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Hopffer de Almada Confraria - Revista de Literatura e Arte

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CONFRARIA - REVISTA DE LITERATURA E ARTE 30/06/2024, 07:03

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revista

josé luis hopffer c. almada

estes poetas são meus


(alguns marcos na poesia cabo-verdiana contemporânea)

Sinais de pluralismo estético

Assiste-se no período imediatamente subsequente à liberdade política, de 74, e pátria, de


75, à reconfiguração da poesia cabo-verdiana e a uma doravante menos negativa
recepção das suas experiências de renovação temática e estética. Tais experiências
reforçam-se, em especial com os livros Pão e fonema (1974), de Corsino Fortes, O
Primeiro Livro de Notcha (1975), de T. T. Tiofe, e mais n’O cântico do habitante, seguido
de duas gestas (1977), do que Caboverdiamadamente construção, meu amor (1975), de
Oswaldo Osório, que se vêm juntar ao labor pioneiro de João Vário (um dos heterónimos
de João Manuel Varela), iniciado, nos inícios dos anos sessenta, com Exemplo geral e
Exemplo relativo, e prosseguido no imediato pós-independência com Exemplo dúbio, de
1975, e Exemplo próprio, de 1980. Acrescem ainda a colectânea Jogos florais 1976 (ICL,
Praia, 1977), onde se consagram “a musa breve de Silvenius” de Arménio Vieira
(integrado no seu livro Poemas, de 1981, e o vanguardismo surrealista de Jorge Carlos
Fonseca, e as revistas “Raízes” (Praia, 1977-1984) e “África” (Lisboa, 1978-1983), a
marcar os primeiros sinais de um vivenciado, senão assumido, pluralismo estético.

Isso ocorre, não obstante a muito provisória hegemonia da poesia cantalutista,


especialmente na sua perversão panfletária, e a continuidade da tradição claridosa, mais
na prosa de ficção, magistralmente renovada por Teixeira de Sousa em “Ilhéu de
Contenda”.

Na verdade, esse tempos primevos do primeiro quinquénio da independência,


caracterizam-se pelo terçar de armas estéticas e pela coexistência, nem sempre pacífica,
entre diversas tendências estético-ideológicas (construtivistas, críticas, de indagação
metafísica ou existencial ou deliberadamente desenraizadas de um chão assumidamente
cabo-verdiano).

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Assiste-se, assim, nesse período, à plena e desinibida aparição e/ou pleno


reconhecimento de diversas correntes radicalmente modernas, por vezes assumidamente
e/ou satiricamente distanciadas do telurismo identitário ou do comprometimento político-
social, como estirpes poéticas cabo-verdianas de pleno direito, a par da consagração
estética da poesia nacionalista da Nova Largada e das tentativas da sua reformulação
estético-ideológica para os tempos das primícias de um “homem novo”, sujeito que se
quer consciente, mesmo que a contragosto, das mudanças sociais propostas pela
vanguarda política, o PAIGC/CV, tal como intentou fundamentar o espírito lúcido e
intelectual orgânico que era Manuel Duarte (“Breves notas sobre a literatura cabo-
verdiana”, Raízes, nº 21, Praia, 1984).

... E indagação de novos paradigmas

A experiência poética universalizante fora reencetada por João Vário com Horas sem
carne, livro de poesia publicado em 1958/59 e repudiado, pouco tempo depois, pelo
autor, por alegadamente resultar da “má factura de um poeta neófito”. A despeito da sua
retirada do mercado, excertos e poemas do mesmo livro foram integrados (à revelia do
autor, diga-se) em antologias marcantes como Modernos Poetas Cabo-Verdianos, de
Jaime de Figueiredo, ou No Reino de Caliban, de Manuel Ferreira. A atestar a valoração
estética positiva dessa poesia por parte desses antologizadores, mesmo se, por vezes,
considerada “defasada” de uma realidade estritamente cabo-verdiana, tenham-se em
conta as seguintes palavras de Jaime de Figueiredo: “João Vário nos primeiros passos
ainda da realização poética, surge revestido de forte armadura de conceitos de ordem
metafísica, e entre bela construção de palavras, e imagens, debate-se em íntimas
contradições, cuja problemática profunda não se desprende de válido conteúdo
existencial” (Prefácio a Modernos Poetas Cabo-Verdianos, 1961).

Seguem-se os vários Exemplos, dados a lume, desde os princípios dos anos 60,
primeiramente na revista coimbrã “Êxodo” e depois em livro, num total, até agora, de
nove dos doze previstos e datando o primeiro livro, o Exemplo geral, de 1966. Trata-se de
um conjunto de doze longos poemas narrativos, de interpretação ontológica, para usar a
terminologia ensaística de T. T. Tiofe, organizados em “Cantos”, abertos e fechados por
uma “Ode”. Dois dos Exemplos (Exemple restreint e Exemple irreversible) foram escritos
em francês, estando previstos dois volumes em inglês (European example e American
example).

A experiência universalizante valeu ao poeta João Vário a ostracização por parte da


generalidade dos literatos e ensaístas nacionalistas e teluristas cabo-verdianos da sua
geração, tendo sido apodado de poeta desenraizado por uma grande parte da crítica
académica, com destaque para os universitários Russel Hamilton e David Brookshaw, e da
crítica impressionista da geração dele. Críticas que João Manuel Varela parece
compreender e, até, aceitar, quando na introdução a O Primeiro Livro de Notcha escreve,
pela pena de T. T. Tiofe, que até então tinha dado a público, sob o pseudónimo de João
Vário, “uma poesia que nada tinha a ver com os problemas específicos de Cabo Verde”.
Na verdade, T. T. Tiofe repudia veementemente essas críticas, a que, aliás, respondera a
priori iniciando, em 1961, a escrita da obra que a sua geração alegadamente dele
aguarda ou aguardava, pouco depois de ter começado a elaboração dos Exemplos. A
escrita das duas obras iniciou-se, assim, quase simultaneamente, no dealbar dos anos
sessenta, como explica o próprio autor no prefácio a O Primeiro Livro de Notcha, e reitera
em algumas das Epístolas ao meu irmão António.

Quanto ao qualificativo negro greco-latino constante da fala chã e telúrica de Bia d’Ideal,
reprodutora da erudição de Corsa d' David (um quase pseudónimo de Corsino Fortes para
a poesia e a escrita em crioulo), no poema “Carta d' Bia d'Ideal” do livro Pão e fonema,
de Corsino Fortes), cremos ser possível constatar nela uma irónica censura a Junzin,
agora chamado João Vário ou T. T. Tiofe, por parte da mãe Bia, pelo seu alegado
distanciamento das coisas cabo-verdianas e da “água da nossa secura”, ao mesmo tempo
que a voz erudita do poeta Corsino Fortes reconhece a permanência das fontes e das
ressonâncias islenhas na poesia certamente de T. T. Tiofe: “Junzin! Até na boca de
Soncente/ bô nome agora ê Vário ô T. T. Tiofe/ E Corsa de David dzê/ C’ma bô ê um
negro negro greco-latino/ Ma! Dvera dvera/ As ondas/ já trepam/ os degraus do teu
poema/ E quebram no violão da ilha/ Tectos da Europa/ sob as nossas cabeças”.

Reconhecendo que Vário foi “vítima inicial de uma injusta e generalizada acusação de

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desenraizamento”, explica Arnaldo França tal atitude “por os condicionalismos epocais


marginalizarem qualquer não comprometimento evidente à autonomia nacional”.

Ultrapassados esses constrangimentos podia Oswaldo Osório homenagear o poeta João


Vário em Clar(a)idade assombrada: “ó vár…/ varão ilustre que cavalgas o dorso do
mundo/ nosso epos após ti!”.

A cultura ocidental como arma miraculosa

Referindo-se à universalização (no sentido de destelurização na temática, nos motivos


e/ou na linguagem) proposta e praticada pelos heterónimos poéticos de João Manuel
Varela, bem como por uma franja significativa da poesia cabo-verdiana actual, diz T. T.
Tiofe numa das epístolas ao seu irmão António (“Segunda Epístola ao meu irmão António
– A propósito de Pão e fonema, de Corsino Fortes”, in O Primeiro Livro de Notcha e O
Segundo Livro de Notcha, Edições Pequena Tiragem, Mindelo, 2001):“sirvo-me da cultura
ocidental como duma arma miraculosa, como dizia Césaire, para elaborar a partir de
coisas nossas, de raízes específicas, uma poesia de interpretação ontológica ou uma
poesia cabo-verdiana de vigor novo. E para ter uma consciência aguda deste mundo ou
deste século. Admito, como Senghor, que tudo é mais fecundo adentro duma tal
mestiçagem cultural”. Dissecando especificamente a poesia do heterónimo que se ocupa
da poesia ontológico-metafísica, prossegue o autor na Oitava epístola ao meu irmão
António: “O esforço de Vário, quando escreve, consiste em ter presente, tanto quanto
possível, no seu espírito ou na sua arte poética, toda a tradição (ou as técnicas
significativas) da poesia universal”. Num outro momento da mesma epístola e
prosseguindo na análise da poesia de João Vário, escreve T. T. Tiofe: “Essa poesia
ontológica surpreendeu muitos compatriotas ou não foi, simplesmente, aceite (…) embora
como frisei algures (cfr. entrevista a Filipe Correia de Sá, Voz di Povo, 1992) espante que
num país, como o nosso, com um passado de mortes, pela fome, pela doença, uma
história de múltiplas carências várias, tal como o próprio continente, não tenha visto de
imediato que isso levava, naturalmente, a reflectir sobre a vida, o destino, a mortalidade,
numa palavra, sobre a condição humana, que tudo isso levaria a seu tempo a uma
criação literária de índole ontológica, que poderia dar a impressão de nada ter a ver com
o arquipélago, mas que, no entanto, estaria a ela ligado por essa reflexão assim
suscitada. Uma problemática que provocaria, algum dia, o aparecimento dum poeta,
duma poesia dessa natureza no seu seio. Tive a má ou a boa sina, enquanto João Vário,
de ser o primeiro desse tipo de poeta, de forma mais manifesta, porque já tenho dito que
tal também é o caso da poesia de Osvaldo Alcântara (…)”. Na alocução que proferiu, em
Paris, em 1984, por ocasião do Colóquio Internacional sobre Literaturas Africanas de
Língua Portuguesa, organizado pela Fundação Calouste Gulbenkian, João Manuel Varela
considera o “período actual”, subsequente ao chamado período de cantalutismo, como de
“procura de inefável identidade”. Segundo o exegeta, é característico desse período uma
poesia, da qual “dimana um tom novo” que “nada tem a ver com os problemas
específicos de Cabo Verde” e que “começa a pensar Cabo Verde, não mediante
interpretações limitadas a dados geopolíticos restritos, circunstanciais ou locais”, mas no
seio da cadeia de peripécias ontológicas, que fazem o homem universal pelas pulsões
gerais, que não pela veracidade transitória, imposta pelas conjunturas, mesmo inóspitas e
falazmente definidoras de individualidade ou identidade” (“Artefactos poéticos e Arte
poética na poesia cabo-verdiana. Reflexões sobre os últimos cinquenta anos da poesia
cabo-verdiana” in Literatures Africaines de Langue Portugaise, Actes du Colloque
International, Fundação Calouste Gunbenkian, Centre Culturel Portugais, Paris, 1984).
Assinala, finalmente, o mesmo autor na “Oitava Epístola ao meu Irmão António – Dos
Desacertos da Crítica”(in obra supra-citada): “há já alguns anos que muitos patrícios
começaram não só a aceitar esse tipo de poesia, como a praticá-la. Em suma, mudou-se
de paradigma”.

Numa entrevista, estruturada em forma de ensaio, concedida a Danny Spínola (“Uma


Entrevista Possível”, in Evocações, INBL, 2002) debruça-se João Vário especificamente
sobre a questão da linguagem na poesia constante de Exemplos: “Para a longa poesia
narrativa, tal a minha, como geralmente para outras formas de criação de certa extensão,
as dificuldades surgem no essencial ao nível da articulação, da textura, que deve criar
variação e diversidade para evitar a monotonia, ou a linearidade narrativas, que podem
desbotar ou sufocar o texto; os ingredientes usuais do verso devem ser trabalhados na
perspectiva da arquitectura global da obra, que não deve ser fruto apenas da palavra, por
mais sedutora ou bela que seja; o suporte mais fiável e mais sólido para esse tipo de

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poesia deve ser uma reflexão, presente em cada página. Esta reflexão estabelece os
alicerces dos versos, fornece-lhes o léxico e o ritmo, as unidades estruturantes de som e
sentido”. Prossegue João Vário na mesma entrevista: “Estou convencido de que é neste
tipo de poema que o extracto das ideias metafísicas se apresentam como
verdadeiramente crucial, porque é um motor ou promotor dos nexos e do temperamento
órfico do discurso, quando os restantes extractos dão mostras de estagnação, de
esgotamento e de impasse, apesar da pesquisa de diverso teor que tiver preparado a
escrita (…). Como se depreende da obra de grandes mestres do longo poema narrativo,
Homero, Virgílio, Dante, Milton, Eliot, Pound, Perse, a reflexão é o fio da meada: dita a
regra de ouro da construção, da coesão, do comprometimento entre a unidade e a
variedade, e alinha tudo, uma espécie também de fio-de-prumo. Chamei a esse fio de
meada e esse fio-de-prumo metafísicos, no caso da minha poética, a cogitação
irrepreensível”. Desenvolve o poeta: “O que tinge a voz de um poeta tão originalmente
(…) é sobremaneira o que a reflexão faz do léxico ou o que exige que ele faça, a
inesperada metamorfose que ela opera com palavras comuns, a bem do esplendor e de
uma luz que não se esperava que fosse própria do homem”. Conclui o poeta João Vário:
“A cogitação irrepreensível, que também recolheu todos os prefácios aos mais diversos
sortilégios, porque é assim que, com intermitência, pode decalcar o texto do destino, a
estupefacção mais barroca possível para semear a sonoridade metafísica, a versão que o
poeta privilegia da verosimilhança”. Quanto ao instrumentário imagético utilizado na obra,
diz o autor: “como é feito o utensílio, a metáfora pode ser inferido do que se tem dito: é
feita, por via de regra, de palavras abstractas fornecidas por uma meditação sobre o mal,
o sofrimento, o perdão (ou a misericórdia) e o carácter imponderável da verosimilhança,
esses meus temas primordiais. Ou seja, há uma estrutura gnoseológica produzindo e
manipulando o estado da metáfora, ou da semântica, se preferir. Quando não é assim, é
porque por amor da beleza, não quis que a opacidade do mundo passasse à frente da
leveza do lirismo e da primeira sensibilidade, a que tudo entende atravessando esse miolo
alegre da consciência e do tempo”.

Indagação existencial e destelurização da linguagem literária

A mudança de paradigma a que acima se referia João Manuel Varela (T. T. Tiofe) tornou-
se, na actualidade, opção consciente e deliberada de ruptura quer com a mundividência
telúrica enclausurada do homem insulado na sua resignação, quer com a palavra
rudemente imprecativa de alguma rebeldia cantalutista (na acepção que lhe é também
atribuída por João Manuel Varela como “artefactos poéticos” destituídos da arte poética
intrínseca à verdadeira poesia), quer ainda com a linguagem especificadora, na sua
pertinência identitária, e oficinalmente depurada na sua chã indumentária, no seu
“vocabulário concreto” do português literário usual na poesia cabo-verdiana de feição
telúrica.

Tal opção representa um dos signos maiores da nossa contemporaneidade poética e é por
demais visível na poesia de vários vates cabo-verdianos.

Desse assíduo cultor da revisitação da cultura greco-latina que é Arménio Vieira, a partir
sobretudo da sua recusa em participar na nojenta gastronomia poética que seria a escrita
de ortopoemas, transitivos na sua degradação utilitária ou instrumentalização político-
ideológica. Não obstante a consciência de que setembro dói e sangra, as opções estéticas
de Arménio Viera decorrem da descoberta de que "ser poeta a sério implica uma espécie
de suicídio" e que "é pela metaforização do discurso que se salva o pensamento". A
poesia mais significativa dessa ruptura e tomada de consciência metacrítica (como a
caracteriza José Vicente Lopes no estudo "Novas Estruturas Poéticas e Temáticas na
Poesia Cabo-Verdiana", in "Ponto e Vírgula”, nos 16 e 17, de 1986) consta sobretudo dos
cadernos "A noite e a lira", "A musa breve de Silvenius" e "Poesia Dois" do seu livro
Poemas (1981) e vem sendo retomada nos poemas dispersos dados posteriormente à
estampa. Anote-se que a poesia transitiva, isto é, socialmente comprometida, constante
do caderno "Poesia Um" ou dispersa e anterior a 1971, caracteriza-se por também fugir
ao usual cânone estético da poesia cabo-verdiana, quer pela forte presença da ironia e do
sarcasmo, como meio estético de trangressão, quer pelo papel que nela desempenham a
aliteração, o desencanto metafísico e o jogo com o absurdo, mesmo quando recorre a
mitos greco-latinos, dessacralizando-os. De interesse é também o parentesco linguístico,
estético-formal e filosófico entre alguma poesia de interpretação ontológica de Arménio
Vieira (por exemplo, "Canto do Crepúsculo" e "Homenagem a quem…", e a poesia de João
Vário.

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De Oswaldo Osório, que segundo Arnaldo França é "um dos mais lídimos representantes
da moderna literatura cabo-verdiana" ("Os loucos poemas de amor e outras estações
inacabadas de Oswaldo Osório", in "Artiletra", no 75, Janeiro de 2006). Outrora cultor da
conjugação do cantalutismo (no sentido de poesia de exaltação da terra cabo-verdiana e
do seu habitante) e do incansável labor da linguagem, inserta mais em Cântico do
habitante, seguido de duas gestas do que em Caboverdiamadamente construção, meu
amor (poemas de luta). Oswaldo Osório alia, de forma marcante, nos livros Clar(a)idade
assombrada e Os loucos poemas de amor e outras estações inacabadas, a depuração e a
concisa lapidação da palavra, a uma meditação aturada e, simultaneamente, saturada de
descrença e de um cepticismo, que, permanecendo entre os estertores de um ainda
sobrevivo e, por vezes, eufórico optimismo, sobrevoa a dialéctica das convulsões e da
passagem do tempo, da idade e das utopias (como se verifica, por exemplo, nos poemas
"signo poético", "quotidiano", "horoscopografia", "quando formos passado", "país",
"crónica do cavaleiro de má fortuna"). Cabe nessa mundivisão, a eufórica e comovida
saudação de "julho nosso orgulho" e da liberdade pátria ("bom dia, cabo verde") e a, por
vezes disfórica, interrogação dos novos tempos, dos novos desapontamentos, do Oswaldo
Osório de Clar(a)idade assombrada e das "estações inacabadas". Por exemplo, em “país”,
das “estações inacabadas II”: “este país dói-me:/ como uma faca de dois gumes/
atravessada no coração/ se rio, alcanço/ se choro, fujo/ alvoroço bêbedo/ entre o não-
saber e um copo/ ou intervalo de que fujo/ resisto a quem ministra o ranço”. Ou em
“quotidiano”: “II (…) com o verde ocupado pelo seco castanho/ que resta da esperança de
antigamente? (…) VI (…) E todavia, cabouqueiros que fomos deste mundo/ quem, de
justas consciência, ousaria acusar-nos de antropofagia?”. Ou ainda em “crónica do
cavaleiro de má fortuna”: “aquém – espelho engano mágoas desventura/ do lado de lá a
coroação prazeres a boa estrela/ tudo imensa fraude passageiramente real”. De todo
modo, a herança permanece intacta, pois que “a chama que foi ardente/ não se
arrepende de ter brilhado”, como conclui o poeta.

A propósito do carácter multifacetado da poesia de Oswaldo Osório, escreve Danny


Spínola: ”O percurso poético de Oswaldo Osório equaciona-se em três vertentes
diversificadas, correspondendo a três níveis semiológicos (semióticos): positivo-
nacionalista, em que sobressai principalmente um tom eufórico; contestatário e amargo,
com um jogo de disforia/euforia; contemplação pura ou constatação, correspondente à
nomeação de valores humanos e materiais com um certo pendor filosófico”.

Indagação identitária e universalidade literária

A preocupação com o domínio dos meandros e das nuances da língua de labor literário e
da linguagem literária como signo distintivo do discurso da arte na literatura esteve assaz
presente na escrita literária cabo-verdiana. É o que denotam a obsessão perfeccionista
dos nativistas, hesperitanos e outros pré-claridosos, e a busca pelos claridosos de uma
linguagem e de uma estética em língua portuguesa identitariamente sincronizadas com as
nossas raízes crioulas (de que deveriam ser indícios, vestígios, testemunhos e
repositórios sociológicos, antropológicos e linguístico-literários). Tal afirmação não
desvaloriza o facto de a linguagem e a estética terem sido descuradas por um certo
cantalutismo, mais peremptório na sua premência e veemência combativas, tendo
atingido o limiar da catástrofe estética no panfletarismo do pós-25 de Abril e nos actuais
e apressados escrevinhadores de palavras em escadinhas.

Por outro lado, a mudança de paradigma que vem ocorrendo nas letras nacionais
evidencia-se fundamentalmente no plano da linguagem e tem suscitado também
mudanças de monta nas estirpes poéticas socialmente engajadas e comprometidas e com
uma motivação e temática especificamente cabo-verdianas, numa tradição, aliás, que
remonta a ícones da poesia cabo-verdiana, como Gabriel Mariano.

Tais sinais verificam-se, fundacionais, na poesia bíblico-telúrica, de fortes ressonâncias


épicas, constante de O Primeiro Livro de Notcha e O Segundo Livro de Notcha, cujo autor,
T. T. Tiofe, vem, aliás, e como assinalado no presente texto, desde há anos, chamando
repetidamente a atenção, em circunstâncias as mais diversas, para essas questões,
intentando, até, teorizá-las, quer a partir da obra de T. T. Tiofe e de João Vário, quer da
obra de outros poetas, em especial de Corsino Fortes (neste caso, numa postura
deliberadamente polémica, conquanto esclarecedora).

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Publicado, na sua primeira versão e sem o "Discurso V", em 1975, O Primeiro Livro de
Notcha foi reeditado em 2000 como parte integrante de O Primeiro Livro de Notcha e O
Segundo Livro de Notcha. A publicação do livro provocou, na altura, um grande alarido no
seio da crítica, sobretudo porque João Manuel Varela, agora utilizando o heterónimo T. T.
Tiofe, parecia distanciar-se da escrita de interpretação ontológica, considerada
desenraizada, de João Vário.

Concluindo

A pluralidade de estirpes poéticas afere da plena maturidade literatura cabo-verdiana, a


qual também se evidencia no descomplexado auto-reconhecimento e na plena assunção
da nossa identidade literária, que não mais carece de ver confirmada a sua legitimidade
pela unicidade da constante e, por vezes, castradora referência a temáticas, a motivos e
a um dizer tido por especificamente cabo-verdianos.

Assim, construída a identidade literária cabo-verdiana, graças fundamentalmente ao labor


dos nativistas e hesperitanos, dos claridosos das várias vagas e dos émulos da Nova
Largada – fautores, em tempos históricos diferentes e com linguagens e estéticas
diversificadas, da independência literária cabo-verdiana –, a questão da cabo-
verdianidade explícita ou assumida nos textos literários, quer nas suas vertentes telúrica
e combativa, quer nas suas vertentes existencialistas, de indagação metafísica e lírica,
torna-se cada vez menos um problema ontológico para um número crescente de
escritores e, especialmente, de poetas cabo-verdianos. Uma franja representativa dessa
categoria, aqui presente a título exemplificativo, quer também ser compreendida como
criadores, tout court, no sentido de artífices da linguagem, cuja única missão, se alguma
missão lhes cabe, tem como essencial fundamento ético e estético a liberdade plena de
criação e, no plano da obra, consiste na disseminação de máscaras da condição humana,
quer ela se situe em Cabo Verde, na Diáspora, na "Macaronésia", no Antigo Egipto, ou
nenhures no mundo ou na morte, desde que seja um algures da resplandecência do
verbo.

JOSÉ LUÍS HOPFFER C. ALMADA nasceu a 9 de dezembro de 1960, em Santa Catarina, Ilha de Santiago.
Licenciado em direito pela universidade Karl Marx, de Leipzig. Sob o pseudônimo de Zé di Sant´iagu,
publicou À sombra do sol, 1990, e Assomada Nocturna, 1993.

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