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Anatomia Na Arte

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Experiências

em Ensino de Ciências V.11, No. 1 2016



ANATOMIA: UMA CIÊNCIA MORTA? O CONCEITO “ARTE-ANATOMIA” ATRAVÉS
DA HISTÓRIA DA BIOLOGIA
Anatomy: a dead science? The art-anatomy concept trough the history of biology

Artur Rodrigues Janeiro [artur.bio2007@gmail.com]


Marcia Reami Pechula [mreami@rc.unesp.br]
Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho” – UNESP
Campus de Rio Claro, Av. 24-A, 1515, CEP: 13506-900, SP

Resumo
Com a inspeção do corpo (sobretudo a partir do século XVI), foram descobertas estruturas e
funções biológicas. Esse corpo humano foi divulgado e vivificado em belíssimas pranchas, tratados
e demais estudos anatômicos. Cientistas e artistas criaram uma estética para a representação da
anatomia que até hoje pode ser encontrada na mais recente técnica de preservação de tecidos
biológicos – a plastinação, desenvolvida pelo cientista alemão Gunther von Hagens. Diante disso,
através do presente estudo, objetivamos realizar uma releitura histórica do desenvolvimento
anatômico através de produções artístico-científicas, a fim de enaltecer a proximidade com que
Ciência e Arte se dialogam. Assim, também esperamos que o presente estudo sirva de material de
apoio (reflexivo) para se rever a dimensão do corpo (anatômico) ao longo do progresso científico.
Palavras-chave: história da ciência; historia da anatomia; arte
Abstract
With the inspection of the body (especially from the sixteenth century) biological structures and
functions were discovered. The disclosure of human body was vivified into beautiful boards,
treaties and other anatomical studies. With that, scientists and artists have created an aesthetic to the
representation of the anatomy which can still be found in the latest technique for preserving
biological tissue – the plastination, developed by the German scientist Gunther von Hagens.
Therefore the present study aims to make a historical retelling of the anatomical development
through artistic and scientific productions in order to enhance the proximity to the Science and Art’s
dialogue. So, we also hope that this study will serve as a support material (for reflection) to review
the dimension of the (anatomical) body over the scientific progress.
Keywords: history of science; history of anatomy; art

Introdução

Primeiramente, faz-se necessário resgatar a história do desenvolvimento do saber anatômico.


Para tanto, de acordo com Talamoni (2012), as pinturas rupestres retratam a disposição de alguns
órgãos dentro do organismo de animais possivelmente de caça, o quê nos permite inferir que havia
certa curiosidade em abrir e representar esses corpos animais, bem como já havia um conhecimento
anatômico desde a pré-história. A autora ainda enaltece que desde a Antiguidade as investigações
anatômicas progrediram na Escola de Alexandria pelas dissecações realizadas por Herófilo da
Calcedônia e Erasístrato, antes da conquista do Egito pelo Império Romano. Após a ascensão de
Roma, os estudos anatômicos estagnaram e somente recuperaram prestígio no fim da Idade Média.
Foram os estudos de Herófilo, Erasístrato e de Galeno que constituíram, segundo Ernst Mayr
(1998, p.190) “a base para o ressurgimento da anatomia e da fisiologia durante a Renascença,
particularmente nas escolas italianas”.

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Merece destaque o médico e filósofo romano Claudius Galeno (129-199 d.C.), que realizou
estudos anatômicos majoritariamente em animais como macacos, porcos e cachorros (VAN DE
GRAAFF, 2003; CANGUILHEM, 2012). As informações obtidas a partir das observações do
organismo desses animais eram consideradas válidas também para os organismos humanos, de
modo que havia uma anatomia humana rudimentarmente comparada e densamente teórica. Apesar
disso, importantes descobertas anátomo-fisiológicas acerca dos sistemas esquelético, circulatório e
nervoso dos animais exerceram, sobre a tradição biomédica humana, influência determinante até o
século XIX (MAYR, 1998).
Dos trabalhos de Galeno até os desenvolvidos ao final da Idade Média, encontramos poucos
relatos de estudos anatômicos. Para melhor compreender uma possível justificativa a essa situação,
faz-se necessário considerar alguns aspectos da organização social da época. Segundo Byington
(1993) e Muraro (1993), desde os tempos das civilizações nômades até a contemporaneidade,
sempre houve oscilações na importância da função e poder sociais desempenhados por homens e
mulheres. Os autores ainda apontam que, com a imposição do cristianismo às tribos bárbaras
europeias, os homens deixavam os lares para aderir às guerras, de modo que era preciso que as
mulheres desenvolvessem certa autonomia/ciência capaz de assegurar a própria vida e a de seus
descendentes: cuidado na higienização, no preparo de alimentos e de remédios, cuidados médicos,
sobretudo em trabalhos de parto. Podemos, assim, considerar que todo um potencial conhecimento
anatômico encontrou-se “em mãos femininas”.
Entretanto, após as cruzadas, com o masculino retornando às cidades, o homem não aceita
sua posição inferior em relação aos conhecimentos adquiridos e desenvolvidos pelas mulheres.
Então, elas passam a ser tratadas como bruxas, são perseguidas, torturadas e assassinadas. Suas
práticas, que inicialmente conduziam a compreensões sobre o corpo humano, foram amaldiçoadas e
renegadas (BYINGTON, 1993; MURARO, 1993).
Diante do exposto, tem-se que a anatomia e as dissecações só não desapareceram
completamente durante o Medievo porque foram aprimoradas em uma rota paralela de estudos, na
qual os trabalhos desenvolvidos na Antiga Alexandria serviram de base para a realização e
desenvolvimento de novos estudos médicos por parte dos povos árabes. Há ainda uma ressalva que
deve ser feita acerca da pouca realização e divulgação de estudos anatômicos durante o medievo: o
manuseio e abertura de corpos humanos somente poderiam ocorrer para fins que não promovessem
o aprofundamento de conhecimentos científico-anatômicos sobre o corpo, ou seja, o manuseio e
abertura de corpos eram apenas permitidos quando em torturas e para desmembramentos visando
melhor acomodação de descarte dos cadáveres. Exames post mortem, eviscerações e mumificações
de pessoas com certo prestígio social à época também eram permitidos (MANDRESSI, 2009).
Rafael Mandressi (2009) também constata que somente o clero podia realizar estudos de
anatomia, ainda que muitas vezes apenas teóricos, por meio de algumas traduções dos textos árabes,
ou mesmo por pequenas práticas médicas de urgência, embora se evitasse a incisão do corpo. A
abertura de cadáveres exclusivamente para aprimoramento dos estudos anatômicos ressurgiria na
Europa no fim da Idade Média, sobretudo a partir dos trabalhos desenvolvidos pelo belga Andreas
Vesalius (1514-1564) na Itália.
Antes dos estudos anatômicos de Vesalius,
A anatomia era ensinada nas escolas médicas medievais, particularmente na Itália e
na França, mas de uma forma literária peculiar. O professor de medicina recitava
Galeno, enquanto um assistente (“cirurgião”) dissecava as correspondentes partes
do corpo. Isso era feito pobremente, enquanto a oratória e as disputas dos mestres,
todos eles meramente interpretando Galeno, eram consideradas de longe mais
importantes do que a dissecação. (MAYR, 1998, p.117)
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Faz-se necessário resgatar o trabalho do germânico Johannes de Ketham, autor da obra


Fasciculus Medicinae (1491). Essa obra é considerada o primeiro livro ilustrado de medicina,
contendo textos produzidos em latim, além de desenhos que ilustram desde os locais em que
ocorriam as dissecações até esquemas do próprio corpo humano (DIMAIO et al., 2014). As
ilustrações revelam a prática da dissecação tal como apontadas por Mayr (1998), com a valorização
dos trabalhos de Galeno (figura 1).

Fig.1.: Ilustração presente na obra Fascículo de medicina (1493-1494), de Johannes de Ketham.

Em outra ilustração, Zodiac man, há a ilustração de um corpo humano adulto, do sexo


masculino, cujas partes estão referenciadas por símbolos zodiacais. É notável como as
representações científicas ainda estavam impregnadas por crenças e demais misticismos. Somente a
partir das práticas dos estudos anatômicos de Galeno, a anatomia transformar-se-á com os estudos
de Vesalius:
Ele mesmo [André Vesalius] participava ativamente nas dissecações, inventava
novos instrumentos para dissecar e finalmente publicou um trabalho anatômico
com magníficas ilustrações: De Humani Corporis Fabrica (1543). Nele, corrige
inúmeros erros de Galeno, mas ele próprio fez apenas um número limitado de
descobertas, e retinha o arcabouço aristotélico das explicações fisiológicas. Não
obstante, com Vesalius começou uma nova era para a anatomia, na qual o apego
escolástico aos textos tradicionais foi substituído pelas observações pessoais.
(MAYR, 1998, p. 117)

Deve-se acrescentar à nossa reflexão o fato de que Vesalius era médico e não naturalista – “é
a serviço do homem que ele entende restaurar o conhecimento anatômico do homem”
(CANGUILHEM, 2012, p.23). A crítica trazida por Ernst Mayr (1998) a respeito da descoberta, por
Vesalius, da solução dos erros de Galeno, a princípio encanta a todos pela validação da ciência dos
estudos biológicos; entretanto, ter priorizado o direcionamento do olhar sobre o organismo humano

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constituiu uma rota para progresso do conhecimento científico que se distanciava da futura teoria da
origem das espécies.
Além disso, é preciso repensar que, se em determinados animais certas estruturas
anatômicas estavam presentes, em nenhum momento, até então, se buscou compreender o motivo
de elas estarem ausentes na anatomia humana. O humanismo marcante nos estudos de Vesalius,
embora tenha resgatado das trevas do Medievo a concepção de homem, de ser humano,
possivelmente retardou a visualização das relações de genealogia entre o ser humano e os outros
animais. O homem ainda era visto como o final de uma série animal, tal como concebido desde
Aristóteles – manteve-se a dignidade hierárquica do humano perante a natureza tal como Deus
havia sido o Ser superior durante o Medievo (CANGUILHEM, 2012).
Ainda assim, com o florescimento da Renascença “desenvolveu-se um interesse novo pela
história natural e pela anatomia” (MAYR, 1998, p.116). Esse novo interesse pelo natural encontrou
inevitavelmente, no acesso às dissecações, uma invenção que é “vantajosa diante da exigência de
obter ou perfazer um novo conhecimento sobre o corpo” (MANDRESSI, 2009, p.415) – eis um
novo conhecimento que também trouxe a preocupação em ser divulgado.
O organismo, após o desnudamento de suas profundezas pelas dissecações, teve as
estruturas recém-descobertas registradas nas famosas tábuas ou pranchas de estudos anatômicos.
Com isso, à medida que uma nova estrutura era encontrada, as representações do corpo eram, então,
atualizadas. Se por um viés o corpo humano era desmontado em peças pelo discurso do anatomista,
por outro, essas peças desconexas ganhavam uma unidade dinâmica através das representações
artísticas (CANGUILHEM, 2012). Tão forte era a tentativa de compreensão do funcionamento do
todo orgânico humano, que essa “própria desmontagem [do corpo] se parece menos com uma
divisão e dispersão de partes que com o esclarecimento progressivo de um conjunto”
(CANGUILHEM, 2012, p.23). Não por menos, encontrava-se evidenciado que os próximos estudos
biológicos corresponderiam aos primórdios da fisiologia.
Com a consolidação da anatomia como disciplina nas principais universidades, as
ilustrações anatômicas representam, desde então, um recurso didático que permite a revelação do
corpo humano desvinculada da disponibilidade de um cadáver para dissecação/estudo.
A participação dos artistas no estabelecimento da iconografia anatômica foi feita à
base da convicção de que a ilustração cumpria um papel essencial no dispositivo de
conhecimento organizado em torno da percepção visual. Pintores e anatomistas
partilham os mesmos valores a propósito da experiência sensorial, os livros
científicos exploram a cultura visual da época, e esta os invade trazendo-lhes uma
sensibilidade específica. Os artistas colocaram a serviço do saber anatômico uma
dimensão estética, mas também um olhar que vai além do objeto morto deposto na
mesa de dissecação: a dramaturgia dos esqueletos e dos manequins anatômicos não
pertence ao escalpelo, mas ao pincel. É o artista que faz dançar os cadáveres.
(MANDRESSI, 2009, p.425)

É exatamente o fruto dessa relação entre artistas e anatomistas – a arte-anatomia – que


constitui o objeto-chave do presente estudo. Para tanto, selecionamos alguns trabalhos artístico-
anatômicos de diferentes artistas e anatomistas para alicerçar o seguinte questionamento:
encontram-se preservadas a forma, a estética e a imagem da representação anatômica ao longo da
história das ciências biológicas?

Arte-anatomia: o conceito desde o início

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Todo conceito apresenta componentes inseparáveis, mas também distintos e heterogêneos
(DELEUZE, GUATTARI, 1997). Em arte-anatomia, a arte e a anatomia aqui referidas têm
domínios próprios e um domínio único, em comum, pertencente a ambas – essas duas situações
possibilitam que, separadas, elas estejam associadas a outros saberes e, consideradas em conjunto,
promovam certos devires: o devir-arte da anatomia e o devir-anatomia da arte, por exemplo. Assim,
mais do que ideias associadas, todo conceito deve ser levado em consideração/relação: quando a
ciência pode ser considerada tão artística quanto a arte e a arte tão científica quanto a ciência,
abalando uma compreensão rigidamente delimitada acerca dos próprios conceitos de ciência e de
arte, em consonância aos de corpo, tecnologia, vida, morte, e tantos outros.
Além disso, pode-se inferir que é responsabilidade da própria filosofia tornar esses conceitos
representativos de algo que se abriga em um vir a ser concebido; será responsabilidade da filosofia,
trazer a representatividade do conceito por meio da invenção de “técnicas teológicas, científicas,
estéticas que lhe permitam integrar a profundidade da diferença em si; trata-se de fazer com que a
representação conquiste o obscuro” (DELEUZE, 2006, p.365). Entretanto e similarmente, a ciência
trouxe a “técnica última” que sustenta o conceito arte-anatomia – a plastinação, de Gunther von
Hagens, que possibilita a preservação dos tecidos biológicos: o cadáver não mais desfalece por
permanecer preservado quimicamente.
Além das referências a algumas representações anatômicas contidas na obra de Ketham,
encontra-se, a seguir, uma seleção de imagens de outros estudos anatômicos que foram ordenadas
cronologicamente e selecionadas por possibilitarem relações com a obra contemporânea do
anatomista Gunther von Hagens.

Jacopo Berengario da Carpi (1460-1530)

A partir da obra Isagogae breues, perlucidae ac uberrimae, in anatomiam humani corporis


a communi medicorum academia usitatam (1523, folhas 23 e 71), de autoria do médico anatomista
italiano Jacopo Berengario da Carpi, com ilustrações de Hugo da Carpi (1455-1523), seria possível
tecer infinitos comentários poéticos acerca de suas imagens, entretanto, o principal é que os
cadáveres não se encontram em uma mesa de dissecação sob bisturis. Na figura 2, o cadáver se
encontra disposto numa sala doméstica, sentado sobre um pano em uma cadeira diante de uma
janela, através da qual ele é apresentado a uma cidadela que se revela ao fundo. Além disso, o
cadáver não verte fluidos, não parece estar se desfalecendo – ele apenas se encontra acomodado.
Gunther von Hagens exporá séculos depois, no meio do salão do museu, vários cadáveres
acomodados em cadeiras, dispostos ao redor de uma mesa, jogando baralho. O cadáver encontra-se
em posição de sociabilidade.

Leonardo da Vinci (1452-1519)

Enriquecendo o despertar de um novo olhar progressivamente desvinculado do


obscurantismo medieval, resgatando o mundo, seus seres vivos, formas, estruturas e composições, o
artista/pintor e inventor italiano Leonardo di Ser Piero da Vinci cunhou com seus estudos
anatômicos os primórdios de uma base científica do corpo humano, na qual Ciência e Arte,
caminhando intimamente juntas, promoveram uma melhor visualização/divulgação da anatomia.

Os detalhes, os cortes e os ângulos das figuras impressionam pelo realismo e


respeito pela proporcionalidade que existe no corpo humano. A influência da
engenharia e da matemática é visível: roldanas, formas geométricas e engrenagens

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estão presentes nas gravuras, ao lado de estruturas ósseas, de conjuntos de tendões
e músculos, indícios de que ele recorreu a cálculos para interpretar os movimentos
e a funcionalidade dos elementos anatômicos que observou.
De sua experiência em outras áreas, Leonardo trouxe diversas inovações para o
estudo da anatomia, dentre elas a utilização da injeção de cera derretida nos
ventrículos do cérebro de um cadáver para facilitar a sua dissecação. (SILVA,
2013, p.4)

Fig.2.: Imagem da folha 23 (verso) da obra Isagogae breues, perlucidae ac uberrimae, in


anatomiam humani corporis a communi medicorum academia usitatam (1523), de Jacopo
Berengario da Carpi

Da repercussão dessa divulgação, será possível retomar tais estudos quando em tempos
modernos, para avanços da Biologia e da Medicina.

O texto "Da ordem do livro" visa a descrição de diversos aspectos da figura


humana, tais como a concepção, as medidas e a anatomia descritiva, os
movimentos, as atitudes e os sentidos (fólio 4). Esse texto não consiste na
descrição de investigações feitas, mas propõe as matérias a investigar e os modos
de mostrá-las e ordená-las. O texto é original em relação à tradição, no sentido de
que mostra uma disposição das matérias anatômicas diferente daquela utilizada nos
tratados da época. As menções a respeito de desenhar e de figurar são claras e, ao
final, elas estão relacionadas às partes do corpo responsáveis por expressões
específicas. (KICKHÖFEL, 2011, p.26)

A representação dos corpos humanos, bem como de suas estruturas anatômicas, atrelou-se a
todo um estudo minucioso das partes/peças anatômicas que, por sua vez, receberam influência de
uma filosofia natural fomentadora de um fazer-Ciência em busca do “corpo tal como ele é”.

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Acreditamos que seja por isso, impregnado por essa busca do real anatômico que Leonardo da Vinci
realizou inúmeras dissecações, como apontado por Malomo e colaboradores (2006).
Diante disso, ao mesmo tempo em que as ilustrações do mestre italiano Da Vinci se nutrem
de tratados e técnicas de arte, as mesmas se afastam de uma apresentação imaginária, ficcional, dos
elementos da natureza, dentre eles o corpo humano e sua constituição. Esse distanciamento se dá
exatamente por meio da sua prática artístico-científica ser transeunte pelos domínios da arte
(desenho/pintura) e da ciência (dissecações/estudos médicos): o trabalho de Leonardo da Vinci não
nos apresenta “aparências”, mas sim, os reais contornos, proporções/razões, densidades e
movimentos do real, da realidade viva. De uma sistematização (anatômica) que facilmente emerge
desse percurso por entre teorias, técnicas e práticas, podemos mencionar a obra O Homem
Vitruviano [ou Homem de Vitruvio] (1490), também referenciado por Von Hagens em um de seus
corpos plastinados (figura 3).

Fig.3: Ilustração de O Homem Vitruviano (1490), de Leonardo da Vinci.

Michelangelo Buonarotti Simoni (1475-1564)

Mais um mestre italiano da pintura, Michelangelo ou Miguel Ângelo, também inventor,


escultor e poeta, foi o responsável, dentre tantas obras, pela pintura (dos afrescos) do teto da Capela
Sistina, Vaticano. Recentemente, há considerações que apontam para a presença de estruturas
anatômicas que podem ser encontradas em suas pinturas, semelhante a uma espécie de código
utilizado pelo artista em seus trabalhos. Essa “visualização/percepção ganhou corpo” com a obra
Arte secreta de Michelangelo: uma lição de anatomia na Capela Sistina (2004), dos pesquisadores
Gilson Barreto e Marcelo Ganzarolli de Oliveira, a qual, apesar das críticas de Kickhöfel (2004),
não deixa duvidas acerca da dedicação singular com que o artista se debruçou sobre o estudo do
corpo humano, posições e movimentos.

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Entretanto, Kickhöfel (2004) enfatiza a raridade da realização de estudos realmente
anatômicos por parte de Michelangelo, sendo que os encontrados refletem apenas cópias de outros
estudos realizados antes realizados por outros artistas/anatomistas. Essa situação, por exemplo, pode
diferir/distanciar bastante o trabalho de Michelangelo e o processo de criação de Leonardo da Vinci,
sobretudo no tocante à prática de dissecações e, consequente, o maior contato do artista com as
características anatômicas humanas. No mais, da pintura de Michelangelo na Capela Sistina, merece
destaque uma figura-personagem, São Bartolomeu, na cena do seu martírio, o qual servirá de
inspiração para a realização de uma ilustração anatômica por parte do médico anatomista Juan
Valverde de Amusco.

Juan Valverde de Amusco (1525-1588)

Dentre os estudos do médico anatomista espanhol Juan Valverde de Amusco, a obra


Anatomia del corpo humano (1556, p.64) tem uma inquietante representação anatômica. A figura 4
apresenta um cadáver desvestido da própria pele, sendo que o próprio segura a lâmina (escalpelo)
que o desnudou em pele – é o morto que, se apresentando aparentemente vivo, revela-se corpo
anatômico, parecendo estar disposto a iniciar a apresentação de sua anatomia em sua
autodissecação. Além disso, é exatamente essa imagem da obra de Amusco que faz referência à
cena do Martírio de São Bartolomeu, presente na obra Juízo Final (1535-1541), de Michelangelo,
encontrada na Capela Sistina (Vaticano), conforme anunciamos anteriormente. Curiosamente, o
contemporâneo anatomista Gunther von Hagens também disporá, em uma de suas exposições, um
cadáver plastinado – The Skin Man – em posição semelhante ao apresentado pela imagem de
Amusco, tendo sido apenas descartada a posse do escalpelo.

Fig.4.: Imagem da página 64, Tábua I, Livro II, da obra Anatomia del corpo humano (1560), de
Juan Valverde de Amusco

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Carlo Ruini (1530-1598)

Na obra Anatomia del Cavallo, infernità, et suoi rimedii (1598), do anatomista italiano Carlo
Ruini, o material dissecado ilustrado se refere à anatomia de um cavalo que se encontra em várias
posições, cada qual em uma página, ainda que mantida a paisagem ao fundo (Figura 5). Demais
outros estudos de Ruini também trouxeram inúmeras contribuições a futuros estudos veterinários.
Para divulgação da sua exposição Body Worlds, Gunther von Hagens expôs em pleno centro
de New York um cavalo e seu cavaleiro, ambos plastinados. Com isso, sua técnica, até então
mencionada para cadáveres humanos, pôde ser aplicada no corpo de demais animais, como por
exemplo: elefante, girafa, gorila, boi, tubarão, avestruz, dentre outros que assim como esses já
foram também plastinados e expostos. Um intermediário entre Von Hagens e Ruini é o anatomista
francês Honoré Fragonard (1732-1799), cuja técnica de preservação de tecidos biológicos, segundo
Jonathan Simon (2002), correspondia a injeções de cera nas veias do cadáver e acabamento
envernizado (figura 6).

Fig.5: Imagem da página 243, Tábua V, Livro V, da obra Anatomia del Cavallo, infernità, et suoi
rimedii (1598), de Carlo Ruini

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Fig.6: Imagem de Le cavalier et sa monture (1771), de Honoré Fragonard.

William Cheselden (1688-1752)

O inglês Cheselden, cirurgião e professor de anatomia óssea, publicou por meio de sua obra
Osteographia (The anatomy of the bones) (1733) vários estudos anatômicos, tanto de corpos
humanos como de outros animais. Por meio de suas pranchas anatômicas é possível visualizar um
estudo figurado de anatomia comparada, bem como ter acesso às informações descritas pelo próprio
Cheselden ao longo da dissecação. Em sua obra há ilustrado um esqueleto ajoelhado que ora ou
pede clemência (figura 7). Comovente? Seria possível que um corpo morto velasse a morte de outro
corpo também já morto? Von Hagens dispôs em sua exposição um plastinado que se debruça sobre
outro plastinado que encena estar no leito de morte.

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Fig.7: Imagem da Tábua 36, da obra Osteographia (The anatomy of the bones) (1733), de William
Cheselden

Os quadros “As Aulas de Anatomia”

A imagem do anatomista, sobretudo do anatomista também dissecador (logo, após os


trabalhos de Vesalius), esteve até então curiosa e predominantemente ausente. O anatomista
ganhará potencialmente a cena das representações anatômicas por meio das pinturas geralmente
intituladas “Aulas de anatomia do Dr. (nome do anatomista)”. Nessas obras aparecem os estudos do
corpo, muitos dos quais revelando partes anatômicas, porém com enfoque artístico no processo da
dissecação e não somente no material dissecado. São várias as obras que merecem destaque: Aula
de anatomia do Dr. Willem van der Meer (1617), do pintor holandês Michiel Jansz van Mierevelt; A
aula de anatomia do Dr. Joan Deijman (1656) e A aula de anatomia do Dr. Nicolaes Tulp (1632),
ambas do pintor holandês Rembrandt van Rijn; A aula de anatomia do Dr. Frederik Ruysch (1683),
do pintor holandês Jan van Neck.
O corpo continua exposto, apesar de geralmente pálido ou amarelado, raramente
esquartejado, friamente incisado. Nas obras mencionadas, o cadáver perde a aparência de vivificado
e assume, imóvel e calado, sua importante utilidade à ciência, ao saber anatômico, médico,
biológico.
Além disso, através dessas obras é possível perceber certos caracteres simbólicos dos
estudos anatômicos: os materiais para a dissecação sempre se apresentam muito bem organizados,
lâminas, escalpelos e pinças limpos; há sempre um livro de estudos anatômicos à disposição, pois a
teoria não se encontra desvinculada da prática em nenhum momento da dissecação, bem como uma
equipe de pessoas, de curiosos a ajudantes, ao redor da mesa de dissecação. Além disso, a imagem
do anatomista é quase sempre representada com um chapéu preto de veludo, o qual também é
frequentemente utilizado por Von Hagens (figura 8).

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Fig.8: A aula de anatomia do Dr. Nicolaes Tulp (1632), de Rembrandt van Rijn.

Jacques Fabian Gautier d’Agoty (1717-1786)

Na obra Suite de l’Essai d’anatomie en tableaux imprimes (1745), o anatomista francês


Jacques Fabian Gautier d’Agoty apresenta Flyed Angel, a imagem de um corpo feminino (figura 9)
que, aparentando estar vivo, tem as costas abertas, assemelhando-se a um anjo cujas asas foram
cortadas. No trabalho de Gunther von Hagens, uma cadavérica dançarina de balé não tem as asas de
Flyed Angel, mas tem parte da musculatura torácica cortada para proporcionar uma estética leve e
semelhante a um flora para o tutu de suas vestes.
Não menos chocante, D’Agoty também realizou a representação de uma senhora grávida
que posa aos olhos do observador, revelando o interior de seu útero com seu filho (Figura 10). A
imagem só não se revela potencialmente escrupulosa devido às cores utilizadas e pelo semblante
retratado.
Assim como em Flyed Angel, a pintura em um primeiro momento é estranha, fora do
comum, mas em nenhum momento é repugnante como um cadáver em decomposição ou mesmo
um morto qualquer mutilado e escalpelado. Também há nos trabalhos de Von Hagens uma mulher
grávida plastinada. Deitada lateralmente, em clássica posição de descanso, com a cabeça sustentada
pelo braço direito, ela tem partes da sua barriga removidas – camada por camada, chega-se ao feto,
também plastinado, que antes se desenvolvia.

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Fig.9: Imagem de Flyed angel, tábua 14 da Suite de l’Essai d’anatomie en tableaux imprimes
(1745), de Jacques d’Agoty

Fig.10: Imagem de Pregnant woman, presente em Anatomie des parties de la génération de


l’homme et de la femme (1773), de Jacques d’Agoty

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Apesar de inúmeros outros trabalhos impressionantes de D’Agoty, tem-se ainda a obra Duas
cabeças, que retrata as irrigações sanguíneas da face (Figura 11).

Fig.11: Imagem da tábua de estudos de miologia, presente na obra Essai d’anatomie en tableaux
imprimes (1745), de Jacques d’Agoty

Essa pintura reflete uma anatomia microscópica – capilar – em relação às demais já


apresentadas, evidenciando parte da imperceptível trama de capilares que percorre o organismo,
indo além de uma simples apresentação de feixes musculares. Entretanto, o emaranhado de
capilares sanguíneos, comumente imbricado na musculatura, parece estar sobre a pele – seria um
escalpelamento mais sutil, mais delicado? O sistema circulatório em uma configuração semelhante
e aprimorada do trabalho de D’Agoty, será também revelado posteriormente pela plastinação de
Gunther von Hagens. Até a chegada do século XXI, a circulação dos fluidos corpóreos também será
objeto de estudo dos primeiros trabalhos de fisiologia, os quais fornecerão as bases para a
concepção de um homem mecanizado.

O Corpo Moderno-Mecânico

À medida que os estudos anatômicos desbravavam o interior dos cadáveres, iniciou-se uma
busca pela compreensão de como, então, o organismo funcionaria se ainda estivesse vivo. A
anatomia possibilitou visualizar o corpo por partes, peças, estruturas que se associam umas as
outras, que dependem umas das outras – como peças de um motor; como o motor de uma máquina.
É possível compreender que a ciência, insatisfeita em apenas vasculhar o corpo, aperfeiçoou-o,
ainda que exercendo pleno controle sobre ele – para tanto, a busca pelas estruturas orgânicas foi
gradualmente substituída pela busca de funções orgânicas. O mesmo pode ser exemplificado através
do desenvolvimento das artes mecânicas por meio do trabalho do artista e inventor francês Jacques
de Vaucanson, criador de inúmeros autômatos, e mesmo por meio da concepção de “homem-
máquina” presente nos estudos do médico e filósofo francês Julien Offray de La Mettrie (NOVAES,
2003).
Sabe-se que La Mettrie,
25
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[...] radicalizava Descartes, para quem os animais eram como máquinas, por não
terem alma. Levando essa ideia a extremos inimagináveis para o autor do Discurso
do método, La Mettrie afirmou que os homens eram em tudo próximos dos
animais, e, portanto, também não tinham alma, eram meras máquinas, conjuntos de
engrenagens puramente materiais, sem nenhuma substância espiritual, como
pretendia Descartes. (ROUANET, 2003, p. 38)

A obra de La Mettrie, O corpo máquina, data de 1748. É curioso o espanto social diante da
tradução do organismo em engrenagens constituintes de um complexo maquinário quando se está a
pouco mais de 150 anos da publicação da obra Frankenstein: or the Modern Prometheus (1816-17),
de Mary Shelley (1797-1851). O que seria mais assustador e mesmo bizarro: uma máquina robô que
escreve, desenha, toca instrumentos, que está na iminência do tornar-se autônoma, ou um individuo
(ser humano?), retalhado, costurado, também criação humana?
Da ficção científica aos reais autômatos, o conhecimento científico aparece associado ao
desenvolvimento tecnológico. Na Anatomia, a partir de então, poucas foram as descobertas
puramente anatômicas, isto é, não vinculadas a estudos do comportamento animal, nem da
fisiologia, muito menos da bioquímica ou composição de partes orgânicas; assim, tem-se que a
tecnologia foi uma novidade capaz de criar, a partir dos conhecimentos anatômico-científicos já
adquiridos, um novo corpo, ainda que com tendência ao descarte do orgânico vital.

Gunther Von Hagens (1945-Atual)1

Contemporâneo cientista e anatomista alemão, Gunther von Hagens foi responsável por
trazer ao século XXI o espetáculo das dissecações públicas. Sua já mencionada técnica, a
plastinação, preserva tecidos biológicos por meio de polímeros capazes de assegurar maleabilidade
e rigidez ao cadáver plastinado para que o mesmo possa ser exposto. Von Hagens realiza
exposições em diferentes partes do mundo, divulgando sua técnica e dispondo suas obras nas mais
diversas posições e atividades, como já foi possível constatar a partir das comparações com as
representações anatômicas dos antigos estudos de anatomia.
Em suas exposições, há muitos cadáveres que se encontram dispostos em atividades-cenas
do cotidiano: uns jogam futebol, outros basquete; há também os que dançam, patinam, enquanto
outros tocam instrumentos musicais ou mantêm relações sexuais. Outros cadáveres, no entanto,
encontram-se dispostos de maneira muito semelhante a outras obras anatômicas até aqui ainda não
comentadas, como é o caso do The modern Leonardo, um cadáver plastinado disposto em referência
ao Homem Vitruviano (1490), de Leonardo da Vinci. Outras artes, não anatômicas, também são
referidas como, por exemplo, The wave roller, que consiste de um cadáver disposto como a figura
humana encontrada na fotografia de Robert Mapplethorpe, intitulada Thomas (1987).
A questão-chave é que a obra de Von Hagens, por suas características inovadoras em termos
de técnica utilizada, alcança toda uma tridimensionalidade anatômica até então presente apenas nas
ilustrações anatômicas de artistas e cientistas, sobretudo naquelas desenvolvidas a partir do
Renascimento. Embora seja evidentemente correto pensar que a produção de Von Hagens torna
reveladas, e com precisão, as minúcias das entranhas anatômicas antes orgânicas, eis que a sua
técnica, a plastinação, têm promovido apenas a “tridimensionalização” de toda uma ciência
anatômica em muito já explorada desde os tempos renascentistas. Diante disso, questionamos se os
estudos anatômicos já não teriam alcançado certa suficiência?


1
De acordo com o site oficial das exposições do anatomista, não é permitida a utilização de imagens referentes aos
trabalhos anatômicos de Gunther von Hagens.
26
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Distantes da pretensão de elaboração uma resposta definitiva, final, aridamente
inquestionável, rascunhamos que trazer à atualidade um repensar a anatomia, uma atualização do
saber anatômico, guia-nos à percepção de que a Anatomia, já tornada disciplina, se encontra
dissolvida em outras ciências mais específicas. As descobertas das estruturas anatômicas,
conduzidas por uma visão microscópica, abriram as portas a muitos avanços estruturais e funcionais
em Biologia Celular, Bioquímica e Biofísica, enquanto que, quando conduzidas por uma visão
macroscópica, permitiu avanços na compreensão de processos fisiológicos, etológicos e ecológicos.

Considerações Finais ou Da importância ao Ensino

A partir do presente estudo, foi possível notar que os trabalhos anatômicos realizados ao
longo da história da anatomia e divulgados por meio de preocupações tanto técnico-científicas
quanto estéticas, forneceram subsídios ao desenvolvimento concomitante da Arte e da
Ciência/Anatomia. Acreditamos ter sido possível visualizar ao longo dos trabalhos aqui
mencionados algumas alterações nas representações anatômicas dos estudos realizados por
diferentes autores: se por um primeiro momento buscou-se uma representação fiel da natureza, por
outro lado, os estatutos da Arte não se obrigam a tal fidelidade representacional. Em outras
palavras, é o que faz com que os desenhos de Da Vinci e mesmo de Cheselden se pareçam mais
próximos do real anatômico do que as pinturas de D’Agoty e mesmo as “mumificações” de
Fragonard. Não por menos,

A representação artística explora, nas diferentes áreas gráficas, as vias mais


instintivas de processamento do cérebro humano, mais dado às formas e às
dimensões do que às descrições verbais ou textuais. A conjugação das duas formas
de expressão confere um enorme poder de comunicação aos temas assim tratados.
(ADRO, 2011, p.11)

Assim, acreditamos que a íntima parceria entre Arte e Ciência, no tocante aos estudos
anatômicos, promove uma melhor compreensão científica de conceitos, estruturas e funções
referentes ao corpo.
O ilustrador anatômico é um artista que domina as técnicas de arte gráfica com
conhecimento científico e tem que perceber perfeitamente a linguagem do
pensamento médico. Só assim conseguirá o total aproveitamento do seu trabalho.
Um dos principais atributos do ilustrador é a capacidade de interpretação e de
processamento de conceitos complexos. (ADRO, 2011, p.11)

Nesse escopo, não poderíamos deixar de referenciar a obra de Frank Netter (1906-1991),
ilustrador anatômico norte-americano que, com seus belíssimos trabalhos anatômicos, deixou um
marco na história do ensino da Anatomia.2 Suas representações do interior dos corpos humanos,
compiladas nos mais diversos atlas de anatomia (NETTER, 1978; 2015; RUBIN; NETTER, 2008)
estão carregadas de claras cores vivas e são capazes de afastar qualquer mal-estar visual, qualquer
abjeção às entranhas orgânicas, além de delimitar e distinguir os tecidos, órgãos e sistemas. Dessa
maneira, temos: por um lado, um processo de divulgar/fazer-Ciência rumando do todo para as
partes, típico do pensamento moderno, da Ciência fortemente vigente; por outro lado, Netter
conseguiu trazer à luz da Ciência, à luz do Ensino de Ciências, a vivacidade com que a Anatomia se
debruça sobre os cadáveres para melhor compreender o vivo – eis as cores esvaídas da Morte
representando a busca por compreensões acerca da Vida.

2
Vários outros nomes poderiam ser mencionados, como é o caso dos ilustradores norte americanos John Craig e
James A. Perkins, bem como do ilustrador brasileiro Carlos A. G. Machado, cujas obras se encontram associadas à
várias produções-ilustrações anatômicas de Frank Netter.
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Atentando-nos a esse contexto de vivificação do morto, do antes cadavérico, temos que a
obra de Von Hagens também se apresenta como um potencial material didático-pedagógico ao
Ensino de Anatomia. Se as produções de Netter são bidimensionais, eis que a tridimensionalidade
permitida pela plastinação torna mínima a abjeção às entranhas orgânicas, sobretudo pela ausência
de características como odor, viscosidade e temperatura. Outro aspecto ainda pouco considerado se
refere ao uso de tais plastinados no processo de ensino-aprendizagem de pessoas cegas. Uma vez
que o plastinado é feito no/do “corpo-fôrma” que um dia esteve vivo, trata-se de um modelo
bastante fiel à real anatomia humana, o quê possibilita manter preservados desde capilares
sanguíneos até grandes órgãos, bem como toda a estrutura anatômica. Portanto,
contemporaneamente, é através da obra de Gunther von Hagens que a arte-anatomia apresenta-se
com maior confiabilidade: a real anatomia para o ensino3, sensibilizadora de outros sentidos.
No entanto, da mesma maneira que algumas das ilustrações anatômicas históricas puderam
representar melhor ou não tal real anatomia, temos que nem todo plastinado se encontra montado e
disposto como um corpo humano: por enquanto, apenas algumas peças da obra de Von Hagens têm
rompido com a estética anatômica vigente desde o Renascimento, o quê faz a plastinação também
ocupar uma “posição” de tecnociência de avant-garde, a uma Ciência de vanguarda, surreal, talvez.
Corpos plastinados que se abrem feito flor, feito vestes de bailarina, feito sucessão de movimentos
de um atirador de beisebol. Corpos de animais, camelo com pescoço duplamente seccionado
longitudinalmente, girafa cujo corpo está seccionado transversalmente desde as pernas até o crânio,
dentro outras composições. Por fim, se essa morte não viver, a vida pode ser por demasiadamente
criativa!

Agradecimentos

Agradecemos à Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior – CAPES,


pela bolsa de estudos destinada à realização desta pesquisa.

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Deleuze, G. Diferença e repetição. (2006). Trad. Luiz Orlandi e Roberto Machado. Rio de Janeiro:
Graal.


3
Trecho original “the real anatomy for teaching” – como expressado no site da Gubener Plastinate GmbH, loja que
vende materiais didáticos produzidos pela equipe de Gunther Von Hagens.
28
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Referências das imagens

Figura 1: acesso em 10 de jan., 2015,


http://o.quizlet.com/i/WQfqL6oTLxotx95UIWYQVA.jpg

Figura 2: acesso em 10 de jan., 2015,


http://upload.wikimedia.org/wikipedia/commons/a/a3/Berengario_p23v.jpg

Figura 3: acesso em 16 de jan., 2015,


https://upload.wikimedia.org/wikipedia/commons/2/22/Da_Vinci_Vitruve_Luc_Viatour.jpg

Figura 4: acesso em 10 de jan., 2015,


http://upload.wikimedia.org/wikipedia/commons/1/1f/Valverde_p64.jpg

Figura 5: aceso em 10 de jan., 2015,


http://upload.wikimedia.org/wikipedia/commons/5/5c/Horse_musculature_Carlo_Ruini_c_1598.jpg

Figura 6: acesso em 10 de jan., 2015,


http://upload.wikimedia.org/wikipedia/commons/6/61/%C3%89corch%C3%A9_cavalier_Fragonar
d_Alfort_1_edit1.jpg

Figura 7: acesso em 10 de jan., 2015,


https://jimsligh.files.wordpress.com/2010/09/pious-skeleton-mitchell.jpg

Figura 8: acesso em 9 de jan., 2016,


https://pt.wikipedia.org/wiki/A_Li%C3%A7%C3%A3o_de_Anatomia_do_Dr._Tulp#/media/File:T
he_Anatomy_Lesson.jpg

Figura 9: acesso em 10 de jan., 2015,


http://www.walkerdigital.com/media/gallery/photo-29.jpg

Figura 10: acesso em 10 de jan., 2015,


http://4.bp.blogspot.com/-
eDia2eqSjUg/TlVPXwi4iiI/AAAAAAAAACU/P0pI2bs4rPw/s1600/jaq.jpg

Figura 11: acesso em 10 de jan., 2015,


http://www.artexpertswebsite.com/pages/artists/artists_a-k/dagoty/4.agoty.jpg

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