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Introdução
Entender a representação da mulher em obras literárias é um tema relevante já que, na
vida em sociedade, elas são submetidas a situações bem precárias. Muitas obras literárias traçam
um perfil da figura feminina discutindo a imagem social da mulher.
Em A confissão da leoa, Mia Couto evidencia a condição da mulher em Moçambique, na
aldeia Kulumani. Esse romance tem como temática principal a violência a que as mulheres são
submetidas cotidianamente. A obra foi inspirada em uma experiência real do autor, que, logo no
início do texto, a explica. A pequena comunidade de Kulumani era atacada por leões que faziam de
suas vítimas apenas as mulheres da aldeia, o que incentivou o escritor a explorar, em seu romance,
as questões sociais que poderiam estar contribuindo para esses ataques seletivos. Assim, em vez
de, puramente, explorar o problema sob uma perspectiva ambiental e ecológica, Mia Couto procura
também apresentar a questão sob um viés social e cultural, discutindo quais aspectos contribuiriam
para essa vulnerabilidade de um grupo específico.
Explorando esses conflitos que as mulheres sofrem na aldeia de Kulumani, um é bastante
pontual: a violência sexual. Esse dado nos leva a perceber que os ataques de leões são também
metáforas para se falar da violência que as mulheres sofrem nas mãos dos homens de Kulumani.
Leões aqui podem ser tanto vistos como os animais, mas também como uma imagem do sujeito
masculino. Nesses dois casos, as mulheres encontram-se vulneráveis por diferentes práticas sociais
que as colocam em uma situação subalterna. Vulneráveis, elas são alvos fáceis para leões e homens.
Dessa forma, cria-se uma relação muito intrínseca entre o ataque dos homens, a vulnerabilidade
das mulheres e os ataques dos leões.
No romance, quando entendemos a dinâmica social que institui a subalternidade
feminina, conseguimos perceber que a sociedade é conivente com esse ataque seletivo. As práticas
subalternas são corrosivas, por vezes silenciosas, mas têm como consequência clara a exposição
das mulheres a estados de sofrimento mental e físico, a ponto de algumas desistirem de viver e se
jogarem nas bocas dos animais.
As mulheres de Kulumani têm muitas coisas para contar, no entanto, suas vozes são
silenciadas e esquecidas pela violência impressa em suas trajetórias. A confissão da leoa está atento
a esse silenciamento, por isso, além das dinâmicas dos ataques, visualiza também a resistência.
Para percebermos esse duplo aspecto, faremos uma análise mais detalhada de três personagens
femininas da obra: Mariamar, Hanifa e Naftalinda. Buscaremos compreender como cada uma delas
resiste e denuncia as condições e os dramas sofridos pelas diversas violências que lhes são impostas.
Lourenço afirma que a Frelimo, no início de sua constituição, apesar da negação formal
da organização sociocultural, reconhecia o prestígio das autoridades tradicionais junto das suas
populações rurais e admitia sua legitimidade na construção da nova definição e organização política
local. No entanto, após a independência, a Frelimo adota uma postura de excluir a participação dos
tradicionalistas das áreas rurais na política de Moçambique, se opondo ao tradicionalismo rural, o
que gerou um conflito social e político entre Estado e tradição. Essa atitude estaria apoiada, entre
outros aspectos, numa leitura de que as autoridades tradicionais também teriam colaborado com
o projeto português de colonização.
Do confronto entre Frelimo e Renamo, Moçambique entrou em uma guerra civil que durou
até 1992, com a assinatura do Acordo de Paz. Após esse acordo, o país adotou o pluripartidarismo
e procurou incorporar setores descontentes da sociedade na estrutura do Estado:
Depois do Acordo de Paz, a nação (...) tinha que ser encenada
e exibir um projeto de “futuro” que se diferenciasse da retórica
anti-tribal defendida depois da independência. Recorre-
se, para isso, à busca de representatividade dos setores
descontentes, incorporando-os à imagem do Estado. Se hoje
a própria Renamo levanta questionamentos ao panteão de
heróis moçambicanos (para o partido só heróis da Frelimo são
contemplados), após a assinatura do Acordo era necessário
pensar também as diferentes etnias, raças, tribos e regiões
para chancelar a paz. (MORAIS, 2016, p.26)
É desse tecido social fragmentado por diversas experiências históricas, políticas e culturais
que resulta hoje a sociedade moçambicana. Dessa forma, não há como pensar Moçambique sem
tentar entender o impacto que os acontecimentos históricos propiciaram em sua sociedade. Cada
identidade, cada grupo, de uma forma ou de outra, demostrará que não poderá ser pensado de
maneira alheatória ou dissociados desses processos históricos.
Em relação às mulheres, por exemplo, seu espaço dentro da dinâmica social também deve
ser pensado sob esse impacto dos eventos históricos, sobretudo como a colonização e como a
cultura tradicional articulam um entendimento sobre o sujeito feminino depois da independência
do país. Se soubermos que, dentro das organizações sociais oriundas do confronto ou da mescla
desses eventos históricos, há uma assimetria de gênero, podemos perceber um quadro amplo de
vulnerabilidade do sujeito feminino em Moçambique.
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Nessa cena, o personagem Genito simboliza a figura do pai, mas também do opressor e
agressor, uma dinâmica que não pode ser pensada imune às implementada pela colonização. O
pai opressor-agressor, dentro de uma acepção colonial patriarcal, é uma imagem que revela como
práticas sociais se moldam a partir do contato entre as culturas. O pai aqui é aquele investido da
imagem do colonizador patriarcal que, além de submeter a família a sua regra, também a submete
a práticas sociais subalternas da colonização.
Nesse sentido, trata-se de ver também em Kulumani o impacto da colonização europeia
fomentando ou agudizando as práticas subalternas tradicionais em relação às mulheres. Por
exemplo, a agricultura tornou-se no período pós-colonial a principal fonte de economia, uma vez que
a colonização portuguesa não foi um projeto desenvolvimentista. A prática do trabalho assalariado
obrigatório levou homens e mulheres para o trabalho na agricultura e, apesar da mão de obra
feminina ser irregular, justificava-se para o pagamento de dívidas dos seus parentes masculinos,
o que acarretou o favorecimento da prostituição, já que as mulheres poderiam ser vendidas ou
prostituídas para prover o pagamento de tais dívidas. (SANTANA, 2009, p. 69).
O fato de as mulheres saírem para o trabalho agrícola não diminuiu suas atividades domésticas
e suas obrigações com seus maridos, acarretando o aumento de suas tarefas. A agricultura familiar
passa a ser significativa na economia do país e são as mulheres que desempenham um papel
fundamental, apesar de serem exploradas. A exploração feminina em Moçambique não aconteceu
apenas no período pós-colonial. Pelo contrário, se formos pensar no projeto colonizador português,
a maneira como a mulher será explorada depois da independência está intimamente ligada ao
colonialismo.
Portanto, após a independência, o panorama em relação às mulheres não irá mudar muito
e será intensificado por também ter que lidar com exigências dos papeis femininos dentro das
comunidades tradicionais. No cenário pós-colonial, retomar a tradição não significa que, de fato,
o passado será resgatada; significa que o passado será acionado como também uma narrativa que
garantirá espaços de poder:
Spivak, em sua obra Pode um subalterno falar? (2010), apresenta o sujeito subalterno
como aquele que é obliterado, ou seja, o sujeito esquecido em suas questões políticas, sociais e
até intelectual, trazendo a questão da situação feminina como objeto da construção ideológica
do gênero masculino que mantém a dominação do poder. Esse direito de fala é negado também
às mulheres na obra de Mia Couto, conforme a organização de Kulumani. Mas essa prática não
pode impunemente ser delegada a uma característica da cultura tradicional, uma vez que, como já
falamos, a sociedade fragmentada pela experiência colonial se organizará de uma maneira em que
práticas sociais não poderão ser pensadas alheias à manutenção dos poderes.
Assim, alguns aspectos da tradição moçambicana são enfatizados porque promove na
mulher ainda criança a marginalização, contribuindo para a sua subalternidade e possibilitando a
violência sexual: “(…) no norte do país, as mulheres são submetidas a rituais socioculturais após a
menarca, onde são instruídas à submissão total ao parceiro masculino, à obediência e cumprimento
das vontades sexuais do homem”. (ESTAVELA e SEIDL, 2015, p.571)
Essa submissão à figura do homem dentro da família contribui para as configurações de
vulnerabilidades femininas, sobretudo as relacionadas às violências sexuais. As violências sexuais
começam ocorrer dentro do núcleo familiar e, embora estejam sujeitas à repressão do governo, a
sociedade evita intervir deixando as mulheres sujeitas aos julgamentos e sentenças dos membros
masculinos da família. Dentro de práticas sociais subalternas, estão sujeitas à vontade sexual do
homem, possibilitando maiores episódios de estupros, abusos e incidência de doenças sexualmente
transmitidas.
A violência, no romance A confissão da leoa, de Mia Couto, é o principal motivo do
sofrimento das mulheres. A violência contra a figura feminina está presente em casa, na figura de
Genito Mpepe; nas autoridades civis através do policial Maliqueto e nas autoridades tradicionais,
quando Naftalinda acusa os homens da chitala pelo mal que sua empregada Tandi sofreu. Através
do romance A confissão da leoa, constata-se que a situação da mulher em Moçambique ainda é
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grave, pois, mesmo depois da colonização e do fim da guerra civil, ela continua sendo subalternizada,
explorada e abusada com a legitimidade da sociedade a que pertence.
As mulheres de Kulumani
O romance A confissão da Leoa, de Mia Couto, foi baseado em fatos reais, informação que
o escritor revela em entrevistas:
A caça seletiva aos leões orienta o romance a investir não na questão ambiental, mas
principalmente nos conflitos sociais que possam explicar os ataques seletivos. Em nota de explicação
inicial, o autor relata que os leões não foram as principais dificuldades que os caçadores reais
enfrentaram para diminuir as mortes que estavam acontecendo na vila. Aos poucos, perceberam
que os problemas ultrapassavam suas capacidades por se tratarem de conflitos sociais. Assim,
utilizando-se dos fatos reais, o autor moçambicano trafega entre a realidade e a imaginação para
entender as situações herdadas da tradição, do colonialismo português e da guerra civil.
A confissão da leoa é uma reunião de eventos que nos reportam a dados históricos,
culturais e políticos manifestados a partir de pontos de vista de dois personagens bem diferentes:
Mariamar, uma moradora da vila, e Arcanjo Baleiro, o caçador visitante. A escrita do romance se
dá através do gênero diário, em que os dois personagens relatam seus cotidianos, denunciando os
sofrimentos e principalmente a exploração que vivem as mulheres de Moçambique, em especial
as mulheres rurais. Com capítulos alternados, diário do caçador e versão de Mariamar, a narrativa
discute a subalternidade e a violência contra a mulher.
Mariamar
O romance inicia com o relato de Mariamar sobre a morte de sua irmã Silência, que foi a
última vítima dos leões. O nome da irmã de Mariamar é sugestivo, uma vez que todas as mulheres
da aldeia são silenciadas pela cultura e tradição. Mariamar é uma moradora da vila que está sujeita
a diversas violências. Sofre de amor há dezesseis anos por Arcanjo Baleiro. Conhece-o quando,
no passado, o caçador impede o policial Maliqueto de abusar dela sexualmente. Relatando essa
paixão, Mariamar confessa que o amor era um pedido de socorro, pois desejava que Arcanjo a
salvasse de Kulumani. Mas não será ele que a salvará, como a narrativa comprova. Será sua mãe
que agirá no sentido de fazer com que Mariamar saia da vila. A narrativa não recorre a uma saída
romântica, portanto em Kulumani a salvação para os ataques terá que partir das mulheres e suas
diferentes estratégias de resistências.
Mariamar personifica o sofrimento das mulheres de Kulumani e a submissão que é obrigada
a assumir:
Na noite anterior, em nossa casa a ordem tinha sido ditada:
as mulheres permaneceriam enclausuradas, longe dos que
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As mulheres, como vemos na citação, são objetos do gênero masculino, o que legitima,
numa sociedade patriarcal, que elas sejam abusadas fisicamente, verbalmente e sexualmente.
Instituindo essa prática social como “ordem” e tendo essa mesma ordem como paradigma que
deve guiar as nações independentes, fica praticamente impossível desconstruir ou mesmo resistir
a essa maneira como se organiza a sociedade. Dessa forma, sob o pretexto da manutenção da
“ordem”, os agressores das mulheres não são submetidos a nenhum tipo de punição:
O homem agarrou-a pelos pulsos e empurrou-a de encontro
ao velho armário, derrubando a lamparina. Hanifa viu a sua
pequena lua se desfazer em chamas azuladas, dispersas no
chão da cozinha. (…)
As imagens e figuras da mulher são construções sociais, portanto sua subalternidade é uma
prática reafirmada no cotidiano. Assim, o discurso que mantém ainda nos dias atuais a mulher
na condição subalterna vem de uma prática sucessiva do silenciamento feminino. A violência ou
omissão são ensinadas paulatinamente, naturalizando a condição subalterna e impossibilitando
resistências:
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- A ordem do seu pai está certa. A partir de hoje, você não sai
de casa.
Silenciadas e dentro de práticas subalternas, não é difícil imaginar como essas características
incidiram sobre o corpo feminino. Assim, em várias passagens do romance, vemos a denúncia sobre
a violência sexual a que mulheres, dentro de sociedades patriarcais, estarão expostas. Mariamar é
vítima de vários abusos durante a narrativa do romance. O paradoxal é que essa violência partirá
daqueles que deveriam oferecer proteção, uma vez que são eles que instituem a subalternidade
e sabem disso. Nesse sentido, tanto o pai de Mariamar quanto o policial Maliqueto se constituem
como perigo para as mulheres de Kulumani. Vemos que a narrativa social da subalternidade é
articulada com propósitos próprios, que, invariavelmente, ratificam e provocam a violência contra
mulher.
A primeira tentativa de violência sexual por parte de Maliqueto foi quando Mariamar ainda
era uma menina e vendia galinhas para fugir de Kulumani. Foi nessa ocasião que conheceu o
caçador que a livrou do abuso do policial:
(...) Os abusos de Maliqueto eram por demais conhecidos.
Naquele momento o seu turvo olhar apenas confirmava
as suas malévolas intenções. A luz faltou-me, as pernas
fraquejaram-me. O cano da espingarda encostada nas minhas
costas não me autorizava demora. (...) (COUTO, 2012, pag. 51)
Mariamar só não sofreu o abuso porque Arcanjo Baleiro a livrou do policial. Não se trata aqui
de ver essa salvação a partir de uma saída romântica, em que o homem livra a mulher do perigo.
Trata-se mesmo de constatar todo o contexto de opressão e perigo a que a menina estava exposta:
Mariamar era uma criança pobre ameaçada, na cena, por uma espingarda. Quando observamos
esse contexto, perguntamos como Mariamar poderia escapar daquela situação? A resposta dessa
questão incide mais na sorte, saída a que a narrativa recorre, do que um projeto mais contínuo de
proteção. Mariamar nunca estará protegida em Kulumani.
Com o retorno de Arcanjo Baleiro na aldeia, Mariamar foi proibida de sair de casa devido o
romance que tiveram no passado. Enclausurada, tenta uma fuga pelo rio Lideia, quando, mais uma
vez, o policial Maliqueto aparece e tenta abusar de Mariamar. Dessa vez, agora já crescida, ela o
arranha e o ataca, cuspindo e gritando. Maliqueto foge dizendo que Mariamar está louca. A loucura
de Mariamar se configura numa característica que a protegeria de Maliqueto:
(...)-Você deve-me alguma coisa, Mariamar. Não se lembra?
Aqui é um bom lugar para cobrar o que me deve.
Maior, Mariamar começa a entender práticas de não confronto direto e acaba resvalando na
loucura, como tentativa de evitar o ataque. São práticas possíveis dentro de uma sociedade em que
até a proteção é desautorizada.
Nesse sentido, é muito interessante outro ato de Mariamar que denuncia a impossibilidade
de existência em todos os níveis, até mesmo o da escrita. Entremeando a versão de Mariamar com
os diários de Arcanjo Baleiro, o romance se constitui em pontos de vistas distintos sobre os episódios.
Ao romper o silêncio por meio de sua versão, Mariamar indicia a escrita como uma possibilidade
de existência. Sobre isso, é interessante pensarmos na escrita, enquanto gênero discursivo, e a
identidade das mulheres. Foi através de diários que as mulheres puderam, na história da literatura,
se afirmar e discutir seus espaços e imagens:
O diário se tornou uma ferramenta de evasão para as
mulheres, as quais viviam sob um rígido domínio masculino
que não lhes imprimia o direito à participação no mundo
cultural da época, restando o tipo privado de escritura como
a forma de comunicação dessas mulheres com si mesmas ou
com “o outro”. (NASCIMENTO e PATRINI-CHARLON, 2010, p. 2)
O que estamos vendo aqui é que Mariamar, diante desses perigos que a cercam em
Kulumani, tem que desenvolver estratégias que não dizem respeito exclusivamente a um confronto
direto com a lei posta. De uma certa forma, ela tem que se transformar em uma leoa, que estuda
os caminhos, antecipa ataques e se movimenta levando em conta a sua proteção. O leão no reino
animal é reconhecido como aquele que impera, que tem o poder e a força; em Kulumani os leões
são os homens, porém, a partir do momento em que Mariamar vai tomando consciência dos
sofrimentos que lhe tiraram a humanidade, cresce em si o desejo de se livrar da opressão. Diante
das situações de perigo com as feras, a protagonista do romance revela os medos, traumas e dores
advindas dos contextos culturais em que as mulheres são submetidas e se reconhece como uma
leoa, pois incorpora a resistência e busca força para a sua defesa e sobrevivência.
A esse respeito, o próprio nome Mariamar nos introduz no reino da resistência. O nome
é a junção de Maria, mar e amar. Maria, dentro da tradição judaico-cristã, é aquela que traz a
salvação para o mundo; no ventre de Maria é gerado o redentor, aquele que libertará Israel. Já
o mar simboliza a dinâmica da vida e suas transformações. O avô de Mariamar revela em sonho
que ela não é um animal e que, embora lhe tratassem como bicho, ela era uma mulher. Ou seja,
Mariamar também fazia parte da divindade e de suas dores viria a transformação. É o movimento
de suas dores que promove as possíveis transformações. O romance inicia com a frase “Deus já foi
mulher.” (COUTO, 2012, p.13), que confere às mulheres, através de uma lenda, a participação na
criação, pois o senhor do universo, antes de abandonar sua criação e ser chamado de Nungu, era
como as mães.
O abandono da criação pode ser associado às explorações físicas, morais e sexuais que as
mulheres de Kulumani sofrem. Mariamar também foi vítima do seu pai que, por anos, abusou dela
e de suas irmãs. No entanto, só compreende o que acontecia quando se torna uma mulher.
(...) durante anos, meu pai, Genito Mpepe, abusou das
filhas. Primeiro aconteceu com Silência. Minha irmã sofreu
calada, sem partilhar esse terrível segredo. Assim que me
despontaram os seios, eu fui a vítima.(...) (COUTO, 2012, p.
187).
interessante observarmos que o caso de Kulumani se configura como uma alegoria do país. Dados
divulgados pelo Ministério moçambicano da Saúde em janeiro de 2017 indicam que o número de
casos de violação sexual aumentou em 25% e de violência doméstica em 7% no período de 20 de
dezembro de 2016 a 02 de janeiro de 2017. A violência doméstica é toda ação violenta praticada
por membros que habitam o mesmo grupo familiar. As crianças e as mulheres são as vítimas mais
vulneráveis por não terem condições de defesa, o que acarreta grandes traumas psicológicos:
-É verdade?
- Maldita!
Aqui, uma manobra da cultura do estupro pode ser observada, quando notamos a
culpabilização da vítima. Mas, pensando em todo o contexto de silenciamento e opressão de todas
as mulheres de Kulumani, podemos observar também, na acusação da mãe, mais a constatação
da impotência do que a tentativa de colocar a culpa na filha. A paralisia de Mariamar, assim, está
relacionada ao fato de estar submissa nesse contexto violento e predominantemente masculino,
não compreendendo os sofrimentos que a envolve e não conseguindo romper com eles. É possível
perceber que, pelo fato de ser ainda criança, não pode se defender o que a torna ainda mais
vulnerável. O apagamento das mulheres em Kulumani faz com que Mariamar discuta sua condição
de nascida morta, que também é outra forma de paralisia:“Nós todas, mulheres, há muito fomos
enterradas. Seu pai me enterrou; sua avó, sua bisavó, todas foram sepultadas vivas.” (COUTO, 2012,
p. 43).
Essa questão da imobilidade e paralisia pode ainda ser vista quando o avô de Mariamar
inventou que ela era uma mulher seca e infértil. Isso se dá na tentativa de o avó proteger a neta
dos homens de Kulumani, pois apenas solteira poderia sair de Kulumani para ser livre e ser tratada
como mulher. O fato de Mariamar ser considerada estéril poderia implicar no desinteresse dos
homens tomarem-na por esposa, uma vez que a cultura local determina e limita a função da mulher
como reprodutora e mão de obra gratuita.
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Hanifa Assulua
Há no romance um desprezo por Kulumani, expresso fortemente através da personagem
Hanifa Assulua, mãe de Mariamar. Hanifa compreende o fato de a mulher não ter a legalidade
da existência, percebe sua condição subalterna e não vê saída para seu condicionamento. Com
a chegada de Arcanjo Baleiro na aldeia, Hanifa tenta suavizar sua condição, já que perdera três
das quatro filhas, dizendo a Arcanjo Baleiro que os leões chegaram a sua casa, porém, ao fim, a
mulher armara uma emboscada para o marido Genito por acreditar que ele era culpado das mortes
em casa. De fato, vários homens de Kulumani são responsáveis pelas mortes das mulheres: são
eles que cercam, violentam, diminuem, oprimem e pressionam as personagens da vila. De uma
forma ou de outra, eles criam um ambiente propício para a morte, loucura ou solidão de todas as
mulheres de Kulumani, se comportando como verdadeiros predadores. Eles são responsáveis por
criarem uma situação de vulnerabilidade em todas as mulheres. Assim, quando, no começo da
narrativa, sabemos que há leões comendo as pessoas da vila, isso seria também uma metáfora para
falar do que os homens estão fazendo em Kulumani. Se, também, se observa os leões matando as
mulheres de Kulumani, deve-se levar em conta o que os homens estão fazendo ali para deixar as
mulheres tão vulneráveis aos ataques.
Hanifa negligencia o fato de o marido abusar sexualmente das filhas, ignora as especulações
dos vizinhos, porém, quando não há mais como esconder as evidências, culpa Mariamar de seduzir
seu homem. Hanifa Assulua busca um culpado, pois compreende que nada poderá fazer ao marido
se nem pelo nome pode chamá-lo. Mais do que culpabilizar Hanifa, faz-se necessário entender o
contexto de opressão em que também ela está imersa.
A aceitação cultural é uma das formas de violência enraizadas na comunidade de
Kulumani. Hanifa consegue descrever com consciência através da sua vivência os sofrimentos que
carregam as mulheres da aldeia. Mulheres oprimidas pelos costumes e tradições, mas também pela
administração da vila. Quando o administrador de Kulumani, Florindo, vai até a casa de Mariamar
para que a menina o ajude com sua esposa, seu pai, mesmo não sabendo do que se trata, permite
que a leve. Certa de que será abusada, Mariamar suplica para não ir, mas o pai não se comove.
Hanifa tenta interceder em favor de Mariamar, mas é silenciada. Hanifa também está paralisada
como Mariamar:
[...] Na presença do visitante, contenho-me, arruinada por
dentro. Assim que Florindo se retira, porém, a minha súplica
irrompe:
Assim como Mariamar, Hanifa também carrega suas dores, foi ensinada a obedecer e sofre
com a consciência de sua privação. Nunca pôde ser outra coisa senão o que lhe ditaram que deveria
ser. No entanto, com a morte de sua filha Silência, a mãe de Mariamar desafia a tradição, quando
propõe fazer sexo no dia de luto, pois seu desejo era manchar toda Kulumani. Hanifa também
elabora estratégias para expor sua dor, como esse desejo de manchar a vila. Acontece que as duas
personagens, além de expressarem um problema relacionado ao gênero, também nos mostram
que atravessam suas condições a questão social. Para perceber isso, é necessário que incida sobre
a reflexão sobre gênero outras discussões que levem também em conta raça, etnia e classe social:
A partir dos dados da pnad 1989 e 1999, Nadya Araujo
Guimarães mostra que, considerando sexo e raça, os homens
brancos possuem os salários mais altos; em seguida, os
homens negros e as mulheres brancas; e, por último, as
mulheres negras têm salários significativamente inferiores.
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O que essa citação demonstra é que, numa sociedade desigual, vários aspectos concorrem
para que as assimetrias se tornem agudas, como é o caso de Hanifa e Mariamar.
Com a morte de Genito e dos leões, Hanifa confessa a Arcanjo que a filha precisa ir embora
de Kulumani, será a única forma de salvá-la. A mãe, pela primeira vez, dá à filha o direito de existir.
Mesmo ficando sozinha em Kulumani, depois da partida da filha, a mãe de Mariamar é consciente
de que, pelo menos para a filha pode haver um recomeço. Na despedida entre mãe e filha, Hanifa
passa para Mariamar um colar que é a antiga corda do tempo em que todas as mulheres da família
contaram os meses de gravidez. Esse gesto devolve a Mariamar a fertilidade, metáfora da esperança
da vida que nunca tivera.
Naftalinda
As mulheres na sociedade sempre foram menosprezadas e abusadas no seu direito de ser.
Em Moçambique a situação dos abusos sexuais se agravaram com a colonização dos portugueses e
se mantiveram depois da independência.
Segundo dados da UNICEF (Fundo das Nações Unidas para a Infância), Moçambique é o
terceiro lugar no mundo no que diz respeito às novas infecções pelo HIV (Vírus da Imunodeficiência
Humana) e, apesar de o governo trabalhar a conscientização para reduzir os números de
infectados, os abusos sexuais continuam, uma vez que não se trata apenas de um trabalho de
ideias, mas de práticas de subalternidade que estão naturalizadas dentro da sociedade. A sociedade
contemporânea naturaliza a subalternidade feminina dentro das instituições do Estado, portanto
soa como paradoxal esses trabalhos de conscientização uma vez que a opressão sobre a mulher é
institucionalizada.
No romance, a personagem Tandi sofre um abuso sexual. A moça é funcionária do
administrador da vila e de sua esposa, Dona Naftalinda. Naftalinda relata a Arcanjo Baleiro que
doze homens haviam abusado de sua empregada Tandi. A moça havia atravessado o mvera, um
acampamento de ritos de iniciação para rapazes onde é expressadamente proibido para mulheres.
Tandi desobedeceu, ao cruzar o território sagrado, e foi punida: todos os presentes no ritual
abusaram dela sexualmente. A moça foi levada para o centro de saúde, mas até a assistência
foi negada, não quiseram tratá-la. Os enfermeiros tinham medo da fúria dos tradicionalistas; as
autoridades também foram acionadas, mas não fizeram nada, nem mesmo o administrador, pois,
como figura pública, não queria entrar em conflito com os que defendem a tradição: “Quem, em
Kulumani, tem coragem de se erguer contra a tradição?” (COUTO, 2012, p. 148).
O drama de Tandi e a denúncia de Naftalinda dizem respeito ao contexto histórico de
Moçambique. Com já falamos, depois da independência e da guerra civil, o Estado procurou
incorporar dentro da estrutura de poder as autoridades tradicionais. Estas, por sua vez, como
passaram a uma disputa de legitimidade dentro do Estado, devem ser pensadas dentro das disputas
de poderes e representatividade na nação. Quando tanto os enfermeiros, quanto o administrador
não querem interferir no drama de Tandi, há toda uma questão de poder sendo debatida nessa
renúncia.
Dona Naftalinda é a voz feminina que consegue ecoar em Kulumani. Assim como Hanifa,
é consciente dos abusos a que as mulheres são submetidas, porém a diferença entre as duas
personagens é que a primeira-dama não tem medo de denunciar e se posicionar contra tais
violências, não por uma questão de gênero, mas por uma questão social. Portanto, Naftalinda
chama atenção para o fato de que o problema de gênero pode ser intensificado pelo problema
social:
O reconhecimento da maior vulnerabilidade social das
mulheres é também o reconhecimento de que sistemas
de subordinações se cruzam, como os de classe, de raça
e de gênero, o que me leva a insistir que políticas de ações
afirmativas se fazem necessárias mais no sentido de minimizar
discriminações por conta de identidades político-culturais,
como o ser mulher, ser negra, ser jovem ou ser mais velha (...)
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Como outras tantas mulheres, Tandi acaba sendo devorada pelos leões, porém os primeiros
leões que a devoram foram os homens de Kulumani. A tradição e a brutalidade animal presente no
romance são as ações masculinas, que aniquilam a existência da mulher na aldeia. O leão que ruge,
que devora e que mata está presente em suas casas, nas autoridades civis e tradicionais.
Ao desafiar a tradição, a primeira-dama começa a dar voz às mulheres da aldeia, embora
muitas delas nem saibam fazer uso desse direito, pois foram ensinadas a obedecer sempre. No
enterro de Tandi, dona Naftalinda faz um discurso sobre a submissão das mulheres de Kulumani
referente à vulnerabilidade em que os homens as colocam, pois são elas que fazem todo o trabalho
doméstico e de campo enquanto servem os homens e suas famílias. Assim eram presas fáceis dos
leões:
- Os leões cercando a aldeia e os homens continuam a mandar as
mulheres vigiarem as machambas, continuam a mandar as filhas e as
esposas coletar lenha e água de madrugada. Quando é que dizemos
não? Quando já não restar nenhuma de nós?
Esperava que as demais mulheres a seguissem naquele convite à
revolta. Mas elas encolhem os ombros e afastam-se, uma por uma.
(…) (COUTO, 2012, p. 195 e 196)
Naftalinda é uma mulher forte e resistente, capaz de sobreviver a Kulumani porque esteve
muito tempo fora da aldeia em contato com outros mundos e, principalmente, porque socialmente
não está nas mesmas condições de Hanifa e Mariamar. Portanto, não se trata aqui de requerer
as mesmas estratégias de resistência para as personagens. Isso seria menosprezar o contexto
social em que todas estão inseridas. Atravessam os problemas de gênero de cada personagem os
problemas sociais, o que faz com que recaia sobre Naftalinda menos sanções, dentro de uma escala
de subalternidade, do que nas duas outras personagens.
Colocar essas três personagens em situação de igualdade, em termos de gênero e em
termos sociais, seria não atentar para a discussão presente no romance e também compactuar
com um pacto social que julga as resistências das mulheres sem levar em conta a sua situação
social. Dentro de uma sociedade patriarcal, muitas vezes, essas transversalidades não são levadas
em consideração para requerer de todas as mulheres o mesmo comportamento em situações de
adversidades. Como elas pertencem a uma sociedade desigual, muitas vezes incide sobre a mulher
pobre e negra um julgamento que leva em conta mais o seu posicionamento subjetivo diante da
adversidade, do que um entendimento de que a vulnerabilidade de gênero é intensificada por
outras vulnerabilidades, como as sociais e raciais.
Conclusão
A subalternidade e os dramas sofridos pelas mulheres na sociedade têm sido discutido na
literatura por escritores e escritoras comprometidos que buscam denunciar as opressões sociais,
culturais, políticas e sexuais, a fim de que observemos a naturalização das desigualdades de gênero.
129 Revista Humanidades e Inovação v.6, n. 4 - 2019
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