protti notou com acerto que, apesar do carter complementar da etnografia e da lingstica para os sul-americanistas, estes no faziam filologia. Um fillogo, concordavam muitos, debruavase sobre a tradio literria de uma civilizao174. O que Capistrano visava pode ser resumido a duas tarefas: primeiro, distinguir, atravs de um ordenamento da gramtica, as famlias lingsticas que indicariam e classificariam os grupos; segundo, estabelecer um sistema cultural prprio a essas populaes, por meio dos relatos, lendas, crenas. Para a primeira tarefa, servia-se dos achados metodolgicos de Steinen, o qual repousava na separao inequvoca entre tribos cognatas, cujas lnguas revelariam efetivo parentesco, e tribos afins. Alm disso, buscava palavras primrias

(aquelas que se referiam s partes do corpo, por exemplo) para determinar se lnguas diferentes estavam vinculadas a um fundo comum175. Uma vez realizada essa etapa, o analista teria um corpo lingstico a partir do qual interpretar a cultura. Seu estudo sobre os Caxinaus, por exemplo, segue justamente essa ordem. Aps definir as caractersticas gramaticais, realiza uma reconstruo da concepo do mundo daquele grupo. Tambm para essa tradio etnogrfica, a autpsia era um elemento primordial176. A promoo e o financiamento de viagens por parte de pesquisadores europeus foi, justamente, o que possibilitou o contato de Capistrano com autores como Steinen. Mas, se viajar era preciso, Capistrano no seguiu a risca esta recomendao metodolgica. A peculiaridade de sua autpsia estava no fato de que ele no se deslocava aos lugares onde poderia observar de perto os indgenas. E como no poderia, igualmente, colher seu material a partir de textos
PROTTI, Beatriz. Op. Cit., p. 130. OLIVEIRA, Maria da Glria. Op. Cit., pp. 132-149. 174 PROTTI, Beatriz. Op. Cit., p. 101. 175 Idem, pp. 91-92. 176 Cf, por exemplo, o caso de Koch-Grunberg, analisado por KRANK, Erwin H. Viajar preciso: Theodor Koch-Grunberg e a Volkerkund alem do sculo XIX, Op. Cit.
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212 publicados, optou por trazer o campo at ele. Tanto para seus estudos sobre os Bacaeris, como sobre os Caxinaus, ele contou com a ajuda de amigos que trouxeram sua casa representantes das tribos que lhe interessava investigar. Quanto aos Bacaeris, sua fonte foi um ndio chamado Irineu, atravs do qual pde apanhar muitos textos, - lendas, descries, tradies177. Todas suas anlises sobre a cosmogonia fundaram-se, como diz, exclusivamente no que disse Irineu. No caso dos Caxinaus: Dois ndios do rio Iboau, afluente do Muru, tributrio de Tarauac, trazidos para esta cidade, em milhares de frases ditas na lngua materna, logo transcritas e traduzidas, deram notcias dos costumes, tradies e mitos de seu povo178. No convvio de seu lar, travava dilogos, colhia lendas e costumes, transcrevia e traduzia, com muito esforo e pacincia, aquilo que lhe diziam seus interlocutores indgenas. O que chama a ateno, contudo, no trabalho de Capistrano ainda mais quando comparado aos trabalhos de outros contemporneos sua abertura para a alteridade indgena. Apesar da peculiaridade de sua autpsia, o autor evita a todo custo enquadrar aquilo que v e ouve dentro de um esquema classificatrio qualquer. Ao contrrio, mesmo o sistema de transcrio fontica de Steinen ele o adota com variantes, assim como suas classificaes acerca dos grupos lingsticos so realizadas sempre com muita cautela. Talvez uma concepo de que as culturas eram essencialmente distintas, compartilhada com a tradio etnogrfica alem, lhe orientasse os olhos e ouvidos justamente para aquilo que fugia aos sentidos de sua percepo. J vimos sua preocupao em encontrar meios para transcrever sons que lhe eram completamente estranhos. Do mesmo modo, de suas conversas com seus hspedes, notava a forma particular do raciocnio indgena (quase poderamos dizer: do pensamento selvagem): Deixa-se o ndio levar por uma srie de idias e as impele at certo ponto; volta depois e o mesmo faz s outras; frases muito distanciadas representam o mesmo momento cronolgico; o que nos parece mais natural colocarmos no fim, desde o comeo vo eles frisando; em suma, parataxte formal, corresponde ao condomnio das impresses e ondulao das idias179. Essa estreita ligao entre a lngua e as idias, ressaltada desde Humboldt, faz com que Capistrano siga, at onde pode, as ondulaes prprias fala de seu interlocutor180. Nesse escutar atento, e mesmo fatigante, aquilo que lhe parecia natural deixa de ser universal, desnaturalizando, assim, suas prprias concepes. H, portanto, um forte estranhamento na atitude etnogrfica de Capistrano: se ele no se desloca at a aldeia, talvez
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ABREU, Capistrano. Os bacaeris, Op. Cit., p. 159. ABREU, Capistrano. Caxinaus, Op. Cit., p. 200. 179 ABREU, Capistrano. Os bacaeris, Op. Cit., p. 169. 180 HUMBOLDT, Wilhelm von. Escritos sobre el language. Barcelona: Ediciones Pennsula, 1991.

213 ele tenha sido um dos que mais se deslocou em direo ao outro. Estranhamento este que vai de par com a cautela diante da tarefa de reconstruir a concepo de mundo dos grupos inteiros a partir de um ou dois indivduos: Consider-los representativos do conjunto, sobre seus dizeres construir generalizaes amplas ou proferir sentena definitiva, destoaria das boas normas da crtica181. Aqui, o Capistrano historiador, aquele que tem por princpio o confronto de testemunhos, vem emprestar as boas normas da crtica sua tarefa etnogrfica. Alm disso, ele sabe das limitaes acarretadas pelo seu no deslocamento espacial e, acima de tudo, da tarefa quase impossvel de romper o estranhamento: S no Tarauac se pode tirar isso a limpo, com muita pacincia, no a pacincia que imperturbvel arrosta as inconstncias do gnio do ndio, seu mutismo acintoso, seus eclipses intelectuais e morais; esta elementar; a pacincia consiste em nada sugerir, pois adere mnima sugesto, mas colher dados, impregnar-se de seu esprito e s fazer perguntas quando de antemo se conhecer a resposta182.

4.4 Estratos do tempo: entre primitivos e civilizados

Se a conjuno do etnogrfico e do histrico acarretou em uma nova forma de ver a histria, numa valorizao de uma autpsia sinptica, ela implicava igualmente em um novo modo de lidar com o tempo. Em contraste com o uso feito pelos letrados do IHGB de categorias como antigo e selvagem, essa gerao de 1870 tece uma ordem temporal na qual a aproximao entre os termos torna-se mais complicada. Para melhor delimitar essas diferenas, pode-se recorrer distino proposta por Franois Hartog entre o paralelo e a comparao183. Como afirma o historiador francs, a retrica clssica reconhecia no paralelo uma das formas da comparao184. Seu efeito heurstico advinha da capacidade do orador em colocar duas histrias lada a lado (da a noo de paralelo), fazendo ver ao seu destinatrio as caractersticas e valores que dessas histrias deveriam ser ressaltadas. o que faz, por exemplo, Plutarco em suas Vidas Paralelas. Narrar duas trajetrias de vidas de homens ilustres serve como um instrumento de conhecimento e de aperfeioamento de si. Ao visar a

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ABREU, Capistrano. Caxinus, Op. Cit., p. 200. Idem, p. 229. 183 HARTOG, Franois. Du parallle la comparaison, in: Anciens, Modernes, Sauvages. Op. Cit. 184 Ver, por exemplo, a Retrica a Hernio, onde o paralelo tem como finalidade colocar algo diante dos olhos, promovendo a similitude. Retrica a Hernio [Ccero].Traduo e introduo de Ana Paula Celestino faria e Adriana Seabra. So Paulo: Hedra, 2005, p. 91.

214 imitao, o paralelo apresenta-se como um espelho que reenvia ao leitor a imagem do que se gostaria ou do que seria necessrio que ele fosse185. Desse modo, o uso do paralelo se inscreve, acima de tudo, como um dos operadores intelectuais da historia magistra. O plano temporal no qual se enraza aquele de uma pluralidade de histrias, cada uma tendo um valor em si mesma enquanto espelho de virtudes. Com a comparao, tal como vai ser instituda pelos modernos, vemos a fratura dessas linhas paralelas e o ordenamento das histrias particulares em uma nica linha temporal. A partir de ento, o fator tempo torna-se um elemento ativo, promovendo um distanciamento que impossibilita colocar lado a lado as histrias186. Ao comparar as duas liberdades, a antiga e a moderna, Benjamin Constant constatava a irredutvel diferena que caracterizava a cidade antiga frente s modernas187. Entre modernos e antigos no h mais paralelos possveis, pois a liberdade dos antigos, pautada na participao direta dos cidados no exerccio da soberania, no mais a nossa liberdade, centrada na noo de representatividade. Como afirma Hartog, a ltima lio poltica que no h mais lio possvel188. No que diz respeito categoria selvagens, um mesmo deslocamento operado. Se, antes, selvagens e antigos poderiam ser colocados lado a lado, um esclarecendo o outro, agora eles so alocados em uma ordem temporal nica e singular, ocupando posies especficas e incomensurveis. De Jos de Acosta a Lafitau, os relatos dos antigos lanavam uma luz sobre os costumes dos selvagens americanos, do mesmo modo que estes permitiam que novas leituras fossem produzidas sobre a tradio clssica189. A partir de fins do sculo XVIII e incio do XIX, essa aproximao entre iroqus e grego deixa de fazer sentido, de maneira homloga ao que Constant estabeleceu para os dois modelos de liberdade, antigo e moderno. No s os modernos vem-se distanciados dos antigos por um fosso temporal incontornvel, como tambm os selvagens passam a ocupar um lugar isolado de qualquer aproximao seno com eles mesmos. Recuados a um ponto de origem absoluto, a um grau zero da histria, os selvagens passam a ser qualificados como primitivos. Esta categoria, como afirma Fabian, caracteriza-se como uma noo essencialmente temporal, podendo, assim, ser

HARTOG, Franois. Du parallle la comparaison, Op. Cit., p. 198. Como nota Koselleck, com o conceito moderno de histria o tempo passa a ser visto como elemento ativo na histria. KOSELLECK, Reinhart. Historia. Barcelona: Paids, 2007. 187 CANFORA, Luciano. La citt greca come mito, in: Noi e gli antichi. Perch lo Studio dei Greci e dei Romani giova allinteligenza dei moderni. Milano: Bur Saggi, 2002. 188 HARTOG, Franois. Du parallle l comparaison, Op. Cit., p. 207. 189 GRAFTON, Anthony. New World, Ancient Texts. The power of tradition and the schok of Discovery, Op. Cit.; PAGDEN, A. La caida del Hombre Natural, Op. Cit.
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215 colocada ao lado de outras categorias centrais da modernidade.190 De selvagens a primitivos, observa-se um processo mais amplo de temporalizao que redefine uma rede semntica moderna. Observar os primitivos, a partir de ento, sem a mediao enganosa dos antigos, torna-se uma maneira de ser moderno, uma vez que atravs do estudo destas populaes que se poderia retraar o percurso que os distanciou temporalmente. Inseridos numa mesma ordem temporal, mas em extremos opostos, a observao dos primitivos vem esclarecer agora no mais os antigos, mas antes o sentido da historicidade mesma dos modernos. No discurso etnogrfico do IHGB ainda estava bastante presente o uso do paralelo191. As aproximaes entre antigos e selvagens era comum nos textos etnogrficos, seja com o objetivo, mais comum, de nobilitar os selvagens, seja para negar a eles a participao em um mesmo processo histrico. Como foi visto, a utilizao do paralelo por parte de autores como Gonalves de Magalhes inscrevia-se numa ordem temporal inclusiva, na qual histrias paralelas como as dos selvagens e da sociedade crist poderiam de algum modo convergir graas a um trabalho de converso. E era justamente essa pluralidade das histrias que permitia que os selvagens pudessem ser incorporados, hierarquicamente, num projeto comum de futuro. Com a singularizao e a secularizao do tempo histrico, tal como operado pela gerao de 1870, o posicionamento dos selvagens como primitivos coloca outros problemas a esses autores. A partir de ento, a naturalizao do tempo inviabiliza o trabalho de converso. A questo, agora, no est voltada mais para o passado dos selvagens, mas antes para o passado dos prprios modernos, j que eles so o nosso passado. A Histria, singular e universal, no se repete, mas apenas desdobra-se. Como diz Romero: Um povo, comparado consigo mesmo, nos vrios momentos de sua evoluo, pode aqui e ali passar por algumas similitudes, mais ou menos profundas; mas no se repete, desdobra-se. Eis tudo.192. O que equivale a dizer, igualmente, que entre dois pontos do processo histrico no h identidade, mas uma concatenao de eventos regidos por uma ordem necessria. A comparao se alimenta justamente dessa diferena produzida pelo tempo para gerar um sentido.

KOSELLECK, Reinhart. Modernidade sobre a semntica dos conceitos de movimento na modernidade, Futuro passado, Op. Cit, pp. 267-304. 191 Veja-se, a este respeito, a recente tese de Maria da Glria de Oliveira, na qual a autora analisa o papel das biografias no IHGB como repertrio de exemplos a serem seguidos. OLIVEIRA, Maria da Glria. Escrever vidas, narrar a histria. A biografia como problema historiogrfico no Brasil oitocentista. Rio de Janeiro: UFRJ, 2009. 192 ROMERO, Slvio. Amrica latina. Analyse do livro de igual ttulo do Sr. Manoel Bonfim. Porto: Livraria Ohardron, 1906, p. 46.

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216 Para esses autores, portanto, a histria como a natureza; no faz saltos193. Essa adaptao da frmula de Linneu ao processo histrico institui a distncia temporal como uma barreira intransponvel, inviabilizando qualquer interferncia voluntarista. Seqncias evolucionistas e sua concomitante prtica imperialista e colonialista, como ressalta Fabian, podem parecer incorporativas; afinal, elas criam um quadro universal de referncia apto a acomodar todas as sociedades. Contudo, baseadas na epistme da histria natural, elas so fundadas no distanciamento e na separao. No haveria razo de ser para o mtodo comparativo evolucionista se no fosse para a classificao de entidades, as quais devem antes de tudo ser separadas e distinguidas apesar de suas similitudes, para que possam ser usadas no estabelecimento de taxonomias e de seqncias de desenvolvimento194. A distncia temporal implica, portanto, tambm numa distino, cujo efeito tira sua fora da transferncia operada entre o mundo natural e o histrico. O tempo, nessa chave, passa a ser compreendido como um elemento natural, em relao ao qual a ao humana esta sujeita. Nina Rodrigues, em seus estudos antropolgicos e criminais, salientava essa condio evolutiva em relao qual as concepes jurdicas deveriam submeter-se: No s, portanto, a evoluo mental pressupe nas diversas fases de desenvolvimento de uma raa uma capacidade cultural muito diferente, embora de perfectibilidade crescente, mas ainda afirma a impossibilidade de suprimir a interveno do tempo nas suas adaptaes e a impossibilidade, portanto, de imporse, de momento, a um povo, uma civilizao incompatvel com o grau de seu desenvolvimento intelectual195. Assim, a naturalizao do tempo colocava um fim converso. A linearidade e a irreversibilidade desse tempo no deixavam margens a aes de cunho filantrpico, aos moldes cristos. Constitudo por estgios universais e necessrios, o processo histrico deve ser percorrido em todas as suas etapas, no existindo a possibilidade de uma interveno exterior a ele mesmo. E, se um autor como Euclides da Cunha afirma que a histria repete-se, referindo-se a Antnio Conselheiro como um gnstico bronco196, longe de ser uma figura dissonante, o que est na base dessa afirmao justamente a passagem necessria entre pontos distintos de uma mesma ordem temporal197. Isso, pois a naturalizao e a universalizao do tempo implicavam tambm em sua espacializao. A coexistncia de populaes em etapas diversas da evoluo histrica s vinha confirmar o sentido desta mesma evoluo. A presena de Euclides na campanha de Canudos e na floresta
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ROMERO, Slvio. Outros estudos de literatura contempornea. Lisboa: Tipographia da A editora, 1905, p. 124. 194 FABIAN, Johannes. Time and the Other. Op. Cit., p. 27. 195 RODRIGUES, Nina. As raas humanas e a responsabilidade penal no Brasil, Op. Cit., p. 29. 196 CUNHA, Euclides, Os Sertes, Op. Cit., p. 208. 197 LIMA, Luiz Costa. Terra ignota. A construo de Os sertes. Rio de Janeiro: Civilizao Brasileira, 1997.

217 Amaznica toda permeada pela experincia de uma negao da contemporaneidade. Do mesmo modo que o Conselheiro era uma manifestao atvica e as habitaes dos jagunos lembravam as choupanas dos gauleses de Csar198, o viajante observava, na Amaznia, como o emigrante vindo do sul encontrava-se, de repente, jogado num desvo obscurecido da Histria: O recm-vindo do Sul chega em pleno desdobrar-se daquela azfama

tumulturia e, de ordinrio, sucumbe. Assombram-no, do mesmo lance, a face desconhecida da paisagem e o quadro daquela sociedade de caboclos titnicos que ali esto construindo um territrio. Sente-se deslocado no espao e no tempo; no j fora da ptria, seno arredio da cultura humana, extraviado num recanto da floresta e num desvo obscurecido da Histria199. Viajar pelo interior do Brasil equivalia, assim, a viajar por diferentes estratos temporais. Da civilizao de copistas do litoral, passando pela sociedade fetichista do serto ou, ainda, nas florestas amaznicas onde a histria escreve suas primeiras linhas, os diferentes estgios da histria da humanidade apresentavam-se em suas formas vivas. Tendo como lugar de fala a civilizao litornea, a percepo euclidiana, assim como de seus contemporneos, traduz-se na constatao de que deles de todo nos separa uma coordenada histrica o tempo200. O fato de diferentes etapas evolutivas coexistirem num mesmo territrio colocava como problema delimitar de que modo estes estratos temporais distintos poderiam formar uma sociedade homognea. Como foi visto, estava no horizonte desses autores definir os contornos da sociedade para da tirar um sentido para a representao poltica. A questo era definir qual a situao histrica do brasileiro; qual o ponto na escala evolutiva ele ocupava para ento proporem os caminhos polticos que lhe seriam convenientes. Do mesmo modo que no seria mais vivel copiar o modelo de liberdade dos antigos para as sociedades modernas, no se poderia aplicar qualquer noo abstrata de forma poltica ou conceitos jurdicos s diferentes sociedades201. A observao que estes autores faziam da populao brasileira tornava manifesto a impropriedade de afirmar qualquer projeto romantizado de uma incluso nos moldes da civilizao moderna. Basta comparar, por exemplo, a passagem de Gonalves de Magalhes a respeito dos indgenas que ele viu no Maranho, vestidos um dia

CUNHA, Euclides. Os Sertes, Op. Cit., p. 233. CUNHA, Euclides. Um paraso perdido. Ensaios Amaznicos, Op. Cit., 146. 200 CUNHA, Euclides. Os Sertes, Op. Cit., p. 86. 201 O mesmo aplicado s concepes estticas, no havendo um critrio de beleza universal e abstrato, mas sim histrica e etnologicamente fundado: No passaria pelo esprito de homem mediocremente instrudo a idia de aplicar determinao do seu valor as exigncias e regras artsticas por que se aferem produtos da arte nos povos civilizados (...) Os frutos da arte negra no poderiam pretender mais do que documentar, em peas de real valor etnogrfico, uma fase do desenvolvimento da cultura artstica RODRIGUES, Nina. Africanos no Brasil, Op. Cit., p.197.
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218 nossa maneira, afazerem-se de repente aos nossos costumes, com esta observao de Verssimo:
Eu confesso que no pude conter o primeiro movimento de riso ante aquelas duas figuras. O tuchua, um ndio baixo, gordo, de cor escura carregada, com uns pequenos olhinhos horizontais, a pra curta, e bigodes speros, grisalhos, o cabelo duro espetado, muito negro, apesar de dever ter os seus setenta anos, segundo os clculos que fizemos, o pescoo curto e o corpo atarracado, tinha um aspecto de anta, a quem houvessem posto de p, vestido uma farda da guarda nacional em grande gala, encasquetado um chapu armado de pluma verde, apertado uma banda encarnada cintura e calado uns grosseiros sapatos grandes e grossos, por cujos canos se prendessem as calas de ganga amarela202.

A distncia que separa o entusiasmo de Magalhes do riso de Verssimo equivalente distncia que agora separa o indgena, enquanto primitivo, dos costumes civilizados. O contraste provocado, aos olhos de Verssimo, pela justaposio daquela figura quase animal com o uniforme militar salientava o grotesco que seria querer ignorar a distino natural que a distncia temporal implicava. As consideraes de Jos Verssimo, Euclides da Cunha, Slvio Romero, Nina Rodrigues, entre outros, denunciavam um hiato entre as formas polticas e o corpo da sociedade. O objetivo destes autores era encontrar uma adequao necessria entre estes distintos estratos temporais e a organizao poltica que a Repblica deveria assumir. Os estudos etnogrficos e folclricos, fundados nessa negao da contemporaneidade, tinham como meta classificar temporalmente a populao brasileira. Slvio Romero, a este respeito, afirmava que o estudo folclrico permitia identificar trs categorias de populao: a primeira, dos povos inteiramente brbaros e at selvagens (frica, Amrica, Oceania); a segunda, os povos meio cultos e adiantados dos velhos tempos que no fim de alguns sculos de desenvolvimento vieram a fornecer o atraente espetculo de civilizaes antigas; e, finalmente, as populaes, de um lado, de posse de certos proventos emprestados pela cultura moderna, e de outro, estranhas em grande parte a esta mesma cultura ou seja, as populaes rurais dos pases civilizados da atualidade203. Primitivos, antigos, camponeses essa trade marcava o espao de alteridade ocupado pelos saberes etnogrfico e folclrico. Para Romero, contudo, a populao brasileira no poderia ser reduzida a nenhuma destas categorias. Fruto da mistura de diferentes estratos temporais, ela mostrava-se como um
202 203

VERSSIMO, Jos. Estudos Brasileiros, Op. Cit., p. 63. ROMERO, Slvio. Estudos sobre a poesia popular, Op. Cit., p. 33.

219 hbrido, no apenas fsico, mas tambm histrico. A interpretao do material folclrico recolhido por estes autores no interior do Brasil apontava para a coexistncia de elementos caractersticos de etapas evolutivas distintas. Como afirmou Verssimo: Desse perodo fetichista, em que os animais representam um importante papel na vida do homem, em que foram sucessivamente o deus, o companheiro, o inimigo e o instrumento da Humanidade, ficaram no mito e no conto popular as mais profundas impresses204. De modo semelhante, Romero usa o quadro de classificao comtiano para ressaltar a especificidade evolutiva da populao brasileira: Se no um povo culto, nem por isso permanece ainda claramente e de todo no perodo politico e mitolgico das crenas. Aplicando-lhe a leis dos trs estados, formulada por Comte, est ele exteriormente no perodo teolgico, na fase do monotesmo; mas ainda com pronunciados resduos da fase do fetichismo e do politesmo205. Nem campons, nem primitivo (e muito menos antigo), pode-se dizer, com certa liberdade, que o brasileiro apresenta-se como uma um sujeito esquizofrnico, ocupando um no-lugar. No mais primitivo, mas ainda no moderno, um elemento de transio. O problema, contudo, que esta transio no se caracterizaria por um movimento uniforme e unidirecional, mas seria proveniente do encontro e da mescla de estratos temporais distintos, provocando ao mesmo tempo avanos e retrocessos parciais. A convivncia destes diferentes estratos temporais no deixaria de provocar certas anomalias e inverses, como o refluxo para o passado que foi a campanha de Canudos206, ou ainda a produo de uma civilizao brbara, como notava Euclides na Amaznia:
Assim, entre os estranhos civilizados que ali chegam de arrancada para ferir e matar o homem e a rvore, estacionando apenas o tempo necessrio a que ambos se extinguam, seguindo a outros rumos onde renovam as mesmas tropelias, passando como uma vaga devastadora e deixando ainda mais selvagem a prpria selvageria aqueles brbaros singulares patenteiam o nico aspecto tranqilo das culturas. O contraste empolgante. Seguindo do povoado Campa de Tingoleales para o stio peruano de ShamboIaco, perto da foz do rio Manuel Urbano, o viajante no passa, como a princpio acredita, dos estdios mais primitivos aos mais elevados da evoluo humana. Tem uma surpresa maior. Vai da barbaria franca a uma sorte de civilizao
204 205

VERSSIMO, Jos. Estudos Brasileiros, Op. Cit., p. 17. Idem, p. 40. 206 Insistamos sobre esta verdade: a guerra de Canudos foi um refluxo em nossa histria. Tivemos, inopinadamente, ressurrecta e em armas em nossa frente, uma sociedade velha, uma sociedade morta, galvanizada por um doudo(248). CUNHA, Euclides. Os Sertes, Op. Cit., p. 248. A respeito das inverses promovidas por Euclides em os Sertes, cf. NICOLAZZI, Fernando. Um estilo de histria: a viagem, a memria, o ensaio, Op. Cit., pp. 185-192.

220
caduca em que todos os estigmas daquela ressaltam mais incisivos, dentre as prprias conquistas do progresso207.

A existncia desses contrastes empolgantes, sempre ressaltados por Euclides, no se resumiria apenas aos rinces esquecidos e aos desvos obscurecidos da histria, mas tambm se faria presente nos centros urbanos, espao da civilizao de emprstimo. Nina Rodrigues, ao criticar a homogeneinizao das leis e a represso violenta aos cultos africanos em Salvador, notava como a barbrie se infiltrava no corpo do Estado: Seria fcil confrontar a processualstica baiana com a da frica selvagem, para mostrar que a nossa polcia obedece inconscientemente a uma impulso atvica208. O descaso e a ignorncia do Estado frente a essa diversidade evolutiva colocaria em risco suas prprias estruturas. A etnografia, nesse caso, vinha no apenas esclarecer a histria, mas tambm oferecer ao governo um saber que pudesse orientar o gerenciamento da populao em sua diversidade antropolgica. Mas a questo, no final das contas, era tambm esclarecer no que consistiria esse governo e qual a legitimidade de sua soberania. O governo, para esses intelectuais, deveria ser fruto da representao social. Como afirmava Romero, hoje sabe-se como questo vencida, ser todo e qualquer governo a integrao espontnea das foras sociais, assim como a perfeita uniformidade e equivalncia de povo e governo a regra geral e ns no escapamos a ela209. Ora, o problema era justamente promover essa integrao espontnea e fazer coincidir povo e governo. A misso histrica da Repblica consistia em realizar essa aproximao e a consolidao de um governo representativo e democrtico: O povo, como nmero e como fora, no teve ainda a conscincia clara de seus destinos. mister acabar com isso, e esta deve ser a misso histrica da repblica no Brasil210. O investimento que esses intelectuais fizeram nos estudos etnogrficos se direcionava para esse fim. Contudo, o que a leitura etnogrfica da histria nacional apontava era a profunda incongruncia entre os conceitos polticos, jurdicos e estticos da civilizao moderna e o corpo temporalmente hbrido da populao nacional. Mesmo o conceito de Repblica, que deveria ser a redeno poltica da populao, mostrava-se uma abstrao impossvel. Refutando a idia, por ele antes defendida, da conspirao monarquista de Canudos, a observao que Euclides fez dos agentes da revolta o levava a concluir sobre impossibilidade daqueles jagunos compreenderem o sentido tanto
207 208

CUNHA, Euclides. Um paraso perdido. Ensaios Amaznicos, Op. Cit, p. 164. RODRIGUES, Nina. Africanos no Brasil, Op. Cit., p. 280. 209 ROMERO, Slvio. Outros estudos de literatura contemporanea, Op. Cit, p. 109. 210 Idem, p. 150.

221 da monarquia quanto da repblica: Ambas lhe so abstraes inacessveis. espontaneamente adversrio de ambas. Est na fase evolutiva em que s conceptvel o imprio de um chefe sacerdotal ou guerreiro211. Para Euclides, a fora do sertanejo estava no fato de que ele se formou isolado do resto da nao. Foi este isolamento que lhe permitiu conformar-se como um tipo nico e adaptado ao ambiente. Contudo, se esse isolamento lhe deu foras capazes de combater as armas da civilizao, nem de longe o possibilitava a compartilhar desta. A questo, novamente, era que ele pertencia a um tempo outro. Para que pudesse alcanar o nvel evolutivo compatvel com a civilizao litornea, mesmo copista, seria necessrio um intervalo de tempo de longa durao. Da a sentena irrevogvel, dada pelo prprio processo histrico: Retardatrios hoje, amanh se extinguiro de todo212. Juzo homlogo afirmava Nina Rodrigues a respeito dos negros:

Demasiado escasso, por outro lado, o curto espao do perodo histrico para nele se fundar a afirmao categrica de uma impossibilidade futura de civilizao do negro. Quando nos ensina a explicao evolutiva, que andavam errados todos os clculos ou cmputos da idade humana e que por milnios de sculos se devem contar as aquisies lentas e progressivas do seu aperfeioamento, no argumentando com o que nos ensina o curto perodo do conhecimento histrico dos povos que se pode lavrar a condenao do negro a uma estagnao eterna na selvageria213.

Se havia a possibilidade de uma futura civilizao dos negros, ela se daria no pela interveno salvfica de um missionrio qualquer. o prprio tempo que se encarregaria, ou no, de prover os negros com as conquistas da civilizao. Mas, como afirma Nina Rodrigues, esse tempo da dimenso do tempo da natureza, computado por milnios de sculos, e no mais o tempo secular da tradio clssica e bblica. Isso acarretava um problema incontornvel: apenas no isolamento poderiam ter essa chance. O encontro de tempos distintos, do primitivo e do civilizado, em seus ritmos distintos, levaria a um atropelamento por parte da civilizao sobre as sociedades primitivas. o que Euclides observou em Canudos e Jos Verssimo nas populaes indgenas da Amaznia. Desse modo, aquela possibilidade de civilizao dos negros, indicada por Nina, se mostrava invivel historicamente, j que ns temos atualmente uns dois mil anos de avano sobre o negro e no
211 212

CUNHA, Euclides. Os Sertes, Op. Cit., p. 248. Idem, p. 85. 213 RODRIGUES, Nina. Africanos no Brasil, Op. Cit., p. 295.

222 uma lacuna que se possa vencer de um salto214. E, como se no bastasse essa distncia temporal, os ritmos de cada sociedade tendiam ainda a aumentar progressivamente a diferena. Enquanto que as sociedades primitivas levavam sculos para conquistar as menores benesses, a civilizao moderna acumulava conquistas e mudanas em intervalos de tempos cada vez menores. A sociedade moderna, em suma, vivia sob o signo da acelerao constante215. Atravs de uma citao de Ellis, Nina Rodrigues vinha apontar justamente para a crescente acelerao que caracterizava o tempo moderno: S uma parada na civilizao europia e anglo-americana daria tempo aos negros para, na sua lentssima e no espontnea civilizao, atingir-nos e igualar-nos216. Uma vez que no seria possvel frear o ritmo das sociedades modernas, movidas cada vez mais rpidas pelo progresso tcnico, as expectativas de incluso dessas alteridades internas se mostrava cientificamente pouco vivel. A miscigenao podia apresentar-se como uma sada possvel. Contudo, se ela podia promover um certo avano nos grupos primitivos, tambm acarretaria retrocessos por parte dos modernos. De toda forma, para esses autores, o brasileiro sempre seria esse sujeito esquizofrnico, vivendo em estratos temporais distintos. Como o emigrante visto por Euclides na Amaznia, correria sempre o risco de cair num desvo obscuro da histria e produzir uma civilizao caduca. O pessimismo dessa gerao vinha da crena, quase apocalptica, de que o progresso tcnico da civilizao era auto-suficiente, seguindo uma lgica imanente e em relao qual o homem poderia apenas sujeitar-se ou, ento, acelerar a sua realizao217. De todo modo, nessa lgica temporal secularizada, se a crena na tcnica guardava traos escatolgicos, para o caso brasileiro a redeno final estava longe de ser um dado seguro. Como sentenciou Euclides, ao incio de seu livro: Estamos condenados civilizao. Ou progredimos, ou desaparecemos218.

214 215

Idem, p. 298. Cf. KOSELLECK, Reinhart. Aceleracin, prognsis y secularizacin. Op. Cit. 216 RODRIGUES, Nina. Africanos no Brasil, Op. Cit., p. 300. 217 KOSELLECK, Reinhart. Futuro passado. Op. Cit.; MARRAMAO, Giacomo. Cu e Terra. Op. Cit. 218 CUNHA, Euclides. Os Sertes. Op. Cit., p. 145.

223

Consideraes finais

As relaes estabelecidas entre Histria e Etnografia no Brasil oitocentista, suas aproximaes e distanciamentos, seus esquecimentos e suas retomadas, seus procedimentos e usos, tal como aqui estudados, permitiram perceber os condicionamentos e as restries que presidiram a prtica desses saberes sob diferentes regimes institucionais e discursivos. Longe de haver algum tipo de sequncia progressiva caracterizada por uma simples acumulao de conhecimento, a escrita etnogrfica enquanto prtica intelectual serviu ao mesmo tempo como ferramenta cognitiva a respeito da constituio da sociedade e de sua historicidade, assim como instrumento poltico seja para a delimitao das alteridades e sua respectiva classificao, seja, ainda, com o objetivo hertico de subverter uma determinada memria histrica institucionalizada. Dentro dessas consideraes finais (menos que uma concluso), cabe destacar dois pontos que, me parecem, perpassam direta e indiretamente os estudos aqui realizados. Um primeiro aspecto, diretamente vinculado s anlises dos textos oitocentistas, diz respeito ao proceso de elaborao de um tempo histrico moderno no Brasil. A opo de estudar o tempo histrico a partir dos escritos etnogrficos, ao invs daqueles textos fundacionais da historiografia brasileira, to bem analisados por outros estudiosos, permite mapear sob um ngulo diverso as mudanas conceituais operadas no Brasil entre a Monarquia e a Repblica. De modo mais acentuado do que nos escritos historiogrficos, talvez por lidar diretamente com definies acerca da natureza do homem, a presena e o uso de referncias clssicas e, principalmente, bblicas dentro do debate etnogrfico do IHGB indica as limitaes da elaborao de uma concepo moderna da histria (e da historicidade) no Brasil Imperial. Ainda que se buscasse dentro do Instituto a formulao de uma histria filosfica, como fica assentado pela premiao da dissertao de Von Martius, a restrio da cronologia da histria da humanidade nos textos etnogrficos a padres bblicos, assim como o emprego de noes vinculadas a uma conceituao ao mesmo tempo clssica, humanista e catlica da histria, indica a forte filiao que esses letrados mantiveram com uma rede semntica prpria ao Antigo Regime.

224 Pode-se, assim, afirmar o processo lento e ambguo que caracteriza a formao de um conceito moderno de histria no Brasil219. Mesmo os escritos dos cientistas do Museu Nacional, produzidos a partir da dcada de 1870, como foi visto, ainda mantinham certa ligao com o discurso etnogrfico do IHGB, herdando certas oposies estruturais assim como um vis providencial da histria. apenas com os escritores da chamada gerao de 1870, inseridos num processo de marginalizao poltica e buscando constituir um espao prprio de atuao, que a tradio da antropologia bblica do IHGB passa a ser sistematicamente desmontada, sendo suplantada por conceitos vinculados a uma secularizao do tempo histrico e da sociedade. As expectativas direcionadas legitimao de uma soberania inerente sociedade levaram esses intelectuais a aplicar a etnografia como um saber privilegiado enquanto cincia do social. Ao trabalhar a conjuno dos saberes etnogrfico e histrico, promoveram a construo de uma histria profunda da nao, destacando uma historicidade livre de aspectos trasnscendentes prpria mundanidade. A secularizao do tempo histrico, ainda que bastante diverso das expectativas escatolgicas crists, no deixaria de trazer consigo, contudo, a crena numa salvao histrica, agora baseada na cincia. A experincia da acelerao, de que falava Nina Rodrigues, enraizava-se num desejo de domnio tcnico-cientfico do mundo histrico como redentor da humanidade (e da nao). No final das contas, como afirma Koselleck, o importante continuava em saber quem acelera ou retarda a quem, o qu, onde e quando220. O segundo aspecto que gostaria de destacar, ainda que brevemente, diz respeito ao trabalho de historicizao das disciplinas que configuram o campo de estudos das chamadas Cincias Humanas. Dentre as diferentes justificativas que legitimam e mesmo tornam necessria essa historicizao, penso que a mais importante seja a desnaturalizao de todo o aparato conceitual, disciplinar e institucional que configura nosso prprio lugar de fala enquanto histriadores, socilogos, antroplogos. Est na base desta tese a (suposta) separao estabelecida entre Histria e Etnografia, putada nas oposies entre oralidade/escrita, conscincia/inconscincia, tempo/espao, identidade/alteridade. Estes pares opostos (e complementares) possibilitaram os mais diversos (ab)usos da escrita etnogrfica, de acordo
Veja-se, a este respeito, o estudo j clssico de Manoel Salgado Guimares, Nao e civilizao nos Trpicos, Op. Cit., assim como a tese recente de Valdei Lopes de Arajo: A experincia do tempo: Modernidade e historicizao no Imprio do Brasil (1813-1845). Rio de Janeiro: PUC-Rio, 2003. O que procuro sugerir, longe de ser uma negao do processo de modernizao da escrita da histria no perodo, a ambigidade que cerca tal processo. Como conclui Arajo, havia ainda certo descompasso entre as novas experincias do tempo, como produtor de singularidade, linear e progressivo, e a herana multissecular de um tempo cclico, Op. Cit., p. 206. 220 KOSELLECK, Reinhart. Acortamiento del tiempo y aceleracin. Un estudio sobre la secularizacin, in: Aceleracin, prognosis y secularizacin, Op. Cit.
219

225 com as situaes especficas dos agentes que a praticavam. Longe de serem naturais, esses conceitos vinculam-se experincia ocidental moderna tanto de sua historicidade como do modo de lidar com as alteridades. Que essa experincia tenha sido traduzida na institucionalizao das disciplinas acadmicas algo compreensvel. J o fato de ela ser naturalizada e permanecer a justificar as divises entre os saberes da sociedade outra histria. Duas questes, ento, balizam os estudos historiogrficos e os estudos da histria das cincias sociais. Sua historicizao, na medida mesmo que em possibilita compreender os (des)caminhos de sua formao e disciplinarizao, deve levar, igualmente, uma reflexo terica sobre a (des)legitimao epistemolgica de sua prtica e de suas divises. Enquanto as cincias humanas no aplicarem sobre si mesmas suas ferrametas, levando a autoreflexividade at onde for possvel, estaro sempre sujeitas a reproduzir involuntariamente as (di)vises que sua tradio lhes legou, tornando-se, assim, herdados por sua prrpia herana.

226

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