Anatomia Na Arte
Anatomia Na Arte
Anatomia Na Arte
Resumo
Com a inspeção do corpo (sobretudo a partir do século XVI), foram descobertas estruturas e
funções biológicas. Esse corpo humano foi divulgado e vivificado em belíssimas pranchas, tratados
e demais estudos anatômicos. Cientistas e artistas criaram uma estética para a representação da
anatomia que até hoje pode ser encontrada na mais recente técnica de preservação de tecidos
biológicos – a plastinação, desenvolvida pelo cientista alemão Gunther von Hagens. Diante disso,
através do presente estudo, objetivamos realizar uma releitura histórica do desenvolvimento
anatômico através de produções artístico-científicas, a fim de enaltecer a proximidade com que
Ciência e Arte se dialogam. Assim, também esperamos que o presente estudo sirva de material de
apoio (reflexivo) para se rever a dimensão do corpo (anatômico) ao longo do progresso científico.
Palavras-chave: história da ciência; historia da anatomia; arte
Abstract
With the inspection of the body (especially from the sixteenth century) biological structures and
functions were discovered. The disclosure of human body was vivified into beautiful boards,
treaties and other anatomical studies. With that, scientists and artists have created an aesthetic to the
representation of the anatomy which can still be found in the latest technique for preserving
biological tissue – the plastination, developed by the German scientist Gunther von Hagens.
Therefore the present study aims to make a historical retelling of the anatomical development
through artistic and scientific productions in order to enhance the proximity to the Science and Art’s
dialogue. So, we also hope that this study will serve as a support material (for reflection) to review
the dimension of the (anatomical) body over the scientific progress.
Keywords: history of science; history of anatomy; art
Introdução
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Merece destaque o médico e filósofo romano Claudius Galeno (129-199 d.C.), que realizou
estudos anatômicos majoritariamente em animais como macacos, porcos e cachorros (VAN DE
GRAAFF, 2003; CANGUILHEM, 2012). As informações obtidas a partir das observações do
organismo desses animais eram consideradas válidas também para os organismos humanos, de
modo que havia uma anatomia humana rudimentarmente comparada e densamente teórica. Apesar
disso, importantes descobertas anátomo-fisiológicas acerca dos sistemas esquelético, circulatório e
nervoso dos animais exerceram, sobre a tradição biomédica humana, influência determinante até o
século XIX (MAYR, 1998).
Dos trabalhos de Galeno até os desenvolvidos ao final da Idade Média, encontramos poucos
relatos de estudos anatômicos. Para melhor compreender uma possível justificativa a essa situação,
faz-se necessário considerar alguns aspectos da organização social da época. Segundo Byington
(1993) e Muraro (1993), desde os tempos das civilizações nômades até a contemporaneidade,
sempre houve oscilações na importância da função e poder sociais desempenhados por homens e
mulheres. Os autores ainda apontam que, com a imposição do cristianismo às tribos bárbaras
europeias, os homens deixavam os lares para aderir às guerras, de modo que era preciso que as
mulheres desenvolvessem certa autonomia/ciência capaz de assegurar a própria vida e a de seus
descendentes: cuidado na higienização, no preparo de alimentos e de remédios, cuidados médicos,
sobretudo em trabalhos de parto. Podemos, assim, considerar que todo um potencial conhecimento
anatômico encontrou-se “em mãos femininas”.
Entretanto, após as cruzadas, com o masculino retornando às cidades, o homem não aceita
sua posição inferior em relação aos conhecimentos adquiridos e desenvolvidos pelas mulheres.
Então, elas passam a ser tratadas como bruxas, são perseguidas, torturadas e assassinadas. Suas
práticas, que inicialmente conduziam a compreensões sobre o corpo humano, foram amaldiçoadas e
renegadas (BYINGTON, 1993; MURARO, 1993).
Diante do exposto, tem-se que a anatomia e as dissecações só não desapareceram
completamente durante o Medievo porque foram aprimoradas em uma rota paralela de estudos, na
qual os trabalhos desenvolvidos na Antiga Alexandria serviram de base para a realização e
desenvolvimento de novos estudos médicos por parte dos povos árabes. Há ainda uma ressalva que
deve ser feita acerca da pouca realização e divulgação de estudos anatômicos durante o medievo: o
manuseio e abertura de corpos humanos somente poderiam ocorrer para fins que não promovessem
o aprofundamento de conhecimentos científico-anatômicos sobre o corpo, ou seja, o manuseio e
abertura de corpos eram apenas permitidos quando em torturas e para desmembramentos visando
melhor acomodação de descarte dos cadáveres. Exames post mortem, eviscerações e mumificações
de pessoas com certo prestígio social à época também eram permitidos (MANDRESSI, 2009).
Rafael Mandressi (2009) também constata que somente o clero podia realizar estudos de
anatomia, ainda que muitas vezes apenas teóricos, por meio de algumas traduções dos textos árabes,
ou mesmo por pequenas práticas médicas de urgência, embora se evitasse a incisão do corpo. A
abertura de cadáveres exclusivamente para aprimoramento dos estudos anatômicos ressurgiria na
Europa no fim da Idade Média, sobretudo a partir dos trabalhos desenvolvidos pelo belga Andreas
Vesalius (1514-1564) na Itália.
Antes dos estudos anatômicos de Vesalius,
A anatomia era ensinada nas escolas médicas medievais, particularmente na Itália e
na França, mas de uma forma literária peculiar. O professor de medicina recitava
Galeno, enquanto um assistente (“cirurgião”) dissecava as correspondentes partes
do corpo. Isso era feito pobremente, enquanto a oratória e as disputas dos mestres,
todos eles meramente interpretando Galeno, eram consideradas de longe mais
importantes do que a dissecação. (MAYR, 1998, p.117)
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Deve-se acrescentar à nossa reflexão o fato de que Vesalius era médico e não naturalista – “é
a serviço do homem que ele entende restaurar o conhecimento anatômico do homem”
(CANGUILHEM, 2012, p.23). A crítica trazida por Ernst Mayr (1998) a respeito da descoberta, por
Vesalius, da solução dos erros de Galeno, a princípio encanta a todos pela validação da ciência dos
estudos biológicos; entretanto, ter priorizado o direcionamento do olhar sobre o organismo humano
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constituiu uma rota para progresso do conhecimento científico que se distanciava da futura teoria da
origem das espécies.
Além disso, é preciso repensar que, se em determinados animais certas estruturas
anatômicas estavam presentes, em nenhum momento, até então, se buscou compreender o motivo
de elas estarem ausentes na anatomia humana. O humanismo marcante nos estudos de Vesalius,
embora tenha resgatado das trevas do Medievo a concepção de homem, de ser humano,
possivelmente retardou a visualização das relações de genealogia entre o ser humano e os outros
animais. O homem ainda era visto como o final de uma série animal, tal como concebido desde
Aristóteles – manteve-se a dignidade hierárquica do humano perante a natureza tal como Deus
havia sido o Ser superior durante o Medievo (CANGUILHEM, 2012).
Ainda assim, com o florescimento da Renascença “desenvolveu-se um interesse novo pela
história natural e pela anatomia” (MAYR, 1998, p.116). Esse novo interesse pelo natural encontrou
inevitavelmente, no acesso às dissecações, uma invenção que é “vantajosa diante da exigência de
obter ou perfazer um novo conhecimento sobre o corpo” (MANDRESSI, 2009, p.415) – eis um
novo conhecimento que também trouxe a preocupação em ser divulgado.
O organismo, após o desnudamento de suas profundezas pelas dissecações, teve as
estruturas recém-descobertas registradas nas famosas tábuas ou pranchas de estudos anatômicos.
Com isso, à medida que uma nova estrutura era encontrada, as representações do corpo eram, então,
atualizadas. Se por um viés o corpo humano era desmontado em peças pelo discurso do anatomista,
por outro, essas peças desconexas ganhavam uma unidade dinâmica através das representações
artísticas (CANGUILHEM, 2012). Tão forte era a tentativa de compreensão do funcionamento do
todo orgânico humano, que essa “própria desmontagem [do corpo] se parece menos com uma
divisão e dispersão de partes que com o esclarecimento progressivo de um conjunto”
(CANGUILHEM, 2012, p.23). Não por menos, encontrava-se evidenciado que os próximos estudos
biológicos corresponderiam aos primórdios da fisiologia.
Com a consolidação da anatomia como disciplina nas principais universidades, as
ilustrações anatômicas representam, desde então, um recurso didático que permite a revelação do
corpo humano desvinculada da disponibilidade de um cadáver para dissecação/estudo.
A participação dos artistas no estabelecimento da iconografia anatômica foi feita à
base da convicção de que a ilustração cumpria um papel essencial no dispositivo de
conhecimento organizado em torno da percepção visual. Pintores e anatomistas
partilham os mesmos valores a propósito da experiência sensorial, os livros
científicos exploram a cultura visual da época, e esta os invade trazendo-lhes uma
sensibilidade específica. Os artistas colocaram a serviço do saber anatômico uma
dimensão estética, mas também um olhar que vai além do objeto morto deposto na
mesa de dissecação: a dramaturgia dos esqueletos e dos manequins anatômicos não
pertence ao escalpelo, mas ao pincel. É o artista que faz dançar os cadáveres.
(MANDRESSI, 2009, p.425)
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Todo conceito apresenta componentes inseparáveis, mas também distintos e heterogêneos
(DELEUZE, GUATTARI, 1997). Em arte-anatomia, a arte e a anatomia aqui referidas têm
domínios próprios e um domínio único, em comum, pertencente a ambas – essas duas situações
possibilitam que, separadas, elas estejam associadas a outros saberes e, consideradas em conjunto,
promovam certos devires: o devir-arte da anatomia e o devir-anatomia da arte, por exemplo. Assim,
mais do que ideias associadas, todo conceito deve ser levado em consideração/relação: quando a
ciência pode ser considerada tão artística quanto a arte e a arte tão científica quanto a ciência,
abalando uma compreensão rigidamente delimitada acerca dos próprios conceitos de ciência e de
arte, em consonância aos de corpo, tecnologia, vida, morte, e tantos outros.
Além disso, pode-se inferir que é responsabilidade da própria filosofia tornar esses conceitos
representativos de algo que se abriga em um vir a ser concebido; será responsabilidade da filosofia,
trazer a representatividade do conceito por meio da invenção de “técnicas teológicas, científicas,
estéticas que lhe permitam integrar a profundidade da diferença em si; trata-se de fazer com que a
representação conquiste o obscuro” (DELEUZE, 2006, p.365). Entretanto e similarmente, a ciência
trouxe a “técnica última” que sustenta o conceito arte-anatomia – a plastinação, de Gunther von
Hagens, que possibilita a preservação dos tecidos biológicos: o cadáver não mais desfalece por
permanecer preservado quimicamente.
Além das referências a algumas representações anatômicas contidas na obra de Ketham,
encontra-se, a seguir, uma seleção de imagens de outros estudos anatômicos que foram ordenadas
cronologicamente e selecionadas por possibilitarem relações com a obra contemporânea do
anatomista Gunther von Hagens.
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estão presentes nas gravuras, ao lado de estruturas ósseas, de conjuntos de tendões
e músculos, indícios de que ele recorreu a cálculos para interpretar os movimentos
e a funcionalidade dos elementos anatômicos que observou.
De sua experiência em outras áreas, Leonardo trouxe diversas inovações para o
estudo da anatomia, dentre elas a utilização da injeção de cera derretida nos
ventrículos do cérebro de um cadáver para facilitar a sua dissecação. (SILVA,
2013, p.4)
Da repercussão dessa divulgação, será possível retomar tais estudos quando em tempos
modernos, para avanços da Biologia e da Medicina.
A representação dos corpos humanos, bem como de suas estruturas anatômicas, atrelou-se a
todo um estudo minucioso das partes/peças anatômicas que, por sua vez, receberam influência de
uma filosofia natural fomentadora de um fazer-Ciência em busca do “corpo tal como ele é”.
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Acreditamos que seja por isso, impregnado por essa busca do real anatômico que Leonardo da Vinci
realizou inúmeras dissecações, como apontado por Malomo e colaboradores (2006).
Diante disso, ao mesmo tempo em que as ilustrações do mestre italiano Da Vinci se nutrem
de tratados e técnicas de arte, as mesmas se afastam de uma apresentação imaginária, ficcional, dos
elementos da natureza, dentre eles o corpo humano e sua constituição. Esse distanciamento se dá
exatamente por meio da sua prática artístico-científica ser transeunte pelos domínios da arte
(desenho/pintura) e da ciência (dissecações/estudos médicos): o trabalho de Leonardo da Vinci não
nos apresenta “aparências”, mas sim, os reais contornos, proporções/razões, densidades e
movimentos do real, da realidade viva. De uma sistematização (anatômica) que facilmente emerge
desse percurso por entre teorias, técnicas e práticas, podemos mencionar a obra O Homem
Vitruviano [ou Homem de Vitruvio] (1490), também referenciado por Von Hagens em um de seus
corpos plastinados (figura 3).
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Entretanto, Kickhöfel (2004) enfatiza a raridade da realização de estudos realmente
anatômicos por parte de Michelangelo, sendo que os encontrados refletem apenas cópias de outros
estudos realizados antes realizados por outros artistas/anatomistas. Essa situação, por exemplo, pode
diferir/distanciar bastante o trabalho de Michelangelo e o processo de criação de Leonardo da Vinci,
sobretudo no tocante à prática de dissecações e, consequente, o maior contato do artista com as
características anatômicas humanas. No mais, da pintura de Michelangelo na Capela Sistina, merece
destaque uma figura-personagem, São Bartolomeu, na cena do seu martírio, o qual servirá de
inspiração para a realização de uma ilustração anatômica por parte do médico anatomista Juan
Valverde de Amusco.
Fig.4.: Imagem da página 64, Tábua I, Livro II, da obra Anatomia del corpo humano (1560), de
Juan Valverde de Amusco
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Carlo Ruini (1530-1598)
Na obra Anatomia del Cavallo, infernità, et suoi rimedii (1598), do anatomista italiano Carlo
Ruini, o material dissecado ilustrado se refere à anatomia de um cavalo que se encontra em várias
posições, cada qual em uma página, ainda que mantida a paisagem ao fundo (Figura 5). Demais
outros estudos de Ruini também trouxeram inúmeras contribuições a futuros estudos veterinários.
Para divulgação da sua exposição Body Worlds, Gunther von Hagens expôs em pleno centro
de New York um cavalo e seu cavaleiro, ambos plastinados. Com isso, sua técnica, até então
mencionada para cadáveres humanos, pôde ser aplicada no corpo de demais animais, como por
exemplo: elefante, girafa, gorila, boi, tubarão, avestruz, dentre outros que assim como esses já
foram também plastinados e expostos. Um intermediário entre Von Hagens e Ruini é o anatomista
francês Honoré Fragonard (1732-1799), cuja técnica de preservação de tecidos biológicos, segundo
Jonathan Simon (2002), correspondia a injeções de cera nas veias do cadáver e acabamento
envernizado (figura 6).
Fig.5: Imagem da página 243, Tábua V, Livro V, da obra Anatomia del Cavallo, infernità, et suoi
rimedii (1598), de Carlo Ruini
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O inglês Cheselden, cirurgião e professor de anatomia óssea, publicou por meio de sua obra
Osteographia (The anatomy of the bones) (1733) vários estudos anatômicos, tanto de corpos
humanos como de outros animais. Por meio de suas pranchas anatômicas é possível visualizar um
estudo figurado de anatomia comparada, bem como ter acesso às informações descritas pelo próprio
Cheselden ao longo da dissecação. Em sua obra há ilustrado um esqueleto ajoelhado que ora ou
pede clemência (figura 7). Comovente? Seria possível que um corpo morto velasse a morte de outro
corpo também já morto? Von Hagens dispôs em sua exposição um plastinado que se debruça sobre
outro plastinado que encena estar no leito de morte.
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Fig.7: Imagem da Tábua 36, da obra Osteographia (The anatomy of the bones) (1733), de William
Cheselden
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Fig.8: A aula de anatomia do Dr. Nicolaes Tulp (1632), de Rembrandt van Rijn.
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Fig.9: Imagem de Flyed angel, tábua 14 da Suite de l’Essai d’anatomie en tableaux imprimes
(1745), de Jacques d’Agoty
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Apesar de inúmeros outros trabalhos impressionantes de D’Agoty, tem-se ainda a obra Duas
cabeças, que retrata as irrigações sanguíneas da face (Figura 11).
Fig.11: Imagem da tábua de estudos de miologia, presente na obra Essai d’anatomie en tableaux
imprimes (1745), de Jacques d’Agoty
O Corpo Moderno-Mecânico
À medida que os estudos anatômicos desbravavam o interior dos cadáveres, iniciou-se uma
busca pela compreensão de como, então, o organismo funcionaria se ainda estivesse vivo. A
anatomia possibilitou visualizar o corpo por partes, peças, estruturas que se associam umas as
outras, que dependem umas das outras – como peças de um motor; como o motor de uma máquina.
É possível compreender que a ciência, insatisfeita em apenas vasculhar o corpo, aperfeiçoou-o,
ainda que exercendo pleno controle sobre ele – para tanto, a busca pelas estruturas orgânicas foi
gradualmente substituída pela busca de funções orgânicas. O mesmo pode ser exemplificado através
do desenvolvimento das artes mecânicas por meio do trabalho do artista e inventor francês Jacques
de Vaucanson, criador de inúmeros autômatos, e mesmo por meio da concepção de “homem-
máquina” presente nos estudos do médico e filósofo francês Julien Offray de La Mettrie (NOVAES,
2003).
Sabe-se que La Mettrie,
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[...] radicalizava Descartes, para quem os animais eram como máquinas, por não
terem alma. Levando essa ideia a extremos inimagináveis para o autor do Discurso
do método, La Mettrie afirmou que os homens eram em tudo próximos dos
animais, e, portanto, também não tinham alma, eram meras máquinas, conjuntos de
engrenagens puramente materiais, sem nenhuma substância espiritual, como
pretendia Descartes. (ROUANET, 2003, p. 38)
A obra de La Mettrie, O corpo máquina, data de 1748. É curioso o espanto social diante da
tradução do organismo em engrenagens constituintes de um complexo maquinário quando se está a
pouco mais de 150 anos da publicação da obra Frankenstein: or the Modern Prometheus (1816-17),
de Mary Shelley (1797-1851). O que seria mais assustador e mesmo bizarro: uma máquina robô que
escreve, desenha, toca instrumentos, que está na iminência do tornar-se autônoma, ou um individuo
(ser humano?), retalhado, costurado, também criação humana?
Da ficção científica aos reais autômatos, o conhecimento científico aparece associado ao
desenvolvimento tecnológico. Na Anatomia, a partir de então, poucas foram as descobertas
puramente anatômicas, isto é, não vinculadas a estudos do comportamento animal, nem da
fisiologia, muito menos da bioquímica ou composição de partes orgânicas; assim, tem-se que a
tecnologia foi uma novidade capaz de criar, a partir dos conhecimentos anatômico-científicos já
adquiridos, um novo corpo, ainda que com tendência ao descarte do orgânico vital.
Contemporâneo cientista e anatomista alemão, Gunther von Hagens foi responsável por
trazer ao século XXI o espetáculo das dissecações públicas. Sua já mencionada técnica, a
plastinação, preserva tecidos biológicos por meio de polímeros capazes de assegurar maleabilidade
e rigidez ao cadáver plastinado para que o mesmo possa ser exposto. Von Hagens realiza
exposições em diferentes partes do mundo, divulgando sua técnica e dispondo suas obras nas mais
diversas posições e atividades, como já foi possível constatar a partir das comparações com as
representações anatômicas dos antigos estudos de anatomia.
Em suas exposições, há muitos cadáveres que se encontram dispostos em atividades-cenas
do cotidiano: uns jogam futebol, outros basquete; há também os que dançam, patinam, enquanto
outros tocam instrumentos musicais ou mantêm relações sexuais. Outros cadáveres, no entanto,
encontram-se dispostos de maneira muito semelhante a outras obras anatômicas até aqui ainda não
comentadas, como é o caso do The modern Leonardo, um cadáver plastinado disposto em referência
ao Homem Vitruviano (1490), de Leonardo da Vinci. Outras artes, não anatômicas, também são
referidas como, por exemplo, The wave roller, que consiste de um cadáver disposto como a figura
humana encontrada na fotografia de Robert Mapplethorpe, intitulada Thomas (1987).
A questão-chave é que a obra de Von Hagens, por suas características inovadoras em termos
de técnica utilizada, alcança toda uma tridimensionalidade anatômica até então presente apenas nas
ilustrações anatômicas de artistas e cientistas, sobretudo naquelas desenvolvidas a partir do
Renascimento. Embora seja evidentemente correto pensar que a produção de Von Hagens torna
reveladas, e com precisão, as minúcias das entranhas anatômicas antes orgânicas, eis que a sua
técnica, a plastinação, têm promovido apenas a “tridimensionalização” de toda uma ciência
anatômica em muito já explorada desde os tempos renascentistas. Diante disso, questionamos se os
estudos anatômicos já não teriam alcançado certa suficiência?
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De acordo com o site oficial das exposições do anatomista, não é permitida a utilização de imagens referentes aos
trabalhos anatômicos de Gunther von Hagens.
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Distantes da pretensão de elaboração uma resposta definitiva, final, aridamente
inquestionável, rascunhamos que trazer à atualidade um repensar a anatomia, uma atualização do
saber anatômico, guia-nos à percepção de que a Anatomia, já tornada disciplina, se encontra
dissolvida em outras ciências mais específicas. As descobertas das estruturas anatômicas,
conduzidas por uma visão microscópica, abriram as portas a muitos avanços estruturais e funcionais
em Biologia Celular, Bioquímica e Biofísica, enquanto que, quando conduzidas por uma visão
macroscópica, permitiu avanços na compreensão de processos fisiológicos, etológicos e ecológicos.
A partir do presente estudo, foi possível notar que os trabalhos anatômicos realizados ao
longo da história da anatomia e divulgados por meio de preocupações tanto técnico-científicas
quanto estéticas, forneceram subsídios ao desenvolvimento concomitante da Arte e da
Ciência/Anatomia. Acreditamos ter sido possível visualizar ao longo dos trabalhos aqui
mencionados algumas alterações nas representações anatômicas dos estudos realizados por
diferentes autores: se por um primeiro momento buscou-se uma representação fiel da natureza, por
outro lado, os estatutos da Arte não se obrigam a tal fidelidade representacional. Em outras
palavras, é o que faz com que os desenhos de Da Vinci e mesmo de Cheselden se pareçam mais
próximos do real anatômico do que as pinturas de D’Agoty e mesmo as “mumificações” de
Fragonard. Não por menos,
Assim, acreditamos que a íntima parceria entre Arte e Ciência, no tocante aos estudos
anatômicos, promove uma melhor compreensão científica de conceitos, estruturas e funções
referentes ao corpo.
O ilustrador anatômico é um artista que domina as técnicas de arte gráfica com
conhecimento científico e tem que perceber perfeitamente a linguagem do
pensamento médico. Só assim conseguirá o total aproveitamento do seu trabalho.
Um dos principais atributos do ilustrador é a capacidade de interpretação e de
processamento de conceitos complexos. (ADRO, 2011, p.11)
Nesse escopo, não poderíamos deixar de referenciar a obra de Frank Netter (1906-1991),
ilustrador anatômico norte-americano que, com seus belíssimos trabalhos anatômicos, deixou um
marco na história do ensino da Anatomia.2 Suas representações do interior dos corpos humanos,
compiladas nos mais diversos atlas de anatomia (NETTER, 1978; 2015; RUBIN; NETTER, 2008)
estão carregadas de claras cores vivas e são capazes de afastar qualquer mal-estar visual, qualquer
abjeção às entranhas orgânicas, além de delimitar e distinguir os tecidos, órgãos e sistemas. Dessa
maneira, temos: por um lado, um processo de divulgar/fazer-Ciência rumando do todo para as
partes, típico do pensamento moderno, da Ciência fortemente vigente; por outro lado, Netter
conseguiu trazer à luz da Ciência, à luz do Ensino de Ciências, a vivacidade com que a Anatomia se
debruça sobre os cadáveres para melhor compreender o vivo – eis as cores esvaídas da Morte
representando a busca por compreensões acerca da Vida.
2
Vários outros nomes poderiam ser mencionados, como é o caso dos ilustradores norte americanos John Craig e
James A. Perkins, bem como do ilustrador brasileiro Carlos A. G. Machado, cujas obras se encontram associadas à
várias produções-ilustrações anatômicas de Frank Netter.
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Atentando-nos a esse contexto de vivificação do morto, do antes cadavérico, temos que a
obra de Von Hagens também se apresenta como um potencial material didático-pedagógico ao
Ensino de Anatomia. Se as produções de Netter são bidimensionais, eis que a tridimensionalidade
permitida pela plastinação torna mínima a abjeção às entranhas orgânicas, sobretudo pela ausência
de características como odor, viscosidade e temperatura. Outro aspecto ainda pouco considerado se
refere ao uso de tais plastinados no processo de ensino-aprendizagem de pessoas cegas. Uma vez
que o plastinado é feito no/do “corpo-fôrma” que um dia esteve vivo, trata-se de um modelo
bastante fiel à real anatomia humana, o quê possibilita manter preservados desde capilares
sanguíneos até grandes órgãos, bem como toda a estrutura anatômica. Portanto,
contemporaneamente, é através da obra de Gunther von Hagens que a arte-anatomia apresenta-se
com maior confiabilidade: a real anatomia para o ensino3, sensibilizadora de outros sentidos.
No entanto, da mesma maneira que algumas das ilustrações anatômicas históricas puderam
representar melhor ou não tal real anatomia, temos que nem todo plastinado se encontra montado e
disposto como um corpo humano: por enquanto, apenas algumas peças da obra de Von Hagens têm
rompido com a estética anatômica vigente desde o Renascimento, o quê faz a plastinação também
ocupar uma “posição” de tecnociência de avant-garde, a uma Ciência de vanguarda, surreal, talvez.
Corpos plastinados que se abrem feito flor, feito vestes de bailarina, feito sucessão de movimentos
de um atirador de beisebol. Corpos de animais, camelo com pescoço duplamente seccionado
longitudinalmente, girafa cujo corpo está seccionado transversalmente desde as pernas até o crânio,
dentro outras composições. Por fim, se essa morte não viver, a vida pode ser por demasiadamente
criativa!
Agradecimentos
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Graal.
3
Trecho original “the real anatomy for teaching” – como expressado no site da Gubener Plastinate GmbH, loja que
vende materiais didáticos produzidos pela equipe de Gunther Von Hagens.
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