Hopffer de Almada Confraria - Revista de Literatura e Arte
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CONFRARIA - REVISTA DE LITERATURA E ARTE 30/06/2024, 07:03
A experiência poética universalizante fora reencetada por João Vário com Horas sem
carne, livro de poesia publicado em 1958/59 e repudiado, pouco tempo depois, pelo
autor, por alegadamente resultar da “má factura de um poeta neófito”. A despeito da sua
retirada do mercado, excertos e poemas do mesmo livro foram integrados (à revelia do
autor, diga-se) em antologias marcantes como Modernos Poetas Cabo-Verdianos, de
Jaime de Figueiredo, ou No Reino de Caliban, de Manuel Ferreira. A atestar a valoração
estética positiva dessa poesia por parte desses antologizadores, mesmo se, por vezes,
considerada “defasada” de uma realidade estritamente cabo-verdiana, tenham-se em
conta as seguintes palavras de Jaime de Figueiredo: “João Vário nos primeiros passos
ainda da realização poética, surge revestido de forte armadura de conceitos de ordem
metafísica, e entre bela construção de palavras, e imagens, debate-se em íntimas
contradições, cuja problemática profunda não se desprende de válido conteúdo
existencial” (Prefácio a Modernos Poetas Cabo-Verdianos, 1961).
Seguem-se os vários Exemplos, dados a lume, desde os princípios dos anos 60,
primeiramente na revista coimbrã “Êxodo” e depois em livro, num total, até agora, de
nove dos doze previstos e datando o primeiro livro, o Exemplo geral, de 1966. Trata-se de
um conjunto de doze longos poemas narrativos, de interpretação ontológica, para usar a
terminologia ensaística de T. T. Tiofe, organizados em “Cantos”, abertos e fechados por
uma “Ode”. Dois dos Exemplos (Exemple restreint e Exemple irreversible) foram escritos
em francês, estando previstos dois volumes em inglês (European example e American
example).
Quanto ao qualificativo negro greco-latino constante da fala chã e telúrica de Bia d’Ideal,
reprodutora da erudição de Corsa d' David (um quase pseudónimo de Corsino Fortes para
a poesia e a escrita em crioulo), no poema “Carta d' Bia d'Ideal” do livro Pão e fonema,
de Corsino Fortes), cremos ser possível constatar nela uma irónica censura a Junzin,
agora chamado João Vário ou T. T. Tiofe, por parte da mãe Bia, pelo seu alegado
distanciamento das coisas cabo-verdianas e da “água da nossa secura”, ao mesmo tempo
que a voz erudita do poeta Corsino Fortes reconhece a permanência das fontes e das
ressonâncias islenhas na poesia certamente de T. T. Tiofe: “Junzin! Até na boca de
Soncente/ bô nome agora ê Vário ô T. T. Tiofe/ E Corsa de David dzê/ C’ma bô ê um
negro negro greco-latino/ Ma! Dvera dvera/ As ondas/ já trepam/ os degraus do teu
poema/ E quebram no violão da ilha/ Tectos da Europa/ sob as nossas cabeças”.
Reconhecendo que Vário foi “vítima inicial de uma injusta e generalizada acusação de
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poesia deve ser uma reflexão, presente em cada página. Esta reflexão estabelece os
alicerces dos versos, fornece-lhes o léxico e o ritmo, as unidades estruturantes de som e
sentido”. Prossegue João Vário na mesma entrevista: “Estou convencido de que é neste
tipo de poema que o extracto das ideias metafísicas se apresentam como
verdadeiramente crucial, porque é um motor ou promotor dos nexos e do temperamento
órfico do discurso, quando os restantes extractos dão mostras de estagnação, de
esgotamento e de impasse, apesar da pesquisa de diverso teor que tiver preparado a
escrita (…). Como se depreende da obra de grandes mestres do longo poema narrativo,
Homero, Virgílio, Dante, Milton, Eliot, Pound, Perse, a reflexão é o fio da meada: dita a
regra de ouro da construção, da coesão, do comprometimento entre a unidade e a
variedade, e alinha tudo, uma espécie também de fio-de-prumo. Chamei a esse fio de
meada e esse fio-de-prumo metafísicos, no caso da minha poética, a cogitação
irrepreensível”. Desenvolve o poeta: “O que tinge a voz de um poeta tão originalmente
(…) é sobremaneira o que a reflexão faz do léxico ou o que exige que ele faça, a
inesperada metamorfose que ela opera com palavras comuns, a bem do esplendor e de
uma luz que não se esperava que fosse própria do homem”. Conclui o poeta João Vário:
“A cogitação irrepreensível, que também recolheu todos os prefácios aos mais diversos
sortilégios, porque é assim que, com intermitência, pode decalcar o texto do destino, a
estupefacção mais barroca possível para semear a sonoridade metafísica, a versão que o
poeta privilegia da verosimilhança”. Quanto ao instrumentário imagético utilizado na obra,
diz o autor: “como é feito o utensílio, a metáfora pode ser inferido do que se tem dito: é
feita, por via de regra, de palavras abstractas fornecidas por uma meditação sobre o mal,
o sofrimento, o perdão (ou a misericórdia) e o carácter imponderável da verosimilhança,
esses meus temas primordiais. Ou seja, há uma estrutura gnoseológica produzindo e
manipulando o estado da metáfora, ou da semântica, se preferir. Quando não é assim, é
porque por amor da beleza, não quis que a opacidade do mundo passasse à frente da
leveza do lirismo e da primeira sensibilidade, a que tudo entende atravessando esse miolo
alegre da consciência e do tempo”.
A mudança de paradigma a que acima se referia João Manuel Varela (T. T. Tiofe) tornou-
se, na actualidade, opção consciente e deliberada de ruptura quer com a mundividência
telúrica enclausurada do homem insulado na sua resignação, quer com a palavra
rudemente imprecativa de alguma rebeldia cantalutista (na acepção que lhe é também
atribuída por João Manuel Varela como “artefactos poéticos” destituídos da arte poética
intrínseca à verdadeira poesia), quer ainda com a linguagem especificadora, na sua
pertinência identitária, e oficinalmente depurada na sua chã indumentária, no seu
“vocabulário concreto” do português literário usual na poesia cabo-verdiana de feição
telúrica.
Tal opção representa um dos signos maiores da nossa contemporaneidade poética e é por
demais visível na poesia de vários vates cabo-verdianos.
Desse assíduo cultor da revisitação da cultura greco-latina que é Arménio Vieira, a partir
sobretudo da sua recusa em participar na nojenta gastronomia poética que seria a escrita
de ortopoemas, transitivos na sua degradação utilitária ou instrumentalização político-
ideológica. Não obstante a consciência de que setembro dói e sangra, as opções estéticas
de Arménio Viera decorrem da descoberta de que "ser poeta a sério implica uma espécie
de suicídio" e que "é pela metaforização do discurso que se salva o pensamento". A
poesia mais significativa dessa ruptura e tomada de consciência metacrítica (como a
caracteriza José Vicente Lopes no estudo "Novas Estruturas Poéticas e Temáticas na
Poesia Cabo-Verdiana", in "Ponto e Vírgula”, nos 16 e 17, de 1986) consta sobretudo dos
cadernos "A noite e a lira", "A musa breve de Silvenius" e "Poesia Dois" do seu livro
Poemas (1981) e vem sendo retomada nos poemas dispersos dados posteriormente à
estampa. Anote-se que a poesia transitiva, isto é, socialmente comprometida, constante
do caderno "Poesia Um" ou dispersa e anterior a 1971, caracteriza-se por também fugir
ao usual cânone estético da poesia cabo-verdiana, quer pela forte presença da ironia e do
sarcasmo, como meio estético de trangressão, quer pelo papel que nela desempenham a
aliteração, o desencanto metafísico e o jogo com o absurdo, mesmo quando recorre a
mitos greco-latinos, dessacralizando-os. De interesse é também o parentesco linguístico,
estético-formal e filosófico entre alguma poesia de interpretação ontológica de Arménio
Vieira (por exemplo, "Canto do Crepúsculo" e "Homenagem a quem…", e a poesia de João
Vário.
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De Oswaldo Osório, que segundo Arnaldo França é "um dos mais lídimos representantes
da moderna literatura cabo-verdiana" ("Os loucos poemas de amor e outras estações
inacabadas de Oswaldo Osório", in "Artiletra", no 75, Janeiro de 2006). Outrora cultor da
conjugação do cantalutismo (no sentido de poesia de exaltação da terra cabo-verdiana e
do seu habitante) e do incansável labor da linguagem, inserta mais em Cântico do
habitante, seguido de duas gestas do que em Caboverdiamadamente construção, meu
amor (poemas de luta). Oswaldo Osório alia, de forma marcante, nos livros Clar(a)idade
assombrada e Os loucos poemas de amor e outras estações inacabadas, a depuração e a
concisa lapidação da palavra, a uma meditação aturada e, simultaneamente, saturada de
descrença e de um cepticismo, que, permanecendo entre os estertores de um ainda
sobrevivo e, por vezes, eufórico optimismo, sobrevoa a dialéctica das convulsões e da
passagem do tempo, da idade e das utopias (como se verifica, por exemplo, nos poemas
"signo poético", "quotidiano", "horoscopografia", "quando formos passado", "país",
"crónica do cavaleiro de má fortuna"). Cabe nessa mundivisão, a eufórica e comovida
saudação de "julho nosso orgulho" e da liberdade pátria ("bom dia, cabo verde") e a, por
vezes disfórica, interrogação dos novos tempos, dos novos desapontamentos, do Oswaldo
Osório de Clar(a)idade assombrada e das "estações inacabadas". Por exemplo, em “país”,
das “estações inacabadas II”: “este país dói-me:/ como uma faca de dois gumes/
atravessada no coração/ se rio, alcanço/ se choro, fujo/ alvoroço bêbedo/ entre o não-
saber e um copo/ ou intervalo de que fujo/ resisto a quem ministra o ranço”. Ou em
“quotidiano”: “II (…) com o verde ocupado pelo seco castanho/ que resta da esperança de
antigamente? (…) VI (…) E todavia, cabouqueiros que fomos deste mundo/ quem, de
justas consciência, ousaria acusar-nos de antropofagia?”. Ou ainda em “crónica do
cavaleiro de má fortuna”: “aquém – espelho engano mágoas desventura/ do lado de lá a
coroação prazeres a boa estrela/ tudo imensa fraude passageiramente real”. De todo
modo, a herança permanece intacta, pois que “a chama que foi ardente/ não se
arrepende de ter brilhado”, como conclui o poeta.
A preocupação com o domínio dos meandros e das nuances da língua de labor literário e
da linguagem literária como signo distintivo do discurso da arte na literatura esteve assaz
presente na escrita literária cabo-verdiana. É o que denotam a obsessão perfeccionista
dos nativistas, hesperitanos e outros pré-claridosos, e a busca pelos claridosos de uma
linguagem e de uma estética em língua portuguesa identitariamente sincronizadas com as
nossas raízes crioulas (de que deveriam ser indícios, vestígios, testemunhos e
repositórios sociológicos, antropológicos e linguístico-literários). Tal afirmação não
desvaloriza o facto de a linguagem e a estética terem sido descuradas por um certo
cantalutismo, mais peremptório na sua premência e veemência combativas, tendo
atingido o limiar da catástrofe estética no panfletarismo do pós-25 de Abril e nos actuais
e apressados escrevinhadores de palavras em escadinhas.
Por outro lado, a mudança de paradigma que vem ocorrendo nas letras nacionais
evidencia-se fundamentalmente no plano da linguagem e tem suscitado também
mudanças de monta nas estirpes poéticas socialmente engajadas e comprometidas e com
uma motivação e temática especificamente cabo-verdianas, numa tradição, aliás, que
remonta a ícones da poesia cabo-verdiana, como Gabriel Mariano.
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Publicado, na sua primeira versão e sem o "Discurso V", em 1975, O Primeiro Livro de
Notcha foi reeditado em 2000 como parte integrante de O Primeiro Livro de Notcha e O
Segundo Livro de Notcha. A publicação do livro provocou, na altura, um grande alarido no
seio da crítica, sobretudo porque João Manuel Varela, agora utilizando o heterónimo T. T.
Tiofe, parecia distanciar-se da escrita de interpretação ontológica, considerada
desenraizada, de João Vário.
Concluindo
JOSÉ LUÍS HOPFFER C. ALMADA nasceu a 9 de dezembro de 1960, em Santa Catarina, Ilha de Santiago.
Licenciado em direito pela universidade Karl Marx, de Leipzig. Sob o pseudônimo de Zé di Sant´iagu,
publicou À sombra do sol, 1990, e Assomada Nocturna, 1993.
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