Do Fonema Ao Livro - Secchin
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Referência
MELO NETO, loâo Cabral de. Poesia completa e prosa.2. ed. Rio de laneiro: Nova
Aguilar,2008.
Do roNpMA Ao LIVRo
A crítica tende a situar João Cabral de Melo Neto e Carlos Drummond de
Andrade como os maiores poetas brasileiros do século XX. Embora sejam ambos,
efetivamente, poetas excepcionais, não o são do mesmo modo. Grandes poetas
acrescentam capítulos à história da literatura, e certamente Drummond escreveu
textos fundamentais de nossa poesia. Mas autores como João Cabral, em vez de
acrescentarem capítulo, logram criar outra gramática. O capítuio, por extraordi-
nário que seja, se conecta a outros, precedentes ou posteriores. A produção de
Drummond e Iegível a partir da fermentação poetica do Modernismo de 22, do
qual representa a expressão mais perÍêita. Nesse sentido, Drummond cria capítulos
novos e importantes numa história que se explica pelo contexto literário e cultural
do Brasil dos anos 1920 e 1930. |á a obra de loão Cabral de Melo Neto apresenta-se
quase isolada em nosso panorama iiterário, por não existir uma iinhagem ostensiva
na qual ela se possa inscrever, à exceção, talvez,da prosa de um Graciliano Ramos.
Cabral não se coaduna com a Geração de 45, à qual cronologicamente pertence, e
tampouco caracteriza como simples continuador do complexo estético e ideo-
se
lógico da poesia de 22.Tal situação faz dele autor que inventa uma nova trilha, a
exemplo de Machado de Assis e de Guimarães Rosa, nomes que explodem (n)a
literatura trazendo consigo um olhar arraigadamente pessoal. Ora, o fato de o
poeta propor outra gramática implica, de início, certo desconforto para o leitor,
que vai defrontar-se cor) esse discurso a partir de gramáticas já conhecidas. A
tendência inicial será de recusa, o que determina consequência algo paradoxal:
trata-se de poeta muito valorizado, mas talvez insuficientemente iido em sua
Su:ite cabraiina )7 1
complexidade; dele fartamente se dimlga apenas Morte e vicla severi,ía, sucesso
extraordinário de público, talvez o livro brasileiro de poesia com maior número
de edições em menor lapso de tempo. A obra, publicada em 1956, já ultrapassou
o montante de setenta ediçoes, o que, para um mercado tão refratário à poesia, é
de fato espantoso. Têxto efetivamente lido e propagado, transposto ao palco, ao
cinema, à televisão, mas que revela apenas um aspecto da obra de cabral,
|oão
não necessariamente o mais inovador.
Quando o poeta lançou, em 1956, sua primeira grande coletânea, deu_lhe,
significativamente, o título de Duas águas,explicando o que elas queriam dizer:
duas dicçôes, dois estilos de fazer poesia, um deles agregando os poemas "em voz
alta", em que o receptor seria mais ouvinte do que leitor; nessa água se incluem,
evidentemente, os textos de maior comunicabilidade, a exemplo d.e Morte e
vida e severina. A outra compôe-se de poemas que exigiriam leitura e releitura,
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às vezes, só irá concluí-lo no 32. O leitor, habituado à poesia-minuto, em que a
iluminação do vate não perdura além de três segundos, aturde-se ao constatar
que já se encontra no meio de longo poema e cabral ainda nem acabou de de-
senrolar seu primeiro fio. A premência da velocidade, o culto ao instantâneo,
o endosso da explosão intuitiva são o contrário da poesia cabralina. EIa soiicita
leitura que se disponha a percorrer, lentamente, as muitas angulaçoes de um
olhar deslizante em meandros sintáticos, numa discursividade oposta à ideia
de texto como JTash ou instantâneo. o melhor correlato para sua arte não é a
fotografia, mas o cinema, com o espraiar-se no espaço e no tempo.
João Cabral publicou vinte livros. Tentarei apontar a originalidade cabrali-
na não pelo acompanhamento iinear das obras, mas através de um recorte que
localize seus elementos renovadores a partir da unidade menor, o fonema, até
a maioç um iivro inteiro. Entre o fonema e o livro, atravessam-se a palavra, o
verso, a estrofe e o poema, em progressivo alargamento do campo de referência.
Partindo da oposição clássica entre consoantes e vogais, tendemos a associar
de bom grado a poesia à tradição do meiódico-vocálico; nem seria necessário
recordar o famoso poema "voyelles'] de Rimbaud, pleno de sinestesias e deva-
neios. foão Cabral, no entanto, busca o ruído das consoantes. Deciara guerra à
melodia, considerando-a entorpecente, e valoriza a áspera colisão dos encontros
consonantais, em confronto à suave melodia vocálica. Tal atrito de consoantes
apresenta como correlato semântico o signo "pedra', não como algo a evitar,
mas a ser demandado. Uma pessoa vai pelo caminho, distraída, de repente
tropeça. o tropeço é um acordar para a circunstância, pois implica trocar a
passiva distração pelo choque com a realidade e com a agressão dos objetos
que a integram. Para João cabral, o acatamento do obstáculo é pressuposto da
poesia. Em "catar feijão'i ele compara o ato criador ao prosaico gesto de catar
feijão. Em ambos releva a prática manual, com uma ostensiva diferença: o catador
retém o grão e descarta a pedra ou o caroço, enquanto o poeta faz o oposto; eie
deve, ao peneirar as palavras no poema, guardar as pedras e com elas obstruir o
verso, combatendo a melodia por meio de transtornos vocabulares, sintáticos e
fonéticos. Lembremo-nos de outro poeta, vinicius de Moraes, que costuma ser
colocado em contraponto a |oão cabral. Ambos partilharam pelo menos dois
atributos: foram diplomatas, perseguidos e expulsos do ltamaraty; desenvolve-
ram inequívoca vocação para a poesia, embora em direçoes diversas. vinicius
e o poeta da celebração, do sentimento, da mística, da noite, da metafísica, do
amor, das vogais... Ioão cabral teria dito que vinicius escrevia para embalar o
leitor, enquanto ele o faziapara jogá-1o no chão. considerava-o a maior vocação
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impregnação surrealista. Já o livro derradeiro acolhia uma pedra desperta, ativa
e pedagógica, que propunha ao ser humano padroes de conduta: frequentá-Ia
para aprender-lhe a resistência, a capacidade de não se dissoiver, de perdurar.
Em vez de projetar na realidade urna legião de fantasmas, Ioão Cabral tentava
dela extrair modelos eticos. O poeta não senhor, mas aprendiz do universo.
Inserindo a palavra numa unidade maior, chegamos ao verso. Além de com-
bater o melódicr-r, ele recusava os três padroes métricos mais recorrentes da língua
portuguesa: a redondilha menor, a redondilha maior e o decassílabo. Daí adr.em
um efeito particular: com frequência, as sílabas parecem sobrar ou faltar em seus
yersos. Com a medida tradicional, o leitor pode até se desligar do que se diz, para
permanecer anestesiado pela músrca de fundo. Ao combater a escuta automatizada,
João Cabral se valia de versos de 8, 9, 1 1 sílabas; ou então, empregando a redondilha,
alternava a cesura na sequência do texto; o ritmo só se torna previsível quando são
rigidamente determinadas as sílabas onde os acentos tônicos r,ão incidir.
Ao situarmos o verso em categoria mais ampla, chegaremri-s à estrofe.
A partir de O rio, de 1954, o poeta passou obsessivamente a trabalhar com a
quadra. Não se trata de simples detalhe formal, pois tal opção está ligada a um
sentido muito preciso. Cabral abominava o ímpaq porque com ele algum ter-
mo ficaria solto: liga-se o um ao três, por exemplo, e o dois fica desconectado.
Quando optava pelo quatro, o poeta pensava criar relações que ihe soayam
mais estáveis e sólidas. Em Museu de tudo, publicou poema em homenagem
ao número quatro. Para ele, a mesa era objeto perfeito, pela solidez, pelo equi-
líbrio e distribuição de seus pontos de apoio. Ioão Cabral valorizava o que fosse
anguloso, com pontas e arestas.
As vezes um poelna de Cabral se espraia em única e longa estrofe, apa-
rentemente desvinculada do quatro. Mas, se contabilizannos o total de versos,
chegaremos a 16,32,64... De quatro em quatro sempre ocorre uma especie de
insulamento de sentido, como se o poeta necessitasse exatamente desse padrão
quaternário para desenvolr.er o pensamento. Outro aspecto pouco enfatizado em
sua obra e a profusão de rimas, sem que, todavia, eias soem evidentes. Sua rima não
é a usual na lírica portuguesa: consoante, em que, a partir da vogal tônica, ocorre
perfeita coincidência Íônica. loão Cabral, seguindo a prática espanhola, utilizava
a rima toante, que o Ieitor distraído mal percebe. Nela há coincidência de vogal
tônica, sem, todavia, plena identidade posterior: 'i-regro" e "rede'i por exemplo.
Certa vez, João Cabral justificou por que rimava. Ele se comprazia em alardear
repulsa à melodia, e a rima não deixava de constituir-se em recurso musical.
Argumentou que a toante não era melódica, e que, por outro lado, precisava da
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em Barcelona e lá adquiriu uma prensa para compor manualmente uma série de
livros. Essa prática se coadunava com as concepções cabralinas de valorização cla
atividade artesanal: literalmente, ele pôs a mão na massa para criar a obra.
euanto
à organizaçáo interna, cabral, )â a partir de o rio (1954), cuidou de evitar que os
poemas fossem dispostos de maneira arbitrária. Muitas vezes a organizaçáo do pró-
prio livro e tão laboriosamente arquitetada quanto a produção de cada texto em si.
o
escritor levou esse compromisso com a estrutura a ponto máximo em
serial. o livro contém dezesseis poemas, ou seja, quatro ao quadrado.
euatro
poemas valem-se de rima no esquema a-b-a-b. No tocante à metr ica, há quatro
textos com hexassílabos, quatro com heptassílabos, quatro com octossílabos, e
quatro corn diferentes combinações entre hexa e octossílabos. Cada poema d.e
serialé dividido em quatro partes; quatro deles possuem partes de duas
estrofes,
quatro de quatro, quatro de seis e quatro de oito estrofes. Em alguns textos há
palavras grifadas, espécie de síntese temática; contabilizam-se oito poemas com
palavras grifadas, sendo que os grifos incidem em quatro categorias gramaticais:
verbo, substantivo comum, substantivo próprio e adjetivo. Finalmente, a sepa-
ração entre as quatro partes de cada poema é efetuada pela utilização de quatro
símbolos diversos, cada qual acarretando modo especifico de trabalhar o objeto
referenciado no poema: travessão, asterisco, número ou sinal de parágrafo. Num
grau progressivo de dificuldade, o poeta, certamente, traçou a planta baixa do livro
e, a partir dela, mobiliou-o com dezesseis peças de rigoroso encaixe, perfazendo o
mais belo e complexo poema, que
é o próprio livro em sua arquitetônica inteireza.
Após essas considerações de caráter genérico, proponho que se veja, por fim,
o funcionamento de parte dessa engenharia poética num texto em particular:
"Tecendo a manhíi João cabral conta que demorou oito
anos para concluir o
poema, do qual fez mais de trinta versões. Recordemo-lo, na íntegra:
Suítc cabralina
2
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vá tecendo, entre todas as palavras. Para materializar a ideia de algo muito leve,
teia tênue, que se encorpa, João Cabral promove um adensamento semântico
em torno do fonema ltl:"teli'é mais espessa do que "teia'l e "tenda', mais do
que "telaiA seguir, com "todos" e "toldo'la soiidariedade de sentido reflete-se
no estrato fônico, através do jogo paronomásico de palavras que reciprocamente
se "entretendem": o texto inteiro se desenrola em teias solidárias de sentido, de
sintaxe e de fonetica, na confluência irreprimí'u.el em direção à manhã.
O poema desenha ainda um objeto simetricamente invertido no seu final;
de início, dois versos com o galo encarcerado; no epílogo, dois ve.sos com a
manhã liberada, numa luminosa metáfora da liberdade,
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A literatura brasileira