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Glauco Mattoso - Apprendiz de Ceremonias

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Glauco Mattoso

APPRENDIZ DE CEREMONIAS
APPRESENTA��ES DE ALHEIAS OBRAS

NOTA INTRODUCTORIA

Sempre disposto a n�o prefaciar livros alheios, por considerar-se menos


critico que os propriamente dictos, dos quaes n�o merescia mais que o
silencio, GM accabou cedendo, esporadicamente, ao appello de amigos
proximos e confrades distantes, ainda que, em verso, reiterasse a
recusa. Ja na phase visual registraram-se alguns paragraphos seus em
obras de Eduardo Kac, Severino do Ramo ou Wilma Azevedo, mas foi na
phase cega, com sua lenda ja consolidada, que passou a ser alvo de
frequentes pedidos para chancellar a poesia de novos e velhos auctores,
por mais desauctorizado que se declarasse. Desde a succincta orelha ao
conciso prefacio, este archivo veiu guardando aquelles paragraphos,
agora disponibilizados na nuvem, mantida a orthographia original at�
quando o poeta adoptou definitivamente o systema etymologico. Nem todos
os commentarios estavam datados, mas a ordem � chronologica.

///

[1] Para o livro CALEND�RIO LUN�TICO, de Luiz Roberto Guedes:

LUAS A MANCHEIAS

Um dos grandes poetas de l�ngua inglesa reescreve, no libreto da �pera


TOMMY adaptada para cinema, que

Got a feeling fifty one


Is going to be a good year
Especially if you and me
See it out together

Trata-se de Peter Townshend, autor de "My generation", t�tulo que me


leva a conjeturar sobre a nossa gera��o, da chamada "poesia marginal",
tamb�m conhecida como "gera��o mime�grafo". C� com meus cadar�os, penso
que todos n�s, Chacal ou Paulo Henriques Britto ou H�lio Lete ou Maria
Rita Kehl, dev�amos mais propriamente ser chamados de "gera��o de 51".

Tal � o caso de Luiz Roberto Guedes, tamb�m nascido naquele good year e
produto, como n�s outros, do choque contracultural das d�cadas de 60 e
70. Este paulistano da Zona Leste tem o mixed blood da megal�pole: meio
baiano, meio mineiro, meio gregoriano, meio rockeiro. Sua prosa
ficcional j� tem sido meritoriamente degustada em livro, mas a poesia
urge ser desengavetada, como atesta este celebr�vel CALEND�RIO LUN�TICO.

Composto esparsamente ao longo dos 80 e agora oportunamente vertido para


o italiano por Fabrizio Wrolli, o livro � um articulad�ssimo cronodrama
l�rico, que dialoga formalmente com toda a heterogeneidade de
referenciais do nosso meio, desde os dionis�acos sonetos de Aretino
(tamb�m bil�ng�es, gra�as a Jos� Paulo Paes) at� os apolineologismos de
Augusto de Campos, passando pela informalidade do papo tribal-sonoro,
multicolorido e pluripalat�vel.

O resultado � um equil�brio que os do ramo raramente alcan�am, entre o


movimento �gil do ritmo cantabile e a plasticidade escultural da
inven��o construtivista, como em

por um triz que me enriste


mais am�vel amazona
sombra son�mbula ri-se
sobre o pomar de pomona
eis que retorna anarcana
no c�u da mesopot�mia

Mas Guedes se engrandece como poeta na propor��o em que checamos a


veracidade de sua hist�ria de amor, cuja musa vem se juntar � galeria
das mulheres fertilmente idolatradas. Sofrer de paix�o, ou de desejo,
n�o � o �nico combust�vel dos magistrais menestr�is, mas �, seguramente,
o mais inflam�vel e declam�vel. Guedes canta como quem chora, chora como
quem goza, goza como quem toca e toca como quem tange. Plangente e
pungente. Gente como a gente.

[Fim de 1999]

LUNE A PIENE MANI

Uno dei grandi poeti di lingua inglese riscrive, nel libretto dell'opera
TOMMY adattata per il cinema, che:

Got a feeling fifty one


Is going to be a good year
Especially if you and me
See it out together

Si tratta di Peter Townshend, autore di "My generation", titolo che mi


porta a pensare alla nostra generazione, quella della "poesia
marginale", altres� conosciuta come "generazione-ciclostile". Pensando
bene credo che tutti noi: Chacal o Paulo Henriques Britto o H�lio Lete o
Maria Rita Kehl dovremmo proprio essere chiamati "generazione del '51".

� il caso di Luiz Roberto Guedes, pure lui nato in quel good year e
prodotto, come noi, del conflitto contro-culturale degl'anni 60 e 70.
Questo paulistano della Zona Est possiede il mixed blood della
megalopoli: mezzo baiano, mezzo mineiro, mezzo gregoriano, mezzo rock.
La sua prosa ha gi� potuto essere meritoriamente apprezzata nel suo
libro, ma la sua poesia dev'essere urgentemente rilanciata, ne � prova
questo memorabile CALENDARIO LUNATICO.

Composto di frammenti scritti sull'arco degli anni 80 ed ora


opportunamente tradotta in italiano da Fabrizio Wrolli, il libro � un
articolatissimo cronodramma lirico che dialoga formalmente con tutta
l'eterogeneit� delle referenze del nostro ambiente: dai sonetti
dionisiaci dell'Aretino (anche questi tradotti grazie a Jos� Paulo Paes)
agli apollineologismi di Augusto de Campos, passando atraverso
l'informalit� del colloquiale tribale-sonoro, variopinto e
pluri-palatabile.

Ne risulta un equilibrio, che gli addetti ai lavori difficilmente


riescono a raggiungere, tra l'agile movimento di un ritmo cantabile e la
plasticit� sculturale dell'invenzione costruttivista, come ad esempio
in:
se per poco mi inresta
un'amabile amazzone
ombra sonnambula ridesti
sopra il pomario di pomona
ecco che ritorna anarcana
nel cielo di mesopotamia

Ma Guedes si innalza come poeta proporzionalmente alla verifica di


quanto sia vera la sua storia d'amore, la cui musa entra a far parte
della galleria delle donne fertilmente venerate. La sofferenza che
scaturisce dalla passione o dal desiderio non � l'unico combustibile dei
magistrali menestrelli, ma certamente � il pi� infiammabile e
declamabile. Guedes canta come colui che piange, piange come colui che
gode, gode come colui che tocca e tocca come colui che tange. Piangente
e pungente. Come uno di noi.

[Fine del 99]

///

[2] Contracapa para livro de Ademir Assun��o:

Sei que um poeta nunca se completa, mas Ademir Assun��o caracteriza o


poeta que poderia ser chamado de completo, no sentido dos sentidos: tem
olhar oswaldiano, ouvido de m�sico, tato psicossocial, faro jornal�stico
e paladar tipicamente brasileiro, embora globalmente antropof�gico.
Nesta sua nova fornada de poemas temos bom sortimento dessa
polival�ncia: di�logos on�ricos e fragment�rios entre ancestralidades e
modernidades, entre urbanidades e mundanidades, entre divindades e
materialidades, entre formalismos e inconformismos, entre clarivid�ncias
e alucina��es. Como todo poeta, Ademir tem seus fetiches, entre eles os
animais, escravos e deuses da ra�a humana, signos de nossas emo��es mais
abjetas e sublimes. O poeta os alimenta em seu zool�gico e se amamenta
neles em seu zod�aco, numa cumplicidade primata, inata e abstrata.
Ademir Assun��o � um canibal mam�fero e on�voro. Poeta pleno, portanto.

///

[3] Para obra po�tica de Val�rio Oliveira:

A rara produ��o dum Val�rio Oliveira prova que (como ele mesmo diria) o
moderno n�o morde (e o p�s-moderno n�o pasma). Reconhe�o nele aquela
alternativa elaborada (no n�vel dum Rubens Rodrigues Torres Filho) que
ultrapassa a displicente indisciplina da margin�lia setentista e
concilia a atualidade do cotidiano com a perenidade dos recursos
engenhosos do idioma (incluindo no domin� verbal tudo quanto �
trocadilho, traval�ngua, alitera��o e paronom�sia) a servi�o da voca��o
informal do verso livre. Destaco como emblem�tico um poema,
"Degusta��o", que, a exemplo da can��o hom�nima de Rita Lee, N�o se peja
do sujo e promove o chulo a luxo a partir do maior/menor palavr�o: CU.

[Junho/2002]

///

[4] Para a reedi��o de FALO, de Paulo Augusto:


LIRA LIBERT�RIA

Em 1976, rec�m-chegado ao Rio, onde morei tr�s anos, fui apresentado ao


poeta potiguar Paulo Augusto, que acabava de lan�ar seu livro FALO e o
distribu�a no corpo-a-corpo com o leitor, como era usual naqueles idos
da ditadura e da poesia marginal. Anos depois, particip�vamos, n�s dois
(al�m de Leila M�ccolis, Gasparino Damata, Jo�o Silv�rio Trevisan e
outros literatos e intelectuais), da equipe que, sob a editoria de
Aguinaldo Silva, colaboraria no pioneiro tabl�ide gay LAMPI�O DA
ESQUINA. Desde ent�o Paulo foi em frente na carreira jornal�stica,
aliando o profissionalismo � luta minorit�ria.

Naquele momento, FALO representava um marco hist�rico na po�tica


homoer�tica brasileira. Ilustres antecessores, como M�rio de Andrade e
M�rio Faustino, n�o quiseram (ou n�o puderam) avan�ar t�o longe na
explicita��o do amor masculino, algo que, em nosso idioma, s� fora
alcan�ado pelo portugu�s Ant�nio Botto. O �nico paralelo nacional seria,
talvez, Roberto Piva. Meus pr�prios versos escancaradamente homoer�ticos
ainda estavam por sair.

Paulo Augusto foi, portanto, precursor de toda uma safra de poetas


setentistas e oitentistas cujo lirismo j� n�o ousava esconder seu nome.
O verso livre �, para ele, n�o apenas o canal mais direto �s indiretas
certeiras, da declara��o de amor ao protesto pol�tico, mas tamb�m a
express�o liter�ria dum momento em que conflu�am referenciais
modernistas (drummondianos e andradianos) de cambulhada com a l�rica
p�s-tropicalista (ent�o muito viva na voz dum Ney Matogrosso) e com as
cantorias de cordel de seu estado natal (um dos centros irradiadores
dessa cultura popular). Eis a gel�ia geral da qual Paulo Augusto extrai
o "que", o "como", o "onde" e o "por que". E gra�as � autonomia e �
autenticidade de seu verbo claro e preciso, o "quando" � representado
pela ocasi�o prop�cia em que FALO veio � luz, dividindo �guas entre a
decadente marginalidade de Madame Sat� e o alvissareiro ativismo das
minorias na d�cada da redemocratiza��o.

Num novo s�culo, em que a bandeira do arco-�ris j� abre paradas do


Orgulho Gay que engajam meio milh�o de militantes ou simpatizantes, mas
quando ainda se lincham casais masculinos em pra�a p�blica, nada mais
oportuno que uma reedi��o de FALO, cujo duplo sentido pode n�o ter hoje
a mesma ousadia, por�m remete a outro trocadilho inevit�vel: se algum
poeta omisso lan�asse um livro intitulado CALO � porque tem algo a ser
pisado. Um direito de todo masoquista, pelo qual Paulo Augusto tamb�m
lutou, ao falar por si e por todos n�s.

[Agosto/2002]

///

[5] Para SONETOS SALVAJES, de Douglas Diegues:

Em nosso territ�rio o macarr�nico urbano j� tem express�o consagrada com


Ju� Banan�re, mas o portunhol fronteiri�o ainda n�o foi mapeado. Aqui
uma das vozes mais reveladoras seria a de Douglas Diegues, que, al�m do
biling�ismo brasiguaio, inova ao experimentalizar seus sonetos h�bridos
(fixos no formato ingl�s e na rima, livres na m�trica), cuja tem�tica
mescla o inconformismo latino-americano (agravado pela pauperiza��o
dolarizada) ao conflito de identidade/nacionalidade e ao machismo
simultaneamente c�nico e autocr�tico. Se fosse para aplicar um r�tulo,
eu diria que a poesia de Diegues performa o g�nero "dialetal dial�tico".
Quem, como eu, aprecia a transgress�o dentro da tradi��o, certamente
aplaudir� a publica��o destes insurretos sonetos.

///

[6] Para o LIVRO OBSCENO, de Celso de Alencar:

O �BVIO OBSCENO

O que mais choca nos personagens de Nelson Rodrigues n�o � o grau de


pervers�o ou corrup��o de costumes quando se inter-relacionam: � o fato
de que as rela��es corrompidas ocorrem entre membros duma mesma fam�lia.
O incesto, por exemplo, � mais perturbador que o adult�rio ou a
prostitui��o. A pedofilia assusta mais que a pederastia. Disso decorre
que, por mais que se alterem os padr�es morais ao longo do tempo, certos
valores est�o de tal maneira arraigados que sempre parecer� demasiado
ousado aquele que atentar contra eles.

A poesia de Celso de Alencar, em sua faceta autodenominada obscena,


trabalha com esse mesmo enfoque do que seria realmente chocante. A no��o
de obscenidade, que no sentido mais gr�fico equivaleria � explicita��o
fisiol�gica da sexualidade, adquire nos versos de Alencar uma conota��o
menos �bvia. Inteligentemente, o poeta j� constatou que a mera exposi��o
do nu e do coito, em que pese toda a gama de abordagens poss�veis,
torna-se por demais banal para justificar um livro inteiro designado
como obsceno. Que faz o poeta? Associa o componente libidinoso a dois
outros que lhe elevam exponencialmente o car�ter "ofensivo": rela��es
familiares e, sobretudo, a face da morte.

Em poemas j� conhecidos, como aquele que considero sua obra-prima -- "O


chocalho" --, incluso em seu CD, Alencar atingira plenamente esse
delirante e m�rbido grau de coexist�ncia entre sexualidade,
consang�inidade e mortalidade. Esta nova s�rie de poemas (parte
integrante dum conjunto estruturado em dez volumes) retoma a f�rmula e a
explora exaustivamente.

N�o quero fazer nenhum exerc�cio psicanal�tico para investigar at� que
ponto as cenas descritas pelo poeta seriam evocativas de sua hist�ria
pessoal, ou por esta explic�veis. Tamb�m n�o direi que Alencar pretenda
fazer qualquer "enterro simb�lico" da sexualidade. Parece inequ�voco,
por�m, que nesta poesia o que se enfatiza como obscenidade �, acima de
tudo, a pr�pria mortalidade humana. O �bvio do obsceno seria, portanto,
obitu�rio e n�o org�stico ou org�aco. O cad�ver incomodaria mais que o
corpo nu. A decrepitude agrediria mais que a concupisc�ncia. A
decomposi��o seria mais devassa que a descomposi��o. T�natos assediaria
mais que Eros.

O tom narrativo dos poemas, conduzidos mais como f�bulas que como
can��es, refor�a a intencionalidade do autor em "testemunhar"
fatalisticamente o triunfo da Morte sobre a Carne, bem como o poder
detonador do Sexo no seio da Fam�lia. Ou da Sagrada Fam�lia, se
considerarmos que, antes de f�bula, � de par�bola o estilo com que
Alencar parafraseia o sermonismo evang�lico, cutucando a todo momento o
puto pundonor dos puritanos, se � que ainda os h�. Nem saliento o teor
blasfemo dos versos, pelo simples fato de que o sacril�gio tem perdido
muito de sua carga iconoclasta, ao passo que a moral familiar ainda
conserva um resqu�cio de dignidade e indigna��o em cada um de n�s.

Na marcha f�nebre de Alencar a ru�na f�sica e dom�stica desfila sem


aparatos artificiais, sem pompas nem circunst�ncias formais. Os versos
n�o precisam rimar, as estrofes n�o carecem de m�trica, o poema n�o pede
formata��o. O que conta � o que se conta, e o que se conta precisa
passar da conta. No fim das contas, a �nica coisa que passa da conta � o
fim em si mesmo, ou seja, a morte, em toda a sua obscena obviedade. Como
se reconhec�ssemos: ainda que incestuoso, n�o � o sexo que desagrega a
fam�lia, mas sim a morte. O sexo mais separa que une. A morte s� separa.

Muito certeira, portanto, a necr�fila perspectiva de Alencar ao


desincumbir-se da miss�o de ilustrar a obscenidade dentro duma linguagem
po�tica. Entre mortos e feridos, todos sa�mos feridos, e quem morre n�o
se salva. S� a verdade da poesia amea�a perdurar.

///

[7] Para BARROCIDADE, de Amador Ribeiro Neto:

O MESTRE MENESTREL

A trajet�ria da poesia brasileira parece coincidir com a rota migrat�ria


dos nordestinos rumo aos n�cleos culturais sulistas: a legitimidade
nacional resulta da contribui��o regional que cada poeta agrega ao
painel metropolitano. Br�ulio Tavares, N�umanne Pinto e Severino do Ramo
s�o exemplos, s� entre os paraibanos, do transplante de ra�zes que deu
em frutos h�bridos no solo urbano, carioca ou paulistano. Menos comum �
a contram�o do p�riplo, quando o poeta deixa a Paulic�ia rumo � Filip�ia
paraibana, levando consigo a muda de hibridez para que vingue em solo
agreste.

Amador Ribeiro Neto cumpre esse incomum papel com consider�vel �xito.
Ele mesmo se intitula um "samparaibano da gema" (no poema "Arriba��o"),
mas n�o se trata dum n�made desarmado: se a Gil a Bahia dera r�gua e
compasso, a Amador a paulistanidade deu telesc�pio, microsc�pio e
caleidosc�pio. Seu tiroc�nio de professor o instrumentaliza para que
atinja o ambicioso objetivo de sintetizar, posmodernamente, elementos
t�picos da gel�ia geral brasileira.

Sonopl�stica (e onomatopaica, como no poema "Kl�xon"), a telegr�fica


linguagem de Amador repercute inventivamente o ecletismo do acad�mico
que, ao inv�s de enquadr�vel como tal, prefere enquadrar seus leitores,
a todos e a cada um, conforme o perfil. Como se dissesse: "Voc� �
construtivista? Ent�o tome isto!" (aglutinando fonemas paronom�sticos)
"Voc� � underground? Pois tome isto e mais isto!" (mixando rock e
fastfood, cine e gibi) E acerta no alvo, em todas as cabe�as.

Forma fragment�ria e fonema se aliteram e ecoam com fornica��o e


fesceninidade, escancarando o cal�o em poemas como "Fococarneval" e
"Tecnolama" ou "artdecodificando" a "globanaliza��o" (como o pr�prio
Amador diria no seu jomardiano jarg�o justaposto-posmoderno).

Sintomaticamente, muitos poemas s�o dedicados a algu�m que interferiu na


(cosmo)politiza��o do autor: a pernambucidade vibra atrav�s de Jo�o
Cabral (que trocadilha com Pedro), Gonzag�o, Alceu Valen�a ou Frederico
Barbosa; a mineiridade � invocada em Rosa e Drummond; a baianidade, em
Caetano, Gil e Tom Z�; a paraibanidade, em Augusto dos Anjos; a
concretude, nos Campos, em Mallarm� ou Cummings; a musicalidade, em Rita
Lee, Jackson do Pandeiro ou Itamar Assump��o; a paulistanidade, em suma,
em todos eles juntos.

O mosaico onomatopaico amadorano n�o �, portanto, amador�stico, mas


revela-se amoros�ssimo e apaixonado como um f�, evidenciando que a
especializa��o acad�mica nem sempre dissocia a tese do tes�o. No caso
deste mestre-menestrel, associa o l�rico ao tel�rico, o l�dico ao
l�brico, o h�brido ao m�nimo. Da torre ao torr�o, do barro ao ferro, da
pedra ao p�, a barroca urbanidade que Amador desconstr�i nos sugere que
a poeticidade ainda pode ser encontrada nas menores part�culas duma
cultura detonada e sucateada.

///

[8] Para A ENCOMENDA DO SIL�NCIO, antologia de Alberto Pimenta:

UM DESTEMPERO NA L�NGUA

Em 1980 registrei na coluna de resenhas "Livrando a capa" do JORNAL


DOBRABIL o seguinte coment�rio: "De Lisboa recebo a segunda edi��o da
monografia de Alberto Pimenta, DISCURSO SOBRE O FILHO-DA-PUTA (a
primeira � de 77). Vem com dedicat�ria 'Para Glauco Mattoso que jamais
ser� o pr�mio nobel nem sequer o pr�mio n�bil'. Pimenta � talvez o mais
avacalhado expoente da atual poesia de vanguarda portuguesa, e o livro
uma obra-prima, digo, filha da melhor epistemologia aplicada, ou seja,
um poeMA MAgistral, impagavelmente anotado em rodap� pelo professor
Telles Cap�lo (quem ser�?)."

Nos n�meros subseq�entes do DOBRABIL reproduzi fragmentos do DISCURSO e


passagens escatol�gicas de JOGO DE PEDRAS, amostras duma desconcertante
prosa po�tica (ou poesia prosaica) que levaram o pornopoeta Eduardo Kac
a providenciar uma edi��o brasileira do DISCURSO, tentativamente
classificado pela cr�tica portuguesa como "ensaio
sociol�gico-liter�rio".

Na verdade, Pimenta n�o cabe em nenhum r�tulo. Se para seus compatriotas


� um maluco, para os brasileiros � um maluco misterioso, o que lhe
aumenta a aura maldita. Defini-lo como um misto de Z� Celso e Sebasti�o
Nunes n�o seria suficiente para explicar suas excentricidades
perform�ticas e sua obra impertinente. Sinto-me irmanado a ele por n�o
ter medo de se sujar, mas se fosse luso de nascen�a eu lhe seria
disc�pulo, j� que Pimenta � da d�cada de 30.

Tamanha irrever�ncia � incomum, mesmo entre os vanguardistas mais


an�rquicos, mas o leitor atento perceber� que por tr�s do terrorista das
letras est� um humanista amoroso e amig�vel, preocupado com a
intoler�ncia e a opress�o, sens�vel � persegui��o das minorias e dos
"diferentes".

Tantas d�cadas passadas, � mais que oportuna a publica��o duma antologia


de Pimenta no Brasil. P�dua Fernandes, posfaciando-a, diz que a postura
contestat�ria de Pimenta desempenha uma "estrat�gia da inexist�ncia",
diversa da despersonaliza��o heteron�mica dum Pessoa ou do sil�ncio
ostracista dum Rimbaud (eu acrescentaria: tamb�m diversa do quasemutismo
minimalista dum Augusto de Campos), j� que Pimenta se insere naquela
inetiquet�vel categoria dos que se tornam personal�ssimos de tanto
questionarem a personalidade alheia, numa "est�tica de provoca�am"
(segundo a arcaizante express�o de Sebasti�o Nunes) da qual tamb�m fui
adepto enquanto advoguei um plagiarismo expropriador da autoridade
intelectual. V�tima volunt�ria, portanto, de sua pr�pria atitude
iconoclasta, n�o � de estranhar que a inexist�ncia de Pimenta em
Portugal ampliasse a lenda de sua inexist�ncia perante o p�blico
brasileiro. Lacuna contra a qual, temerariamente, trabalham os
organizadores desta edi��o.

Os portugueses t�m um prov�rbio que diz: "Alho e pimenta, o fastio


ausenta." No caso de Pimenta com P mai�sculo, pode-se at� dispensar o
alho, que o leitor jamais correr� o risco de ficar enfastiado.

///

[9] Para a antologia de Elson Fr�es:

O CONCRETO DISCRETO

Passada a fase afirmativa e informativa, a poesia concreta sobrevive �


contracultura e � p�s-modernidade, mas, em contrapartida, as gera��es
sessentista e setentista t�m a oportunidade de aferir seu sintax�metro
por par�metros mais diacr�nicos e ecl�ticos. Ao passo que os pr�prios
concretos revisitam marcos po�ticos ancestrais, relendo e transcriando
obras e autores referenciais, os p�s-concretos aprimoram sua fatura
gra�as ao exemplo pioneiro dos pais do paideuma. Enquanto o concretista
constata que as letras n�o s�o feitas s� com letras, seu sucessor
reconhece que o verso cursivo flui mais firme se incorpora a
construtividade.

Nas �ltimas duas d�cadas do s�culo, muitos desses herdeiros do


concretismo despontaram, como Leminski, Bonvicino e Ascher, assinando
com caligrafia pessoal sua filia��o � verbivocovisualidade, mas, j�
emancipados, seguiram novos e diversos rumos, ora epigramando, ora
sonetando, ora transcriando. Outros, mais bissextos e reservados,
permaneceram pesquisando e experimentando a palavra po�tica, mas sem se
exporem no centro do debate ou na vitrine da butique cultural.

Elson Fr�es enquadra-se neste �ltimo caso. Formado pela PUC paulistana,
tendo convivido com a milit�ncia semi�tica (e embora sempre atuante como
poeta visual, sonoro e virtual), nunca publicou em livro um balan�o de
sua produ��o, avulsamente dispersa em revistas, exposi��es e antologias.
Agora decide-se a faz�-lo (pelo menos no que tange ao plano textual), e
o resultado certamente pegar� de surpresa muitos observadores da poesia
contempor�nea, ainda desatentos ao detalhe qualitativo dessa consistente
obra.

Alguns consideram que ressoariam barrocamente as t�cnicas de joalheria e


relojoaria po�tico-visual quando aplicadas, n�o ao pr�prio poema
concreto, mas ao verso articulado. Se assim for, Fr�es tem, a seu modo,
muito de barroco. Efeitos intercambiantes de ox�moro e paronom�sia --
como "rimar o mirrar-se"; "�nfora afora"; "princ�pio e precip�cio";
"desfio o desafio"; "vida vi�s que se esvai"; "harpas como farpas";
"fogo que afaga"; "sentir sem ti"; "a brisa abrasa"; "nato para matar,
T�natos" -- ou conceitua��es filos�ficas desdobradas ("redobras de
c�digos") como no poema l�rico "Caro seja meu canto", ou ainda os jogos
espirituosos aglutinando chav�es filol�gicos no poema sat�rico "Retrata
o poeta..." -- tudo concorre para "barroquizar" a voz po�tica.
Mas a abrang�ncia do ide�rio froesiano vai al�m do mero maneirismo
l�xico-sem�ntico ou sint�tico (antes "sint�ctil", j� que o toque f�sico,
met�fora da percep��o intelectual, � um dos temas favoritos do poeta):
Elson transita com id�ntica acuidade entre a materialidade e a
metaf�sica. Veja-se, por exemplo, o contraste entre a ef�mera concretude
do papel impresso (no poema "Desleitura", uma de suas obras-primas) e a
perp�tua abstra��o do ente teol�gico (no poema "Encontro no escuro",
pe�a igualmente importante deste acervo) -- momentos em que a faculdade
anal�tica da poesia se coloca a servi�o do racioc�nio filos�fico,
lembrando os lampejos mais grandiosos de Rubens Rodrigues Torres Filho,
outro nome de peso das �ltimas d�cadas.

Da sensibilidade (e sensorialidade) do poeta n�o poderia escapar o


sentimento cujo sentido mais tem tocado a corda dos bardos: o amor,
tanto o carnal quanto o emocional. Fr�es volta e meia dedica seu d�dalo
verbal a alguma musa, logicamente t�o discreta quanto ele: a "car�cia
afiada" pode se dirigir � personagem dos poemas "Sinais", "Quase amor"
ou "Ode a Safo". Tamb�m no departamento tem�tico mais convencional nosso
autor n�o se furta �quele motivo sobre o qual todo poeta canta ao menos
uma vez na vida: a flor das flores, que Fr�es despetala, nexo por nexo,
no poema "Rosa, ae", outra obra-prima.

Se o c�mico ou o chulo n�o comparecem no repert�rio froesiano, �


justamente porque a circunspec��o (que n�o significa caretice) do poeta
tem olhos mais compenetrados e meditabundos, voltados para um universo
menos cru, mas n�o menos �spero ("artesanato crispado") dos continentes
e conte�dos ling��sticos.

Se j� demonstrou sua criatividade nas experi�ncias sonoras e visuais,


Fr�es atesta neste volume sua inventividade verbal, ou antes, sua
sagacidade em reler e reescrever fragmentos dum texto que j� estava
escrito desde sempre, uma vez que nada h� de novo sob o sol. Tendo
combatido � sombra por bom tempo, agora o discreto p�s-concreto vem �
luz para reluzir no claro-escuro da atual poesia brasileira.

[Novembro/2003]

///

[10] Para FOMEFORTE, livro de Andityas Soares de Moura:

Onde se pode, ainda, garimpar a mineiridade po�tica, neste alvorecer de


mil�nio? Se a mineiridade est� alicer�ada na arquitetura colonial, a
poesia � m�quina do tempo e pode, num quebrar de linha, passar da coluna
j�nica ao arcobotante, da ros�cea � mansarda, da marquise ao v�o livre.
Conciliar o ancestral ao virtual � o eterno desafio do poeta mineiro,
que j� gonzagou arc�dico, j� alphonsou simb�lico, j� murilou surreal e
j� drummondou social. Em m�os temos um que encara o desafio.

Andityas Soares de Moura, um at�pico goliardo hodierno, debate-se entre


a medievalidade e a modernidade, recolhendo os cacos de filosofia,
pintura ou m�sica entre as pedras do caminho barroco desbarrancado. Este
feixe de versos n�o costura: descose o discurso arquivado na estante
est�tica. Quando estamos diante do molde tradicional, como o dos
trovadores, glosadores e sonetistas, temos par�metros c�modos de
aquilata��o da pedra lapidada, mas quando a pepita � bruta ou
esfarelada, s� nos resta peneirar conceitos, coisa que a multifacetada
poesia de Andityas nos incita a fazer. Aqui h� muita informa��o
pulverizada, mas a leitura recupera um p� de estrada levantado pelo
vento da inventividade: pot-pourri de ala�de e bandolim. Como diz o
pr�prio poeta, em Tiradentes n�o se procuram bundas. Num poeta, se as
acham. Bundas intelectuais, entenda-se, cuja ventosidade varre os
derradeiros ciscos de preciosismo empedrado. As cantigas de Andityas s�o
gal�tico-amaneiradas, digo, amineiradas.

[Agosto/2004]

///

[11] Para AMSTERDAM SM, livro de Ant�nio Vicente Seraphim Pietroforte:

Esta novela er�tica configura um dos rar�ssimos casos de sadomasoquismo


intelectualizado em l�ngua portuguesa, cuja trama delineia verdadeira
tese est�tica: n�o por acaso, o autor leciona na �rea de letras da USP.
Narrada na primeira pessoa, mas n�o rigorosamente autobiogr�fica, a
viagem do professor brasileiro � capital dos submundos escapa �s
ambienta��es e aos pontos de vista j� ensaiados no g�nero: ao inv�s do
cen�rio chin�s de Mirbeau, franc�s de Pauline R�age ou lisboeta de Jo�o
Alves da Costa, o protagonista vai procurar na metr�pole holandesa o
pano de fundo para a cr�nica de uma morte anunciada. Por tr�s da fria e
meticulosa tortura ritualizada, desfila, � guisa de bizarro guia
tur�stico, uma multiplicidade de card�pios: mulheres, drogas, religi�es,
pr�ticas sexuais. Mas, divergindo do olhar feminino de Cassandra Rios ou
Wilma Azevedo, Vicente dialoga com Sade e Masoch pelo �ngulo do
dominador, cuja parceira vacila entre escravizar f�meas e escravizar-se
ao macho que, por sua vez, desfruta seu gozo terminal. Nesse har�m
transit�rio o autor posiciona o leitor, entre ruas e canais do labirinto
urbano, na dire��o do beco sem sa�da. Quantos de n�s vestiriam a
carapu�a de couro e se colocariam na pele lanhada destes personagens? S�
mergulhando no hipn�tico e sedutor relato de Vicente para sabermos que a
mulher descal�a de cabelo azul passa por n�s a todo momento, em toda
parte...

[Maio/2007]

///

[12] Para P�ROLAS PORCAS, antologia fescenina de Arievaldo Viana, Pedro


Paulo Paulino e Sylvio Roberto Sanctos, compartilhando o pseud�nimo
Manoel No Brega:

O trocadilhesco heter�nimo (e bote hetero nisso) que assina os sonetos e


as glosas de "P�rolas porcas" � porta-voz (ou porca-voz) dum grupo de
freq�entadores do lend�rio cabar� Vai-Quem-Quer, na cidade cearense de
Canind�. Colegas de vida bo�mia e de veia po�tica, come�aram tematizando
o pr�prio lupanar, exaurindo-o nas picantes rimas em "alho", e acabaram
extrapolando o ambiente prostibular em dire��o � universalidade da
putaria humana. O resultado se corporifica e se desnuda em dezenas de
sonetos e d�cimas que se flexibilizam entre a redondilha "de maior" e o
decass�labo "safado", com a elasticidade dum courinho de pica. Os
leitores de Bocage, de Greg�rio, de Moniz Barreto ou de Moys�s Sesyom,
na certa ir�o reesporrar ao lerem estas fesceninas s�tiras, em que o
baixo cal�o se nivela, no mais alto grau, ao baixo meretr�cio.

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[13] Para o livro de poemas ENCARNA, de Berimba de Jesus:

Volta e meia, cruzo com Berimba nalguma balada liter�ria. Numa dessas,
apresentei-o a Braulio Tavares e troquei as bolas: "Este � o Berimba, da
Cooperifa..." Ao que Berimba atalhou: "N�o! Poesia Maloqueirista!" Pois
�. A poesia setentista da minha gera��o foi "marginal" no que tinha de
coletivo: o mano-a-mano e o feito-em-casa. Mas no estilo de cada um foi
original. Agora � a mesma coisa: os grupos coexistem, mas a autoria
individual prevalece. Berimba � assim: muito enturmado e participante,
mas personal�ssimo na "pegada" leve e pesada ao mesmo tempo. Seus
"poemas restritos", breves nas linhas e amplos nas entrelinhas, n�o
fazem dele um desbundado pelo engajamento, nem o engajam no desbunde.
Seria talvez um rom�ntico desgarrado, e a pista estaria em versos como
estes: "Ficar invis�vel seria ideal. Se for o contr�rio, vou tirar a
m�scara, apresentar garras e navalhas." Ou como estes: "Moscas morrem em
contos de fadas, enquanto romances fazem a revolu��o, em sil�ncio, sem
ningu�m perceber." O reconhecimento da "literariedade" berimbiana passa,
como na vida de todos n�s, pela edi��o em livro, que chega em boa hora.
Se os primeiros "marginais" deixaram pegadas, hoje sou eu que fu�o nas
pegadas dos t�nis do Berimba...

[Agosto/2008]

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[14] Para MINIMA IMMORALIA, de Luiz Roberto Guedes:

COMER E LIMERICKAR, A QUEST�O � COME�AR

"Will you come up to Limerick?" -- Com este bord�o eram convidados ao


palco os an�nimos improvisadores que nos antigos saraus populares
espalharam pela Inglaterra a fama e a febre do limerick. O nome da
cidade irlandesa, assim como o da ilha americana de Nantucket e outros
top�nimos pitorescos, tornou-se ingrediente obrigat�rio nesta f�rmula
sint�tica, hoje t�o universal como o epigrama, o haicai ou a trova. No
ingl�s o molde se consolidou em torno da quintilha rimada em AABBA e
metrificada em tr�s tr�metros (primeiro, segundo e quinto versos) e dois
d�metros (terceiro e quarto versos), sendo os p�s iniciais j�mbicos e os
demais anap�sticos, ou apenas anapestos em alguns versos. Transposto o
conceito para a m�trica portuguesa, equivale a dizer que a t�nica dos
versos em A cai na segunda, quinta e oitava s�labas (ou terceira, sexta
e nona), e a dos versos em B cai na segunda e quinta (ou terceira e
sexta). Quanto � tem�tica, o limerick abusa do fescenino, isto �, a
infus�o do chulo no c�mico, mas nem sempre foi assim. A princ�pio o
g�nero era s�rio e s�brio, mas depois de Edward Lear, cujo BOOK OF
NONSENSE � de 1846, a f�rmula passou a girar em torno dum mote
(enunciado no primeiro verso, quase sempre terminado com um nome
geogr�fico que serve de pretexto para a goza��o), cuja glosa geralmente
mistura o obsceno com o absurdo para conseguir o efeito hil�rio.

Assim como o haicai se ocidentalizou, tamb�m o limerick sofreu


adapta��es no portugu�s do Brasil. Quem mais contribuiu para a
divulga��o do limerick em terras tupiniquins foi o poeta e letrista
paraibano Br�ulio Tavares, que rebatizou o g�nero como "limeirique",
trocadilhando com o lend�rio cantador conterr�neo Z� Limeira, conhecido
como o "poeta do absurdo". Tamb�m eu introduzi algum experimentalismo na
f�rmula, quando adotei a m�trica do tanka (um tipo de haicai
estramb�tico composto de cinco versos de 5/7/5/7/7 s�labas) e pratiquei
o limeirique em 7/7/5/5/7 a t�tulo de par�dia.

Com Luiz Roberto Guedes d�-se o inverso. Em lugar de reconstruir, o


poeta paulistano desconstr�i o limerick, soltando as amarras e deixando
o barco flutuar ao sabor do verso livre e da rima toante. Gra�as a este
expediente, t�o bem exercitado por Mill�r em rela��o ao haicai (e pelo
pr�prio Br�ulio no limeirique), Guedes recupera o sentido do deboche
original, repintando a piada em cor local. O resultado � saboroso,
condimentado -- aquele gostinho de "quero mais" dum cartucho de pipoca
ou dum prato de torresmo. Divirtam-se e deliciem-se, pois (sem se
fartar) os apreciadores do aperitivo picante que ati�a o paladar dos
comensais, �vidos de novos e variados banquetes po�ticos.

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[15] Apresentando Moreira de Acopiara para a revista LABORAT�RIO DE


PO�TICAS:

Impossibilitado de ler jornaes, tenho accompanhado o noticiario pelo


radio. Certa manhan, ou�o a reportagem que divulga o Chordel na Cortez,
feira de folhetos que juncta auctores, leitores e ouvintes na conhescida
livraria paulistana. Ja ha quasi duas decadas affastado do convivio com
os poetas populares, eu andava desanimado com a mediocridade em que
cahira o chordelismo. Mas eis que, entrevistado pelo reporter, um dos
menestreis se appresenta como presidente da Academia Brazileira e
declama algumas decimas em martello aggalopado. Era ninguem menos que
Moreira de Acopiara dando uma admostra do poema em que se orgulha de ser
um nordestino. Attento, fui escandindo os versos � medida que o poeta os
recitava, com sua dic��o calma e clara, e de immediato reconhesci o
perfeito dominio do decasyllabo, sommado ao rico emprego das rhymas e,
sobretudo, ao conhescimento de causa no tracto da thematica, mixturando
factos e nomes da cultura nordestina ao scenario urbano da metropole
paulistana. Foi assim, accidentalmente, que me deparei com um typico
excerpto do neochordelismo (ou do "novo chordel", como carinhosamente o
chamam seus proprios cultores), na voz de um de seus mais notaveis
representantes. Practicante que sou do sonnetto no formato classico,
tenho plena consciencia da difficuldade addicional offerescida pelo
decasyllabo em rela��o � redondilha maior, e de prompto percebi estar
deante do eximio collega de officio poetico. Guardei-lhe o nome, aliaz
inesquecivel pela singularidade, e consultei meu parceiro de gera��o,
Braulio Tavares, que me refor�ou o bom conceito da primeira impress�o.
N�o tardou para que surgisse a opportunidade do contacto, ja que uma
professora universitaria do Recife, Maria Alice Amorim, preparava sua
these sobre pellejas virtuaes e suggeriu que nos desaffiassemos. Dahi
nasceu n�o apenas mais uma pelleja, hoje corrente em folheto e no
cyberespa�o, mas uma grande affinidade entre dois eclecticos
versejadores. Moreira me appresentou a outros excellentes chordelistas e
glosadores, como Arievaldo Vianna e Sylvio Roberto Sanctos, cearenses
como elle, mas que, ao contrario do auctor de "Beab� do chordel e do
repente", n�o vieram radicar-se numa cidade satellite da Paulic�a. Hoje
vejo em Moreira a perfeita synthese do neochordelismo: erudi��o capaz de
transcrear at� a "Divina Comedia" em sextilhas, versatilidade capaz de
glosar qualquer motte, sobre quaesquer assumptos, originalidade capaz de
personificar um authentico "eu lyrico" benevolente ao pellejar com um
cego antiheroico, e principalmente a op��o esthetica pela qualidade a
ser preservada num genero que ja andou meio maltractado mas que recupera
as melhores tradi��es da poesia popular lusophona. Posso attestar, sem
receio de erro, que Moreira representa a natta do genero e contribue
para que o chordel alcance, na historia da litteratura vernacula, um
patamar digno das grandes escholas, desde o romantismo (quando Laurindo
Rabello conviveu com Moniz Barreto) at� o posconcretismo (quando Gil,
Caetano e outros lettristas redescobriram a riqueza do verso rhymado),
ou seja, ouso dizer que agora sou eu quem convive com um confrade do
nivel de Moreira de Acopiara.

[Mar�o de 2009]

///

[16] Para a anthologia DESFAMILIARES, de Leila Miccolis:

SONNETTO 5201: "IRMAN NO AFFAN" [29/3/2012]

Prefacios ja n�o fa�o, mas no caso


de Leila, esta excep��o cabe, opportuna,
no ensejo duma critica fortuna,
pois toda "obra completa" envolve attrazo.

Tractando-se de Leila, n�o ha prazo:


seu verso n�o dephasa. Foi tribuna
de lucta libertaria: quem reuna
seus livros n�o far� conceito raso.

Linguagem desboccada, �s vezes, como


se espera da mulher que modos muda,
mas lyrica e eloquente, em cada tomo.

Com ella me irmanei na phase aguda


da lucta e, si meus versos hoje domo,
lhe devo algo, no amor, na dor, na adjuda.

///

[17] Para livro de Steven Butterman sobre a parada gay paulistana:

SONNETTO 5246: "AVAL AO CARNAVAL" [5/4/2012]

Escreve Steven Butterman, e eu leio:


dum lado, anno apoz anno, esta parada
do orgulho gay, na midia, retractada
� como, ja, "a maior". Nisso at� creio...

Por outro lado, sabe-se no meio


que, mesmo estando a compta exaggerada,
a visibilidade importa cada
vez mais: visto de cyma, o espa�o � cheio.

Quer Butterman propor que alguem reflicta


si alguma coisa muda para o gay
que brinca um dia, emquanto a imprensa o cita.
O auctor como enthusiasta della, eu sei,
se mostra, mas conhesce o officio: evita
achar que s� parada altera a lei.

///

[18] Prefacio para collectanea do Movimento Pornaso:

FESCENNINIDADE NA CONTEMPORANEIDADE

As litteraturas nacionaes teem por norma levantar seus balan�os e


inventarios de tempos em tempos, de preferencia a cada seculo. Mas, num
departamento t�o mal mappeado quanto o da poesia fescennina lusophona, �
empreitada por come�ar. Basta lembrar que, no caso brazileiro, as
compila��es de Alexei Bueno, ANTHOLOGIA PORNOGRAPHICA: DE GREGORIO DE
MATTOS A GLAUCO MATTOSO, e de Eliane Robert Moraes, ANTHOLOGIA DA POESIA
EROTICA BRAZILEIRA, s� sahiram neste seculo, como s� neste seculo a
produc��o oitentista do Movimento de Arte Porn� encabe�ado por Eduardo
Kac e Cairo Trindade (successor immediato da "poesia marginal"
septentista) vem a ser thema de exposi��es na Hespanha e nos States.
Juncta-se a fome com a vontade de comer (ou o tes�o com a vontade de
foder), ou seja, o estructural attrazo da cultura tupynikim com a
ancestral clandestinidade da pornographia lyrica que, paradoxalmente,
accaba se constituindo em vanguarda goliarda e taverna posmoderna.

O autodenominado Movimento Pornaso � typico exemplo desse pulsar cyclico


que se accelera a cada orgasmo chronologico. Como bem lembram Z� Amorim
e Diego Moreira, mentores dessa ludica adventura poetica, a tradi��o
fescennina remonta a Catullo e Marcial e attravessa Gregorio. Eu
accrescentaria que perpassa a medievalidade dos goliardos e a
modernidade dos "maldictos" para, em solo tropicalmente anthropophagico,
reinventar-se na "poesia de bordel" dos glosadores nordestinos, desde
Moniz Barreto at� Braulio Tavares, passando pelos lendarios Moys�s
Sesyom e Z� Limeira. Tanta recyclagem excappa, invariavelmente, ao crivo
dos compiladores, por mais pluralista que seja a perspectiva academica.
Affinal, o fescennino desconstroe todas as theorias estheticas e paira
accyma dos "ismos" do espirito, comprovando que o erotismo (o mais
corporal), reflectindo a diversidade sexual, comporta todas as formas,
metros, rhythmos e rhymas.

Tal como em Kac e Cairo, a poeticidade erectil de Amorim e Moreira �


eclectica e metamorphoseia-se em sonnetto, em madrigal, em epigramma, em
haikai, no decasyllabo, no alexandrino ou na redondilha. Sim, e no
versilibrismo tambem, que o pau n�o � de ferro, nem o cu. Os dois
"pornasianos" catharinenses, graduados em lettras e satyros inveterados,
d�o compta do recado (ou no couro, mais propriamente) com armas e
bagagens, desde a referencia mythologica em "Dos Arcos" at� o dado
historico em "O Pau-Brazil", incluindo o detalhe escatologico em
"Escatulogico" ou em "Grego vaso". Mais uma vez se patenteia, na
pennipotente veia amorimoreiriana, que eruditismo e chulismo podem
concretizar a perfeita synthese dialectica, s� viavel em poesia.

Perguntei a Amorim sobre outros integrantes do Pornaso e elle adduziu


que, para tal typo de movimento, dois parceiros s�o mais que
sufficientes, resalvando eu que na lyrica de ambos n�o faltam parceiras
e que, em ultima analyse, basta uma unica cabe�a para que esteja
consummada a bacchanal onanista, seja esta a do auctor ou do leitor.

Observo com enthusiasmo (para n�o dizer com orgasmo) que o genero
fescennino n�o � apenas um "veio subterraneo" (como dizia Z� Paulo
Paes), mas um veio inexgottavel, t�o insaciavel quanto a libido que
semeia as gera��es propriamente dictas, bem como as poeticas. Espero n�o
ser demasiado optimista si antevejo para esses actuaes goliardos um
merescido reconhescimento, em prazo mais breve que as decadas
transcorridas desde as censuradas satyras de Laurindo Rabello at� as
escancaradas performances de Kac e Cairo. Amorim e Moreira agora seguram
o bast�o (Opa!) e a elles cabe passal-o aos proximos representantes do
revezamento pornolympico, lembrando que, em tempos de infoviagra, os
bardos da "edade midia" n�o correm o risco de passar pelo desconsolo do
thio Jorge.

[Novembro de 2015]

/// [5/11/2015]

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