Entre o Feminismo e o Mitológico A Representação Feminina em Contos de Márcia Denser
Entre o Feminismo e o Mitológico A Representação Feminina em Contos de Márcia Denser
Entre o Feminismo e o Mitológico A Representação Feminina em Contos de Márcia Denser
nos meninos.” (PARIS, 1994, p.120). De acordo com a autora, esse amazonismo, que compreende
autonomia e liberdade de escolha e ação, é importante para a formação identitária das jovens
meninas, para a geração que procede ir se desfazendo das raízes opressoras e se constituindo
mulheres conscientes de si enquanto sujeito, e desmistificando os preconceitos que há na
consciência masculina. Ártemis e sua força física, seu arco e flecha, sua relação com os animais, são
associados às características dessa mulher Amazona.
Dessa maneira, o presente artigo tem como objetivo analisar a relação de Diana Marini, de
Marcia Denser2, com Diana deusa mitológica, nos contos “Welcome to Diana”, retirado da coletânea
de 1986, Diana Caçadora, e “O quinto elemento”, da coletânea Tarja Preta (2005), organizada por
Luiz Ruffato. Porquanto a autora, ao atribuir o nome e as características da deusa greco-romana à
sua protagonista, traz uma carga significativa para a construção dessa mulher que confronta a noção
patriarcalista de ser. Construindo uma narrativa que busca afastar-se dos discursos falocêntricos e
reconstruir as identidades, permitindo transgressões sexuais que desmitificam todo um conceito
de feminino. Além de mostrar que a mulher possui interesses sexuais que precisavam ser abafados
nos âmbitos sociais devido aos códigos patriarcais, e mais, que essas questões transbordam pelas
beiras da construção da(s) sua(s) identidade(s), imersa(s) nessa conflituosa relação entre o desejo
de se emancipar e a carga opressiva dos padrões sociais vigentes.
O termo apresenta “tanto o mito de Ártemis quanto das Amazonas”, ambos “convergem para os mesmos temas:
autonomia a qualquer preço, sacrifício, intransigência e rejeição do vínculo sexual” (p. 121). Desta forma, trata-se de
mulheres independentes do homem, em busca de si própria, de uma liberdade real.
2 Márcia Denser, escritora brasileira nascida em São Paulo em 1954, é contista, romancista e jornalista. Publicou seu
primeiro livro, Tango Fantasma (1977), aos 23 anos de idade; alguns anos mais tarde, O Animal dos Motéis (1981),
Exercícios para o pecado (1984), Toda Prosa (2002), Caim (2006) e DesEstórias – Artigos e Crônicas (2016), além de
ter contos traduzidos para o alemão, holandês e inglês.
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Diante disto, a personagem transpõe a própria sexualidade, pois embora estabeleça seu
espaço como caçadora, ela estende a si mesma como presa de sua caça, na mais difícil jornada que
é a busca por se configurar no mundo, de se entender como sujeito contraditório e de identidades
múltiplas. A liberdade oportunizada pelo arquétipo da deusa Ártemis é diálogo dessa progressiva
vontade de se (auto)reconhecer. De tal forma estes pontos de referência com a deusa repercutem
em seu processo de construção, que a personagem termina sempre em conflito com suas próprias
convicções: “Sem grande convicção, muitas camadas de rímel, blush, pancake, batom e cinquenta
minutos depois, está feito. A Diana de sempre. Só que mais parecia em cartaz de cinema que uma
mulher ao vivo.” (DENSER, 1986. p. 50). Evidencia-se, aqui, que a mulher Diana independente se
rende aos padrões de beleza, estabelecendo um conflito com sua(s) identidade(s), a que gostaria
e a que usa de fato: “De mim, apenas uma frágil fachada de papelão, enquanto lá dentro, na
penumbra, a louca visionária espreitava. Vou me foder, pensei, mas já estava impotente. Outras
mãos embaralhavam as cartas e me selaram a sorte.” (p. 50-1).
O problema dessa contradição identitária relaciona a trajetória da personagem às
características de deusa Ártemis, a deusa da liberdade. O contexto pós-moderno, que não
proporciona estabilidade para que o sujeito centralize sua(s) identidade(s), acaba por possibilitar
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que Diana assuma para si as características que lhe são convenientes, conforme problematiza suas
angústias. Imersa nessa crise, ocasionada pela descentração das relações sociais e de valores, há
um conflito que propicia na personagem o surgimento de identidades, consideradas por Hall (2011)
como fragmentadas, contraditórias, às vezes, e em outras não resolvidas, mas não a existência de
uma identidade fixa:
eu fico filosofando, me sentindo como uma espécie de lata
de lixo da humanidade, de onde eu poderia sacar certas
coisinhas que algumas dezenas de seres humanos odiariam
se lembrar, mas isso não me consola por que e eu? Sim a tua
auto-estima? E vossa alma eterna? Que fizestes dela, mulher?
Hein, prostituta? Apodrecerá e arderá com todo o resto,
provavelmente (DENSER, 1986, p. 34).
O arquétipo da deusa caçadora corrobora para essa distância emocional que caracteriza a
mulher tipo Ártemis: “está tão concentrada em seus próprios objetivos e tão atenta que falha em
notar os sentimentos dos que estão ao seu redor.” (BOLEN, 1990, p. 65). A ausência de sentimento,
de presença substancial de carinho mútuo, de laços coerentes de afeto, ou seja, a dificuldade de
estabelecer uma relação, ratifica a solidão crescente no interior da protagonista, e isto está presente,
também, nos outros contos da coletânea, como em “O Animal dos Motéis”: “Sinto-os pulsar aqui
dentro, cegos, surdos, solitariamente, me tocando até a loucura. Certo, o prazer também é meu,
mas duplamente solitário, uma tarefa que cumprimos tão distraidamente, tão alheiamente como
um violino que se tocasse a si próprio.” (DENSER, 1986, p. 71).
De acordo com Bauman (2004), a fluidez das relações humanas, a rapidez com que se torna
fácil iniciar e terminar, a atual fonte de relacionamento em rede, sendo que este se diferencia
totalmente dos padrões estabelecidos no patriarcalismo que se constituía da típica “família
perfeita”, consistente em pai e mãe heterossexuais e seus filhos, desestruturam a noção de mundo
organizado e idealizado pelo sistema imposto socialmente. A presença dessa mulher, que se
percebe deslocada, mostra que tais ideais começam a definhar, a perder seu sentido, uma vez que
na contemporaneidade conceitos tradicionais coesos, como família e identidade, começam a ser
separados dos laços densos do patriarcalismo, abrindo-se as possibilidades de uma ordem que não
precisa ser seguida.
Além disso, observa-se o trecho em que a personagem afirma: “Estatisticamente falando,
desde meu pai, quantos? Porra, no 58º parei de contar” (DENSER, 1986, p. 41), interessa a aparente
sugestão da transgressão da personagem de um interdito que é o incesto. Do ponto de vista
psicanalítico e social, pais e filhos, irmãos e irmãs não podem se unir, visto que a relação entre
tais graus de parentesco é socialmente podada por regras, pois, conforme afirma Freud (2006), a
sociedade é circunscrita pelo horror ao incesto, sendo proibido e represado, visto que, assim como
o sexo, é um tabu social.
O psicanalista também afirma que os primeiros desejos sexuais da criança têm caráter
incestuoso, chamados de complexo de Édipo, caracterizado pelo desejo do menino em possuir a
mãe, que é reprimido na criança conforme ela cresce e que passa a ser parte do seu inconsciente.
Tendo o mesmo princípio, o complexo de Electra, termo cunhado por Carl Jung (1913), chamado
por Freud de Complexo de Édipo Feminino, é definido como o desejo da menina de possuir o pai, o
que aparenta ser a transgressão de Diana.
Tais pontos reafirmam o arquétipo da deusa Ártemis em Diana personagem, visto que o
desejo de se aventurar e explorar são características do mesmo. Tal desejo evoca na mulher Ártemis
a experimentação, como dito anteriormente, levando-a a não se interessar em apegar-se a um, mas
experimentar uma grande quantidade de homens. Desta forma, o conto de Márcia Denser constrói
uma personagem feminina irreverente, que subverte o papel de caçador: quem antes era caça virou
caçadora, e se perde nos labirintos da sexualidade exacerbada e da solidão existencial.
sua crise existencial e a negação da(s) identidade(s) representada(s) nos contos anteriores. A partir
desta negação, o conto descreve como essas identidades passaram a dialogar com a identidade que
ela gostaria de ter, abordando, portanto, sua construção identitária.
A característica de caçadora de homens apresenta-se como um diálogo entre esta nova
protagonista e Diana: “Aos vinte anos eu pensava que meu objetivo existencial seria ter poder sobre
os homens” (DENSER, 2005, p. 118). O desejo sexual configura-se parte da narradora, mas, diferente
de Diana, na coletânea de 1986, que agia por impulso e aproveitando as oportunidades, há uma
tentativa de justificar seu comportamento e suas escolhas: “ainda não sabia, não havia encontrado
(tampouco que estivesse procurando) um projeto de vida [...]. Tolamente me concentrava APENAS
nos homens (ou seria ao contrário?)” (DENSER, 2005, p. 118, grifo da autora). Consiste, portanto,
uma consciência sobre suas escolhas e o que elas significavam no construto identitário de sua
personalidade.
Mesmo que o objetivo inicial tenha sido a caça aos homens, havia a dúvida sobre estar se
objetificando. Além disso, o estilo da construção narrativa é o de quem narra uma história cujo fim
já conhece, portanto há um tom analítico/reflexivo sobre si própria. Percebe-se que a trajetória de
sua construção identitária constitui, primeiramente, uma descoberta de si enquanto sujeito capaz
de se modificar, ciente de sua proximidade com as características da deusa Ártemis: capaz de agir
e ser diferente dos padrões, deparando-se com identidades representadas em Diana caçadora
de homens, e, em segundo, sua capacidade de escrita que se configuraria como um espaço para
subversão e contestação que desejava: “meu lance era a literatura, era ser escritora, e isso fazia
sentido, tudo ficava muito claro, claríssimo” (p. 121, grifos da autora). Se intensifica, não obstante, a
relação entre Diana e a deusa Ártemis, ao apontar a liberdade, a capacidade de escolha e controle
de suas ações, na simbologia da escrita da narradora.
O grande engodo é apresentado no segundo capítulo, no qual afirma que Diana Marine
era ela, a própria narradora, ao mesmo tempo, revelando que existia um desejo de afastar a Diana
que vivia nela, pois esta era “uma biografia” que “virou personagem de ficção e a face dominante
da minha persona – agora pública, [...] ou seja, Diana Marini, um não-eu, um eu-também [...] uma
hetaira de ar desprezadora, literalmente la belle sans merci” (DENSER, 2005, p. 122, grifos da
autora).
Situadas as identidades de Diana Caçadora, como a mulher tipo deusa Ártemis, verifica-
se que a personagem dos contos anteriores começa a fazer parte das identidades dessa nova
narradora: “persona cuja lógica passou a dominar a realidade, minha realidade, e isto é um tanto
desastroso para dizer o mínimo, pelo que Diana tem em comum com Ártemis, Astarte, Afrodite,
Ishtar, aquelas deusas biscates, cruzes, quase todas comiam criancinhas.” (DENSER, 2005, p. 122).
As características da deusa Ártemis são reiteradas de forma consciente pela narradora ao
revelar-se Diana personagem. Simultaneamente, cria um espaço de negação dessa(s) identidade(s),
justificando esse conflito quando afirma que, além das aventuras que não terminavam muito bem,
era seu outro lado, o lado com sua identidade mais coesa, que suportava o resultado de tudo que
Diana fazia: “Marini sempre agia contra si própria, mas sobrava para mim”. (DENSER, 2005, p. 129).
Em outro ponto da narrativa, há confirmação de que suas aventuras sexuais eram objetos
de uma tentativa de evitar, de fato, um envolvimento afetivo mais profundo: “reiteradamente me
envolvia com sujeitos que não eram o meu tipo, e envolver-se com pessoas que não são nosso tipo
é funesto, porque se imagina justamente o contrário, que assim se estará a salvo das mãos do amor.
Ledo engano.” (DENSER, 1986, p. 122). A protagonista-narradora mostra seu lado Diana durante a
narração de uma de suas aventuras em que há uma mistura de narradores, na intenção de propiciar
uma distância entre si e as identidades em negação, contando em terceira pessoa e, ao mesmo
tempo, misturando com a primeira:
Porque Diana fazia de conta que desprezava Xavier, que
reiteradamente fazia de conta que era rejeitado, e ambos
alimentavam compulsivamente este mito circular e estúpido,
este jogo sem vencedores, um cirquinho que eu desarmava
facilmente, pois bastava aceitar, dizer sim, que me casaria com
ele, que ele sumia (DENSER, 2005, p. 128).
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Considerações finais
No decorrer desta análise foi observado através dos contos de Márcia Denser, a
representação do arquétipo da deusa Ártemis dialogando com a construção de uma nova mulher
sujeito, mostrando as transgressões aos valores do sistema patriarcal falocêntrico e a busca por
exercer sua própria liberdade.
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A coletânea Diana Caçadora, cujo contexto de produção traz os conturbados anos 80,
retrata essa necessidade de autodescoberta, visto que os contos reportam a situações vividas por
uma personagem que se entrega ao sexo descartável e descompromissado, enquanto tem que
lidar com essa liberdade diante dos estigmas sociais. Dialoga, portanto, com a afirmação de Maas:
“Que a mulher não permaneça dominada pelo arquétipo de uma única deusa, nem seja obrigada
a vivenciar todas, mas descubra seu próprio mito, construa sua própria história e privilegie sua
escolha interior” (apud BOLEN, 1990, p. 8). Isto remete, inevitavelmente, às possibilidades de
escolha diante dessa liberdade feminina de deusa Ártemis e aos conflitos identitários que surgem
nessa mulher que anseia um enfrentamento consigo mesma.
Os temas emblemáticos do mundo contemporâneo, como a fluidez das relações afetivas, a
formação de identidades hibridas e/ou fragmentadas e a busca e a necessidade da satisfação sexual
caracterizam uma personagem feminina que rompe com os padrões patriarcalistas.
Com efeito, os contos da caçadora Diana, mistificada pela deusa Ártemis, mostram-na a
deriva de seus conflitos internos e em sua busca obstinada por um entendimento do mundo que se
abre à sua liberdade, resultando em uma necessidade de autoconhecimento e satisfação. A urgência
e, ao mesmo tempo, o vazio existencial, evidenciam que a liberdade sexual e a independência
financeira nem sempre traz a independência emocional às mulheres pós-modernas, mesmo que
bem-sucedidas profissionalmente. Deste modo, Diana Marini e deusa Ártemis demonstram a ânsia
do espírito independente feminino, representando a possibilidade de a mulher buscar seus próprios
objetivos assumindo as consequências de sua própria escolha.
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