Rio Baixo, Um Salto Grande - A Construção de Identificação de Discursos em Ituporanga (SC)
Rio Baixo, Um Salto Grande - A Construção de Identificação de Discursos em Ituporanga (SC)
Rio Baixo, Um Salto Grande - A Construção de Identificação de Discursos em Ituporanga (SC)
Florianópolis
2016
Ficha de identificação da obra elaborada pelo autor
através do Programa de Geração Automática da Biblioteca Universitária da
UFSC.
Inclui referências
________________________
Prof. Jeremy Paul Jean Loup Deturche, Dr.
Coordenador do Curso
Banca Examinadora:
________________________
Prof. Ernesto Seidl, Dr.
Orientador
Universidade Federal de Santa Catarina
________________________
Prof.ª Letícia Borges Nedel, Dr.ª
Membro da banca
Universidade Federal de Santa Catarina
________________________
Prof. Alexandre Bergamo Idargo, Dr.
Membro da banca
Universidade Federal de Santa Catarina
Este trabalho é dedicado a todos aqueles
que, dia a dia, construíram a Ituporanga de
hoje.
AGRADECIMENTOS
1.Introdução...................................................................................................15
1.1A Pesquisa.....................................................................................15
1.2Apresentando Ituporanga..............................................................17
1.3Procedimentos de pesquisa.......................................................... 19
2.Pressupostos teóricos..................................................................................23
2.1História e memória, formas de discurso........................................23
2.2Teorias da identidade....................................................................26
3.A história e seus intérpretes.......................................................................31
3.1Os autores......................................................................................31
3.2O suporte material por trás da narrativa........................................32
3.3O suporte simbólico da história de Ituporanga.............................34
3.4Os limites de Ituporanga...............................................................42
3.5As demais versões sobre a história................................................43
4.Narrativas sobre o passado e um olhar para o futuro.............................46
4.1Duas freguesias, duas categorias...................................................46
4.2Etnicidade em Salto Grande..........................................................49
4.3De olho no campo: a Capital da Cebola........................................61
5.Considerações finais...................................................................................71
Referências bibliográficas...............................................................75
Entrevistas........................................................................................76
15
1. INTRODUÇÃO
1.1 A PESQUISA
Quer dizer, usamos conhecimento que temos com relação à cidade, mas, para
concretizar a “objetivação sociológica”, questionamos pré-noções nossas a respeito da
mesma, e dos alvos da pesquisa de campo. A experiência na cidade, aliada com a
residência em Ituporanga, se mostrou muito útil durante a realização da pesquisa de
campo. Entre as facilitações proporcionadas por estas questões, estão o
estabelecimento de contato com os entrevistados, bem como a disponibilidade para
realizar as entrevistas no horário que os beneficiasse. Além disso, alguns materiais de
pesquisa documental só puderam ser encontrados devido aos fatores citados.
17
1
Fonte: IBGE, disponível em
http://www.cidades.ibge.gov.br/xtras/temas.php?lang=&codmun=420850&idtema
=1&search=santa-catarina|ituporanga|censo-demografico-2010:-sinopse-,
acessado em 07/10/2015.
2
Idem.
3
Idem.
4
Idem.
5
Idem.
20
João Nicolau Sens: Além de ser membro do grupo familiar “Sens”, tido como
“pioneiro” da cidade, foi prefeito da cidade e escreveu um livro sobre os “Sens”.
Segundo ele mesmo, a pessoa mais velha, ainda viva, a nascer na cidade. Tem 94
anos;
José Fernando Sens: Professor aposentado, atualmente trabalha na rádio local, e é uma
pessoa muito respeitada na cidade;
José Gervásio Maciel: Ex-prefeito, dono da rádio local, sócio do primeiro jornal a
obter razoável sucesso, e muito importante no processo de consolidação da “Capital da
cebola”;
Nelson Sens: Com 82 anos, primo de João Nicolau Sens, dono da tipografia que
imprimiu o livro do cinquentenário;
Nilo Ludwig: Um dos primeiros dentistas da cidade, hoje com 85 anos, a pessoa mais
interessada em registrar oralmente a história da cidade;
Orlando Adilson Turnes: Um dos sócios do jornal “A Região”, juntamente com José
Gervásio Maciel, e proprietário do jornal “A Comarca”, o mais antigo ainda editado da
cidade;
Valmor Holetz: Médico muito prestigiado em Ituporanga, luterano, também muito
interessado na história da cidade;
A pesquisa documental foi utilizada com diversos tipos de material escrito.
Analisamos jornais e livros. Os jornais são os publicados na cidade, que foram
encontrados. O mais antigo deles é o “A Região”, que data de meados de 1978 até
1990. Além dele, temos “A Comarca”, de 1995 em diante, “Destaque” de 2012 a
2015, e o “Vale Sul”, de 2012 em diante. A princípio, o objetivo era ler toda esta
produção escrita. Porém, o andamento da pesquisa mostrou que isto era dispensável,
pois não houve ganhos significativos. Então, nos concentramos em analisar datas
relevantes para a cidade, como aniversários de emancipação e colonização, por
exemplo. Os livros são os que falam, direta ou indiretamente, sobre a cidade. Sobre a
própria cidade, o mais antigo é o livro do cinquentenário, datado de 1962. Além deste,
há o livro lançado em alusão ao centenário de colonização, em 2012. Existem ainda
outros três livros, que contam histórias de grupos familiares da cidade, e a acabam
mencionando, de uma forma ou outra. Um deles é o “Família Sens: uma história para
22
2. PRESSUPOSTOS TEÓRICOS
E não é apenas a memória coletiva que é objeto de disputa. Tal noção pode
ser expandida para qualquer tipo de classificação. Bourdieu defende esta noção:
Quer dizer, enquanto afirma um saber, o discurso nega outros, os exclui. Por
isso, a memória coletiva é discurso, seja na forma escrita ou oral. Enquanto ela
defende uma narrativa, exclui outras. Por isso os rótulos são também discursos.
Enquanto elegem um atributo da cidade, negam outros. O discurso ao mesmo tempo é
verdade e mentira, tal qual o documento, é um instrumento de poder e, na forma da
memória coletiva, opera como um mecanismo de identificação.
dizem Brubaker & Cooper (2000), a identidade está em todo lugar, e, portanto, em
lugar algum.
Mas, afinal, qual a solução proposta pelos autores? É a construção de teorias
da identidade sem o uso do próprio termo “identidade”. Esta sugestão é justificada
pela ambiguidade da palavra, que leva a problemas, passíveis de ser contornados com
o uso de outros termos, que definem com maior precisão os diferentes usos que
“identidade” pode tomar. Segundo os autores, o uso da palavra “identidade” como
categoria da prática não justifica a necessidade de usá-la como categoria de análise.
A primeira sugestão é o uso do termo “identificação”. Em primeiro lugar, ele
é um termo processual. A identificação, seja por si mesmo ou por outros, não implica
grupos coesos, com fronteiras definidas. Esse processo - fundamentalmente
situacional e contextual -, é indissociável da vida social. Ele pode acontecer de duas
maneiras, segundo os autores. Pode ser uma identificação relacional, quando os
agentes são identificados com relação a redes, como redes de parentesco, amizade,
profissional etc. Ou pode ser uma identificação que se refira a uma classe de pessoas
que dividem um atributo em comum, ou, para usar outro termo, uma categorização.
Alguns exemplos são identificações com “nacionalidades”, “gênero”, “etnias” etc.
Apesar de ser importante revelar os agentes responsáveis pela identificação, nem
sempre é possível fazê-lo. Quer dizer, a identificação pode ser feita por discursos
anônimos.
É precisamente este o processo de identificação concretizado pelos discursos
que estudaremos. No caso dos discursos que identificam “Ituporanga” e não o
“ituporanguense”, o processo de categorização não identifica agentes diretamente.
Quer dizer, o que a “história de Ituporanga” e a noção de “Capital da cebola”
identificam é “a cidade”, a “comunidade”. Certamente, eles o fazem de maneiras
diferentes. A história é mais do que um “identificador”, ela é o próprio fundamento de
todo o imaginário a respeito de Ituporanga. Já a “Capital da cebola” atribui uma
classificação à cidade, transforma em uma relação identitária algo que a princípio era
“apenas” um produto agrícola do município.
Porém, é importante lembrar que, quando se fala de Ituporanga,
inevitavelmente fala-se da cidade como um todo. Quer dizer, não existe, no nível de
29
3.1 OS AUTORES
Uma narrativa não acaba em seu texto. Para compreendê-la, é preciso ir além
das palavras. Conhecer os agentes que narram a história, aos quais é atribuído o título
de “autor” é um passo não apenas importante, mas fundamental. Uma narrativa
impressa, como é o nosso caso, porém, dá margem a novos questionamentos.
33
São estas as exatas palavras usadas por Edevaldo C. Thiesen para descrever a
origem de Ituporanga. Aqui, podemos notar algumas características que fazem com
que este texto ofereça um “mito de origem” da cidade. Neste texto, estão expostos
todos os referenciais que perpassam a narrativa da história da cidade (que não se limita
a este texto). Quer dizer, nestas palavras podemos encontrar uma síntese dos marcos
simbólicos (e, portanto, morais) da cidade.
Um primeiro marco observável no texto é a caracterização dos primeiros
moradores do local. Estes ostentam o título de “pioneiros” da cidade. Classificações
como o “homem-colono”, “bandeirante catarinense”, “primeiros colonizadores”
,glorificam as funções supostamente exercidas por estas pessoas. O papel do pioneiro,
protagonista da narrativa, aparece em outros momentos, sugerindo a sua importância
no contexto ituporanguense. O “pioneirismo” é atribuído a um seleto grupo de
pessoas, que são aquelas que terão seus nomes lembrados. No livro do centenário, tal
título é atribuído, por exemplo, ao já citado João Carlos Thiesen, que, como dito
anteriormente, chegou ao local em 1919. Carlos Jensen Filho, por exemplo, chegou de
Blumenau em 1918, e é referenciado, num artigo que trata da paróquia luterana, como
o primeiro morador “não-católico” de Salto Grande. Em nenhum momento, porém, é
atribuído a ele um prestígio equivalente ao de João Carlos Thiesen, ou aos irmãos
37
Balduino, Jacob, Fernando e Adão Sens, filhos de Matias Gil Sens. Este, por sua vez,
é referenciado como o “principal pioneiro” da cidade, o seu fundador. Portanto, como
qualquer classificação social, ela não é aleatória. Captar os critérios de categorização é
uma tarefa difícil, mas necessária. Para isso, é preciso considerar todas as
características da narrativa. Porque o rótulo de pioneiro não pode ser analisado
isoladamente. Ao contrário, devemos considerar os outros marcos que perpassam o
discurso.
A religião é, ao que o livro indica, um deles. Segundo todas as referências
sobre a religião em Ituporanga, houve, por “muito tempo”, duas igrejas presentes no
local. A primeira é a de confissão católica, com cerca de três quartos da população
atualmente, e, segundo todas as entrevistas que realizamos, sempre maioria na cidade.
Era a religião dos ditos pioneiros. A outra é a Igreja Evangélica de Confissão Luterana
do Brasil. Como mencionado, o primeiro adepto desta confissão foi Carlos Jensen
Filho, que chegou a cidade em 1918. Embora seja difícil precisar datas, posteriormente
vieram Emílio Altemburg, Henrique Holetz e Ulrich Muller, todos acompanhados dos
familiares, todos luteranos que se estabeleceram em Salto Grande ainda em seus
primeiros anos. Vamos analisar como as duas confissões são tratadas no livro de
Edevaldo Cyro Thiesen. A religião católica é, claramente, tratada com mais atenção.
Começando pela capa do livro, que contém uma figura (a única da página) de uma das
torres da Igreja Matriz Santo Estevão, inaugurada anos antes pelos católicos locais.
Além disso, fica clara a primazia dos católicos na narrativa em dois temas. Desde o
começo da atividade católica de Salto Grande, a localidade sempre foi atendida pela
congregação franciscana, até hoje. Na figura de seus religiosos (tanto os padres quanto
as “irmãs”), ela teve influência, principalmente, na saúde e na educação.
O livro do cinquentenário narra a história das escolas na cidade, da origem
até 1962. Deixa claro que a primeira instrução ministrada a crianças ituporanguenses
foi a catequese. Em 1919, foi criada a escola pública, que teve como primeiro
professor João Carlos Thiesen. Em 1933, foi criado o Grupo Escolar Santo Antônio,
sob a direção do pároco local, frei Gabriel Zimmer. É lembrado que, neste momento,
Salto Grande teve três escolas funcionando: “uma católica, uma luterana e uma
pública” (THIESEN, 1962). Não há, porém, qualquer outra informação sobre a Escola
38
Luterana. Além de fornecer muitas informações sobre a escola católica da cidade (que
já fora fechada em 1948), a narrativa quase ignora a escola luterana. O “sucessor”
(apesar de estadual, era influenciado pelos franciscanos) do Grupo Santo Antônio,
Grupo Escolar Mont’Alverne, também é enaltecido posteriormente.
Com relação à saúde, há um fato significativo na narrativa. A cidade teve,
algum tempo, duas instituições hospitalares. O mais antigo é o Hospital Bom Jesus,
fundado em 1939 (e ativo ainda hoje) por frei Gabriel Zimmer, primeiro pároco da
paróquia Santo Estevão de Ituporanga, e ainda hoje é administrada pela Congregação
das Irmãs Franciscanas de São José (SENS, 2012). A Maternidade Nossa Senhora das
Graças, por sua vez, foi fundada em 1957 por Vanio Mario Colaço de Oliveira. Em
1968, foi vendida para as irmãs franciscanas, mesma organização que administra o
Hospital Bom Jesus. No livro de 1962, embora existissem as duas instituições
hospitalares, só o hospital é mencionado. Na primeira linha do texto que fala dele, está
escrito que “O Hospital Bom Jesus é o melhor dos estabelecimentos hospitalares da
cidade” (LUZ & THIESEN, 1962). Além do elogio ao hospital, podemos inferir uma
crítica à Maternidade, que era a outra instituição hospitalar de Ituporanga. É
importante lembrar que, na época, a Maternidade era administrada, possivelmente, por
Vânio Mario Collaço de Oliveira (médico e político local). Já em 1974, em material
comemorativo sobre Ituporanga organizado por Waldemar Luz e por Nelson Sens,
tanto a maternidade quanto o hospital tem um texto explicando a sua trajetória. O
texto sobre o hospital não fala que ele é o “melhor da cidade”. Já o texto sobre a
maternidade, embora cite a fundação deste por parte de Vânio Mario Collaço de
Oliveira, dá preferência em tratar da administração da época, realizada pelas irmãs
franciscanas. Poderíamos argumentar que a mudança na maneira como a maternidade
foi tratada diga respeito a possíveis rivalidades políticas na cidade, haja vista que
Vânio de Oliveira foi importante membro da UDN (União Democrática Nacional)
municipal, ao passo que João Carlos Thiesen foi o grande expoente do diretório
ituporanguense do PSD (Partido Social Democrata). Essa rivalidade entre PSD e UDN
foi lembrada várias vezes nas entrevistas, como na de Nilo Ludwig e Édio Machado,
por exemplo. Porém, como dito anteriormente, há grandes elogios, no livro do
39
cinquentenário, a membros dos dois partidos. Isso reforça a ideia de que a diferença de
tratamento se deve à entrada da Congregação Franciscana na maternidade.
Tudo que foi exposto nos parágrafos anteriores deixa clara a prioridade
atribuída a confissão católica na narrativa histórica de Edevaldo Cyro Thiesen.
Prioridade, porém, não significa um esquecimento dos luteranos do local. É
fundamental lembrar que há algumas páginas, no livro do cinquentenário, que citam a
história da paróquia luterana de Ituporanga. Portanto, os luteranos são lembrados, mas
em segundo plano.
A relação entre a cidade e alguma possível origem “alemã” é um tema
importante, que exige que falemos também do livro do centenário da cidade. Mas
comecemos pelo texto de 1962. Na narrativa sobre a origem da cidade, transcrita
acima, não há menção de nada que lembre a Alemanha. Absolutamente nada. No texto
que fala sobre a trajetória das instituições educacionais no local, Thiesen (1962) usa,
para enaltecer o Grupo Escolar Santo Antônio, o exemplo das festividades de 7 de
Setembro. Nesta ocasião, segundo ele, o juiz Norberto de Miranda Ramos teria escrito,
no livro de visitantes, um elogio ao Frei Manuel Fillipi, diretor da instituição, na
época, dizendo que ele era “elemento destacado na grande obra de nacionalização...”
(THIESEN & LUZ, 1962). Há várias referências à “pátria brasileira” ao longo do
livro. Além disso, a narrativa se passa, inteiramente, no Brasil. A história de
Ituporanga, para Edevaldo Cyro Thiesen, começa em São Pedro de Alcântara.
Porém, é fácil perceber, pela grafia dos sobrenomes, que a maioria das
pessoas que habitaram a vila, em seus primórdios, eram, se não alemães, caso de uma
minoria, filhos ou netos destes. Era o caso de Matias Gil Sens, por exemplo, cujo pai
chegou ao Brasil com seis anos de idade. E é justamente pela viagem dos antepassados
do principal pioneiro de Ituporanga, através do oceano, que Aracy dos Santos Sens
(2012) começa a contar a história do lugar. Antes disso, ela já havia dito que a
colonização da cidade foi feita por “italianos, alemães e portugueses”. Quando fala
sobre Matias Gil, ela lembra que ele “falava alemão fluentemente”. Quer dizer, no
livro do centenário, não há esforço em lembrar que a cidade teve (e possivelmente
ainda tem, é difícil afirmar isto com precisão) nos descendentes de alemães a maioria
da população.
40
Na entrevista realizada com Nilo Ludwig (neto de Matias Gil), houve uma
peculiaridade. Antes de responder às perguntas elaboradas pelo pesquisador, o
entrevistado narrou a “história” que teria ouvido de seu tio, Ernesto Ludwig (o mesmo
que acompanhou Matias Gil na migração que deu origem à cidade). Segundo ele,
Matias Gil, Ernesto e mais algumas pessoas fizeram uma viagem de prospecção, para
conhecer o território. Nesta viagem, eles subiram em um morro nas proximidades do
que se tornaria o centro urbano, para obter melhor vista. Lá em cima, Matias Gil teria
dito para eles descerem do morro naquele momento, com urgência. Todos
obedeceram. Chegando lá embaixo, Ernesto teria indagado Matias sobre o porquê de
terem que descer tão depressa. Matias respondeu- disse Nilo Ludwig-, “em alemão,
porque eles só falavam alemão”, que havia uma onça no local. Num momento
posterior da narrativa, Matias está na sua casa, em São Pedro de Alcântara, e fala
sobre uma possível mudança para o Vale daquele rio. Novamente, Nilo Ludwig frisa
que ele falava alemão com Catarina, sua esposa. É interessante que, nessa narrativa, o
entrevistado fez questão de lembrar, mais de uma vez, que seus antepassados falavam
alemão. Quer dizer, as narrativas sobre a cidade divergem neste ponto, de caracterizar
ou não os pioneiros como “alemães” ou não. O que podemos concluir, observando as
diferentes versões, é que, no livro do cinquentenário, a origem étnica dos primeiros
habitantes de Salto Grande foi esquecida. Como mostramos a partir de Le Goff
(1990), a memória é seletiva, e, portanto, optou-se, conscientemente ou não (o próprio
Edevaldo Cyro Thiesen era um descendente direto de imigrantes alemães, nasceu em
uma época em que “o alemão” era muito falado na vila) em criar uma história de
Ituporanga na qual essa ligação não seja lembrada. Essa questão será debatida, sob
outra perspectiva, no capítulo seguinte.
Porém, se a etnicidade germânica foi silenciada na narrativa do
cinquentenário, e não foi ligada à categoria “pioneiro”, nem por isso essa última
perdeu em complexidade. É bastante clara, na narrativa, a relação entre a figura do
“pioneiro” e a figura do “colono”. Podemos inferir, então, que a relação acontece da
seguinte maneira. “O colono” é uma figura mais ampla, que engloba todos aqueles que
“colonizaram” o território. Já “o pioneiro” vai além deste. Ele é como que um
“colono” superior, por supostas contribuições à comunidade, ou até por ser
41
Os “atacantes” então, fazem o que a narrativa diz que fazem: atacam o colono, com
flechas. Estas que são o contrário da espingarda, no sentido de serem rudimentares,
toscas, primitivas, justamente o contrário da civilização que o colono veio trazer para
aquele vale. Felizmente, eles atiram muito mal, e só uma flecha atinge o braço direito
do colono, que milagrosamente, sai ileso, ao sair correndo para a casa do irmão. Esta é
a fronteira fundamental entre o colono e o índio: de um lado, o progresso e a
civilização, sempre ameaçados pelo perigo iminente; de outro, o índio, rude, selvagem
e ameaçador. E tudo, na narrativa, caminha no sentido de glorificar o colono, com
destaque para o colono pioneiro (a divisão dentro da divisão), e, mesmo, demonizar,
caracterizar o índio como o outro, o diferente, que ameaça o progresso e a colonização
ordeira.
A intenção do texto é então enaltecer a figura do colono pioneiro, que funda
Ituporanga. A própria estrutura da narrativa, que começa com contornos de uma
epopeia, revela uma prosa que busca enaltecer os fatos que descreve. Os cenários e os
personagens são comuns na história das colônias fundadas por descendentes de
europeus, entre os séculos XIX e XX no sul do Brasil. A descrição do território antes
da colonização, ressaltando o caráter “virgem”, “intocado pela civilização”; A
afirmação subentendida de que habitar o local é uma missão com riscos, uma
“aventura”; A suposta necessidade em “habitar” as matas; Tudo isto corrobora essa
intencionalidade da história de Ituporanga.
território, antes disputado com Blumenau, por estar situado no limite entre os dois
municípios. A sua figura, porém, está intimamente relacionada com a cidade:
pioneiro”, brasileiro, que enfrenta o perigo “selvagem” para fazer “a” colonização, que
podemos observar em Luz & Thiesen (1962).
Salto Grande era, nos seus primeiros anos, uma vila que crescia nas margens
do rio Itajaí do Sul. Neste período, ela era equivalente a outras comunidades rurais,
que mais tarde pertenceriam ao município de Ituporanga. A vila, porém, era dividida
em duas frações. Existia a “Freguesia de cima” e a “Freguesia de baixo”.
A primeira, segundo Nelson Sens, cresceu nas terras que inicialmente
pertenceram a Matias Gil Sens e à Sociedade Colonizadora Catarinense, ponto no qual
foi “fundada” a vila, em 15 de Agosto de 1912. Era conhecida como um local habitado
quase que exclusivamente pelos católicos da cidade. Segundo Ingelore Porthum, desde
que ela pôde recordar, foi o ponto mais movimentado, o verdadeiro centro da cidade, o
que se consolidaria posteriormente, já que a Freguesia de cima é hoje o bairro Centro,
local onde se concentra a maior parte do comércio da cidade.
47
houve, até onde foi possível capturar, casamentos inter-religiosos em Salto Grande, de
1912 até 1960, ano em que Nilo Ludwig e Rizonha Koehler (nascida em Blumenau,
residente na Freguesia de baixo) se casaram. Porém, o casamento não foi um processo
simples. Segundo o noivo, era bastante comum um moços e moças católicos e
luteranos terem namoros fugazes, sem compromisso. Mas não casar. Casar, devemos
lembrar, é um processo que passa pela igreja, pelas instituições religiosas, ao passo
que os namoros acontecem de maneira muito mais informal, com regras diferentes.
Num primeiro momento, Waldemar Koehler, pai da noiva, consentiu com o
casamento, desde que o noivo se convertesse. Nilo Ludwig disse, durante a entrevista,
que jamais poderia fazer isso, pois seria uma desilusão para seu pai. A noiva, então,
aceitou casar-se em segredo, na igreja católica. Dias depois da cerimônia, o sogro de
Nilo Ludwig exigiu que ele participasse do culto dominical, na igreja luterana da
Freguesia de baixo. Após negativa, pai e filha ficaram cerca de um ano sem contato,
com ela morando na Freguesia de cima, com seu esposo, e frequentando a igreja
católica. Esse rompimento, causado pelo casamento com um católico, só foi atenuado
pelo nascimento da primeira filha do casal.
Portanto, se existe uma proibição referente a dois coletivos diferentes, que
classificam as pessoas de Salto Grande de acordo com a religião, existem duas
categorias de identificação: os católicos e os luteranos. A religião, então, era um
instrumento fundamental de distinção e identificação, nas primeiras décadas após o
começo da colonização. A fronteira simbólica entre ambos, consolidada na divisão
territorial e na proibição (informal) do casamento nos permite concluir isso.
sendo, portanto, muito difícil impor-lhe limites. De maneira genérica, podemos dizer,
baseados não só em Seyferth, mas também em Frotscher (2000), por exemplo, que os
dois principais componentes do deutschtum teuto-brasileiro são o uso do idioma
alemão na vida privada e a divulgação da “superioridade” do “trabalho alemão”.
Apesar de defender um conceito amplo (portanto, um tanto vago para fins
analíticos, como Brubaker fala com relação à “identidade”), que pode ter vários
significados, a autora acaba caindo num essencialismo cultural da etnia. Ou seja, ao
vincular o deutschtum (que nada mais é do que um conjunto de práticas e valores,
portanto, necessariamente cultural) e a identidade étnica teuto-brasileira, a autora cai
no que Barth (1969) critica: associar a permanência de um grupo étnico com a
persistência de uma cultura particular.
Mas Barth (1969) também nos diz que a etnia se afirma em oposição ao que
lhe é diferente. Desta maneira, o grupo étnico teuto-brasileiro afirmou e defendeu o
seu deutschtum, segundo Seyferth (1981), em oposição ao que alguns jornais
chamavam de “nativismo”. O “nativismo” é personificado pelos luso-brasileiros,
índios e negros. A defesa do deutschtum estava baseada na negação destes, aos quais
eram atribuídas características como preguiçosos, por exemplo. Outra alegação que a
autora encontra em periódicos editados em língua alemã na época é a de que os teuto-
brasileiros não poderiam abrir mão do deutschtum em favor da nação brasileira, já que
segundo eles esta não existe. Quer dizer, o Brasil era um Estado, com seus cidadãos,
mas não existiria uma “nação brasileira”. Os nativistas, por outro lado, condenavam os
teuto-brasileiros por não aderirem totalmente à nova nação.
A autora nos mostra que essa discussão acontecia principalmente por uma
visão diferente de nacionalidade e cidadania. Enquanto para os nativistas,
nacionalidade e cidadania andam juntas, e a nacionalidade é adquirida através do jus
solis (o direito de nascimento), para os teutos nacionalidade e cidadania são coisas
diferentes, e a nacionalidade é herdada, através do jus sanguinis (direito de sangue).
Quer dizer, estes periódicos em língua alemã defendem que os alemães são bons
cidadãos e trabalham (repare na menção ao trabalho) para o crescimento de sua nova
pátria, o Brasil. E, por isso, acham que têm direito de conservar seus costumes
52
herdados da nação germânica, sem que isso implique qualquer tipo de ligação com o
Estado alemão.
Mas as teorias da etnicidade mais recentes nos abrem novas possibilidades
para pensar a hipótese da influência de certa “cultura germânica” em Ituporanga.
Podemos perceber que, mesmo na literatura inspirada por Barth, como o é a de
Seyferth, em certa medida, “o” grupo étnico é tomado como a expressão óbvia da
etnicidade. Rogers Brubaker (2002) argumenta a favor de uma tese que vai contra
parte do legado deixado por Barth nessa área das ciências sociais. Ele parte da ideia de
que cientistas sociais devem evitar o uso comum das palavras, sem a crítica necessária.
Neste caso, é perigoso reificar algumas categorias, especialmente “etnicidade” (ou
etnia) e “grupo étnico”, e assumir a sua existência como um dado óbvio. Com relação
ao primeiro termo, o autor pensa que ele não pode ser entendido como uma “coisa”
que existe (tal como o é no uso comum), mas sim como um processo, como algo em
andamento, estendendo o seu pensamento aos termos “raça” e “nacionalidade”.
Brubaker diz que “eles não são coisas no mundo, mas perspectivas no mundo”
[tradução nossa] (BRUBAKER, 2002, p.174.). Porque eles só existem como nossas
percepções, interpretações, representações, categorizações e identificações.
E isso nos leva diretamente ao segundo ponto. Porque o autor também não
aceita a tese, pressuposta por Barth, de que falar de etnicidade seja sinônimo de falar
de grupos étnicos. Segundo o autor, não é sua preocupação discutir a definição de
“grupo”, mas sim, novamente, buscar dissociar o uso comum da palavra e o termo
como categoria de análise. No seu uso comum, o “grupo” é reificado e tomamos a
existência destes como postulado, ou, como diria Brubaker, os entendemos como
“coisas no mundo”. Mas, como categoria de análise, ele não pode ser posto dessa
maneira, segundo o autor. Inclusive, ele sugere que, na pesquisa, seja usado o termo
“coletividade” em vez de “grupo” E isto porque a existência de um grupo deve ser
tratada não como algo dado, mas como algo que acontece. A coletividade “acontece”,
em momentos de alta coesão e intensa solidariedade entre as pessoas, que podem ou
não permanecer.
A etnicidade será entendida, nesta pesquisa, como uma maneira de se
identificar, que estabelece como limite de pertencimento ao coletivo um tipo de
53
“origem comum”. Isto pode, é claro, estar relacionado com elementos culturais, mas
não há dependência disto. Neste sentido, estaremos de acordo com as propostas de
Barth (1969). Porém, discordaremos deste e de Seyferth (1981) quanto à associação
entre etnicidade e grupos étnicos (ou etnias). A existência do primeiro não é
condicionada pela existência do segundo.
Dito isto, é importante lembrar que as primeiras famílias de “Salto Grande”
eram todas descendentes de “alemães”6. Segue lista fornecida por Koch & Momm
(1985), a respeito de famílias que teriam chegado a Salto Grande num segundo
momento, até cerca de 1930:
6
Esses “alemães” são assim chamados por terem sobrenomes germânicos, mas a
nacionalidade da maioria deles e de seus antepassados é incerta, sendo possível
que fizessem parte de países vizinhos (austríacos, poloneses, suíços, etc.).
54
Aqui a autora pontua dois elementos que nos permitem observar grupos
étnicos, de acordo com Barth (1969) e Cohen (1974): os limites interétnicos e a
interação em uma mesma comunidade. Neste sentido, não existiu, em nenhum
momento de Salto Grande, um fenômeno que pudéssemos caracterizar como grupo
étnico. Há alguns indícios que nos permitem concluir isto. O primeiro deles está
exposto na tabela citada anteriormente. E não é tanto porque cerca de 20% da lista é
composta por sobrenomes luso-brasileiros. Mas o que chama mesmo a atenção é o
número de casamentos entre descendentes de alemães e “brasileiros”. Dos vinte e seis
casais, seis são interétnicos, ou seja, entre “alemães” e “brasileiros”. Apenas um dos
casais não tem conjugues “alemães”. Este elevado número de casamentos interétnicos
é muito significativo, porque demonstra que as pessoas das duas origens tem uma
tendência à interação mútua. Lembremos, por exemplo, que apesar de luteranos
frequentarem escolas católicas, não havia casamentos interreligiosos. Havia, inclusive,
55
pessoas desta lista que ocupavam posição de destaque na vila. É o caso de Antônio de
Souza Pereira, professor da Escola Pública Salto Grande, e que, segundo Koch &
Momm (1985), por pouco não foi primeiro prefeito de Ituporanga. João Sens também
fez questão de lembrar, mesmo sem ser questionado, durante a entrevista, que Antônio
de Souza Pereira foi seu professor, fato do qual diz se orgulhar até hoje. Antônio
Emiliano Sá também é lembrado com menções honrosas por Luz & Thiesen (1962),
que afirmam que ele desempenhou “várias funções públicas” em Salto Grande.
Seyferth (1981) também dirá que a comunidade teuto-brasileira de Brusque,
anterior à Segunda Guerra Mundial, esteve baseada em algumas instituições-chave
para a reprodução do deutschtum. Entre elas, podemos destacar a escola, a igreja e as
instituições recreativas, como clubes de tiro ao alvo, de ginástica, de canto etc.
A igreja é, talvez, a primeira que salte à vista. A igreja católica de
Ituporanga, assim como em Brusque, é etnicamente heterogênea. Os “brasileiros” dos
primeiros anos de Salto Grande são todos católicos, assim como a maioria dos
“alemães”. Apesar disto, há informações de que alguns párocos locais eram
descendentes de alemães, e inclusive falavam alemão fluentemente, como Frei Gabriel
Zimmer e Frei Arthur Kleba. Contudo, não há motivos para afirmar que a Igreja
católica tenha atuado no sentido de contribuir para a reprodução de elementos
culturais germânicos. Já a igreja evangélica de confissão luterana do Brasil, pelo
contrário, foi responsável por criar a única fração de Ituporanga que podemos definir
como “etnicamente homogênea”. E isto porque, dos luteranos mais antigos dos quais
tivemos conhecimento, todos são alemães ou descendentes de alemães. Visitando o
cemitério luterano local, por exemplo, encontramos exclusivamente sobrenomes de
origem supostamente germânica. Seyferth (1981) chama atenção que, para a
comunidade luterana, manter elementos culturais germânicos é um objetivo
intimamente relacionado à fé, o que não se pode dizer da comunidade católica. Nesta
direção, só faria algum sentido considerar a existência de grupos étnicos nesta fração
da população salto grandense.
Porém, essa possibilidade será refutada, ao menos na maior parte do tempo.
Em Brusque, segundo Seyferth (1981), tanto a Igreja católica quanto a luterana
mantinham escolas relacionadas às suas paróquias locais. A primeira instrução em
56
Ituporanga, segundo Luz & Thiesen (1962) foi a catequese, ministrada por padres que
prestavam assistência à nascente vila. Em 1919, João Carlos Thiesen veio para
lecionar na Escola Pública Salto Grande, mantida pelo governo de Palhoça. Não há
menção a quando essa escola teve suas atividades encerradas, mas podemos considerar
isto acontecendo em 1933, quando a escola pública perdeu seus alunos para o Grupo
Santo Antônio. A única pessoa que encontramos que estudou neste estabelecimento
foi João Sens.
Em 1924, segundo Sens (2012), foi criada a Escola Alemã Salto Grande, no
Rio Batalha (na época uma comunidade vizinha de Salto Grande, hoje uma localidade
rural de Ituporanga). Segundo a mesma autora, esta escola teve seu nome modificado,
em 1935, para Escola Evangélica Paroquial, e embora as informações sejam escassas,
tudo indica que foi transferida para a Freguesia de baixo, nesta data. Não pudemos
achar, contudo, nenhuma pessoa que sequer lembrasse desta escola, e menos ainda que
tivesse estudado nela. Ela não durou muito tempo e foi fechada nos anos seguintes por
conta da campanha de nacionalização, da qual falaremos em seguida. Em 1933, frei
Gabriel Zimmer inaugurou o Grupo Escolar Santo Antônio, mantido pela comunidade.
Luz & Thiesen afirmam, que, naquela data, Salto Grande contava com uma escola
pública, uma católica e uma luterana. Porém, como dito anteriormente, nenhum dos
três luteranos que entrevistamos estudou na escola luterana. Com excessão de João
Sens, as pessoas que eram crianças nesta época estudaram no Grupo Escolar Santo
Antônio. Mesmo os luteranos Ingelore Porthum e Ingo Strube, residentes na Freguesia
de baixo, frequentaram a escola católica. Segundo eles, não encontravam nenhum tipo
de preconceito ou discriminação naquele estabelecimento. Em 1948, para atender à
crescente demanda, foi inaugurado pelo governo do estado o Grupo Escolar
Mont’Alverne, para substituir o Grupo Santo Antônio.
O outro ponto que nos induz a concluir que não podemos falar em grupo
étnico alemão, germânico ou teuto-brasileiro em Salto Grande é a não existência de
instituições recreativas na comunidade local. Em nenhum dos livros que tratam da
cidade, e em nenhuma entrevista, houve notícia de algum clube de tiro ao alvo, de
ginástica ou de canto. Na região de Brusque, estes grupos existiam em grande número,
segundo Seyferth (1981), até a época da Segunda Guerra Mundial. Neste período, a
57
maioria destes grupos foi fechado, assim como escolas alemãs (Deutsche schule). E
isto porque havia um interesse do governo Vargas em assimilar os descendentes de
imigrantes, fazendo desaparecer seus traços culturais herdados de seus antepassados.
Isto se insere num processo mais amplo, normalmente conhecido como “campanha de
nacionalização”, e que visava, grosso modo, fortalecer o nacionalismo brasileiro.
Além disso, esse movimento, que rendeu muitas prisões e interdições, foi
especialmente problemático com os descendentes de alemães e italianos, haja visto
que estes tinham costumes e práticas que remetiam a estes países, á época inimigos do
Brasil na guerra. Fomos procurar, então, a existência destas instituições no período
anterior a Segunda Guerra. Nada, porém, foi encontrado. Nem nos livros que falam da
cidade, nem nas entrevistas. As organizações recreativas que existiam na cidade eram
salões de baile, muito diferentes das sociedades de tiro ao alvo e semelhantes,
descritas por Seyferth (1981).
Neste sentido, podemos concluir que Salto Grande sempre foi uma
comunidade enticamente heterogênea, sem, entretanto, constituir dois ou mais
subgrupos etnicamente definidos, apesar da maioria de origem alemã. A única
excessão poderia ser a comunidade evangélica, e a falta de casamentos interétnicos
nesta. Porém, a coesão não parece ser muito forte entre os luteranos, pois mesmo a
Escola Luterana não resistiu muito tempo, e as crianças estudavam na escola católica,
que tinha um ambiente mais diversificado etnicamente. Além disso, podemos perceber
nos depoimentos dos luteranos locais que as atividades de sua igreja eram muito
limitadas a religião, e que mesmo esta não parecia ser tão importante quanto era a fé
para os católicos.
Aparentemente, porém, os luteranos valorizam mais do que os católicos os
costumes germânicos. Ao analisarmos o uso do idioma alemão na cidade, temos
afirmações que nos levam a acreditar nisto. Seidl (2008) demonstra que a alta
hierarquia da igreja católica do Rio Grande do Sul, nas primeiras décadas do século
XX, esteve preocupada, com exceção dos jesuítas, em construir uma igreja sem
qualificações étnicas, apesar de ter muitos membros “europeus”, incluindo o arcebispo
de Porto Alegre, D. João Becker, alemão de nascimento. Ele mostra também como,
naquele estado, a alta hierarquia católica se preocupou em fomentar a criação de
58
7
Essa prática era adotada como forma de tortura, pois causa uma diarreia quase
instantânea.
60
casa, junto da mãe. Ingo ainda fala “um pouco” com a esposa, que também é
descendente de alemães. Seus filhos, entretanto, só falam o português.
Mas é notável como os luteranos têm mais interesse em preservar o idioma
do que os católicos, que o deixaram de lado com mais facilidade, ao passo que os
luteranos insistiram, mesmo passando por anos difíceis, neste sentido, com a
campanha de nacionalização. O resultado da campanha de nacionalização é que o
alemão inexiste, hoje, na vida pública, pois, como Nilo Ludwig pontuou, “todos que
sabiam foram morrendo”. E, já que a reprodução do idioma foi interrompida (já na
geração da década de 1930 entre os católicos; na dos filhos desta geração, entre os
luteranos), somente pessoas mais velhas conhecem os dialetos. Mesmo pessoas como
Valmor Holetz, luterano nascido no final da década de 1940, nunca tiveram a prática
do idioma. O mesmo vale para todos os outros entrevistados.
Como exposto, Seyferth (1981) diz que o idioma alemão e a origem alemã
são usados como limites étnicos, que definem o grupo étnico teuto-brasileiro. Já
descartamos a existência de um grupo étnico na cidade. Mas isso, lembremos
Brubaker (2002), não significa que descartemos a existência de processos étnicos. Mas
será que o uso frequente de dialetos “alemães”, nas primeiras décadas de Salto
Grande, define a etnicidade? Não concordamos. Isso porque a etnicidade é definida
pela origem, que pode ser compreendida quando observamos o contraste estabelecido
entre membros e não-membros. Nas entrevistas isso pode ser percebido. Nelson Sens,
por exemplo, considerava a sua família alemã. E isto porque, ao falar sobre o episódio
em que sua mãe teria disso forçada a tomar óleo, por falar alemão, ele disse não
entender por que haviam feito, aquilo, pois “os Stadnick” (família a qual pertenciam as
pessoas que atacaram sua mãe) também eram alemães. Quer dizer, ele se incluía nesta
categoria.
Orlando Adilson Turnes, um dos entrevistados que não é descendente de
alemães, expôs uma visão de alguém que está excluído da categoria étnica. Ele disse
que, lá pelos anos 1970, no escritório contábil do qual era proprietário, trabalhava um
rapaz negro. Segundo ele, um excelente funcionário. Mas o rapaz teria sido vítima de
racismo. O motivo, segundo Orlado Turnes, seria que Ituporanga é “terra de alemão”.
Ao caracterizar o rapaz como “negro”, em oposição a suposta maioria “alemã”, essa
61
história indica uma identificação, por parte de nosso entrevistado, de duas categorias
étnicas distintas de sua própria (haja visto que ele não é nem descendente de alemães,
nem negro). Essa pequena história nos mostra um dos limites da etnicidade alemã em
Ituporanga.
Ingo Strube, por sua vez, ao falar de um antigo companheiro de caçadas
pelas matas de Ituporanga, disse que ele era “italiano”, e que, enquanto iam caçando
juntos, ele falava alemão e o companheiro falava italiano. Quer dizer, ele fez questão
de demarcar a diferença entre ambos, apesar de sua evidente amizade. Esse, aliás, é
um excelente exemplo de como o fenômeno étnico existe em Ituporanga. É claro, seria
necessário um estudo muito mais amplo, focado apenas neste assunto, para
compreender como a etnicidade germânica se relaciona com as outras origens étnicas
minoritárias da cidade (como o luso-brasileiro, o afro-descendente, o italiano, o polaco
etc.); mas, de maneira geral, é possível afirmar que, embora não haja um grupo coeso,
baseado na origem étnica, que impeça a entrada de diferentes, existe uma consciência,
por parte dos entrevistados, de sua origem étnica, e uma demarcação de sua diferença
com relação às outras origens.
sobre o produto dois anos antes, em 1960. A cebola era apenas o 9º produto mais
rentável da agricultura ituporanguense. A produção de melancia e abóbora, por
exemplo, era maior do que a de cebola, o que parece algo absurdo hoje. A única
cultura ao qual é atribuído um destaque (há um texto de uma página e meia) é o fumo,
do qual é dito que “Dentro do Estado, o município de Ituporanga é o que tem o plantio
de fumo mais desenvolvido” (LUZ & THIESEN, 1962) e que “Isto se deve as suas
terras, as mais férteis e preparadas para esse gênero de lavoura” (LUZ & THIESEN,
1962). É difícil obter estatísticas exatas da evolução da produção ao longo do tempo,
mas, segundo indicações, e o livro de Sens (2012), podemos pressupor um aumento
considerável da produção de cebola entre a metade final dos anos 1960 e os primeiros
anos da década de 1970. Segundo a autora, “em função da qualidade dos produtos e
dos ótimos preços alcançados, outros comerciantes entraram no negócio.” (SENS,
2012, p.125)
Em 1974, podemos afirmar que houve um aumento significativo na
produção, e que a cebola caminhava a passos largos para se tornar o principal produto
local, embora ainda não o fosse, naquele momento. Em hectares plantados, a cebola
era a quarta colocada, com mil hectares plantados. Veremos, em seguida, que esse
número aumenta mais de quatro vezes no século XXI. Porém, temos que notar a
ascensão do produto no período de 1960 até 1974, passando de nona cultura, em
ordem de importância (o que, num município das dimensões de Ituporanga, significa
que o cultivo em larga escala era inexpressivo) para a quarta (o que significa que o
plantio, além de vir ascendendo, era uma alternativa econômica real para os pequenos
e médios produtores que caracterizam a cadeia produtiva da cebola). Além disso, é
possível afirmar que a ascensão da cebola já havia sido observada, e era vista com
bons olhos, haja vista que em 1974 foi realizada a primeira Exposição Catarinense de
Cebola (EXPOCACE), embrião da atual Festa Nacional da Cebola, de maneira
bastante simples, no pátio da igreja matriz católica. Gervásio Maciel afirmou que a
Festa da cebola foi criada visando atrair compradores de cebola para a cidade. Quer
dizer, podemos concluir que, neste momento, havia a intenção de fortalecer a cadeia
econômica gerada pelo cultivo da cebola, para torná-la um produto importante da
cidade.
63
8000
7000
6000
Hectares plantados
5000
4000
3000
2000
1000
0
2004 2005 2006 2007 2008 2009 2010 2011 2012
Ano
cebola, mas sofreu uma queda vertiginosa nos anos seguintes, para voltar a crescer
apenas em 2011. O fumo, por sua vez, teve uma subida de 2004 até 2006, quando
começou a decair lentamente até 2012, último ano analisado. A produção da cebola é
notável por um aspecto: a constância no período observado. Ela mudou muito pouco,
seja para mais ou para menos, e prova disto é que a maior diferença de hectares
plantados nos anos observados é de 740, entre 2005 (4300 hectares) e 2010 (5040)
hectares. Mas, apesar dessa liderança da cebola de 2009 para frente, esta não ocorre
com larga vantagem. O que pretendemos dizer com tudo isto é que, embora
importante, a agricultura ituporanguense, na última década, pelo menos, não se resume
à cebola.
Apesar disto, a reportagem “Por que a cebola faz rir em Santa Catarina”, do
Diário Catarinense8, afirma que, há vinte anos, Ituporanga mantém o status de maior
produtor de cebola do Brasil. Além disso, é dito que a cidade “respira, cheira e vive da
planta”. O website9 da prefeitura municipal vai além, e afirma que o município fornece
12% da cebola consumida no Brasil, sendo o maior produtor desta, em nível nacional.
Não foi encontrada, porém, a fonte desta informação, nem a qual safra específica se
refere. Quer dizer, apesar de a agricultura municipal ter outros importantes produtos, a
cebola é tida como o produto da economia ituporanguense, por excelência.
O que podemos afirmar é que a produção de cebola cresceu juntamente com
a Festa da Cebola. Além da edição de 1974, houve ainda duas edições realizadas no
pátio da igreja católica (1976, 1979). Como a festa tomava maiores proporções,
segundo Sens (2012), para a realização de sua quarta edição, em 1982, foi construído o
Pavilhão de Exposições João Carlos Thiesen, durante a gestão do prefeito Leo Muller.
Mas a prefeitura municipal pretendia expandir ainda mais a festa. Em 1985,
durante o governo de Gervásio Maciel, foi construído um novo espaço para a
realização do evento. Afastado do centro urbano da cidade, o novo lar da agora
Exposição Nacional da Cebola exigiu que a prefeitura municipal contraísse uma dívida
8
Disponível em < http://www.clicrbs.com.br/sites/swf/DC_cebola/#abre>,
acessado em 19/01/2016.
9
Disponível em < http://www.ituporanga.sc.gov.br/cidade/historia.html>,
acessado em 19/01/2016.
65
10
Disponível em <http://www.educadora.am.br/noticia/festa-nacional-da-cebola-
atraiu-cerca-de-100-mil-visitantes/>, acessado em 21/01/2016.
66
afirmou que ele veio após a criação da festa, para valorizar o evento. Voltaremos a
esta questão daqui a pouco. Antes, mostraremos como o título de capital da cebola é
divulgado. Os dois principais atores neste sentido são a prefeitura municipal e a mídia
municipal. Seria possível argumentar contra essa separação, afirmando que a
prefeitura municipal teve diferentes governos, de diferentes partidos, desde os anos
1974, e que a mídia não é uma só, ela é quatro periódicos e uma rádio. Porém, todos
os governos municipais trabalharam na mesma direção, independentemente do partido
ou de rivalidades políticas, e todas as mídias locais associam Ituporanga à cebola,
ainda que umas mais que as outras, como veremos adiante.
No website11 da prefeitura municipal, por exemplo, o título da página que
conta a história da cidade é “A Capital Nacional da Cebola”. Além disso, cada placa
que dá nome as ruas da cidade tem escrito: “Ituporanga: capital nacional da cebola”.
Fotografia 1
Fotografia 1- Placa indicativa da rua Carlos Thiesen, Ituporanga. Foto do autor, 25/01/2016.
11
Disponível em http://www.ituporanga.sc.gov.br/cidade/historia.html, acessado
em 22/01/2016.
67
12
Disponível em <http://www.sintonia.am.br/a-radio.html>, acessado em
23/01/2016.
13
Jornal A Comarca. 15 de fevereiro de 2012. Ano 16, Ed. 372. Pg.01
14
Por exemplo: Jornal A Comarca. Nº 157, 2ª quinzena de fevereiro, 2003.
15
Disponível em <http://www.jornalvalesul.com.br/sobre-jvs.html>, acessado em
23/01/2016.
68
“O Jornal Vale Sul é o caçula dos periódicos na Capital da Cebola”. Podemos afirmar
também que o uso do título de capital da cebola é muito mais frequente na Rádio
Sintonia do que nos jornais em circulação no município, embora eles façam a
associação de maneiras diferentes (e menos frequentes).
Anteriormente, afirmei que não foi possível encontrar a origem da associação
entre a cebola e Ituporanga, sintetizada por nós sob o rótulo de capital da cebola. Essa
categoria de identificação, concluímos, é uma “tradição inventada” no município.
Usaremos a categoria de análise “tradição” assim como Hobsbawn (1984) a pensa:
origem da tradição quando esta é informal, tal como a capital da cebola, que só é
documentada a partir de 1985, já consolidada, no jornal A Região.
Hobsbawn (1984) distingue entre dois “modelos” distintos, por assim dizer,
de tradições inventadas. Segundo ele, existem tradições que são “criadas” a partir de
elementos novos ou recentes, que se transformam facilmente em antigos na mente das
pessoas. Também existem as que se utilizam de elementos presentes no passado,
remodelando-os, transformando-os, para construir uma nova tradição a partir de
elementos antigos. O caso aqui tratado se encaixa na primeira situação. É importante
dizer que tudo aconteceu de maneira muito rápida. Em 1974, a cebola era uma
alternativa econômica viável, e era realizada uma festa em sua homenagem.
Entre 1974 e 1978, podemos concluir que a produção de cebola se tornou
mais importante para a cidade, pois já as primeiras edições do jornal A Região, em
1978, lhe dão muita importância em suas páginas, mas ainda não chamam Ituporanga
de capital da cebola. Mais adiante, em 1985, encontramos uma notícia 16 que afirma
que o governo estadual assinaria o decreto que daria origem à microrregião da cebola,
o que já demonstra haver, a esta altura, uma associação entre a cebola e o município.
Para construir essa tradição em um curto espaço de tempo, aproveitou-se de um
produto que começava a se tornar importantíssimo para a economia local. Quer dizer,
foi usado um elemento que veio à tona poucos anos antes da própria associação.
16
“Microrregião da cebola será criada semana que vem”. Jornal A Região. Edição
de 5 de outubro de 1985- nº 334, pg.08.
70
71
5. CONSIDERAÇÕES FINAIS
que não valoriza o seu passado, com excessão de esporádicas ações da prefeitura
municipal e da mídia. Trata-se de algo muito diferente, por exemplo, de estudar
cidades como Pomerode, que consolidou com maestria o título de “cidade mais alemã
do Brasil”, que remete a sua origem, ou Blumenau, que com o discurso étnico de sua
origem, faz uma festa que atrai turistas do mundo inteiro. Podemos lembrar, também,
que há “Casa da Cultura” no município, e até o “Museu Edevaldo Cyro Thiesen”.
Porém, as ações da primeira, são, basicamente, uma biblioteca sem bibliotecária (o
empréstimo do livro do centenário, por parte do autor, venceu há meses, e ninguém o
procurou para exigir explicações), e aulas de atividades como música, língua
estrangeira e dança.
O ponto aqui não é menosprezar as atividades, mas mostrar que lá não é
desenvolvida nenhuma atividade que remeta a Ituporanga. O museu, então, sequer
pudemos visitar. E isto porque não há funcionário que trabalhe lá (ele é administrado,
em tese, pela prefeitura municipal) e permaneceu fechado durante todo o ano de 2015.
O que conseguimos, então, foi consultar algumas fontes sobre a história da cidade,
considerando os limites de um trabalho de conclusão de curso. Segundo as narrativas
que analisamos, temos algumas pequenas conclusões.
Todos os livros que tratam, direta ou indiretamente, do passado da cidade,
foram escritos por católicos. Apesar dos evangélicos luteranos, a outra religião da
cidade, segundo todas as versões da história, terem espaço para contar sua trajetória na
cidade, fica evidente a maior importância atribuída à igreja católica;
As pessoas que escreveram sobre Ituporanga tem descendência, ao menos
parcial, de imigrantes “alemães”. A versão hegemônica sobre a origem de Ituporanga,
porém, não caracteriza os fundadores da cidade como “alemães” ou “imigrantes” em
nenhuma linha. Apenas uma versão pouco difundida, de autoria de João Sens, retrata a
saga da imigração da Europa para o Brasil;
A principal categoria de identificação na narrativa de Edevaldo Cyro Thiesen
(que é a primeira e quase que a única difundida) é a de “colono”. Essa faz a distinção
entre o colono, que é “civilizado”, promove o “progresso”, faz a colonização
“ordenada”, e o índio, que é “selvagem”, “imprevisível”. É importante lembrar que o
“colono” é uma categoria bastante ampla, que se refere a luso-brasileiros, alemães,
73
(como compradores) se consolidaram após a Festa da Cebola, que teve sua primeira
edição em 1974. Em 1985, a criação da Microrregião da Cebola, por parte do governo
de Santa Catarina, fortalece a associação entre Ituporanga e seu principal produto
agrícola. Com essas bases, surgiu o título de “capital da cebola”, categoria de
identificação mais destacada da cidade em nossos dias.
Este título, inclusive, parece ter contornos de uma tradição inventada. E isto
porque a sua repetição é exaustiva, tomado como sinônimo de Ituporanga. Além disso,
a origem do título nos indica esta direção, pois nossos entrevistados sequer se
lembram do período em que rótulo “capital da cebola” foi popularizado. Quer dizer, a
sua existência, tomando as entrevistas como parâmetro, aparece como obra do acaso.
Porém, partimos do pressuposto de que categorias como esta são construídas
socialmente. Por este motivo, acreditamos que esta maneira de situar (ou não situar)
historicamente a categoria é comum às tradições.
É possível, portanto, que existam outras fontes, dos quais não tomamos
conhecimento. Como uma primeira incursão do autor nesta relação, tão subestimada
na sociologia, entre memórias, identificações e discursos, pudemos ter uma noção de
como essas categorias podem ser articuladas para compreender os coletivos.
Esperamos, no futuro, poder contribuir mais para neste sentido.
75
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