Homens e Medicamentos No Renascimento
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Resumo
O Renascimento é um período muito rico no que respeita às três áreas do conhecimento que
compõem, no seu sentido primitivo, a farmacologia: a história natural das drogas, a terapêutica
e a farmácia. Todas estas áreas foram significativamente atingidas pelo turbilhão cultural, reli-
gioso, político e económico que varreu a Europa durante a segunda metade do século XV e o
século XVI, num movimento que se virou tanto para o passado Clássico como para o futuro.
O presente texto, que corresponde no essencial a uma preocupação didáctica para com os meus
alunos da Faculdade de Farmácia da Universidade de Lisboa, visa traçar um breve panorama dos
principais desenvolvimentos que se observaram durante este período na história da farmacologia,
da terapêutica e da farmácia.
1 Introdução
A queda de Constantinopla em 1453, às mãos dos turcos otomanos, levou à emigração
para Itália de grande número de bizantinos, continuadores da cultura de língua grega e
portadores de manuscritos de ciência, de medicina e de outras áreas do saber. Foi essa
chegada que marcou o início do Renascimento, provocando uma enorme renovação do
interesse pela cultura clássica, num movimento crescente que foi das letras e das artes
à ciência e à tecnologia, potenciado pela introdução dos caracteres móveis na imprensa
por Gutemberg (1454). A descoberta da imprensa foi o culminar de um longo processo.
Durante a Idade Média, o principal suporte da escrita é o pergaminho. Este, preparado
a partir da pele de animais, constituira um grande avanço em relação ao papiro, mais
raro, caro e difícil de conservar em climas húmidos. O papel, utilizado pelos chineses,
só se torna conhecido dos árabes no século VIII e é a partir destes que se difunde na
Europa. O Papel utiliza uma matéria-prima ainda mais abundante que o pergaminho e a
sua manipulação é muito mais prática. A escrita continua a ser realizada manualmente.
A impressão em série de folhas de papel inicia-se pela gravura de madeira em página
inteira, a que se segue no século XV a tipografia com caracteres móveis, primeiro de
madeira (Laurent Coster) e depois de metal (Gutemberg).
1
2 Medicina, Farmácia e Humanismo. 2
anatómicos (a de 1531). Em 1537, depois de uma curta passagem por Lovaina, foi
convidado para ensinar em Pádua, onde foi nomeado professor de cirurgia e anatomia.
Aí levou a cabo o programa galénico de observação anatómica, tonando-se mais crítico
da sua anatomia por volta de 1539, quando se convenceu que o autor greco-romano
só realizara dissecções em animais. A sua De Humani Corporis Fabrica, preparada
entre 1540 e 1542, inclui uma crítica sistemática à anatomia de Galeno, assente na
observação pessoal e directa do corpo humano. Apesar das suas críticas às descrições
morfológicas de Galeno, tanto Vesalius como os restantes autores renascentistas, não
atacaram a fisiologia galénica, mesmo quando esta se baseava em aspectos estruturais
que eles negavam.
resse dos botânicos protestantes alemães pela sua flora fosse também motivado por um
desejo de independência das matérias primas da Europa católica do Sul. Pelas razões
opostas, também é evidente o interesse veneziano em promover o estudo da matéria
médica da Antiguidade. Este trabalho foi realizado por uma rede informal de médicos,
farmacêuticos, botânicos, mercadores, viajantes e diplomatas, em parte centralizada
por Mattioli, primeiro em Gorizia e depois em Praga e Innsbruck. Mattioli come-
çou em 1544 por traduzir para italiano a edição latina do Dioscórides de Ruelle, sem
ilustrações. Estas foram introduzidas apenas nos Comentarii in Libros Sex Pedacii Di-
oscoridis Anazarbei, publicados em 1554 pelo veneziano Valgrisi. Esta edição, da qual
terão sido vendidas 32.000 cópias, valeu-lhe ter sido contratado como médico pessoal
do Arquiduque Fernando do Tirol, futuro Imperador, o que veio aumentar os rendi-
mentos disponíveis para o seu trabalho. Esta rede incluiu a colaboração de Luca Ghini
(1490?-1556), professor de botânica em Bolonha e fundador do jardim botânico de
Pisa (1544) e Ulisse Aldrovandi (1524?-1607), fundador do jardim de Bolonha (1568),
que forneceram informação e examplares botânicos a Mattioli.
A manipulação da teriaca ilustra a evolução do conhecimento da matéria médica da
Antiguidade. Este medicamento, um antídoto polifármaco, mencionado pela primeira
vez no poema Theriaká de Nicandro de Colófon (Séc. II a.C.), foi objecto de várias
formulações, sendo a mais conhecida a do médico de Nero, Andrómaco (Séc. I). Na sua
composição entravam cerca de oito dezenas de ingredientes dos três reinos da natureza,
um quarto dos quais eram necessariamente objecto de substituição na década de 1540,
por se desconhecerem as verdadeiras drogas referidas na formulação de Andrómaco.
A redescoberta das drogas antigas foi de tal forma rápida que, em 1566, o farmacêutico
de Verona Francesco Calzolari já só tinha que usar três substitutos e, em 1568, Mattioli
podia escrever que a teriaga preparada nessa altura já era tão boa como a que Galeno
preparava para o imperadores romanos.
3 Medicina e religião no Renascimento 8
2.2.4 A destilação
Durante o Renascimento, o velho conceito galénico dos odores e sabores das drogas
como manifestação das qualidades dos medicamentos, junto com o aperfeiçoamento
das técnicas de destilação pelos árabes, levou ao desenvolvimento do conceito de prin-
cípio activo e ao aparecimento da química farmacêutica. A aplicação da destilação por
via húmida a especiarias e outras drogas aromáticas permitiu a obtenção de essências,
onde o odor e o sabor da droga original se encontrava concentrado. Daí se desenvolveu
a ideia de ser possível extrair das drogas um princípio activo ou essência, que concen-
trasse as suas qualidades e acção terapêutica, eliminando os componentes supérfluos
e aumentando o efeito farmacológico. Um raciocínio análogo foi desenvolvido para
as drogas minerais, mas aplicando técnicas metalúrgicas por via seca para a purifica-
ção dos metais. Daqui se desenvolveram em paralelo as novas técnicas da química
farmacêutica, utilizando as duas vertentes, húmida e seca, aplicadas respectivamente
às drogas vegetais e às minerais. A difusão das técnicas de destilação, expostas em li-
vros como o Liber de arte destilandi de Simplicibus (1500) de Hieronimus Brunschwig
(1450-1512), popularizou a utilização de essências de especiarias e drogas aromáticas,
chamadas vulgarmente águas destiladas, como as essências, quintas-essências ou águas
de canela.
3.2 Paracelso
A primeira corrente médica europeia oposta à teoria dos humores desenvolveu-se no
século XVI com Paracelso (1493-1541). Theophrastus Philippus Aureolus Bombastus
von Hohenheim nasceu na Suíça e era filho de um médico. O nome “Paracelso” só
foi adoptado por volta de 1529, significando “acima de Celso”. Aulo Cornelio Celso
era o autor romano de uma De medicina, que tinha sido redescoberta e impressa há
pouco tempo, estando no auge da sua fama. A educação de Paracelso foi mais prática
e mística do que seria usual num médico do seu tempo. Com o pai aprendeu a medi-
cina, a botânica, a mineralugia, a metalurgia e a filosofia natural. O abade Johannes
Trithemius, de Sponheim, ensinou-o sobre as artes mágicas e o ocultismo. Também
frequentou a escola de minas em Huttenberg e chegou a ser aprendiz nas minas de
Schwaz. Neste contexto, desenvolveu um maior interesse pelas manifestações da cul-
tura contemporânea e local, dos camponeses e artesãos e menor veneração pela cultura
clássica dos humanistas do seu tempo. Desta forma a obra de Paracelso caracterizou-se
por uma profunda religiosidade, por uma simultânea hostilidade à religião organizada
e à medicina oficial, e aproximou-se da magia e da alquimia. Embora se mantivesse
formalmente como católico, Paracelso desenvolveu uma visão radical, reformista e pro-
fética da religião, onde a salvação se encontraria na descoberta das marcas da presença
de Deus no mundo natural e na fé popular. Paracelso manifestou grande distanciamento
em relação à Medicina universitária do seu tempo, embora ela próprio tenha ensinado
durante algum tempo numa Faculdade de Medicina e possa ter estudado noutra. Em
Basileia, onde o ensino era parte das suas funções como médico da cidade, Paracelso
deu aulas em alemão e não em latim e anunciou que não ensinaria a partir dos autores
clássicos, como Hipócrates ou Galeno, mas da sua própria experiência. Para deixar
3 Medicina e religião no Renascimento 10
colocados pelo Criador para o seu usufruto, e que teriam sido devidamente marcados,
assinados, através da sua forma, cor, textura, para que o homem reconhecesse a sua
utilidade e a grandeza divina. Assim, um fruto com a forma de um coração teria a
assinatura da sua utilidade para doenças cardíacas, ou outro com a forma de um fígado
para as doenças hepáticas.
mento de todas as drogas que vão para o Reino, por volta de 1547, semelhante à carta
de Tomé Pires a D. Manuel, embora mais extensa e referindo-se a um maior número
de drogas.
Embora pioneiros, os relatórios de Tomé Pires e Simão Álvares tinham como objec-
tivo a comunicação de dados geográficos e económicos. Assim, o primeiro contributo
europeu importante para o estudo médico e botânico das drogas orientais foi o Coló-
quio dos simples e drogas e coisas medicinais da Índia (Goa, 1563) do médico Garcia
de Orta (1501-1568). Garcia de Orta, pertencente a uma família de judeus expulsos
de Espanha em 1492, nasceu em Castelo de Vide e estudou em Salamanca e em Al-
calá de Henares. Partiu para a Índia em 1534 como médico pessoal do governador.
Estabeleceu-se como médico em Goa, onde adquiriu grande reputação. Logo após a
sua morte, em 1568, a Inquisição de Goa iniciou uma feroz perseguição à família de
Garcia de Orta, que culminou em 1580 com a exumação e condenação à fogueira por
judaísmo dos seus restos.
Os Colóquios dos simples de Garcia de Orta são uma obra notável. Encontram-
se escritos na forma de diálogo e em língua portuguesa. Os dois personagens são
Ruano, um médico espanhol recém-chegado da Península Ibérica e o próprio Orta. Os
Colóquios incluem 57 capítulos onde se estuda um número aproximadamente igual de
drogas orientais, principalmente de origem vegetal, como o aloés, o benjoim, a cânfora,
a canafístula, o ópio, o ruibarbo, os tamarindos e muitas outras. Orta apresenta a
primeira descrição rigorosa feita por um europeu das características botânicas, origem
e propriedades terapêuticas de muitos fármacos orientais que, apesar de conhecidas
anteriormente na Europa, o eram de maneira errada ou muito incompleta. Orta estudou
in loco um grande número de plantas medicinais que eram conhecidas apenas na forma
da droga, ou seja, na forma de parte da planta colhida e seca. Orta também inclui,
além de vários outros assuntos, algumas observações clínicas, das quais é de destacar
a primeira descrição da cólera asiática feita por um europeu.
Escrito em português e não em latim como era então a regra na literatura médica,
o livro de Garcia de Orta tornou-se conhecido na Europa através da versão latina edi-
tada pelo médico e botânico Charles de l’Écluse (1526-1609), conhecido nome latino
de Clusius. Durante uma visita a Portugal em 1564-65, Clusius entrou na posse de
um exemplar do livro de Garcia de Orta, do qual publicou em 1567 uma edição latina
resumida e anotada, intitulada Aromatum et Simplicium aliquot medicamentorum apud
Indios nascentium historia. A procura deste livro foi muito grande e ele contou com
mais cinco edições revistas e ampliadas, ainda em vida de Clusius. Além da versão
de Clusius, os Colóquios circularam ainda em castelhano através do livro Tractado de
las drogas y medicinas de las Indias Orientales (Burgos, 1578) do médico português
Cristóvão da Costa (c. 1525-1593), ao qual serviram de base. Nascido em Cabo Verde,
Cristóvão da Costa foi para a Índia em 1559, onde conheceu Garcia de Orta. Regres-
sado do Oriente, foi viver para Burgos, em Espanha, onde publicou o seu livro. Costa
reorganizou a estrutura e corrigiu o texto de Orta, adicionando-lhe gravuras, que eram
totalmente inexistentes nos Colóquios. Clusius também traduziu para latim o livro de
Cristóvão da Costa.
4 Expansão europeia e conhecimento da flora exótica 13
Orientação Bibliográfica
Existe uma variada bibliografia de carácter geral, onde o período do Renascimento é
profusamente abordado, que pode auxiliar o leitor a aprofundar os temas tratados e da
qual vamos apenas indicar alguns títulos. A obra que melhor integra a história da far-
mácia no âmbito da história da ciências e das modernas perspectivas historiográficas
é El mito de Panacea de Francisco Javier Puerto Sarmiento[24]. As restantes histó-
rias gerais da farmácia, como a obra monumental de G. Folch Jou, J. M. Sunné e J.
L. Valverde[9], a edição de G. Sonnedecker sobre o livro de Kremer e de Urdang[27]
e o livro em português de J. R. Pita[20], embora ricas do ponto de vista descritivo,
são muito menos interessantes na abordagem dos problemas. Mais abundante e ac-
tualizada é a literatura de história da medicina. Para uma visão moderna da História
Social da Medicina, ver o livro de Roy Porter, The greatest benefit to Mankind[22], a
qual inclui um repertório da mais importante bibliografia em língua inglesa. O mesmo
autor escreveu uma breve síntese da história da medicina, intitulada Blood & Guts.
A short History of Medicine, traduzido para castelhano, com o título Breve Historia
de la Medicina[23]. Dirigida pelo mesmo autor e profusamente ilustrada, ver a The
Cambridge Illustrated History of Medicine[21]. Para o período até 1800, o leitor dis-
põe igualmente da síntese The Western Medical Tradition[3], proveniente de autores
da mesma escola. Em castelhano, dispomos da síntese, tão curta quanto interessante,
de José Maria López Piñero, Breve historia de la medicina[16] e da monumental His-
toria Universal de la Medicina, de vários autores e coordenada por Pedro Laín, actu-
almente disponível em CD-ROM[15]. Do mesmo autor, existe uma outra Historia de
la Medicina, compacta mas muito informativa[14]. Igualmente muito exaustiva, em-
bora fortemente internalista e centrada na literatura médica, é a obra com o mesmo
título de Francisco Guerra[11]. Forma um conjunto muito interessante e abrangente os
volumes correspondentes ao período de 1500 a 1800 da série de livros de texto[7], e
colectâneas de fontes primárias e secundárias[8], editadas pela Manchester UP para a
Open University, para apoiar um curso desta última intitulado “Medicina e Sociedade
na Europa, 1500-1930”. Para além das sínteses referidas, o leitor dispõe ainda de boas
obras de referência, como a Companion encyclopedia of the History of Medicine[2],
a The Cambridge World History of Human Disease[13] e o Dictionary of Scientific
Biography[10].
Quanto à bibliografia centrada sobre o período do Renascimento, vejam-se os estu-
dos A. Arber[1], A. Debus[4, 5], R. Multhauf[17, 18], W. Pagel[19], K. M. Reeds[25],
N. Siraisi[26] e P. M. Teigen[28]. Alguns textos essenciais foram traduzidos para por-
tuguês, como o O Homem e a Natureza no Renascimento de Allen G. Debus[6], ou
clássico de A. Rupert Hall[12] sobre a Revolução Científica, que não se limita ao sé-
culo XVII, mas leva a sua atenção até 1500.
Referências
[1] Arber, A. Herbals: their origin and evolution. A chapter in the history of botany.
Cambridge: Cambridge University Press, 1988.
4 Expansão europeia e conhecimento da flora exótica 15
[3] Conrad, L.I. et al.. The Western Medical Tradition. 800 BC to AD 1800. Cam-
bridge: Cambridge University Press, 1995.
[4] Debus, A.G. “The Pharmaceutical Revolution of the Renaissance”. Clio Med, 11
(1976) 307–317.
[6] —. O Homem e a Natureza no Renascimento. Porto: Porto Editora, 2002. 1.a ed.
1978.
[7] Elmer, P. The Healing Arts. Health, disease and society in Europe. 1500-1800.
Manchester: Manchester University Press / The Open University, 2004.
[8] Elmer, P. e Grell, O.P. Health, disease and society in Europe. 1500-1800. A
source book. Manchester and New York: Manchester University Press / The
Open University, 2004.
[9] Folch Jou, G.; Suñé, J.M. e Valverde, J.L. Historia General de la Farmacia.
Madrid, 1986.
[10] Gillispie, C.C. Dictionary of Scientific Biography. New York: Charles Scribner’s
sons, 1970.
[13] Kiple, K.F. The Cambridge World History of Human Disease. Cambridge: Cam-
bridge University Press, 1993.
[16] López Piñero, J.M. Breve historia de la medicina. Madrid: Alianza Editorial,
2000.
[17] Multhauf, R. “Medical chemistry and "the Paracelsians"”. Bulletin of the History
of Medicine, 28 (1954) 101–126.
[22] —. The greates benefit to Mankind. A medical history of humanity from antiquity
to the present. London: Fontana Press, 1999.
[25] Reeds, K.M. Botany in medieval and Renaissance universities. New York and
London: Garland, 1991.
[28] Teigen, P.M. “Taste and Quality in 15th- and 16th-Century Galenic Pharmaco-
logy”. Pharmacy in History, 29, 2 (1987) 60–68.