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Revista DIAPHONÍA

Universidade Estadual do Oeste do Paraná – UNIOESTE


Programa de Educação Tutorial – PET

Grupo PET Filosofia

Revista DIAPHONÍA

Volume 5 Número 1 2019 e-ISSN 2446-7413


A Revista DIAPHONÍA constitui um periódico promovido pelo PET [Programa de
Educação Tutorial] do Curso de Filosofia da UNIOESTE em que se privilegia a
produção de textos escritos por estudantes de graduação, acadêmicos bolsistas,
egressos, tutores ou demais pesquisadores afetos às atividades do Programa tanto
em nível local quanto nacional. Sua principal peculiaridade é o fomento e a difusão
de textos que espelhem o processo de formação de seus autores, tendo como meta
estimular a interlocução entre pares, numa perspectiva indissolúvel entre o ensino, a
pesquisa e a extensão na área de Filosofia.

Apoio:
Grupo PET Filosofia 2019/1º Semestre

Ester Maria Dreher Heuser (tutora)


Luciano Carlos Utteich (tutor)
Carina Eduarda Kozera
Caroline de Paula Bueno
Daniel Du Sagrado Barreto Daluz
Elvio Camilo Crestani
Ewerton Proença dos Santos
Fabio Gabriel Semençato
Fernando Alves Grumicker
Felipe Belin
Giullya Schuster De Almeida
Gustavo Henrique Martins
Lucas dos Santos
Rafaela Ortiz de Salles
Editor Científico Geral

Prof. Dr. Claudinei Aparecido de Freitas da Silva (UNIOESTE)

Conselho Editorial

Prof. Dr. Bernardo A. M. Sakamoto (UNIOESTE)


Profª Dtdª. Célia Machado Benvenho (UNIOESTE)
Prof. Dr. César Augusto Battisti (UNIOESTE)
Prof. Dr. Claudinei Aparecido de Freitas da Silva (UNIOESTE)
Prof. Dr. Douglas Antonio Bassani (UNIOESTE)
Profª Drª Ester Maria Dreher Heuser (UNIOESTE)
Prof. Dr. Gilmar Henrique da Conceição (UNIOESTE)
Prof. Dr. Jadir Antunes (UNIOESTE)
Prof. Dr. José Francisco de Assis Dias (UNIOESTE)
Prof. Dr. João Antônio Ferrer Guimarães (UNIOESTE)
Prof. Dr. José Atílio Pires da Silveira (UNIOESTE)
Prof. Dr. José Luiz Ames (UNIOESTE)
Prof. Dr. Libanio Cardoso (UNIOESTE)
Pro. Dtdo. Luís César Yanzer Portela (UNIOESTE)
Prof. Dr. Luciano Carlos Utteich (UNIOESTE)
Prof. Dr. Marcelo do Amaral Penna-Forte (UNIOESTE)
Profª Drª Nelsi Kistemacher Welter (UNIOESTE)
Prof. Me. Pedro Gambim (UNIOESTE)
Prof. Dr. Remi Schorn (UNIOESTE)
Prof. Dtdo. Ricardo José Perin (UNIOESTE)
Prof. Dr. Roberto S. Kahlmeyer-Mertens (UNIOESTE)
Prof. Dr. Rosalvo Schütz (UNIOESTE)
Prof. Dr. Tarcilio Ciotta (UNIOESTE)
Profª Drª Vanessa Furtado Fontana (UNIOESTE)
Prof. Dr. Wilson Antonio Frezzatti Jr (UNIOESTE)

Conselho Científico

Prof. Dr. Arlei de Espíndola (UEL)


Prof. Dr. Cristiano Perius (UEM)
Prof. Dr. Edgard Vinicius Cacho Zanette (UERR)
Prof. Dr. Ernildo Jacob Stein (PUC/RS)
Prof. Dr. Evandro Marcos Leonardi (Instituto Federal de Ciência e Tecnologia do Paraná)
Prof. Dr. Evanildo Costeski (UFC)
Prof. Dr. José Fernandes Weber (UEL)
Prof. Dr. Marcos Érico de Araújo Silva (UERN)
Prof. Dr. Marcos José Müller (UFSC)
Prof. Dr. Martín Grassi (UCA/Argentina)
Profª Drª Mirian Donat (UEL)
Prof. Dr. Ramon Raiffa (Institut Catholique de Toulouse)
Prof. Dr. Sirio Lopez Velasco (FURG)
Profª Drª Solange de Moraes Dejeanne (UNIFRA)
Apresentação

A nona edição (vol. 5. n. 1) da DIAPHONÍA, Revista dos Discentes do Curso de


Filosofia da UNIOESTE, promovida pelo Grupo PET [Programa de Educação
Tutorial], torna público mais um número primado pelo rigor e pela originalidade, ao
marcar, consideravelmente, uma posição qualificada em termos de produtividade de
pesquisa no contexto nacional da área.
Seguindo o seu formato de praxe, a Revista inicia com a Secção Entrevistas,
cujo convidado especial, para essa ocasião, é o Prof. Ricardo José Perin, docente
na UNIOESTE, Campus de Toledo. O Professor Ricardo, psicólogo de formação, é
um dos primeiros formadores do Curso de Filosofia na referida instituição. Ele tem
desenvolvido inúmeras atividades desde os fins da década de 1980 que vão desde
funções de gestão administrativa a atividades acadêmicas.
A Secção Artigos é composta de quinze artigos, como uma contribuição
resultante das pesquisas individuais e/ou coletivas de estudiosos em diferentes
níveis de formação vinculados a várias instituições, além de alguns trabalhos
apresentados no Simpósio de Filosofia Moderna e Contemporânea, em 2018, na
UNIOESTE. O primeiro artigo, de autoria do professor César Augusto Battisti,
intitulado “Considerações sobre o Compendium musicae de Descartes: matemática,
música e a produção de afetos” versa sobre um importante escrito, de 1618, de
Descartes: o Compendium Musicae. Nesse, Battisti examina alguns elementos
comparando-o com aqueles presentes na Geometria, mostrando paralelos
estruturais e semelhanças de natureza epistemológica e metodológica. Trata-se,
enfim, de, em termos cartesianos, compreender o fenômeno musical, sua estrutura,
bem como seus elementos constitutivos. O segundo texto de Danielle Antunes, “O
ensaio no Ensino de Filosofia: um diálogo com Michel de Montaigne” examina, via a
obra do pensador renascentista francês, a relação que se estabelece entre a filosofia e
a educação popular no ensino superior brasileiro, propondo o exercício ensaístico
como uma alternativa para as práticas do ensino de filosofia. Já Juliana Tibério, no
terceiro artigo, “A revolução copernicana de Kant”, avalia o sentido e o alcance da
assim chamada “revolução copernicana” operada por Kant na Crítica da Razão Pura
como uma espécie de divisor de águas no contexto de uma nova teoria do
conhecimento como contraponto crítico da metafísica. No quarto texto, “A
influência das motivações sobre a vontade na filosofia moral de Immanuel Kant”,
Rodrigo Lopes Figueiredo problematiza, numa linha reflexiva kantiana, como é
possível viver exclusivamente segundo móbiles, ignorando (deliberadamente) os
princípios “a priori” de determinação da moralidade? Por sua vez, em quinto lugar,
Angeliana Patrícia de Souza, em “Intuição intelectual de si: breve análise da
crítica de Schelling ao dogmatismo de Espinosa e da aproximação entre dogmatismo
e criticismo”, situa a crítica de Schelling às escolas do dogmatismo e criticismo sobre
a possibilidade humana de alcançar o conhecimento de si na contracorrente do
espinosismo. O artigo sexto, “Essencialismo e crítica social n’ O Crime de Lorde
Arthur Savile de Oscar Wilde”, de Nicole Elouise Avancini, aborda a partir da obra
do escritor inglês certo antiessencialismo, por ilustrar como a realidade é construída
do mesmo modo em que se dá a estruturação da linguagem, isto é, de modo
performativo, além de estar sujeita a interpretações arbitrárias, conforme a
linguística de inspiração saussuriana. “O jovem Nietzsche e as influências de Lange”
é o sétimo artigo no qual Neomar Sandro Mignoni discute a influência da obra de
Lange no jovem Nietzsche enquanto ainda era estudante de Filologia Clássica em
Leipzig, por volta de 1866-68. Já em “Nietzsche e a ética do esquecimento”, Abraão
Lincoln Costa propõe, em oitavo lugar, analisar a tese nietzschiana do
“esquecimento” enquanto força plástica [Plastiche kraft], capaz de libertar o homem
dos sofrimentos decorrentes do excesso de memória. Gracy Kelly Bourscheid
Pereira avalia, no novo artigo, “Nietzsche e a superação do sentimento de culpa em
Humano demasiado humano I”, a abordagem crítica nietzschiana da moral no
Ocidente via conceitos absolutos tendo em vista a superação do sentimento de
culpa. Em “Influências do Capital no agir político”, Rafael Leite Ferreira Cabral
investiga, em décimo lugar, a desmistificação da legitimidade pressuposta do
sistema capitalista e a explicitação de sua lógica exploratória via O Capital de Karl
Marx. O décimo primeiro artigo, “O desenvolvimento e o fracasso do método
sintático carnapiano”, de Pedro Henrique Nogueira Pizzutti, reconstitui o
método sintático de Carnap, para análise da linguagem científica, no The logical
syntax of language e o seu possível fracasso. No décimo segundo texto,
“Befindlichkeit e Stimmung: os afetos na analítica existencial de Martin Heidegger”,
Giovani Augusto dos Santos, a partir da analítica heideggeriana existencial do ser-
aí, inventaria, via os conceitos de Befindlichkeit e Stimmung, uma teoria dos afetos.
Patrícia de Oliveira dos Santos no artigo décimo terceiro, “O estatuto
epistemológico da agroecologia”, disserta sobre o estatuto epistemológico da
agroecologia tendo por base as contribuições de Hugh Lacey em A controvérsia
sobre os transgênicos: questões científicas e éticas, de 2006. Em “O desentendimento
como característica inerente à democracia”, décimo quarto estudo, Valmir
Gonçalves dos Santos repensa a jovem democracia brasileira via as categorias de
Rancière. Para tanto, o autor visa compreender em que medida o pensador francês
problematiza a existência da política e da democracia, a saber, a lógica do
desentendimento. Por fim, no décimo quinto artigo, “I-moral ou (ir) racional: uma
visão da ciência do normal ou patológico”, Beatriz Cristina Benke, Emerson
Souza dos Santos e Vilmar Malacarne discutem como os portadores de doenças
mentais eram tratados na Grécia e Roma Antiga, na Idade Média e Renascentismo e
a chegada do século XX. Trata-se de uma pesquisa sobre a história dos transtornos
mentais, com abordagem sobre saúde e doença e as definições entre o que era
normal e o patológico das pessoas com problemas de saúde mental.
A Secção Escritos com Prazer está composta por escritos em primeira
pessoa de duas professoras que tornaram públicas suas perspectivas em eventos
universitários que participamos e que nós, editores da Revista DIAPHONÍA,
avaliamos que merecem ser publicizados para um grande número de pessoas pela
importância e atualidade de suas temáticas. O primeiro foi apresentado na
conferência de encerramento da XXII Semana Acadêmica do Curso de Filosofia da
UNIOESTE pela professora Larisa da Veiga Vieira Bandeira. Seu escrito
transborda prazer desde o título, o qual faz um trocadilho com uma expressão
bíblica, bem como com o título do livro, campeão de vendas, de Érico Veríssimo,
“Olhai os delírios do campus”. Por meio dele, a autora faz um vaivém histórico, traz
algumas experiências estudantis dos chamados “anos de chumbo”, mas para falar do
que é considerado “delírio febril de jovens inquietos nos campus de hoje”, sobretudo
daqueles que “deliram” em fazer filosofia e serem professores dessa disciplina que
está sempre em disputa no campo curricular. Bandeira traz para o interior de seu
texto vozes docentes que nos encorajam a lutar nessa trincheira que é a filosofia,
porque “vivemos tempos duros e precisamos de filósofos, como poucas vezes
precisamos em nossa história”. Luta essa que se dá, também, pela escrita, porque
“escrever faz arder o corpo, para percebermos que mesmo embebidos e enfaixados
nos líquidos e tecidos da morte, ainda estamos tão mais vivos do que jamais
estivemos”. A autora finaliza o texto com uma série de exercícios de escrita que, de
tão instigantes, foram realizados ao final de sua conferência pelos participantes que
desejaram escrever e viveram algo inédito em nossos eventos filosóficos: fizeram fila
para abraçar e agradecer a professora Larisa por esse “delírio” coletivo. O segundo
escrito foi publicizado na abertura do III Encontro Mulheres & Filosofia, da UFMS,
em Campo Grande, por meio do qual Marta Nunes da Costa se põe a pensar “A
mulher como intelectual pública” e propõe uma reflexão acerca dos lugares que as
mulheres ocupam ou não ocupam. Tal tarefa de pensamento é, para ela, além de
uma missão teórica, de quem se ocupa das “mulheres & a filosofia” como problema
de investigação, uma missão enraizada no compromisso de viver em democracia, o
qual implica garantir também à mulher a ocupação da esfera pública. Em seu
exercício de pensar publicamente, Nunes da Costa desafia-nos a olhar para nós
mesmos e nos interrogarmos acerca do modo como recebemos as informações, as
críticas, os conteúdos; observarmos se esse modo varia caso seja homem ou mulher;
e, se sim, avaliarmos por que isso acontece e como transformar. Traz exemplos de
mulheres que agiram como intelectuais públicas, na França e nos Estados Unidos,
por meio do “ato revolucionário de existência para os outros a partir da escrita” e
sugere às mulheres, no Brasil, a tarefa coletiva de refazerem a esfera pública,
cumprindo o seu papel de intelectuais públicas a fim de produzirem sentido à nossa
vida em comum.

Na Secção de Resenha, Fábio Batista discute o recente trabalho Filosofia da


educação: a relação educador-educando e outras questões na perspectiva da educação
ambiental ecomunitarista, de Sirio Lopes Velasco, publicado pela Editora PHILLOS,
de Goiânia, em 2018. Trata-se de mais um propositivo trabalho, fruto das reflexões
do pensador uruguaio radicado no Brasil, aliando, pois, do ponto de vista da filosofia
da educação, a perspectiva crítica do ecomunitarismo, teoria central advogada por
ele.
Em mais uma Secção de Tradução, vem a público, em primeira mão, o texto
Marx, Darwin e a “História crítica da tecnologia” do professor italiano Fabio
Raimondi, versão essa preparada pelo acadêmico de doutorado Douglas Antônio
Fedel Zorzo. No texto, o autor explora as relações entre o pensamento de Marx e o
conhecimento científico (em particular, a técnica) visando, pois, explicitar o sentido
de uma “história crítica da tecnologia”, bem como seus possíveis elos com a Origem
das Espécies de Darwin.
Isso posto, com seu nono número, a Revista emplaca, mais uma vez, seu
espírito formador, plural e dialógico. A todos, um proveitoso experimento de leitura!

Prof. Dr. Claudinei Aparecido de Freitas da Silva


Profª Drª Ester Maria Dreher Heuser
Editores
SUMÁRIO

Entrevistas:
Entrevista com o professor e psicólogo clínico Ricardo José Perin............p. 14
REVISTA DIAPHONÍA

Artigos:
Considerações sobre o Compendium musicae de Descartes: matemática,
música e a produção de afetos......................................................................p. 24
CÉSAR AUGUSTO BATTISTI

O ensaio no Ensino de Filosofia: um diálogo com Michel de Montaigne...p. 35


DANIELLE ANTUNES

A revolução copernicana de Kant.......................................................................p. 43


JULIANA GILO TIBÉRIO

A influência das motivações sobre a vontade na filosofia moral de Immanuel


Kant...............................................................................................................p. 49
RODRIGO LOPES FIGUEIREDO

Intuição intelectual de si: breve análise da crítica de Schelling ao


dogmatismo de Espinosa e da aproximação entre dogmatismo e criticismo
.......................................................................................................................p. 60
ANGELIANA PATRÍCIA DE SOUZA

Essencialismo e crítica social n’ O Crime de Lorde Arthur Savile de Oscar


Wilde..............................................................................................................p. 71
NICOLE ELOUISE AVANCINI

O jovem Nietzsche e as influências de Lange..............................................p. 84


NEOMAR SANDRO MIGNONI

Nietzsche e a ética do esquecimento..........................................................p. 96


ABRAAO LINCOLN COSTA

Nietzsche e a superação do sentimento de culpa em Humano demasiado


humano I............................................................................................................p. 104
GRACY KELLY BOURSCHEID PEREIRA

Influências do Capital no agir político.......................................................p. 113


RAFAEL LEITE FERREIRA CABRAL

O desenvolvimento e o fracasso do método sintático carnapiano...........p. 121


PEDRO HENRIQUE NOGUEIRA PIZZUTTI

Befindlichkeit e Stimmung: Os afetos na analítica existencial de Martin


Heidegger....................................................................................................p. 130
GIOVANI AUGUSTO DOS SANTOS

O estatuto epistemológico da agroecologia ...................................................p. 138


PATRÍCIA DE OLIVEIRA DOS SANTOS
O desentendimento como característica inerente à democracia...............p. 149
VALMIR GONÇALEZ DOS SANTOS

I-moral ou (ir) racional: uma visão da ciência do normal ou patológico..p. 160


BEATRIZ CRISTINA BENKE, EMERSON SOUZA DOS SANTOS e VILMAR MALACARNE
Escritos com prazer:
Olhai os delírios do Campus.......................................................................p. 168
LARISA DA VEIGA VIEIRA BANDEIRA

A mulher como intelectual pública............................................................p. 175


MARTA NUNES DA COSTA

Resenhas:
Filosofia da Educação.......................................... ................................................p. 182
FÁBIO BATISTA

Traduções:
Marx, Darwin e a “História crítica da tecnologia”......................................p. 187
FABIO RAIMONDI
ENTREVISTA – DIAPHONÍA – v. 5, n. 1 – 2019

Nesse primeiro número da Diaphonía, em 2019, a Revista entrevista o Professor


e Psicólogo Clínico Ricardo José Perin do Curso de Graduação em Filosofia da
UNIOESTE. A Revista, desde já, agradece o aceite do convite pela participação
especial nessa edição.
D [Diaphonia]
RJP [Ricardo José Perin]

D – O senhor poderia reconstituir um pouco sobre sua biografia, formação e o


que motivou o interesse pela Filosofia?
RJP – Inicialmente agradeço a revista Diaphonía, representada na pessoa do
amigo e colega Dr. Claudinei Aparecido de Freitas da Silva, pelo gentil convite a esta
entrevista. Esta provocação de reconstituir uma biografia e, portanto, falar na
primeira pessoa me permite evocar uma história de um percurso de formação. Fazer
uma espécie de percurso biográfico sobre a origem do interesse por um determinado
tema, no caso, aqui, Filosofia articulada à Psicologia, sempre nos coloca frente a
uma escolha de caminho a ser percorrido.
Partirei da minha posição de psicólogo e de professor, caminhando em uma
direção regressiva para, em uma perspectiva temporal, apresentar um
entrelaçamento entre passado, presente e futuro. Através deste percurso temporal
pretendo apresentar o delineamento da constituição da força motivadora, sempre
presente na busca de cada ser humano, a partir das situações concretas e que
definem a estrutura de uma formação. Porém, essa estruturação nem sempre se dá
em um plano consciente, pois somos seres perpassados pelo desejo. Talvez uma
oportunidade como esta permita adentrar um pouco no desafio hermenêutico, pois,
se cada um de nós é portador de sua mensagem, o debruçar-se sobre o passado para
interpretar os fatos históricos que nos circundaram realizar tal desafio, permite-nos
um certo entendimento do presente.
Comecei minha experiência de trabalho, por volta dos treze anos, como
aprendiz de relojoeiro. Aos quinze, já consertava relógios. Foi o início do debruçar-
se sobre a importância do movimento do tempo, tanto do ponto de vista objetivo
quanto do ponto de vista da constituição da subjetividade. O contato com a
dinâmica de funcionamento do mecanismo do instrumento que marca o tempo
proporcionou-me a primeira experiência com a dimensão da precisão. A palavra
precisão, aqui, tem um duplo sentido. Um primeiro sentido é o de exatidão,
pontualidade. Há um jogo de palavras que sempre me acompanhou, mas que tomei
conhecimento por ser relojoeiro, e que só hoje consigo atinar a sabedoria nas suas
entranhas: “Relógio que atrasa não adianta”. Aí está presente o primeiro sentido de

Diaphonía, e-ISSN 2446-7413, v. 5, n. 1, 2019


REVISTA DIAPHONÍA

precisão, a pontualidade. O segundo sentido de precisão é o de coisa útil, aquilo que


é necessário ao homem. No caso, trata-se da importância deste instrumento marcar
a hora certa, o tempo correto, pois, do contrário, não tem serventia para a
orientação do ser humano. Hoje sei, como psicólogo, o quanto a existência é um
movimento no tempo e do tempo e que, a forma de cada um situar-se nele e de
orientar-se por ele, pode engendrar conflitos que determinam as mais diferentes
psicopatologias.
Retornando às experiências com a máquina do tempo, devo dizer que,
conjuntamente com a incipiente prática profissional, tomei contato com a teoria do
funcionamento da mecânica, através da mecânica de Newton, nas aulas de Física do
primeiro ano do ensino médio. Com isto, tive a oportunidade de vislumbrar a
articulação entre a teoria e a prática. O conhecimento científico me permitiu
entender, de maneira objetiva, que o segredo que habitava aquela sequência de
engrenagens que produzia um coração oscilatório e proporcionador de precisão, era
fruto de um cálculo preciso. Esse vislumbrar, esse ver mecânico-fenomenológico da
articulação teoria-prática me permitiu perceber o quanto isso era fundamental no
processo da aprendizagem, sendo uma das grandes contribuições para orientar a
minha prática de futuro professor. Também é importante ressaltar que, para
aprender a profissão de relojoeiro, foi necessária uma observação atenta da ação de
outra pessoa que possuía experiência e conhecimento sobre o assunto. Isso 15
evidencia a importância da presença do outro, enquanto fonte de imitação, no
processo de aprendizagem. Fato que, evidentemente, só fui me dar conta ao me
defrontar com as teorias de aprendizagem e do desenvolvimento. Dentre as várias
teorias é importante destacar a epistemologia genética de Jean Piaget, pois ela tem
na ação um dos pontos centrais no processo de aprendizagem e, sobretudo, no
desenvolvimento da construção do ser humano.
Provavelmente por ter sido um observador atento para entender o
funcionamento do mecanismo marcador do tempo e, ao mesmo tempo, deslocando
essa atenção às aulas de Física para entender a mecânica no sentido teórico-prático,
foi o que levou meu professor de Física, José Zanchettin, a convidar-me para
substituí-lo nas aulas do primeiro científico noturno. Assim, em 01 de setembro de
1973, comecei minha atividade de professor, tendo apenas concluído o ensino
médio.
O aprendizado proporcionado pela profissão de relojoeiro, colocando-me em
contato com a mecânica, com a precisão e com o cálculo, juntamente com a
experiência de professor de Física, formou um amálgama propício para a escolha do
curso de Engenharia Civil. Em 1974, ingressei no curso de Engenharia Civil da UEM.
Desta forma, principiou a segunda experiência com a dimensão da precisão e do
cálculo, introduzindo-me mais profundamente no horizonte da objetividade.

Diaphonía, e-ISSN 2446-7413, v. 5, n. 1. 2019


ENTREVISTA – REVISTA DIAPHONÍA – v. 5, n.1, 2019

Em Maringá, tive a oportunidade de continuar a atividade de professor,


enquanto cursava a Engenharia, em uma escola católica. Nesse ambiente, começou a
desvelar-se uma nova perspectiva, a partir da religião, abrindo a possibilidade para
pensar um horizonte para além da ótica da objetividade. É o momento de uma
conversão, permitindo o insinuar-se da subjetividade pelo viés da religiosidade.
Aliás, talvez esse tenha sido o momento de um ressurgir de valores, já inculcados
através da educação religiosa familiar. Poderia arriscar a dizer que algumas pessoas
fazem a experiência da religião já nos primeiros meses de vida, pois juntamente com
o leite materno vai se incorporando a semente da religião. Essa ideia quer expressar
a importância do vínculo materno na constituição das aspirações (boulesis) futuras
da cria humana, pois a mãe é a figura fundamental para introduzir o ser humano na
vivência amorosa que nos compromete com a alteridade. Em uma linguagem
psicanalítica, trata-se do processo de constituição do desejo.
É no bojo deste movimento, em uma dialética existencial objetividade-
subjetividade, que se engendrou a perspectiva vocacional religiosa que me fez
abandonar o curso de Engenharia Civil e optar pelo ingresso na Companhia de Jesus,
mais conhecida como os jesuítas. Foi por meio desse percurso que se abriram as
portas para o encontro com a Filosofia, pois ela faz parte da formação do jesuíta. Foi
esse processo conversivo que permitiu a transição de uma perspectiva de mundo
centrada na objetividade, para uma perspectiva em que o fluir da vida se torna o 16
verdadeiro objeto de observação (physis). Portanto, as certezas objetivas se
transmutam em possibilidades para possibilidades que albergam o mais próprio do
viver humano de cada sujeito, como diria Gilvan Fogel lembrando Kierkegaard. Pois,
como já disse o poeta: navegar é preciso; ora, viver não é preciso.
A perspectiva cristã do mundo tem em si uma forma própria de viver a
dimensão da temporalidade. É um tempo em que o presente nos compromete com
um modo de ser, remetendo-nos, pelo vínculo do amor, a uma forma de relação com
a alteridade, objetivando a construção de um mundo comum que se realiza
plenamente num além. É o horizonte escatológico. Essa perspectiva do fluir da vida
cristã permite a possibilidade da realização de si, perpassada pela realização do
outro e com o outro, num compromisso mútuo de amor, cujo modelo está na
relação trinitária. Portanto, essa ótica abre a possibilidade de constituição de várias
formas de vínculos nas relações humanas. A vida religiosa vocacional se coloca de
tal forma, que a relação com a alteridade tem uma perspectiva de amor muito
peculiar, exigindo um amor exclusivo, o celibato. Nessa exclusividade, a
possibilidade de vínculo amoroso com uma única pessoa é transmutada para o
vínculo com a humanidade, exigindo, de quem opta pela vocação religiosa, uma
dimensão sublimatória da afetividade. A renúncia dessa possibilidade de realização
humana exige, do vocacionado, remeter ao fim dos tempos uma certa completude
de realização. Portanto, é uma exigência de um modo de existir temporal desafiador.

Diaphonía, e-ISSN 2446-7413, v. 5, n. 1, 2019


REVISTA DIAPHONÍA

Após quase três anos e meio de vida religiosa percebi que não daria conta de
suportar tal desafio. É o momento de uma desconversão, mas, ao mesmo tempo, de
uma nova conversão. Desta experiência de compromisso com a alteridade,
proporcionada pela vida religiosa, brotou uma nova possibilidade de envio ao
acolhimento do outro, a Psicologia.
Assim, em agosto de 1982, iniciei o curso de psicologia na UEM. Retomei
minha atividade de professor, no mesmo colégio católico em que havia lecionado
matemática, topografia, desenho arquitetônico e geometria descritiva, agora, porém,
com um horizonte voltado às ciências humanas. Assim, juntamente com a equipe
pedagógica, em 1984, decidimos implantar as disciplinas de Sociologia e Filosofia,
das quais fui professor, provavelmente, sendo uma experiência pioneira à época.
Concluído, em 1988, o curso de Psicologia, me transladei para Toledo, minha
verdadeira terra natal, iniciando a atividade de professor na Facitol.
D – A sua trajetória também é marcada pela formação seminarística
especialmente, pelo contato que teve com a obra de Henrique Cláudio de Lima Vaz
que, aliás, fora seu professor. Que memórias essa relação intelectual lhe trouxe?
RJP – Minha vida no seminário iniciou em 1979, nos jesuítas, em Porto Alegre.
Em 1982 fui para Belo Horizonte para iniciar o curso de Filosofia no Instituto Santo
Inácio, onde se centralizou toda a formação acadêmica jesuítica do Brasil. Para
ingressar na Filosofia, havia um vestibular que constava de uma avaliação escrita e
17
de uma avaliação oral. O avaliador oral era Lima Vaz. Foi este o motivo de meu
primeiro encontro com ele. A Lima Vaz coube a função de fazer a avaliação de todos
os candidatos em conhecimentos gerais. Começamos a avaliação de um modo
informal, através de uma breve história de minha vida antes do ingresso nos
jesuítas. A partir disso, Lima Vaz decidiu que a avaliação versaria sobre conteúdos
referentes aos estudos que já havia feito. Não fez nenhuma pergunta, apenas
conversamos sobre temas ligados à Física e ao cálculo. Na medida em que a
conversa transcorria, fui percebendo a grandeza da sabedoria daquela figura
humana, aparentemente frágil em seu aspecto. Ele falava de Galileu, de Newton, de
Leibniz de Fourrie com tal propriedade que, em alguns momentos, me produzia a
sensação de ser um principiante. Foi nesse momento que entendi o verdadeiro
sentido do que significa ser filósofo.
Ingressado na Filosofia, tive o privilégio de ter Lima Vaz como professor de
história da filosofia. As suas aulas permitiam fazer uma experiência de viagem no
tempo. Ao falar sobre as origens do pensamento grego como, por exemplo, o eidos
platônico, produzia no ouvinte tal sensação de regressão, a ponto de permitir
imaginar-se um espectador dos jogos olímpicos gregos, para entender o que
significava ver para eles.

Diaphonía, e-ISSN 2446-7413, v. 5, n. 1. 2019


ENTREVISTA – REVISTA DIAPHONÍA – v. 5, n.1, 2019

Outro momento marcante foi uma conversa com Lima Vaz como orientador
de estudos. Disse, em alto e bom som, que para estudar Filosofia seria necessário
saber grego. Acompanhando seu dito me estendeu uma cópia de uma gramática
grega, juntamente com um evangelho de Marcos no original. Guardo com carinho o
evangelho em grego, pois é uma lembrança viva do Pe. Vaz. A ele, devo as poucas
palavras que sei de grego.
Estas são as memórias que guardo de nossa breve convivência, pois saí do
seminário em final de maio de 1982. Portanto, meu contato inicial com a obra de
Lima Vaz se deu mediante a escuta e de alguns textos. Porém, a presença mais
significativa do pensamento do Pe. Vaz ocorreu através do livro Escritos de filosofia
II: ética e cultura. Em 1988, quando estive em Belo Horizonte para participar de um
congresso da CUT, pois era vice-presidente do Sintemar (sindicato dos
trabalhadores em estabelecimentos de ensino de Maringá), ocorreu o último
encontro com o Pe. Vaz. À época fui agraciado, por ele, com o referido livro, que
acabava de ser publicado, acompanhado de uma carinhosa dedicatória. Após
concluir o curso de Psicologia fui fazer uma pós-graduação, na UFPR, em Psicologia
Clínica e Psicanálise. Para fazer o trabalho de conclusão escolhi o tema de Ética e
Psicanálise. O conhecimento da obra de Lima Vaz foi fundamental, pois me
permitiu fazer uma aproximação entre ética e psicanálise. Foi a partir da leitura da
fenomenologia do ethos, desenvolvida por Lima Vaz, que a articulação com a 18
psicanálise se deu. A perspectiva do ethos designando a morada, a casa do homem,
permitiu fazer a aproximação com a psicanálise por intermédio do dito de Freud,
extraído do Compêndio de Psicanálise, de que o ego não é dono nem da própria casa.
Pela ótica apresentada na fenomenologia do ethos, o homem, através do seu agir, é
desafiado a dominar a physis para poder construir seu espaço próprio, sua morada.
Portanto, o ethos brota desse agir constante, manifestando-se nos costumes e nos
hábitos. Isso diz respeito ao comportamento que resulta de uma repetição constante
dos mesmos atos, exigindo do homem um apropriar-se de um modo de ser que o
vincula com a alteridade e, portanto, o vincula ao coletivo. Como dirá Lima Vaz: “O
ethos como costume, ou na sua realidade histórico-social, é princípio e norma dos
atos que irão plasmar o ethos como hábito (ethos-hexis). Há, pois, uma circularidade
entre os três momentos: costume (ethos), ação (práxis), hábito (ethos-hexis), na
medida em que o costume é fonte das ações tidas como éticas e a repetição dessas
ações acaba por plasmar os hábitos”. Há, pois, uma circularidade dialética presente
na relação entre o coletivo e o individual, exigindo de cada indivíduo um
movimento de integração no coletivo para constituir-se como personalidade ética.
Como é sabido, Freud apresenta duas formas da conflitiva existência humana
estruturar o psiquismo; ambas as formas ocorrendo na dinâmica temporal de
convívio com a alteridade. A primeira, em 1900, através da estrutura de
inconsciente-pré-consciente-consciente. A segunda, por volta de 1920, conhecida

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pela trilogia Id – Ego – Superego. Nessa estrutura, a dimensão conflitiva pulsional


ocorre de maneira intersubjetiva e intrapsíquica. Ou seja, a estruturação da
personalidade se constitui pela história dos conflitos na convivência com o outro
(intersubjetiva), bem como em um conflito no interior de si mesmo (intrapsíquico),
na medida em que, a partir do Id, vão se constituindo as instâncias do ego e do
superego, em um processo de desenvolvimento. É no interior desse horizonte
constitutivo que Freud faz emergir a expressão de que o ego não é dono nem da sua
própria casa. Podemos considerar, de maneira abreviada, com o risco de
comprometer a profundidade da questão, que o processo de constituição de um
indivíduo ocorre no interior de uma coletividade, a família. Essa é o espaço
primordial onde emerge o indivíduo, sendo, portanto, jogado em um mundo
cultural permeado de costumes (ethos). No entanto, para viver, em seu sentido mais
pleno, o coexemplo, o mamar, a total dependência do outro cria um vínculo
propicio para, juntamente com a incorporação do alimento, incorporar valores;
portanto, costumes. Assim, por exemplo, para eliminar o alimento, aprendemos a
maneira correta, a maneira costumeira, de usar o penico. Daí resulta a expressão que
transpõe o aprendizado do comportamento repetitivo, de origem biológica, para o
aprendizado do comportamento fundamentado nos costumes: “não vá mijar fora do
penico”. O que significa dizer que nosso agir (práxis) deve adequar-se ao convívio
em comum, ou seja, integrar-se aos costumes (ethos) através da incorporação de
hábitos (ethos-hexis). Trata-se de uma adequação ao mundo familiar, no qual
19
fazemos a emergência; emergência essa enquanto brotar, vir à tona, mas, também,
como contingência. Isso desdobra-se em uma dupla dimensão. Uma consciente e
outra inconsciente. A dimensão consciente constitui a personalidade ética, o sujeito
da razão, pois através da deliberação e da escolha o indivíduo apropria-se (hexis) de
um hábito, integrando-o aos costumes e, possibilitando, dessa forma, a manutenção
da tradição. A dimensão inconsciente constitui o sujeito psíquico, cindido pelo
conflito existencial com a alteridade. Sabemos que Freud apresentou a origem do
inconsciente como fruto de um processo de recalque, a partir de experiências
dolorosas e desprazerosas, vividas em uma situação de abuso. Abuso, aqui, deve ser
entendido como a intromissão de um mundo adulto, já carregado de significados,
do qual a cria humana não tem capacidade de metabolizar. Essa incapacidade de
metabolização dos significantes, nos introduz na experiência de um estrangeiro que
nos invade, possibilitando a emergência do estranhamento e do inquietante. É o
angustiante nos invadindo, o Das Unheimlich freudiano. Esse, porém, é o mundo
concreto e familiar que cada um de nós habita (ethos). Foi isso que levou Freud
dizer que o ego não é dono nem de sua própria casa. Essa é a experiência ética do
sujeito psíquico, introduzindo-o em uma cisão irrecuperável, ocasionada pelo
encontro com o desejo do outro e que nos introduz no desejo que nos habita,
incorporando um outro, transformado em um eu, ou melhor, em um superego ou

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ENTREVISTA – REVISTA DIAPHONÍA – v. 5, n.1, 2019

ideal de ego. Isso nos transforma em um sujeito errante, tal qual Édipo, tendo que ir
ao encontro do seu destino.
Esse breve histórico da articulação entre Psicanálise e Filosofia mostra um
percurso que aconteceu, em grande parte, pelo encontro com o pensamento de
Lima Vaz. E que repercute até hoje, pois, dando continuidade à pós-graduação feita
na UFPR, ainda encontro-me com o desafio de aprofundar tal temática. Para dar
continuidade ao tema, fiz parte do doutorado de Fundamentos y Desarrollos
Psicoanalíticos, na Espanha, e que ficou inconcluso, mas que me permitiu a
obtenção do título de Diploma de Estudios Avanzados, que me concede a formação
de pesquisador na área de conhecimento de Personalidad, Evaluación y Tratamiento
Psicológico. Um título equivalente ao mestrado, pois em alguns países da Europa
tem a denominação de Diploma de Estudos Avançados.
D – O que lhe levou fazer a passagem final pela formação em Psicologia?
RJP – Talvez a palavra conversão seja a mais apropriada para responder esta
pergunta. Como sabemos, ela remete a uma mudança de direção, uma mudança de
caminho. Como falei anteriormente, fui construindo um caminho profissional que
me levou de relojoeiro, entendedor de uma atividade técnica-mecânica, para a
Engenharia, cujo horizonte de ação é a aplicação objetiva do conhecimento. Já a
atividade de professor de Física e Matemática proporcionou a abertura de uma
mudança de direção, aproximando-me da dimensão da subjetividade. Sendo esta
20
atividade praticada no âmbito de uma escola católica, a proximidade com a religião
proporcionou o solo fértil à conversão religiosa, dando uma nova possibilidade de
comprometimento com a subjetividade, agora no interior do seminário. Aqui, a
subjetividade passa a ser significativamente entendida como uma relação com a
alteridade, visando o bem do outro.
No seminário, tive a oportunidade de ler Erich Fromm, psicanalista vinculado
à Escola de Frankfurt. Da leitura de Fromm, fui remetido ao pensamento de Herbert
Marcuse, com quem Fromm rivalizava. O pensamento frankfurtiano abriu as portas
para vislumbrar a articulação entre Filosofia e Psicanálise, através do casamento do
pensamento marxista com o pensamento freudiano. Também tive a oportunidade
de ler a tese doutoral de história de Martin Jay, La imaginación dialéctica. Isso me
permitiu vislumbrar uma primeira perspectiva da psicologia, uma ciência capaz de
ajudar a pensar os conflitos sociais. Assim, quando, em junho de 1982, saí do
seminário, o curso de Psicologia se apresentou como uma nova conversão de
compromisso com a alteridade, agora pautado em um horizonte científico, com uma
possível articulação filosófica, para acolher o sofrimento humano.
D – Conte-nos sobre a sua experiência na UNIOESTE, enquanto instituição,
desde sua fundação até sua consolidação.

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RJP– Ingressei na Unioeste como professor colaborador, em 1989, quando ela


ainda estava a caminho de sua constituição, sendo denominada de Funioeste-
Facitol. Fui convidado a dar aulas em uma disciplina denominada de Problemas
sócio-econômico-culturais contemporâneos, se não me engano, no curso de
Secretariado Executivo Bilingue. Essa disciplina não faz mais parte do programa do
curso, porém sua existência evidencia uma determinada ótica que predominava no
momento da consolidação da universidade. Era, creio, uma perspectiva de pensar o
momento histórico estrutural, articulando-o com o momento histórico conjuntural,
próprio de uma universidade incipiente, procurando voltar-se à sua inserção
regional, pensamento muito presente à época.
Em 1990, ingressei, através de concurso público, como professor de Psicologia.
Na época, o curso de Filosofia tinha a disciplina de Psicologia, fazendo parte da
formação que habilitava o aluno a ser professor desta disciplina no ensino médio.
Todavia, me recordo, isso permitia um diálogo interessante entre a ciência
psicológica e a filosofia, permitindo debater as diferentes aproximações feitas entre
esses dois conhecimentos ao longo da história como, por exemplo, a Escola de
Frankfurt. Hoje a Psicologia se reduziu à psicologia da educação, portanto, o contato
com a Psicologia só e possível ao aluno da licenciatura.
Dentro dos debates de estruturação da universidade, composta por diversos
campus, sempre houve um diálogo sobre as “vocações” de cada um. Nesses diálogos, 21
ficou estabelecido que Toledo, por ser mais voltado à formação das ciências
humanas, na época, abrigaria o curso de Psicologia. Estabelecido o combinado,
abriu-se a inscrição para candidatos ao curso de Psicologia, cabendo a mim o futuro
papel de coordenador do curso. Porém, Roberto Requião, recém eleito governador,
ao assumir o governo em janeiro de 2003, não deu autorização de implantação do
curso de Psicologia, juntamente com outros novos cursos que seriam implantados
em outros campi.
D – O professor também foi coordenador do Curso de Filosofia, na UNIOESTE.
Qual sua posição relativa à disciplina de Filosofia no ensino médio em face da atual
conjuntura nacional? Quais as implicações do ponto de vista das políticas públicas?
RJP – Quando penso no modo como ocorreu a experiência civilizatória do
Ocidente, a partir do mundo grego, tido como o berço da democracia e da Filosofia,
imagino que podemos extrair daí um possível aprendizado. Tomarei como exemplo
o surgir da palavra categoria, pois ela serve como uma espécie de paradigma para
vislumbrar o movimento engendrador da sabedoria grega. Farei isso através de uma
perspectiva etimológico-filológica, bem ao sabor do pensamento de Heidegger.
Segundo a etimologia a palavra categoria deriva de kata agorein, que poderia ser
traduzida conforme a praça, segundo o espaço público, segundo o tribunal, segundo
o mercado público. Enfim, esses possíveis espaços públicos possibilitavam o
encontro dos cidadãos para exercer o agir mais próprio do viver humano, a práxis,

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ENTREVISTA – REVISTA DIAPHONÍA – v. 5, n.1, 2019

segundo Aristóteles. É ela que liga os indivíduos entre si na partilha da palavra e dos
atos que dizem respeito ao viver coletivamente. Portanto, a palavra foi o verdadeiro
instrumento na determinação da construção do entendimento para os rumos
necessários para o convívio em comum. O desafio, no entanto, consiste em suportar
a ambiguidade própria da palavra, pois ela não garante uma univocidade. Assim, o
modo de classificar as coisas necessárias e fundamentais para esse convívio, que é o
mais próprio da palavra categoria, exigia o debate sobre o diferindo para se chegar
ao entendimento. Portanto, a possibilidade de proposição de uma determinada
causa de interesse comum, sustentada através argumentos que, também, segundo
Aristóteles, derivariam de uma retórica, proporcionou esse modo de sabedoria
fundamental que determinou a origem do Ocidente, a partir desse povo agonal, por
excelência.
Decorridos tantos anos dessa experiência originária, hoje encontramos esta
sabedoria fundamental, praticamente reduzida a uma profissão, no espaço público
universitário. Portanto, a universidade passou a ter um papel preponderante para a
formação de filósofos, mas confinada ao espaço de formação de mão-de-obra
profissional. No contexto histórico em que a tecno-ciência, o mundo da técnica,
ocupa a posição de principal produtora de conhecimento, a Filosofia passa a ser
avaliada por esse viés, perdendo, no entendimento da grande maioria, toda a
tradição histórica de produtora de uma sabedoria fundamental para o convívio com 22
o diferindo. Entretanto, é importante que o saber filosófico se faça presente em
outros espaços públicos, principalmente no espaço de expressão da palavra mais
utilizado, as redes sociais, para que a população perceba a sua importância e deixe
de se colocar ao lado de quem, por interesses ideológicos, apresenta uma suposta
visão filosófica, tornando a terra plana.
D – Qual a sua perspectiva para área da Psicologia no país? Que desafios ela
tem pela frente?
RJP – A Psicologia como ciência, desde sua origem, traz em seu interior um
debate que a cinde em várias correntes. Inclusive há aqueles que não a vêm como
um conhecimento científico. Quando se utiliza o critério epistemológico para
dividi-la, tendemos a pensá-la a partir da ótica que a aproxima das ciências naturais,
ou o critério que a aproxima das ciências humanas. Na prática, quando se pensa, por
exemplo, em um tratamento clínico, ouve-se das pessoas que a corrente cognitivo-
comportamental pode ser mais eficaz. O que permeia esse tipo de compreensão é
um entendimento de que o conhecimento das ciências naturais produz mais
resultados. Portanto, a ideia da produção, presente no mundo da técnica, gera esse
tipo de visão que é predominante hoje, sobretudo pela influência do pensamento
tecno-científico, fortemente enraizado no senso comum.
No horizonte das ciências humanas, encontramos, na Psicologia, a perspectiva
hermenêutico-fenomenológica. Nela, a palavra emerge fundamentalmente como a

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via de tratamento dos conflitos existenciais, gerados cotidianamente, e produtores


do sofrimento humano. Os ditos conflitos existenciais devem ser pensados pelo viés
da história. Uma história, constituída pelo temporal, que passa a ter um papel
preponderante. Temporal, aqui, tem uma dupla dimensão. Uma primeira que
remete ao nosso existir no tempo, constituído pelas dimensões de passado, presente
e futuro. É um existir permeado e preenchido pela presença do outro, do qual não
posso desvincular-me na busca de realização de um projeto de vida, tendo como
horizonte a construção de um mundo que alberga um abrigo protetor. O projeto de
vida se abre nas mais diversas possibilidades de constituição de mundo. Por ser a
abertura um espaço de liberdade, existe a possibilidade de presença dos mais
variados projetos, como, por exemplo, o das ciências naturais e ciências humanas.
Dessa maneira, nos deparamos com a segunda forma do temporal, o tempo feio, a
tempestade, o conflito. Assim, nos deparamos com o grande desafio do
entendimento, só possível pela ação mais própria do humano, a palavra, o logos. Aí
está o grande desafio que temos pela frente. Para dar um breve exemplo, tomo a
descoberta do neurônio espelho, feita pelo neurocientista italiano Giacomo
Rizzolatti. Essa descoberta, oriunda da produção científica, própria das ciências
naturais, permitiu ter uma fundamentação para um conceito importante na
Psicologia, a empatia. Como sabemos, a empatia é um processo de identificação em
que o indivíduo se coloca no lugar do outro, tomando por base suas próprias ideias
para compreender o outro. Aquilo que até então era uma especulação pode, a partir
23
dessa descoberta, ser pensada como um fato, pois o neurônio espelho é o neurônio
que permite realizar esse movimento de me colocar no lugar do outro. São
aproximações deste tipo que se tornam fundamentais como, por exemplo, pensar a
origem do autismo não apenas pela forma de relação com o outro e com o ambiente,
mas também a partir de uma falta de tal neurônio. Isso é um exemplo da
importância da articulação entre perspectivas epistemológicas distintas e do desafio
que temos que enfrentar.

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Considerações sobre o Compendium musicae de Descartes: matemática,
música e a produção de afetos
Considerations on Descartes Compendium musicae: mathematics, music and
the production of affections

CÉSAR AUGUSTO BATTISTI1

Resumo: A atual exposição pretende tecer algumas considerações sobre o Compendium


Musicae, obra escrita por Descartes, ainda muito jovem, no final do ano de 1618, há 400
anos. O objetivo é apresentar alguns elementos da obra e compará-la com aqueles presentes
na Geometria, com o intuito de mostrar paralelos estruturais e semelhanças de natureza
epistemológica e metodológica entre elas, bem como evidenciar determinadas
características categoriais utilizadas pelo filósofo com vista à produção da inteligibilidade
(isto é, da racionalidade) dos fenômenos ou problemas estudados. Como segundo
propósito, pretende-se examinar o percurso efetivado por Descartes com vista à
compreensão do fenômeno musical, de sua estrutura e de seus elementos componentes,
começando pela natureza física do som, passando pela estrutura matemática da música
(suas propriedades principais, o tempo e a altura, as relações de maior ou menor
consonância entre as notas), até se constituir em um fenômeno relativo à nossa
sensibilidade e capaz de fazer emergir em nossa alma afetos e paixões variadas. Como
afirma Descartes, o objeto da música é o som, e seu fim é a produção do prazer e a
emergência de afetos no ser humano. Circunscrita à sensibilidade humana, a música deixa
de ser entendida dentro de uma perspectiva cosmológica e ligada à harmonia das esferas
celestes, passando a se configurar como fenômeno relativo à subjetividade humana, ou
melhor, ao seu composto alma-corpo.
Palavras-chave: Descartes. Compendium Musicae. Música. Matemática. Afetos. Prazer.

Abstract: The present exhibition intends to make some considerations on the Compendium
Musicae, written by Descartes, still very young, at the end of the year of 1618, 400 years ago.
The objective is to present some elements of the work and compare it with those present in
Geometry, in order to show structural parallels and similarities of epistemological and
methodological nature between them. All this, besides evidencing certain categorical
characteristics used by the philosopher with a view to the production of the intelligibility
(that is, of the rationality) of the phenomena or problems studied. As a second purpose, we
intend to examine the course carried out by Descartes with a view to understanding the
musical phenomenon, its structure and its component elements. This begins with the
physical nature of sound, passing through the mathematical structure of music (its main
properties, time and height, relations of greater or lesser consonance between notes), until
it becomes a phenomenon related to our sensitivity and capable of to bring about in our
soul different affections and passions. As Descartes says, the object of music is sound, and
its end is the production of pleasure and the emergence of affections in the human being.
Circumscribed to the human sensibility, the music is no longer understood within a
cosmological perspective and linked to the harmony of the celestial spheres, starting to be
configured as a phenomenon relative to human subjectivity, or rather to its soul-body
compound.
Keywords: Descartes. Compendium Musicae. Music. Mathematics. Affections. Pleasure.

1
Professor dos Cursos de Graduação e Pós-Graduação (Stricto sensu) em Filosofia da UNIOESTE. E-
mail: cesar.battisti@hotmail.com.

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BATTISTI, C.

1. Introdução

Minha exposição pretende tecer algumas considerações sobre o Compendium


Musicae (Compêndio de Música), obra escrita por Descartes nos últimos dois meses
do ano de 1618, portanto, há exatos 400 anos.2 O objetivo é aproximar o texto do
Compêndio com o da Geometria (ocasionalmente também com o de outras obras),
publicada em 1637 ao lado do Discurso do Método e dos demais ensaios do método,
a Dióptrica e os Meteoros, com o intuito de mostrar certos paralelos que podem nos
conduzir a determinadas semelhanças de natureza metodológica, de natureza
estrutural e, de um modo geral, a determinadas características em relação às
categorias que o filósofo emprega para produzir a inteligibilidade, se quiserem, a
racionalidade, dos fenômenos ou problemas estudados. Na verdade, muitas dessas
marcas partilhadas por estes textos se encontram em outros momentos do
pensamento cartesiano.
Evidentemente, há uma diferença no estatuto da inteligibilidade subjacente às
duas obras. Como afirma F. De Buzon em sua introdução à tradução francesa do
Compêndio, a noção de inteligibilidade dessa obra é uma “inteligibilidade não
intelectual”, uma inteligibilidade oriunda do âmbito “de um sensível tão articulado
que se manifesta em proporção sem que o espírito necessite fazer algum esforço de
compreensão” (DESCARTES, 1987, p. 12), de modo que, apesar de sua natureza
sensível e mesmo pondo certos obstáculos – pelo menos aos guardiões de
25
parâmetros rígidos do racionalismo cartesiano –, ela guarda semelhanças estruturais
com a inteligibilidade matemática e, em geral, com a do âmbito do claro e distinto.3

2. O fenômeno

A primeira marca do Compêndio de Música diz respeito à necessidade de


Descartes nos proporcionar, com precisão, a localização teórico-conceitual do
fenômeno musical. Essa é uma marca metodológica do pensamento cartesiano:
localizar o fenômeno precisamente de modo que isso permita apreender seus
ingredientes e dispensar o que é supérfluo. Podemos aproximar essa perspectiva ao
que afirma a Regra 13 das Regras para a Direcção do Espírito. Afirma o cabeçalho
desta regra:

Se compreendermos perfeitamente uma questão, devemos abstraí-la


de todo o conceito supérfluo, reduzi-la à maior simplicidade e

2
Uma primeira versão desta pesquisa foi apresentada, em outubro de 2018, na XXI Semana de
Filosofia da UFU, promovida pelo Instituto de Filosofia dessa universidade.
3
Para informações sobre o Compendium, sobre sua estrutura e sobre a história do texto, cf. as partes
introdutórias elaboradas por De Buzon à sua tradução (DESCARTES, 1987).

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Considerações sobre o Compendium musicae de Descartes: matemática, música e a produção de
afetos

dividi-la em partes tão pequenas quanto possível, enumerando-as


(DESCARTES, 1985, p. 83).4

Nesse sentido, podemos ver, já desde o início do Compêndio, que a música e


seu objeto, o som, se constituem em um fenômeno cuja complexidade nos revela
uma estrutura composta por três níveis de análise ou por três tipos de ingredientes.
Podemos classificar a estrutura do fenômeno musical como contendo um
componente quantitativo, um componente qualitativo e um outro expressivo.
Em outras palavras, o fenômeno musical é, para Descartes:
(1) um evento acústico (físico-matemático) que
(2) incide sobre nossa sensibilidade, de modo a
(3) incitar na alma a emergência de paixões (fenômeno estético).
Uma vez indicada a composição do fenômeno musical, há ainda um passo
fundamental para a sua determinação. Esse passo diz respeito à materialidade do
fenômeno, na medida em que ele é um fenômeno acústico e, como tal, relativo à
física. Essa materialidade, entretanto, precisa ser ainda mais bem analisada e melhor
descomplexificada. Descartes afirma que deixará de fora a investigação sobre as
qualidades do som, sua materialidade propriamente dita, cabendo aos físicos fazê-la,
incidindo suas investigações sobre a dimensão quantitativa da música; assim, a
música é um fenômeno físico-matemático, mas o que interessa é apenas o aspecto
26
matemático. Não é a materialidade do som que atingirá a alma, mas são, de algum
modo, as relações matemáticas que provocarão nela o surgimento de emoções. A
música propriamente dita não é nem física nem fisiologia: é um fenômeno, embora
Descartes não afirme claramente, é um fenômeno da união alma x corpo.
Aqui, mais uma vez, podemos aproximar esse passo metodológico ao que
afirmam as Regras, em sua Regra 8, quando Descartes trata da anaclástica, um
problema de natureza ótica.

Assim, suponhamos que alguém procura, entregando-se


exclusivamente às Matemáticas, essa linha que em Dióptrica se
chama anaclástica, ou seja, aquela em que os raios paralelos se
refratam de tal forma que todos, depois da refração, têm um só
ponto de intersecção. Facilmente observará, sem dúvida, segundo as
regras quinta e sexta, que a determinação desta linha depende da
relação que os ângulos de refração mantêm com os ângulos de
incidência; mas, como não será capaz de procurar minuciosamente
esta relação, que diz respeito não à Matemática mas à Física, será
forçado a deter-se aqui no limiar. De nada lhe servirá querer
aprender este conhecimento dos Filósofos ou extraí-lo da
experiência, pois pecaria contra a regra terceira. [...]. Se, por outro

4
Poder-se-ia, por sua vez, aproximar essa Regra com os quatro preceitos metodológicos da Segunda
Parte do Discurso do Método.

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BATTISTI, C.

lado, alguém que não se dedique só às Matemáticas, mas que,


segundo a primeira regra, deseje procurar a verdade em tudo
quanto se lhe depare, cair na mesma dificuldade, descobrirá, além
disso, que a relação entre os ângulos de incidência e os ângulos de
refração depende da sua mudança devido à diversidade dos meios;
que, por seu turno, esta mudança depende da maneira como o raio
penetra através de todo o corpo diáfano, e que o conhecimento
desta penetração supõe o conhecimento da natureza da ação da luz;
e que, por fim, para compreender a ação da luz, é preciso saber o
que é em geral uma potência natural: é, em última análise, o que há
de mais absoluto em toda esta série (DESCARTES, 1985, p. 46-47).

Neste exemplo da anaclástica, diz Descartes, caberá ao físico, e não ao


matemático, investigá-la, ao passo que, no caso do fenômeno da música, caberá ao
matemático, e não ao físico, fazê-lo, mas a atitude epistêmica do investigador, em
relação à determinação da natureza do fenômeno em questão, é semelhante.
Assim, do fenômeno musical, enquanto fenômeno físico, são suas relações
matemáticas que importam. E parece dizer Descartes que são tais relações que
devem ter um correspondente estético na alma. As propriedades materiais do som,
por outro lado, não interessam; Descartes deixa essa questão sob a responsabilidade
dos “Physiciens” (DESCARTES, 1987, p. 54). Em razão disso, Descartes não trata do
timbre, dada a sua natureza qualitativa, restringindo-se às duas afeções suscetíveis
de um tratamento matemático, a duração (ou ritmo) e a altura (ou a diferença entre 27
grave e agudo).
Para finalizar o processo de determinação precisa do fenômeno musical, é
necessário assinalar ainda duas coisas. A determinação da estrutura do fenômeno
musical pressupõe a sua desvinculação de dois outros horizontes, os quais
historicamente fizeram parte do estudo do fenômeno.
O primeiro deles é a desvinculação do fenômeno musical de questões místicas
e relacionadas à estrutura do cosmos, como as que dizem respeito à música das
esferas celestes. O segundo diz respeito à não-necessidade de uma discussão
histórica do fenômeno: embora Descartes não desconheça as pesquisas já feitas, elas
devem ser introduzidas, caso necessário, no interior da investigação do fenômeno
propriamente dito. É o fenômeno em sua articulação interna que clama por
elementos que, porventura, já foram investigados por este ou aquele autor.
A primeira marca da investigação cartesiana é a delimitação teórico-conceitual
do fenômeno, e, com isso, a delimitação da realidade mesma do fenômeno. Soma-se
a isso que todo elemento a ser introduzido na investigação deve ser uma exigência
interna das relações existentes no fenômeno estudado. É a dinâmica interna que
comanda a investigação e determina seus elementos componentes. É o próprio
fenômeno a ser investigado, no âmbito de sua estrutura interna, que estabelece ou
determina suas exigências, as quais se encontram nele mesmo, isto é, se encontram

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Considerações sobre o Compendium musicae de Descartes: matemática, música e a produção de
afetos

imersas na complexidade mesma que o constitui, de sorte que estamos a priori


assegurados de que tudo o que é preciso, todos os elementos necessários à sua
inteligibilidade estão aí presentes e devem se deixar manipular e compreender por
nossas capacidades cognitivas.
O correspondente matemático da noção de fenômeno é a noção de problema.
Assim, à localização investigativa de um fenômeno corresponde, por sua vez, a
determinação do lugar e da natureza de um problema investigado. A Geometria se
organiza ao redor dos problemas geométricos concebidos por Descartes (na
verdade, uma retomada da classificação grega, por meio do texto de Pappus) e de
sua divisão em problema planos, sólidos e mais que sólidos. A Geometria se
circunscreve ao redor da resolução dos problemas geométricos, e sua estrutura é
determinada em razão disso, de modo que Descartes abre seu texto falando de todos
os problemas e finaliza sua obra retomando a classificação dos problemas e
afirmando ter resolvido a todos eles.
Na Geometria, é igualmente a lógica interna dos problemas e de sua dinâmica
resolutiva que comandam e determina o que Descartes faz, como faz e seu
direcionamento. Um problema bem determinado contém tudo o que precisa para
ser resolvido: neste caso, trata-se de descobrir as relações resolutivas fundamentais.
É por isso que o procedimento analítico dos geômetras gregos pode pressupor o
problema resolvido e reconhecer que tudo o que a sua resolução exige encontra-se 28
potencialmente presente em sua própria estrutura.
Assim, o plano geral da Geometria consiste na classificação dos problemas em
três tipos, hierarquizados e sucessivos, cada qual exigindo um conjunto de
procedimentos resolutivos. Se o livro 1 da Geometria trata dos problemas planos e o
livro 3 dos problemas sólidos e mais que sólidos, o livro 2 precisou tratar dos meios
(das curvas geométricas) que, dispensáveis na resolução dos planos, são necessários
aos problemas posteriores, mais complexos.
De um modo geral, o processo investigativo para Descartes tem como ponto de
partida seja o fenômeno a ser estudado seja o problema a ser resolvido, ambos
claramente circunscritos e determinados. A estrutura de um fenômeno, como o
musical, tem uma estrutura análogo à de um problema matemático ou a de um
problema ótico como o da anaclástica. Essa é uma marca do pensamento cartesiano,
e ela já aparece em seu primeiro escrito, o Compêndio de Música.

3. Dinâmica geral

Uma vez circunscrita a região do fenômeno a ser estudado, Descartes procede


à investigação dos elementos que o compõem. No caso do fenômeno musical, essa
investigação se guiará pelos três elementos indicados acima: a sua componente

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BATTISTI, C.

estético-expressiva, a sua dimensão sensível e a sua estrutura de natureza


quantitativa.
Além disso, há uma direção privilegiada nessa análise. Como quem analisa
algo, Descartes parte do que é mais evidente e imediatamente dado e vai em direção
aos pressupostos do fenômeno. Em outras palavras, há um movimento regressivo do
fato de que a música nos proporciona o prazer para a busca, por assim dizer, das
suas condições de possibilidade de produção do prazer. Descartes faz um
movimento regressivo que vai do que nos é dado imediatamente pelos sentidos e
pela nossa natureza composta, lugar de produção das paixões, em direção às
capacidades do objeto, do som, responsáveis por produzir ou por colocarem em
movimento o que há de específico na música. Se é o som, vindo do exterior, que nos
proporciona as afecções, o prazer e as paixões, é destas que parte a análise,
retroativamente, para chegarmos às propriedades matemáticas do som,
subentendidas nessa dinâmica que compõe o fenômeno musical.
Nesse sentido, o ponto de partida (a) da investigação cartesiana do fenômeno
musical é o seu fim: o de produzir prazer e o de provocar em nós a emergência de
paixões variadas. Diz o texto de abertura do Compêndio: tratando-se da música, cujo
objeto é o som, “seu fim é o de agradar e o de provocar em nós paixões [afetos]
variadas”. E, em seguida, diz a primeira Observação Preliminar do texto: “Todos os
sentidos são capazes de algum prazer” (DESCARTES, 1987, p. 54).5 29
Ora, só há música, se houver produções de paixões em alguém, em nós. Dado
que essa é a sua finalidade, o que é requerido para que ela se concretize? A música é
proveniente de uma relação entre som e emergência de paixões, sendo o som (vindo
de fora) e as paixões (internas) os seus dois extremos: tudo o que vier a ser analisado
se encontra entre esses dois extremos.
O procedimento cartesiano, embora partindo do fim, se pauta pela observação
dos extremos e pelo preenchimento dos elementos intermediários necessários à
ocorrência do fenômeno. Assim, embora partindo do fim, Descartes mantém sob os
olhos o começo, e busca preencher os espaços intermediários necessários à
construção da inteligibilidade do fenômeno musical.
O segundo passo (b) da análise cartesiana é a indicação da necessidade da
existência de um elemento que possibilite a passagem do objeto físico até nossa
capacidade receptiva desse objeto, ou seja, a necessidade da existência, como afirma
a segunda Observação Preliminar, de “uma certa proporção do objeto com o sentido
mesmo” (DESCARTES, 1987, p. 56) que o capta. Se os sentidos são apropriados à
emergência de paixões, eles exigem relações de proporcionalidade, isto é, de
comensurabilidade, entre o som e a capacidade que o capta, o ouvido.

5
A obra, depois de tratar rapidamente de seu objeto, apresenta oito Observações Preliminares, cuja
importância é fundamental (cf. DESCARTES, 1987, p. 54-59).

Diaphonía, e-ISSN 2446-7413, v. 5, n. 1, 2019


Considerações sobre o Compendium musicae de Descartes: matemática, música e a produção de
afetos

Os sentidos procedem à passagem do quantitativo para o qualitativo. Para isso,


é preciso introduzir um intermediário, algo como um quantitativo sensível. A
proporcionalidade captada pelos sentidos, embora se paute numa proporcionalidade
matemática, não é rigorosamente matemática: ela é uma transposição da
inteligibilidade matemática para uma inteligibilidade sensível. Embora seja difícil
determinar com precisão essa passagem, certo é que os sentidos captam ou aceitam
certas relações de proporcionalidade, assimilando-as. Alguns critérios são dados por
Descartes.
Mas, antes de fornecer tais critérios, talvez vale a pena aproximar esse percurso
de passagem do quantitativo matemático para o quantitativo sensível com uma
passagem do livro 6 da Dióptrica, em que Descartes fala de uma “geometria natural”
(Descartes, 2018, p. 169; AT VI, p.137) como forma de explicar a percepção unificada
de um objeto e a sua distância, tendo em conta a estrutura geométrica da luz e dos
raios envolvido em um fenômeno da visão e sua entrada por cada um dos nossos
olhos. Assim, há uma geometria natural que permite a percepção de relações
quantitativas e de unificação dos diferentes meios percebidos. Talvez possamos
dizer algo análogo do ouvido, dos dois ouvidos: haveria certas relações de
proporcionalidade na música perceptíveis por eles.
Vamos aos critérios dados por Descartes, principalmente nas Observações
Preliminares: 30
1. O objeto não deve ser excessivamente difícil nem excessivamente confuso.
Há uma clareza e distinção própria à sensibilidade correspondente à clareza e
distinção captadas pela luz natural da razão.
2. Objetos mais simples, regulares, constituídos de proporções mais simples
agradam mais à vista, a satisfazem mais plenamente, dado que seus elementos são
percebidos mais facilmente. Assim acontece com o ouvido: percebe-se mais
facilmente um objeto na medida em que a diferença entre suas partes seja menor,
isto é, na medida em que a proporção seja maior. Quanto maior a
proporcionalidade, maior será a semelhança entre os objetos comparados, cujo
limite é a igualdade.
3. Nossa sensibilidade, portanto, é capaz de captar, até certos limites, relações
de proporcionalidade.
4. Tais relações são mais ou menos agradáveis, em razão de o sentido se
satisfazer mais ou menos em função da percepção distinta do objeto. A percepção
mais distinta está ligada à proporção matemática maior. Assim, na produção das
notas musicais, uma oitava é mais agradável e mais fácil de ser captada do que uma
quinta, e uma quinta de uma quarta, dado que a proporção de uma oitava com a
nota base (o uníssono) é maior e mais simples (é de 1:2) do que a da quinta, e a
proporção da quinta é maior e mais simples do que a da quarta.

Diaphonía, e-ISSN 2446-7413, v. 5, n. 1, 2019


BATTISTI, C.

5. A proporção mais fácil e, portanto, a mais adequada para a determinação das


notas é a proporção aritmética, por ser mais simples e por se pautar na divisão em
partes iguais. A proporção aritmética se compõe a partir de uma medida comum, a
unidade, que se repete de uma nota para outra. Ora, diz Descartes, por meio da
proporção aritmética os sentidos não se fadigam e não se saturam excessivamente,
de modo que possam ter uma percepção suficientemente distinta da relação de uma
nota musical com uma outra.
6. Enfim, os objetos dos sentidos que são mais agradáveis à alma não são
aqueles mais facilmente ou mais dificilmente percebidos, mas aqueles que
estabelecem uma equação entre a facilidade perceptiva em relação ao desejo natural
que os sentidos têm para com o objeto, sem que isso provoque a fadiga dos sentidos
ou a sua plena saturação.
Estes são os principais critérios que permitem a transposição de construções
matemáticas para o âmbito da sensibilidade e, a partir daí, a emergência das paixões
relativas ao fenômeno musical.
Dentre os elementos análogos utilizados no Compêndio e na Geometria
podemos destacar os seguintes:
i) Primeiramente, o uso da noção de proporção. A teoria das proporções é
fundamental na Geometria. Aliada ao uso da noção de unidade (e, portanto, a de 31
medida), elas são responsáveis por uma espécie de revolução na ciência geométrica:
elas permitem, nada mais nada menos, do que unificar aritmética e geometria e
sanar o problema da incomensurabilidade de operações geométricas. Havia dois
principais obstáculos relativos à assimilação entre operações aritméticas e operações
geométricas: 1º.) a mudança de dimensão dos objetos resultantes das operações
geométricas e sua limitação à tridimensionalidade do espaço, não havendo sentido
geométrico para expressões acima do cubo; 2) a diferença de natureza entre
magnitudes contínuas (geométricas) e descontínuas (aritméticas). Tais obstáculos
foram resolvidos por Descartes por combinação da introdução da unidade
(proveniente da aritmética) com o uso da teoria das proporções (utilizada na
geometria).
ii) A noção de unidade joga um papel fundamental na Geometria e no
Compêndio. Assim, afirma Descartes no Compêndio, o uníssono não é uma
consonante, mas “se reporta às consonantes como a unidade aos números”
(DESCARTES, 1987, p. 64). O uníssono é a unidade, e as notas consonantes se
originam dele por divisão conforme a proporção aritmética, por meio da “aplicação”
da unidade. O uso da proporção e da noção de unidade, eis o ponto de partida
análogo entre as duas obras.
iii) Disso se origina um terceiro elemento comum entre elas. Tudo o que vem
depois, a partir da unidade e da proporção, se dá por um processo de composição

Diaphonía, e-ISSN 2446-7413, v. 5, n. 1, 2019


Considerações sobre o Compendium musicae de Descartes: matemática, música e a produção de
afetos

regrado. A unidade na Geometria é uma reta assumida como tal, e todos os


problemas geométricos, afirma Descartes, na abertura do Livro 1, não necessitam,
para serem resolvidos, senão do conhecimento do tamanho de algumas retas.
Mesmo as curvas geométricas mais complexas são oriundas da composição de retas
por meio de movimentos regrados redutíveis a um único. Por sua vez, as curvas
mecânicas, ininteligíveis, são compostas por um movimento retilíneo e outro
circular, irreconciliáveis, o que faz com elas não podem ser aceitas. Esse movimento
de composição está analogamente presente no Compêndio. As consonantes musicais
se determinam por composição ou divisão do uníssono, cada vez mais complexas, e
os ritmos mais complexos são redutíveis aos ritmos secundário e ternário, simples,
visto que todos são ou pares ou divisíveis por três.
iv) Assim, há um critério subjacente a todos esses procedimentos, o critério da
simplicidade. Na verdade, são dois critérios na Geometria: o do requisito mínimo e o
da suficiência. No Livro 3 dessa obra, Descartes retoma uma passagem de Pappus
em que este autor se refere a um erro ou pecado cometido pelos matemáticos,
quando resolvem problemas com meios mais complexos que os que são necessários.
Descartes, ao contrário de Pappus, fala de dois erros. São erros resolutivos tanto o
emprego de meios excessivamente complexos quanto o emprego de meios
excessivamente simples. Para evitar o primeiro erro, exige-se que a solução do
problema seja a mais simples possível, e a mais simples é aquela que faz uso da 32
curva mais simples, isto é, da curva cuja equação possui o gênero mais baixo dentre
todas as que correspondem às soluções possíveis. Para evitar o segundo erro, exige-
se que se respeitem os requisitos mínimos impostos pelo problema, sendo esse grau
mínimo intransponível. E, assim, erra-se seja por excesso resolutivo seja por
insuficiência resolutiva, cabendo à entidade “problema” determinar as condições
pelas quais eles são evitados. Esse requisito permite a Descartes, no caso do
Compêndio, determinar que o tempo ou duração são suficientes para haver música,
como é o caso dos instrumentos de percussão, mas que em geral o fenômeno
musical supõe tempo e altura. Tempo em alguns casos, tempo e altura nos demais
são as propriedades do som que preenchem o que é requerido, como mínimo e
suficiente, para a produção do fenômeno musical.
v) Algo semelhante acontece no âmbito da altura das notas musicais. No
primeiro nível, há as consonantes. E, dentro deste, há o uníssono e as consonantes
mais próximas (como a oitava e a quinta) e, depois, as mais distantes, contendo, por
vezes, já algum elemento de dissonância. Em seguida, vêm os intervalos das
dissonantes propriamente ditas.
Assim, aqui também, há a unidade ou a medida comum e, em seguida, os
critérios de composição, de modo que há uma hierarquia dos intervalos musicais
dos mais simples aos mais complexos até o limite das dissonâncias que não são mais

Diaphonía, e-ISSN 2446-7413, v. 5, n. 1, 2019


BATTISTI, C.

toleráveis pelo ouvido. Os objetos musicais se organizam de forma análoga aos


objetos matemáticos, as curvas geométricas e as equações algébricas.

4. Conclusão

Como já dito mais acima, a inteligibilidade do fenômeno musical não é da


mesma natureza que a inteligibilidade das questões matemáticas. Na música, há
uma inteligibilidade não intelectual, uma inteligibilidade sensível.
Apesar da diferença de estatuto da natureza dessas inteligibilidades, há uma
série de expedientes análogos entre as duas obras, o Compêndio e a Geometria, e o
objetivo foi analisar um pouco esta estrutura de compreensão entre elas, algo que
poderia ser levado adiante para as outras partes dos textos.
Outros elementos da obra poderiam ser examinados sob essa perspectiva, mas
os aqui realizados são suficientes para, talvez, fornecer a razão de a tradução
francesa do Compendium Musicae ter sido publicado por N. Poisson, em 1668, ao
lado da Dióptrica e dos Meteoros, como se fosse um ensaio do método (cf.
DESCARTES, 1987, p. 41).

Referências

DE BUZON, F. Science de la nature et théorie musicale chez Isaac Beeckman (1588-1637).


Revue d’histoire des sciences, 38, 2, 1985, p. 97-120.
33
DE BUZON, F. Sympathie et antipathie dans le Compendium Musicae. Archives de
Philosophie, 46, 1983, p. 647-653.
DESCARTES, R. A geometria. In: Discurso do Método & Ensaios. Tradução e notas de César
Augusto Battisti. São Paulo: Ed. Unesp, 2018.
DESCARTES, R. Abregé de musique. Tradução, apresentação e notas de Frédéric de Buzon.
Paris: PUF, 1987.
DESCARTES, R. Compendium musicae. In: Œuvres de Descartes. Edição de Charles Adam e
Paul Tannery. Paris, Vrin, 1996. Vol. X.
DESCARTES, R. Discours de la méthode & Essais. In: Œuvres de Descartes. Edição de
Charles Adam e Paul Tannery. Paris, Vrin, 1996. Vol. VI.
DESCARTES, R. Regras para a direcção do espírito. Tradução de João Gama. Porto: Ed. 70,
1985.
KRANTZ, É. Essai sur l’esthétique de Descartes. Paris: Librairie Félix Alcan, 1898.
PEREIRA, A. Teoria musical e estética no Compendium Musicae de Descartes. Revista
Portuguesa de Musicologia, 6, 1996, p. 99-107.
VAN WYMEERSCH, B. Descartes et l’évolution de l’esthétique musicale. Sprimont (Bélgica):
Bardaga, 1999.
VAN WYMEERSCH, B. L'esthétique musicale de Descartes et le cartésianisme. Revue
Philosophique de Louvain, 4/94, 2, 1996, p. 271-293.

Diaphonía, e-ISSN 2446-7413, v. 5, n. 1, 2019


Considerações sobre o Compendium musicae de Descartes: matemática, música e a produção de
afetos

Submissão: 10.05.2018 / Aceite: 29.11.2018.

34

Diaphonía, e-ISSN 2446-7413, v. 5, n. 1, 2019


O ensaio no Ensino de Filosofia: um diálogo com Michel de Montaigne
The essay on Teaching Philosophy: a dialogue with Michel de Montaigne

DANIELLE ANTUNES1

Resumo: A partir da interpretação da filosofia do ensaio proposta por Montaigne no


Renascimento, enquanto um posicionamento ético e político do autor diante dos modos de
produção dos conhecimentos e das subjetividades no âmbito cultural e pedagógico de seu
tempo, acreditamos ser este posicionamento de grande alcance ainda hoje. Para tanto,
procuramos problematizar a relação que se estabelece entre a filosofia e a educação popular
no ensino superior brasileiro, propondo o exercício ensaístico como uma alternativa para as
práticas do ensino de filosofia. Nossa interpretação visa uma abordagem do conceito de
ensaio em Montaigne a partir de sua compreensão como um método performático de
investigação, formação e criação. Tal procedimento proporciona aos estudantes uma
experiência de ensino-aprendizagem através da escrita muito mais próxima e autêntica.
Palavras-chave: Montaigne. Filosofia. Ensaio. Ensino. Método.

Abstract: From the interpretation of the philosophy of the essay proposed by Montaigne in
the Renaissance, as an ethical and political position of the author before the modes of
production of knowledge and subjectivities in the cultural and pedagogical scope of his
time, we believe that this position is still far reaching today. Therefore, we try to
problematize the relationship established between philosophy and popular education in
Brazilian higher education, proposing the essay exercise as an alternative to the practices of
philosophy teaching. Our interpretation aims at approaching the concept of essay in
Montaigne from its understanding as a performative method or procedure of research,
training and creation, which provides students with a teaching-learning experience through
much closer and authentic writing. Our interpretation aims at approaching the concept of
essay in Montaigne from its understanding as a performatic method of investigation,
training and creation. Such a procedure gives students a teaching-learning experience
through much closer and authentic writing.
Keywords: Montaigne. Philosophy. Test. Teaching. Method.

Os Ensaios de Michel de Montaigne, escritos e publicados no século XVI na


Renascença tardia na França, simbolizam muito mais do que a criação de um gênero
textual ou a reinvenção do ceticismo no alvorecer da Modernidade; eles constituem
o posicionamento ético e político do autor diante dos modos canônicos de produção

1
Doutora em Filosofia pela Universidade Federal de Santa Catarina (2018), mestre em Educação na
linha de pesquisa Filosofia da Educação (2012) e graduada em Filosofia (bacharelado e licenciatura)
pela mesma instituição (2008). Atualmente sou professora adjunta na Universidade Estadual do
Oeste do Paraná (UNIOESTE), campus Foz do Iguaçu e no Centro Universitário Dinâmica das
Cataratas (UDC). Realizei estágio de doutorado (Programa de Doutorado Sanduíche no Exterior -
bolsista CAPES) na Universidade Jean Moulin - Lyon III, na França (2015). Atuei como coordenadora
filosófico-pedagógica no Centro de Filosofia Educação para o Pensar, Florianópolis (2005-2008).
Professora de Filosofia da rede estadual de ensino de SC, no Colégio Militar Feliciano Nunes Pires
(2011 e 2012). Atuei também como tutora da disciplina História da Filosofia Moderna no curso de
Filosofia da UFSC, modalidade EaD (2013.2). Coordenei o Grupo de Leitura dos Ensaios de Montaigne
na UFSC (2016.1). E-mail: daniguassu@gmail.com.

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O ensaio no Ensino de Filosofia: um diálogo com Michel de Montaigne

dos saberes e das subjetividades no âmbito cultural e pedagógico. A descoberta do


indivíduo e da possibilidade da construção do Eu através da escrita, bem como a
abertura que a escritura engendra no entendimento humano para a reorganização
dos saberes sobre si mesmo, sobre o outro e sobre o mundo, configuram uma nova
maneira de conceber a ciência, a filosofia e mesmo a educação. O que fica claro na
leitura dos Ensaios é que os discursos da filosofia e das ciências não possuem
nenhum valor intrínseco, e de nada valem se não servirem para tornar o sujeito que
deles se apropria uma pessoa melhor e mais sensata. Toda ciência, toda filosofia e
toda educação servem para formar o nosso ser, para aprimorar-nos, para que
tenhamos não uma “cabeça bem cheia”, mas uma “cabeça bem-feita” (I, 26, 224)2.
Parafraseando Montaigne, o melhor espelho de todo e qualquer discurso (científico
ou filosófico) é o curso de nossas vidas. Assim ele diz:

[A] Atentamos para as opiniões e o saber dos outros, e isso é tudo. É


preciso fazê-los nossos. Parecemos exatamente alguém que,
precisando de fogo, fosse pedi-lo em casa do vizinho e, encontrando
um belo e grande, lá ficasse a se aquecer, sem mais de lembrar-se de
levar um pouco para sua própria casa. De que nos servirá ter a pança
cheia de comida, se ela não for digerida? Se não se transformar
dentro de nós? Se não nos fizer crescer e fortalecer? (I, 25, 205).

É preciso trazer o fogo do conhecimento para a nossa própria casa, não para
mobiliar a memória, mas para formar o juízo, para nos ensinar a pensar bem e a
36
bem agir, pois, como diz Montaigne, “qualquer outra ciência é prejudicial para
quem não tem a ciência da bondade” (Ibidem, 210). Assim, a dúvida cética presente
no procedimento do ensaio se faz um antídoto contra a autoridade da tradição que,
se repassada como um dogma inquestionável, não faz mais que tornar as “cabeças
estúpidas” (Ibidem, 203). É por este motivo que Montaigne afirma:

[A] Trabalhamos apenas para encher a memória, e deixamos o


entendimento [C] e a consciência [A] vazios. Assim como às vezes
as aves vão em busca do grão e o trazem no bico sem o
experimentar [tâter], para dar o bocado a seus filhotes, assim nossos
pedagogos [pedantes] vão catando a ciência nos livros e mal a
acomodam na beira dos lábios, para simplesmente vomitá-la e
lançá-la ao vento. (Ibidem, 203).

A questão que se põe nos Ensaios, especialmente nos capítulos que abordam a
problemática da educação - mas não apenas nestes -, é a respeito do modo como nos
relacionamos com os saberes: pois se tratados como verdades definitivas incorremos
nas armadilhas do dogmatismo, e, se utilizados apenas para tornar-nos mais
eruditos e sabichões, revestem-nos de hipocrisia e falsidade. É precisamente sobre

2
Adotamos como padrão para referência às citações dos Ensaios de Montaigne a disposição livro,
capítulo, página da edição brasileira, nesta mesma ordem, como por exemplo: (I, 26, 243), onde “I”
corresponde ao livro, “26” ao capítulo e “243” à página da edição brasileira.

Diaphonía, e-ISSN 2446-7413, v. 5, n. 1, 2019


ANTUNES, D.

este aspecto da hipocrisia, relativa aos modos de produção e da apropriação dos


saberes, e consequentemente dos modos de produção das subjetividades, que se
situa boa parte da crítica de Montaigne aos homens de seu século e,
consequentemente, a partir desta mesma crítica que ele irá propor o ensaio como
um método filosófico de investigação e formação, no qual se dispõe a fazer filosofia
em primeira pessoa, exercitando os seus julgamentos sobre todo e qualquer assunto,
e construindo a sua própria subjetividade ao tomar a si mesmo como “objeto” de
investigação e invenção.
O que é o ensaio afinal, e mais precisamente, o que é o ensaio montaigneano?
Quando se fala dos Ensaios de Montaigne costumeiramente a primeira relação que
se faz é com o gênero textual, e não por acaso. Montaigne foi de fato o inventor
deste gênero e o primeiro escritor da história a intitular a sua obra de “Ensaios”,
inaugurando uma nova maneira de escrever que se estenderá por toda a
Modernidade até os dias atuais.
Com efeito, o ensaio é, também, um gênero textual. Mas quando Montaigne
intitula sua obra, ou quando diz que La Boétie escrevia “a maneira de ensaio” (I, 28),
ou ainda quando afirma que se encontra em seus escritos “os ensaios de [suas]
faculdades naturais” (II, 10), os ensaios de seus julgamentos (I, 50 e II, 17) e “um
registro dos ensaios de [sua] vida” (III, 13), percebemos facilmente que se trata de
um conceito muito mais amplo dentro da obra. E como afirma Hugo Friedrich, em 37
Montaigne, “[...] ele [Montaigne] reserva de bom grado ‘ensaio’ (e ‘ensaiar’) para
designar seu método intelectual, seu estilo de vida, sua experiência de si.”
(FRIEDRICH, 1968, p. 354), continuando mais adiante: “[...] Montaigne queria que
seu título [Ensaios] fosse compreendido por referência à ideia de método significada
por ensaio. Não era para ele uma etiqueta literária, como um poeta colocaria sobre
seu livro “As poesias de…” (Ibidem, p. 355-356. Trad. nossa). Sendo assim,
compreendemos o conceito de ensaio em Montaigne como o seu procedimento ou
método filosófico de investigação, formação e criação, o qual se desdobra em uma
dimensão experimental e performática. O método do ensaio, que extravasa as
fronteiras entre ciência e arte, entre a filosofia e a vida cotidiana, abre-nos a
possibilidade da escrita autoral e intuitiva, permitindo que nosso pensamento e
linguagem performe na folha em branco os traços e o estilo da pintura da nossa
própria subjetividade.

Sobre o ensaio como performance

O conceito de ensaio, compreendido como um método que envolve um estilo


de vida e a experiência de si, abarca em sua ação uma forma de viver que se estende
à linguagem, formando com ela uma trama indissolúvel tal como marcas digitais: o
ensaio é expressão e ação, é ato de fala transcrito, é o mostrar fazendo sem precisar
esconder os “bastidores”, ou, ensaiar escrevendo considerando o próprio processo

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O ensaio no Ensino de Filosofia: um diálogo com Michel de Montaigne

como resultado. Desta maneira, podemos considerar o ensaio como uma


performance de um sujeito que para tanto faz uso de tinta, papel e de suas
experiências de vida; é uma miscelânea harmônica das múltiplas ideias, imagens e
palavras expressadas por uma pessoa singular, compostas através do tempo em seu
“registro de duração”, assim diz Montaigne:

[C] Não fiz meu livro mais do que meu livro me fez, livro
consubstancial a seu autor, com uma ocupação própria, parte de
minha vida; não com uma ocupação e finalidades terceiras e alheias,
como todos os outros livros. Terei perdido meu tempo por prestar-
me contas de mim tão continuadamente, tão cuidadosamente? Os
que se repassam apenas em pensamento e oralmente, de passagem,
não se examinam tão essencialmente nem se penetram como quem
faz disso seu estudo, sua obra e seu ofício, quem se propõe a um
registro de duração, com todo seu ânimo, com toda sua força. (II, 18,
498).

O ensaio é uma performance: é um fluxo de pensamentos e sentimentos


multiformes, que se dão na relação entre escritor e escrevência, manifestando em
palavras o movimento da vida. É performático também porque se assemelha ao ato
de esculpir, moldar, dar forma a algo; mas este algo é o si mesmo: a escrita assume
papel de psicografia a fim de dar conhecimento de si para si: é uma escrita oracular -
Παητα ρει - porém profana, é o Eu que revela-se a si mesmo através de seus ensaios: 38
como diz Auerbach, são “auto-ensaios” ou “ensaios consigo mesmo” (AUERBACH,
2004, p. 255). Sendo assim, o ensaio é uma investigação intuitiva, subjetiva e que se
assume enquanto tal, permitindo que venha à tona do papel em branco até os
pensamentos mais “indecisos e, se calhar, opostos”, pois, como se justifica
Montaigne: “ou porque eu seja um outro eu, ou porque capte os objetos por outras
circunstâncias e considerações” (III, 2, 27-28); é o fluxo da subjetividade expressado
e registrado em palavras, algo parecido com o que mais tarde veio se caracterizar em
psicologia e psicanálise como terapia através da fala e a livre associação de ideias, e
na área da criação como brainstorming.
O ensaio é principalmente performático porque, apesar de ser comportamento
restaurado, ele nunca acontece da mesma maneira, seja porque as circunstâncias
sejam outras, seja porque o performer é um outro não apenas a cada sete anos ou a
cada dia, mas é outro a cada minuto, a cada piscar de olhos, como tão bem o definiu
seu inventor, Michel de Montaigne. O ensaio é obliquamente de filiação heraclitiana
e seu lema também é Παητα ρει – o pensamento, a escrita, a vida, o humano, a
natureza – tudo flui.
O ensaio, como queremos caracterizar, é fruto da nossa condição humana
filosofante e comunicativa, sempre considerando a nossa falibilidade; é também
fruto da nossa curiosidade e inquietação, da vontade intermitente de investigar e
desvendar o mundo, fazendo uso da linguagem e do método experimental de

Diaphonía, e-ISSN 2446-7413, v. 5, n. 1, 2019


ANTUNES, D.

tentativa e erro. Muito próximo à poesia, às cartas, aos diálogos, autobiografias,


diários e confissões, embora cada um tenha a sua peculiaridade; o ensaio não está
tão comprometido com o verso e a imagem como na poesia, nem com um
remetente como nas cartas, tampouco em atribuir suas intuições e variações de
perspectivas à personagens à moda dos diálogos; e, apesar de ser uma escrita de si,
não está preso à cronologia como as autobiografias e os diários; sua intenção não é
um relato diário de experiências da vida do escritor ou declarações confessadas em
um momento de reflexão com uma finalidade ascética: ele se assemelha mais a um
passeio descomprometido e sem um rumo pré-determinado, ao acaso de um
pensamento genuinamente filosófico sobre a vida ordinária e, como tal,
cotidianamente escrito. A sua arquitetura é poética: o que a guia não é a estrutura
lógica ou sistemática na apresentação de um problema ou argumento, mas a
vontade, as paixões, fantasias e imaginações apresentadas de forma harmônica
(dentro de sua natureza caótica): é a livre associação de ideias, impressões e
intuições, e não a lógica, o que lhe dá forma, “a primeira frase produz a segunda” (I,
40, 377). Contudo, isto não implica um irracionalismo, mas uma outra poética da
criação e construção filosófica. Um outro paradigma de racionalidade, voltado
especialmente à comunicabilidade humana ao tentar expressar sua condição
mutante, falível e finita, antes que à capacidade lógica, geométrica ou matemática
do entendimento humano.
39
Deixando entrelaçar-se em seu tecido fantasias, paixões e vontades, o ensaio
permite que a humana condição ganhe forma e face, e que possa construir assim
uma pintura mais fiel a si - seja lá o que for o si mesmo, e ainda que nunca idêntico.
Encarar-se e pintar-se em suas contradições e em seus processos pode não formar o
quadro mais belo e perfeito, mas certamente este será mais franco e honesto: e eis o
seu comprometimento com a verdade. A partir da perspectiva do ensaio, o princípio
lógico da não-contradição deixa de ser um princípio para a organização das ideias: é
preciso aceitar as contradições de si para se colocar em estado ensaiador.
É importante ressaltar a temporalidade, ou a experiência temporal (embora
não cronológica) do ensaio, sem previsão esquemática, o ensaio é registro do fluxo
do tempo na imprevisibilidade da vida, o tal “registro de duração” denominado por
Montaigne. Contrário à tentativa de fundamentação de uma explicação, é no
registro da passagem, do transitório, do cambiante e do imprevisto que ele se
desdobra, atua, se inscreve: “Eu não pinto o ser, eu pinto a passagem [...]”. Leiamos
Montaigne:

[B] Os outros formam o homem; eu o narro [récite], e represento


um em particular, bem malformado, e o qual, se tivesse de moldar
novamente, eu faria verdadeiramente outro bem diferente do que é.
Mas agora está feito. Ora, os traços da minha pintura não se
extraviam, embora mudem e diversifiquem-se. O mundo não é mais
que um perene balanço [branloire pérenne]. Nele todas as coisas se

Diaphonía, e-ISSN 2446-7413, v. 5, n. 1, 2019


O ensaio no Ensino de Filosofia: um diálogo com Michel de Montaigne

movimentam sem cessar: a terra, os rochedos do Cáucaso, as


pirâmides do Egito, e tanto com o movimento geral como com o seu
particular. A própria constância não é outra coisa senão um
movimento mais lânguido. Não posso assegurar meu objeto. Ele vai
confuso e cambaleante, com uma embriaguez natural. Pego-o neste
ponto, como ele é, no instante em que me entretenho com ele. Eu
não pinto o ser. Eu pinto a passagem: não a passagem de uma idade
à outra, ou como diz o povo, de sete em sete anos: mas de dia a dia,
de minuto a minuto. É preciso acomodar minha história à hora. Eu
poderei tanto mudar, não de fortuna somente, mas também de
intenção: Este é um registro de diversos e mutáveis acontecimentos,
e de imaginações irresolutas. E quando for o caso, contrárias: Seja
que sou outro eu mesmo: Seja que apreenda os assuntos, por outras
circunstâncias e considerações. Seja como for, pode ser que eu me
contradiga, mas a verdade, como dizia Demades, não a contradigo
não. Se minha alma pudesse prender pé, eu não me ensaiaria, eu me
resolveria: Ela está sempre em aprendizagem e em prova. (III, 2, 27-
28).

Pintar a passagem daquilo que está em movimento constante, à maneira de


ensaio, é tentar narrar aquilo que não pode ser previsto nem fixado, aquilo que é
efêmero e imprevisível e, por isso, deve ser adaptado ao momento presente. O
ensaísta não forma o homem - “Os outros formam o homem[…]” -: ele performa a si
mesmo. Ele percorre, com seu pincel, com sua pena e com seu corpo - “à saltos e
cambalhotas” (III, 9, 315) - o mutável e o inapreensível. Aos fragmentos, camadas e
40
pinceladas, e a cada piscar de olhos, ele pinta seu quadro interminável, ciente da sua
irresolução, mas principalmente, consciente de que tudo é aprendizagem. De que
sua escrita e seus atos são meramente ensaios, e não contratos, como tão bem notou
Nietzsche em seu Assim falou Zaratustra:

Quem pode mandar, quem deve obedecer - isso ali se ensaia! Ah,
com tantas buscas, conjecturas, fracassos, aprendizados e novos
ensaios!
A sociedade humana: é um ensaio, como eu ensino - uma longa
busca: mas ela busca aquele que manda! –
Um ensaio, ó meus irmãos! E não um “contrato”!
Destroçai, destroçai essa palavra dos corações débeis, e meio-isso,
meio-aquilo! (NIETZSCHE, 2011, p. 2013).

Relatar as buscas, as conjecturas, os fracassos (!), enfim, os aprendizados:


relatar sempre novos ensaios! Infinitos ensaios, pois as novas configurações
processuais a cada piscadela, pedem novos ensaios. E quem quiser esmiuçar
engenhosamente as prenhes sugestões que eles trazem, este “produzirá infinitos
ensaios” (I, 40, 374).

O ensaio no ensino de filosofia

Diaphonía, e-ISSN 2446-7413, v. 5, n. 1, 2019


ANTUNES, D.

A relação entre teoria e prática na educação filosófica proposta por Montaigne


pode ser compreendida a partir de um conceito-metáfora: a estamina, que pode ser
traduzida como o crivo do juízo. Tal metáfora faz alusão ao processo de peneiragem
ou de filtragem que o entendimento humano é capaz de operar ao se deparar com
qualquer opinião que a ele se apresente sobre qualquer assunto. Esta peneiragem
consiste no uso do senso crítico do julgamento, o qual opera uma análise dos
argumentos em tal questão, deliberando sobre seu assentimento ou não. Justamente
o que se coloca é a liberdade de escolha do sujeito diante de qualquer que seja a
posição ou argumento que lhe é apresentado, independentemente da força da
autoridade. Para o sujeito que faz uso da sua liberdade judicatória há sempre três
opções de escolha: concordar, não concordar ou permanecer em dúvida. O exercício
dessa faculdade do juízo, de modo livre e autônomo, é o que confere ao sujeito a
formação do seu entendimento. Poder escolher como um exercício de liberdade, a
partir da sua própria subjetividade, é o caminho que proporcionará ao indivíduo a
formação da “cabeça bem feita”. Assim, unir os exemplos da filosofia moral às nossas
próprias ações e deliberações, procurando moldá-las à nossa vida singular, é o que
em Montaigne se pode designar como a pedagogia filosófica do ensaio, pois a
filosofia para Montaigne possui sempre um carácter formativo e propedêutico.
A filosofia dos Ensaios se caracteriza pelo uso que dela podemos fazer, pela
aplicação à nossa própria vida e experiência de si, pois a teoria por si mesma não 41
possui nenhum valor se não puder ser incorporada e assimilada, se não puder
contribuir para nossa formação intelectual e moral e nos tornar pessoas melhores.
Vemos com esta postura crítica de Montaigne a suspensão de um
assentimento imediato face aos conhecimentos livrescos advindos da tradição. É
preciso barrar o curso das ideias caso a elas não assentirmos, ainda que sejam ideias
de Aristóteles, Cícero ou Platão. Porém, se com eles concordarmos, não serão mais
ideias alheias, mas sim as nossas, pois sua validade só se comprova com a sua
assimilação e incorporação em nossas vidas e ações. Ele diz: “Não é segundo Platão
mais do que segundo eu mesmo, já que ele e eu o entendemos e vemos da mesma
forma” (I, 26, 227). Assim, Montaigne alega que a filosofia não é máscara nem uma
cauda de filósofo que o sujeito cola à si mesmo ou que o preceptor cole a seu aluno,
mas é alimento para a alma e para o corpo, alimento que se torna sangue vivo
circulando em nossas veias. Assim, no capítulo Da educação das crianças, ao sugerir
como um preceptor deve conduzir seu aluno, ele diz:

[A] Que ele [o preceptor] o faça passar tudo pelo crivo [l’étamine] e
nada aloje em sua [do aluno] cabeça por simples autoridade e
confiança; que os princípios de Aristóteles não lhe sejam princípios,
não mais que os dos estóicos e epicuristas. Que lhe proponham essa
diversidade de opiniões; ele escolherá se puder; se não, permanecerá
em dúvida. [C] Seguros e convictos há apenas os loucos” (I, 26, 226).

Diaphonía, e-ISSN 2446-7413, v. 5, n. 1, 2019


O ensaio no Ensino de Filosofia: um diálogo com Michel de Montaigne

A filosofia é tratada por Montaigne como formadora de nossos costumes e de


nós mesmos e se trata de uma conversão, de uma modificação no modo de viver, de
ver e pensar, a qual o sujeito que dela faz uso pode alcançar. E a maneira que o autor
a põe em prática é através de seus ensaios, mostrando-nos que é possível partir do
não filosófico rumo ao filosófico, pelas vias de um método discursivo, experimental
e performático, que nos coloca em posição de autores com nossa linguagem
cotidiana, capazes de investigar, de buscar a nossa formação e de darmos forma a
nós mesmos.

Referências

ANTUNES, D. “Par manière d’essai”. Montaigne e a Filosofia do Ensaio. Florianópolis:


Universidade Federal de Santa Catarina, 2018 [Tese de Doutorado].
AUERBACH, E. L’humaine condition. In: Mimesis: a representação da realidade na literatura
ocidental. Vol. 2. São Paulo: Perspectiva, 1971, p. 247-276.
FRIEDRICH, H. Montaigne. Trad. Robert Rovini. Paris: Gallimard, 1968.
MONTAIGNE, M. Os Ensaios. Livro III. Trad. Rosemary Costhek Abílio. São Paulo: Martins
Fontes, 2001.
______. Os Ensaios. livro I. 2. ed. Trad. Rosemary Costhek Abílio, precedido de “um estudo
sobre Montaigne”, de Pierre Villey sob direção e com prefácio de V.-L. Saulnier. São Paulo:
Martins Fontes, 2002.
______. Os Ensaios. Livro II. 2. ed. Trad. Rosemary Costhek Abílio. São Paulo: Martins
42
Fontes, 2006.
NIETZSCHE, F. Assim falou Zaratustra: um livro para todos e para ninguém. Trad. notas e
posfácio Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia das Letras, 2011.

Submissão: 20.10.2018 / Aceite: 30.11.2018.

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A revolução copernicana de Kant
Kant's Copernican Revolution

JULIANA GILO TIBÉRIO1

Resumo: O artigo visa, apenas, situar, sumariamente, o sentido e o alcance da assim


chamada “revolução copernicana” operada por Kant na Crítica da Razão Pura como uma
espécie de divisor de águas no contexto de uma nova teoria do conhecimento como
contraponto crítico da metafisica.
Palavras-chave: Kant. Revolução copernicana. Razão.

Abstract: The article aims only to summarize the meaning and scope of the so - called
“Copernican revolution” operated by Kant in the Critique of Pure Reason as a sort of
watershed in the context of a new theory of knowledge as a critical counterpoint to
metaphysics.
Keywords: Kant. Copernican Revolution. Reason.

Introdução

O presente texto tem por objetivo clarificar como a obra do filósofo alemão
Immanuel Kant foi um divisor de águas para filosofia moderna. Ora, esse divisor
pode bem ser circunscrito por aquilo que ele denomina “revolução copernicana”
operada no nível de uma teoria do conhecimento a partir de uma crítica à
metafísica.
É o que passaremos, sumariamente, em revista, agora.

A revolução copernicana na Crítica da Razão Pura

Na obra Crítica da Razão Pura, especificamente, no prefácio da segunda


edição, Kant apresenta uma “revolução” importante no pensamento filosófico na era
moderna. O que levou Kant a produzir essa “crítica” da razão foi a imprecisão da
metafísica dogmática no trato com todos os assuntos: ele questionou a incerteza de
suas conclusões, o fato de que até então não se estabeleceu se a metafísica “[...] está
ou não no caminho seguro de uma ciência [...]” (KANT, 2015, p. 25, CRP B VII).
No entanto, o filósofo não sugere um novo sistema, mas antes uma mudança
de método: em vez de adequar a razão humana ao objeto, como nas filosofias
anteriores, Kant propõe que o objeto se adeque à razão; este método é inspirado na
chamada revolução copernicana, agora aplicada à filosofia. O termo “revolução
copernicana” vem do cientista da natureza, Copérnico, que propõe a passagem do
antropocentrismo ao heliocentrismo.

1
Graduada em Filosofia pela UNIOESTE. E-mail: juh_ana_gt@hotmail.com.

Diaphonía, e-ISSN 2446-7413, v. 5, n. 1, 2019


A revolução copernicana de Kant

No sentido de remover o objeto do centro das atenções, Kant propõe para a


metafísica alocar o sujeito no centro, fazendo com que os objetos girem à sua volta.
Por essa operação Kant examina com a maior liberdade possível as condições ínsitas
no sujeito, no conjunto das operações por ele previamente executadas, a fim de
constituir as possibilidades do conhecimento dos objetos materiais.
De início, Kant constatou que a matemática e a física haviam seguido um
caminho de sucesso desde seu surgimento; pergunta então por que a metafísica não
teve o mesmo sucesso que a matemática e a física: essas (matemática e a física)
haviam seguido desde cedo essa revolução no modo de pensar, em que o sujeito
ocupa o centro e em que é privilegiada a capacidade de conhecer com relação aos
objetos. Consequentemente, o que levou as ciências em geral a um caminho seguro
e ao progresso foi o elemento racional presente nelas: esse racional vem da forma
(ou das condições de possibilidade) com que o sujeito conhece seu objeto. Diz Kant:

A tarefa principal desta crítica da razão pura especulativa reside


nessa tentativa de modificar o procedimento até hoje adotado na
metafísica, e isso de tal modo que operemos uma verdadeira
revolução da mesma a partir do exemplo dos geômetras e dos
pesquisadores da natureza (KANT, 2015, p. 33, CRP BXXII).

Portanto, com essa inversão de método, em que o objeto se regula pelo sujeito
do ponto de vista tanto sensível (formas puras da sensibilidade) quanto inteligível 44
(conceitos do entendimento), acentua-se a estrutura do conhecimento (do objeto)
como assentada no sujeito. Assim, a obra kantiana critica a tradição, no marco de
um estudo metafísico prévio à proposta da revolução copernicana e em outro estudo
metafísico iniciado a partir dessa revolução: seu objetivo é um projeto na qual se
fundamenta, diz Silva: “[...] qualquer tipo de saber em nível transcendental [...]”
(SILVA, 2016, p. 24). Por isso deixa evidente que a metafísica no sentido tradicional
não alcançou o sucesso que espera-se a essa atual, afirma Kant: “O destino não foi
até agora tão benevolente com a metafísica, um conhecimento especulativo da razão
inteiramente isolado, que se eleva por completo para além dos ensinamentos da
experiência” (KANT, 2015, p. 28, CRP B XIV, grifo do autor), pois, até que a razão se
autoesclareça, será necessário à “ [...] metafísica [...] voltar inúmeras vezes sobre o
caminho, pois se percebe que ela não conduz aonde se quer chegar”(KANT, 2015, p.
29, CRP B XIV). Por isso, conclui ele dizendo: “[...] não há nenhuma dúvida [...] de
que o seu procedimento foi até aqui um tatear às cegas e, o que é pior, um tatear
entre conceitos puros” (KANT, 2015, p. 29, CRP B XV).
A fim de defender a sua perspectiva da razão desde uma investigação pura e
transcendental, dirá Kant (2015, p. 29-30, CRP B XVI):

É preciso verificar pelo menos uma vez, portanto, se não nos


sairemos melhor, nas tarefas da metafísica, assumindo que os
objetos têm de regular-se por nosso conhecimento, o que já se

Diaphonía, e-ISSN 2446-7413, v. 5, n. 1, 2019


TIBÉRIO, J.

coaduna melhor com a possibilidade, aí visada, de um


conhecimento a priori dos mesmos capaz de estabelecer algo sobre
os objetos antes que nos sejam dados.

Quando fala da metafísica, Kant refere-se a um conhecimento especulativo que


ultrapassa a experiência, mas menos no sentido de propor – como na metafísica
tradicional – um conhecimento elevado para além da sensibilidade – do que um
conhecimento das condições puras e a priori que fundamentam todas as estruturas
sensíveis e intelectuais que exprimem a relação necessária de nossos conceitos para
a sua referência objetiva empírica. Daí que essa metafísica se distingue da
tradicional, que é considerada um conhecimento teórico “[...] que procura o seu
objeto fora da experiência mediante simples conceitos, sem se referir nunca a
objetos” (SILVA, 2016, p. 25).
Para exemplo, pode-se utilizar de exemplo a existência de Deus, enquanto um
conceito clássico da metafísica. Isto é, Kant salva os conceitos da metafísica
dogmática (Deus, alma e liberdade) buscando tematizá-los desde essa perspectiva
crítica. Como afirma Silva (2016, p. 25):

Deus consistindo em um conceito vazio em termos de experiência é


um problema que está para além da experiência possível. Ao pensar
na demonstração da existência de um ser supremo, trata-se,
segundo Kant, de meros conceitos para quais nunca se encontrou 45
objetos adequado na experiência.

Embora seus predecessores houvessem tentado tratar teoricamente da


determinação desses conceitos como o de Deus, afirma, segundo Kant a metafísica
deve deixar de ser meramente um campo de batalha, no qual não pode haver
vencedor ou perdedor. Pois, para cada um (diríamos: para cada abordagem
unilateral, ou meramente racional, ou meramente empírica), não se pode conceder a
verdade. Por isso, enquanto mantida a metafísica como esse campo de batalha, a
disputa só tinha por caminho fazer voltar inúmeras vezes para rever o seu
fundamento. Afirma Kant (2015, p. 29, CRP B XIV-BXV):

[...] no que diz respeito à unanimidade de seus defensores nas


afirmações que fazem, ela [metafísica] está tão longe disso que mais
parece um campo de batalha, um campo destinado a exercitar as
forças em jogos de combate, mas onde até hoje nenhum
combatente conseguiu conquistar o menos lugar para si, nem
fundar uma posse duradoura a partir de uma vitória.

Nota-se que a metafísica tateou conceitos vazios, que não possuem referência
à natureza (matéria empírica). Mas a questão central a investigação kantiana busca
elucidar é a seguinte; diz: Silva “[...] como pode a metafísica ser o campo de maior
interesse da razão e mesmo assim ela nunca conseguir provar uma verdade sequer?”
(SILVA, 2016, p. 27).

Diaphonía, e-ISSN 2446-7413, v. 5, n. 1, 2019


A revolução copernicana de Kant

A resposta a isso se ligada ao fato de que a metafísica para Kant aponta para
um horizonte de maior complexidade do que se supunha. Em vez de ela apontar
somente para a possibilidade de um conhecimento verdadeiro, Kant descobre nela a
tarefa mais ampla de conceber a distinção entre “conhecer” – o fenômeno (o que se
mostra) – e “pensar” – o númeno (o que não se mostra, mas é um dever pensar). É
desde a inversão de perspectiva, relativo à metafísica dogmática, que Kant dá os
primeiros passos para resolver essa questão. A saber, através da revolução
copernicana aplicada na filosofia.
O modelo da metafísica tradicional mostrava a razão como dependente de
uma objetividade previamente admitida, pela qual o sujeito devia se orientar, tanto
do ponto de vista dos sentidos quanto dos conceitos. Daí que devia ser conduzida a
inversão de lugar do objeto e do sujeito: se na metafísica tradicional o sujeito se
regulava pela natureza do objeto – onde a razão se mostra como meramente
receptora e em nada autora da experiência cognitiva –, para Kant o sujeito deve
assumir o lugar central na constituição do conhecimento e da experiência. Observa
ele:

É preciso verificar pelo menos uma vez, portanto, se não nos


sairemos melhor, nas tarefas da metafísica, assumindo que os
objetos têm de regular-se por nosso conhecimento, o que já se
coaduna melhor com a possibilidade, aí visada, de um
conhecimento a priori dos mesmos capaz de estabelecer algo sobre
46
os objetos antes que nos sejam dados (KANT, 2015, p. 29-30, CRP, B
XIV).

Nessa direção se propõe que todo conhecimento deve se regular pela


natureza do sujeito (de suas estruturas e faculdades puras a priori), de modo a
considera a precedência disso que jaz a priori como elemento exclusivo da razão,
com cuja explicação se obtém mais facilmente elucidar a possibilidade de um
conhecimento de objetos.
Daí se mostrar insustentável a tese da realidade em si das coisas,
independentemente de o sujeito ser afetado por elas; antes, assenta nas regras que
constituem as faculdades subjetivas as condições para se pronunciar sobre o
conhecimento objetivo. Nesse sentido a noção mesma de objeto de conhecimento é
constituída pela razão e deve sê-lo. Por exemplo: a intuição2 da sensibilidade
percebe os objetos que aparecem no espaço e no tempo 3 e produz sensações
relativas à representação dos mesmos. Dessa forma o mundo é conhecido através da
sensibilidade e não como ele é (ou possa ser) em si mesmo.

Considerações finais

2
A intuição é a capacidade de perceber os objetos pelos sentidos.
3
O espaço e o tempo são formas puras a priori do sujeito.

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TIBÉRIO, J.

Quando fala em revolução copernicana, Kant remete por analogia à teoria de


Copérnico, não havendo a necessidade de compreender totalmente o geocentrismo
ou o heliocentrismo. O que o filósofo alemão faz é então aplicar essa mudança de
método para alcançar o que até agora não havia sido obtido pela metafísica, a saber,
elucidar os limites da razão no conhecimento e no pensamento.
Se até então a metafísica fora um simples tatear às cegas, sem conseguir
explicar nem mesmo seus principais conceitos (Deus, alma, liberdade), com Kant
volta-se para o sujeito para estabelecer a partir dele o verdadeiro método da
metafísica. Como diz Silva:

Através da revolução proposta por Kant será possível à compreensão


de que as formas dos objetos não estão nos próprios objetos, mas
são elas contribuições da razão para a constituição do objeto. Em
outros termos, o mundo é percebido pelos sentidos não é como ele é
em si mesmo, mas como o homem o representa a partir da estrutura
formal da sua mente, das suas capacidades (SILVIA, 2016, p. 34).

Em vista disso, por essa ruptura com a tradição filosófica, a razão


transcendental vem mostrar a sua autonomia com respeito à constituição do terreno
da experiência e de sua fundação a partir do conhecimento a priori4, visto que,
afirma Silva, “[...] a razão só reconhece o formal que é dela mesma segundo a qual
ela organiza tanto os objetos quanto os conceitos, quantos a sua própria natureza” 47
(SILVA, 2016, p. 34).
Destarte, a razão se regula a ela mesma e não ao objeto, encontrando por isso
um caminho seguro para a metafísica. Observa o filósofo alemão:

No que diz respeito à primeira parte da metafísica, em que ela se


ocupa de conceitos a priori para os quais podem ser dados na
experiência os objetos correspondentes, essa tentativa é tão bem-
sucedida quando poderíamos esperar e promete a metafísica o
caminho seguro de uma ciência (KANT, 2015, p. 31, CRP B XVIII-
BXIX).

Conclui-se assim reafirmando o papel decisivo da revolução copernicana à


história da filosofia moderna pelo esclarecimento proporcionado aos objetivos da
razão.

Referências

KANT, I. Crítica da Razão Pura. Tradução e notas de Fernando Costa Mattos. 4. ed.
Petrópolis, RJ: Vozes; Bragança Paulista, SP: Universitária São Francisco, 2015. (Coleção
Pensamento Humano)

4
A priori é todo o conhecimento que antecede toda a experiência.

Diaphonía, e-ISSN 2446-7413, v. 5, n. 1, 2019


A revolução copernicana de Kant

SILVA, F. A. “A revolução copernicana na filosofia de Kant: breves considerações a partir do


Prefácio da segunda edição da Crítica da razão pura”, in: Enciclopédia: revista de filosofia, v.
6, p. 22-35, 2016.

Submissão: 30.08.2018 / Aceite: 20.10.2018.

48

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A influência das motivações sobre a vontade na filosofia moral de Immanuel
Kant
The influence of motivations on will in Immanuel Kant's moral philosophy

RODRIGO LOPES FIGUEIREDO1

Resumo: As motivações que influenciam a vontade humana, submetida às condições


advindas da sensibilidade é o foco de nossa pesquisa. A questão que nos interpela neste
sentido é a seguinte: como é possível viver exclusivamente segundo móbiles, ignorando
(deliberadamente) os princípios “a priori” de determinação da moralidade? Nosso objetivo
geral consiste, portanto, em entender porque Kant desqualifica todo e qualquer objeto
sensível e condição subjetiva e/ou objetiva relativa à experiência, quando estes influenciam
a vontade do sujeito moral e o objetivo específico. Trata-se, ainda, de compreender em que
medida o querer racional, quando misturado aos móbiles, constitui uma vontade incapaz de
reconhecer dignidade em si e nos outros.
Palavras-chave: Motivação. Vontade. Condição. Felicidade. Lei moral.

Abstract: The motivations that influence the human will, submitted to the conditions
coming from the sensibility is the focus of our research. The question that challenges us in
this sense is: how is it possible to live exclusively by mobiles, ignoring (deliberately) the "a
priori" principles of determination of morality? Our general objective, therefore, is to
understand why Kant disqualifies any and all subjective objects and subjective and / or
objective conditions relative to experience when they influence the will of the moral subject
and the specific objective. It is also a question of understanding to what extent the rational
will, when mixed with the mobiles, constitutes a will incapable of recognizing dignity in
itself and in others.
Keywords: Motivation. Will. Condition. Happiness. Moral law.

Kant e a influência das motivações sobre a vontade na filosofia moral

O presente trabalho é uma partilha de estudos sobre o papel das inclinações


naturais na filosofia moral de Immanuel Kant, tendo em vista a redação do primeiro
capítulo de minha dissertação intitulado “Das motivações determinantes do agir
moral em Kant”. Nossa reflexão parte das obras “Fundamentação da metafísica dos
costumes” (1785) e “A religião nos limites da simples razão” (1793) escoltadas pelas
demais publicações presentes nas referências situadas ao final.
Antes de iniciarmos nossa reflexão sobre o problema em questão é pertinente
dizer que, segundo Kant, a sensibilidade (faculdade humana que dá suporte de
apreensão e expressão das qualidades sensíveis) é entendida numa espécie de
passividade, cuja função é captar os fenômenos com que nos deparamos; já a razão
tem um caráter operante, cuja natureza determina o que pode acontecer em sentido
prático. Tal distinção não visa apresentar uma visão dicotômica de tais faculdades,
1
Acadêmico do Programa de Pós-Graduação Stricto sensu (Mestrado em Filosofia da UNIOESTE). E-
mail: digofilo@gmail.com.

Diaphonía, e-ISSN 2446-7413, v. 5, n. 1, 2019


A influência das motivações sobre a vontade na filosofia moral de Immanuel Kant

mas as considera complementares, sobretudo quando refletimos sobre a dimensão


prática, onde se manifesta a nossa vontade.
Considerando as ações humanas na condição submetida à sensibilidade não
desprezamos a relevância operativa da razão; ao contrário, queremos entender como
se constituí toda determinação “a priori” quando pretende abstrair dos conteúdos
sensíveis, verificando por que tais qualidades não podem constituir-se princípio de
determinação moral. Tal assunto é de grande importância em nossos dias, visto que,
vê-se por toda parte ações e mais ações realizadas por deliberado interesse, por
inclinação imediata ou motivada por algum instinto cujo alvo é o bem-estar e a
felicidade.
Conforme nos instrui o próprio Kant em sua obra Fundamentação da
metafísica dos costumes (2009, p.197-199), consideramos a sua abordagem prática
sob dois aspectos: o primeiro refere-se a designação “condicionado”, onde se
encontram as ações e comportamentos realizados sob condições escolhidas segundo
o ‘destino’ do bem estar e no interesse da felicidade e o segundo remete ao
“incondicionado” – âmbito permeado pelo respeito à lei moral, onde a vontade
humana escolhe agir por dever, guiada por princípios “a priori” representados na
razão.
O foco de nosso estudo reside em especial no âmbito “condicionado” onde se
realizam as escolhas provenientes da racionalidade prático-instrumental, cuja
50
intenção é dirigida pelos imperativos hipotéticos; ou seja, pelas regras de habilidade
que determinam a vontade humana segundo uma lógica de “custo-benefício”
submetido à inteligência; neste sentido são pensados os meios mais adequados em
vista dos fins visados. A manifestação de tais ditames racionais verifica-se nas ações
realizadas em vista do bem estar imediato e da felicidade, cujos meios possíveis
residem no “cálculo prudente” e interessado de alguém que se volta a uma
determinada situação (que pode lhe ser favorável ou não) prevendo as possíveis
consequências antes mesmo de acontecer ou no momento em que age. Daí a
designação ‘condicionado’ – cujo significado revela a operação do arbítrio
consciente das condições empíricas e que pode realizar comandos tendo em vista os
seus interesses ou os interesses de quem lhe aprouver. Kant evidencia o caráter
relativo, contingente e subjetivo desta ‘modalidade voluntária’, denotando grande
preocupação pelo fato de haver se tornado tão frequente em sua época o aspecto
utilitarista da ação.
No limiar de nossas reflexões está a vontade humana, permeada por
influências de toda ordem: instintos, interesses, emoções, sentimentos, ideias,
máximas, regras, a lei moral, etc. Contudo, é no arbítrio humano que ocorre a
efetivação do fator que leva a decisão. Vejamos o que nos diz Kant a respeito:

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FIGUEIREDO, R.

... A liberdade do arbítrio tem a qualidade inteiramente peculiar


de ele não poder ser determinado a uma acção por móbil algum a
não ser apenas enquanto o homem o admitiu na sua máxima (o
transformou para si em regra universal de acordo com o qual se
quer comportar); só assim é que um móbil, seja ele qual for, pode
subsistir juntamente com a absoluta espontaneidade do arbítrio (a
liberdade) (KANT, 1992, p. 29-30).

Como vemos, por mais conturbadas que sejam as condições empíricas ou as


circunstâncias a nossa volta, a influência ou afetação de algum móbil sobre nós
ocorre somente devido a decisão livre de nosso arbítrio quando consentimos
racionalmente, acolhendo a sua ‘influência sensível’.
O que seria o ‘móbil’ e qual a sua influência sobre a vontade?
O móbil seria aquilo que move a vontade no sentido da realizar escolhas, em
resumo seriam: os afetos, paixões, sentimentos, as inclinações em geral. É
importante ressaltar que embora movam a vontade, motivando-a, não significa que
sejam ‘em si’ determinantes do que irá acontecer.
A fim de entender melhor sobre a influência dos móbiles vejamos o estudo de
Kant acerca da disposição ou indisposição voluntária. Em sua obra A religião nos
limites da simples razão, o pensador alemão distingue três espécies de disposições
relativas à vontade: 1º) disposição para a animalidade, 2º) disposição para a 51
humanidade e 3º) disposição para a personalidade. Para efeito do presente trabalho
analisaremos pontualmente a segunda disposição da vontade. 1º) Disposição para a
animalidade – refere-se ao ‘mecanismo instintivo’ de autoconservação, presente em
nossa natureza irracional, enquanto necessidade absolutamente básica, onde não há
livre espontaneidade, apenas reações inatas associadas a conservação orgânica. Em
resumo: Kant denomina tais motivações de “arbítrio animal” (arbitrium brutum) (cf
KANT, 2008, p. 42), onde, a exemplo dos animais, temos impulsos e desejos
irracionais que vem à tona devido a nossa constituição orgânica destinada ao
cumprimento de fins naturais. Lembremos aqui da noção de physis pensada entre os
filósofos pré-socráticos enquanto sentido ou ordem ‘in natura’ independente da
vontade humana.
2º) Disposição para humanidade - diz respeito à manifestação voluntária já
guiada pela inteligência racional, cuja direção ainda segue o curso das motivações
empíricas livres em vista do bem estar imediato (diante dos outros); vê-se aqui uma
espécie de atitude calculada em vista de si mesmo, cuja motivação é o “amor de si”;
aqui verifica-se a manifestação da inveja, do ciúme, do ressentimento, do
sentimento de vingança, da ambição entre outros impulsos egoístas constituídos
numa ‘atmosfera’ de competição valorativa. Vejamos o que nos diz Kant (1992, p. 33:

Do amor de si promana a inclinação para obter para si um valor na


opinião dos outros; e originalmente, claro está, apenas o da

Diaphonía, e-ISSN 2446-7413, v. 5, n. 1, 2019


A influência das motivações sobre a vontade na filosofia moral de Immanuel Kant

igualdade: não conceder a ninguém a superioridade sobre si,


juntamente com um constante receio de que os outros possam a tal
aspirar; daí surge um desejo injusto de adquirir para si essa
superioridade sobre outros. – Aqui, a saber, na inveja e na rivalidade
podem implantar-se os maiores vícios de hostilidades secretas ou
abertas contra todos os que para nós consideramos estranhos, vícios
que, no entanto, não despontam por si mesmos da natureza como
de sua raiz, mas, na competição apreensiva de outros em vista de
uma superioridade que nos é odiosa, são inclinações para alguém,
por mor da segurança, a si mesmo a proporcionar sobre os outros,
como meio de precaução: já que a natureza só queria utilizar a ideia
de semelhante emulação (que em si não exclui o amor recíproco)
como móbil para a cultura.

Em outra passagem desta mesma obra Kant reforça a afirmação acima


mostrando a influência prejudicial dos móbiles sobre a vontade, potencializada
quando recebemos a influência de outros que se comprazem na prática da
imoralidade e da maldade.

[...] A inveja, a ânsia de domínio, a avareza e as inclinações hostis a


elas associadas assaltam a sua natureza, em si moderada, logo que
se encontra no meio dos homens, e nem sequer é necessário
pressupor que estes já estão mergulhados no mal e constituem
exemplos sedutores; basta que estejam aí, que o rodeiem, e que
sejam homens, para mutuamente se corromperem na sua disposição 52
moral e se fazerem maus uns aos outros. (KANT, 1992, p. 100).

A natureza humana subjetiva ‘em si’ não é corrompida; ou seja, desviante da lei
moral, pois quando agimos buscamos suprir as necessidades de conservação
naturais no sentido da sobrevivência; a questão surge quando estamos diante dos
outros em sociedade e somos valorados ou considerados em função de nossa
condição empírica, aí somos cobrados segundo padrões relativos, considerando-se o
grau de estudo, a classe social, a nossa etnia, a religião, etc. a que pertencemos.
Contudo, aí ainda não reside o pior, o problema maior ocorre quando permitimos
relativizar as situações ‘a meu favor’ arrogando-nos de nossa condição empírica para
daí extrair algum valor no interesse de não ser desprezado (a) pelos outros ou de
obter algum benefício ou vantagem para si e para os familiares. Em resumo:
corremos o risco de mergulharmos num convencionalismo, esquecendo-nos dos
princípios dirigentes da moralidade, relativizando o respeito à lei moral, desviando
por completo do que determina a ‘urgência necessária e universal’ do
incondicionado presente dentro de nós.
A boa vontade presente na Fundamentação da metafísica dos costumes jamais
pode ser contingente, ou seja, refém de alguma condição exigida para a sua
manifestação, caso contrário ela pode tornar-se interesseira e utilitarista; por isso
Kant inicia a primeira seção desta obra mostrando a vontade moral enquanto
irrestritamente boa, ou seja, aquela que não está submetida a condição, restrição ou

Diaphonía, e-ISSN 2446-7413, v. 5, n. 1, 2019


FIGUEIREDO, R.

elemento efêmero, constituindo-se no caráter, cujas funções seriam: 1º) corrigir a


soberba, 2º) dirigir o querer relativo conformando-o a princípios universais e 3º)
restringir o amor próprio, impedindo que esteja submetido às paixões. Neste
sentido, vê-se que entre os interlocutores de Kant nos debates filosóficos ocorridos
na modernidade está o pensador britânico Jeremy Bentham, filósofo pertencente ao
utilitarismo ético, cujo objetivo era pensar sobre as ações que promovem o bem-
estar e a felicidade ao maior número possível de pessoas.
Embora admita que a felicidade é uma ‘ocorrência insolúvel’
(Fundamentação,2009; p.205) devido ao fato de não termos certeza de quais
condições empíricas nos mantém num estado de fruição feliz, numa constância
temporal, recaindo em aspectos por demais subjetivos e empíricos, Kant reflete
sobre os objetos sobre os quais se dirige a inclinação e os interesses humanos, daí
nasce a heteronomia da vontade; ou seja, a determinação voluntária submetida a
fatores externos ao próprio agente moral, mas que ‘em si’ não permitem-lhe uma
autonomia ética da vontade.
Na primeira parte da Crítica da razão prática (1788) apresenta-se um estudo
sobre a relação entre o sujeito e o objeto, considerando as motivações envolvidas no
processo de interação relacional: “Todos os princípios práticos, que pressupõe um
objeto (matéria) da faculdade de apetição como fundamento determinante da
vontade, são no seu conjunto empíricos e não podem fornecer nenhuma lei prática” 53
(KANT, 2008.I, p. 36) e acrescenta:

Todos os princípios práticos materiais são, enquanto tais, no seu


conjunto de uma e mesma espécie e incluem-se no princípio geral
do amor de si ou da felicidade própria. O prazer decorrente da
representação da existência de uma coisa, na medida em que deve
ser um fundamento determinante do apetite por essa coisa, funda-
se sobre a receptividade do sujeito, porque ele depende da existência
de um objeto; por conseguinte ele pertence ao sentido (sentimento)
e não ao entendimento, que expressa uma referência da
representação a um objeto segundo conceitos, mas não ao sujeito
segundo sentimentos. Portanto, ele é prático somente na medida
em que a sensação de agrado que o sujeito espera da efetividade do
objeto determina a faculdade de apetição. Ora a consciência que um
ente racional tem do agrado da vida e que acompanha
ininterruptamente toda a sua existência é, porém, a felicidade; e o
princípio de tornar esta o fundamento determinante supremo do
arbítrio é o princípio do amor de si (KANT, 2008.II, p. 37-38).

Como vemos, a condição de receptividade do sujeito em relação ao objeto do


seu querer desejante constitui uma espécie de campo relacional cujas escolhas giram
em torno de uma busca constante de benefícios, compensações e retribuições
visadas. Quanto mais experientes quanto a vivência de algumas situações empíricas,
tão mais aprimorados nos tornamos na busca prudente e eficiente do prazer e da

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A influência das motivações sobre a vontade na filosofia moral de Immanuel Kant

satisfação, os quais convergem numa intenção de que estamos gozando da


felicidade. Este processo relacional entre sujeito desejante e objeto desejado pode
acontecer subjetiva ou intersubjetivamente, visto que, a exemplo do que nos ensina
o filósofo inglês Jeremy Bentham podemos compartilhar a busca do prazer e a fuga
da dor e do prejuízo tendo em vista o princípio da utilidade pública:

A natureza colocou o gênero humano sob o domínio de dois


senhores soberanos: a dor e o prazer. Somente a eles compete
apontar o que devemos fazer, bem como determinar o que na
realidade faremos. Ao trono desses dois senhores está vinculada, por
minha parte, a norma que distingue o que é reto do que é errado, e,
por outra, a cadeia das causas e dos efeitos. Os dois senhores de que
falamos nos governam em tudo o que fazemos, em tudo o que
dizemos, em tudo o que pensamos, sendo que qualquer tentativa
que façamos para sacudir este senhorio outra coisa não faz senão
demonstrá-lo e confirmá-lo. ... O princípio da utilidade reconhece
tal sujeição e a coloca como fundamento desse sistema, cujo
objetivo consiste em construir o edifício da felicidade através da
razão e da lei. ... Por princípio de utilidade entende-se aquele
princípio que aprova ou desaprova qualquer ação, segundo a
tendência que tem a aumentar ou a diminuir a felicidade da pessoa
cujo interesse está em jogo. (BENTHAM. 1979, p.3-4).

Fazendo um paralelo entre os trechos de ambos os pensadores entende-se que: 54


a) A felicidade é uma referência motivadora das escolhas humanas;
b) O desejo de ser feliz é um caractere inato pertencente a nossa constituição
natural;
c) Todos estamos sob a influência do ideal “ser feliz”.
Agora analisemos as perspectivas de ambos os filósofos em separado.
Vejamos primeiramente a proposta do utilitarismo a partir do próprio Jeremy
Bentham:
Ao considerar a dor e o prazer elementos radicados em nossa constituição
natural, Bentham nos mostra que a ordem utilitária está presente em todos nós,
independente de agirmos “por si” (pensando e agindo a ‘meu favor’) ou pelos outros,
pertencendo a alguma entidade social ou política, cujas necessidades são públicas.
Deste modo as necessidades cotidianas permitiriam a elevação da ação e da atitude
pessoal a um patamar de exigência que visa resultados manifestos. Neste sentido são
relevantes também os costumes, os conselhos, as regras de conduta, as habilidades
postas à prova, as instituições constituídas e a tradição cultural herdada; todos
fatores empíricos emergentes como fruto das vicissitudes cotidianas.
Bentham despreza as formulações teóricas, os princípios e até mesmo as leis
que não tenham correspondente objetivo na realidade empírica e mais, que não

Diaphonía, e-ISSN 2446-7413, v. 5, n. 1, 2019


FIGUEIREDO, R.

sejam úteis a ponto de levar “algo a funcionar” segundo o curso do seu destino
natural ou segundo os propósitos projetados pelo artifício humano. Na condução
das decisões está a vontade, cuja finalidade última é a felicidade, entendida segundo
uma “lógica” de cálculo inteligente onde a necessidade do bem estar individual
convergiria para a satisfação pública e vice-versa.
Por fim, entende-se a proposta do pensador inglês como um sistema cujos
meios são escolhidos em função do fim visado – a felicidade.
Retornemos a consideração kantiana em relação à felicidade:
Kant não nega o valor teleológico da felicidade quando esta constituí o bem
motivacional da vontade não contrário a lei moral, somente nos alerta para o caráter
objetual a que estamos inclinados a incorrer, visto sermos seres sensíveis cuja
inteligência se volta constantemente a resolução de questões práticas do cotidiano,
onde, por motivos de utilidade, tendemos a realizar escolhas cujos objetos do
interesse resolvam os nossos problemas de modo menos penoso e desgastante e
mais aprazível e auto protetivo.
O problema está em considerar a felicidade ‘fundamento determinante
supremo do arbítrio’, pois aí cada qual considera o que lhe é mais conveniente para
usufruto prático e a experiência dirigida por alguém cuja vontade é tão prática que
chega a ignorar os princípios “a priori” do dever se torna objetualizante, colocando o 55
próprio sujeito dotado de liberdade numa condição de objeto. Na ilusão de estar
fazendo bem a si mesmo o sujeito racional calcula as máximas (como meios)
subordinando-as a inclinação dirigida ao objeto visado pelo desejo.
Vejamos o que nos diz Kant sobre o ‘princípio do amor de si’:

Finalmente, o egoísta moral é aquele que reduz todos os fins a si


mesmo, que não vê utilidade senão naquilo que lhe serve, e também
como eudemonista coloca simplesmente na utilidade e na própria
felicidade, e não na representação do dever, o fundamento-de-
determinação supremo de sua vontade. Pois como cada ser humano
forma conceitos diferentes sobre aquilo que considera fazer parte da
felicidade, é precisamente o egoísmo que leva a não ter pedra de
toque alguma do genuíno conceito do dever, que, como tal, tem de
ser inteiramente um princípio de validade universal. – Todos os
eudemonistas são, por isso, egoístas práticos. (KANT, 2006, §2, p.
29-30).

Os ‘eudemonistas’ são aqueles que pensam a ação e o comportamento moral


dirigido a felicidade como fim em si mesma; Kant afirma que, independente dos fins
agradáveis e aprazíveis decorrentes de algum “objeto empírico” a ação por dever é
necessária e, manifestando-se segundo princípios incondicionados rompe com o
sentido utilitarista esperado por todos aqueles cuja conduta está mergulhada na
instrumentalidade interesseira.

Diaphonía, e-ISSN 2446-7413, v. 5, n. 1, 2019


A influência das motivações sobre a vontade na filosofia moral de Immanuel Kant

Aqueles que assumem o princípio benthaniano da utilidade, entendendo a


felicidade (governada pela dor e pelo prazer) como sentido exclusivo de suas vidas,
seriam capazes de reprovar até mesmo uma atitude moralmente admirável do ponto
de vista ético, caso não fosse pertinente ou eficiente no que se refere ao ideal de
felicidade; seria, vamos dizer, uma atitude inconveniente, por estar ‘fora do jogo’ dos
interesses.
Outro aspecto importante a ressaltar é quanto à pseudo pretensão de controle
dos ‘objetos aprazíveis’ úteis ao sentido da felicidade, cujas escolhas livres estariam
numa espécie de “saber é poder” frente às condições empíricas. Vejamos o exemplo
hipotético de uma criança que, no interior do supermercado, manifesta o interesse
de ganhar aquele brinquedo negado pelos pais; vendo seu desejo frustrado, se joga
no chão, grita e esperneia com o objetivo de controlar afetivamente a situação a seu
favor; envergonhados, os pais permanecem firmes no propósito de não comprar o
brinquedo dirigindo-se ao caixa para finalizar a compra.
A situação acima demonstra que nem sempre as condições estão a ‘nosso
favor’, nem sempre acontece aquilo que quero, nem sempre concordam comigo e
contigo e, temos de admitir: nem sempre as outras pessoas estão dispostas a admitir
a utilidade daquilo que considero importante. E daí o que vamos fazer? Espernear
como a criança? Tentar controlar a situação criando mecanismos de persuasão dos
outros a fim de ‘estarem do nosso lado’? 56
No trecho acima citado, onde Kant se refere ao egoísmo prático, percebemos
os limites objetuais a que nos destinamos quando pautamos a nossa vida
exclusivamente segundo o princípio da utilidade defendido por Bentham. Contudo,
há ainda que se investigar a aplicação deste princípio numa escala pública,
verificando as possíveis consequências.
Como seria uma sociedade utilitarista? Ela seria baseada em condições
materiais e em ações e comportamentos humanos, objetivamente manifestos e
possivelmente administrados. Seria pautada na busca imediata do prazer e nos
resultados bons para todos. Seria pautada na fuga da dor (física, moral e psicológica)
e na previsão de evitá-la a qualquer custo. Reconheceria os feitos humanos
considerados úteis, rejeitando os considerados inúteis. Seria promotora dos que
sabem ‘jogar bem o jogo’ das regras sociais e do sistema, contudo minimizando o
valor dos que não ‘sabem jogar’ ou daqueles que se recusam a ‘jogar’.
Em resumo: tal sociedade seria pautada numa lógica de custo-benefício que
beira ao narcisismo social, visto que se aceita somente os objetos, ambientes,
pessoas e demais seres vivos que são pertinentes à intencionalidade do útil; algo que
representaria uma ameaça real ao contexto político democrático.
É pertinente ressaltar também que, a utilidade não pode ser acolhida como
princípio (exclusivo) dirigente do arbítrio, mesmo quando remete aquilo que é útil a

Diaphonía, e-ISSN 2446-7413, v. 5, n. 1, 2019


FIGUEIREDO, R.

todos, pois o caráter fundante da utilidade recaí num relativismo moral repleto de
princípios úteis aqueles que fazem parte do “campo relacional”, mas quando se está
em outro “campo relacional” aquilo que é útil muda, exigindo que se escolha o que é
útil naquela concepção de felicidade.
Sabendo da ocorrência do princípio utilitarista na contingência empírica, Kant
considera o primeiro nível das decisões humanas sob a direção dos imperativos
hipotéticos, cujo sentido está voltado à busca da felicidade.

Há, não obstante, um fim que se pode pressupor como efetivamente


real em todos os seres racionais (na medida em que a eles convêm
imperativos, a saber, enquanto seres dependentes), logo uma
intenção que eles não somente podem ter, mas da qual se pode
pressupor com segurança que todos têm segundo uma necessidade
natural, e tal é a intenção da felicidade. O imperativo hipotético que
representa a necessidade prática da ação como meio para a
promoção da felicidade é assertórico. Não se deve apresentá-lo
simplesmente como necessário para uma intenção incerta,
meramente possível, mas, sim, <como necessário> para uma
intenção que se pode pressupor com segurança e a priori em todo
homem. Porque pertence à sua essência. Ora, pode-se chamar à
habilidade na escolha dos meios para o seu máximo bem-estar
próprio prudência no sentido mais estreito. (KANT. 2009, p. 195).

As molas propulsoras dos imperativos hipotéticos são o bem-estar e a


57
satisfação, constituindo-se em geral uma certa previsão dos meios pertinentes a
obtenção do que se quer. Neste sentido, conselhos de pessoas mais experientes
podem ser importantes, exemplos ou o testemunho de alguém que passou por
determinada situação e soube ‘dar a volta por cima’ são interessantes ao nosso
aprendizado, a obediência aos preceitos e costumes da tradição podem produzir
resultados; enfim, o cumprimento das condições exigidas pelo “campo relacional” de
pessoas a que pertencemos nos indica os caminhos mais úteis para se atingir a
felicidade pretendida. Contudo, corre-se o risco de, no “cálculo de custo benefício”
pertinente a nossa felicidade incorrermos no prejuízo dos outros, abrindo a
prerrogativa para a imoralidade.
O fato de muitos se comportarem buscando o prazer e a satisfação imediata,
mas se negarem a assumir a responsabilidade por algum erro, falta moral grave ou
até pela prática de um delito, demonstra a forte tendência a relativização
interesseira muito frequente em nossos dias. Kant desconfia da ação realizada num
contexto utilitarista, pois quem age pode estar guiado por intenções que sempre
visam ‘o seu favor’; daí compreendemos a sua crítica aos ‘eudemonistas’ enquanto
aqueles que se pretendem ‘controlar as condições empíricas’ originando o
denominado “condicionado”.
Sabendo dos limites do primeiro nível de decisões, Kant ascende ao segundo
nível – o da moralidade, cujas decisões são tomadas a partir de princípios ‘a priori’

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A influência das motivações sobre a vontade na filosofia moral de Immanuel Kant

puros, remetendo a uma escala universal. É sempre bom relembrarmos a segunda


fórmula do Imperativo categórico, fator incondicionado de fundamentação da
moralidade:
2º Fórmula do imperativo: “Age de tal maneira que tomes a humanidade, tanto
em tua pessoa, quanto na pessoa de qualquer outro, sempre ao mesmo tempo como
fim, nunca meramente como meio” (KANT. 2009, p. 243-245)
Quando tratamos uma pessoa como objeto; ou seja, considerando-lhe o seu
valor utilitário em função de alguma vantagem pessoal, usufruto prazeroso ao meu,
ao teu e ao nosso favor, violando a segunda fórmula do Imperativo categórico,
omitimos à pessoa o tratamento digno merecido, roubando-lhe o reconhecimento
valorativo inestimável, cujo fim reside em si mesmo.
Quanto à última disposição: A disposição para a personalidade – refere-se ao
respeito devido as pessoas, reconhecendo que são seres livres e agentes de
moralidade tal como nós. Sobre esta disposição trataremos numa outra
oportunidade. Encerramos com um trecho do próprio Kant (1992, p. 30):

As inclinações naturais, consideradas em si mesmas são boas, isto é,


irrepreensíveis, e pretender extirpá-las não só é vão, mas também
prejudicial e censurável; pelo contrário, há apenas que domá-las
para que não se aniquilem umas às outras, mas possam ser levadas à
consonância num todo chamado felicidade. Mas a razão que tal leva 58
a cabo chama-se prudência. Só o moralmente contrário à lei é em si
mau, absolutamente reprovável e deve ser exterminado, só a razão
que tal ensina, e mais ainda quando o põe em obra, merece o nome
de sabedoria.

Referências

BENTHAM, J. Uma introdução aos princípios da moral e da legislação. Trad. Luiz João
Baraúna. Sistema de Lógica dedutiva e indutiva e outros textos. Trad. João Marcos Coelho,
Pablo Mariconda. 2. ed. São Paulo: Abril Cultural, 1979 (Os Pensadores)
HOFFE, O. Immanuel Kant. Tradução: Valério Rohden et ali. São Paulo: Martins Fontes,
2005.
KANT, I. A religião nos limites da simples razão. Tradução: Artur Morão. Lisboa: Edições 70,
1992.
______. Fundamentação da metafísica dos costumes; tradução: Guido Antônio de Almeida -
São Paulo: Discurso Editorial: Barcarolla, 2009 (Coleção philosophia)
______. Crítica da razão prática. 2. ed. Tradução: Valério Rohden. São Paulo: Martins
Fontes, 2008 (Clássicos)
______. A metafísica dos costumes. Tradução: Edson Bini. 2. ed. Bauru, SP: Edipro, 2008
(Série Clássicos Edipro).
______. Ideia de uma História universal do ponto de vista Cosmopolítico. Tradução: Jean
Michel Muglioni e Yves Chateau. Lisboa – Portugal: Didática, 1999.

Diaphonía, e-ISSN 2446-7413, v. 5, n. 1, 2019


FIGUEIREDO, R.

______. Antropologia de um ponto de vista pragmático. Tradução: Clélia Aparecida Martins.


São Paulo: Iluminuras, 2006.
______. Antropologia prática. 2. ed. Trad. Roberto Rodriguez Aramayo. Madrid – Espanha:
Tecnos, 2007.
LIPOVETSKY, G. A sociedade pós-moralista: o crepúsculo do dever e a ética indolor dos novos
tempos democráticos. Tradução: Armando Braio Ara. Barueri, SP: Manole, 2005.

Submissão: 10.10.2018 / Aceite: 30.11.2018

59

Diaphonía, e-ISSN 2446-7413, v. 5, n. 1, 2019


Intuição intelectual de si: breve análise da crítica de Schelling ao
dogmatismo de Espinosa e da aproximação entre dogmatismo e criticismo
Intellectual intuition of self: a brief analysis of Schelling's critique of
Spinoza's dogmatism and the approximation of dogmatism and criticism

ANGELIANA PATRÍCIA DE SOUZA1

Resumo: O presente artigo tem o intuito de analisar a crítica de Schelling às escolas do


dogmatismo e criticismo sobre a possibilidade do ser humano alcançar o conhecimento de
si. Para Espinosa, pela imanência com a substância, o homem pode conhecer
verdadeiramente; contudo, Schelling define essa intuição intelectual de si (do homem)
como tendo sido objetivada inadvertidamente, já que, desse modo, o homem coloca-se a
pensar considerado inicialmente como objeto. O autor também pondera a interpretação à
crítica kantiana, já que ela possibilitou a existência de todos os sistemas, assim como Kant
expôs, entretanto, sem fundar, com isso, um novo sistema. Nesse sentido, o criticismo se se
funda como sistema e traz para alvo último do filosofar o incondicionado como
praticamente alcançável, se igualando ao dogmatismo, já que ambos os sistemas se
identificam na busca do absoluto.
Palavras-chave: Criticismo. Dogmatismo. Intuição intelectual. Conhecimento de si.

Abstract: This article aims to analyze Schelling’s critique of the schools of dogmatism and
criticism about the possibility of the human being to achieve self – knowledge. For Spinoza,
by immanence with substance man can truly know; however, Schelling defines this
intellectual intuition of himself (of man) as having been inadvertently objectified, since in
this way man puts himself to think initially considered as an object. The author also
ponders interpretation to Kantian criticism, since it made possible the existence of all
systems, as Kant did, however, without establishing a new system. In this sense, criticism, if
founded as a system and brings to the ultimate goal of philosophizing the unconditioned as
practically attainable, is equated with dogmatism, since both systems identify themselves in
the search for the absolute.
Keywords: Criticism. Dogmatism. Intellectual intuition. Self-knowledge.

Introdução

O presente trabalho tem como objeto a crítica schellinguiana sobre a


possibilidade do ser humano alcançar o conhecimento de si a partir das escolas do
criticismo e do dogmatismo. No texto Cartas Filosóficas sobre o Dogmatismo e o
Criticismo, Schelling desenvolve uma crítica à abordagem dogmática desenvolvida
por Espinosa, bem como, à interpretação da obra kantiana Crítica da Razão Pura.
Para Schelling, tanto o criticismo quanto o dogmatismo trazem o mesmo problema:
levar à identidade absoluta, mesmo que de modo diferente, por via de anulação, seja
do objeto, seja do sujeito que conhece. A análise de Schelling se baseia nas obras de

1
Possui graduação em Psicologia pela Faculdade de Ciências Aplicadas de Cascavel (2014). É
acadêmica do Programa de Pós-Graduação Stricto sensu (Mestrado em Filosofia da UNIOESTE). E-
mail: angeliana2@gmail.com.

Diaphonía, e-ISSN 2446-7413, v. 5, n. 1, 2019


SOUZA, A.

Espinosa e de Kant, de modo que, inicialmente, para expor como a teoria espinosana
entende ser possível uma intuição intelectual, recorrerei à Ética e, em seguida, à
Crítica da Razão Pura a fim de apresentar, brevemente, o modo pelo qual a teoria
kantiana admite a possibilidade do conhecimento de si do sujeito (seja teórico, seja
praticamente), fazendo isso à luz da compreensão dessas teorias por Schelling.

1. Espinosa e a possibilidade de conhecer verdadeiramente através da


imanência com a substância.

Na Ética, o homem foi definido por Espinosa como um modo finito que possui
sua existência em uma substância única e infinita, e que também é por ela
concebido. Nada pode existir fora dela, pois ela é a causa única de tudo o que existe,
inclusive de si mesma. Conforme descreve Espinosa, a essência da substância
envolve necessariamente a existência, ou seja, o existir é característica de sua
própria natureza.
A essência infinita e eterna da substância é exprimida através de seus atributos
que, por pertencerem a ela, são igualmente infinitos e eternos, e não partes dela,
pois ela é indivisível tal como as características que também a exprimem.
Diferentemente do entendimento de Descartes, para Espinosa o ser humano é
resultado de dois atributos da substância – do atributo pensamento e do atributo
extensão. A composição humana inclui uma mente e um corpo resultantes destes 61
atributos, conforme exposto no escólio da preposição 7, na segunda parte do livro:

Antes de prosseguir convém relembrar aqui o que demonstramos


antes: que tudo o que pode ser percebido por um intelecto infinito
como constituindo a essência de uma substância pertence a uma
única substância apenas e, consequentemente, a substância
pensante e a substância extensa são uma só e a mesma substância,
compreendida ora sob um atributo, ora sob o outro. (ESPINOSA,
2009, p. 28).

O corpo e a mente estão em conformidade um com o outro. De acordo com


Silva (2011) as ideias desenvolvidas pela substância pensante – mente –
correspondem a desdobramentos de acontecimentos no corpo.
O corpo é quem possibilita esse conhecimento da substância extensa e
consequentemente dele mesmo, tendo em vista que é por ele que percebemos o
mundo e nos percebemos. No entanto, apenas a substancia pensante desenvolve
ideias sobre esses desdobramentos do corpo, apenas pela mente são possíveis o
conhecimento e a percepção deste corpo.
A mente tem a função de pensar o corpo, fazendo dele seu objeto, e para que
isso ocorra ela é internamente ligada a ele. Essa relação interna entre a mente e o
corpo decorre de ser da natureza dela pensá-lo, assim como é da natureza do corpo
ser o objeto a ser pensado. A mente é definida como ideia do corpo. (SILVA, 2011)

Diaphonía, e-ISSN 2446-7413, v. 5, n. 1, 2019


Intuição intelectual de si: breve análise da crítica de Schelling ao dogmatismo de Espinosa e da
aproximação entre dogmatismo e criticismo

A união entre esses dois atributos ocorre porque o corpo existente é o objeto
da mente humana. A mente é uma coisa pensante e, visto que o pensamento é um
atributo, ela é parte do entendimento infinito da substância. Por ser uma coisa
pensante, a mente forma conceitos, definidos na Ética como ideias:

A essência do homem é constituída por modos definidos dos


atributos de Deus, e certamente, por modos do pensar, dentre todos
os quais, a ideia é, por natureza, o primeiro. E existindo a ideia, os
outros modos devem existir no mesmo indivíduo. É, assim, uma
ideia que, primeiramente, constitui o ser da mente humana. Mas
não a ideia de uma coisa inexistente, pois, então, não se poderia
dizer que a própria ideia existe. Trata-se, portanto, da ideia de uma
coisa existente em ato. (ESPINOSA, 2009, p. 59).

A ideia é um conceito formado pela mente enquanto coisa pensante. Diz


Espinosa (2009, p. 61): a “[...] mente humana é a ideia de uma coisa singular
existente em ato”, logo, há uma identificação entre a mente humana e a ideia
formada pelo atributo pensamento. Nesse sentido, a mente humana é ideia de uma
coisa singular existente em ato, ou seja, uma coisa finita, o corpo.
A ideia da mente e a do corpo humano originam-se do pensamento, como
atributo da substância, portanto, tal ideia também existe na substância; desse modo,
há uma relação entre o conhecimento divino e o conhecimento humano. Neste
sentido, o conhecimento humano não é isolado da verdade divina (da substância),
62
pois todas as ideias da mente e do corpo humanos existem igualmente no intelecto
divino de forma imanente. Observa Espinosa (2009, p. 61):

Disso se segue que a mente humana é uma parte do intelecto


infinito de Deus. E, assim, quando dizemos que a mente humana
percebe isto ou aquilo não dizemos senão que Deus, não enquanto é
infinito, mas enquanto é explicado por meio da natureza da mente
humana, ou seja, enquanto constitui a essência da mente humana,
tem esta ou aquela ideia. E quando dizemos que Deus tem esta ou
aquela ideia, não enquanto ele constitui a natureza da mente
humana apenas, mas enquanto tem, ao mesmo tempo que [a ideia
que é] a mente humana, também a ideia de outra coisa, dizemos,
então, que a mente humana percebe essa coisa parcialmente, ou
seja, inadequadamente.

É pela identificação da mente humana com o intelecto infinito de Deus – a


substância – que é possibilitado a ela (mente) ter um conhecimento verdadeiro,
definido por Spinoza como adequado, afastando com isso o pensamento filosófico
tradicional de que a mente não poderia conhecer verdadeiramente 2 em razão de sua
ligação com o corpo.

2
O termo “conhecimento verdadeiro” é aqui empregado para tratar do conhecimento adequado, ou
seja, aquele proveniente da substância. Conforme dispõe Espinosa (2009, p. 11): “O que, aliás, deve ser

Diaphonía, e-ISSN 2446-7413, v. 5, n. 1, 2019


SOUZA, A.

No entanto, tal afirmação significa que é possível conhecer verdadeiramente


através da substância, mas não que esse conhecimento da mente seja sempre
verdadeiro, pois ela tem, também, um conhecimento confuso do seu corpo e de si
mesma, resultante de ideias que são meramente imaginativas e, por isso,
inadequadas. (SILVA, 2011).
Espinosa propõe três gêneros para explicar os diferentes níveis do
conhecimento humano: o imaginativo, o racional e o intuitivo. O conhecimento
imaginativo ocorre porque a mente humana conhece seu corpo e os corpos
exteriores só de maneira confusa e mutilada, já que a mente, ao perceber o corpo
através das afecções pelas quais é afetado, pode vir a compreender tais afecções de
modo equivocado, chamando-as de imagens. Nesse sentido, enquanto tem ideia só
das afecções do corpo, e não da totalidade que integra todo o existir, a mente faz
ideia apenas do que afeta o corpo e com isso permanece na ignorância a respeito das
causas dessas imagens; por isso o conhecimento imaginativo é parcial e inadequado.
Trata-se de um conhecimento por experiência errática, pois depende apenas da
imagem formada pelo corpo, mostrando-se fragmentado e confuso por ter seu início
“[...] a partir de signos; por exemplo, por ter ouvido ou lido certas palavras, nós nos
recordamos das coisas e delas formamos ideias semelhantes àquelas por meio das
quais imaginamos as coisas” (ESPINOSA, 2009, p. 81).
Por sua vez, no segundo nível, o conhecimento racional se deriva de ideias 63
comuns a todos os homens, as quais são percebidas adequadamente por todos. Uma
ideia só será inadequada se estiver referida apenas a ideia singular de alguém; mas
se a ideia é comum a todas as coisas e existe igualmente na parte e na totalidade,
então ela existe na substância; e porque esta constitui a mente humana, a ideia é
necessariamente adequada.
Espinosa apresenta o conhecimento intuitivo como conhecimento de terceiro
nível, também chamado de ciência intuitiva, que se funda no próprio conhecimento
da substância à qual, de forma imanente, se liga à mente humana que, por essa
razão, pode conhecer verdadeiramente. A essência infinita da substância pode ser
conhecida por todos, pois tudo existe nela, inclusive o corpo e a mente humana;
através da imanência com seus atributos pode-se deduzir muitas coisas e conhecer
adequadamente partindo da “ideia adequada da essência formal de certos atributos
de Deus para chegar ao conhecimento adequado da essência das coisas”
(ESPINOSA, 2009, p. 81). Complementa Espinosa (2009, p. 74):

igualmente dito a respeito de qualquer uma das partes do próprio indivíduo que é o corpo humano.
Assim, o conhecimento de cada uma das partes que compõe o corpo humano existe em Deus,
enquanto ele é afetado de muitas ideias de coisas, e não enquanto tem exclusivamente a ideia do
corpo humano, isto é, a ideia que constitui a natureza da mente humana. Portanto, a mente humana
não envolve o conhecimento adequado das partes que compõem o corpo humano.”

Diaphonía, e-ISSN 2446-7413, v. 5, n. 1, 2019


Intuição intelectual de si: breve análise da crítica de Schelling ao dogmatismo de Espinosa e da
aproximação entre dogmatismo e criticismo

Assim, o conhecimento de cada uma das partes que compõe o corpo


humano existe em Deus, enquanto ele é afetado de muitas ideias de
coisas, e não enquanto tem exclusivamente a ideia do corpo
humano, isto é, a ideia que constitui a natureza da mente humana.

O filósofo ainda escreve:

A mente humana tem ideias por meio das quais percebe a si própria,
o seu corpo e os corpos exteriores, como existentes em ato.
Portanto, ela tem um conhecimento adequado da essência eterna e
infinita de Deus. (ESPINOSA, 2009, p. 88).

A substância é afetada de muitas ideias e não faz ideia apenas do corpo. Se o


homem deduzir a partir do conhecimento adequado da substância ele poderá
conhecer verdadeiramente. A única forma de privar a mente de conhecimento
verdadeiro é através do conhecimento imaginativo, pois este é a causa da falsidade.
Quando uma ideia se origina a partir de um conhecimento parcial e confuso, todo o
restante que se segue dele não será verdadeiro; essa afirmação se refere à
impossibilidade de a mente conhecer adequadamente através dos conhecimentos
racional e intuitivo, no caso de que estes pudessem se referir a ideias imaginativas.
Conforme afirma Silva (2011), a responsabilidade pelo erro em tornar o
conhecimento falso não reside no objeto, mas na mente humana, pois esta é a
responsável pelas ideias se tornarem inadequadas; o objeto apenas apresenta 64
imagens conforme foi afetado e assim é conhecido, mesmo que limitadamente.
Deste modo, o erro está na articulação que a mente faz dos objetos que ela conhece,
sendo que esse encadeamento errôneo das ideias que ela possui impossibilita o
conhecimento que poderia ser alcançado, se o encadeamento tivesse ocorrido da
forma correta.
A esse terceiro gênero de conhecimento Espinosa atribui o mais alto grau a
que as ideias podem se elevar e tem como fundamento o próprio conhecimento da
substância. Esse conhecimento surge através da experiência imediata que o ser
humano tem dos atributos da substância que o constituem, sem interferência do
conhecimento sensível, imaginativo; assim, tudo que é proveniente deste
conhecimento imediato não pode ser equivocado nem viciado pelas imaginações.

2. Crítica de Schelling à intuição intelectual de Espinosa

A noção de intuição intelectual trazida e apresentada por Schelling remonta ao


gênero superior de conhecimento de Espinosa, em que o conhecimento decorre de
uma ideia considerada em si mesma, em ligação com a substância divina. Essa
intuição permite o acesso ao eu absoluto e indica a identidade total com o
fundamento das coisas. (BARBOZA, 2005).

Diaphonía, e-ISSN 2446-7413, v. 5, n. 1, 2019


SOUZA, A.

Nas Cartas sobre o dogmatismo e criticismo, Schelling define intuição


intelectual como a mais imediata das experiências, sendo diferenciada da intuição
sensível por esta derivar de uma experiência mediata. Uma experiência mediata é
aquela que decorre de outra, que não ocorre nem conhece por si mesma, mas por
intermédio de outra. É a chamada intuição sensível, pois conhece através dos
sentidos, através das afecções corporais, ou seja, por meio do conhecimento
imaginativo para Spinoza.
Por sua vez, a intuição intelectual parte de uma experiência imediata,
produzida por si mesma, sem interferência dos sentidos corporais e, por não ser
uma experiência derivada de nenhum objeto, ela independe de toda causalidade
objetiva.
Através do absoluto a mente humana pode atingir o conhecimento verdadeiro.
Para Espinosa, é possível um conhecimento verdadeiro de si mesmo ao atingir o
terceiro gênero do conhecimento, em que o absoluto não é tido como objeto devido
à identificação dele com a substância. O conhecimento adequado de si surge através
da experiência imediata, que temos por meio dos atributos da substância que nos
constituem. Nesse ponto, Schelling inicia sua crítica ao modo de pensar espinosano,
comparando-o a um dogmatismo cego.
Na Oitava Carta ele argumenta que o início de todo “delírio místico”
dogmático se dá pela necessidade de certos pensadores proporem o pensamento de
65
si (ou conhecimento de si) de um modo tal que, ao racionalizarem o acesso do
sujeito a si mesmo, partem de um fundamento inacessível, alcançado por atitude de
“místico”. Schelling atribui a Espinosa esse lugar, de haver desenvolvido um
pensamento místico do ponto de vista do acesso a seu fundamento.
Espinosa admite ser possível chegar a um conhecimento verdadeiro de si pela
identificação entre o eu que intui e o eu intuído. No entanto, para Schelling, trata-se
aí de uma identificação alcançada através de uma intuição intelectual objetivada: o
eu intuía a si mesmo só a partir da admissão de um objeto absoluto, a substância, e
não por uma experiência imediata. Schelling mostra que enquanto essa última pode
ser demonstrada desde um modo de acesso ao absoluto, a primeira (intuição
objetivada) não pode ser conceituada sem eliminar com isso, ao mesmo tempo, o
sujeito que coloca a exigência dessa conceituação. A despeito de Espinosa
denominar seu modo de acesso ao absoluto também por meio de um tipo de
experiência em que o sujeito o atinge através de si mesmo, pela própria experiência
imediata, essa última ocorre no plano exclusivamente intuitivo.
Todavia, ao contrário do que Schelling entende por intuição intelectual,
Espinosa crê que ao intuir a si mesmo ele não deixou de se considerar objeto de
conhecimento. Nota Schelling (1973, p. 198):

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Intuição intelectual de si: breve análise da crítica de Schelling ao dogmatismo de Espinosa e da
aproximação entre dogmatismo e criticismo

Essa intuição intelectual se introduz, então, quando deixamos de ser


objeto para nós mesmos e quando, retirado em si mesmo, o eu que
intui é idêntico ao eu intuído. Nesse momento da intuição,
desaparecem para nós tempo e duração: não somos nós que estamos
no tempo, mas o tempo - ou antes, não ele, mas a pura eternidade
absoluta – que está em nós. Não somos nós que estamos perdidos
na intuição do mundo objetivo, mas é este que está perdido em
nossa intuição.

No absoluto acaba toda a passividade, pois a substância é causa de si mesma,


um ser autossuficiente que age apenas por liberdade absoluta, segundo sua essência
própria, e não está por isso limitado a nada. Esse posicionamento, defendido já por
Espinosa no sentido de que a essência da substância está compreendida nela
mesma, enquanto que a essência do homem esta compreendida em outra coisa “[...]
cujo conceito é formado por meio do conceito da coisa na qual existe” (ESPINOSA,
2009, p. 9), acentua que a verdade não está já nele próprio, mas que por isso o
sujeito pensa a si mesmo; é deste retorno a si do sujeito que surge uma consciência.
O pensar sobre si mesmo remete a uma atividade para qual se é objeto. Só que
essa proposição dá azo a duas interpretações: ou remete à substância, como agindo
com liberdade absoluta, em que a verdade está contida nela própria, acarretando
com isso não estar sendo pensada nenhuma autoconsciência, já que ela não precisa
pensar a si mesma pois tudo se explica a partir de sua própria essência. 66
Aparentemente, aqui o sujeito se dissolve em algo maior, que lhe precede
necessariamente e é mais real que ele próprio. Ou remete à consciência, como
agindo com liberdade absoluta, em que a verdade contida nela é produzida por ela
própria, implicando nisso que a autoconsciência é necessária para o sujeito pensar a
si mesmo, já que nele não há uma essência substancial previamente constituída.
Aqui a consciência se torna objeto para si mesmo, e o sujeito não se dissolve nessa
reflexão.
Como limitação do absoluto, o ser humano está condicionado a agir pelo
conhecimento da lei racional; o absoluto, por sua vez, não é condicionado a nada,
age apenas em conformidade consigo mesmo, é incondicionado.
Ocorre, porém, que a existência humana não pode ser pensada senão em
decorrência de ser limitada pelo absoluto no sujeito. Se se leva adiante esse modo de
intuição intelectual, para além da consideração da razão como uma limitação do
absoluto pelo sujeito (limitação interna), então tem-se uma passagem para o “não-
ser”: aqui o sujeito sai de si (de sua esfera de autolimitação) que condiciona a
existência humana e vai em direção ao radicalmente ilimitado; trata-se de um
momento de anulação do eu existente com vistas a um tipo de unificação com o
absoluto, em que tudo o que é subjetivo desaparece em favor do que é objetivo, para
dar lugar exclusivamente à extensão infinita, sem retorno a si mesmo do sujeito.

Diaphonía, e-ISSN 2446-7413, v. 5, n. 1, 2019


SOUZA, A.

3. Anulação de si mesmo: a aproximação entre dogmatismo e criticismo

Para Schelling, o dogmatismo e o criticismo possuem um ponto de unificação.


Trata-se do fato de ambos considerarem a existência de um princípio absoluto
superior ao saber humano, mas ao qual cada um visa atingir por um tipo de
específico de anulação: ou do objeto ou de si mesmo.
Ora, Kant distinguiu na Crítica da Razão Pura dois tipos de intuição. A
primeira trata-se de uma intuição e é definida pelo autor como sendo primitiva, ou
seja, não depende de nada além do próprio ser que age e conhece espontaneamente.
Para o autor, não temos o mínimo acesso a essa forma de intuição intelectual, pois
essa forma de intuir não é humana, mas apenas encontrada no ser divino. Já a
segunda intuição não é espontânea, mas deriva da sensibilidade, própria do ser que
determina sua existência pela relação com os objetos dados. Essa é a única forma de
intuição admitida para o homem.
Na medida em que essa forma de intuição é a única possível, ela se refere ao
único modo de conhecimento que permite a relação imediata com o objeto; fica
negada aqui a possibilidade de uma intuição intelectual.
Para Kant (2001, p. 104), o homem “se percebe intuitivamente, não como se
representara a si mesmo imediatamente e em virtude de sua espontaneidade, mas
segundo a maneira pela qual ele é intuitivamente afetado, e, por conseguinte, tal 67
como ele se oferece a si próprio e não como é”. Desse modo, o conhecimento que
tem de si mesmo não é espontâneo, mas depende da maneira de como ele é afetado
na sensibilidade.
Ainda de acordo com o autor, o conhecimento humano tem duas origens, a
sensibilidade e o entendimento, que possivelmente emanam de uma mesma raiz
desconhecida. A sensibilidade fornece intuições, mas é através do entendimento que
elas são pensadas. Assim, as condições sob as quais os objetos são dados influenciam
em como eles são pensados pela mente humana, logo o homem não conhece as
coisas tal como são, mas como eles se mostram (fenômenos).
Toda a intuição sensível aparece no tempo e tudo que o homem intui por ser
afetado por algo que aparece no espaço. Assim, tudo que é cognoscível a ele está no
espaço e tempo. (DUDLEY, 2007). Nesse sentido, só é possível ao homem uma
intuição sensível, mas Kant admite a possibilidade de uma intuição intelectual fora
dele, a qual não pode ser acessada, conforme se verifica no trecho a seguir:

Não querendo considerar o espaço e o tempo formas objetivas de


todas as coisas, resta apenas convertê-las em formas subjetivas do
nosso modo de intuição, tanto externa como interna; modo que se
denomina sensível, porque não é originário, quer dizer, não é um
modo de intuição tal, que por ele seja dada a própria existência do
objeto da intuição (modo que se nos afigura só poder pertencer ao

Diaphonía, e-ISSN 2446-7413, v. 5, n. 1, 2019


Intuição intelectual de si: breve análise da crítica de Schelling ao dogmatismo de Espinosa e da
aproximação entre dogmatismo e criticismo

Ser supremo), antes é dependente da existência do objeto e, por


conseguinte, só possível na medida em que a capacidade de
representação do sujeito é afetada por esse objeto. (KANT, 2001, p.
114).

Nas Cartas, Schelling define que esse seria o ponto de unificação entre
criticismo e dogmatismo, um ser absoluto, que não pode ser objeto do saber
humano, mas apenas objeto da liberdade; logo, está acima do saber humano e,
conforme identifica a teoria kantiana, inacessível.
No entanto, se esse saber absoluto for interpretado como acessível, então o
criticismo tem de ser visto como tendo estabelecido, do ponto de vista prático-
moral, o conhecimento absoluto como realizável (como conhecimento prático), com
cuja admissão, entretanto, ele passa a se apresentar como dogmatismo, pois nesse
caso ele dá por concluída a tarefa de pensar o absoluto, ao admiti-lo tê-lo já
apreendido e abarcado; o que é impossível, porque tal conceito não é abarcável
teoricamente.
Na Nona Carta, Schelling assevera que se fossem considerados como sistemas
completos e perfeitos, tanto o criticismo como o dogmatismo teriam de ter
suprimido a tensão existente entre sujeito e objeto, eliminando com isso a
contradição e levando à identidade absoluta. Só que em decorrência disso todo o
conhecimento objetivo estaria perdido para o sujeito, pois por essa unificação e 68
identificação a consciência do sujeito seria definitivamente suprimida pelo infinito
conjuntamente com a do objeto.
Segundo o autor, a interpretação que deve ser dada à Crítica da Razão Pura é a
de que a existência desses sistemas foi condicionada pela razão crítica que, em si
mesma, não visou fornecer um sistema novo, mas só um método para dois sistemas
possíveis: o criticismo, que visa representar o conhecimento verdadeiro como
alcançável em seu sistema, e o dogmatismo, que não pode salvar-se da acusação de
conduzir a um delírio místico.
Nesse sentido, o autor das Cartas propõe para função da crítica da razão servir
de cânon para preparar a subsistência de dois sistemas possíveis, ainda que
diretamente contrapostos, deduzidos, é certo, da ideia indeterminada de um
método geral para todos os sistemas. Como havia dito Kant (2001, p. 81):

Desta investigação tratamos presentemente. Não podemos


verdadeiramente chamar-lhe doutrina, mas apenas crítica
transcendental, porquanto a sua finalidade não é o alargamento dos
próprios conhecimentos, mas a sua justificação, e porque deve
fornecer-nos a pedra de toque que decide do valor ou não valor de
todos os conhecimentos a priori.

A finalidade da crítica não é a de alcançar o saber absoluto, mas de corrigir os


conhecimentos obtidos pelos sistemas, principalmente no que se refere ao

Diaphonía, e-ISSN 2446-7413, v. 5, n. 1, 2019


SOUZA, A.

dogmatismo e sua valoração dos conhecimentos a priori como conhecimentos


verdadeiros.

Conclusão

Da leitura das Cartas conclui-se que a maneira de Schelling conduzir as


conclusões a que chegou sobre o criticismo remonta criticamente à teoria de
Espinosa.
Para Schelling, Espinosa apresenta uma contradição em sua teoria: ele
identifica o conhecimento verdadeiro como o que é livre de toda causalidade
objetiva sem deixar de pensar a si mesmo (sujeito) como dependente do ponto de
vista objetivo, assentado na substância, à qual ele acede por um processo intuitivo
diretamente objetivo. Pela objetivação dessa forma de intuição intelectual o ser
(sujeito) que intui, mesmo que idêntico ao objeto absoluto, permanece possuindo só
uma visão abstrata e objetiva de si mesmo.
Por sua vez, Kant não admite a possibilidade dessa intuição, pois para ele o
homem só conhece através da sensibilidade e do entendimento, por um modo de
intuição que nunca é espontâneo ou que produz o objeto por liberdade absoluta.
Não há em Kant um conhecimento absoluto, pois para chegar a esse conhecimento
o homem teria de estar fora das condições de espaço e tempo; logo, seria impossível
alcançá-lo sem anular sua existência, o que, consequentemente, o impossibilitaria
69
de intuir.
Ao refletir sobre a possibilidade do criticismo tornar-se sistema, Schelling
demonstra a aproximação do criticismo com o dogmatismo, pois, se, ao contrario da
teoria kantiana, o criticismo for interpretado como um sistema que apresenta o
saber absoluto como algo realizável no sujeito, essa forma de interpretação admitiria
a realização plena da consciência de si e, com isso, o sujeito desapareceria no
infinito, como ocorre, pelo motivo inverso, com o dogmatismo.

Referências

BARBOSA, J. Infinitude subjetiva e estética: natureza e arte em Schelling e Schopenhauer. São


Paulo: Unesp, 2005.
DUDLEY, W. Idealismo alemão. Petrópolis, RJ: Vozes, 2007.
ESPINOSA, B. Ética. Belo Horizonte: Autêntica, 2009.
KANT, I. Crítica da razão pura. 5.ed. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2001.
SCHELLING, F. W. “Cartas filosóficas sobre o dogmatismo e o criticismo”. In: FICHTE, J.G.
SCHELLING, F.V. Escritos filosóficos. São Paulo: Abril Cultural, 1973.
SILVA, E. C. “A relação corpo-mente: A mente como ideia do corpo na Ética de Benedictus
de Spinoza”, in: Rev. Conatus – Filosofia de Spinoza. vol 5, n. 9, p. 19-24, 2011.

Diaphonía, e-ISSN 2446-7413, v. 5, n. 1, 2019


Intuição intelectual de si: breve análise da crítica de Schelling ao dogmatismo de Espinosa e da
aproximação entre dogmatismo e criticismo

Submissão: 05.10.2018 / Aceite: 11.12.2018.

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Diaphonía, e-ISSN 2446-7413, v. 5, n. 1, 2019


Essencialismo e crítica social n’ O Crime de Lorde Arthur Savile de Oscar
Wilde
Essentialism and social criticism in 'The Crime of Lord Arthur Savile by Oscar
Wilde

NICOLE ELOUISE AVANCINI1

Resumo: O presente artigo tem como objetivo analisar o conto O crime de lorde Arthur
Savile, do escritor, poeta e dramaturgo irlandês Oscar Wilde, que narra as decisões tomadas
pelo protagonista após ser indicado, por um quiromante, que seria o autor de um
assassinato. Para tal, partimos do artigo Performative and Subversive: Oscar Wilde’s ‘Lord
Arthur Savile’s Crime’ de Masahide Kaneda, que interpreta o conto a partir de conceitos da
linguística e da semiótica de Ferdinand de Saussure. Nesse texto, é defendido que a estória
representa um antiessencialismo, por ilustrar como a realidade é construída do mesmo
modo em que se dá a estruturação da linguagem, isto é, de modo performativo, além de
estar sujeita a interpretações arbitrárias. Neste trabalho, entretanto, pretendemos contra-
argumentar tal posicionamento. Em nossa teorização, realizamos uma análise do contexto
em que a obra foi escrita - a Inglaterra vitoriana do final do século XIX - e adotamos como
base excertos do ensaio de Wilde A alma do homem sob o Socialismo, bem como algumas
ideias apresentadas por Liam Lynch em seu artigo Complex Truth from Simple Beauty: Oscar
Wilde’s Philosophy of Art. Com isso, enfatizamos, primordialmente, o aspecto de crítico
social do escritor, propondo que ele acreditava, de fato, numa essência intrínseca humana a
ser desenvolvida por meio da liberdade de ação. Por conseguinte, identificamos o conto
como uma representação dessa sua visão, que tem como finalidade promover uma objeção
aos valores impostos pela sociedade da época - exercendo, assim, seu papel de sátira.
Palavras-chave: Oscar Wilde. Conto. Essencialismo. Crítica social.

Abstract: This article aims to analyze The tale of Lord Arthur Savile, by Irish writer and poet
and playwright Oscar Wilde, which chronicles the decisions taken by the protagonist after
being indicated by a palmist who would be the author of a murder. For that, we start from
the article Performative and Subversive: Oscar Wilde's 'Lord Arthur Savile's Crime' by
Masahide Kaneda, who interprets the tale from the concepts of linguistics and the semiotics
of Ferdinand de Saussure. In this text, it is argued that the story represents an
antiessentialism, to illustrate how reality is constructed in the same way in which the
structuring of language occurs, that is, in a performative way, besides being subject to
arbitrary interpretations. In this work, however, we intend to counter-argument such
positioning. In our theorising, we conducted an analysis of the context in which the work
was written – Victorian England at the end of the nineteenth century. Its based on excerpts
from Wilde's essay The Soul of Man under Socialism. As well as some ideas presented by
Liam Lynch in article Complex Truth from Simple Beauty: Oscar Wilde’s Philosophy of Art. In
this, we primarily emphasize the writer's social critic, proposing that he believed, in fact, in
an intrinsic human essence to be developed through freedom of speech action. We
therefore identify the tale as a representation of this view, which aims to promote an
objection to the values imposed by society at the time – thus exercising its role of satire.
Keywords: Oscar Wilde. Tale. Essentialism. Social critic.

1
Graduanda em Filosofia pela Universidade Estadual do Oeste do Paraná. E-mail:
nicole_avancini@hotmail.com.

Diaphonía, e-ISSN 2446-7413, v. 5, n. 1, 2019


Essencialismo e crítica social n’ O Crime de Lorde Arthur Savile de Oscar Wilde

Introdução

Em 1891, sob o título original de Lord Arthur Savile’s Crime and Other Stories, o
escritor irlandês Oscar Wilde apresenta-nos uma coletânea de quatro contos –
sendo o quinto adicionado em edições posteriores. Um deles, o qual dá nome ao
livro, é o tema que o presente artigo propõe estudar.
A curta estória retrata as atitudes tomadas pelo protagonista, Lord Arthur
Savile, após ter seu destino revelado por meio da quiromancia, realizada pelo sr.
Septimus Podgers. Examinada sua mão, Arthur é previsto como autor de um
assassinato, e logo reconhece isso como um dever – o dever de realmente cometer o
ato para que, só então, tenha o direito de casar-se com Sybil Merton.
Masahide Kaneda, em seu artigo Performative and Subversive: Oscar Wilde’s
“Lord Arthur Savile’s Crime”2, analisa tal conto relacionando a caracterização das
personagens à maneira como a linguística é desenvolvida. De acordo com ele, a
realidade do protagonista é concebida de modo performativo, análogo ao modo
geral de construção da linguagem literária. Ou seja, valendo-se de termos da
semiótica de Saussure, o autor defende sua tese de que o conto trata de uma
representação alegórica da performatividade da linguagem, identificada nos efeitos
da quiromancia. Sendo assim, Kaneda argumenta em torno de um antiessencialismo
em Wilde, baseado na constatação de que as ações cometidas por Arthur advêm de 72
sua própria interpretação dos sinais que lhe são apresentados, à medida que decorre
a estória. Assim, é inferido que não há uma natureza inerente à referida
personagem, pois seu caráter é construído conforme sua leitura particular dos sinais.
Além disso, Kaneda afirma que o senso da personagem é invertido quando
decide por cometer o homicídio, demonstrando como os significados são
arbitrários. O autor afirma não haver explicação exata ao que controla suas ações,
mas sugere que a quiromancia é a metáfora para o caráter performativo, e os atos de
Arthur seriam produtos de sua interpretação arbitrária dos acontecidos da narrativa.
No entanto, teria lorde Arthur Savile cometido o crime se não soubesse, de
fato, de seu destino? Propomos, então, no presente trabalho, uma análise sob outra
perspectiva. Defendemos que o personagem fora, de fato, corrompido por tal
revelação e impelido a agir de forma contrária a sua real natureza e vontade. Logo, o
conto trata de uma crítica às virtudes valorizadas na sociedade vitoriana, a qual
parece-nos concretizar o conceito de determinismo com a presença de uma
autoridade que retira liberdades individuais e conduz a um conformismo.
Primeiramente, partimos da constatação de que Oscar Wilde era um crítico
social - não somente em seus ensaios, mas, sobretudo, em suas obras de ficção – e
que tal fato viu-se refletido na construção de seus escritos. Por isso, tomaremos

2
KANEDA, 1999, p. 81-98.

Diaphonía, e-ISSN 2446-7413, v. 5, n. 1, 2019


AVANCINI, N.

como base excertos de A alma do homem sob o Socialismo3 (também publicada em


1891), na qual o escritor critica as demandas da sociedade Vitoriana do século XIX
como responsáveis por suprimir as verdadeiras intenções humanas e impedirem-nos
de desenvolver uma personalidade intrínseca. Assim, caminharemos à proposição de
que Wilde era, com efeito, um essencialista.
A tal argumento, aliaremos a seção Aristotle and That at Which Everything
Aims do artigo Complex Truth from Simple Beauty: Oscar Wilde’s Philosophy of Art,
de Liam Lynch4, o qual explana como o escritor irlandês inspirou-se em Aristóteles
para reprovar as virtudes enaltecidas socialmente na época – entre elas, o dever, que
é retratado no conto em questão. Nesse artigo, Lynch defende que também
influenciaram Wilde as noções do grego de que a vida humana pressupõe uma
evolução – conceituação que podemos averiguar no ensaio previamente citado e que
nos parece estar implícita no conto.
Portanto, em concordância com Kaneda, defendemos que a narrativa
trabalhada é uma alegoria – mas a diferença está no fato de que indicamos uma
implícita crítica. Por isso, concluímos que Arthur é a vítima das imposições do
social, representadas por uma autoridade (no caso, sr. Podgers e a quiromancia),
que corrompe sua natureza e que dita suas ações, sendo que a personagem só pode
ver-se livre ao combater essa realidade - o que, de fato, ocorre no desfecho da
estória, após algumas tentativas. 73
1. O contexto

A Era Vitoriana5 foi o período em que a Inglaterra esteve sob o governo da


rainha Vitória I, compreendido entre 1837 e 1901. Essas décadas foram marcadas pelo
desenvolvimento político-econômico inglês e um significativo aumento
demográfico, principalmente devido à Segunda Revolução Industrial e à promoção
do neocolonialismo, que consolidaram o país como uma potência mundial.
Intelectualmente, vivenciou-se grandes avanços nas áreas da medicina, biologia,
física, psicologia e sociologia. Já a literatura da época, compreendida entre os
períodos do Romantismo e do Realismo, consolidou diversos autores, tanto na prosa
quanto na poesia, e explorou temas sociais com lições morais.
Apesar de todo esse progresso, a sociedade vitoriana contava com muita
desigualdade. A classe alta concentrava uma poderosa aristocracia, o que
contrastava com a classe trabalhadora, a qual enfrentou as consequências das largas
demandas industriais – péssimas condições de vida, altas cargas horárias, trabalho
infantil, prostituição e pobreza. Além disso, uma característica marcante dessa
sociedade foi o conservadorismo, que culminou em perseguições a escritores e

3
WILDE, 2004.
4
LYNCH, 2014.
5
Disponível em: http://www.victorian-era.org/victorian-era-society.html (acesso em: 11/08/2018)

Diaphonía, e-ISSN 2446-7413, v. 5, n. 1, 2019


Essencialismo e crítica social n’ O Crime de Lorde Arthur Savile de Oscar Wilde

artistas que discordavam do sistema vigente, como Oscar Wilde. Esse fato, no
entanto, não o impediu de escrever suas críticas, seja na forma de ensaios, seja
implícito em seus romances e curtas estórias.

2. Uma breve descrição do enredo

O crime de Lord Arthur Savile foi publicado, individualmente e pela primeira


vez, em 1887, na revista literária britânica The Court and Society Review, conhecida
por publicar os trabalhos de Wilde. Dado o contexto em que foi escrita, e o teor da
maioria dos escritos de Wilde, a narrativa retrata aspectos da sociedade da época. O
início é ambientado numa festa, onde encontram-se os mais diversos membros da
aristocracia: ministros, duques, princesas e integrantes da Royal Academy; a anfitriã
é lady Windermere, que se mostra fiel credora na quiromancia no início da trama, e
a responsável por apresentar sr. Podgers, o quiromante, aos convidados - entre eles,
lorde Arthur Savile, o protagonista. Este, observando o trabalho do quiromante com
outros presentes, solicita que sua mão seja, também, examinada - tarefa que,
quando executada, leva tempo para ser concluída, pois Podgers logo pressente algo
de diferente, mas não o revela. Arthur, preocupado com sua esposa e seu casamento,
teme por ter seu destino revelado e possivelmente interrompido, mas, mesmo assim,
oferece dinheiro pela resposta. O quiromante, então, expõe que o lorde seria o autor
de um homicídio - a partir disso, a trama se desenrola em torno da decisão de 74
Arthur por cometer, de fato, o crime.

3. Uma análise – performativo e subversivo

Apresentaremos, nesta seção, alguns pontos do artigo Performative and


Subversive: Oscar Wilde’s “Lord Arthur Savile’s Crime”, de Masahide Kaneda, que
serão discutidos na sequência. Contudo, em primeira instância, julgamos
importante esclarecer alguns conceitos presentes no texto e que são utilizados para
embasar sua argumentação.
No século XIX, Ferdinand de Saussure6, ao desenvolver sua teoria linguística,
estabeleceu o conceito de signo como o núcleo de representação da linguagem, e
como sendo o resultado da união entre o significante o significado. O significante
indica a palavra, o conceito abstrato e imaterial que dá nome a um elemento real,
concreto - e esse elemento é o significado. Os dois termos são, então, indissociáveis,
porém essa relação é estabelecida de acordo com o princípio da arbitrariedade.
Sendo assim, o sentido é criado conforme a interpretação que lhe é atribuída, seja
por uma convenção ou por um entendimento pessoal.
Portanto, de fato, o autor nos apresenta uma análise muito interessante de tal
conto, partindo do argumento de que a caracterização das personagens é feita da

6
Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=mXMAU5Of4SI (acesso em: 16/08/2018)

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AVANCINI, N.

mesma maneira que a linguagem é formada - ou seja, ambas possuindo um caráter


performativo. Com isso, ele propõe que as personalidades na obra são produzidas de
modo arbitrário, dependendo da interpretação que atribuem a sua própria
realidade. Diz o autor sobre a cena inicial do conto: “(...) o caráter é algo instável e,
além disso, é criado por meio da interpretação: essa introdução sugere crucialmente
que é pela interpretação dos signos, quer verbal ou não, que os significados são
identificados numa maneira arbitrária.” (KANEDA, 1999, p. 84)7. Essa forma de
caracterização é atribuída não apenas a Arthur, mas, também, aos outros presentes
na festa, que, segundo o autor do artigo, apresentam desarmonias entre seus títulos
sociais e suas ações.
A quiromancia, nesse artigo, é tratada como uma hermenêutica, que abre a
possibilidade de interpretações para que sejam criados os significados. Assim, é
argumentado que a significação também envolve convenções sociais, e é indicado o
termo “iterabilidade”, a desconstrução de um signo, abordado por Derrida:

[...] isso dá oportunidade para detectar o modo como os significados


são criados nas práticas discursivas. Isso envolve o procedimento
interpretativo oculto na significação. A leitura das mãos feita por
Podgers simbolicamente indica que a interpretação está sempre em
processo. Mesmo assim, Arthur cegamente acredita no que é dito
sobre seu futuro e decide cumprir com seu dever (KANEDA, 1999, p.
87). 75
Com a decisão de Arthur por realmente cometer o crime, é afirmado: “Seu
senso é exageradamente invertido, o que indica como os significantes e os
significados tornam-se caóticos por meio de sua própria interpretação.” (KANEDA,
1999, p. 85). Assim, ele reforça o caráter arbitrário que previamente atribuiu às ações
da personagem, e conclui sua primeira defesa do argumento de que há a
conceituação de um antiessencialismo no conto: “Se o caráter, como a ficção
repetidamente alega, não está fixado na substância de cada personagem, mas é
produzido por meio das jogadas dos sinais, isso engendra a noção antiessencial do
eu” (KANEDA, 1999, p. 85).
O autor afirma não haver resposta ou, até mesmo, não haver necessidade de
uma quanto à questão de quem seria o verdadeiro responsável por ludibriar Arthur
a cometer o crime. No decorrer do artigo, entretanto, encontramos possíveis
sugestões: o autor afirma que o poder da palavra "assassino", que ecoa na cabeça da
personagem e tem uma força ilocucionária e perlocucionária (persuasivas), leva-o a
realizar o crime. Além disso, o Destino, no conto, é descrito como uma força
desconhecida e inevitável, na qual Arthur é levado a crer. Ademais, há, também, o
fato de Arthur ter definido seu casamento como recompensa para a execução do
assassinato, que é visto como um dever, o que desenvolveremos adiante. Portanto, é

7
Todas as traduções são da autora.

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Essencialismo e crítica social n’ O Crime de Lorde Arthur Savile de Oscar Wilde

argumentado que o protagonista permanece alheio à tese da formação arbitrária da


realidade, e apenas age como acredita que deve agir.
Kaneda, ainda, abre reflexões a respeito da veracidade da quiromancia de
Podgers, isto é, se ele realmente foi capaz de ler a mão de Arthur, ou se apenas o fez
para receber dinheiro em troca. A respeito disso, argumenta ser difícil determinar, e
reforça sua tese principal: “[...] indeterminação no sentido de que nunca há a
verdade, mas apenas uma verdade constituída pelos efeitos performativos
(KANEDA, 1999, p. 93)”. Porém, o que ele defende veementemente é que Arthur
permanece abstraído com relação aos ditos efeitos performativos da quiromancia e
quanto ao caráter arbitrário de formação da realidade a partir da interpretação. Com
isso, propõe que o conto é uma alegoria ao modo como o mundo é constituído:

O crime de Lord Arthur Savile, em diversos sentidos,


alegoricamente informa essa natureza crucial da formação do
mundo, que se estende para além da construção da ficção até o
mundo real. Narrado bem-humoradamente na superfície, essa
ficção expõe o modo como ideologias criam nosso mundo por meio
da imposição de ilusões da substância. A narrativa sustenta que não
há nada além da interpretação de sinais no mundo (KANEDA, 1999,
p. 93-94).

O autor finaliza seu artigo, portanto, defendendo o valor subversivo que a


narrativa expõe. Sendo o mundo resultado de interpretações arbitrárias dos sinais,
76
ele conclui que não há uma essência, ou seja, tudo é mera construção. Por isso, ao
defender o conto como representante de uma força subversiva, ele atenta ao modo
fortuito como uma ideologia é formada e como o caráter não é algo fixo.

4. A natureza humana em Wilde

Nesta seção, exploraremos brevemente outro texto do escritor irlandês, de


modo a expor sua visão acerca de alguns pontos que serão base para a comprovação
dos argumentos defendidos neste artigo.
Na obra A alma do homem sob o Socialismo, escrita em 1891, Wilde expõe suas
críticas aos valores ressaltados pela sociedade capitalista, defendendo o Socialismo
não-autoritário como possível solução a essas mazelas e um caminho para o
Individualismo - com esse conceito, ele promove a liberdade que cada indivíduo
deveria ter de seleção e aprimoramento de seus próprios ofícios, sem qualquer tipo
de coação. Para tal, ele defende a extinção da propriedade privada e da competição,
argumentando que a mecanização substituiria o trabalho braçal humano. Assim,
livres dessa carga, sobraria tempo para dedicar-se à criação artística. Em suas
palavras:
A admissão da propriedade privada, de fato, prejudicou o Individualismo e o
obscureceu ao confundir um homem com o que ele possui. Desvirtuou por inteiro o

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AVANCINI, N.

Individualismo. Fez do lucro, e não do aperfeiçoamento, o seu objetivo. De modo


que o homem passou a achar que o importante era ter, e não viu que o importante
era ser. A verdadeira perfeição do homem reside não no que o homem tem, mas no
que o homem é (WILDE, 2004, p. 7).
Com isso, identificamos que Wilde concebe cada homem como um ser que
possui uma individualidade, e relaciona essa tese a sua crítica. Apesar de
caracterizar tal natureza individual com o uso de adjetivos positivos, também afirma
a naturalidade da ambição e da desobediência - sobre este conceito, o escritor
irlandês defende constituir o meio para o progresso, além de alegar que, onde há
autoridade, há seu combate. Essa individualidade, no entanto, estaria oprimida
pelas exigências da rotina numa sociedade industrial, que mantém o foco na
aquisição de bens e riquezas. Assim, podemos constatar como Wilde reprova os
valores sociais da época:
Numa sociedade como a nossa, em que a propriedade confere distinção,
posição social, honra, respeito, títulos e outras coisas agradáveis da mesma ordem, o
homem, por natureza ambicioso, fez do acúmulo dessa propriedade seu objetivo, e
perseguirá sempre esse acúmulo, exaustivo e tedioso, ainda que venha a obter bem
mais do que precise, possa usar ou desfrutar, ou mesmo que chegue até a ignorar
quanto possui (WILDE, 2004, p. 7).
Se, mesmo nessas circunstâncias, o homem for capaz de encontrar meios para
77
que seja possível seu desenvolvimento intelectual, o autor encontra nisso uma
explicação para a subjugação ao sistema. Porém, ele lamenta a situação daqueles
que, sem buscar sua prosperidade interior, entregam-se totalmente à vida laboriosa,
e tenta justificá-la ao alegar que: “(...) as desgraças da pobreza são degradantes ao
extremo e exercem de tal forma um efeito paralisador sobre a natureza humana que
classe alguma tem consciência de seu próprio sofrimento.” (WILDE, 2004, p. 5).
Com o intuito de livrar-se dessa subjugação, o escritor ressalta que é por meio da
contemplação da arte que se possibilita a formação de um senso crítico (criticismo
contemplativo), capaz de promover revoluções individuais e sociais. Pois, visto que
essa postura conduziria a uma transformação na personalidade de um homem, que
deixaria de ser egoísta e tornar-se-ia altruísta e benevolente, consequentemente,
promover-se-iam transformações sociais.
Diante disso, extraímos a conclusão de que Oscar Wilde acreditava que a
pobreza, a insegurança da classe operária, os trabalhos muito exigentes e a opressão
produzidas em uma sociedade capitalista prejudicavam o desenvolvimento da
natureza humana, uma suposta essência intrínseca. Assim, ele defende que, sob um
sistema socialista não-autoritário, tais exigências desvanecer-se-iam e o homem ver-
se-ia livre para exercer suas próprias vontades. Dessa maneira, abrir-se-ia caminho
para se alcançar uma espécie de Individualismo “não-capitalista”, isto é, aquele

Diaphonía, e-ISSN 2446-7413, v. 5, n. 1, 2019


Essencialismo e crítica social n’ O Crime de Lorde Arthur Savile de Oscar Wilde

voltado ao puro altruísmo, sem competitividade, que apenas visa ao


desenvolvimento interior de cada um.

5. Uma outra perspectiva

Apesar de a proposta de Masahide Kaneda a respeito do conto em questão ser


muito bem colocada e desenvolvida, para ser considerada efetivamente válida, seria
necessário, antes, ponderar se Wilde tomara conhecimento das obras de Saussure.
Por isso, nesta seção, propomos uma análise tomando por base as ideias próprias do
autor irlandês.
Oscar Wilde produziu escritos em prosa e em verso, incluindo ensaios,
diálogos, peças e cartas. Ele era adepto aos movimentos dândi e esteticista, além de
possuir uma visão libertária sobre o mundo, conforme o exposto. No final de sua
vida, foi sentenciado a dois anos de prisão por comportamento indecente e sodomia
– o que não o impediu, entretanto, de continuar produzindo.
O crime de lorde Arthur Savile, assim como outras de suas obras (O retrato de
Dorian Gray e A importância de ser prudente, para citar algumas), é um texto que, se
analisado tendo em vista o lado “filósofo” do autor e suas fortes opiniões, permite
profundas interpretações. O nosso objetivo é demonstrá-lo como uma ilustração
daquilo que Oscar tanto criticava.
78
Logo na abertura do conto podemos inferir essa suposta intenção, visto que
somos situados quanto à ambientação e ao perfil das personagens principais e
secundárias. Portanto, a crítica parte não de um ponto de vista fora dessa realidade,
mas, de fato, o autor parte da própria esfera da classe alta para criticá-la. Lady
Windermere, a anfitriã da festa, é quem logo faz “propaganda” do quiromante,
apresentando-o e despertando a atenção de alguns convidados, revelando-se uma
fiel credora dessa prática: “[...] se o meu polegar tivesse sido um pouquinho mais
curto, eu seria uma pessimista convicta.” (WILDE, 1994, p. 85). Um aspecto a que
conferimos atenção é que a descrição de sr. Podgers, apresentada do ponto de vista
de lady Windermere, quem o conhece bem, deixa evidente a dicotomia entre
aparência e realidade - oposição que se torna efetiva na proposta de opressão e
corruptibilidade que se desenvolve ao longo da estória, para mascarar como
inofensivo esse personagem:

Bem, ele não se parece nem um pouco com um quiromante. Quero


dizer que não é misterioso, ou esotérico, nem de aparência
romântica. É um homem pequeno e gordinho, com uma careca
engraçada e óculos de aros dourados; algo assim entre um médico
de família e um advogado do interior. Sinto muito, mas realmente
não tenho culpa. As pessoas são tão contrariantes (WILDE, 1994, p.
85).

Diaphonía, e-ISSN 2446-7413, v. 5, n. 1, 2019


AVANCINI, N.

Sr. Podgers, expondo o passado, o futuro e características do caráter dos


convidados, desperta a curiosidade de lorde Arthur Savile. Tímido, pede para que
lady Windermere os apresente, a qual logo diz que contará todo o resultado à Sybil,
companheira de Arthur - a respeito disso, ele não parece se preocupar, de início. No
entanto, no primeiro contato de Podgers com a mão de Arthur, quebra-se o clima
descontraído que se firmara em meio às outras revelações, mudando-se até a
conduta do quiromante:

Porém, quando o sr. Podgers olhou a mão de lorde Arthur, ficou


curiosamente pálido e não disse nada. Um arrepio pareceu
atravessá-lo, e suas imensas e fartas sobrancelhas tremeram
convulsivamente, do modo estranho e irritante que costumavam
fazer quando ele se via perplexo (WILDE, 1994, p. 90).

Disfarçando, porém sem passar despercebido por Arthur, Podgers revela-lhe


alguns acontecimentos comuns e logo encerra. Apenas após ter sido oferecido
alguns guinéus é que ele resolve por revelar o que havia visto de peculiar – sobre
isso, podemos levantar o questionamento quanto à veracidade da fala de Podgers: se
ele era, de fato um quiromante, ou apenas iludia as pessoas, chocava-as, contava-as
o que sabia que queriam ouvir, somente para manter a clientela e continuar
recebendo seu dinheiro. Para o desenvolvimento de nossa tese, no entanto, a
resposta a tal questão mantém-se indiferente, uma vez que o papel representado por 79
esse personagem efetiva-se independentemente da honestidade de seu diagnóstico.
Confrontando-se com a dúvida, Arthur sente medo, pavor, “um mal iminente”,
o que demonstra o poder da palavra de Podgers sobre ele, mesmo antes de tomar
conhecimento dela – e é a fala dele que desperta Arthur a questionar os rumos de
sua vida a partir desse momento:

Sempre levara a vida delicada e luxuosa de um jovem de berço e


fortuna, uma vida requintada em sua independência de quaisquer
preocupações sórdidas, em sua irresponsabilidade juvenil; agora,
pela primeira vez, tomara consciência do terrível mistério do
Destino, do horrível significado da Fatalidade (WILDE, 1994, p. 91-
92).

Esse excerto deixa-nos claro o caráter determinista que se desenvolve na


trama. Ou seja, Arthur é levado a acreditar que seu futuro já está, de fato, traçado e
ele deve apenas conformar-se e agir segundo deve. Não trata, portanto, de mera
interpretação atribuída à quiromancia, pois ele poderia escolher ignorar Podgers –
não o fez devido à credibilidade que lhe fora concedida por lady Windermere e os
demais convidados. Identificamos, portanto, na quiromancia, uma força,
evidentemente subversiva, que impele o protagonista a perseguir o que lhe fora
imposto, mesmo apesar de ele ser resistente a tal ideia, a princípio:

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Essencialismo e crítica social n’ O Crime de Lorde Arthur Savile de Oscar Wilde

Não passamos nós de peças de xadrez movidas por algum poder


invisível, vasos moldados à vontade pelo fabricante de potes, para a
honra ou para a vergonha? Sua razão voltava-se contra tal ideia.
Sentia, porém que uma tragédia pesava sobre ele, e que seria
repentinamente chamado a arcar com uma carga insuportável
(WILDE, 1994, p. 92).

Essa força e essa subversão seriam a representação de como alguns valores


socialmente difundidos - o dever e o forte moralismo, por exemplo - interferem na
vida e na tomada de decisões de um cidadão. Apesar de Arthur não pertencer à
classe operária, portanto não sofrendo com as mazelas da vida laboriosa, ele sofre
com o peso do dever que é imposto sobre ele, ou melhor, que ele próprio impõe
sobre si. Mesmo pertencendo à classe alta, ele não se encontra imune às pressões de
adequar-se às normas.
Somado a isso, há a questão do casamento com Sybil, que também motiva
Arthur a tomar uma atitude: “Compreendeu que casar-se com ela, com a fatalidade
do assassinato pairando sobre sua cabeça, seria traição semelhante à de Judas [...].
Que felicidade poderia existir para eles, quando a qualquer momento ele poderia ser
chamado a cumprir a aterradora profecia escrita em sua mão?” (WILDE, 1994, p.
98).
O casamento na era Vitoriana, especialmente entre membros da classe alta, era
muito valorizado. Para as jovens mulheres, era um evento importantíssimo, pois
80
seus papéis principais na sociedade eram o de mãe e o de esposa. Por parte dos
homens, restava concedê-las o máximo respeito, e cada detalhe do casamento,
desde o baile de apresentação da moça à sociedade até a lua de mel, era
meticulosamente cuidado. Por isso, Arthur assume que seria uma desonra a sua
noiva se ele desconsiderasse seu destino, ou se adiasse a celebração, pois “Havia
mais do que mera paixão em seu amor; e Sybil era para ele um símbolo de tudo que
existe de bom e de nobre. [...] Seu coração disse-lhe que não se tratava de pecado,
mas de um sacrifício; sua razão lembrou-lhe que não existia outro caminho.”
(WILDE, 1994, p. 98). Na obra A alma do homem sob o Socialismo, encontramos
críticas a esses dois conceitos, afirmando que o dever “significa tão-só-fazer o que os
outros querem porque assim querem”, que o auto-sacrifício “é tão-só uma
sobrevivência da mutilação selvagem.” (WILDE, 1994, p. 27).
Nesse ponto da estória, há uma inversão no comportamento de Arthur. Apenas
um dia se passa até sua tomada de decisão, e ele, que antes sentia medo e
insegurança perante seu destino, acaba por declarar, veementemente, que cumpriria
a tarefa: “Perguntava-se como poderia ter sido tão tolo que chegasse a gritar e lutar
contra o inevitável.” (WILDE, 1994, p. 99). Essa é a subversão que pesa sobre o
personagem: Podgers e a quiromancia representam a pressão social por enquadrar-
se nas regras morais disseminadas, que obliteram a liberdade e delimitam a vida e as
escolhas pessoais; a decisão de Arthur representa o conformismo a que os cidadãos

Diaphonía, e-ISSN 2446-7413, v. 5, n. 1, 2019


AVANCINI, N.

se sujeitam, ao ponto de acreditar que aquilo que lhe fora imposto é o melhor para
si. Tendo essas ideias finalmente fixadas em sua mente, resta a Arthur determinar
quem será sua vítima.
Primeiramente, após deliberar entre amigos e familiares, escolhe lady
Clementina Beauchamp, uma senhora e sua prima de segundo grau, bem como o
envenenamento como o melhor método. Ele compra uma cápsula, guarda-a numa
bonbonnière e leva-a pessoalmente até a casa da senhora. Devido ao fato de ela
sofrer de uma aflição cardíaca, Arthur a convence de que a cápsula é, na verdade,
um remédio, que deve ser ingerido ao sentir as dores que antecedem um ataque, a
fim de apaziguá-lo. Desse modo, seria possível simular uma morte natural. Arthur,
então, sai de viagem à Veneza, com a consciência plena de haver cumprido seu
dever. Lá, ele recebe a notícia de que lady Clementina havia falecido, porém não de
acordo com seu plano. Ao retornar, descobre que a cápsula não fora ingerida e o
motivo da morte fora, de fato, sua frágil condição.
Frustrado, Arthur leva algum tempo para se recompor, mas ainda mantém sua
decisão. Na segunda tentativa, escolhe seu tio como vítima, o deão de Chichester.
Sendo ele um apaixonado colecionador de relógios, o protagonista toma proveito e
encomenda uma peça com um mecanismo explosivo para oferecê-lo como presente.
Feita a entrega e passados alguns dias, não encontra menção nos jornais sobre a
possível morte do deão. Mas, após mais algum tempo, Arthur lê uma carta que sua 81
mãe havia recebido da decania de Chichester, que relatava sobre o presente
recebido – de fato, ele funcionava como um despertador, e dava apenas pequenas
explosões ao longo do dia. Ou seja, nada que pudesse ser uma ameaça a alguém.
Vendo seu plano falhar mais uma vez, Arthur se entristece. Sobre isso, o
narrador afirma: “Tentara cumprir seu dever, porém o próprio Destino o traía.
Sentia-se oprimido com a sensação da esterilidade das boas intenções, da futilidade
de tentar ser correto.” (WILDE, 1994, p. 114). Ressaltamos, por conseguinte, que o
personagem está disposto a cometer o crime somente porque ele acredita que é o
que lhe está determinado, a ponto de compreender sua decisão como uma boa
intenção e, qualquer ação que destoasse disso, seria incorreta. Portanto, concluímos
que, se Arthur não soubesse de seu destino, ele não viria a cometer o assassinato.
O que se desenrola na trama a seguir é, no mínimo, surpreendente. Enquanto
caminhava por Londres após um jantar no clube, Arthur avista um homem escorado
num parapeito às margens do rio Tâmisa. Quando o sujeito vira o rosto em direção
ao protagonista, a luz do lampião revela que é sr. Podgers. Sem pensar duas vezes e
num piscar de olhos, Arthur agarra-se a ele e atira-o no rio. Pouco tempo depois, os
jornais noticiam o ocorrido como um caso de suicídio e, imediatamente, Arthur vai
de encontro à Sybil para propor que eles se casem no dia seguinte.

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Essencialismo e crítica social n’ O Crime de Lorde Arthur Savile de Oscar Wilde

Em vista disso, interpretamos que o assassinato do quiromante - o qual seria a


representação da autoridade opressora - assume um valor simbólico: o combate às
pressões que tanto afligem o protagonista. Após falhar nas suas tentativas de
concluir seu dever, Arthur resolve a questão de uma maneira que lhe permite,
finalmente, ver-se livre. O que Wilde havia escrito n’A alma homem sob o socialismo
a respeito do alcance de uma individualidade vê-se representado aqui:
desvencilhado das imposições, Arthur pode, finalmente, realizar suas reais vontades
novamente, isto é, casar-se. Mesmo sendo responsável pela morte de um homem,
isso não deve, necessariamente, defini-lo como um criminoso, visto que o autor é da
opinião de que as ações de um indivíduo podem ser admissíveis se há uma
motivação maior por trás, conforme escreve em seu ensaio:

A personalidade é coisa muito misteriosa. Não se pode medir um


homem pelo que ele faz. Um homem pode seguir a lei, e no entanto
ser desprezível. Pode violar a lei, e no entanto ser justo. Pode ser
mau, sem nunca ter feito nada de mau. Pode cometer um pecado
contra a sociedade, e no entanto alcançar por meio desse pecado a
verdadeira perfeição (WILDE, 2004, p. 10).

De fato, o autor parece acreditar numa suposta perfeição a ser atingida pelos
homens. Liam Lynch, na seção intitulada Aristotle and That at Which Everything
Aims, de seu artigo Complex Truth from Simple Beauty: Oscar Wilde’s Philosophy of
Art, apresenta Oscar Wilde como um leitor das obras dos gregos antigos, e afirma
82
que ele fora influenciado pela ideia aristotélica de que o homem tende a alcançar
uma vida elevada, ao contrário de simplesmente mantê-la tal como é:

A escrita de Wilde mostra sua frustração com a falta de consciência


contemporânea da mediania de Aristóteles entre as virtudes, e com
a ênfase vitoriana nas noções de dever, castidade e caridade como as
virtudes mais elevadas. Na curta estória “O crime de lorde Arthur
Savile” (1887), a ênfase extrema colocada, pelos vitorianos, no senso
de dever é abrangida no assassinato de Podgers antes de Arthur
casar-se com Sybil: homicídio depois do casamento causar-lhe-ia
vergonha, e ele reconheceu “onde estava seu dever, e por tomou
plena consciência de que não tinha direito de casar-se enquanto não
houvesse cometido o assassinato”. Ele também indica uma relação
entre virtudes vitorianas como o dever e a falta de reflexão quando o
narrador diz de lorde Savile: “A vida para ele significava ação, mais
do que pensamento. Ele tinha o mais raro dos dotes, o bom senso”
(LYNCH, 2014, p. 17).

Portanto, é justamente essa noção aristotélica que ele considera estar


representada no conto de que tratamos, além das questões a respeito dos valores
sociais da época, como abordamos.
Ao final do conto, alguns anos se passaram quando Arthur e Sybil, já com dois
filhos, recebem a visita de lady Windermere. Ela traz à tona o assunto da

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AVANCINI, N.

quiromancia e confessa que sr. Podgers era um impostor. A respeito disso, podemos
ponderar se, conforme já exposto, os diagnósticos feitos pelo quiromante não eram
mesmo legítimos, ou se lady Windermere simplesmente não acreditava nessa
prática, e toda a manifestação que ela havia feito em torno dela foi apenas para
atrair e entreter seus convidados. Porém, quando questiona a Arthur se ele
realmente acredita na quiromancia, e ele responde que a ela deve toda a felicidade
de sua vida (neste caso, Sybil), o conto encerra com lady Windermere exclamando:
“Que tolice! Nunca ouvi tamanha tolice em toda a minha vida” - essa fala evidencia
o conto como uma sátira, que tem a finalidade de criticar, efetivamente, toda a
estrutura social do período vitoriano.

Referências

LYNCH, L. “Aristotle and that at which everything aims”. In: Complex Truth from Simple
Beauty: Oscar Wilde’s Philosophy of Art, Degree of Doctor of Philosophy of Curtin
University, 2014.
KANEDA, M. Performative and subversive: Oscar Wilde’s “Lord Arthur Savile’s Crime”, Osaka
Literary Review. 38, p. 81-98, 1999.
WILDE, O. Contos inéditos. Tradução: Barbara Heliodora. Rio de Janeiro: Nova Fronteira,
1994.
_____. A alma do homem sob o socialismo. Tradução: Mia Wallace e Vincent Veja, 2004.
Acesso em: 83
https://libcom.org/files/WILDE,%20Oscar.%20A%20alma%20do%20homem%20sob%20o%
20socialismo.pdf

Submissão: 20.10.2018 / Aceite: 30.11.2018.

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O jovem Nietzsche e as influências de Lange1
The young Nietzsche and the influences of Lange

NEOMAR SANDRO MIGNONI2

Resumo: O presente estudo visa a tematizar a influência da obra de Lange no jovem


Nietzsche enquanto ainda era estudante de Filologia Clássica em Leipzig, por volta de 1866-
68. Procuraremos evidenciar que a História do Materialismo ocupa um lugar central entre as
principais fontes de informação a partir da qual o jovem Nietzsche pode levar a cabo uma
série de leituras, especialmente sobre a ciência do seu tempo, que serão fundamentais e
determinantes no plano da elaboração de seus principais escritos dos anos de 1870.
Palavras-chave: Nietzsche. Lange. Schopenhauer. Ciência.

Abstract: The present study aims to thematize the influence of Lange's work on young
Nietzsche while still a student of Classical Philology in Leipzig, circa 1866-68. We will try to
show that the History of Materialism occupies a central place among the main sources of
information from which the young Nietzsche can carry out a series of readings, especially
on the science of his time, which will be fundamental and decisive in the elaboration plan of
his main writings of the 1870s.
Keywords: Nietzsche. Lange. Schopenhauer. Science.

Ao abandonar o curso de Teologia em Bonn e decidir estudar filologia clássica


em Leipzig, onde permaneceu do outono de 1865 até a primavera de 1869, Nietzsche
dedicou-se a uma temporada de estudos bastante decisiva. Durante esse período, no
qual a filologia tornou-se parte essencial de sua vida, assomaram-se as descobertas
da obra de Arthur Schopenhauer e de Friedrich Albert Lange. De Schopenhauer,
Nietzsche deve ter lido O mundo como vontade e representação entre o final de
agosto até o início de novembro de 1865 e seu efeito foi imediato. Não muito
diferente foi o encantamento do jovem e futuro filólogo com a História do
Materialismo de Lange, obra que adquiriu logo após sua publicação em agosto de
1866, lendo-a inteiramente em um breve período.
O pessimismo schopenhaueriano e a negação da vontade como exigência ética
encantaram o jovem Nietzsche. O entusiasmo com essa influência se tornou visível
no seu modo de pensar e conceber o mundo especialmente ao longo dos anos de
1865-66. Tais influxos encontram-se presentes inclusive em suas cartas, como, por
exemplo, a que escreveu ao seu amigo Hermam Mushacke de 11 de julho de 1866:
“Desde que Schopenhauer nos tirou dos olhos a venda do otimismo vemos com
maior nitidez. A vida é mais interessante, embora mais feia”. Schopenhauer desperta

1
O presente trabalho foi realizado com apoio da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de
Nível Superior - Brasil (CAPES) - código de Financiamento 001.
2
Graduado em Filosofia pela UNICENTRO. Mestre em Filosofia pela UNIOESTE. Doutorando em
Filosofia pela UNIOESTE. E-mail: neomarmignoni@hotmail.com.

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MIGNONI, N.

Nietzsche para o pensamento filosófico persuadindo-o de entranhar-se unicamente


na filologia, como era o desejo de seu professor Ritschl. Na filosofia de
Schopenhauer, Nietzsche encontrou filosoficamente manifestado o conteúdo
trágico da vida, cujo ímpeto lhe revelou, por meio da arte e de sua ciência, toda a
tragédia antiga (cf. JANZ, I, 2016, p.153). Embora não tenha produzido nada de
filosófico nesses primeiros anos em Leipzig, o aprofundamento na filosofia de
Schopenhauer contribuiu para que Nietzsche buscasse ampliar seus conhecimentos
sobre a história da filosofia em geral.
Contudo, ainda que o filósofo mantivesse um vivo interesse pela filosofia que
agora se materializava no estudo de Schopenhauer de um lado, por outro, seu
interesse pelo materialismo e especialmente pela figura de Demócrito se fortalecia.
Incentivado sobretudo, por seu distanciamento do cristianismo, das leituras de
Feuerbach e da revista Anregungen für Kunst, Leben und Wissenschaft, Nietzsche
ocupou-se ainda com a crítica à teleologia e ao estudo da natureza da arte,
especialmente da música, leu David Strauss, o qual discutiu com a irmã, o cientista
da música de Viena e adversário de Wagner, Eduard Hanslick, além do ensaísta e
poeta americano Ralph W. Emerson. No entanto, nenhuma dessas leituras foram tão
impactantes quanto a leitura da Geschichte des Materialismus und Kritik seiner
Bedeuting in der Gegenwart (Inserlohn, 1866) ou, simplesmente História do
materialismo, de Friedrich Albert Lange. 85
Imbuída de uma detalhada reconstrução das teorias científicas modernas, em
particular da fisiologia e da biologia, a História do materialismo tornou-se crucial,
pois, através dela, o jovem estudante de filologia pôde aprofundar-se na relação
entre as ciências naturais e a filosofia, familiarizando-se com o darwinismo3 e com
as vertentes políticas e econômicas de seu tempo, ao mesmo tempo em que
encontrava ali também um aparato bastante amplo acerca do materialismo,
fundamentado, em partes, na figura de Demócrito, um dos pensadores prediletos de
Lange e que, nesse período, tanto interessava a Nietzsche. Foi também através da
obra de Lange que o jovem Nietzsche travou contato pela primeira vez com os
positivistas ingleses, além de encontrar ainda uma outra interpretação acerca de
Kant, diversa daquela apresentada por Schopenhauer. Mais tarde ele retomaria seu
interesse por Kant por meio da obra de Kuno Fischer (Immanuel Kant,
Entwicklungsgeschichte und System der kritischen Philosophie, 2 vol.) e
possivelmente na leitura da própria Crítica da Faculdade do Juízo.
Lange não foi apenas uma referência acerca da história da filosofia ou de seus
conceitos gerais, foi, antes de tudo, uma fonte de informações sobre as orientações e
os contributos da ciência de sua época. Tais informações determinaram de modo
bastante profundo os rumos da investigação de Nietzsche no âmbito científico, uma

3
Mittasch (1952, p. 13) é categórico em afirmar que foi através da obra de Lange que Nietzsche obteve
um preciso conhecimento sobre o darwinismo.

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O jovem Nietzsche e as influências de Lange

vez que, além de apresentar as principais temáticas debatidas no momento em


História do Materialismo, trouxe informações bastante detalhadas dos autores mais
influentes do período. Numa carta endereçada à Gersdorff em fevereiro de 1868,
Nietzsche reconheceu a importância dessa obra numa verdadeira síntese:

Se você tiver vontade de se informar completamente sobre o


movimento materialista dos nossos dias, sobre as ciências naturais e
suas teorias darwinianas, os seus sistemas cósmicos, com sua
câmera obscura animada, mas também sobre o materialismo ético,
sobre a teoria de Manchester etc., não tenho nada de mais
extraordinário para te recomendar que a História do Materialismo
de Friedrich Albert Lange, um livro que oferece infinitamente mais
do que promete no título e que não nos cansamos de ler e consultar
como um verdadeiro tesouro. Em vista da orientação de seus
estudos, não posso lhe recomendar nada mais digno. Eu estou
firmemente decidido a apresentar-me a este homem e, como sinal
de minha gratidão, pretendo enviar-lhe meu tratado sobre
Demócrito (Epistolario, I, 562).

Nietzsche não chegou a escrever tal Tratado, nem mesmo encontrar-se


pessoalmente com Lange, embora estivessem bastante próximos geograficamente,
visto que, entre os anos de 1870 e 1872, Lange vivia em Zurique e Nietzsche na
Basileia (cf. JANZ, 1980, p. 181-82)4. Entretanto, isso não impediu Nietzsche de
manter um forte interesse sobre a obra de Lange ao longo dos anos, pois, ao que 86
tudo indica, ele tornou a ler a obra por volta de 1884-85, como nos atestam alguns
póstumos5, o que nos leva a pressupor que o filósofo tenha tomado conhecimento
da segunda edição da obra ampliada e reelaborada publicada em 1882. Os
exemplares da primeira edição (1866) foram doados pelo filósofo ao seu amigo
Heinrich Romundt ainda nos anos de 1870. Na biblioteca de Nietzsche, encontra-se
segunda reimpressão da quarta edição publicada em 1887 por Hermann Cohen 6.
Nietzsche cita muito raramente Lange em seus escritos, apesar de toda a influência,
o que torna ainda mais difícil identificar e analisar a influência de Lange sem o apoio
de referências e menções à obra. Por conta disso, talvez o modo mais adequado

4
Lange até chegou a citar Nietzsche numa nota na segunda edição de sua obra (vol I., nota 44, p. 60),
porém Nietzsche não chegou a ter conhecimento dessa referência, pois a versão que ele adquiriu em
1887, nada mais era do que uma edição econômica da quarta edição da obra de Lange editada em um
único volume por H. Cohen. Embora essa quarta edição adquirida por Nietzsche seja uma
reprodução fiel do texto da segunda edição ela não reproduziu as notas da segunda edição. Inclusive
na primeira tiragem, não havia nem mesmo o índice dos autores citados. A segunda tiragem passou a
contar com o índice de nomes, porém o nome de Nietzsche não chegou a aparecer, pois, como já
dissemos, ela não reproduziu as notas existentes na segunda edição (cf. SALAQUARDA, 1992, p. 24-
25).
5
Cf. FP 25 [318] e 25[424] da primavera de 1884 e 34[99] de abril - junho de 1885.
6
Cf. Nietzsches persönaliches Bibliothek, p. 339.

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consista em seguir os motivos e os temas singulares tratados por Lange e pelo


filósofo no intuito de encontrar possíveis conexões ao longo da obra nietzschiana7.
Ainda que Lange não desenvolva todas as implicações e consequências de suas
análises filosóficas, Nietzsche certamente encontrou ali um extenso número de
questões e temas que o preocupavam. De acordo com Stack (1983, p. 17-18), a visão
geral de Lange carrega consigo a ideia de que o surgimento do materialismo
juntamente com o desenvolvimento da Naturwissenschaft levou a um ponto que
existe “uma restrição do verdadeiro conhecimento (como em Kant) dos próprios
fenômenos”. Apesar do progresso no desenvolvimento do intelecto humano, isso
leva a ciência natural a encontrar, paradoxalmente, os “limites do conhecimento
científico natural”. Aos olhos de Lange, tais consequências, advindas do avanço das
teorias científicas, constituem uma confirmação da crítica da teoria do
conhecimento de Kant. Nesse sentido, “o agnosticismo filosófico se funde com o
agnosticismo científico” de modo que quanto mais se sonda da natureza, menos se
conhece a respeito das constituintes finais da realidade. Para Lange, a ciência pode
viver com esse agnosticismo, mas uma cultura ou uma civilização não conseguem
sobreviver por muito tempo sem uma religião ou uma natureza religiosa.
Lange estabelece, assim, um diagnóstico bastante preciso quanto às
consequências e perigos oriundos de uma visão de mundo totalmente pautada no
científico e que pudesse alcançar o domínio cultural. A previsão de intensos 87
conflitos entre ciência e religião ou das tensões em torno das questões sociais é algo
presente em Lange, e que mais tarde fará parte também do repertório de Nietzsche.
A solução de Lange passa por um ideal cultural pós-cristão que não apenas
congregue e unifique cultura ocidental, mas que também consiga dar significado à
vida para além da frieza das probabilidades científicas. Nisso talvez esteja a
grandeza de Lange, cujo reconhecimento por parte de Nietzsche é notório. Mesmo
simpatizando-se com o materialismo, mesmo tendo-o examinado cuidadosamente,
Lange não se deixa levar pela via do mero dogmatismo materialista. Antes, ainda
que partam de um ponto de vista do materialismo, suas soluções buscam
transcender o próprio materialismo. Ou seja, Lange se manteria numa espécie de
terceira via entre o materialismo e o idealismo que Stack denomina de
fenomenalismo universal8. Por reconhecer que a objetividade do real é importante à

7
Exemplo de um trabalho dessa natureza é, sem dúvidas, a obra de G. J. Stack, Lange and Nietzsche,
na qual são investigadas as singulares temáticas do pensamento de Nietzsche em relação a Lange
dentre elas questões relativas ao conhecimento e à verdade, à teoria do eterno retorno do mesmo, à
vontade de potência. A partir delas e sem desmerecer a originalidade do filósofo, o autor evidencia a
maneira pela qual a profunda conexão entre a obra de Lange e os escritos de Nietzsche se conectam
entre si e de como, em alguns casos, aparenta que o filósofo tenha desenvolvido tais teorias a partir
de conteúdos ainda embrionários presentes na História do materialismo.
8
Salaquarda (1979, p. 142) defende que Nietzsche foi influenciado por esse fenomenalismo de Lange,
porém somente com a publicação de Humano Demasiado Humano I ele se tornaria público. Segundo
ele, Nietzsche chegou a dar sinais dessa influência em outros de seus escritos como, por exemplo,
Verdade e mentira no sentido extra-moral e Sobre o Pathos da Verdade (um dos “Cinco prefácios para

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O jovem Nietzsche e as influências de Lange

ciência assim como ao homem é necessária uma cultura ideal de valores, Lange
procuraria uma espécie de harmonia entre o Wissenschaften e o Geisteswissenschaft
numa atitude que anteciparia muitas tendências do final do século XIX e início do
XX (cf. STACK, 1983, p. 18).
Isso certamente permitiu o jovem filólogo expandir seu pensamento sob um
vasto terreno sobre o qual pode desenvolver muitos aspectos de sua filosofia ainda
em fase experimental. Talvez seja sob essa perspectiva que Nietzsche se refira à
História do materialismo como um “verdadeiro tesouro” (Epistolario, I, 562), uma
vez que o fenomenalismo, o ceticismo, a ideia de que a ciência não nos oferece uma
“verdade”, bem como a crítica das verdades “em si”, com as quais Nietzsche se
confronta, podem ser encontradas, ainda que de forma embrionária, no pensamento
de Lange. Ao estabelecer sua crítica do empreendimento científico pela via
filosófica, Lange tornou visível à Nietzsche que a reflexão filosófica pode alcançar
um profundo valor ao compreender tanto os aspectos materiais quanto os
espirituais. Desse modo, todo e qualquer empreendimento filosófico que pretenda
dar conta da realidade não pode eximir-se de considerar o longo e vasto acúmulo de
conhecimento advindo das ciências. Provavelmente Nietzsche tenha compreendido
tal proposito, uma vez que desde o período de sua formação, quando descobriu
Lange, dedicou-se assiduamente à filosofia confrontando-se constantemente com a
problemática científica, sem esquecer os aspectos mais ideais da vida humana, como 88
por exemplo, a arte, a religião e a metafísica. Sob esse aspecto, parece-nos que o viés
argumentativo de Humano, demasiado humano (sobretudo o §251) seja o exemplo
mais palpável de tais influências.
Nesse sentido, assim como Brobjer (2016, p. 26) podemos afirmar que a
descoberta de Schopenhauer em 1865 juntamente com a descoberta de Lange em
1866, mais do que despertar e Nietzsche para a filosofia revelou-se determinante
para o seu crescente interesse acerca das ciências naturais. Desse modo, Lange foi
tão crucial para o debate de Nietzsche com o pensamento científico quanto
Schopenhauer o foi no campo da filosofia. Foi também através de Lange e
Schopenhauer que Nietzsche aprofundou-se, num primeiro momento, na filosofia
de Kant, sua terceira grande influência desse período. Não é à toa que tenha escrito
“Kant, Schopenhauer e este livro de Lange – de nada mais preciso” (Epistolario, I,
526) na carta à Mushacke.
A influência de Kant em Nietzsche, especialmente nesses anos de Leipzig é
grande, mesmo que o jovem estudante não o tenha lido em primeira mão, pois, ao
contrário de Schopenhauer e Lange de quem leu as próprias obras, o conhecimento
sobre o filósofo de Königsberg, se deu, na maior parte, a partir de fontes

cinco livros não escritos”), o qual foi entregue a Cosima Wagner como presente de natal e aniversário
em 1872, porém diante da reserva e da frieza com que os Wagners receberam tal escrito é bastante
provável que ele tivesse decidido manter-se em silêncio tanto quanto possível sobre isso.

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secundárias. Kant é também um dos filósofos a quem Nietzsche mais faz referências,
seja porque é a partir dele que se desenvolve quase toda a filosofia alemã posterior,
da qual Schopenhauer e Lange fazem parte, seja porque grande parte da sua crítica à
filosofia moderna, incluída aqui a alemã, é dirigida a Kant ou levada a termo a partir
de Kant. Imediatamente após tomar conhecimento sobre Kant, Nietzsche
demonstrou um profundo interesse pelo filósofo, e, como procuramos evidenciar
acima, chegou inclusive a planejar uma dissertação filosófica “metade científica e
metade filosófica” relacionada ao filósofo (cf. Epistolario, I, 568). Anos mais tarde, já
em sua filosofia tardia, Kant viria a tornar-se um de seus principais antípodas,
denominado de “o grande chinês de Königsberg”9 (BM, §210), a quem dirige muitas
das suas críticas.
Para compreender essa mudança de perspectiva, é imprescindível que se leve
em conta as leituras feitas sobre Kant. Provavelmente o primeiro contato com a
filosofia de Kant tenha se dado através de Schopenhauer que, além da grande
influência kantiana, também discutiu vários argumentos de Kant em seus escritos.
Por outro lado, é bastante provável que o entusiasmo de Nietzsche para com Kant
tenha sido motivado também pela leitura da obra de Lange. A História do
materialismo divide-se em dois volumes cuja argumentação sobre o materialismo
divide-se em “antes de Kant” (vol. I) e “depois de Kant” (vol. II). Lange era
assumidamente kantiano e além da centena de páginas dedicadas ao filósofo, ainda 89
manteve um profundo diálogo com o autor ao longo de toda a obra, especialmente
no segundo volume.
Uma terceira e talvez bastante decisiva fonte que Nietzsche se utilizou sobre
Kant é a Geschichte der neuern Philosophie de Kuno Fischer, que dedica os volumes
III e IV a Immanuel Kant. Entwicklungsgeschischte und System der kritischen
Philosophie (Mannheim, 1860), provavelmente lida entre outubro de 1867 e abril de
1868. Muitas das citações de Kant são advindas da obra de Fischer que também é
citado por Nietzsche repetidas vezes10. Há ainda uma outra fonte secundária que
possivelmente também tenha contribuído para com Nietzsche no conhecimento
sobre Kant. Trata-se da obra Über die Natur der Cometen: Beiträge zur Geschichte
und Theorie der Erkenntnis (1872) de Johann K. Zöllner, na qual encontram-se
algumas dezenas de páginas acerca de Kant.

9
“O grande chinês de Königsberg” (BM, §210) e “Chinesismo Königsberniano” (CI, §11),
“Königsberniana” (CI, Como o “mundo verdadeiro” se tornou finalmente em fábula) são
evidentemente referências a Kant. Para melhor compreender a designação recorde-se a crítica de
Nietzsche à Kant enquanto moralista, evidenciada, por exemplo, no §11 do Anticristo, levando-se em
conta ainda que a China é, para Nietsche, “um país onde a insatisfação em grande escala e a
capacidade de mudança se extinguiram séculos atrás” (GC, §24).
10
Nietzsche também faz referências a Friedrich Überweg especialmente a Grundriss der Geschichte
der Philosophie des Alterthums e Grundriss der Geschichte der neueren Philosophie. Na Biblioteca de
Nietzsche, além dessa obra de Überweg, encontra-se também Kant und die Epigonen de Otto
Liebmann (Stuttgart, 1865) (cf. Nietzsches persönaliche Bibliothek, p. 627-28 e 356 respectivamente).

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O jovem Nietzsche e as influências de Lange

Na Biblioteca de Nietzsche, não encontramos nenhum volume de Kant e


provavelmente ele nunca possuiu algum. No entanto, é possível que o filósofo tenha
lido a Kritik der Urtheilskraft (Crítica da faculdade do Juízo) em 1868. Embora não
temos provas robustas dessas leituras, diante do entusiasmo bastante expressivo
presente em seus escritos juntamente com os registros de suas inúmeras leituras de
obras sobre Kant, que aliados à sua intenção de produzir uma dissertação filosófica
cuja temática girava em torno de Kant e a teleologia e que resultaram em inúmeras
citações acerca do filósofo, parece-nos aceitável semelhante hipótese. Na carta que
escreveu a Wilhelm Vischer (-Bilfinger), provavelmente em janeiro de 1871,
justificando sua candidatura à cátedra de filosofia na Universidade da Basileia,
Nietzsche também afirma que “dentre os filósofos recentes estudei com predileção
particular Kant e Schopenhauer” (Epistolario, II, 118).
Seja como for, é inegável que as influências de Kant, Schopenhauer e de Lange
determinaram os estudos de Nietzsche. Obviamente que junto deles se podem citar
inúmeros outros, como, por exemplo, Überweg e Fischer, porém a importância de
Kant, Schopenhauer e Lange será bastante decisiva ao longo desse percurso que
compreende os anos da Basileia (1869-1879) e em especial no triênio 1875-78,
quando Nietzsche elabora e traz à luz Humano, demasiado humano. Isso porque, a
partir de Lange, Nietzsche toma conhecimento de muitos autores do campo
científico que, de um modo outro de outro, acabam se inserindo num contexto 90
filosófico profundamente determinado pela discussão acerca de Kant e
Schopenhauer.
Um outro fator determinante para a compreensão da importância que a
ciência e, quem sabe até o naturalismo, tem para Nietzsche é, mais uma vez, a figura
de Demócrito. Foi através do filósofo grego que o atomismo, o materialismo e a
questão da teleologia se tornaram importantes para Nietzsche. É bastante provável
que Nietzsche tenha conhecido Demócrito antes de Lange, mas foi através da
História do materialismo que ele passa a se dedicar ao filósofo grego com interesses
filológicos e filosóficos. Recorde-se a já citada carta à Gerdorff (Epistolario, I, 562),
na qual pretendia enviar seu tratado sobre Demócrito a Lange em sinal de gratidão.
Os cadernos de Nietzsche, escritos depois da leitura de Lange, contemplam uma
série de anotações que provavelmente seriam utilizadas no ensaio11.
A análise desses cadernos evidencia que, além de Demócrito, encontram-se
presentes ainda os demais temas com os quais Nietzsche se ocupou neste triênio de
11
Veja-se, por exemplo, o caderno P I 4 a do outono de 1867 – primavera de 1868 que contém os
apontamentos específicos para este ensaio. No caderno P I 6 a, por exemplo, Nietzsche continua a
tematizar sobre Demócrito, além de fazer uma série de referências a outros autores como La Mettrie,
Gassendi, Locke, Epicuro, Lucrécio entre outros, os quais são seguidos por uma série de citações
advindas da História do Materialismo de Lange. Aliás, esses autores são os mesmos que Lange
tematiza ao longo de sua obra, o que mais uma vez reforça a importância deste autor para o
desenvolvimento da filosofia de Nietzsche, sobretudo à temática científica (cf. NIETZSCHE, 1993 p.
66-106).

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MIGNONI, N.

1865-68. Esses assuntos, além de concomitantes, possuem como elemento


aglutinador um modelo argumentativo muito próximo de Lange com os quais se
mesclam os argumentos de Schopenhauer, Kant e Demócrito12. Nesse sentido,
parece-nos bastante claro que a proeminência do modelo proveniente da História do
materialismo deve-se, sobretudo, pela atualidade e pertinência com que seu autor
discute e interpõe suas questões, as quais se tornaram fundamentais a Nietzsche,
que, por sua vez, as tematiza a partir dos mesmos autores e assuntos que foram
citados exclusivamente por Lange frente aos demais autores que o filósofo leu e
consultou nesse período13.
Segundo Gori (2007, p. 45), a influência que o texto de Lange teve sobre
Nietzsche advém da abordagem filosófica feita pelo autor da História do
Materialismo no confronto com a interpretação materialista da natureza. Partindo
de Demócrito enquanto expressão primeira desse pensamento, Lange não se ateve
às temáticas científicas de maneira rigorosa, mas antes as reelaborou desenvolvendo
suas consequências tanto no âmbito gnosiológico quanto ético. Segundo o mesmo
autor, essa abordagem de Lange é o resultado do contexto no qual vivia, associado à
profunda influência de Kant14. Nesse sentido, essa seria também a razão pela qual o
estudo sobre o aprofundamento da realidade natural torna-se o ponto de partida
para uma reflexão que deseja ser profundamente filosófica, mantendo-se à parte da
especulação científica sem, contudo, contrapor-se a ela. 91
No entanto, esse modo de proceder, até então característico de Lange,
reaparece agora também nos escritos de Nietzsche, e não apenas nesses da
juventude, mas também nos posteriores, como por exemplo, nos seus primeiros
escritos e lições da Basileia, mantendo-se inclusive até mesmo nos escritos da
maturidade, o que prova mais uma vez que a influência de Lange é algo de profundo
e duradouro. Nessa direção, podemos afirmar, tal qual Salaquarda (1992, p. 28), que

12
Note-se que os de cadernos do outono de 1867 - da primavera de 1868 trazem uma sequência de
temas e de autores. Por exemplo, o caderno P I 4 a, como evidenciamos acima, trata de Demócrito, da
mesma forma que o P I 6 a que mescla desde Demócrito, La Mettrie, Gassendi, Locke, Epicuro,
Lucrécio e Lange. Nesse mesmo caderno ele escreve o Sobre Schopenhauer com críticas ao autor. No
caderno P I 7 a torna a falar de Demócrito e inclui discussões sobre a ciência, e aqui temos referências
à química, medicina, até chegar à temática da teleologia que será aprofundada no caderno seguinte, o
P I 8 a que traz o projeto de dissertação A teleologia de Kant em diante. Em todos esses escritos não é
difícil perceber o quanto as obras de Schopenhauer, Fischer e Lange, com a proeminência deste
último, se mesclam num único agregado (cf. NIETZSCHE, 1993, p. 66-162).
13
Referimo-nos a temáticas que comportam desde o radicalismo materialista, Darwin, as questões
sobre a teleologia e a explicação mecanicista de mundo cuja problematização de Lange gira em torno
do materialismo e, por vezes, relacionando Darwin a Demócrito. Nesse sentido, recomenda-se a
leitura da introdução feita por Giuliano Campioni e Federico Gerratana ao volume Appunti Filosofici
1867-1869 – Omero e la Filologia Clássica, Adelphi, 1993, p. 9-54. Nesse volume, também se
encontram os cadernos de Nietzsche aqui citados.
14
Nesse caso vale lembrar que Lange divide sua obra em dois volumes, sendo que no segundo toda a
abordagem gira em torno do “Materialismo de Kant”, que inclusive é o subtítulo desse volume. Para
Gori (2007, p. 45), Lange dividiria assim a história da ciência em “antes de Kant” e “depois de Kant” o
que evidencia ainda mais a importância que Lange atribui a Kant.

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O jovem Nietzsche e as influências de Lange

é a partir das indicações de Lange que Nietzsche conhece aquela diversidade de


autores e obras aos quais foi endereçado e lhe proporcionaram o conhecimento de
linhas inteiras de pesquisa. É certo também que, em alguns casos e sobre
determinados autores, lhe bastaram as exposições e interpretações de Lange, porém,
em outros, Nietzsche tratou de ler e estudar as próprias obras desses autores
confrontando-se com elas sem intermediações15.
Sob as influências da História do materialismo, Nietzsche sentiu-se compelido
a debruçar-se sobre um dos argumentos mais debatidos naquele momento, as
ciências naturais16. Frente às numerosas descobertas científicas daquele período, as
quais garantiram um rápido progresso à pesquisa científica, era natural que
surgissem intensos debates. Diante das novas possibilidades e perspectivas,
tornavam-se urgentes as explicações que pudessem resolver as questões que agora
se impunham diante do homem em sua relação com o mundo natural. Foi então que
a obra de Lange possibilitou a Nietzsche, sempre muito atento aos debates culturais
que o cercavam, confrontar-se com os novos problemas humanos e científicos de
seu tempo, os quais irrompiam trazendo consigo as consequências e as influências
de uma nova era para a história, a sociedade e a vida como um todo (cf. ZIMMERLI,
1999, p. 255)17.
À medida que descobre novas exigências, novas discussões e problemas cada
vez mais aprofundados a partir dos temas que vinha se debruçando, Nietzsche sente 92
a necessidade de expandir seus estudos a novas obras e autores. Alwin Mittasch, em
seu estudo intitulado Friedrich Nietzsches als Naturphilosoph (1952, p. 13-23), foi
quem pela primeira vez evidenciou que o interesse de Nietzsche pelas temáticas
científicas se desenvolveu nesses anos de estudos em Leipzig. É também durante
esse período que o filósofo conquista uma certa independência em relação à mãe e a
irmã, se aproxima de Ritschl que, além da influência exercida, foi também
determinante para o seu ingresso, como professor, na universidade da Basileia.
Nietzsche ainda permanece bastante apegado a Schopenhauer, quem, além do
despertar à filosofia, também representou uma profunda experiência espiritual que
se revelou duradoura. É a partir desse contexto, portanto, que Nietzsche projeta
15
Sobre esse argumento, é fundamental a leitura de J. Salaquarda, Nietzsche und Lange publicado no
Nietzsche-Studien, vol. 7, 1978, p. 236-253. O mesmo texto pode ser lido também em versão italiana
Nietzsche e Lange, in La ‘Biblioteca ideale’ di Nietzsche, a cura di Giuliano Campioni e Aldo
Venturelli, Napoli, Guida editori, 1992, p. 19-43.
16
Para Mittasch (1952, p. 13-14), Nietzsche conhecia a ideia de desenvolvimento natural (natürlicher
Entwicklung) desde Pforta, mas teria sido apenas em Leipzig, depois da leitura da obra de Lange, que
ele viera a ocupar-se verdadeiramente com o assunto que agora dominava o cenário das ciências
naturais. O autor destaca ainda, como já citamos, que a obra de Lange foi crucial para seu
conhecimento sobre o Darwinismo.
17
Para Zimmerli (1999, p. 255), Nietzsche pode ser denominado como um “filósofo da ciência”, uma
vez que, segundo ele, a análise dos escritos do filósofo evidencia que a maior preocupação de sua
filosofia gira em torno dos problemas mais decisivos do século XIX, o da ciência e das humanidades,
os quais, além de intimamente coligados, também poderiam ser caracterizados a partir do termo
alemão Wissenschaft.

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uma série de leituras cujas obras refletem, em certa medida, seus interesses no
período. Conforme a reconstrução de Mittasch (1952, p. 21-22), feita a partir das
anotações do jovem estudante, o quadro de leituras divide-se em tratados de
medicina, fisiologia, lógica e ciências da natureza, conforme o elenco abaixo:
Schopenhauer, Über den Willen in der Natur.
Treviranus, Über die Erscheinungen und Gesetze des
organischen Lebens 1832.
Czolbe, Neue Darstellung des Sensualismus Leipz.
1855.
Czolbe, Die Grenzen und der Ursprung der
menschlichen Erkenntniß.1865.
Moleschott, Kreislauf des Lebens 1862.
Moleschott, Die Einheit des Lebens 1864.
Virchow, Vier Reden über Leben und Kranksein 1862.
Virchow, Gesam. Abhandl. zur wissensch. Med. 1856.
Trendelenburg, Logische Untersuchungen 1862.
Überweg, System der Logik.
Helmholtz, Über die Erhaltung der Kraft Berlin 1847.
Helmholtz, Über die Wechselwirkung der Naturkräfte
1854.
Wundt, Vorlesungen über die Menschen- und
Thierseele 93
Lotze, Streitschriften
Lotze, Medicin. Psychologie
Trendelenburg, Monatsber. Berl. Akad., Nov 1854, Feb 1856.
Trendelenburg, Historische Beiträge zur Philosophie 1855
Herbart, Analyt. Beleuchtung des Naturechtes und
der moral.
Schelling, Ideen zu einer Philosophie der Natur
Herder, Ideen zur Philos. der Gesch. der Menschheit.
Bichat, Recherches physiologiques sur la vie et la
mort.
Joh. Müller, Über das organische Leben
Joh. Müller, Über die Physiologie der Sinne.
Kant, Kritik der Urtheilskraft 1790.
Fries, Mathematische Naturphilosophie 1822.
Schleiden, Über den Materialismus in der neueren
Naturwissenschaft 1863. (Mechan.
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Diaphonía, e-ISSN 2446-7413, v. 5, n. 1, 2019


O jovem Nietzsche e as influências de Lange

Oken, Lehrbuch der Naturphilosophie 1809 II Aufl.


1843.
Carus, Grundzüge der vergl. Anatomie und
Physiologie 1825.
Importante assinalar aqui que praticamente todos esses autores, e inclusive
muitas dessas mesmas obras, cuja leitura Nietzsche planeja efetuar, são autores e
obras que Lange tematizou na História do Materialismo. De certo modo, mais do
que evidenciar a importância da obra de Lange para o pensamento nietzschiano,
essa seleção de obras e autores representa também a preocupação de Nietzsche para
com a temática científica. Ao nosso modo de ver, essa preocupação para com as
questões relativas à ciência natural dá vida àquele embrião que, mais tarde, de um
modo profundo e original, será capaz de desenvolver noções tão determinantes para
o pensamento nietzschiano em profunda conexão com as ciências, sobretudo a
física, biologia, psicologia e fisiologia, como é caso do pensamento do eterno retorno
e da vontade de potência. Mais do que uma busca por obras que tratem da relação
entre filosofia e ciência natural, o planejamento de Nietzsche inclui também obras
quase que exclusivamente científicas.
Isso demonstra, uma vez mais que, mesmo entranhado na metafísica de
Schopenhauer, mesmo diante de toda a dedicação à filologia, o jovem Nietzsche já
se encontra profundamente marcado por aquele pensamento crítico que o levou a
distanciar-se do cristianismo e que, gradualmente, o levará a adquirir sua
94
independência também da metafísica e, com ela, de Wagner e Schopenhauer. Desse
plano de leituras supracitado, Nietzsche não leu praticamente nenhuma dessas
obras durante os anos em Leipzig, tampouco logrou dedicar-se apenas à filosofia.
Entretanto, uma vez na Basileia, mesmo exercendo a profissão de filólogo, seu
interesse pelas ciências naturais tornou-se ainda mais vivo, e aqui sim ele levará a
cabo uma série de leituras cujas consequências marcarão até mesmo os anos da
maturidade. É, portanto, a partir dessas leituras e impostações, em grande medida
influenciadas pelos anos de Leipzig com especial destaque para a figura de Lange,
que se desenvolvem as principais noções e argumentações que posteriormente virão
à luz no Humano demasiado humano. Mas este é um outro assunto acerca do qual
nos ocuparemos em um outro momento.

Referências

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of Illinois Press: 2008.
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edition of the complete works of Nietzsche edited by Giorgio Colli and Mazzino Montinari.
The eKGWB is edited by Paolo D’Iorio and published by Nietzsche Source. Disponível em:
http://www.nietzschesource.org/
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SCHLECHTA, Karl – ANDERS, Anni. Friedrich Nietzsche. Von den verborgenen Anfängen
seines Philosophierens, Stuttgart-Bad Cannstadt 1962.
_____. Epistolario. Vol I, 1850-1869. Edizione italiana condotta sul texto critico stabilito da
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Nietzsche, Epistemology and Philosophy of Science; Nietzsche and the Science II, Dodrecht
1999, pp. 253-277.

Submissão: 01.10.2018 / Aceite: 27.11.2018.

Diaphonía, e-ISSN 2446-7413, v. 5, n. 1, 2019


Nietzsche e a ética do esquecimento
Nietzsche and the ethics of oblivion
1
ABRAAO LINCOLN COSTA

Resumo: Nietzsche nos diz que assim como toda vida orgânica não apenas necessita de luz,
mas também da escuridão, esquecer torna-se uma ação precisa para o fortalecimento da
vida. A partir dessa reflexão, o presente trabalho propõe analisar a tese nietzschiana do
“esquecimento” enquanto força plástica [Plastiche kraft], capaz de libertar o homem dos
sofrimentos decorrentes do excesso de memória. Dessa forma, veremos parte da crítica do
filósofo feita ao sentido histórico da modernidade, denunciando-o então como uma doença
histórica [Die historiche], em razão da incapacidade durante tal época de reconhecer suas
falsas aplicações. Tempo ainda que mostrou-se incapaz de promover as devidas críticas ao
mundo e a sociedade em geral, consagrando de forma restrita as conquistas do passado,
além de expandi-las de maneira desmedida e universalizante.
Palavras-chave: Nietzsche. Ética. Esquecimento histórico. Modernidade.

Abstract: Nietzsche tells us that just as all organic life not only requires light, but also
darkness, forgetting becomes an action needed to strengthen life. Based on this reflection,
this study aims to analyze the Nietzschean thesis of "oblivion" as a plastic force [Plastiche
kraft] able to free man from the suffering caused by excessive memory. Thus, here we see
part of the philosopher’s critique of the historical meaning of modernity, denouncing it as a
historical disease [Die Historiche], due to the inability, at the time, to recognize its false
applications. A time that also proved unable to promote the necessary critique of the world
and society in general, narrowly consecrating past achievements, and expanding them in a
disproportionate and universalizing way.
Keywords: Nietzsche. Ethics. Oblivion historical. Modernity.

No prefácio da II Consideração Extemporânea: Sobre a utilidade e da


desvantagem da História para a vida (Unzeitgemässe Betrachtungen. Zweites Stück:
Vom Nutzen und Nachteil der Historie für das Leben), vemos, tal como em obras
anteriores, Nietzsche retomar as críticas aos filisteus da cultura2, pois para o filósofo,
esses costumeiramente se contrapunham ao desenvolvimento de uma cultura

1
Doutorando em Filosofia pela Universidade Estadual do Oeste do Paraná – UNIOESTE. E-mail:
abraaofilosofia@gmail.com.
2
Para Nietzsche, o filisteu da cultura representa todo aquele que esteja à mercê da cultura decadente,
de forma que esse filisteu deva então ser entendido como um homem destituído de conhecimento de
si mesmo e que, dessa maneira, acolhe a crença de estar ciente de que a sua cultura seria a expressão
máxima do verdadeiro espírito [Geist] alemão. De acordo com Marton (cf. 1993, p. 18), Nietzsche vê o
filisteu como expoente oposto aquilo que de fato tem a ver com a cultura superior [Kultur], pois
diante da sua incapacidade de criação, acaba por se restringir à mera imitação e ao consumismo. O
problema é que o filisteu costuma denominar-se como alto representante da cultura, influenciando
suas ideias nos diferentes segmentos políticos e culturais, que, por isso acabou assumindo suas fortes
influências. Desse modo, vê-se então o embrutecimento do ser humano, dispersado e enaltecido por
uma falsa cultura, que entende o Estado como uma espécie de fim último da humanidade, e na
propriedade, o reflexo de uma vida feliz.

Diaphonía, e-ISSN 2446-7413, v. 5, n. 2, 2019


COSTA, A.

superior [Kultur]. Homens cujo tratamento histórico resumiram-se ao simples


saudosismo do passado, incapazes de promover qualquer articulação com os fatos
da vida presente. Diante disso, adverte o filósofo, qualquer estudo histórico jamais
deveria concentrar-se na efêmera tarefa de produzir conhecimentos à serviço de
uma cultura decadente. Ao contrário, é preciso impulsionar as ações daqueles que
buscam no passado a referência necessária para construir o futuro, promovendo
assim um saber histórico de estreita relação com a vida [das Leben]. Entretanto,
todo aquele que explora em demasia o passado, desprezando por conta disso as
ações do presente e do futuro, fará então com que o historicismo de caráter
moderno torne-se danoso para a saúde e para a vida. Porém, ao tratarmos o passado
histórico com a visão concomitantemente posta no presente e no futuro, nos
permitiremos enxergar a verdadeira utilidade do sentido histórico à vida dos
homens e da cultura.
Mas afinal, o que seria o sentido histórico? Podemos responder essa pergunta
afirmando de início tratar-se do retorno ao passado de nossas principais lembranças.
Além disso, também refere-se a uma retrospecção obtida pelas recordações de
sentimentos e das representações provenientes da cultura: dessa maneira, o sentido
histórico tem a função de levar para a consciência as coisas que já se passaram,
esgotadas no fluxo do tempo, ainda pertinentes de serem analisadas ao creditarmos
a essas memórias a capacidade de compreendermos melhor o presente, bem como 97
traçar com maior lucidez os planos para o futuro. Nietzsche, entretanto, chama
atenção sobre o equívoco do excesso de sentido histórico, ou seja, a demasiada
crença dos filisteus ao debruçarem-se amplamente nessa investigação do passado a
fim de obterem melhores condições para responderem sobre o presente e o futuro.
Trata-se para o filósofo alemão de grave equívoco pensar assim, uma vez que a
obsessão em investigar todas as minúcias do passado na intenção de decifrar os
mistérios do mundo faria com que esse historiador comprometesse as forças vivas
da atualidade, impedindo a criação do futuro que não fosse mera repetição ou
sofrimento.
Do ponto de vista histórico que inaugura o que existiria de original na
modernidade, o homem, por conta da sua presunção científica, acreditava ter se
livrado da metafísica; entretanto, o desmedido desejo da ciência pela busca de uma
verdade absoluta sobre os acontecimentos do passado era a prova de que ainda
mantivesse-se presa à velha tradição filosófica e religiosa da qual acreditava estar
liberto. Assim como na II Consideração Extemporânea (II Unzeitgemässe
Betrachtungen), Nietzsche retoma a problemática da natureza metafísica do sentido
histórico dos modernos na tragicidade da sua parábola da “Redenção” encontrada
no Assim Falou Zaratustra. O homem moderno é tratado na obra como o “assassino
de Deus”, o “homem mais hediondo”. Adjetivos que representavam o homem da
tradição judaico-cristã, que embora esforçoso em livrar-se das amarras do

Diaphonía, e-ISSN 2446-7413, v. 5, n. 1, 2019


Nietzsche e a ética do esquecimento

transcendente, submetia-se a ciência aos mesmos dogmas universalizantes que o


cristianismo sempre utilizou.
Os avanços da cultura moderna despertaram não apenas o orgulho no povo
alemão como também o interesse de registrar seus principais momentos somente
pela atenção à cultura histórica [Historische Bildung]. Essa febre histórica
[Historische Fieber] que atendia os desígnios da corrente hegeliana, entretanto,
passou a se defrontar com as duras críticas de Nietzsche, que entendeu sua época,
conforme dissemos no parágrafo anterior, tratar-se do movimento responsável pelo
desencadeamento do declínio da cultura alemã.
Isso significou que diferente da simples satisfação com as memórias do
passado, a cultura alemão a influência da cultura hegeliana desejava uma
consciência histórica capaz de se revelar como uma vontade de futuro.3 Desse modo,
é preciso entender que o Estado alemão fora o responsável pelo enaltecimento das
grandes realizações históricas, incluindo-as em seus constantes discursos
nacionalistas de perspectiva aos novos tempos, para então justificar que apenas no
futuro poderia ser reconhecido aquilo que estivesse sendo feito no presente. As
expectativas sobre o futuro conferiam os acontecimentos da atualidade como um
direito histórico, acreditando, dessa maneira, que a história [Historie] seria o
tribunal a julgar em última instância. Em contraposição a isso, Nietzsche em sua II
Consideração Extemporânea, reiterou-se dos mesmos parâmetros da cultura grega, 98
incluindo juntamente ao começo desta obra um componente, segundo ele, capaz de
realçar a vida, distanciando-a em certa medida da “tristeza e do sofrimento”, isto é, a
tese do esquecimento.
Os diversos acontecimentos históricos lançados no passado só poderiam ser
suportados mediante a economia de certas lembranças e do esquecimento. Para
Nietzsche, a consciência da memória seria uma espécie de arranjo irreparável que
constitui a cada um de nós seres humanos. Algo bem diferente dos animais, que
vivem constantemente no presente, por isso sem qualquer condição das lembranças
do passado ou terem que realizar projeções do futuro, motivo esse pelo qual podem
viver felizes e sinceros, despertando a inveja dos homens. Por meio dessa relação
entre a história com a existência que o filósofo desenvolve suas considerações sobre
a lembrança e o esquecimento. Ora, se o homem almeja a felicidade e a memória
dos erros, apenas acentuam-se os infortúnios que passou, logo, a vida feliz consiste
exatamente na capacidade de esquecer. Muitas lembranças podem significar a dor à
medida que o esquecimento torna-se o conforto que produz um efeito psíquico de
estar por algum tempo fora da história.
Diferentemente da doutrina do esquecimento, chamamos novamente atenção
para as considerações de Hegel acerca da história. Para o autor da Fenomenologia do

3
MOURA, Carlos A.R. Nietzsche: Civilização e Cultura, p. 161.

Diaphonía, e-ISSN 2446-7413, v. 5, n. 1, 2019


COSTA, A.

Espírito [Phänomenologie des Geistes], os fatos históricos devem estar de acordo


com tudo aquilo que seja rico em acontecimentos e, por conseguinte, em profundas
lembranças. Com isso, o hegelianismo entende que os grandes feitos do passado só
podem ser lembrados devido à notoriedade conquistada pelo sucesso de suas ações.
A exemplo disso, teríamos a vitória do cristianismo sobre o mundo antigo, além dos
avanços da ciência nos últimos séculos, o que para os olhos da cultura moderna
tornaram-se provas incontestáveis da superioridade do espírito [Geist] alcançada no
decorrer da história.
Nietzsche, entretanto, reconhecia nas considerações hegelianas acerca da
cultura histórica uma idolatria de imensurável equívoco, pois se para os hegelianos
tudo aquilo que escapa da memória histórica é também considerado infrutífero ou
injustificável, nosso filósofo4, ao contrário, entendia o esquecimento como uma
força plástica [Plastiche Kraft] capaz de reavivar o homem de forma física e
espiritual, transformando e assimilando as coisas do passado, curando as feridas e
reparando as inúmeras perdas causadas pelo tempo. Nesse sentido, mesmo do alto
das grandes conquistas, para Nietzsche, o homem possui inveja dos animais, por
serem mais capazes dessa habilidade do esquecimento [Vergessenheit]. Seres que
diferentes de nós, encontram-se notavelmente destituídos da consciência
perturbadora, por isso incapazes de sofrerem qualquer aflição concernente à busca
pelo ideal de uma vida próspera e feliz. Seres ainda incapazes de sentirem culpa ou 99
de contraírem mágoas, pois não estariam presos assim como nós no passado. Dessa
forma, o homem seria então o único ser vivo vítima das próprias lembranças. As
lembranças dos erros que ao longo da vida cometeu e dos males que o fizeram
vítima, além, é claro, da consciência da sua finitude, o que deduzimos tratar-se da
principal inveja em relação a qualquer outra espécie animal, indiferentes a essas
perturbações.
Essa inveja da qual alguns homens destilam aos animais, contudo, poderia ser
dispensada, caso contraíssemos para o espírito a nobre força plástica do
esquecimento. Por conta disso, Nietzsche atribui o surgimento de um estilo de vida
a-histórico [Unhistorich], isto é, uma postura de vida em que fossemos
completamente absorvidos pelos acontecimentos do presente, logo incapazes de
dissimular e, tampouco, de reprimir qualquer amargura, por sabermos empenhar
nossas ações com a firmeza do caráter, conduzindo-nos então a uma posição de
autêntica sinceridade frente às intempéries do mundo.
É desse modo que Nietzsche então estabelece relação do histórico, entendido
como algo que serve à vida com o a-histórico [Unhistorich], ou seja, a um novo tipo
de história, vinculada ao poder no qual pensa a vida como força criadora para além
da racionalidade comumente expressada na História [Historie] de caráter
puramente científico. Assim, é improvável aproximarmos um tipo histórico de
4
HL/Co. Ext. II, p. 73.

Diaphonía, e-ISSN 2446-7413, v. 5, n. 1, 2019


Nietzsche e a ética do esquecimento

caráter puramente científico, conforme defendido por Hegel e toda a cultura


moderna com o sentido a-histórico, cuja intenção é promover a vida mediante a
possibilidade de cultuar o passado sem perder de vista sua articulação com o
presente. Com base nessa afirmativa, entendemos a crítica de Nietzsche sobre a
ideia hegeliana de um tipo de História [Historie] predominantemente científica e
racional, que acredita num espírito universal, capaz de realizar-se nela própria
alcançando a autoconsciência de si na consciência do homem como espírito divino e
absoluto.

A história compreendida à maneira hegeliana foi chamada


ironicamente de a marcha de Deus pela terra, mas sendo este
próprio Deus somente uma criação da história. Foi nas cabeças
hegelianas que ele se tornou transparente e compreensível para si
mesmo, tendo já transposto todos os graus dialeticamente possíveis
do seu futuro até esta última auto- revelação: de maneira que, para
Hegel, a culminância e o acabamento do processo universal
coicidem com a sua própria existência berlinense.5

É preciso haver certa economia das lembranças ou até mesmo esquecê-las,


considerando a disposição inevitável e característica da nossa condição humana. A
capacidade de viver no momento atual é aquilo que Nietzsche qualifica como
sentido a-histórico de viver. Capacidade da qual o ser humano dificilmente possui
meios de adicionar, por conta da sua natural incapacidade, por isso simplesmente 100
tende a tornar-se num ser mentiroso e infeliz. Contudo, podem existir maneiras de o
homem manter-se no presente, desfrutando de uma felicidade momentânea, como a
exemplo do homem tomado por uma forte paixão, fazendo então esquecer do
tempo. Tratar-se-ia do modo de vivência a-histórica, pois estaria impulsionada por
uma poderosa força plástica, que também possibilitaria o indivíduo de lançar um
olhar com generosidade e indiferença ao passado à proporção de que ainda
determinaria seu próprio futuro.
A tese nietzschiana acerca do esquecimento exige de nós a devida atenção,
pois do contrário, cairíamos no equívoco de nos prendermos dentro do seguinte
questionamento: haveria espaço para pensarmos o sentido a-histórico uma vez que
as lembranças do passado fossem totalmente esquecidas? A fim de nos afastarmos
dos falsos riscos desse entendimento, primeiramente, respondemos que Nietzsche
jamais propôs radicalmente o esquecimento do passado, o que nos levaria a um
sentido anti-histórico, porém, o mesmo nos adverte que assim como todo
organismo vivo necessita da luz, também é necessário a escuridão, ou seja, do
esquecimento6. Daí o interesse do filósofo em coadunar o modo de vida a-histórico
[Unhistorich] com o histórico [Historich] no propósito de realizar o projeto de
revitalização da cultura alemã. Em suma, é preciso aprender a lembrar daquilo que

5
HL/Co. Ext. VIII, p. 145.
6
HL/Co. Ext. II, p. 73.

Diaphonía, e-ISSN 2446-7413, v. 5, n. 1, 2019


COSTA, A.

de fato seja útil à vida, e, desse modo, auxiliar na construção de um sentido


verdadeiramente histórico capaz de esquecer aquilo que venha a nos debilitar e
enfraquecer.

A serenidade, a boa consciência, a atividade alegre, a confiança no


futuro – tudo isso depende, num indivíduo, assim como num povo,
da existência de uma linha de demarcação entre o que é claro e bem
visível e o que é obscuro e impenetrável, da faculdade tanto de
esquecer quanto de lembrar no momento oportuno, da faculdade de
sentir com um poderoso instinto quando é necessário ver as coisas
sob o ângulo histórico, e quando não. Este é exatamente o princípio
sobre o qual o leitor é convocado a refletir: o elemento histórico e o
elemento a-histórico são igualmente necessários à saúde de um
indivíduo, de um povo, de uma cultura.7

O esquecimento tornou-se um estudo comprovadamente caro ao pensamento


nietzschiano, uma vez que o mesmo perpassa as diferentes fases da sua filosofia. A
exemplo disso, quando comparamos8 a II Extemporânea de 1874 com a Genealogia
da Moral de 1887 (Zur Genealogie der Moral) constatamos que Nietzsche preserva9 o
mesmo interesse pelo tema da juventude, ampliando suas considerações quando
afirma na força [Kraft] do esquecimento um tipo de ação afirmativa, pois:

[...] esquecer não é uma simples vis inertiae [força inercial], como
crêem os superficiais, mas uma força inibidora ativa, positiva no 101
mais rigoroso sentido graças à qual o que é por nós experimentado,
vivenciado, em nós acolhido não penetra mais em nossa
consciência, no estado de digestão (ao qual poderíamos chamar de
assimilação psíquica), do que todo o multiforme processo da nossa
nutrição corporal ou assimilação física.10

Quando o uso da consciência opera mediante a habilidade psíquica do


esquecimento, temos a possibilidade da abertura de um novo tipo de conhecimento

7
HL/Co. Ext. II, p. 74.
8
Sobre a história da publicação da II Consideração Extemporânea, ocorrida em fevereiro de 1874, é
importante destacar a contribuição de Carl von Gersdorff, responsável por redigi-la, assim como
Erwin Rhode, que na mesma época fez as correções. No ano de 1886, Nietzsche, entretanto, chegou a
rever esta obra, corrigindo-a novamente e acrescentando as novas alterações ao texto original,
motivo pelo qual notamos no ressurgimento do tema do “esquecimento” [Vergessenheit] na
Genealogia da Moral, de 1887 preservada a mesma linha de argumentação.
9
Vania Dutra considera que o retorno do tema do “esquecimento” em GM tem como novidade o ato
de assumir a tarefa de “guardião da ordem psíquica enquanto se liga o ato de esquecer ao poder agir,
criar, organizar, enfim, dominar” (Das vantagens e desvantagens da História da Filosofia para o ensino
da Filosofia, p. 68). Ora, diante dessa definição não percebemos qualquer alternância da linha
argumentativa já apresentada na Segunda extemporânea. Certamente, a obra GM demonstra sua
inovação metodológica se comparada aos escritos anteriores, a exemplo de seu método genealógico
em substituição ao método histórico, conforme visto na juventude. De toda forma, reitero não haver
qualquer tipo de revisão da definição dada ao esquecimento em 1886, que não seja apenas a
articulação dessa tese com as ideias sobre a moral, que vinham em processo de maturação desde
Aurora e Para Além de Bem e Mal.
10
GM, II, 1.

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Nietzsche e a ética do esquecimento

de caráter indeterminado. Esquecer, portanto, torna-se um benefício à saúde física e


mental, pois preserva a placidez fundamental que leva o homem à superioridade do
espírito. “Como o que logo se vê que não poderia haver felicidade, jovialidade,
esperança, orgulho, presente, sem o esquecimento.”11 No entanto, todo aquele o qual
tenha danificado esse precioso aparelho inibidor do esquecimento, acaba se
comparando a uma pessoa doente, por conta da sua incapacidade para engendrar
grandes feitos na vida. Fatalmente, esse mesmo indivíduo que tanto precisaria da
força [Kraft] inibidora para conquistar uma saúde forte, ao oposto, acabou
contraindo dentro de si a faculdade da memória, com cuja ajuda o esquecimento é
ignorado em diversos casos.
Reiteramos que Nietzsche denuncia apenas o excesso de História da Filosofia,
que pela incapacidade de interagir com o presente acabou inibindo a produção
filosófica relativa às oportunidades de pensar sobre as situações concretas
pertencentes ao momento atual. Era então preciso pensar numa forma de estudo em
que o homem pudesse visitar o passado sem correr nenhum risco de paralisia, ou
seja, desenvolver uma forma de culto a esse passado permitindo ao mesmo instante
potencializar o presente. É inegável o valor contido na tradição, tornando-se
fundamental enquanto possível parâmetro para o presente ao transmitir como
herança suas crenças e valores. Portanto, a intenção é reforçar que o aprisionamento
a esse passado paralisa as chances de criação de novas crenças e valores atuais, caso 102
a história não se atente que o presente, em condições reflexivas seja capaz de
ressignificar o passado. Por isso, depreendemos que o sentido histórico pensado por
Nietzsche permitiria as condições de achar a justa medida entre a falta e o excesso
de História da Filosofia, conseguindo, dessa forma, apoiar-se na tradição sem deixar-
se estagnar pelo passado.

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11
GM, II, 1.

Diaphonía, e-ISSN 2446-7413, v. 5, n. 1, 2019


COSTA, A.

Submissão: 26.05.2019 / Aceite: 20.06.2019.

103

Diaphonía, e-ISSN 2446-7413, v. 5, n. 1, 2019


Nietzsche e a superação do sentimento de culpa em Humano demasiado
humano I
Nietzsche and overcoming the feeling of guilt in Human too human I

GRACY KELLY BOURSCHEID PEREIRA1

Resumo: O presente texto busca investigar os aspectos do pensamento de Nietzsche sobre


a moralidade. Diferente da abordagem de muitos moralistas, o filósofo alemão não buscou
analisar a moral a partir de conceitos absolutos. Nesse artigo, observaremos que a
investigação histórica dos sentimentos morais e da obediência à tradição abordada nos
primeiros escritos constitui uma etapa importante para o projeto nietzschiano de superação
do sentimento de culpa.
Palavras-chave: Nietzsche. Sentimentos morais. Sentimento de culpa.

Abstract: This paper seeks to investigate the aspects of Nietzsche’s thinking about morality.
Unlike the approach of many moralists, the German philosopher did not seek to analyze
morality from absolute concepts. In this article, we will observe that the historical
investigation of the moral feelings and the obedience to the tradition addressed in the first
writings constitutes an important step for the Nietzschean project of overcoming the feeling
of guilt.
Keywords: Nietzsche. Moral feelings. Guilt Feeling.

Introdução

Este trabalho investiga aspectos do pensamento de Nietzsche sobre a


moralidade. Observamos que a análise acerca do surgimento histórico dos
sentimentos morais se destaca no pensamento filosófico sobre o tema. Diferente da
abordagem de muitos moralistas, o filósofo alemão não buscou analisar a moral a
partir de conceitos absolutos. Sua abordagem crítica intenta evidenciar que os
sentimentos morais surgiram em comunidades remotas, desenvolveram-se
historicamente e podem ser transformados. Analisaremos a investigação sobre a
origem dos sentimentos morais em Humano, demasiado humano I (1878)
observando em que medida os primeiros escritos de Nietzsche sobre a moralidade
influenciaram as suas perspectivas morais presentes nas obras posteriores. No elo
entre os períodos do seu pensamento sobre a moral, veremos uma campanha
vigorosa contra o sentimento de culpa. O filósofo considera o resgate da história dos
sentimentos morais como importante instrumento para que o homem compreenda
que o sentimento de culpa é um erro moral que o prejudica. Em 1878, o filósofo se
ocupa em analisar a história dos sentimentos em oposição às convicções metafísicas
que tornaram o homem culpado. Considerando as ações humanas como
completamente necessárias, enfatiza que o homem precisa conhecer a sua

1
Graduada em História pela UNIPAR e em Filosofia pela UNIOESTE. Mestre em Filosofia pela
UNIOESTE. E-mail: gkbourscheid@hotmail.com.

Diaphonía, e-ISSN 2446-7413, v. 5, n. 1, 2019


PEREIRA, G.

irresponsabilidade sobre as ações para se livrar da culpa moral. Nietzsche nos indica
que, assim como a moralidade fez surgir o homem culpado, consciente de sua culpa,
o conhecimento dos aspectos históricos da moralidade permitirá o surgimento de
um novo homem, um homem sábio e inocente. Essa inversão no modo de ver as
ações permite que o homem recuse todos os mecanismos que limitam a expansão de
suas forças. Observamos que a investigação histórica dos sentimentos morais e da
obediência à tradição abordada nos primeiros escritos constitui uma etapa
importante para o projeto nietzschiano de superação do sentimento de culpa.

Humano, demasiadamente Humano I

A crítica de Nietzsche acerca da moral2 em Humano, demasiado humano I é


marcada pela investigação sobre a história dos sentimentos morais. Em oposição às
certezas metafísicas, o filósofo considera que a maioria dos erros cometidos pelos
teóricos da moral decorre da falta de análise sobre os aspectos históricos da
moralidade, “falta de sentido histórico é o defeito hereditário de todos os filósofos”
(MAI/HHI §2). Contrário ao método investigativo dos moralistas, Nietzsche
considera que os conceitos morais devem ser analisadas a partir de seu surgimento
histórico. “Todos os filósofos têm em comum o defeito de partir do homem atual e
acreditar que, analisando-o, alcançam seu objetivo” (MAI/HHI §2). Ao observar o
homem de nosso tempo, percebemos as características morais, culturais, religiosas, 105
políticas que se manifestam socialmente. Sabemos, entretanto, que tais
particularidades não nos servem como chave de compreensão sobre a humanidade.
O ponto de divergência de Nietzsche em relação à interpretação de alguns filósofos
decorre do modo como estes cristalizaram características morais históricas em
verdades eternas. O filósofo observa que as manifestações do homem são históricas,
ocorrem dentro de um espaço de tempo limitado, emanam de interesses específicos
e não devem, portanto, ser consideradas como medida para a análise de todos os
homens3. “Tudo veio a ser; não existem fatos eternos: assim como não existem
verdades absolutas. – Portanto, o filosofar histórico é doravante necessário”
(MAI/HHI §2). A história é vista, desse modo, como importante instrumento para
que o método de investigação sobre o homem ocorra a partir de suas manifestações

2
Nos escritos de Nietzsche, o termo moral compreende todas as coisas humanas, desde o âmbito
fisiológico até as relações sociais. Sentimentos, avaliações, pensamentos, atos, relações hierárquicas
entre homens e impulsos, regulamentações vigentes, todas essas coisas humanas estão no âmbito da
moral.
3
Em sua análise sobre o Humano, demasiado humano I, Itaparica pontua que Nietzsche não aceita as
explicações das ações humanas sem o devido respaldo de elementos históricos, afirma que “fica
explícito assim que o ponto de partida do empreendimento teórico inaugurado por Nietzsche em
Humano, demasiado Humano é a eliminação de qualquer componente transcendente na explicação
das ações morais. vivendo na ‘época da comparação’, o filósofo não pode mais acatar explicações que
tomam como critério uma concepção tardia e limitada do homem e da moral. Tendo conhecimento
de outras civilizações e comparando-as com a sua própria, pode-se perceber que, além de possuírem
uma origem anterior à própria humanidade, as concepções morais variam no tempo e no espaço”
(ITAPARICA, 2002, p. 29).

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Nietzsche e a superação do sentimento de culpa em Humano demasiado humano I

efetivas. Para que seja possível uma análise sobre o surgimento e desenvolvimento
da moralidade, Nietzsche recorre aos aspectos históricos que determinam como os
sentimentos morais surgiram e de que modo foram transmitidos.
O filósofo considera os sentimentos morais a partir das inclinações e aversões
do homem4 “um impulso em direção ou para longe de algo, sem o sentimento de
querer o que é proveitoso ou se esquivar do que é nocivo, [...] não existe no homem”
(MAI/HHI §32). Esclarece que nossas ações são motivadas, mas não possuem
característica boa ou má em si, “todas as ‘más’ ações são motivadas pelo impulso de
conservação ou, mais exatamente, pelo propósito individual de buscar o prazer e
evitar o desprazer; são, assim, motivadas, mas não são más” (MAI/HHI §99).
Investigando o mecanismo desta cadeia de motivações, Nietzsche pontua que as
ações humanas são motivadas pela sensação de prazer, “sem prazer não há vida; a
luta pelo prazer é a luta pela vida” (MAI/HHI §104). Na vida comunitária o homem
sente prazer ao fazer aquilo que é habitual. O filósofo observa que a crença de que
os costumes são comprovada sabedoria de vida faz com que o homem se adeque às
coerções morais e limite seus impulsos naturais.
O sentimento de prazer ao realizar alguma ação comprovadamente útil à
comunidade torna o homem obediente. Em Humano, demasiado humano I, o
filósofo afirma que bom “é chamado aquele que, após longa hereditariedade e quase
por natureza, pratica facilmente e de bom grado o que é moral”. E, sobre a 106
concepção tradicional do homem moral esclarece “ser moral, morigerado, ético
significa prestar obediência a uma lei ou tradição há muito estabelecida” (MAI/HHI
§96). A obediência aos costumes morais é apontada pelo filósofo como central para
a compreensão deste sentimento de dever moral herdado e perpetuado
historicamente.
Percebendo a força da tradição moral, o filósofo nos indica que a libertação do
homem da obediência moral e do sentimento de culpa será possível a partir do
avanço das investigações das ciências naturais. Nietzsche considera que o filosofar
sobre a moralidade requer análises cuidadosas sobre as origens dos sentimentos.
Diante dessa perspectiva seria possível evidenciar que toda a tradição moral é
formada a partir de fatos históricos, de criações humanas e não de verdades

4
No verbete “Sentimentos” do Dicionário de ética e filosofia moral, Wotling nos indica que Nietzsche
compreende os sentimentos morais como uma herança que nos foi transmitida por meio da
educação da nossa afetividade. Esse sentimento se manifesta sob a forma de inclinação ou
repugnância em obedecer ou se afastar dos hábitos morais. O pesquisador observa que os conceitos
morais não têm efetivamente uma autoridade reguladora das ações “com efeito, só se transmitem os
sentimentos, ou seja, as reações afetivas manifestando-se sob a forma de inclinação ou repugnância.
Os conceitos morais não possuem, no que se refere a eles, nenhuma autoridade reguladora
fundamental: eles só aparecem e interpretam um certo papel num período tardio da história da
moral, e a transmissão da moralidade própria a uma comunidade efetua-se, essencialmente, por meio
da educação da afetividade por intermédio do hábito, quer dizer, pela criação de regularidades
infraconscientes, o que Nietzsche denomina instintos” (Wotling, 2013, p. 946).

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absolutas. Tal desprendimento dependeria da constatação de que as coisas da vida


humana não podem ser vistas através de sentenças fixas, de convicções metafísicas.
Como a vida está num processo dinâmico de transformação, nossas ações devem ser
observadas a partir desse desenvolvimento, “aquilo que para nós, homens, se chama
vida e experiência – gradualmente veio a ser, está em pleno vir a ser, e por isso não
deve ser considerada uma grandeza fixa” (MAI/HHI §16, “Fenômeno e coisa em si”).
O filósofo nos indica que a vida humana deve ser considerada a partir de seu
processo dinâmico, mutável, de eterno vir a ser. Assim, é possível perceber que os
preceitos morais foram criados pelo homem e que, caberá ao próprio homem
transformar suas avaliações, significados e hábitos. O costume de seguir as
formulações religiosas, morais, estéticas, como se fossem algo já nos dado e certo,
nos afastou da evidência de que não passam de conceitos e pensamentos produzidos
por nós mesmos. Considerando que não existe coisa em si, mas apenas criações
humanas historicamente construídas, o filósofo aponta para a necessidade de
recriarmos nossos hábitos.
À medida que as especulações sobre o homem estiverem pautadas em seu
fazer histórico, dentro de um espaço de tempo específico, as certezas absolutas que
caracterizam e moldam o homem começam a ser passíveis de questionamentos.
Nietzsche considera, portanto, a filosofia histórica como um método necessário de
investigação sobre as especificidades dos sentimentos morais, religiosos, estéticos e 107
culturais do homem em suas relações sociais históricas.

Tudo o que necessitamos, e que somente agora nos pode ser dado,
graças ao nível atual de cada ciência, é uma química das
representações e sentimentos morais, religiosos e estéticos, assim
como de todas as emoções que experimentamos nas grandes e
pequenas relações da cultura e da sociedade (MAI/HHI §1).

Em oposição às crenças metafísicas sobre a moralidade, o filósofo propõe uma


análise química dos sentimentos morais5. Química no sentido de analisar
cuidadosamente as características específicas dos sentimentos, suas propriedades,
seu aparecimento histórico e, sobretudo as suas transformações culturais ao longo
do tempo. Método que também deve ser adotado para analisar as transformações
gerais da moral, da religião, da arte, “com a religião, a arte e a moral não tocamos a
5
Frezzatti observa que, em oposição à crença de que há algo de miraculoso e transcendente nas
coisas morais, Nietzsche considera importante analisar a química dos sentimentos morais, religiosos
e estéticos a partir de mecanismos fisiológicos, “o pensamento tradicional vê processos espirituais ou
transcendentes, ou ainda suprassensíveis (gasosos), onde há somente processos corporais ou
fisiológicos, ou ainda humanos, demasiado humanos (sólidos). Esses processos só se revelariam sob
uma observação mais aguçada. O filósofo alemão clama por uma « química das representações e dos
sentimentos morais, religiosos e estéticos [eine Chemie der moralischen, religiösen, ästhetischen
Vorstellungen und Empfindungen], a qual se antagoniza com a filosofia metafísica. Esta nega a origem
humana da moral e propõe uma « origem miraculosa das coisas de alto valor »5. Em termos menos
metafóricos, Nietzsche requer uma filosofia histórica, atenta aos movimentos das ciências naturais
do século XIX” (FREZZATTI, 2017, p. 1).

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Nietzsche e a superação do sentimento de culpa em Humano demasiado humano I

‘essência do mundo em si’; estamos no domínio da representação” (MAI/HHI §10).


Ao observar os fenômenos morais como representações e sentimentos, o que se
manifesta são as superfícies das coisas que nos aparecem em detrimento da crença
de que pudéssemos tocar a essência das coisas. A desmistificação de sentimentos
considerados socialmente como virtudes demanda a percepção de que tais ações
não passam de manifestações humanas, demasiado humanas. Certo de que a
dinâmica efetiva da história permite uma nova disposição de vida, o filósofo recorre
à investigação sobre a proveniência dos sentimentos morais para demonstrar que as
nossas convicções são frutos do costume, do hábito de admitir como boas as ações já
reconhecidas tradicionalmente como virtudes. Ocorre que justamente esse hábito
carece de questionamentos para que, assim, possamos pintar a nossa história com
novas cores, “os estudos históricos cultivam a qualificação para essa pintura”
(MAI/HHI §274). Uma característica importante da filosofia histórica é a
perspectiva de reformulação dos costumes.
Em Humano, demasiado humano I, Nietzsche indica que a vida de um povo
pode ser vista a partir de ciclos, de fases da cultura que se manifestam numa
dinâmica entre religião, arte e ciência6. O filósofo observa que essas fases são
habituais na cultura de um povo e estão num processo contínuo de transformação.
Neste sentido, a moralidade pode ser vista como uma fase da cultura do homem que
poderá ser transformada diante do surgimento de novos hábitos, “compreendemos 108
nossos semelhantes como tais sistemas e representantes bem definidos de culturas
diversas, isto é, como necessários, mas alteráveis” (MAI/HHI §274). Desse modo, o
homem moral pode ser transformado, poderá recriar seus costumes e, assim, ver
surgir uma nova cultura, “por algum tempo a metafísica só persiste e sobrevive em
arte, ou como disposição artisticamente transfiguradora. Mas o sentido científico
torna-se cada vez mais imperioso e leva o homem adulto à ciência natural e à
história” (MAI/HHI § 272). Esse ciclo dinâmico da cultura aponta para uma
perspectiva de desenvolvimento em que, uma fase abre caminho para a sua
superação e para o surgimento de uma nova fase da cultura. O olhar voltado para a
história dos sentimentos morais tem um papel, portanto, que vai além da crítica às

6
Na observação de Frezzatti, um dos papéis da filosofia histórica em Humano, demasiado humano I é
indicar que a vida deve ser observada a partir desse processo histórico dinâmico que nos permite
visualizar uma nova fase de cultura humana. “Em Humano, demasiado humano I, esboça-se o que
temos chamado de “ciclo vital da cultura”. Ao considerar as fases culturais, o fisiopsicólogo
nietzschiano pode recorrer a uma tipologia das culturas, pois o movimento cíclico, embora apresente
expressões diferentes em cada cultura, tem como possibilidade a mesma sequência de fases. [...]
Nietzsche entende, portanto, o processo histórico em Humano, demasiado humano I como um
movimento cíclico e repartido em fases. Seu sentido histórico permite que possamos conhecer,
experimentando-as, fases anteriores do desenvolvimento” (FREZZATTI , 2018, p. 27). O sentido
histórico como um movimento cíclico e repartido em fases nos indica que o conhecimento detalhado
das manifestações morais, religiosas, artísticas possibilitará o surgimento de uma nova fase histórica
da humanidade.

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PEREIRA, G.

convicções metafísicas. Aponta também para a possibilidade de elevação da cultura


do homem.
Mas o caminho para essa transformação passa pela história do sentimento de
obediência à tradição moral. O filósofo pondera que o bem estar sentido ao realizar
ações habituais e super valorizadas pela comunidade dificulta a busca pela
superação do dever moral. Avalia que o sentimento de responsabilidade produzido
pela crença moral e religiosa na liberdade individual tolhe as ações. Para evitar o
desprazer do sentimento de culpa por qualquer infração às regras morais, o homem
comunitário simplesmente obedece. Nesse sentido, considera necessária a
superação da crença na responsabilidade individual. Avalia que as explicações
históricas podem produzir o sentimento de irresponsabilidade do homem sobre as
suas ações, “as explicações físicas e históricas produzem ao menos no mesmo grau
aquele sentimento de irresponsabilidade” (MAI/HHI §17). À medida que o homem
se despertar para as evidências efetivas acerca do mecanismo moral de
responsabilização poderá refutá-lo e deixar surgir novos sentimentos, “o mesmo
grau de bem-estar pode existir com outros costumes” (MAI/HHI §97). Buscando a
superação do sentimento de culpa individual, Nietzsche pontua que o homem não
pode ser considerado moral ou imoral por sua obediência ou negligência ao costume
moral. Isso porque, na visão do filósofo, não somos responsáveis por nossas ações.
Afirmando a inocência das ações humanas considera que “a história dos 109
sentimentos morais é a história de um erro, o erro da responsabilidade, que se
baseia no erro do livre-arbítrio” (MAI/HHI §39). No pensamento do filósofo, a
história dos sentimentos morais é a história pela qual tornamos o homem
responsável por todas as suas ações. Analisando a história desses, constata que a
tradição moral e religiosa obteve êxito em tornar o homem culpado. A partir da
crença moral e religiosa de que o homem possui liberdade ao agir surge a sensação
nos espectadores e no próprio agente, de que a ação considerada imoral poderia ter
sido evitada.
O sentimento de culpa por desobedecer ao costume moral é um forte
instrumento repressor. Na concepção de Nietzsche, esse sentimento é fruto do erro
em acreditar na liberdade da vontade, “porque o homem se considera livre, não
porque é livre, ele sofre arrependimento e remorso” (MAI/HHI §39). Esse
sentimento poderá ser superado, segundo o filósofo, à medida que o homem
reconhecer a sua inocência, “ninguém é responsável por suas ações, ninguém
responde por seu ser; julgar significa ser injusto. Isso também vale para quando o
indivíduo julga a si mesmo” (MAI/HHI §39). O filósofo propõe um novo modo de
olhar para as ações humanas. Em sua análise, o homem não pode ser
responsabilizado por suas ações porque age por necessidade.

A total irresponsabilidade do homem por seus atos e seu ser é a gota


mais amarga que o homem do conhecimento tem de engolir, se

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Nietzsche e a superação do sentimento de culpa em Humano demasiado humano I

estava habituado a ver na responsabilidade e no dever a carta de


nobreza de sua humanidade (MAI/HHI §107).

Se considerarmos, como propõe o filósofo, as ações como totalmente


necessárias, o homem não poderá ser responsabilizado por elas. Assim, como ao
homem considerado bom não caberá honras e méritos, àquele que parecer mau à
comunidade não poderá ser penalizado. A concepção nietzschiana sobre a
irresponsabilidade das ações se choca com um importante aparato de repressão
moral. Um dos pilares da tradição moral e religiosa é a noção de recompensa e
castigo vinculada às ações, “se desaparecessem o castigo e o prêmio, acabariam os
motivos mais fortes que nos afastam de certas ações e nos impelem a outras”
(MAI/HHI §105,). Segundo o filósofo, mérito ou castigo não cabem ao homem
porque as nossas ações são tão necessárias quanto às ações da natureza, “é absurdo
louvar e censurar a natureza e a necessidade” (MAI/HHI §107). Desse modo, somos
tão responsáveis pelos impulsos que movem nosso corpo, quanto à natureza é
responsável pelos seus movimentos.

Não acusamos a natureza de imoral quando ela nos envia uma


tempestade e nos molha; por que chamamos de imoral o homem
nocivo? Porque neste caso supomos uma vontade livre, operando
arbitrariamente, e naquele uma necessidade. Mas tal diferenciação é
um erro. (MAI/HHI §102).
110
Segundo o filósofo, homem e natureza agem por necessidade. Se as ações
humanas são totalmente necessárias, a responsabilidade individual pelas ações não
passa de um erro da tradição moral. Diante disso, Nietzsche propõe um novo
sentimento, a adoção do sentimento de inocência em detrimento do sentimento de
culpa “se, por fim, a pessoa conquistar e incorporar totalmente a convicção filosófica
da necessidade incondicional de todas as ações e de sua completa irresponsabilidade
desaparecerá também esse resíduo de remorso” (MAI/HHI §133). Se o homem
incorporar a inocência de suas ações, não aceitará mais ser premiado ou castigado,
tampouco punirá ou aplaudirá ações alheias, afinal, nenhuma ação poderia ter
ocorrido de outra maneira. Essa concepção sobre o homem abala toda a estrutura da
moralidade. Todo louvor diante das ações vistas como virtuosas se tornaria
dispensável. Toda nossa reprovação diante de supostas infrações morais se tornaria
ridícula. Afinal, como reprovar ou aplaudir ações que não poderiam ocorrer de outro
modo.
Nietzsche vislumbra a possibilidade da superação do sentimento de culpa e o
surgimento do sentimento de inocência. Trata-se de um novo conhecimento, “tudo
é necessidade – assim diz o novo conhecimento: e ele próprio é necessidade. Tudo é
inocência: e o conhecimento é a via para compreender essa inocência” (MAI/HHI
§107). O filósofo pontua que, assim como a moralidade gerou sentimentos e

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PEREIRA, G.

mecanismos coercitivos através da transmissão dos costumes, esse novo


conhecimento poderá criar um novo homem.

Tudo no âmbito da moral veio a ser, é mutável, oscilante, tudo está


em fluxo, é verdade: - mas tudo se acha também numa corrente: em
direção a uma meta [...] daqui a milhares de anos talvez seja
poderoso o bastante para dar à humanidade a força de criar o
homem sábio e inocente (consciente da inocência), da mesma
forma regular como hoje produz o homem tolo, injusto, consciente
da culpa – que é, não o oposto, mas o precursor necessário daquele.
(MAI/HHI §107).

Conclusão

Para concluir, o filósofo considera o resgate da história dos sentimentos morais


como importante mecanismo para que o homem compreenda que o sentimento de
culpa é um erro moral histórico que o torna fraco. Em Humano, demasiado humano
I, Nietzsche ainda não indica, objetivamente, de que modo considera as ações
humanas como totalmente necessárias. Essa noção ficará mais clara, a partir da
análise da concepção do filósofo sobre a vida, ou seja, da vida enquanto vontade de
potência. Tal definição permite compreender que os impulsos responsáveis pelas
ações seguem sua constituição natural de luta por expansão. Nessa dinâmica,
portanto, não há escolha moral. De qualquer forma, o apontamento acerca da 111
irresponsabilidade sobre as ações em Humano, demasiado humano I nos indica que,
assim como a moralidade fez surgir o homem culpado, o conhecimento acerca da
irresponsabilidade do homem sobre as suas ações permitirá o surgimento de um
novo homem, um homem sábio e inocente. O surgimento desse novo homem
desponta, na perspectiva analisada em Humano, demasiado humano I, como uma
meta.

Referências

NIETZSCHE, F. W. Humano, demasiado humano: um livro para espíritos livres. Volume 1.


12ª ed. Tradução de Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia de Bolso, 2017.
FREZZATTI, W. A. JR. “As noções de história na II Consideração Extemporânea e em
Humano, demasiado humano”. In: Cadernos Nietzsche. vol. 39. n. 1. São Paulo, jan/abr 2018.
_____. “Le développement de la culture dans Humain, trop humain”, in DENAT, Céline;
WOTLING, Patrick. Humain, trop humain et les débuts de la réforme de la philosophie.
Reims: Épure, 2017.
ITAPARICA, A. L. M. Nietzsche: estilo e moral. São Paulo: Discurso Editorial; Ijuí, RS:
Editora UNIJUÍ, 2002.
WOTLING, P. “Sentimentos”, in: Dicionário de ética e filosofia moral. Tradução de Maria
Vitoria Kessler. São Leopoldo, RS: Editora UNISINOS, 2013.

Diaphonía, e-ISSN 2446-7413, v. 5, n. 1, 2019


Nietzsche e a superação do sentimento de culpa em Humano demasiado humano I

Submissão: 01.10.2018 / Aceite: 01.12.2018.

112

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Influências do Capital no agir político
Influences of Capital on Political Action

RAFAEL LEITE FERREIRA CABRAL1

Resumo: O Capital de Karl Marx tem como principais legados a desmistificação da


legitimidade pressuposta do sistema capitalista e a explicitação de sua lógica exploratória.
Como a lógica do império capitalista impregnou quase todas as potencialidades humanas,
dificultando a dissociação do “homem” forjado pelo sistema capitalista do ser humano,
busca-se verificar quais influências e condicionamentos do modo de produção e da
ideologia capitalista podem ser identificadas no agir político e nas tomadas de decisões
coletivas. Com efeito, neste ensaio é explorada a analogia entre a alienação do trabalhador
de si mesmo e dos demais humanos no processo de trabalho e a alienação do cidadão no
processo político forjado apenas na eleição e representação. Ela tem como efeitos afastar o
cidadão dos demais, das questões políticas e comunitárias, bem como impedir que se
discuta essa estrutura pressuposta de legitimação simbólica corporificada no voto.
Palavras-chave: Capitalismo. Política. Alienação. Trabalhador. Cidadão.

Abstract: Karl Marx's Capital has as its main legacies the demystification of the
presupposed legitimacy of the capitalist system and the explication of its exploratory logic.
As the logic of the capitalist empire impregnated almost all human potentialities, making it
difficult to dissociate the "man" forged by the capitalist system of the human being, it seeks
to verify which influences and conditionings of the mode of production and capitalist
ideology can be identified in political action and in collective decision-making. Indeed, in
this essay the analogy between the alienation of the worker from himself and other humans
in the labor process and the alienation of the citizen in the political process forged only in
election and representation. It has the effect of alienating the citizen from others, from
political and community issues, and from preventing the discussion of this presupposed
structure of symbolic legitimation embodied in the vote.
Keywords: Capitalism. Politics. Alienation. Worker. Citizen.

1. Introdução

Karl Marx em sua obra O Capital, a partir de sua análise materialista-histórica,


faz exposição desmistificadora da origem violenta do capital demonstrando a
“acumulação primitiva”, consistente no “processo histórico de separação entre
produtor e meio de produção” perpetrada em quase todos os países, com suas
peculiaridades inerentes, mediante o deslocamento súbito e violento de grandes
massas de humanos “[...] de seus meios de subsistência e lançadas no mercado de
trabalho como proletários absolutamente livres. A expropriação da terra que antes

1
Possui graduação em Direito pela Pontifícia Universidade Católica do Paraná-PUCPR (2004). Pós-
graduado em Direito aplicado pela Escola do Ministério Público do Estado do Paraná (2005) e pela
Escola da Magistratura do Estado do Paraná (2006). Atualmente é advogado sócio do escritório
Wypych, Broetto & Advogados Associados e está cursando (2015) pós-graduação em Direito
Processual Civil. Mestre em Filosofia pela UNIOESTE. E-mail: rafaellfcabral@hotmail.com.

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Influências do Capital no agir político

pertencia ao produtor rural, ao camponês, constitui a base de todo o processo”


(MARX, 2011, p. 631/632).
Marx expõe, pormenorizadamente, a lógica de cada um dos pilares do capital,
como a mercadoria, a propriedade privada, o trabalhador, o dinheiro, o mercado, a
mais-valia, a produção, a exploração da força de trabalho, etc., cuja atuação
orquestrada tem como consequência a exploração e alienação do trabalhador, bem
como a concentração de riquezas.
A desmistificação da origem do capital e a descrição pormenorizada da sua
lógica consubstancia o grande legado deixado por Marx nessa obra, pois permite, de
um lado, inquinar a legitimidade pressuposta do sistema capitalista como
desdobramento natural e irreversível da evolução social2. Por outro lado, ao
escancarar como atuam cada uma das premissas do processo capitalista e suas
consequências deletérias, Marx fornece instrumentos fundamentais para o
desenvolvimento de novas críticas, de soluções ou até mesmo de superação do
sistema capitalista.
Apesar da grande influência marxista que sustentou teórica e ideologicamente
o advento de Estados Nacionais que se proclamavam socialistas, mas
implementavam o totalitarismo; é inegável que hoje a expansão mundial da
ideologia e do modo de produção capitalista, cujo domínio, em quase todas as
facetas e potencialidades do homem, dificulta/impossibilita a distinção do ‘homem’
114
do ‘homem capitalista’ (condicionado e forjado pelo sistema capitalista).
Diante do império do sistema capitalista qualquer análise de questões
políticas, sociais, comportamentais e etc. tem como premissa conhecer a essência do
sistema, sua lógica imanente, sua estrutura ideológica e legitimadora, bem como
considerar suas inexoráveis influências e condicionamentos.
O agir político do homem, desde a atuação nas polis gregas até o advento das
sociedades capitalistas modernas, se transformou radicalmente, especialmente sua
cooptação/instrumentalização pela ideologia capitalista, de modo que cada vez mais
a tomada de decisões políticas é monopólio de poucos.
Nesse passo, a partir do recorte teórico que se propõe e observando os limites
do presente trabalho, serão apontados, sumariamente, quais características do modo
de produção e da ideologia capitalista é possível identificar no agir e nas tomadas de
decisões políticas.

2
É oportuno lembrar a perspicaz observação do Professor Rosalvo Schütz “... poder questionar algo a
partir de sua gênese constituidora, é preciso entender suas condições de possibilidade, ou, em outras
palavras, a processualidade social e humana pressuposta. O mérito da reflexão de Marx em relação ao
tema, no escrito em questão, é que, em vez de afirmar que a propriedade privada é a causa da
alienação, como faziam os socialistas utópicos, afirma o contrário: que o trabalho alienado é a causa
(condição de possibilidade) da propriedade privada” (SCHÜTZ, 2008).

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CABRAL, R.

2. O animal social, o ser genérico e o trabalhador alienado

Os animais agem precipuamente por instinto e experiências individualizadas, e


o homem se deles se diferencia principalmente pela linguagem, pela transmissão de
conhecimento e experiências, produzindo, assim, o conhecimento humano
intersubjetivo, histórico, relacional e cultural.
Essa característica relacional, de convívio, entre homens amparou a expressão
de Aristóteles segundo a qual o homem é um animal político, que Marx transmuda
para ser social3. Desde Aristóteles, portanto, é inegável que a intersubjetividade, o
convívio entre diferentes, consubstancia a principal característica do agir político.
Marx desenvolve seu conceito de ser genérico como ‘essencialmente social e
autoconsciente em sua atividade produtiva (objetivadora, intersubjetiva e
carecedora de um meio externo-objetivo para se realizar), (WARTENBERG, 1982).
De modo que ‘a universalidade definidora da espécie (Gattung) humana é uma
universalidade concreta, vivida efetivamente nas relações sociais estabelecidas entre
os indivíduos e entre estes e o meio natural.’ (TAVARES, 2014, p. 5).
Como ainda demonstra Tavares (2014, p. 6):

O problema maior da sociedade dos produtores de mercadorias é,


precisamente, a degeneração do humano em mercadoria [...]. A
crítica desta degeneração não está suspensa no ar, mas atada aos 115
conceitos de estranhamento e de alienação. Estes, tampouco,
flutuam no éter conceitual, mas remetem precisamente ao ser
genérico.

A perspectiva intersubjetiva, de convivência própria do agir político, contudo,


é sufocada no processo de produção capitalista, pois como bem demonstra Marx a
alienação do trabalhador ocorre, precipuamente, sob ao menos dois aspectos inter-
relacionados:

1) a relação do trabalhador com o produto do trabalho como um


objeto estranho e poderoso sobre ele. Esta relação é, ao mesmo
tempo, a relação com o mundo exterior sensível, com os objetos da
natureza, como um mundo alheio que se lhe defronta e
hostilmente; 2) a relação do trabalho com ato de produção no
interior do trabalho. Essa relação é a relação do trabalhador com sua
própria atividade [atividade] estranha não pertencente a ele,
atividade como miséria, a força como impotência, a procriação
como castração. A energia espiritual e física própria do trabalhador,
a sua vida pessoal - pois o que é a vida senão atividade - como uma
atividade voltada contra ele mesmo, independente dele, não
pertencente a ele. O estranhamento-de-si [auto-alienação], tal qual
acima o estranhamento da coisa. (MARX, 2008, p. 83).

3
Marx faz expressa citação de Aristóteles, vide, MARX, 1996, p. 443.

Diaphonía, e-ISSN 2446-7413, v. 5, n. 1, 2019


Influências do Capital no agir político

A consequência direta da alienação do homem

[...] de o homem estar estranhado do produto do seu trabalho, de


sua atividade vital e de seu ser genérico, é o estranhamento do
homem pelo [próprio] homem. Quando o homem está frente a si
mesmo, defronta-se com ele o outro homem. consigo [...]. Em geral,
a questão de que o homem está estanhado [alienado] do seu ser
genérico quer dizer que um homem está estranhado [alienado] do
outro, assim como cada um deles [está estranhado] da essência
humana (MARX, 2008, p. 85-86).

Como bem pontua o Professor Rosalvo Schütz “O estranhamento e a


indiferença dos homens na relação uns com os outros se mostra, portanto, como
sendo o fundamento social mais profundo da alienação” (SCHÜTZ, 2008).
Desse modo, no sistema capitalista ‘A relação entre as pessoas se esconde atrás
da relação entre as coisas”, como bem sintetizou Marx (1996, p. 31). Em razão de o
homem alienar a si mesmo e, por conseguinte, dos outros, no sistema de produção
capitalista fica obstada a troca de ideias, a convivência fértil, o reconhecimento do
outro, o que constitui premissas do agir político.
O trabalho, no modelo de produção capitalista, é externo ao trabalhador, não
integra sua natureza, de modo que dificulta o desenvolvimento das potencialidades
humanas4 (questão da precarização dos empregos e o desenvolvimento das ideais). 116
O processo de trabalho exaure o trabalhador, o afasta da reflexão sobre as questões
da comunidade.
O liberalismo individualista e, por conseguinte, as democracias liberais próprio
do sistema capitalista se vincula à fins exclusivamente individualistas e privados,
contrastando com o agir político essencialmente coletivo e intersubjetivo, com o
bem comum e virtudes cívicas que são pressupostos para uma democracia sólida e
substancial.
Tal questão é ainda mais sensível quando se analisa os efeitos do capital sobre
os procedimentos Estatais de tomada de decisões coletivas.
O procedimento democrático forjado pelos Estados a partir da eleição e
representação consubstancia franco processo de alienação do cidadão das questões
políticas e de si mesmo. Isso porque política é contato, a persuasão, o convívio entre
diferentes, e o homem quando simplesmente deposita o seu voto na urna se aliena
dos demais e de suas concepções políticas.

4
Karl Marx bem demonstra o círculo vicioso decorrente da alienação do trabalhador em seu objeto
que “se expressa pelas nacional-econômicas, em que quanto mais o trabalhador produz, menos tem
para consumir; quanto mais valores cria, mais sem-valor e indigno ele se torna; quanto mais bem
formado o seu produto, tanto mais deformado ele fica; quanto mais civilizado seu objeto, mais bárbaro
o trabalhador; que quanto mais poderoso o trabalho, mais impotente o trabalhador se torna; quanto
mais rico de espírito o trabalho, mais pobre de espírito e servo da natureza se torna o trabalhador”
(MARX, 2008, p. 82).

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CABRAL, R.

A alienação do cidadão, eleitor alienado de si mesmo e das relações humanas


faz com que ele não mais discuta a legitimidade dessa forma de construção das
decisões políticas, em face dessa estrutura pressuposta de legitimação decorrente da
sua suposta participação na tomada de decisões coletivas.
Com efeito, é possível fazer uma analogia entre a alienação do trabalhador de
si mesmo e dos demais humanos no processo de trabalho e a alienação do cidadão
no processo político circunscrito à eleição e à representação, pois o processo político
inteiro passa a ser visto apenas com uma parte (o voto) distanciando, assim, o
cidadão da política.

3. A formação do capital e do político. Trabalhador e eleitor livre.

Marx afirma que o capitalista só passa a existir quando “o possuidor de meios


de produção e de subsistência encontra o trabalhador livre como vendedor de sua
força de trabalho no mercado”, transformando a força de trabalho em uma
mercadoria que o trabalhador, por ser livre, pode dispor (MARX, 1996, p. 288).
A origem do capital, portanto, exigiu uma massa de trabalhadores ‘livres’
desvinculados dos meios de produção (terra), dispostos a alienarem suas forças de
trabalho como mercadoria (MARX, 2011, p. 631-632). Do mesmo modo, a ascensão da
burguesia ao poder político, em especial pós Revolução Francesa, precisava de uma
massa de cidadãos livres do julgo do déspota, livres para votar em seu representante
117
a fim de assim legitimar a tomada e assegurar a perpetuação do poder da classe
revolucionaria.
A legitimidade do poder político forjado pelos Estados Nacionais tem origem
na outorga ao cidadão do direito de sufrágio, no direito de votar e ser votado.
Contudo, ao mesmo tempo que foi concedido esse direito ao cidadão para garantir
suposta legitimidade do processo político (todo poder emana do povo), tal processo
amparado exclusivamente na eleição e na representação afastou o cidadão das
questões políticas.
Isso porque, de um lado, ao reduzir o processo de decisões políticas à um
único momento (eleição), afastou o cidadão do debate, da vivência política,
cotidiana. Por outro lado, para que o cidadão se insira na política ele tem que
superar uma série de obstáculos impostos pela lógica previamente estabelecida.
Com efeito, podemos apresentar a seguinte analogia: o cidadão de agente
político direto (como produtor direto de mercadoria) foi transformado em um mero
repassador de força/legitimidade política (é a força de trabalho do que cria valor),
por meio do voto (mercadoria), ao governante (capitalista), que passa a decidir as
questões políticas de modo a perpetuar a classe dominante a que pertence (fluxo
ininterrupto) no poder.

Diaphonía, e-ISSN 2446-7413, v. 5, n. 1, 2019


Influências do Capital no agir político

Assim, como faz o capitalista, quem detêm a mais-valia política, produzida


pelo povo, nas suas mãos instrumentalizando-a para seus fins específicos.

4. Político como mercadoria

Outra questão com forte inspiração na ideológica capitalista que podemos


analisar nas democracias contemporâneas é a forma como são selecionados os
políticos.
O crescimento político, desde sua raiz político-partidária, de quem pretenda
participar do sistema exige uma boa dose de dinheiro, de aceitação dos “caciques”
políticos e alcance nos meios de comunicação. Esses obstáculos criados para
ascensão ao mundo político estatal são, a rigor, filtros de corrupção do sistema
político que só admite a projeção política dos seus. Com efeito, a disputa eleitoral
exige a submissão, o comprometimento, ao capital, ao apadrinhamento, e/ou à
mídia.
Nesse sentido, fica evidente, que a eleição e, por conseguinte, a representação,
a despeito de constituírem pressupostos fundamentais para a democracia, afastam o
cidadão do exercício do seu poder, tendo em vista o custo de o cidadão membro de
uma sociedade capitalista e individualista participar do sistema político.
Com efeito, os candidatos se transformaram em mercadorias, produtos 118
talhados a partir de muito dinheiro e propaganda. Ganha a eleição, em regra, quem
mais investiu e se comprometeu com os agentes corruptores, de modo a perpetuar o
monopólio das decisões políticas.
A eleição não tem qualquer vínculo com a tomada de decisão política, significa
apenas quem vai tomar a decisão, por outro lado possui pouco vínculo com qual
decisão este alguém vai tomar. No único momento que é dado ao cidadão se
manifestar politicamente pelo voto ele não encontra qualquer vínculo entre o que
fez apoiar seu candidato e as decisões políticas realizadas por seus representantes.
Assim como o trabalhador, não se reconhece na mercadoria que criou
(exterioridade), o cidadão eleitor não se reconhece nas decisões tomadas pelo
governante em que votou (alienação política).
Esse descompasso entre o motivo que fez o eleitor votar no seu candidato e as
tomadas de decisão do candidato eleito, tem como efeito pernicioso o preconceito
para com a política que passa a ser, com muita razão, desacreditada pelo cidadão.
O descrédito do cidadão com a política facilita a cooptação do voto
(mercadoria) mediante o engodo das propagadas e promessas, pela compra direta
do voto5 ou pela em razão de vínculos servis e religiosas.

5
No Brasil, tal problemática se evidencia de forma contundente ao se observar que pesquisa
estatística informa que 13% da população nacional admite já ter trocado o voto por emprego,

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CABRAL, R.

5. A mais-valia política

A mais valia, segundo Marx, é igual à soma de dinheiro originalmente


adiantado mais um incremento, consiste em um valor novo (mais valor), que só
surge no trabalho humano orgânico, as horas trabalhadas (compra de trabalho).
O dinheiro adiantado ao candidato, nas custosas campanhas eleitorais retorna
ao Capitalista que investiu, dinheiro, apoio político ou financiou a campanha
política.
Isso porque quando o candidato criado for eleito, o capitalista vai obter a mais
valia por meio de contratos com o poder público, cargos e principalmente mediante
tomada de decisões e promulgação de leis destinadas a satisfazer interesses
individuais em detrimento da coletividade que o efetivamente elegeu. Ou seja, é um
investimento que precisa “dar retorno” (D.M.D’).
É um sistema perverso que sufoca qualquer tentativa de uma vertente política
diferenciada expor suas ideais, atingir o público em geral e, por conseguinte,
ascender ao poder político.

5. Conclusão

Tais breves analogias entre a ideologia e o processo de produção capitalista,


esmiuçada por Marx, e o ambiente político, em especial, o processo político estatal
119
bem demonstra, a relevância da obra de Marx para estudo da política.
A obra de Marx exige acurada reflexão principalmente a respeito de como
resgatar as potencialidades do homem alienado de si mesmo e dos demais seres
humanos e, por conseguinte, fomentar a relação humana, a troca de experiências,
pontos de vista, discursos, imprescindíveis para o agir político, de modo que, como
bem conclui Schütz (2008, p. 87) “se o processo de alienação é, ao mesmo tempo,
um processo de perda do ser humano de si, dos outros e da natureza, o processo
inverso só pode ser um processo de re-apropriação e de potencialização destas
propriedades perdidas”.
Do mesmo modo, fica claro a necessidade de superar a eleição e a
representação como exclusivos meios de manifestação política no âmbito estatal,
pois, a par de tais instrumentos serem instrumentos políticos legitimadores
inerentes à democracia, a redução do processo político a tais momentos tem os
efeitos nefastos de afastar o cidadão das questões políticas e ao mesmo tempo

dinheiro ou presente. Esta informação vinculada pelo instituto de pesquisa Datafolha mostra que 13%
dos ouvidos admitem já ter trocado voto por emprego, dinheiro ou presente - cerca de 17 milhões de
pessoas maiores de 16 anos no universo de 132 milhões de eleitores. Alguns declararam ter cometido
essas práticas de forma concomitante. Separados por benefício, 10% mudaram o voto em troca de
emprego ou favor; 6% em troca de dinheiro; 5% em troca de presente. Notícia veiculada no site Folha
Online 04/10/2009: http://www1.folha.uol.com.br/poder/2009/10/633061-dezessete-milhoes-de-
brasileiros-admitem-ter-vendido-voto.shtml.

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Influências do Capital no agir político

impedir a discussão de formas alternativas do exercício político, visando reacender o


comportamento essencialmente político do homem.

Referências

DUSSEL, E. Hacia un Marx desconocido. Un comentario de los Manuscritos del 61-63.


Mexico: Siglo XXI, 1988.
MARX, K. Os economistas, O Capital Crítica da Economia Política, Volume I, Livro Primeiro,
O Processo de Produção do Capital”. Tradução Regis Barbosa e Flávio R. Kothe. São Paulo:
Nova Cultural, 1996.
_____. Manuscritos econômico-filosóficos. Tradução e notas de Jesus Ranieri. São Paulo:
Boitempo, 2008.
_____. O Capital. Crítica da economia política. Livro I: O processo de produção do capital”.
Tradução: Rubens Enderle. São Paulo: Boitempo, 2011.
SCHÜTZ, R. “Propriedade privada e trabalho alienado: desvendando imbricações ocultas”,
in: Revista Espaço Acadêmico, n° 87, ano VIII; ago/2008, p. 82-87.
TAVARES, F. M. M. “A democracia Realizada do Materialismo Histórico: sobre a ditadura
do proletariado e sua injustificada omissão nos estudos de teoria democrática
contemporânea”, in 2° Simpósio Nacional sobre Democracia e Desigualdade, Brasília 7 a 9 de
maio de 2014.

120
Submissão: 10.10.2018 / Aceite: 15.12.2018.

Diaphonía, e-ISSN 2446-7413, v. 5, n. 1, 2019


O desenvolvimento e o fracasso do método sintático carnapiano
The development and failure of the syntactic carnapian method

PEDRO HENRIQUE NOGUEIRA PIZZUTTI1

Resumo: Este trabalho tem por objetivo apresentar o método sintático de Carnap, para
análise da linguagem científica, no The logical syntax of language e o seu possível fracasso.
O método consiste na elaboração de uma teoria lógico-linguística, a sintaxe lógica, para
lidar com estruturas linguísticas no nível sintático. A sintaxe lógica é a proposta de Carnap e
a formulação desta é feita por meio da sintaxe de duas linguagens artificialmente
construídas, as Linguagens I e II, e a tentativa de uma Sintaxe Geral aplicável a qualquer
linguagem. Com a construção de L.I, Carnap mostrou ser possível formular a sintaxe lógica
de uma linguagem valendo-se da própria linguagem objeto. Em L.II, introduziu regras
indefinidas de transformação para elaboração de um critério completo de validade para as
sentenças da Matemática. Na discussão da Sintaxe Geral, considerou regras físicas de
transformação para uma linguagem sintática. Contudo, ao tentar formular a definição de
analiticidade na Linguagem II, Carnap teve que admitir a impossibilidade de construir a
definição de “analítico” com base nos recursos de L.II Contrariando os resultados obtidos
com L.I, não é possível formular completamente a sintaxe de uma linguagem mais rica com
base apenas nos recursos linguísticos de si mesma. Além deste problema, a construção de
“analítico em II”, em uma metalinguagem mais rica, utilizou um método semântico. Tanto o
apelo a uma metalinguagem mais rica, quanto o recurso a um método semântico, minam o
projeto puramente sintático de Carnap.
Palavras-chave: Método sintático. Analítico. Logical syntax. Rudolf Carnap. Fracasso.

Abstract: This paper aims to present the syntactic method of Carnap, for analysis of
scientific language, in The logical syntax of language and its possible failure. The method
consists in the elaboration of a logic-linguistic theory, the logical syntax, to deal with
linguistic structures at the syntactic level. The logical syntax is the proposal of Carnap and
the formulation of this is made through the syntax of two languages artificially constructed,
Languages I and II, and the attempt of a General Syntax applicable to any language. With
the construction of L.I Carnap showed that it is possible to formulate the logical syntax of a
language using the object language itself. In L.II, he introduced indefinite rules of
transformation to elaborate a complete criterion of validity for the sentences of
Mathematics. In the discussion of General Syntax, he considered physical rules of
transformation for a syntactic language. However, in attempting to formulate the definition
of analyticity in Language II, Carnap had to admit the impossibility of constructing the
definition of "analytic" on the basis of L.II's resources. Contrary to the results obtained with
LI, it is not possible to formulate the syntax of a richer language based only on the linguistic
resources of itself. In addition to this problem, the construction of "analytic in II", in a
richer metalanguage, used a semantic method. Both the appeal to richer metalanguage and
the use of a semantic method undermine the purely syntactic design of Carnap.
Keywords: Syntactic method. Analytical. Logical syntax. Rudolf Carnap. Failure.

Introdução

1
Mestrando em Filosofia pela Universidade Estadual de Londrina, graduado em Licenciatura em
Filosofia pela mesma universidade (2018). E-mail: pedropizzutti@gmail.com.

Diaphonía, e-ISSN 2446-7413, v. 5, n. 1, 2019


O desenvolvimento e o fracasso do método sintático carnapiano

No presente trabalho apresentaremos o método sintático de análise lógica da


linguagem científica, elaborado por Carnap, em The logical syntax of language2
(2017), e seu possível fracasso. Para esta análise, reconstruiremos as linhas gerais do
projeto, especialmente no que tange ao conceito de analiticidade, e mostraremos os
problemas e os limites do método puramente sintático de Carnap em 1934.
O movimento do Empirismo Lógico defendeu a ideia de que a Filosofia não
tem um ponto privilegiado que a permite se colocar acima, ou mesmo lado a lado,
com as ciências. A Filosofia é concebida antes como aquela que deve se reorientar
conforme os resultados e avanços estabelecidos pelas ciências especiais. Diante
disto, a pergunta que fica é: Qual é a tarefa da Filosofia e qual relação ela mantém
com o empreendimento científico?
Os empiristas lógicos, em sua maioria, rejeitaram uma concepção naturalista
em que a Filosofia era vista simplesmente como uma ciência empírica entre as
outras, tal como um ramo da Psicologia ou da Sociologia do Conhecimento, por
exemplo. De modo geral, e pelo contrário, eles concebiam a Filosofia como um
braço da Lógica e defendiam que a tarefa especificamente filosófica era a de análise
lógica das ciências especiais (FRIEDMAN, 1991, p. 515).
Contudo, Michael Friedman, em The re-evaluation of logical positivism (1991),
afirma que a perspectiva e o modo como tal análise deveria ocorrer se manteve
nebulosa até a aparição do Logical syntax de Carnap, originalmente publicado em
122
1934. É justamente neste texto que Carnap desenvolve seu método sintático. Em sua
Intellectual autobiography (1963, p. 55), o autor narra que as discussões no Círculo
de Viena, conforme tentavam formular mais precisamente os problemas filosóficos
que estavam interessados, acabavam sempre por discutir problemas de análise
lógica da linguagem científica. Carnap nos conta que foi o desejo de construir um
framework para executar e mostrar os resultados desta análise a grande motivação
para o desenvolvimento do método sintático. Não obstante, tendo isto posto, nosso
objetivo consiste em: considerar a elaboração do método sintático como uma
ferramenta para análise metateórica da Ciência e o seu possível fracasso.

O método sintático e as dificuldades impostas pelo conceito de analiticidade

Em Logical syntax, Carnap defende que a única parte científica de qualquer


trabalho filosófico é a de análise lógica. Buscando a expressão e formulação de forma
rigorosa desta análise, Carnap propõe o método sintático. Seu método é o da sintaxe
lógica que, por sua vez, tem por objetivo a constituição de uma linguagem, um
framework, que permita justamente a expressão e formulação das análises da
linguagem científica. Por conseguinte, o que cabe à Filosofia é a análise lógica das
sentenças e conceitos das ciências, o que Carnap chamou de Lógica da Ciência.

2
Doravante, Logical syntax.

Diaphonía, e-ISSN 2446-7413, v. 5, n. 1, 2019


PIZZUTTI, P.

Identificando Lógica da Ciência com sintaxe lógica, essa é quem substitui a Filosofia
em seu sentido tradicional (CARNAP, 2017, p. xiii).
Carnap considera a sintaxe lógica como uma teoria formal acerca das formas
linguísticas de uma linguagem. A teoria procura formular regras formais que regem
uma linguagem e as consequências que derivam destas regras. A formalidade das
regras, definições e da própria teoria, decorre delas não fazerem nenhuma referência
ao significado dos símbolos, aos sentidos das expressões ou aos falantes. Portanto, a
teoria é formal porque faz referência única e exclusivamente aos tipos, estrutura e
ordenação dos símbolos (CARNAP, 2017, p.1). Em resumo, pode-se dizer que a
função da sintaxe lógica é dar regras de construção e dedução de sentenças, tendo
uma linguagem qualquer de referência, através de arranjos simbólicos sem nenhuma
atribuição extralinguística (PEREIRA, 2013, p. 36).
Para a construção de uma sintaxe lógica, são necessárias, ao menos em
princípio, duas linguagens, a saber, a linguagem objeto e a metalinguagem 3. A
primeira é a linguagem que é o objeto de investigação, é para ela que se propõe a
formulação de sua sintaxe; a segunda é a linguagem que utilizamos para falar das
formas sintáticas da linguagem objeto escolhida (CARNAP, 2017, p. 4). Na
construção feita por Carnap, há a utilização de duas linguagens simbólicas, as
chamadas Linguagem I e II [L.I e L.II], como linguagens objeto e, como
metalinguagem, em um primeiro momento, a língua inglesa com a adição de 123
símbolos góticos.
De modo geral, considerado do ponto de vista sintático, isto é, quando o
interesse é apenas a estrutura formal da linguagem, toda linguagem é interpretada
como um cálculo. As regras de um cálculo determinam apenas em que
circunstâncias uma sequência de símbolos forma uma expressão e sob quais
condições é possível transformar uma expressão em outra. Deste modo, um cálculo
contém apenas um vocabulário (os símbolos) e uma sintaxe (as regras de formação e
transformação)4 (PEREIRA, 2013, p. 37-38).
De modo específico, há uma distinção entre sintaxe pura e descritiva. A pura
tem por referência padrões simbólicos de uma linguagem, sem levar em conta se de
fato existe uma linguagem para qual aquela seria sua sintaxe. Por sua vez, a
descritiva diz respeito às estruturas, propriedades e relações de expressões,
sentenças e linguagens, que são empiricamente dadas, isto é, com as expressões de
um livro de literatura em língua portuguesa ou as de uma teoria científica como a da
Relatividade Geral de Einstein, por exemplo (CARNAP, 2017, p. 6-7).
3
Embora Carnap tenha se referido a esta como linguagem sintática, seu termo não ficou consagrado
para a literatura. Por conta disso, adotamos o termo metalinguagem, que não só é o correspondente
para a ideia carnapiana, mas é amplamente reconhecido.
4
É importante ressaltar que Carnap atribui o status de cálculo apenas à parte sintática de uma
linguagem, ou seja, não há a defesa da ideia de que linguagens são meramente cálculos. Cf. Carnap,
2017, p. 5.

Diaphonía, e-ISSN 2446-7413, v. 5, n. 1, 2019


O desenvolvimento e o fracasso do método sintático carnapiano

Assim, a construção da sintaxe lógica é a formulação de um framework lógico


que permite uma correlação com a linguagem científica; onde a análise lógica se
torna, além de possível, formalmente rigorosa. Não obstante, esta construção é livre
e nunca absoluta, sendo sempre relativa a uma linguagem. A posição de Carnap
quanto a isso é bem clara no princípio de tolerância linguístico:

Não é nosso trabalho estabelecer proibições, mas chegar a


convenções [...]. Em lógica, não há moral. Cada um é livre para
construir sua própria lógica, isto é, sua própria forma de linguagem,
como quiser. Tudo que é requerido deste é que, se desejar discutir
esta, deve expor seus métodos claramente e dar regras sintáticas ao
invés de argumentos filosóficos. (CARNAP, 1937, p. 51-52, itálico do
autor).

No texto do Logical syntax, o método sintático é elaborado junto a construção


de duas linguagens artificiais, as já referidas L.I e L.II, e, por fim, há um esboço de
uma Sintaxe Geral. A construção de L.I não é muito diferente do que um estudante
vê em um curso de Lógica Simbólica. Primeiro se fixam os símbolos, depois regras
de formação para constituição de fórmulas e, por último, a parte dedutiva do
cálculo, isto é, as regras de transformação. Construída por meio de regras definidas
de transformação, L.I contém uma linguagem formal básica, capaz de elaborar
apenas uma aritmética elementar dos números naturais até o limite das suas regras
definidas de transformação (CARNAP, 2017, p. 11; PEREIRA, 2013, p. 40). Se
124
considerar o objetivo de análise lógica da linguagem científica, L.I tem a seu favor o
fato de ser definida, mas pesa contra si o fato de ser muito simples e fraca.
Já L.II é muito mais rica linguisticamente, possui a própria L.I como uma
sublinguagem, contém conceitos indefinidos, a aritmética dos números reais e a
análise matemática construída com base na Aritmética Clássica. Não obstante, L.II
compreende toda a Matemática Clássica, desde funções com argumentos reais até o
cálculo infinitesimal, além da teoria dos conjuntos (CARNAP, 2017, p. 83; PEREIRA,
2013, p. 40). A grande vantagem de L.II, é que nela é possível uma sintaxe descritiva,
assim, para além das expressões da Lógica e da Matemática, ela permite a
construção de sentenças empíricas de qualquer domínio de objetos, sejam sentenças
da Física Clássica, sejam da Relatividade Geral (CARNAP, 2017, p. 11).
Posterior às discussões envoltas nas Linguagens I e II, Carnap direcionou a
pesquisa para a construção de uma Sintaxe Geral. A ideia era elaborar um sistema de
definições de termos e conceitos sintáticos tão amplos e compreensíveis que estes
seriam aplicáveis a toda e qualquer linguagem (CARNAP, 2007, p. 167). Com esta
sintaxe, haveria uma teoria geral acerca da manipulação simbólica. Por meio desta
teoria, seria possível estabelecer as regras de articulação simbólica quanto à
construção de sentenças e, consequentemente, o framework necessário para análise

Diaphonía, e-ISSN 2446-7413, v. 5, n. 1, 2019


PIZZUTTI, P.

das relações lógico-linguísticas entre estas sentenças estaria construído (PEREIRA,


2013, p. 40-41).
A principal preocupação de Carnap, ao discutir a sintaxe lógica com a
elaboração da Linguagem I, foi mostrar como seria possível estabelecer a
metalinguagem, de uma linguagem objeto, se valendo apenas do recurso expressivo
da própria linguagem objeto. O problema que Carnap tinha em vistas era a suspeita
de que, com a necessidade de sempre se recorrer a uma metalinguagem outra,
haveria um recorrer ad infinitum a metalinguagens. O recurso que Carnap utiliza
para a construção da metalinguagem de L.I, com os recursos da própria L.I, é o
método de aritmetização de sintaxes desenvolvido por Gödel. Sem entrar em
detalhes, Gödel demonstrou que qualquer sistema linguístico que consiga elaborar a
aritmética dos números naturais possui também os recursos para expressar, ao
menos em partes, sua própria sintaxe (TRANJAN, 2010, p. 196).
Já com a construção de L.II, Carnap introduziu a possibilidade de regras
indefinidas de transformação, o intento dessa mudança era dar ao método sintático
a possibilidade de formulação de um critério completo de validade para as sentenças
da Matemática. Para Tranjan, Carnap tinha, como pano de fundo, a tentativa de dar
uma possível resposta ao problema posto pelo teorema de incompletude de Gödel.
Este, de modo geral, havia provado que qualquer sistema formal baseado em regras
definidas de transformação era incapaz de demonstrar a verdade do conjunto das 125
sentenças da Aritmética (TRANJAN, 2010, p. 204). Com o método-c, ou método
baseado no conceito de consequência lógica, Carnap introduziu regras indefinidas
para sistemas formais e, com isso, elaborou uma forma de estabelecer com
completude quais sentenças são logicamente determinadas e quais são sintéticas
(CARNAP, 2017, p. 100-101).
Por fim, com a discussão da Sintaxe Geral, Carnap propôs, para além das regras
lógicas indefinidas de transformação, regras físicas. Estas regras permitiriam
adicionar aos axiomas da sintaxe lógica da linguagem objeto leis da natureza, por
exemplo. A admissão deste tipo de regra possibilita a construção e análise de teoria
científicas de acordo com a received view. A progressividade que há na construção
do método sintático no texto do Logical syntax, torna este amplo e robusto o
suficiente para lidar com uma análise lógica da linguagem científica das ciências
empíricas. Contudo, apesar das inovações e do aparente sucesso, há alguns
problemas graves no método. Uma inspeção acerca do conceito de analiticidade
mostra os candidatos a Calcanhar de Aquiles da teoria sintática carnapiana.
Diante da tese ousada, defendida por Carnap, de que as únicas sentenças
significativas são analíticas ou sintéticas, Cirera (1994, p. 246) sustenta que um dos
pontos altos do Logical syntax é a caracterização exata da noção de “analítico”.
Porém, apesar do fato das definições carnapianas serem, de fato, bastante precisas,
existem algumas possíveis dificuldades que as circundam: a primeira é que não há

Diaphonía, e-ISSN 2446-7413, v. 5, n. 1, 2019


O desenvolvimento e o fracasso do método sintático carnapiano

uma definição absoluta do termo analítico; a segunda é a necessidade de recorrer a


uma metalinguagem mais rica para estabelecer a definição; a terceira é que o
método utilizado para construir a definição não é sintático, mas semântico.
O fato de Carnap nunca dar uma definição absoluta do conceito “analítico”
pode pesar contra ele, afinal, ao relativizar o conceito sempre a uma linguagem,
pode-se pensar que nossa noção intuitiva não é contemplada. Entretanto, antes de
pesar contra Carnap, a relativização permite uma defesa deste frente a crítica feita
por Quine em “Dois dogmas do empirismo” (2011). Neste texto, Quine defende uma
rejeição da distinção analítico-sintético como o fundamento para epistemologia, ou
quiçá, como uma distinção absoluta em epistemologia.
Para Tranjan, a interpretação quineana está completamente equivocada
quanto a ideia carnapiana. A distinção feita em Logical syntax entre os termos
“analítico” e “sintético” não é de cunho epistemológico, mas sintático. As razões
apresentadas por Tranjan são duas: (i) o fundamento da caracterização não é
epistemológico, as definições elaboradas se baseiam apenas em condições
combinatórias de símbolos e não em alguma condição epistemológica; (ii) o próprio
significado das definições não é epistemológico, o que Carnap pretende não é
apresentar as condições epistemológicas onde sentenças devem ser vistas como
empíricas ou não, mas apenas certas características entre tipos diferentes de
sentenças em uma linguagem formalizada (TRANJAN, 2010, p. 233). 126
A referência para a construção dos conceitos sintáticos são certas noções
intuitivas, e as razões podem ser epistemológicas, mas o esforço é para tornar estas
distinções e definições mais exatas conforme elas são elaboradas dentro de um
framework formalmente rigoroso como o da análise sintática. As construções dessas
noções, por parte do Carnap, nunca são dogmatizadas, mas sempre relativizadas a
uma linguagem. O referencial é uma linguagem entre muitas possíveis. O conceito
de analiticidade é elaborado de forma que uma sentença é verdadeira apenas em
virtude das regras de formação e transformação. Devido ao fato dessas regras serem
convencionais, em princípio, não é sequer possível dar uma definição absoluta do
que precisamente significaria uma sentença ser analítica em uma linguagem
(CIRERA, 1994, p. 248). Antes de representar um defeito, a relativização feita por
Carnap apresenta um progresso nas investigações acerta da distinção analítico-
sintético. Porém, outros problemas se colocam.
Duas questões movem Carnap ao discutir a definição do conceito “analítico em
L.II”, sendo elas: (i) é possível traduzir a definição de “analítico em II” em uma
metalinguagem estritamente formal?; (ii) a própria Linguagem II pode ser usada
como esta metalinguagem? A primeira recebe uma resposta afirmativa, enquanto a
segunda uma negativa. Carnap assevera que para qualquer linguagem S, se ela não
for contraditória, a definição de “analítico em S” não pode ser formulada com base
em uma metalinguagem construída a partir de S (CARNAP, 2017, p. 113).

Diaphonía, e-ISSN 2446-7413, v. 5, n. 1, 2019


PIZZUTTI, P.

Na seção 60 do Logical syntax, Carnap pretende demonstrar a verdade da


afirmação anterior e, para isso, constrói uma versão da Antinomia do Mentiroso
com base apenas em termos sintáticos. Por conta da capacidade sintática de
autoreferência, advinda da construção da metalinguagem a partir da linguagem
objeto, o teorema 60c. I. afirma que: “Se S é consistente, ou, ao menos, não
contraditória, então ‘analítico (em S)’ é indefinível em S” (CARNAP, 2017, p. 219,
itálico do autor). A conclusão é de que só é possível definir o termo “analítico em S”
em uma metalinguagem mais rica que a própria linguagem S.
Pereira (2013, p. 70) considera a necessidade de uma metalinguagem distinta
da linguagem objeto, um ponto que suplanta o projeto puramente sintático de
Carnap. Seu argumento é que devido a uma hierarquia entre linguagens, decorrente
da necessidade de uma metalinguagem mais rica, há referências extralinguísticas à
linguagem objeto, o que arruína o projeto puramente sintático. Além disso, Carnap
afirmou que, tomando a linguagem científica como linguagem objeto, a construção
da sintaxe desta, com recursos apenas de si mesma, mostraria que a sintaxe lógica
forma um único sistema com a Ciência, isto por meio de uma única linguagem
(CARNAP, 2017, p. 286). Deste modo, a inevitabilidade de uma metalinguagem mais
rica acaba por dificultar o projeto de uma unidade científica entre linguagem da
Ciência e sintaxe lógica.
Há ainda mais um fator que mina o projeto puramente sintático de Carnap. 127
Quando definiu as regras de consequência para a L.I, Carnap primeiro estipulou
uma definição para o termo “consequência”, através de regras de inferência, e só
então, com base nestas, deu definições para os termos “analítico” e “contraditório”.
Mas, quando formulou regras de consequência para L.II, Carnap inverte e primeiro
dá definições dos termos “analítico” e “contraditório” para que, com eles, formule a
definição de consequência.
Tranjan nota que esta inversão faz Carnap elaborar a definição com uma
estrutura teórica muito semelhante a que Tarski apresenta ao dar uma definição de
verdade em “O conceito de verdade em linguagens formalizadas” (2007). Sem entrar
nos detalhes técnicos, a definição de Carnap pretende fazer o mesmo, e pelos
mesmos métodos, que faria uma definição de Tarski para o termo “verdade em L.II”.
Embora haja um grande mérito técnico e teórico em sua elaboração de analiticidade
para a Linguagem II, Carnap “trapaceou”, deu uma definição de “analítico em II” e
trabalhou retrocedendo. O fim desse processo é a definição de “consequência” que,
para Carnap (2017, p. 168), deveria ser o começo de toda sintaxe, mas que, pelo
modo construído, nada tem de sintática (TRANJAN, 2010, p. 246-247). O conceito de
analiticidade, tão fundamental e crucial para o método sintático, se torna seu
Calcanhar de Aquiles:

A situação, então, pode ser sumariada assim: Para realizar uma das
tarefas lógicas mais importantes de seu livro (a circunscrição da

Diaphonía, e-ISSN 2446-7413, v. 5, n. 1, 2019


O desenvolvimento e o fracasso do método sintático carnapiano

matemática clássica por meio de um sistema lógico-formal),


justamente aquela tarefa que o motivara a introduzir um novo
método sintático indefinido como base da lógica formal, Carnap
utiliza um procedimento que perde qualquer conteúdo sintático, e que
hoje é descrito unanimamente como um procedimento semântico.
(TRANJAN, 2010, p. 247-248, itálico do autor).

Considerações finais

A discussão em torno do termo “analítico” mostra o fracasso do método


sintático. Este não apresenta a capacidade que Carnap colocava sobre ele. Não foi
possível construir a analiticidade em uma metalinguagem com os recursos
linguísticos da própria linguagem objeto e não foi viável a elaboração de uma
circunscrição puramente sintática da Matemática Clássica. Assim, pode-se
sumarizar os fracassos do método sintático em: (i) impossibilidade de dar uma
definição para o conceito “analítico” em uma metalinguagem baseada nos recursos
de sua linguagem objeto; (ii) definição de “analítico em II”, valendo-se de uma
metalinguagem mais rica, utiliza um método semântico.
Embora, de modo evidente, o método sintático de Carnap não atinja seus
objetivos, cabe ressaltar que o seu fracasso é imposto pelos critérios e demandas
colocadas pelo próprio Carnap. Pode-se dizer que o autor esperava demais de seu
constructo. É preciso notar, por exemplo, que a definição do termo “analítico em II” 128
é feita de um modo formal bastante preciso, o único problema é que este método é
semântico e não sintático. Não há um fracasso em fornecer uma definição formal da
analiticidade, mas “apenas” uma definição sintática.
Por estes fatores, e outros, como o sucesso do método semântico nas mãos de
Tarski, que em sua Intellectual autobiography, Carnap admitiu que uma das
principais teses do Logical syntax foi elaborada de maneira equivocada. A tese que o
autor se refere é a de que todos os problemas da Filosofia da Ciência seriam
problemas sintáticos. Em detrimento dessa visão muito restritiva, Carnap
argumenta que deveria ter formulado a tese de que tais problemas são metateóricos.
Por conseguinte, a metateórica científica deveria incluir a semântica e até mesmo a
pragmática (CARNAP, 1963, p. 56). Este é um dos fatores que explica o abandono
rápido do método sintático em direção a uma complementação semântica para
análise lógica da linguagem científica na obra de Rudolf Carnap.

Referências

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129
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TRANJAN, T. Carnap e a natureza da lógica. Tese (doutorado em filosofia). Universidade de
São Paulo. São Paulo, 264p, 2010.

Submissão: 30.10.2018 / Aceite: 15.12.2018.

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Befindlichkeit e Stimmung: Os afetos na analítica existencial de Martin
Heidegger
Befindlichkeit and Stimmung: The affections in the existential analytic of
Martin Heidegger

GIOVANI AUGUSTO DOS SANTOS1

Resumo: A questão sobre o ser sempre acompanhou Heidegger em todos seus caminhos
filosóficos. À luz desse projeto principal, outros temas ganharam a atenção do filósofo à
medida que servem a pensar o ser. Um desses temas é o afeto, tema do presente trabalho.
Ao falar sobre afetos, Heidegger utiliza dois termos, a saber Befindlichkeit e Stimmung.
Nesse sentido, o objetivo deste trabalho é analisar esses fenômenos, especificamente na
analítica existencial do ser-aí. Encontra-se no início do §29 de Ser e tempo a seguinte
indicação: “O que indicamos ontologicamente com o termo disposição [Befindlichkeit] é,
onticamente, o mais conhecido e o mais cotidiano, a saber, o humor [die Stimmung], o estar
afinado num humor [das Gestimmtsein]”. Nesse sentido pode-se questionar: o que o autor
quer indicar com os termos Befindlichkeit e Stimmung? Os termos disposição e humor
traduzem precisamente esses fenômenos? Existem outras palavras que melhor traduzam?
Para além da tradução, como compreender a Befindlichkeit e a Stimmung? São eles dois
fenômenos ou um único? Tentando pensar essas questões, será utilizado uma revisão
narrativa de literatura, especificamente de Ser e tempo e de tradutores e comentadores da
obra heideggeriana, indicando que, embora sejam fenômenos de difícil tradução é possível
pensar de maneira mais afinada com Heidegger dependendo do termo utilizado para
traduzir alguns de seus termos ao português. Também será possível compreender que,
embora dois fenômenos, Befindlichkeit e Stimmung são fenômenos correlatos ôntico-
ontológico. E, ainda que de maneira provisória, ter-se-á uma visão do papel que os afetos
assumem na economia, não só da ontologia fundamental, mas do próprio exercício do
pensamento na obra heideggeriana.
Palavras-chave: Befindlichkeit; Stimmung. Afetos. Analítica existencial. Heidegger.

Abstract: The question of being has always accompanied Heidegger in all his philosophical
ways. In the light of this main project, other themes have gained the attention of the
philosopher as they serve to think the being. One of these themes is affection, the theme of
this work. When speaking about affections, Heidegger uses two terms, namely
Befindlichkeit and Stimmung. In this sense, the objective of this work is to analyze these
phenomena, specifically in the existential analytic of being-there. It is found at the
beginning of §29 of Being and Time the following statement: "What we indicate
ontologically with the term disposition [Befindlichkeit] is, on the one hand, the best known
and the most everyday, namely humor [die Stimmung] to be tuned in [Gestimmtsein] mood.
" In this sense one can question: what does the author mean by the terms Befindlichkeit and
Stimmung? Do the terms mood and mood translate precisely these phenomena? Are there
other words that translate better? Beyond Translation, how to understand Befindlichkeit
and Stimmung? Are they two phenomena or a single one? Trying to think about these
questions, we will use a narrative revision of literature, specifically of Being and time and of
translators and commentators of the Heideggerian work, indicating that, although they are
difficult to translate phenomena, it is possible to think more closely with Heidegger
depending on the term used for translate some of its terms into Portuguese. It will also be

1
Graduado em Psicologia, pelo Centro Universitário FAAT. Mestrando em Filosofia pela UNIOESTE.
E-mail: santos.gio@live.com.

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SANTOS, G.

possible to understand that although two phenomena, Befindlichkeit and Stimmung are
ontological-ontological correlated phenomena. And, although in a provisional way, one will
have a vision of the role that the affections assume in the economy, not only of the
fundamental ontology, but of the own exercise of the thought in the Heideggerian work.
Keywords: Befindlichkeit; Stimmung. Affections. Existential analytical. Heidegger.

Considerações iniciais

O projeto filosófico que perpassa toda a obra de Heidegger é o resgate da


questão do sentido do ser que estava presente na aurora do pensamento ocidental,
mas é esquecida e negligenciada por toda a história da filosofia a partir de Platão e
Aristóteles (CASANOVA, 2015). É nesse caminho que surge a obra Ser e tempo, que
teve por tarefa construir uma ontologia fundamental que, tendo como ponto de
partida a analítica existencial, resgatasse a questão do ser. Nesse sentido, podemos
nos questionar: qual o interesse de Heidegger, filosofo do ser, em relação aos afetos?
Os afetos se fazem presentes em todo o percurso filosófico heideggeriano, e
aparecem em textos do início da década de 1920, como por exemplo no curso do
semestre de verão de 1921, intitulado Agostinho e o neoplatonismo2, e continuam em
obras posteriores a Ser e tempo, como por exemplo nas Contribuições à filosofia3,
obra escrita entre os anos de 1936 à 1938 e é tematizado, em 1966, em um dos 131
Seminários de Zollikon4, além de diversas outras obras, aulas, cursos, preleções e
seminário.
Neste trabalho, nos deteremos especificamente a análise feita por Heidegger
no §29 de Ser e tempo, intitulado O ser-aí como disposição (Das Da-sein als
Befindlichkeit), no qual Heidegger apresenta o afeto como uma estrutura
constitutiva do ser-aí, ou seja, como um existencial. Para além de uma simples
síntese do parágrafo e para aquém de estancar toda a riqueza da questão dos afetos
presentes no projeto da ontologia fundamental, este trabalho tem por tarefa
compreender dois termos utilizados por Heidegger, a saber, Befindlichkeit e
Stimmung. Isso se deve ao fato de que não é possível falar de afeto na analítica
existencial do ser-aí sem recair, primeiramente, nesses dois fenômenos.

Befindlichkeit, Stimmung e Gestimmtsein

2
Cf. HEIDEGGER, M. Fenomenologia da vida religiosa. Tradução de Enio Paulo Giachini, Jairo
Ferrandin e Renato Kirchner. Petrópolis, RJ: Vozes; Bragança Paulista, SP: Editora Universitária São
Francisco, 2010.
3
Cf. HEIDEGGER, M. Contribuições à filosofia: do acontecimento apropriador. Tradução de Marco
Antonio Casanova. Rio de Janeiro: Via Verita, 2014.
4
Cf. HEIDEGGER, M. BOSS, M. (ed.). Seminários de Zollikon. Tradução de Gabriela Arnhold e Maria
de Fátima de Almeida Prado. São Paulo: EDUC; Petrópolis, RJ: Vozes, 2001.

Diaphonía, e-ISSN 2446-7413, v. 5, n. 1, 2019


Befindlichkeit e Stimmung: Os afetos na analítica existencial de Martin Heidegger

Observa Heidegger (2015, p. 193) que, “O que indicamos ontologicamente com


o termo disposição [Befindlichkeit] é, onticamente, o mais conhecido e o mais
cotidiano, a saber, o humor [die Stimmung], o estar afinado num humor [das
Gestimmtsein]”, logo na primeira frase do parágrafo em que apresenta a afetividade
em Ser e tempo, como dito anteriormente, §29.
As palavras Befindlichkeit e Stimmung são de difícil tradução para o português,
pois não se encontram palavras que guardem os mesmos sentidos empregados por
Heidegger. As dificuldades encontradas na tradução desses termos para nossa língua
também são encontradas para traduções em outras línguas, mesmo de origem
germânica, conforme apontam Elpidorou e Freeman (2015) não existe na língua
inglesa, que possui sua origem muito próxima à língua alemã, palavras que
sustentem, semanticamente e filosoficamente, o sentido proposto por Heidegger
com os termos acima mencionados.
Macquarrie e Robinson5, na tradução de Ser e tempo para o inglês, traduzem
Befindlichkeit e Stimmung, respectivamente por: “state-of-mind” e mood. Em nota, os
tradutores apontam que as escolhas feitas implicam a perda de alguns sentidos das
palavras em alemão, mas optam por essas por não haver palavras que melhor
descrevam tais fenômenos.
Greisch (1994) também destaca a dificuldade da tradução destes termos para o
francês, apontando que não existe correspondente literal para Stimmung nessa
132
língua, sendo comumente traduzido por humeur, citando Michael Haar ele nos diz
que: “para traduzir verdadeiramente Stimmung... dever-se-ia poder de algum modo
adicionar, em uma só palavra, ressonância, tom, ambiente, tonalidade afetiva
subjetiva e objetiva – o que é evidentemente impossível.” (GREISCH, 1994, p. 1766).
Já Befindlichkeit, que foi traduzido ao francês por Vezin como disposibilité, poderia
ser melhor traduzido, ainda segundo Greisch (1994), por affection.
A tradutora Márcia Sá Cavalcante, primeira a traduzir por completo Ser e
tempo no Brasil, utiliza a palavra “disposição” para traduzir Befindlichkeit e “humor”
para traduzir Stimmung. Já Fausto Castilho, em sua edição bilíngue da mesma obra,
traduz Befindlichkeit por “encontrar-se” e Stimmung por “estado-de-ânimo”. Ambos
os tradutores brasileiros optam por manter a tradição das traduções das línguas
neolatinas, como visto em francês disposibilitê e humeur e em espanhol, na tradução
de José Gaos, encontrarse e temple.
O que o autor, porém, quer indicar com os termos Befindlichkeit e Stimmung?
Os termos disposição ou encontrar-se e humor ou estado-de-ânimo traduzem
precisamente esses fenômenos? Existem outras palavras que melhor traduzam? Para

5
Cf. Heidegger (1962), p. 172, notas dos tradutores 2 e 3.
6
“[...] pour traduire véritavlement Stimmung... il faudrait pouvoir em quelque sorte additionner en
um seul mot: vocation, résonance, ton, ambience, accord affetif subjectif et objectif – ce qui est
évidemment impossible”.

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SANTOS, G.

além da tradução, como compreender a Befindlichkeit e a Stimmung? São eles dois


fenômenos ou um único?
Com o termo Befindlichkeit, Heidegger indica, ontologicamente, o “como” o
ser-aí se encontra ou está em seu aí. A própria palavra utilizada pelo filósofo em
alemão deixa isso muito claro, pois, befinden remete-se a como alguém está, acha-se
ou encontra-se, como por exemplo à um estado de saúde, ou quando diz sentir-se
“bem”, “mal”, “feliz” ou “triste”; por sua vez, befindlich, tem o sentido de estar
situado, de onde ou como alguém se encontra em algum lugar, nesse sentido se
trata de uma afecção que perpassa a existência, não se restringindo unicamente a
um estar locativo ou subjetivo (INWOOD, 2002).
Irene Borges-Duarte (2015), professora, tradutora e comentadora portuguesa
de Heidegger, diz que o filósofo alemão encontra em Agostinho de Hipona o
significado do conceito de abertura afetiva da experiência da vida fática marcada
pelas affectiones. Esse contato com a filosofia agostiniana já se faz presente no
pensamento heideggeriano em 1921, nas lições do semestre de verão daquele ano,
anteriormente citada, Agostinho e o neoplatonismo.

A experiência fáctica da vida está marcada pelas affectiones, em


ambas as suas modalidades de doação (actual ou memória).
Heidegger, lendo Agostinho em 1921, traduz: Affektion, se se trata
duma afecção corporal, por ex., uma dor física; Affekt, se não se 133
trata meramente da impressão sensorial, mas da repercussão íntima
das impressões num «estado de alma» [seelisches Zustand],
implicando consciência e memória – por ex., o estar alegre ou o
estar triste ou o recear (BORGES-DUARTE, 2015, p. 4).

Ainda a autora aponta que é em 1924, na conferência O conceito de tempo7,


novamente para traduzir as affectiones de Agostinho, que Heidegger utiliza pela
primeira vez o termo Befindlichkeit, para designar, daí em diante, a abertura afetiva,
estrutura fundamental do ser-aí. Por ser utilizado para traduzir para o alemão as
affectiones de Agostinho e por guardar em sua origem um estar situado que é
passional e ao mesmo tempo locativo, acreditamos, que Befindlichkeit pode ser
traduzido, adeaquadamente, para o português por disposição afetiva, afeto ou
afetividade.
Já Stimmung vem da palavra Stimme, que significa voz e quer dizer muito mais
que apenas humor ou estado-de-ânimo. Stimmung quer dizer afinação, entonação.
Apoiados na tradução de diversas obras feitas pelo professor Marco Casanova, como
por exemplo Conceitos fundamentais da metafísica: mundo finitude e solidão,
Nietzsche I e II e Contribuições à filosofia, destacamos que:

7
Cf. HEIDEGGER, M. O conceito de tempo. Tradução de Irene Borges-Duarte. 2. ed. Lisboa: Fim do
Século, 2008. (Edição bilíngue português-alemão).

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Befindlichkeit e Stimmung: Os afetos na analítica existencial de Martin Heidegger

Algumas são as possibilidades correntes de tradução de Stimmung


para o português: disposição, afeto, páthos, disposição de humor
etc. Todas estas possibilidades carregam consigo um inevitável peso
psicologizante e tendem a inserir no texto um conjunto de
significados, do qual justamente Heidegger pretende escapar. Por
isto, nós optamos neste contexto de tradução por tonalidade afetiva.
Stimmung possui uma relação direta com o vocábulo Stimme, que
pode ser traduzido sem mais por “voz’, e com o verbo stimmen, que
é utilizado corriqueiramente em linguagem musical para descrever
o processo de afinação de um instrumento (CASANOVA, 2011 p. 6
N.T. 2).

Justamente pela indicação de que humor e estado de alma podem causar


confusão com termos psicológicos, além de carregarem consigo grande carga
metafísica remetendo a interioridade de um sujeito, optamos por tonalidade ou
afinação afetiva. Dizer isso é dizer que o ser-aí existe sempre afinado ou em sintonia
com um tom, como aponta Koecher (2013), assim como a música é tocada sempre
em um tom – mesmo que existam diversos tons não existe música sem tom – a
tonalidade afetiva é o que dá tom a existência, como uma sintonia, por vezes
desarmônica, que envolve o ser-aí, contrapondo-se a ideia de subjetividade e de
estados psíquicos.
Nesse sentido, Xolocotzi (2015) diz que ao se ao falar de afetividade em
Heidegger não é possível separar a Befindlichkeit da Stimmung, uma vez que, 134
fundamentados na diferença ontológica, são correlatos ôntico-ontológico,
existencial-existenciário:

Da mesma forma que existe uma diferença ontológica entre


compreensão e possibilidade, também a disposição afetiva
[Befindlichkeit] é ontologicamente diferente da afinação
[Stimmung]. Embora a afinação seja algo diferente de disposição,
seu caráter de ser é disposicional. Assim como o ente é, a afinação
dispõe. A disposição afetiva não é outra coisa senão o caráter
ontológico da afinação. E vice-versa, a afinação não é outra coisa
senão o caráter ôntico da disposição afetiva. Desse modo, a afinação
é sempre afetivamente disposicional e a disposição é sempre
afinada. Assim como não há ser sem ente ou ente sem ser, também
não há afinação sem disposição ou disposição sem afinação.
Contudo, a diferença é mantida e, como o ser não se esgota no ente,
a disposição não se extingue na afinação (XOLOCOTZI, 2015, p. 13)8.

8
“De la misma forma en que hay uma diferencia ontológica entre compreensión y posibilidad, así la
disposioción afectiva [Befindlichkeit] es pues ontológicamente diferente al temple [Stimmung]. A
pesar de que el temple es algo diferente a la disposición, su carácter de ser es disposicional. Así como
el ente es, así el templo dispone. Lo afectivamente disposicional no es outra cosa que el carácter
ontológico del temple. Y vice-versa, el temple no es outra cosa que el carácter óntico de la
disposición afectiva. De esta forma, el temple es siempre afectivamente disposicional y la disposición
es siempre templata. Así como no hay ser sin ente ni ente sin ser, así no hay temple sin disposioción

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SANTOS, G.

Elpidorou e Freeman (2015, p.663-6649) dizem, de maneira mais simples que:

Os termos "Befindlichkeit" e "Stimmung", portanto, designam um e o


mesmo fenômeno, cada um, no entanto, significando isso de uma
maneira diferente. Como uma estrutura ontológica da existência do
ser-aí, Befindlichkeit é um modo básico de existência e abertura para
o mundo. Como a manifestação ôntica de Befindlichkeit,
Stimmungen são as várias e específicas maneiras pelas quais o ser-aí
pode se relacionar e descerrar o mundo, todas as quais ocorrem
contra o pano de fundo da estrutura de Befindlichkeit. Na medida
em que Befindlichkeit pertence à estrutura da existência do ser-aí e
na medida em que sempre se manifesta através da tonalidade
afetiva.

Casanova (2017, p. 158) corrobora também para essa interpretação ao dizer que:

[...] nós já sempre nos encontramos de um modo específico no


mundo, e, com isto, a disposição (Befindlichkeit) não é um traço
contingente de nosso ser, mas um existencial, uma das estruturas
transcendentais que determinam o modo do dar-se do fenômeno
ser-aí; é esse modo específico de estar no mundo, que sempre
assume onticamente o caráter de uma afinação, de uma atmosfera
ou de uma tonalidade afetiva específica (Stimmung), que caracteriza
como nós somos quem somos sendo concomitantemente o aí que é
o nosso.
135
É nesse sentido que Heidegger compreende o afeto de uma maneira diferente a
como a tradição compreende. Para o filósofo da floresta negra, o afeto não está mais
condicionado a uma subjetividade de um sujeito em contraposição a objetividade do
objeto. Ele supera a dualidade cartesiana até então fundamento da filosofia e ciência
moderna e passa a compreender o afeto como existencial fundamental, antes de
qualquer tipo de psicologia:

O âmbito dos afectos alcança, assim, no pensamento de Heidegger,


uma dimensão central. Não só se ultrapassa e vence o paradigma
moderno da racionalidade, que só permitia ver o emotivo e
passional como o que se lhe escapava e se lhe opunha, como, além
disso, a afectividade, em íntima e originária articulação com o
compreender, se converte numa das estruturas do ser na sua
fenomenologia no mundo e linguagem humanos e, nessa medida,

ni disposición sin temple. Sin embargo, la diferencia se mantiene y, así como el ser no se agota em el
ente, la disposición no se extingue em el temple”.
9
“The terms ‘Befindlichkeit’ and ‘Stimmung’ hence designate one and the same phenomenon, each,
however, signifying it in a different way. As an ontological structure of Dasein’s existence,
Befindlichkeit is a basic mode of existence in, and openness to, the world. As the ontic manifestation
of Befindlichkeit, Stimmungen are the various and specific ways in which Dasein can relate to and
disclose the world, all of which occur against the backdrop of the structure of Befindlichkeit. Insofar
as Befindlichkeit belongs to the structure of Dasein’s existence and insofar as it is always manifested
through mood […]”.

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Befindlichkeit e Stimmung: Os afetos na analítica existencial de Martin Heidegger

numa das características ontológicas do próprio ente, que como


Dasein, “leva o ser no seu ser” (BORGES-DUARTE, 2015, p. 6).

O afeto, portanto, é uma estrutura ontológica que constitui abertura de


mundo, ou seja, diz respeito ao ser, mas se manifesta de forma mais cotidiana
através das tonalidades afetivas específicas, que são concretizações ônticas do afeto
que perpassa o ser-aí, assim explicita-se como a abertura ontológica dos afetos não
é, de forma alguma, um estado psíquico ou de alma, pois, o pensar, o agir e o não
agir só podem acontecer em meio a afinação afetiva. É por meio da disposição
afetiva que, para Heidegger (2015), se dá a abertura original ao mundo, em outras
palavras, o ser-aí não pode acessar ou conhecer o mundo primeiramente por uma
faculdade intelectiva, mas “está”, desde seu fundamento, em meio à totalidade do
ente. E este “estar” é, justamente, o afinar-se afetivamente.

Considerações finais

Antes de terminarmos algumas coisas são dignas de notas: a primeira é que


nesta breve apresentação analisamos apenas uma frase do §29 de Ser e tempo,
parágrafo este central para a compreensão de toda a obra, por isso não pudemos dar
conta dos desdobramentos feitos por Heidegger, como, por exemplo, a abertura
original dos afetos, a facticidade, a responsabilidade, a liberdade, o estar-lançado,
entre outras. Portanto, para uma melhor compreensão sobre o papel fundamental 136
dos afetos na analítica existencial, faz-se necessário uma leitura completa do
parágrafo, bem como sua leitura no contexto geral de Ser e tempo.
A segunda coisa a ser ressaltada pode ser colocada através de um famoso jogo
de palavras italiano que diz: traduttore, traditore, que significa literalmente
tradutor, traidor. Não queremos com esse trocadilho denegrir a imagem do
tradutor, muito pelo contrário, queremos marcar o grande fardo que carrega a
pessoa que se empreende por esse caminho, pois, ao traduzir obras que carregam
consigo sentidos muitas vezes específicos, como são as grandes obras filosóficas,
literárias e poéticas, já sempre se faz uma interpretação destas para se decidir pelo
uso de uma ou outra expressão. Por esse motivo, mais importante que se ater a
terminologias e traduções, é necessário compreender o pensamento que tais termos
querem transmitir.
Para finalizar, acreditamos que é de fundamental importância pensar a obra
heideggeriana em português, uma vez que é possível e necessário se fazer filosofia
em nossa língua e pensar as traduções, como indicamos diversas vezes ao decorrer
do trabalho, é, antes de tudo, pensar o sentido filosófico.

Referências

HEIDEGGER, M. El ser y el tempo. Tradução de José Gaos. México, D.F.: Fondo de Cultura
Económica, 1951.

Diaphonía, e-ISSN 2446-7413, v. 5, n. 1, 2019


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_____. Os conceitos fundamentais da metafísica: mundo, finitude, solidão. Tradução de
Marco Antônio Casanova. 2. ed. – Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2011.
_____. Ser e tempo. Tradução de Fausto Castilho. Campinas, SP: Editora da Unicamp;
Petrópolis, RJ: Vozes, 2012. (Edição bilíngue português-alemão).
_____. Ser e tempo. Tradução de Márcia Sá Cavalcante. 10. ed. Petrópolis, RJ: Vozes;
Bragança Paulista, SP: Editora Universitária São Francisco, 2015.
BORGES-DUARTE, I. O afecto na Análise Existencial heideggeriana. In: CASANOVA, M. A.;
ESTRADA, P. C. D. Fenomenologia Hoje V. Fenomenologia e Filosofia Prática. Atas do V
Congresso Luso-Brasileiro de Fenomenologia. Rio de Janeiro, Via Verita, 2015. p. 3-19.
Disponível em: http://dspace.uevora.pt/rdpc/handle/10174/18116 Acesso em: 28 de jun. de
2018.
CASANOVA, M. A. Compreender Heidegger. 5 ed. Petrópolis, RJ: Vozes, 2015.
_____. Mundo e historicidade: leituras fenomenológicas de Ser e tempo – Volume 1 –
Existência e mundaneidade. Rio de Janeiro: Via Verita, 2017.
_____. Notas do tradutor. In. HEIDEGGER, M. Os conceitos fundamentais da metafísica:
mundo, finitude e solidão. Tradução de Marco Antonio Casanova. Rio de Janeiro: Forense
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https://www.researchgate.net/publication/280134255_Affectivity_in_Heidegger_I_Moods_a
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técnica de Márcia Sá Cavalcante Schuback. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editora, 2002.
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http://go.galegroup.com/ps/anonymous?id=GALE%7CA346627557&sid=googleScholar&v=2.
1&it=r&linkaccess=abs&issn=17525616&p=AONE&sw=w Acesso em: 17 de set. de 2018.
XOLOCOTZI, Á. Introducción. In: Studia Heideggeriana. v. 4. 2015. p. 9-20.

Submissão: 31.10.2018 / Aceite: 30.11.2018.

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O estatuto epistemológico da agroecologia
The epistemological statute of agroecology

PATRÍCIA DE OLIVEIRA DOS SANTOS1

Resumo: Este trabalho consiste em uma explicitação sobre o estatuto epistemológico da


agroecologia tendo por base as contribuições de Hugh Lacey em A controvérsia sobre os
transgênicos: questões científicas e éticas de 2006. Para isso, entendendo que a base para
essa discussão se dá no embate entre os chamados proponentes, que defendem o uso dos
transgênicos, e os críticos, que defendem o uso de formas alternativas de cultivo como, por
exemplo, a agroecologia. Serão abordados os tipos de estratégias que precisam ser adotadas
para investigar empiricamente proposições como “Não existem formas alternativas de
agricultura que poderiam ser desenvolvidas no lugar dos modos propostos de orientação
transgênica, sem ocasionar riscos inaceitáveis” (P4) e “Não existem formas alternativas de
agricultura – no interior da trajetória do sistema sócio-econômico baseado no capital e no
mercado” (P4a). A partir disso, será ressaltado a importância dos movimentos que
constituem o Fórum Social Mundial (FSM), bem como dos movimentos emancipatórios,
buscando ressaltar o papel dos movimentos sociais para a epistemologia da agroecologia.
Palavras-chave: Agroecologia. Proponentes. Neoliberalismo. Conhecimento. Fórum Social
Mundial.

Abstract: Abstract: This work consists of an explanation of the epistemological status of


agroecology based on the contributions of Hugh Lacey in The controversy on transgenics:
scientific and ethical issues of 2006. To this end, understanding that the basis for this
discussion occurs in the clash among so-called proponents, who advocate the use of
transgenics, and critics, who advocate the use of alternative forms of cultivation, such as
agroecology. The types of strategies that need to be adopted to empirically investigate such
proposals as "There are no alternative forms of agriculture that could be developed in place
of the proposed modes of transgenic guidance without causing unacceptable risks" (P4). In
addition, "There are no alternative forms of agriculture - within the trajectory of the socio-
economic system based on capital and the market "(P4a). From this, it will be emphasized
the importance of the movements that make up the World Social Forum (WSF), as well as
the emancipatory movements, seeking to emphasize the role of social movements in the
epistemology of agroecology.
Keywords: Agroecology. Proponents. Neoliberalism. Knowledge. World Social Forum.

Este trabalho busca fazer uma explicitação sobre o estatuto epistemológico da


agroecologia. Para isso, será tomado por base as contribuições de Hugh Lacey em A
controvérsia sobre o uso dos transgênicos: questões cientificas e éticas de 2006. Como
o próprio título sugere, nessa obra Lacey tem por objetivo discutir questões
científicas e éticas relacionadas a controvérsia sobre o uso e a implementação
imediata dos alimentos transgênicos. A base para essa discussão se dá no embate
entre os chamados proponentes, que defendem o uso dos transgênicos, e os críticos,

1
Graduada em Filosofia pela Universidade Estadual do Centro-Oeste do Paraná – UNICENTRO. E-
mail: patyyoliveirasant@hotmail.com.

Diaphonía, e-ISSN 2446-7413, v. 5, n. 1, 2019


SANTOS, P.

que defendem o uso de formas alternativas de cultivo tal como a agroecologia. Se


por um lado encontramos os proponentes, dispostos a defender a todo custo o uso
de alimentos transgênicos com a justificativa de que eles são necessários para acabar
com a fome no mundo, por outro lado encontramos aqueles que defendem que é
necessário mais pesquisa antes de se tomar uma decisão definitiva e que existem
formas alternativas de agricultura.
Deve-se depreender que este trabalho leva em consideração o fato de que há
valores e interesses opostos nesta discussão, mas como o objetivo principal é
demonstrar o estatuto epistemológico da agroecologia, ainda que mencionando
alguns valores pertinentes, parte-se das seguintes questões: por que a agroecologia é
considerada por muitos como mera ideologia? Quais fatores podem sustentar essa
alternativa aos transgênicos? Com base nessa questão, serão analisados esses fatores
necessários e a relação com os argumentos P4 – “Não existem formas alternativas de
agricultura” – e P4a – “Não existem formas alternativas de agricultura – no interior
da trajetória do sistema sócio-econômico baseado no capital e no mercado [...].”
(LACEY, 2006, p. 174). A partir disso, se fará indispensável demonstrar a importância
do Fórum Social Mundial (FSM) e dos movimentos emancipatórios, pois estes
movimentos, contribuem de forma direta para o teste empírico das formas
alternativas de agricultura e, de modo especial, da agroecologia e de sua
epistemologia. 139
Inicialmente, em seu argumento P4, os proponentes afirmam categoricamente
não haver formas alternativas de agricultura e que os transgênicos são necessários
para alimentar o mundo (LACEY, 2006, p. 149). Entretanto, os críticos contra-
argumentam que existem formas alternativas de agricultura que estão sendo
desenvolvidas e que podem ser consideradas mais sustentáveis, que protegem a
biodiversidade e que possuem o potencial de produzir em larga escala. O que mais
chama atenção é o fato de que o lado proponente parece ser um tanto quanto
dogmático em relação ao lado crítico, simplesmente por não utilizarem as mesmas
estratégias na condução da pesquisa científica. Precisamente, conforme Wolfe:

Por que essa abordagem não é amplamente adotada? É simples


demais, não faz uso o bastante de alta tecnologia? [...]. Misturas de
variedades podem não fornecer todas as respostas aos problemas de
controle de doenças e produção estável da agricultura moderna.
Mas seu desempenho até aqui em situações experimentais merece
que sejam mais amplamente empregadas (WOLFE, 2000, p. 681-
682).

Basicamente, têm-se uma enorme diferença quando o assunto são estratégias,


a saber, o lado proponente é compreendido como a “agricultura do futuro” e, por
isso, não é novidade que as pesquisas científicas sejam conduzidas de acordo com
estratégias da pesquisa científica moderna (quase que exclusivamente de acordo

Diaphonía, e-ISSN 2446-7413, v. 5, n. 1, 2019


O estatuto epistemológico da agroecologia

com estratégias materialistas), bem como a valorização moderna do controle; por


outro lado, para os críticos, as pesquisas científicas precisam ser conduzidas de
acordo com uma pluralidade de estratégias e, a rigor, estratégias que incluam
valores da participação popular e que levem em conta o contexto sociocultural de
cada ambiente. O fato é que, a agroecologia é tomada por vezes como mera
ideologia ou estilo de vida, e quando se trata de analisar sua viabilidade ou
legitimidade parece ser até mesmo ignorada. Ao contrário disso, a agroecologia
pode ser entendida como uma das principais formas de alternativas de agricultura e
analisando sua viabilidade ou legitimidade, trata-se de uma proposta consolidada.
Mas, se é uma proposta consolidada por que não é vista como tal?
Ora, apesar de ser uma proposta consolidada, a agroecologia vai muito além da
simples adoção de estratégias materialistas na condução da pesquisa científica.
Segundo Altieri, a agroecologia “utiliza os agroecossistemas como unidade de
estudo, ultrapassando a visão unidimensional – genética, agronomia, edafologia –
incluindo dimensões ecológicas, sociais e culturais” (ALTIERI, 2004, p. 23). Com
isso, o conhecimento obtido através dessa forma alternativa, é o conhecimento no
qual pesquisadores e agricultores interagem entre si, a troca de saberes é, nesse
âmbito, um dos requisitos básicos para a discussão e elaboração (e portanto,
assegura-se como democrática) de teorias e hipóteses que fundamentem ainda mais
a viabilidade dessa forma alternativa de agricultura. Entretanto, embora a troca de 140
conhecimento entre pesquisadores e agricultores, bem como a pluralidade de
estratégias sejam os objetivos principais da agroecologia, o lado proponente parece
não compreender o que realmente está em jogo. Segundo Santilli, “os saberes
agrícolas passaram a ser produzidos fora do campo, longe dos agricultores, pelas
instituições de pesquisa” e por isso, “os agricultores foram convertidos em “meros
usuários finais do trabalho desenvolvido pelos técnicos do melhoramento vegetal””
(SANTILLI apud BARROS; ARAÚJO, 2016, p.88). Ademais, o comprometimento com
o éthos científico pelos proponentes, acaba por obscurecer a visão sobre os críticos.
É importante ressaltar que os críticos não estão rejeitando o conhecimento
obtido por meio de pesquisas conduzidas sob estratégias materialistas, nem mesmo
de pesquisas feitas em laboratórios. Para os críticos, o que está em jogo é a adoção
de uma pluralidade de estratégias e, por isso mesmo, adotar apenas uma perspectiva
é limitar-se a um campo de conhecimento fechado. Por causa desse posicionamento,
os críticos são acusados de ir contra o “progresso da ciência” e da própria tecnologia;
são acusados de adotar, a rigor, uma posição “anticiência”. O grande problema dessa
visão pessimista, que os proponentes possuem em relação à agroecologia, deve-se ao
papel que se atribui a ciência, as pesquisas científicas e ao próprio conhecimento
científico moderno. Dado que a ciência e as pesquisas científicas são baseadas na
valorização moderna do controle e em estratégias materialistas, o próprio
conhecimento científico fica restrito a dados quantitativos, deixando de lado outras

Diaphonía, e-ISSN 2446-7413, v. 5, n. 1, 2019


SANTOS, P.

formas de conhecimento que também podem contribuir para o avanço das


investigações. Nesse sentido, segundo Lacey, “embora não se negue que os Tgs são
produto de um conhecimento científico seguro, questiona-se o lado-P de que esse
tipo de conhecimento é geralmente exemplar” (LACEY, 2006, p. 161). Não obstante,
mesmo sendo notável o avanço da tecnociência e a rápida difusão de alimento
transgênicos, as controvérsias subjacentes a questão da implementação desses
alimentos, demonstram que para se legitimar os transgênicos de forma definitiva
não basta apenas requerer a “autoridade da ciência”; antes, é preciso que o próprio
argumento central dos proponentes seja submetido ao teste empírico.
Nessa perspectiva, se considerado o argumento P4, que defende não haver
formas alternativas de agricultura, para que esse argumento seja endossado, é
preciso antes investigar C4 (“Existem formas alternativas de agricultura”), somente
se C4 falhar em provar a viabilidade ou legitimidade de outras formas de agricultura
é que P4 poderia requerer o input científico e consolidar-se como a “agricultura do
futuro”. Entretanto, segundo Lacey: “As práticas que expressam os valores de
“sustentabilidade” penetram no cerne do projeto neoliberal e, nestes dias de
triunfalismo do mercado, possibilidades alternativas são facilmente descartadas”
(Ibidem). Por isso, devido a primazia das estratégias materialistas baseadas no
capital e no mercado, a agroecologia enquanto uma das principais formas
alternativas de agricultura, não consegue investimento ou financiamento adequado 141
de suas pesquisas justamente por ir contra o neoliberalismo dominante da
modernidade, permanecendo assim em segundo plano ou sendo simplesmente
rejeitadas.
A partir disso, é possível compreender a inserção do argumento P4a – “Não
existem formas alternativas de agricultura – no interior da trajetória do sistema
sócio-econômico baseado no capital e no mercado [...] e fora dessa trajetória não há
possibilidades genuinamente realizáveis” (LACEY, 2006, p. 174). Tal argumento releva
que o que está em jogo são condições socioeconômicas, e diante disso, como os
países subdesenvolvidos ou em desenvolvimento podem defender formas
alternativas de agricultura? Está claro que as inovações científicas-tecnológicas estão
presentes predominantemente nos países desenvolvidos, e justamente por isso,
possuem grande adesão de corporações que passam a financiar pesquisas de
alimentos transgênicos em prol do velho jargão “em time que está ganhando não se
mexe”. Os transgênicos são, pois, o exemplo mais bem-sucedido do resultado das
pesquisas científicas conduzidas por estratégias materialistas. Com base nisso, para
que a viabilidade ou legitimidade da agroecologia possa ser sustentada, “não é
suficiente produzir evidências do potencial produtivo da agroecologia: é necessário
torná-la socialmente viável em ampla escala” (LACEY, 2007, p. 39). Essa viabilidade
pode ser confirmada pelos movimentos emancipatórios e os movimentos que
compõem o Fórum Social Mundial (FSM).

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O estatuto epistemológico da agroecologia

Nesse âmbito, Lacey traz a luz os três fatores que sustentam ou podem
sustentar a agroecologia e o conhecimento obtido por meio da pluralidade de
estratégias na pesquisa científica. Segundo ele, os três fatores se sustentam e por
esse motivo, se algum deles “falha” “não se desenvolve” adequadamente, os outros
dois fatores são afetados diretamente, ocasionando obstáculos até mesmo
insuperáveis. Esses fatores podem ser assim enunciados:
O êxito da condução da pesquisa segundo as estratégias
agroecológicas, a expansão e o aperfeiçoamento da agricultura
agroecológica e as atividades e o crescimento dos movimentos que
incorporam os valores da participação popular estão
inseparavelmente interligados (LACEY, 2006, p. 181).

A análise destes fatores demonstra que a combinação de ambos garante uma


força tal a agroecologia, que essa forma alternativa passa a caminhar lado a lado
com às inovações dos transgênicos, sendo possível comparar ou até mesmo
competir com elas. Ademais, é possível considerar que os movimentos sociais são de
grande importância para o êxito da condução de pesquisas agroecológicas. Dado que
a agroecologia inclui valores como os da participação popular e da localização
sociocultural, na medida em que ocorre a expansão dos movimentos sociais, há
também um desenvolvimento significativo de teorias, hipóteses, testes, troca de
saberes entre cientistas e agricultores, concentração de pesquisas locais, garantia de
direitos sociais, etc; logo, tem-se a incorporação de valores que não remetem 142
meramente a termos mercadológicos e/ou lucrativos, mas se pretendem ser (e são) o
oposto à isso.
Ademais, segundo Lacey, os transgênicos são conduzidos segundo estratégias
materialistas, mas não se pode negar que a eficácia da tecnologia transgênica tem
sido confirmada (LACEY, 2006, p. 181). No entanto, mesmo que sua eficácia venha se
confirmando, ainda não se tem garantias dos riscos a curto e longo prazo dos
mesmos e o interesse maior sempre seria baseado na lucratividade, tal como
pressupõe a variação P4a. O grande problema em abandonar a investigação de C4,
por exemplo, estaria em endossar um argumento (o P4a) que admitiria que a
legitimidade do uso dos transgênicos em larga escala dependeria somente de um
fator mercadológico, e não mais de pesquisa científica. Caso isso fosse considerado
um fato consumado e indiscutível, o lado P poderia, de fato, reivindicar a autoridade
da ciência, passando esta a ser conduzida em termos de capital e mercado (LACEY,
2006, p. 182). Mas, e o conhecimento científico reivindicado pelos proponentes
como requisito mínimo para o lado-C? Se os proponentes acusam os críticos de
serem “anticientíficos” por não se restringirem a estratégias materialistas e darem
ênfase a um tipo de pesquisa que engloba vários tipos de conhecimentos (local,
social, cultural, etc.), o que dizer dessa posição dogmática adotada pelos defensores
dos transgênicos? Há perspectivas que não contenham valores de capital e de

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SANTOS, P.

mercado e que carreguem um conjunto de conhecimentos e investigações empíricas


suficientes para confirmar sua legitimidade ou viabilidade?
No que se refere a esta última questão, pode-se encontrar movimentos que
contenham valores da participação popular, e que são contrários a valores como os
mercadológicos. Um dos principais movimentos que merece uma atenção especial é
o chamado Fórum Social Mundial (FSM), o qual tem por lema “outro mundo é
possível” e que busca demonstrar que há outra alternativa à trajetória do capital e do
mercado. No que diz respeito ao FSM, este movimento iniciou-se em Porto Alegre
em Janeiro de 2001 com intuito de contrapor-se ao Fórum Econômico Mundial de
Davos, mais tarde com a Carta de Princípios, o movimento acabou sendo garantido
como um espaço e processo permanente de busca de construção de alternativas em
âmbito mundial (FSM, 2001). Conforme Boaventura de Sousa Santos (2004, p. 9):

O FSM é o conjunto de iniciativas de intercâmbio transnacional


entre movimentos sociais, organizações não-governamentais
(ONGs), e os seus conhecimentos e práticas das lutas sociais locais,
nacionais e globais, levadas a cabo em conformidade com a Carta de
Princípios de Porto Alegre contra as formas de exclusão e de
inclusão, de discriminação e igualdade, de universalismo e
particularismo, de imposição cultural e relativismo, produzidas ou
permitidas pela fase actual do capitalismo conhecida como
globalização neoliberal. 143
Nesse sentido, o FSM ao ter como lema “Outro mundo é possível” não quer
apenas demonstrar que há uma alternativa, mas, a rigor, que há uma alternativa
científica que se opõe fortemente ao neoliberalismo. Segundo seus integrantes, o
neoliberalismo é um tipo de opressão e é preciso se libertar desta opressão, pois em
suas estruturas e sob o manto da “globalização”, estão cada vez mais absorvendo
mais e mais espaço econômico, social e cultural (LACEY, 2006, p. 193). Com isso, o
FSM surge como um movimento que busca a emancipação. Também objetiva fazer
uma crítica ética do atual mundo social, ou seja, para seus defensores, só se pensa
no capital e no mercado (visando exclusivamente o lucro) e se esquece do ser
humano, de seus valores éticos, morais e das riquezas culturais. Dessa forma, os
integrantes do FSM trazem consigo um imperativo para que esse mundo que
almejam ou desejam, se torne realidade.
Por conseguinte, para compreender o que significa esse imperativo é preciso
antes compreender a importância dos movimentos emancipatórios. Isso porque os
movimentos que incorporam o FSM se caracterizam como emancipatórios. Esses
movimentos são, por sua vez, a chave para o desenvolvimento de mais e mais
movimentos parecidos ou semelhantes com o FSM. Com base nisso, a primeira coisa
a ser considerada é a capacidade de ação do indivíduo. Segundo Lacey (2006, p. 186),
“a dimensão fundamental do bem-estar humano é o exercício da capacidade de ação
cultivada e eficaz que é exercida quando as pessoas agem em aspectos importantes

Diaphonía, e-ISSN 2446-7413, v. 5, n. 1, 2019


O estatuto epistemológico da agroecologia

de suas vidas informadas por suas crenças”. Nesse sentido, quando uma pessoa
possui uma crença tal como um valor ético que considera como uma característica
fundamental para considerar sua vida “bem vivida”, esse valor (e outros) é
incorporado e passa a ser condição necessária para uma vida digna. A grande
questão é que a capacidade de ação contém uma variedade de condições, tais como,
que crenças derivadas da ação de um indivíduo são verdadeiras e que um indivíduo
tenha acesso e controle sobre objetos tecnológicos, etc. Entretanto, o próprio Lacey
afirma que “quando essas condições para a capacidade de ação não são satisfeitas,
ela é enfraquecida” (Ibidem). Com isso, a capacidade de ação acaba se tornando um
fenômeno social relevante pelo fato de que ela gera “sofrimentos”.
Esses sofrimentos por sua vez, são a frustação, a depressão, entre outros
problemas que podem gerar um mal-estar. Essa combinação da capacidade de ação
enfraquecida e os sofrimentos decorrentes dela, geram a opressão. Sendo que,
aqueles indivíduos que se encontram nessa opressão desejam ser livres e desamarrar
as cordas da opressão, ou seja, desejam chegar a uma emancipação. Contudo, para
que a emancipação ocorra é necessário a transformação estrutural, que serve
somente se ela produz estruturas que envolvem valores que sejam livremente
sustentados por aqueles que a querem. Sendo assim, a opressão enquanto fenômeno
social relevante, é derivada de estruturas sociais que não fornecem condições para a
capacidade de ação efetiva para todos os seus participantes; em outros termos, a 144
estrutura social favorece somente alguns de seus participantes, e não todos. Dessa
forma, o problema é: como a emancipação é possível onde a estrutura social é o
maior causador da opressão? (LACEY, 2006, p. 188). A resposta para esta questão
pode ser encontrada nela mesma pois, emancipação e opressão são coisas distintas,
mas só há desejo de emancipação quanto há opressão. Mesmo assim, ainda é preciso
compreender o que significa uma estrutura social.
Segundo Lacey, uma estrutura social é um conjunto de relações mais ou menos
duradouras entre seus participantes que definem os papeis ou lugares para a
atividade de seus participantes (Ibidem). A estrutura social reflete as ações dos
chamados agentes, que são os participantes dessa estrutura sendo que, os papeis dos
agentes são o resultado da ação intencional dos mesmos, que podem ou não estar
conscientes. Além disso, a estrutura social manifesta valores populares ou sociais
que têm profunda relação com à distribuição da riqueza, do conhecimento
científico, etc. Dado que há uma mútua relação entre esse tipo de estrutura e os
participantes, é preciso um respeito mútuo entre os próprios participantes, assim
como valores sociais, pessoais e éticos mais ou menos parecidos. Porém, isso não
significa que não pode haver manifestação de valores concorrentes em uma
estrutura social. Aqui, é possível perceber uma certa relação com Thomas Kuhn e
suas noções de comunidade científica e paradigma. Tal fato parece se assemelhar
com essas noções, por haver uma mudança na própria estrutura e haver a abertura

Diaphonía, e-ISSN 2446-7413, v. 5, n. 1, 2019


SANTOS, P.

para que as crenças que um indivíduo possui para sustentar certos valores sejam
alimentadas; logo, há uma abertura para se convencer os demais participantes a
compartilharem dos mesmos valores e, quanto a essa colaboração dos que se
solidarizam, é justamente nesse momento que emerge ou ressurge a capacidade de
ação efetiva como uma grande força. Diante disso, será necessária uma nova
estrutura social, baseada em novos valores que consideram necessários, tais como a
participação democrática.
Contudo, ainda permanece a questão de como investigar empiricamente
“outro mundo é possível”. Primeiramente, o FSM como forte contraposição ao
neoliberalismo, mantém todos os anos seus encontros internacionais. Nesse evento,
há a troca de conhecimento entre seus participantes, novas estratégias são
apresentadas, novos estudos relacionados, novas teorias fundamentadas enfim, há
uma espécie de entendimento científico (sistemático, empírico, prático) que
procura, por exemplo, fortalecer cada vez mais os movimentos, incentivar mais
pesquisas voltadas as práticas sustentáveis, favorecer a participação democrática e,
principalmente, sustenta-se como alternativa. Em 2018, a Carta das Convergências
Agroecológicas do Fórum Social Mundial relatou sobre sua evolução:

O Movimento Agroecológico evoluiu das iniciativas da agricultura


alternativa e desde o início, as organizações sociais e instituições de
pesquisa, ensino e extensão envolvidas com sua construção, 145
primaram por reconhecer, resgatar, sistematizar e disseminar suas
propostas sempre cooperativamente com as famílias, organizações e
movimentos da agricultura familiar camponesa, dos povos
indígenas e das comunidades tradicionais e agroextrativistas,
baseando-se nos conhecimentos e práticas centenárias e milenares
em extrativismo, cultivos, criatórios, beneficiamentos e consumos
saudáveis e solidários, de alimentos e para usos medicinais,
artesanais, ornamentais e ritualísticos (FSM, 2018, p. 3).

Nessa perspectiva, o FSM enquanto um exemplo de movimento da


agroecologia e enquanto prática científica, está disseminada em alguns tipos de
contexto, tais como o ensino, a inovação, a avaliação e a aplicabilidade. No que
tange ao ensino, é possível compreender que a formação do indivíduo perpassa por
uma espécie de resgate da própria história da ciência, dos métodos empregados na
agricultura, por exemplo, pelos antepassados, pela tradição. Com relação a inovação,
há a produção do conhecimento teórico, empírico e técnico, no qual a valorização se
dá por critérios como a generalidade, a coerência, a consistência e a validez
(CAPORAL; AZEVEDO, 2011, p. 26). Já a avalição, diz respeito aos testes e aplicações
dos métodos científicos, bem como a participação democrática dos membros. Por
fim, com relação ao contexto da aplicabilidade, o que se tem é o resultado da
relevância social e econômica da própria agroecologia.

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O estatuto epistemológico da agroecologia

Não obstante, os movimentos que incorporam o FSM questionam o “senso


comum” do neoliberalismo justamente porque esse “senso comum” limita a
compreensão da diversidade ou da pluralidade, limitando não só o fenômeno social
como também o próprio conhecimento científico, que não ocorre sem a aceitação
dialógica e dialética do outro e da diferença (CAPORAL; AZEVEDO, 2011, p. 27).
Nesse sentido, o “senso comum” do neoliberalismo revela uma espécie de “certeza
ideológica” pautada pelas pressuposições da valorização moderna do controle,
visões individualistas, contínua expansão das produções em larga escala, etc. O
resultado disso é, pois, um sistema “incapaz de responder à função primária da
economia: prover a base da vida física e cultural de todos os humanos do planeta”
(FSM, 2002 apud LACEY, 2006, p.196). Por isso, em conformidade com a visão de
Boaventura de Sousa Santos (1995, p. 33-49), o conhecimento natural é também o
conhecimento social o que implica em incorporar estratégias contextualizadas em
pesquisa científica, levar em consideração o conhecimento local, compreender o
conhecimento como “autoconhecimento” e promover o diálogo entre os vários tipos
ou formas de saber (teórico e prático).
Nesse âmbito, segundo Caporal, Norgaard (1989) conseguiu resumir as bases
epistemológicas da agroecologia da seguinte forma:

a) os sistemas biológicos e sociais têm potencial agrícola; b) este


potencial foi captado pelos agricultores tradicionais através de um 146
processo de tentativa, erro, aprendizado seletivo e cultural; c) os
sistemas sociais e biológicos coevoluíram de tal maneira que a
sustentação de cada um depende estruturalmente do outro; d) a
natureza do potencial dos sistemas social e biológico pode ser
melhor compreendida dado o nosso presente estado do
conhecimento formal, social e biológico, estudando-se como as
culturas tradicionais captaram este potencial; e) o conhecimento
formal, social e biológico, o conhecimento obtido do estudo dos
sistemas agrários convencionais, o conhecimento de alguns insumos
desenvolvidos pelas ciências agrárias convencionais e a experiência
com instituições e tecnologias agrícolas ocidentais podem se unir
para melhorar tanto os agroecossistemas tradicionais como os
modernos; f) o desenvolvimento agrícola, através da Agroecologia,
manterá mais opções culturais e biológicas para o futuro e
produzirá menor deterioração cultural, biológica e ambiental que os
enfoques das ciências convencionais por si sós (CAPORAL;
COSTABEBER.; PAULUS, 2009, p. 21-22).

Com isso, embora haja uma diferença entre o conhecimento considerado


“convencional” ou “científico” e o conhecimento “prático” ou “cotidiano”, para a
agroecologia, esses tipos de conhecimento deverem interagir entre si. Não há como
negar a importância do conhecimento “científico”, embora ignorar conhecimentos
“cotidianos” implique uma limitação e um “senso comum” prejudiciais a própria
ciência. Evidentemente, a tendência é considerar, nesse caso, a ciência como algo

Diaphonía, e-ISSN 2446-7413, v. 5, n. 1, 2019


SANTOS, P.

fechado, sistemático e dotado de uma autoridade capaz de dizer “verdades”, embora


por detrás contendo “certezas ideológicas”. Num sentido complexo, a agroecologia
vê a ciência como sistemática, fundamentada por evidências empíricas, dotada de
teorias bem fundamentadas, mas reconhece o valor do conhecimento popular, local,
“cotidiano”, o conhecimento adquirido quando as práticas agroecológicas evoluam
ou se aprimorem e o conhecimento participativo ou democrático, obtido através da
articulação do conhecimento prático com o teórico, da troca de estratégias entre os
participantes dos movimentos, culminando assim em uma interdisciplinaridade.
Portanto, afim de provar “outro mundo é possível”, é preciso encontrar
estratégias para investigar estruturas sociais, o que motiva a origem dessas
estruturas, a capacidade que elas possuem de se manter como oposição as estruturas
neoliberais, bem como o potencial de provocar modificações nas estruturas
vigentes. Todos esses fatores devem ser relatados ou informados pelos próprios
movimentos, que baseados em recursos conceituais conseguem analisar o
desenvolvimento ou retrocesso dos movimentos sociais. Tudo isso deve ser levado
em conta pelo fato de que a única evidência empírica forte para provar que “outro
mundo é possível”, é a própria expansão e desenvolvimentos dos movimentos
emancipatórios. Dessa forma, fica claro que essas estratégias a serem adotadas
encontram um mútuo reforço com a manifestação dos valores da participação
popular presentes nos movimentos emancipatórios. Com isso, ressalta-se a 147
importância dos movimentos que constituem o FSM uma vez que estes são
exemplos de formas alternativas capazes de questionar o “senso comum” do
neoliberalismo e ainda defender a sustentabilidade, a biodiversidade, valores éticos,
sociais e socioculturais; logo, demonstrar um conjunto de conhecimentos bem
fundamentados e a promover a defesa de uma pluralidade epistemológica na própria
agroecologia.

Referências

ALTIERI, M. Agroecologia: a dinâmica produtiva da agricultura sustentável. 4.ed. Porto


Alegre: Editora da UFRGS, 2004.
BARROS, E. P.; ARAÚJO, A. “Agroecologia e transdisciplinaridade: considerações acerca da
crítica ao enfoque técnico-científico da Revolução Verde”, in: Ciências Sociais em
Perspectiva, v.15 – nº. 28: p. 83 – 95; 1º sem. 2016.
CAPORAL, F.R; AZEVEDO, E. O. Princípios e perspectivas da Agroecologia. Instituto Federal
de Educação, Ciência e Tecnologia do Paraná, 2011.
CAPORAL, F. R.; COSTABEBER, J. A.; PAULUS, G. Agroecologia: uma ciência do campo da
complexidade. Brasília: MDS/Embrapa, 2009.
FSM – Fórum Social Mundial. Carta de Princípios do Fórum Social Mundial, 2001. Disponível
em:<http://www.universidadepopular.org/site/media/documentos/Carta_de_Principios_do
_FSM.pdf> Último acesso: 29 de Outubro de 2018.

Diaphonía, e-ISSN 2446-7413, v. 5, n. 1, 2019


O estatuto epistemológico da agroecologia

_____. Carta das Convergências Agroecológicas no Fórum Social Mundial, 2018. Disponível
em: <http://www.moc.org.br/publicacao/geral/2743/carta-das-convergencias-
agroecologicas-no-forum-social-mundial> Último acesso em: 29 de Outubro de 2018.
LACEY, H. A controvérsia sobre os transgênicos: questões científicas e éticas. Aparecida, SP:
Ideias & Letras, 2006.
_____. “Há alternativas ao uso dos transgênicos?” In: Novos Estudos CEBRAP, São Paulo, n.
78, jul 2007, p. 31-39.
SANTOS, B. S. O Fórum Social Mundial: manual de uso. Madison, Dezembro 2004.
_____. Ciência e senso comum. In: Introdução a uma ciência pós-moderna. Porto,
Afrontamento, 1995.
WOLFE, M. S. “Crop strength through diversity”, in: Nature, vol. 406, 2000, p. 681-682.

Submissão: 30.10.2018 / Aceite: 15.12.2018.

148

Diaphonía, e-ISSN 2446-7413, v. 5, n. 1, 2019


O desentendimento como característica inerente à democracia
Disagreement as an inherent characteristic of democracy

VALMIR GONÇALEZ DOS SANTOS1

Resumo: O artigo busca propiciar reflexões sobre a jovem democracia brasileira, pensada
aqui sob à luz da excêntrica filosofia de Rancière. Se considerarmos os tempos da República
brasileira, constatamos que os períodos democráticos são breves e sempre sofreram
ameaças. Há três décadas vivemos em um regime democrático que, no entanto, ainda é
frágil. Do ponto de vista histórico, a democracia brasileira é jovem e continua sendo
construída sob ameaças, sua vigência carece de vigilância constante, pois, de vários lados,
há forças que a fragilizam, especialmente aquelas que proclamam a ordem e o consenso. O
que tais forças querem, ainda que digam falar em nome da democracia, é a organização da
vida e do poder de um modo hierárquico e o esvaziamento dos espaços públicos que,
necessariamente, são conflituosos e orientados por uma racionalidade dissensual. Para essa
comunicação, perguntamo-nos se, no entanto, essa fragilidade da jovem democracia
brasileira não é, justamente, característica da própria democracia, desde a sua invenção na
Grécia. Trata-se, pois, de pensar, outra vez, quais são os sentidos disso que chamamos de
democracia, regime político no qual o povo detém o poder. Jacques Rancière desenvolve
uma perspectiva excêntrica acerca da democracia e nos mostra que desde o seu surgimento
ela foi alvo de ódio e sempre está em risco, daí ele escrever um livro intitulado Ódio à
democracia (2014). Esta perspectiva nos interessa, na medida em que se situa a contrapelo
do que se consensuou entender por democracia e por política como a mera organização da
vida coletiva. A partir da filosofia de Rancière, procura-se, então, resgatar o que é próprio de
uma investigação filosófica acerca da política, abordando em que âmbito e quando esta
existe e mostrando que, inúmeras vezes, ela se confunde com polícia; o que implicará trazer
à tona o que Rancière diz ser fundamental para a existência da política e da democracia, a
saber, a lógica do desentendimento.
Palavras-chave: Democracia. Política. Desentendimento. Polícia.

Abstract: The article seeks to provide reflections on the young Brazilian democracy,
thought here in the light of the eccentric philosophy of Rancière. If we consider the times of
the Brazilian Republic, we find that democratic periods are brief and have always been
threatened. For three decades we have lived in a democratic regime which, however, is still
fragile. From a historical point of view, Brazilian democracy is young and continues to be
built under threat, its validity is not constantly monitored, because there are forces that
weaken it, especially those that proclaim order and consensus. What these forces want,
even if they speak in the name of democracy, is the organization of life and power in a
hierarchical way and the emptying of public spaces that are necessarily conflictive and
oriented by a dissensual rationality. For this communication, we wonder if, however, this
fragility of the young Brazilian democracy is not exactly characteristic of democracy itself,
since its invention in Greece. It is therefore a matter of thinking, again, what are the
meanings of what we call democracy, a political regime in which the people hold power.
Jacques Rancière develops an eccentric perspective on democracy and shows us that since
his emergence he has been a target of hatred and is always at risk, hence he wrote a book
entitled Hating Democracy (2014). This perspective interests us, as it is situated against the
grain of what has been agreed to be understood by democracy and politics as the mere
organization of collective life. From the philosophy of Rancière, it is sought, then, to rescue
what is proper to a philosophical investigation about politics, addressing in what scope and
1
Graduado e Mestre em Filosofia pela UNIOESTE. E-mail: valmir_10santos@hotmail.com.

Diaphonía, e-ISSN 2446-7413, v. 5, n. 1, 2019


O desentendimento como característica inerente à democracia

when it exists and showing that, on many occasions, it confuses itself with police; which
implies bringing up what Rancière says is fundamental to the existence of politics and
democracy, namely, the logic of misunderstanding.
Keywords: Democracy. Politics. Disagreement. Police.Resumo em língua estrangeira.

Introdução

Trata-se, nesse texto, de analisar o que comumente chamamos de democracia,


o tal governo do povo, sob a luz da excêntrica filosofia de Jacques Rancière. Se
considerarmos os tempos da República brasileira, por exemplo, constatamos que os
períodos democráticos são breves e sempre sofreram ameaças. Há três décadas
vivemos em um regime democrático que, no entanto, ainda é frágil. Do ponto de
vista histórico, a democracia brasileira é jovem e continua sendo construída sob
ameaças, sua vigência carece de vigilância constante, pois, de vários lados, há forças
que a fragilizam, especialmente aquelas que proclamam a ordem e o consenso. O
que tais forças querem, ainda que digam falar em nome da democracia, é a
organização da vida e do poder de um modo hierárquico e o esvaziamento dos
espaços públicos que, necessariamente, são conflituosos e orientados por uma
racionalidade dissensual.
Para esse texto, perguntamo-nos se, no entanto, essa fragilidade da jovem
150
democracia brasileira não é, justamente, característica da própria democracia, desde
a sua invenção na Grécia. Trata-se, pois, de pensar, outra vez, quais são os sentidos
disso que chamamos de democracia, regime político no qual o povo detém o poder.
Rancière desenvolve uma perspectiva excêntrica acerca da democracia e nos mostra
que desde o seu surgimento ela foi alvo de ódio e sempre está em risco. Esta
perspectiva nos interessa, na medida em que se situa a contrapelo do que se
consensuou entender por democracia e por política como a mera organização da
vida coletiva. A partir da filosofia de Rancière, procura-se, então, resgatar o que é
próprio de uma investigação filosófica acerca da política, abordando em que âmbito
e quando esta existe e mostrando que, inúmeras vezes, ela se confunde com polícia;
o que implicará trazer à tona o que Rancière diz ser fundamental para a existência
da política e da democracia, a saber, a lógica do desentendimento.
Começamos, então, pelo início disso que denominou-se democracia.
Etimologicamente o conceito de democracia (Demokratía), criado a partir dos
prefixos demos, “povo”, e kratos, “poder”, significa “governo do povo”. Desde sua
origem, a democracia na Grécia não estava orientada por uma completa igualdade
entre todos os indivíduos. Outra questão que vale lembrar também, é que
“demokratia era utilizada por seus críticos aristocratas como uma espécie de epiteto,
para mostrar seu despreza pelas pessoas comuns que haviam usurpado o controle
que os aristocratas tinham sobre o governo”. (DAHL, 2001, p. 20).

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SANTOS, V.

De início, na democracia ateniense faziam parte apenas àqueles que eram


considerados cidadãos, indivíduos livres e iguais. Ficavam fora dessa conta os
escravos, os estrangeiros, as mulheres e as crianças. Ou seja, participavam apenas da
democracia, uma parte minoritária que deveria ser nascida na polis, ser homem e
maior de 18 anos, isso sem contar que deveria ser filho de quem participava da
política (Cf. CHAUÍ, 2000). A justificativa para ter pessoas aptas a participarem ou
não da democracia se dava pelo fato de que os gregos defendiam que aqueles que
não compartilhavam dos mesmos costumes da polis não poderiam ter a
compreensão necessária para escolher o que era melhor para a mesma.
Imediatamente se percebe que a ideia de igualdade que orientava a democracia era
bastante restritiva e excludente.
O preparo intelectual que faltava aos escravos era o logos, a fala. Os escravos,
eram tidos como seres que não o possuíam, eram dotados apenas de voz, o que
todos os outros animais também possuem, na medida em que são capazes de
mostrar contentamento e desgosto. Essa era, então, uma das justificativas para
manter uma relação desigual entre homens livres e escravos, os primeiros tinham ou
possuíam logos, a capacidade de falar, e outros não. Segundo os gregos, aqueles que
possuíam o logos eram capazes de julgar, muito mais do que apenas mostrar
contentamento ou desgosto. Essa diferença entre possuidores de logos e não
possuidores é tremenda. É por meio da palavra que o homem consegue e pode viver 151
em comunidade. Segundo Aristóteles, a palavra possui significações, e com ela o
homem pode decidir sobre o justo e o injusto, algo impossível para os incapazes de
falar. Assim, a exclusão da maior parte dos habitantes da cidade estava justificada
por uma incapacidade2.
É apenas pelo uso do logos, manifestado pela fala, que o homem consegue
viver em conjunto, mostrar suas inquietações e resolver problemas. Com respeito à
fala, Aristóteles argumenta:

2
Walter Kohan, em Infância e educação em Platão, ao tratar da etimologia de “infantil”, mostra a
importância da fala dada pelos gregos e justifica, etimologicamente, o uso abrangente da
denominação de infantil para os incapazes: “Infans está formado por um prefixo privativo in e fari,
‘falar’, dali seu sentido de “que não fala”, “incapaz de falar”. Tão forte é seu sentido originário que
Lucrécio emprega ainda o substantivo derivado infantia com o sentido de “incapacidade de falar”.
Mas logo infans — substantivado — e infantia são empregados no sentido de “infante”, “criança” e
“infância”, respectivamente. Desse sentido surgem vários derivados e compostos, na época imperial,
como infantilis, “infantil” e infanticidium, “infanticídio”. Quintiliano (I, 1, 18) fixa a idade em que a
criança é considerada como incapaz de falar até por volta dos sete anos e, por isso, infans pode
designar a criança no sentido ordinariamente reservado a puer. Na verdade, há usos de infans
referindo-se a pessoas de até, pelo menos, quinze anos, com o qual devemos entender que infans não
remete especificamente à criança pequena que não adquiriu ainda a capacidade de falar, mas que,
antes, refere-se aos que, por sua minoridade, não estão ainda habilitados para testemunhar nos
tribunais: infans seria assim “o que não pode valer-se de sua palavra para dar testemunho”. A palavra
infantes também passa a designar a muitas outras classes de marginais que não participam da
atividade pública, como os doentes mentais. (disponível em:
http://www.scielo.br/pdf/ep/v29n1/a02v29n1.pdf). (os destaques finais, em itálico, são nossos).

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O desentendimento como característica inerente à democracia

Assim, o homem é um animal cívico, mais social do que as abelhas e


os outros animais que vivem juntos. A natureza, que nada faz em
vão, concedeu apenas a ele o dom da palavra, que não devemos
confundir com os sons da voz. Estes são apenas a expressão de
sensações agradáveis ou desagradáveis, de que os outros animais
são, assim como nós, capazes. A natureza deu-lhes um órgão
limitado a este único efeito; nós, porém, temos a mais, senão o
conhecimento desenvolvido, pelo menos o sentimento obscuro do
bem e do mal, do útil e do nocivo, do justo e do injusto, objetos para
a manifestação dos quais nos foi principalmente dado o órgão da
fala. Este comércio da palavra é o laço de toda sociedade doméstica
e civil (ARISTÓTELES, 1988, Livro I, cap. 2, p. 1253).

É por meio da fala que os homens se diferem dos outros animais e escravos. É
apenas com o uso da fala que é possível a existência de uma comunidade de iguais.
Um ser dotado de logos é capaz de compreender o que outro ser fala. Esse é o
princípio de uma comunicação entre iguais. Somente os homens dotados de fala
conseguem se comunicar.
Rancière nunca deixará de nos lembrar que no seio da filosofia política e,
especificamente da democracia, habita a aporia, uma dificuldade própria e insolúvel
do próprio pensamento. Refere-se ainda a Aristóteles, como sendo o primeiro a
tratar da união entre filosofia e política e também evidenciar a aporia própria desses
casos. Escreve: “Aristóteles nos indica isso numa frase que é um dos primeiros 152
encontros entre o substantivo ‘filosofia’ e o adjetivo ‘política’ [a saber]: ‘Do que há
igualdade e do que há desigualdade, a coisa leva à aporia e à filosofia política’”
(RANCIÈRE, 1996a, p. 11), porque segundo o filósofo, “a filosofia torna-se ‘política’
quando escolhe a aporia ou o embaraço próprio da política” (RANCIÈRE, 1996a, p.
11).
A aporia citada aqui, surge quando problematizamos os ditos possuintes de
logos e os apenas possuintes de voz, com isso, a aporia que surge daí, Rancière diz
que é em função da distribuição de partes de uma comunidade: “aqueles
supostamente apenas dotados de voz, os escravos, são capazes de compreender o
comando daqueles possuintes da fala”. Rancière interroga: “como pode alguém
compreender o que desconhece?” (RANCIÈRE, 1996a). O fato de o escravo, carente
de palavra, unicamente possuidor de voz, compreender o que um ser dotado de fala,
possuinte de logos ordena, já faz com que exista algo em comum, inimaginável até
então. Há algo que iguala escravos e homens livres. É desse tipo de aporia, segundo
Rancière, da qual trata a filosofia política.
Vale ainda lembrar que Rancière não concebe a filosofia política com um ramo
natural da árvore filosofia3. Para ele, a filosofia torna-se política justamente por essa
aporia presente na política. A política passa a ser então, um objeto da filosofia. Mas

3
Referente aos ramos da árvore filosofia atribuída por Descartes.

Diaphonía, e-ISSN 2446-7413, v. 5, n. 1, 2019


SANTOS, V.

o que o filósofo entende por filosofia política? Para nosso filósofo, ela é “a atividade
que tem por princípio a igualdade, e o principio da igualdade transforma-se em
repartição das parcelas de comunidade ao modo do embaraço: de quais coisas há e
não há igualdade entre quais e quais? (RANCIÈRE, 1996a, p. 11), e ainda, “O que são
esses “quais”, quem são esses “quais”“? De que modo a igualdade consiste em
igualdade e desigualdade? ”(RANCIÈRE, 1996a, p. 11)”. É dessa aporia que trata a
filosofia política, e para que tal encontro seja produtivo, [o da filosofia com a
política], é preciso achar seu ponto de desentendimento. Mas o que é tal
desentendimento?
Por desentendimento, Rancière se refere a um tipo determinado de situação de
palavra, “aquela em que um dos interlocutores ao mesmo tempo entende e não
entende o que diz o outro” (RANCIÈRE, 1996a, p. 12). Não é o desentendimento
entre duas pessoas que dizem coisas diferentes, ao contrário, é o conflito entre
aqueles que dizem a mesma coisa, mas não dão a mesma significação para essas
coisas. Para melhor entender, Rancière vai afirmar que “é o conflito entre aquele que
diz branco e aquele que diz branco, mas não entende a mesma coisa, ou não
entende de modo algum que o outro diz a mesma coisa com o nome de brancura”
(RANCIÈRE, 1996a, p. 12). Não pode de maneira alguma sem entendido como
sinônimo de desconhecimento. Por desconhecimento, uma das partes, ou ambas,
por ignorância não sabe o que o outro diz. Também não é tampouco um simples 153
“mal-entendido produzido pela imprecisão das palavras” (RANCIÈRE, 1996a, p. 12).
Os casos de desentendimento são aqueles no qual “a disputa sobre o que quer
dizer falar constitui a própria racionalidade de situação de palavra (RANCIÈRE,
1996a, p. 12)”. Não é um caso da filosofia da linguagem, onde a imprecisão das
palavras causa um mal-entendido. No caso do desentendimento, os interlocutores
entendem e não entendem aí a mesma coisa nas mesmas palavras. Há uma série de
fatores para que isso ocorra, pois, embora alguém entenda o que o outro diz, esse
não vê o objeto do qual o outro lhe fala, ou então “porque ele entende e deve
entender, vê e quer fazer ver um objeto diferente sob a mesma palavra, uma razão
diferente no mesmo argumento” (RANCIÈRE, 1996a, p. 12).
Um caso que pode ser ilustrado aqui é a famosa máxima que diz respeito à
justiça; ela [a justiça] consiste em dar a cada um o que lhe é devido. Evidentemente,
o conceito de justiça não é interpretado da mesma forma, e não só por conta da
significação da palavra, as ações daqueles que a entendem também difere. “As
estruturas de desentendimento são aquelas em que a discussão de um argumento
remete ao litígio acerca do objeto da discussão e sobre a condição daqueles que o
constituem como objeto”. Logo é perceptível que o desentendimento não diz
respeito apenas as palavras, mas também a própria situação daqueles que falam.
Em busca de esclarecer a composição de tal conceito, Rancière põe luz sobre
algo que para nós, que estamos habituados com a definição de democracia como

Diaphonía, e-ISSN 2446-7413, v. 5, n. 1, 2019


O desentendimento como característica inerente à democracia

“poder do povo”, passa despercebido. Ele nos mostra quem era o “povo” na Grécia,
quem é o demos que está na base da democracia:

A democracia é o poder do povo, do demos. Mas o que se


entende exatamente sob esse nome? O demos, em Atenas, é
constituído primeiramente pelos pobres. Mas os pobres não é
simplesmente uma categoria econômica, relacionada a um
nível de recursos; é bem mais uma categoria simbólica, uma
posição no mundo daquilo que se vê e se considera: pobres são
as pessoas reles, as que não possuem nada, nenhum título
para governar, nenhum título de valor a não ser o fato de
terem nascido ali e não alhures [...]. Significa que governam
especificamente os que não têm nenhum título para governar
(RANCIÈRE, 1996b, p. 370).

Isso porque faz parte da democracia qualquer um (com exceção, é claro,


daqueles já nominados) que seja livre: pelo simples fato de ter nascido em tal polis, e
especialmente na polis ateniense, depois que a escravidão por dívidas foi abolida.
Qualquer um desses corpos falantes fadados ao anonimato do trabalho e da
reprodução, desses corpos falantes que não têm mais valor do que os escravos – e
menos até, já que diz Aristóteles, o escravo recebe sua virtude da virtude de seu
senhor –, qualquer artesão ou comerciante é contado nessa parte da polis que se
chama “povo” como participante dos negócios comuns enquanto tais (Cf.
154
RANCIÈRE, 1996a).
Ao trazer à tona que o povo, inicialmente, era composto de uma parcela das
pessoas “reles” que habitavam um lugar, justamente aquelas que não tinham parte
alguma nem títulos para governar, Rancière evidencia que em sua base, a
democracia é um escândalo: um ato escandaloso para o pensamento. O escândalo
está no fato de a democracia ser uma ruptura, inaugurar uma cisão na ordem das
coisas, do ponto de vista da legitimidade e da dominação.
Desse modo, o povo nada mais é que a massa indiferenciada daqueles que não
têm nenhum título positivo – nem riqueza, nem virtude – mas que, no entanto, têm
reconhecida a mesma liberdade que aqueles que os possuem. O demos é condição
de efetividade para a política, Rancière (1996b) vai afirmar que “a política existe
quando a ordem natural da dominação é interrompida pela instituição de uma
parcela dos sem-parcela”. Para o filósofo:

[A] democracia não é um regime político, no sentido de uma forma


constitucional, nem mesmo um modo de vida ou a cultura do
pluralismo e da tolerância. A democracia é, propriamente dizendo, a
instituição simbólica do político na forma do poder daqueles que
não são designados a exercer o poder – uma ruptura na ordem da
legitimidade e da dominação. A democracia é o poder paradoxal

Diaphonía, e-ISSN 2446-7413, v. 5, n. 1, 2019


SANTOS, V.

daqueles que não contam: a contagem daqueles que não são


contados (RANCIÈRE, 2000, p. 124).

A democracia em Rancière pode ser entendida por meio da ação política e da


verificação da igualdade4 pretensamente existente entre os indivíduos,
configurando-se como outra forma de montar a cena política, “ao produzir
diferentes relações entre palavras, os tipos de coisas que elas designam e os tipos de
práticas que desenvolvem” (RANCIÈRE, 2010a, p. 54). É na democracia que se efetua,
de fato, a igualdade que é fundamental para entender a política de Rancière. Trata-
se, pois, de nos aproximarmos da concepção de igualdade produzida por Rancière,
talvez, uma das noções mais intrigantes, tanto do ponto de vista pedagógico quanto
político, como mostraremos. Daí podermos afirmar que Rancière amplia o
escândalo da democracia com suas afirmações sobre a igualdade. Segundo o filósofo:

A política, em última instância, repousa sobre um único princípio, a


igualdade. Só que esse princípio só tem efeito por um desvio ou uma
torção específica: o dissenso, ou seja, a ruptura nas formas sensíveis
da comunidade. Ele tem efeito ao interromper uma lógica da
dominação suposta natural, vivida como natural. Esse efeito é a
instituição de uma divisão ou de uma distorção inicial. Essa
distorção é que é testemunhada pelas palavras aparentemente
muito simples: demos e democracia (RANCIÈRE, 1996b, p. 370).

Na visão de Rancière, a essência da democracia é a pressuposição da igualdade


155
das inteligências, atributo a partir do qual se desdobram as mais ferrenhas reações
de seus adversários. Como visto anteriormente, a ideia de uma democracia nunca foi
tratada com a melhor forma de governo possível, pois nem todos estariam aptos a
governar. As reações adversas à democracia surgem pelo motivo de que os
detentores de títulos não aceitam ser considerados como seres iguais aos que não
possuem títulos. Assim, parece que se torna possível afirmar que se a igualdade é
um a priori da democracia, o ódio a ela é um dos seus a posteriores.
A fim de elaborar a resposta para a questão acerca da especificidade da
política, Rancière faz a distinção de dois conceitos, o de política e o de polícia.
Mostra que o que se entende na maioria das vezes pelo conceito de política é o
consentimento das coletividades, algo para manter a ordem, para entrar em um
determinado acordo. Rancière propõe chamar essas práticas pelo conceito de
polícia. Com isso, aquilo que era entendido como política, o modo de tentar colocar
uma determinada ordem, um determinado consenso entre as pessoas, os modos de
ser, ver e fazer numa comunidade é próprio dessa polícia.

4
O conceito de igualdade é bastante caro para Rancière. Ele trata disso com maior ênfase em seu
livro O mestre Ignorante, todavia tal conceito se faz presente em todo seu pensamento político. A
afirmação e verificação deste principio de igualdade é o que faz ser possível a existência de da própria
política e por conseguinte, da democracia. É a partir da afirmação dessa igualdade que é primeira que
se reivindica reconhecimento, que gera o dissenso, ou seja o desentendimento.

Diaphonía, e-ISSN 2446-7413, v. 5, n. 1, 2019


O desentendimento como característica inerente à democracia

Nessas práticas não há política, portanto, nem democracia. Para o filósofo a


democracia se traduz pela ação política que confronta e perturba a ordem
consensual de funcionamento do Estado, que é a ordem policial que não faz nada
mais do que dividir, organizar e ordenar. Somente quando as divisões da ordem
policial são desfeitas é que a atividade política é instaurada. Para Rancière (2010, p.
45),

[...] a atividade política é sempre um modo de manifestação que


desfaz as divisões sensíveis da ordem policial mediante colocação
em ato de um suposto que por princípio lhe é heterogêneo, o de
uma parte dos que não tem parte, a que, em última instância,
manifesta em si mesma a pura contingência da ordem, a igualdade
de qualquer ser falante com qualquer outro ser falante.

Algo próprio dessa polícia é então a distribuição sensível dos corpos em


comunidade. Mas o que sobra para a política? A ela cabe justamente criar desordem,
perturbar a ordem da polícia por meio de um conjunto de atividades no qual está
pressuposto algo inteiramente heterogêneo a polícia, mas que é inerente a cada ser
humano, ainda que não esteja inscrito diretamente na ordem social. Tal
pressuposição é “a igualdade de qualquer ser falante com qualquer outro ser
falante”, a qual só pode ser manifestada pelo “dissenso, no sentido mais originário
do termo: uma perturbação no sensível, uma modificação singular do que é visível,
dizível e contável” (RANCIÈRE, 1996b, p. 372).
156
Assim, o princípio da igualdade que está na base da política só pode ser
verificado por meio da lógica do desentendimento. Ela é a instauradora da política, é
essa lógica que efetua o princípio de igualdade. Mas, para que essa igualdade tenha
qualquer tipo de eficácia, ela deve ser continuamente argumentada e encenada
contra a pressuposição policial da desigualdade. De acordo com Rancière, existe
política quando a lógica promovida pelas divisões desiguais ou a ordem da
dominação, tida como natural, são derrubadas por lutas e conflitos empenhados na
atualização do princípio de igualdade.
O desentendimento político se dá quando surge uma parte que antes não era
considerada como aceita, reivindicando algo que lhe é próprio, a igualdade.
Podemos afirmar que política para Rancière não é uma relação de poder, mas sim
uma relação de mundos. A partir de dois mundos diferentes, dos que tem parcela
para com os “sem-parcela”, é que de fato ocorre o dissenso e, por fim, a política. É
através da existência desta parte dos sem parte, desse nada que é tudo, que a
comunidade existe como comunidade política, quer dizer, dividida por um litígio
fundamental, por um litígio que se refere à conta de suas partes, antes inclusive de
referir-se aos seus 'direitos'.
A política é o momento de questionamento sobre a ordem estabelecida,
quando aqueles que não são contados, reconhecidos e sem direito de fala, declaram-

Diaphonía, e-ISSN 2446-7413, v. 5, n. 1, 2019


SANTOS, V.

se iguais perante os padrões de dominação. Rosa Parks5 ao se recusar, em 1955, dar


seu lugar no ônibus, por causa da segregação racial, estava impondo-se
politicamente contra uma ordem que separava negros e brancos de forma desigual.
Enfim, o que Rancière define como democracia é a ideia de um demos tomando as
ruas e reivindicando aquilo que ainda não tem, questionando a forma como os
corpos são postos, como estão estabelecidos. Para ele:

[...] democracia é o nome de uma interrupção singular dessa ordem


dos corpos em comunidade que nos propusemos conceituar sob o
conceito ampliado de polícia. É o nome daquilo que vem
interromper o bom funcionamento dessa ordem por um dispositivo
singular de subjetivação (RANCIÈRE 1996a, p. 102).

O que se percebe na democracia atual Rancière entende como um Estado


modesto. Na definição do filósofo, “o Estado modesto é um Estado que torna a
política ausente, que renuncia em suma àquilo que não lhe cabe – o litígio do povo –
para aumentar a sua propriedade, para desenvolver os processos de sua própria
legitimação” (RANCIÈRE, 1996a, p. 112-114). Isso causa então, o dano democrático. O
dano democrático busca conduzir o litígio à forma de um consenso social, a partir
daí começariam as “parcerias” entre os patrões e os empregados.
O desentendimento é então a única forma de existir política e de fato a
efetivação da democracia. A negação desse desentendimento, que é o consenso, faz 157
com que não exista uma política e sim uma polícia encarregada apenas de manter a
ordem. De acordo com Rancière, dificilmente haverá um governo que possa ser
concebido como de fato democrático, porque a democracia é sempre o que está
aquém e além do governo: aquém, porque somente a partir da percepção de que
todas as pessoas são efetivamente iguais e que todos os títulos e hierarquias se
fundam nessa igualdade; além, porque a democracia é o constante questionamento
desses títulos, o elemento desestabilizador e perturbador da ordem posta.

5
Em Montgomery, capital do Alabama, as primeiras filas dos ônibus eram, por lei, reservadas para
passageiros brancos. Atrás vinham os assentos nos quais os negros podiam sentar-se. No dia 1° de
dezembro de 1955, Rosa Parks tomou um desses ônibus a caminho do trabalho para casa e sentou-se
num dos lugares situados ao meio do ônibus. Quando o motorista – branco – exigiu que ela e outros
três negros se levantassem para dar lugar a brancos que haviam entrado no ônibus, Parks se negou a
cumprir a ordem. Ela continuou sentada e, por isso, foi detida e levada para a prisão. O protesto
silencioso de Rosa Parks propagou-se rapidamente. O Conselho Político Feminino organizou, a partir
daí, um boicote de ônibus urbanos, como medida de protesto contra a discriminação racial no país.
Martin Luther King Jr. foi um dos que apoiou a ação. O ativista e músico Harry Belafonte lembra-se
como sua vida mudou, após o dia em que King o chamou por telefone para pedir apoio à ação da
mulher que ficou conhecida como a "mãe dos movimentos pelos direitos civis" nos EUA. "A atitude
de Rosa Parks nos permitiu reagir contra as pressões política e social que caracterizavam nossa
sociedade. Quando King me telefonou, me chamando para um encontro, comecei, pela primeira vez,
a lutar oficialmente por essa causa. Quando nós nos vimos e falamos sobre seus planos, percebi que a
partir dali eu me engajaria no movimento liderado por ele e Rosa Parks. Foi um momento muito
importante", lembrou Belafonte. Disponível em http://www.dw.com/pt/1955-rosa-parks-se-recusa-a-
ceder-lugar-a-um-branco-nos-eua/a-340929. Acesso em 08. out. 2018.

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O desentendimento como característica inerente à democracia

Apenas através do desentendimento se pode exercer a política, e de fato levar a


cabo a democracia. Porque é por meio do dissenso que se efetua a política; é por
conta de perceber a divisão do mundo em parcelas, e lutar para que se efetue o
princípio de igualdade, é que se funda a política. O desentendimento faz com que se
efetue o princípio de igualdade.
Em seu livro intitulado Ódio à democracia (2014), Rancière afirma que vivemos
uma ilusão de democracia. Este é um fenômeno que se inscreve na longa duração
histórica, uma vez que os setores privilegiados da sociedade nunca foram de total
acordo, ou concordaram com a principal implicação prática do regime democrático
na esfera da política: a ausência de títulos para ingressar nas classes dirigentes.
A ideia da democracia grega não foi bem acolhida pelos impérios que os
rodeavam, pensavam eles, que tal ideia era inadmissível. Pode-se perceber esse ódio
ao pensar que as formas de governo antes da democracia eram pautadas na
legitimidade de dois títulos: a filiação humana ou divina – associadas à
superioridade de nascença – e a riqueza. A democracia iniciada na Grécia empregava
o princípio do sorteio, alterando a lógica vigente ao mudar para o âmbito da
aleatoriedade a responsabilidade de legislar e de governar, agora ao alcance de
qualquer cidadão da polis, independente de suas posses ou do nome de sua família.
Para quem viveu sempre a governar, isso era inconcebível. Pode-se problematizar, a
partir disso, os motivos para o ódio. 158
Ainda sobre a democracia, Rancière questiona os princípios do modelo
democrático representativo, invenção moderna que se vale de uma nomenclatura
considerada paradoxal pelo autor, haja vista seu distanciamento em relação à
democracia dos antigos. Para o filósofo,

A representação nunca foi um sistema inventado para amenizar o


impacto do crescimento das populações. Não é uma forma de
adaptação da democracia aos tempos modernos e aos vastos
espaços. É, de pleno direito, uma forma oligárquica, uma
representação das minorias que têm título para se ocupar dos
negócios comuns (RANCIÈRE, 2014, p. 69).

Considerações finais

Por fim, é possível pensar com Rancière que a democracia representativa na


qual estamos inseridos quem acaba governando não é o povo. O fato é que o povo
que ousa fazer valer sua soberania sempre foi um dos maiores medos dos governos
ditos democráticos. Essa é, aliás, a razão principal do ódio. O ódio à democracia
advém de sua própria natureza, uma vez que o “governo de qualquer um” está
permanentemente sob a mira rancorosa daqueles munidos de títulos, seja o
nascimento, a riqueza ou o conhecimento. Esses rancorosos utilizam-se de uma
ordem policial, e fazem valer o que é decidido por meio de um consenso. Os

Diaphonía, e-ISSN 2446-7413, v. 5, n. 1, 2019


SANTOS, V.

representantes autorizados utilizam-se do recurso policial para que não se efetue a


partilha do sensível, para que os sem-parte não atuem politicamente e não se realize
a política.
A partir dos escritos que seguiram, tenta-se mostrar que o ódio à democracia
não é um mal contemporâneo, mas sim algo que persegue a democracia desde o seu
surgimento. Os motivos para tal, como foi apresentado é a não aceitação do demos
enquanto participante ativo das decisões (mesmo ainda que seja de forma limitada).
O ódio a democracia é entendido então, como um não reconhecimento e não
aceitação do principio de igualdade. A democracia é o próprio ato de afirmação de
tal princípio, daí as razões do ódio por parte dos que se julgam detentores de títulos.
Referências

ARISTÓTELES. Política. Trad. Mário da Gama Kury. 2. ed. Brasília: Universidade de


Brasília, 1988.
CHAUÍ, M. Convite à filosofia. São Paulo: Ática, 2000.
DAHL, R. A. Sobre a democracia. Tradução de Beatriz Sidou. Brasília: Editora Universidade
de Brasília. 2001.
RANCIÈRE, J. O desentendimento. Trad. Ângela Leite Lopes. São Paulo, Editora 34, 1996a.
_____. “O desentendimento”, in: NOVAES, A. (Org.). A crise da razão. São Paulo:
Companhia das Letras, 1996b.
159
_____. Jacques: o mestre ignorante. 2. ed. Belo Horizonte: Autêntica, 2005.
_____. Política, policía, democracia. Santiago: LOM Ediciones, 2006.
_____. A partilha do sensível: estética e política. São Paulo: EXO Experimental, 2009a.
_____. O inconsciente estético. Trad. Mônica Costa Netto. São Paulo: Ed. 34, 2009b.
_____. El desacuerdo: política y filosofía. Buenos Aires: Nueva Visión, 2010.
_____. O espectador emancipado. Trad. Ivone C. Benedetti. São Paulo: Martins Fontes, 2012.
_____. O ódio à democracia. Trad. Mariana Echalar. São Paulo: Boitempo, 2014.

Submissão: 30.10.2018 / Aceite: 30.11.2018.

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I-moral ou (ir) racional: uma visão da ciência do normal ou patológico
I-moral or (ir) rational: a view of science of normal or pathological

BEATRIZ CRISTINA BENKE1


EMERSON SOUZA DOS SANTOS2
VILMAR MALACARNE3

Resumo: O presente artigo tem como finalidade discutir como os portadores de doenças
mentais eram tratados na Grécia e Roma Antiga, na Idade Média e Renascentismo e a
chegada do século XX. Trata-se de uma pesquisa sobre a história dos transtornos mentais,
com abordagem sobre saúde e doença e as definições entre o que era normal e o patológico
das pessoas com problemas de saúde mental. Para isso, discutiremos as definições da
anormalidade entre os séculos IV a.C e II d.C, III e XII d.C, Renascentismo do Século XVIII e
século XX. A pesquisa é de caráter bibliográfico e incluiu artigos, livros e dissertações e teses
para fundamentar o assunto e o conteúdo sobre historicidade dos transtornos mentais e
suas repercussões no decorrer dos séculos citados. A saúde e a doença não são fenômenos
isolados que possam ser definidos em si mesmos, mas, sim profundamente vinculados ao
contexto socioeconômico-cultural, tanto em suas produções como na percepção do saber
que investiga e propõe soluções para o adoecimento.
Palavras-chave: Historicidade. Transtorno Mentais. Epidemiologia. Pressão Social.

Abstract: The purpose of this article is to discuss how the mentally ill were treated in
Greece and Ancient Rome in the Middle Ages and Renaissance and the arrival of the
twentieth century. It is a research on the history of mental disorders, with an approach to
health and illness, and the definitions between what was normal and the pathological of
people with mental health problems. For this, we will discuss the definitions of the
abnormality between the fourth and fourth centuries BC, III and XII AD, Renaissance XVIII
and XX century. The research is bibliographical and included articles, books and
dissertations and theses to substantiate the subject and the content on the historicity of
mental disorders and their repercussions over the centuries cited. Health and disease are
not isolated phenomena that can be defined in themselves, but are deeply linked to the
socioeconomic and cultural context, both in their production and in the perception of the
knowledge that investigates and proposes solutions for illness.
Keywords: Historicity. Mental Disorder. Epidemiology. Social Pressure.

Introdução

Em se tratando de transtornos mentais, a psiquiatria é a área que entende o


fenômeno de doença mental como um fator biológico individual e sua relação com a
saúde. Por outro lado, a historicidade compreende esse fenômeno como cornucópia

1
Mestranda do PPGECEM – UNIOESTE. E-mail: beatrizbencke@hotmail.com.
2
Mestrando do PPGE.E – UNIOESTE. E-mail: arquitetoess@hotmail.com.
3
Possui graduação em Filosofia Licenciatura Plena pela Universidade Federal de Santa Maria (1994),
mestrado em Educação pela Universidade Federal de Santa Maria (1997) e doutorado em Educação
pela Universidade de São Paulo (2007). Professor doutor na UNIOESTE. E-mail:
vilmar.malacarne@unioeste.br.

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BENKE, B / SANTOS, E. / MALACARNE, V.

dos males. Quando nos deparamos com a permanência de uma doença em um


determinado corpo ela provoca a imanência, o silêncio do sujeito, assim transforma
o corpo em problema que determina a exigência de saber e necessita da
configuração de cuidados e intervenção médica.
Sobre isso, Canguilhem (2009), descreve casos de alienação em que os doentes
se apresentavam ao mesmo tempo como incompreensíveis para os outros e
incompreensíveis para si próprios, casos em que o médico tem realmente a
impressão de lidar com uma estrutura de mentalidade diferente. O autor buscou a
compreensão desses casos no fato de que esses doentes têm dificuldades para
transpor os dados de sua cenestesia na linguagem usual.
Assim, torna-se difícil para o médico compreender a experiência vivida pelos
doentes a partir dos relatos deles, porque aquilo que eles exprimem como conceitos
usuais não provém apenas de sua experiência direta, mas também de sua
interpretação de uma experiência diante da qual não dispõem de conceitos
adequados (Canguilhem, 2009).
Semelhantemente Sampaio (1998), descreve não saber o que fazer com a
compreensão da doença mental ou como traçar proporções e frequências, valendo-
se do que é denunciado socialmente e acatado pelos serviços de atendimento à
saúde mental, numa perversa dialética entre denúncias rotuladas e diagnosticadas.
No entanto, o pensamento dogmático está presente em todos os fenômenos de
161
sofrimento psíquicos como base na compreensão psiquiátrica da psicose e o aceite
da população como categoria natural.
Canguilhem (2002), ressaltou que “o espanto verdadeiramente vital da
angústia suscitada pela doença” é o modo pelo qual se transforma a doença em um
discurso pronto para ser lido e interpretado. Assim, a angústia é o discurso que se
expressa em sintomas, nosógrafas, distúrbios, transtornos e síndromes.
Por sua vez, Minayo (1990) argumenta que, para os problemas da saúde
pública, a questão da determinação e distribuição dos transtornos mentais também
coloca uma questão epistemológica, e que nenhuma disciplina por si só pode dar
conta deste objeto.
Entre as ideias da epistemologia do século XX, que exaltam nomes como
Foucault e Canguilhem, algumas consistem em lembrar que a doença, o fator
patológico, não tem gramática própria. A maneira como ela se apresenta depende
do modo como organizamos o que há para ser visto e ouvido.
A concepção de teoria de sofrimento psíquico vem de um processo de ensino
de erro formalizado pela tradição, que codificou questões da subjetividade em
mudanças das características de pessoas, espaços e tempo. Nos últimos trinta anos,
psiquiatria, psicologia e epistemologia vêm fazendo um ajuste de contas com suas
concepções e objetivos.

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I-moral ou (ir) racional: uma visão da ciência do normal ou patológico

Historicidade da psiquiatria

Em seus primórdios, as pessoas portadoras de doenças mentais eram


consideradas loucos, doidos, mentecaptos, insanos, sandeus, desassisados, dementes
ou alienados mentais, e eles não possuíam o direito de exercer sua cidadania. A
história mostra que as atitudes em relação aos portadores de transtornos mentais
nem sempre foram as mais empáticas.
As maiores pressões sociais exigindo restrições à livre circulação dos chamados
alienados parecem ter surgido como decorrência do processo de urbanização e da
consequente necessidade de manutenção da ordem das cidades em crescimento,
pois o espaço urbano determinaria o estabelecimento de novos padrões de controle
social, diferentes daqueles próprios à vida rural, supostamente mais complacentes
com tal circulação (ODA, 2004).
No decorrer do século XIX, a população urbana continuava menor que a da
zona rural e a economia era majoritariamente agrícola, baseada nos latifundiários.
Assim, nessa época, era comum destinar à prisão os criminosos, arruaceiros, vadios
e loucos; e, nos casos mais evidentes de desarranjo mental, estes eram levados às
enfermarias dos hospitais da Irmandade de Misericórdia, conhecida associação
filantrópica, o que não significava que os indivíduos tivessem algum tratamento
médico. O primeiro hospício de ato filantrópico no Brasil foi inaugurado em 1852, 162
pelo Imperador Pedro II, onde se iniciavam os tratamentos para os doentes mentais.
Segundo Canguilhem (2009), a alienação mental é uma categoria mais
imediatamente vital do que a doença. A doença somática é suscetível a uma precisão
empírica superior, a uma padronização mais precisa, assim, a doença somática não
rompe o acordo entre semelhantes; o doente é, para sociedade, o que ele é para si
próprio, ao passo que o anormal psíquico não tem consciência de seu estado. Essa
ideia é confirmada por Canguilhem, 2009, ao afirmar que: "O individual domina a
esfera dos desvios mentais muito mais do que domina a esfera somática."

Grécia e Roma

Entre os séculos IV a.C. e II d.C, algumas concepções sobre saúde, doença,


corpo e mente se desenvolveram, deixando fortes marcas na História. O
desenvolvimento foi holístico, porém contraditório, não contínuo, e vem servindo
de tempo-base para os retornos em busca das ideias ocidentais. Hipócrates
considerado o Pai da Medicina, constrói a ideia de que a dinâmica das doenças passa
pela dinâmica das populações e que a intervenção no doente pode aliviá-lo, pode até
salvá-lo da morte, mas não afeta as possibilidades do adoecer, logo, acreditava que
os loucos possuíam poderes divinos.
De acordo com Sampaio (1998, p. 24),

Diaphonía, e-ISSN 2446-7413, v. 5, n.1, 2019


BENKE, B / SANTOS, E. / MALACARNE, V.

Toda epidemia era 'peste', toda insanidade era 'paranoia', e esta


última resultava de dois tipos de possessão: pelas Deusas Mania ou
Lissa. O sujeito não era sujeito do que ocorria, era um lugar para a
expressão de forças cósmicas. Ε o sagrado combatia o sagrado:
homens especiais punham entre parênteses o doente e
interrogavam o cosmo através do vôo dos pássaros, da disposição de
pedras sobre o solo, das vísceras de animais. As disposições eram
interpretadas e daí emergiam causas, possibilidades de intervenção
e predições sobre a saúde das pessoas e dos povos.

Segundo a historiografia, os médicos lógicos ou dogmáticos buscavam uma


explicação lógica e racional para as causas da saúde e das doenças. Procurar pelas
causas ou razões dos estados de saúde e doença extrapolava a mera observação e
constatação dos processos mórbidos, pois implicava o estabelecimento de um
sistema médico amplo e coerente que pudesse dar conta de todos os fenômenos
vitais observados, e não apenas aplicar uma ação terapêutica. Nesse sentido, o
médico lógico ou dogmático privilegiava a explicação em detrimento da observação
empírica (Rebollo, 2006).

Idade Média

Na Idade Média, as pessoas acometidas de loucura eram associadas ao


demônio e vistas como entes possuídos e, por isso, muitas delas passavam seus dias
acorrentadas e expostas ao frio e à fome ou, em casos extremos, eram submetidas às
163
sessões de torturas ou queimados em fogueiras como hereges. Entre os séculos III e
XIII d.C., a possessão serviu de porta-voz a Deus ou ao Diabo, e tudo era feito para
identificar aquele que falava por meio do possesso. O corpo era apenas um substrato
desprezível e a mente era médium. Assim, havia a crença de que os demônios
masculinos e femininos espreitavam o sono dos humanos.
No decorrer da Idade Média, os loucos erram classificados como licantrópicos
e afeminados, além de se afirmar a existência de duas naturezas da alma: a imortal e
a vital, esta última podendo ser motora ou sensitiva, capaz de desenvolver poderes
localizados em áreas cerebrais específicas.
Sobre esse período, Foucault (2006), afirma que a psicologia agiu como um
intermediário entre o indivíduo e a loucura, como algo exterior à exclusão e ao
castigo, e pela dimensão interior da moral e da culpa. Percebe-se, assim, que a
psicologia pode se posicionar diante do fenômeno da loucura com uma prática e um
saber marcados mais pelo criticismo do que pela crueldade, pelo fato da aceitação
do fenômeno loucura como uma pratica sem avanços na razão de teoria.

Renascentismo do século XVIII

Nesse período, ainda não se falava em doença mental, e o descaso com os seres
com transtornos mentais persistia. As pessoas que manifestavam condutas

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I-moral ou (ir) racional: uma visão da ciência do normal ou patológico

diferentes como agressividade e gritos eram consideradas loucas, pela sociedade,


nesse momento a preocupação era somente com sua segurança.
A doença mental tornou-se um fato humano e objeto de interesse científico
apenas como objeto de estudo clínico e de exclusão hospitalar. O olhar sobre a
doença mental é sobre o doente que é condenado como: um 'des-graçado', um 'des-
avergonhado', um 'i-rracional', e nesse período os “hospícios” serviam somente para
a proteção das cidades (Sampaio, 1998).
Os seres que eram acometidos de loucura eram jogados em prisões e lá
permaneciam à espera da morte. Nesse momento, relata-se a disseminação de
doenças como tifo exantemático, sífilis e tuberculose pulmonar, assim sendo, uma
posição pragmática porque resolvia o problema imediato, mas gerou vários outros.
A partir dessas epidemias desordenadas, iniciam-se as prevenções.
Na transição do século XVIII para o século XIX, ocorreu a reforma política e
social, assim, o francês Philippe Pinel de o primeiro passo para mudar a vida dessas
pessoas. A loucura tornou-se uma questão médica e passou a ser vista como uma
doença que poderia e deveria ser tratada.
Segundo Saúde (2003, p.9)

A partir dessas mudanças, o médico que se especializava no


tratamento dos alienados era chamado de alienista e, após essas 164
transformações, grandes nomes se destacaram na medicina por suas
pesquisas e inovações nessa área. Nesse período, pode-se destacar o
trabalho de Esquirol, aluno e seguidor de Pinel, precursor da
psiquiatria, e integrou juntamente com Morel (1809-1873) e Edouard
Séguin (1812-1880) a escola francesa iniciada por Pinel. No século
XIX, Emil Kraepelin, integrante da corrente organicista alemã, que
após cuidadosa descrição de sintomas clínicos, a evolução e a
análise anatomopatológica, formula uma nova doutrina que serve
de referência às próximas gerações de especialistas. No século XX,
Freud cria a psicanálise que se populariza em todo o mundo e se
impõe como marco no campo da Saúde Mental.

Para Canguilhem (2009), até o século XVIII, a competição entre saúde/bem e


doença/mal constituiu o apanágio do maniqueísmo médico. No século XIX, o mal é
desfeito e afirma-se que a ação do homem sobre o meio e sobre si mesmo deve
tornar-se inteiramente transparente à compreensão do homem e do meio. A doença
física deixa de ser um problema moral.
Esse século, embora considerado o ‘século das luzes’, por se referir à razão
sendo uma luz que serve para alcançar o conhecimento e compreender o mundo por
meio de um olhar marcado pelo desejo de superação, iluminado pela razão, a ciência
e o respeito à humanidade. Do ponto de vista político, o Século das Luzes também
lutou contra qualquer forma de absolutismo para defender a importância de um
sistema de governo que busca o bem comum da sociedade.

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BENKE, B / SANTOS, E. / MALACARNE, V.

No entanto, esse período foi sombrio no que diz respeito às possibilidades de


constituição de uma epidemiologia psiquiátrica. Entre o neurônio, o hospício e o
sermão contra as paixões deletérias, as perspectivas do renascimento se perderam.

Século XX

Juntamente com o século XX, vieram as tecnologias, especializações de altos


custos e as privatizações das assistências, assim, as competições monopolistas das
indústrias farmacêuticas e dos equipamentos, juntamente com a contração do
alcance social e aumento da pressão política de novas populações que atingiram o
estatuto de cidadania, a eclosão de uma crise grave na medicina científica tornou-se
iminente (SAMPAIO, 1998).
Com a chegada do século XX, o estudo da produção e da distribuição dos
fenômenos ligados ao processo saúde e doença mental tornou-se exemplar para a
aplicação de uma epidemiologia baseada na dialética e para os desafios dos novos
perfis sanitários. Sampaio (1998), descreve que Kurt Schneider (1887-1967), era um
discípulo da fenomenologia, que classificou a psicopatologia clínica das doenças
mentais em uma proposta que se dividia em dois eixos: por base etiológica,
somática, assim suposta por quadro de sintomas e no outro polo destas
preocupações estavam em afirmar a autonomia do psíquico e suas dinâmicas
próprias, mas permanecendo no atendimento clínico e na percepção do indivíduo. A 165
partir de 1962, inicia-se as implicações de fatores biossociais e socioculturais nos
portadores de doença mental.
Canguilhem (2009) descreve modos diferentes de compreender a relação
saúde e doença. Sobre isso a pontos extremos de uma escala mensurável
quantitativamente (muito, de um atributo de saúde, o faria atributo de doença); ou
qualidades diferentes de uma mesma realidade, são formas diferente de expressão
do dinamismo vital (o que não faz doença ser saúde, mas, ao defini-las, apresentam-
se valores: estatuto social do corpo, da doença, do doente, do tratador). A saúde e
doença não são fenômenos isolados que possam ser definidos em si mesmos, mas,
sim, profundamente vinculados ao contexto socioeconômico-cultural, tanto em suas
produções como na percepção do saber que investiga e propõe para as soluções do
adoecimento.
No decorrer do Século XX, as doenças psicológicas foram tratadas como
epidemiologia na área da saúde pública com diferentes definições e abordagens. Por
sua vez, a epidemiologia se compreende como o estudo da distribuição e dos
determinantes de doenças e agravos à saúde em populações humanas; como a
distribuição das doenças e agravos é irregular, precisa-se ordenar cadeias de
inferências que ultrapassem os limites da observação direta (MAUSNER & BAHN,
1977).

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I-moral ou (ir) racional: uma visão da ciência do normal ou patológico

A Epidemiologia é o estudo dos padrões de ocorrência de doenças na


população humana e dos fatores que determinam estes padrões (ANTUNES, 1984).
Miettinen (1985), especifica que epidemiologia é a disciplina que estuda a ocorrência
de fenômenos de interesse ao campo da saúde.

Conclusão

Nesse trabalho foram feitos aportes epistemológicos e históricos sobre o que


era considerado normal ou patológico no decorrer de cada século citado, assim
enfatizando os transtornos mentais e apresentando as concepções da doença mental
e como os seres acometidos destes transtornos eram tratados pela sociedade em
função de cada circunstância histórica, geográfica e social. É possível observar ao
longo do texto que o processo saúde e doença mental não foi sempre abordado da
mesma forma, por sua vez, passou por várias transformações e interpretações em
diferentes momentos históricos. Sendo, em determinados momentos, vistos como
porta-vozes de Deus e em outros eram deixados acorrentados à espera da morte.
Semelhantemente, para a epistemologia e a historicidade dos transtornos
mentais, ambos passaram a ter desafios de contribuições efetivas no campo dos
transtornos mentais, possuindo o papel de promover a articulações entre saberes
subjetivos, empíricos e reflexão com os fatores biológicos, sociais e psicológicos.
Essa abordagem multidisciplinar, que integra o conhecimento científico da doença 166
mental em seus diversos segmentos da historicidade, é importante para se ter uma
compreensão da doença e dos pacientes e para a instauração de medidas efetivas
que gerem mudanças no processo de desenvolvimento da saúde e doença, medidas
essas que estão além daquelas prescritas nos manuais clínicos, psicológicos e sociais.

Referências

ANTUNES, C. M. F. Tipos de investigação epidemiológica. In: SOUZA, C. A. M. & TADDEI,


J. A. A. C. (Org.) Textos em Epidemiologia. Brasília: Seplan/CNPq, 1984.
CANGUILHEM, G. O normal e o patológico. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2009.
LAKATOS, E.; MARCONI, M. Fundamentos de metodologia científica. São Paulo: Atlas, 2001.
FOUCAULT, M. Microfísica do poder. 22. ed. São Paulo: Graal, 2006.
MAUSNER, J. S. E.; BAHN, Α. Κ. Epidemiologia. México: Nueva Editorial Interamericana,
1977.
MIETTlNEN, O. S. Theoretical Epidemiology/Principles of Occurrence Research in Medicine.
New York: John Wiley & Sons, 1985.
MINAYO, M. C. S. Interdisciplinaridade: uma questão que atravessa o saber, o poder e o
mundo vivido. In: Palestra no Ia Seminário de Estudos do Programa de Apoio à Reforma
Sanitária. Rio de Janeiro: Ensp/Fiocruz, 1990.
ODA, A. M. G. R. “O início da assistência aos alienados no Brasil ou importância e
necessidade de estudar a história da psiquiatria”, in: Rev. Latinoam, Psicopat. Fund., VII, 1,
128-141, 2004.

Diaphonía, e-ISSN 2446-7413, v. 5, n.1, 2019


BENKE, B / SANTOS, E. / MALACARNE, V.

REBOLLO, C. A. “O legado hipocrático e sua fortuna no período greco-romano: de Cós a


Galeno”, in: Scientiae Studia, São Paulo, v. 4, n. 1, p. 45-82, 2006.
SAMPAIO, J. J. C. Epidemiologia da imprecisão: processo saúde e doença mental com objeto
da epidemiologia. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz, 1998.
SAÚDE, C.C. C. Memória da loucura. Brasília: MS, 2003.

Submissão: 20.10.2018 / Aceite: 27.11.2018.

167

Diaphonía, e-ISSN 2446-7413, v. 5, n.1, 2019


Olhai os delírios do Campus1
Look at the delusions of Campus

LARISA DA VEIGA VIEIRA BANDEIRA2

Este texto inicia em um convite para participar da XXII Semana Acadêmica de


Filosofia - Filosofia e Literatura: pensando esse encontro, o convite disparou a escrita
quando pensei em estar junto, em espaço de compartilhamento, de trocas e de
encontro, onde os estudantes e professores escutam, apresentam, discutem os temas
que são pertinentes a isso que vivemos. Esse texto inicia também com um
agradecimento pela oportunidade de estar na Unioeste em tempo de sombras e
sobras, no qual a possibilidade de estar junto já é prova de que estamos vivos, que
permanecemos fortes e que, seja qual for o nome que queiram dar para o que
fazemos, não aceitaremos nada que não nos reconheça como produtores de
pesquisa, de ensino, de extensão, de afetos, de encontros e de vida. É de fato uma
alegria estar aqui, lugar no qual vivenciei um dos encontros mais significativos do
Projeto Escrileituras3 em um campus habitado pela vontade de experimentar.
Quando fui convidada para o encerramento do evento, pensei nas muitas
horas de trabalho de todos que estiveram envolvidos na organização e na sua
realização. No cansaço daqueles que apresentaram suas comunicações e passaram
por momentos de ansiedade e alívio e também naqueles que precisam vir de cidades
vizinhas. E na responsabilidade que é encerrar um evento organizado por um curso
de Filosofia no dia de hoje, no dia 17 de maio de um ano como este que está sendo
2019. Quando foi solicitado o título da conferência demorei alguns dias para enviar,
a escolha do título derivou de uma conversa com o Professor André Luiz Marenco dos

1
Texto da palestra proferida no encerramento da XXII Semana Acadêmica de Filosofia – Filosofia e
Literatura: pensando esse encontro, realizada no dia 17 de maio de 2019.
2
Licenciada em Pedagogia pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (2008-2012). Mestrado em
Educação pelo PPGEDu/UFRGS (2012-2014). Doutorado em Educação pelo PPGEDu/UFRGS (2015-
2018). Experiência em formação continuada com professores da Educação Infantil, Anos Iniciais e
Finais da Educação Básica, Ensino Médio e Educação de Jovens e Adultos na modalidade presencial e
EAD. Coordenadora pedagógica no Colégio Marista Maria Imaculada Canela/RS. E-mail:
lvvbandeira@gmail.com.
3
Projeto Escrileituras: um modo de ler-escrever em meio à vida, do Observatório da Educação
(OBEDUC- Edital 038 – 2010 – Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior
(CAPES), Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (INEP) sob a
orientação da Professora Dra. Sandra Mara Corazza (PPGEDU/UFRGS). O projeto foi desenvolvido
em regime de colaboração entre quatro núcleos situados em Instituições de Ensino Superior: UFRGS
- coordenado pela Profa. Dra. Sandra Mara Corazza; UFEPel - coordenado pela Profª Drª Carla
Gonçalves Rodrigues; UFMT – coordenado pelo Prof. Dr. Silas Borges Monteiro e UNIOESTE Campus
Toledo PR – coordenado pela Profa. Dra. Ester Maria Dreher Heuser e teve a execução das oficinas
propostas, de forma sistemática, em escolas de educação básica. As ações desenvolvidas durante a
vigência do Projeto resultaram em qualificada produção educacional, didático-pedagógicas,
produções bibliográficas, teses e dissertações, cujo impactos das ações/atividades do projeto na:
formação de professores; licenciaturas envolvidas; educação básica; pós-graduação e escolas
participantes produziram desdobramentos institucionais.

Diaphonía, e-ISSN 2446-7413, v. 5, n. 1, 2019


BANDEIRA, L.

Santos, Professor Titular do Departamento de Ciência Política e do Programa de Pós-


Graduação em Políticas Públicas da Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Na ocasião
o professor contou que participou do movimento estudantil em uma entidade de base
fundada no início da década de 80. Quando da implementação do Campus do Vale
da UFRGS no final da década de 70, o então Instituto de Filosofia, Ciências
Humanas e Letras foi instalado nos primeiros prédios construídos no local, no
entorno da cidade, pretendia-se que tais cursos, ao saírem do Campus do centro,
ficassem confinados e distantes e se tornassem inofensivos. Naquele momento, o
espaço destinado à organização dos estudantes passou a abrigar um diretório uno,
reunindo os alunos de todos os cursos da unidade, o DAIU (Diretório Acadêmico
dos Institutos Unificado). Já nos idos de 1979, teve início uma discussão acerca da
organização de centros acadêmicos por cursos. Porém, foi da articulação política
desses jovens no DAIU que surgiu a ideia de um jornal, feito no mimeógrafo, de
tiragem pequena, mas que desse conta do sonho coletivo que se instaurava ali. Que
contasse um pouco da respiração própria e das dinâmicas desses estudantes de
Filosofia, Ciências Humanas e Letras. O nome desse jornal era: Olhai os Delírios do
Campus. Nele estavam os contos, as tirinhas, as notícias, as datas importantes, um
pouco do tanto das vozes que pretendiam calar quando isolaram tais cursos no
Campus do Vale.
Pensei ao dar o nome do jornal para a minha fala desta noite, em trazer um
pouco dos estudantes de outros tempos, de tempos que eram chamados de “anos de
169
chumbo”. Parece que cada tempo tem um tom, uma cor, alguns tempos são
monocromáticos, e é dada aos jovens e principalmente aos estudantes a
responsabilidade de trazer outras cores a estes tempos.
O coletivo de autores do jornal: Olhai os Delírios do Campus queria mostrar
que aquilo que deveria estar escondido, calado e invisível no Campus do Vale se
mantinha operante e convicto, era real e queria ser visto. Aquele grupo de
estudantes publicava de forma artesanal, em folhas empapadas de álcool que
giravam em um mimeógrafo velho, aquilo que, para quem havia delimitado o espaço
geográfico destes cursos nos confins da cidade, consideravam ser um delírio febril.
A conversa sobre o jornal acabou sem eu saber se o nome havia sido escolhido
fazendo referência ao Romance de Érico Veríssimo: Olhai os Lírios dos Campos,
escrito em 1938. No prefácio de uma das centenas de edições que este livro teve em
1966, Érico escreveu:

Com a publicação de Olhai os Lírios do Campo operou-se uma


mudança considerável em minha vida. O romance obteve tão
grande sucesso de livraria, que se esgotaram dele várias edições em
poucos meses, deixando editores e escritor igualmente satisfeitos e
perplexos. Tamanha foi a influência desse livro no espírito de certos
leitores, que ele teve a força de arrastar consigo os romances que o
autor publicara até então em tiragens modestas que levavam quase
dois anos para se esgotarem. Posso afirmar que só depois do

Diaphonía, e-ISSN 2446-7413, v. 5, n. 1, 2019


Olhai os delírios do Campus

aparecimento de Olhai os Lírios do Campo é que pude fazer


profissão da literatura (VERÍSSIMO, 1966. p. 4).

Ainda me pergunto se os estudantes de Filosofia, Letras e outras “humanas” do


DAIU não se referiam diretamente ao trecho do evangelho de Mateus que, com
certeza, serviu de título para a obra de Veríssimo. Trecho que aqui destaco:

E, quanto ao vestuário, por que andais solícitos? Olhai para os lírios


do campo, como eles crescem; não trabalham nem fiam; E eu vos
digo que nem mesmo Salomão, em toda a sua glória, se vestiu como
qualquer deles. [...] Não vos inquieteis, pois, pelo dia de amanhã,
porque o dia de amanhã cuidará de si mesmo. Basta a cada dia o seu
mal (Mateus, 6:25-34).

Qual o mal de nosso dia? Quanto do mal de nosso dia nos basta?
Dado o título da palestra, ainda no mês de março, iniciei um texto que ficou
sempre em construção, como falar sobre isso que é considerado delírio febril de
jovens inquietos nos campus de hoje?
Como falar do que é delirante, quando não basta apenas construir campus em
espaços mais distantes do centro da cidade, mas é mais fácil e mais rápido silenciar
tais cursos no seu apagamento dos currículos das escolas, na base nacional comum
curricular, ou simplesmente dizer que: “Não é adequado usar dinheiro público em
tais cursos, o ideal é direcionar esses investimentos a cursos mais sérios, por
170
exemplo, medicina ou engenharia.”
Ou o que dizer de um tempo marcado por uma sucessão de fatos arbitrários e
insensatos desprovidos de sentido?
Ainda em março, envolvida com as questões que são comuns ao início do ano
letivo em uma escola com 450 estudantes de anos finais e ensino médio, procurava
com urgência um professor de filosofia, acreditem eles são raros e muito difíceis de
achar, e muitas vezes, ainda hoje, quem ocupa esse lugar é o professor com
licenciatura em geografia ou história. Principalmente em cidades pequenas do
interior. Além de raros, os professores de filosofia têm uma carga horária pequena, e
algumas vezes restrita ao ensino médio. O que torna ainda mais difícil encontra-los
nas cidades pequenas. Já em desespero, na segunda quinzena de março consegui
contratar um professor de filosofia, com mestrado e que percorre 320 quilômetros
por semana para fechar a carga horária de 40 horas lecionando em três cidades
próximas.
O campo curricular é um campo de batalha de forças econômicas, mais do que
políticas, subtrair a Filosofia, assim como a Sociologia e a Arte do currículo é um
risco que corremos todos os dias. Em uma das reuniões pedagógicas que acontecem
na escola todas as semanas solicitei para cada um dos professores de cada uma das
áreas do conhecimento, que fizessem um exercício para tentar convencer os colegas

Diaphonía, e-ISSN 2446-7413, v. 5, n. 1, 2019


BANDEIRA, L.

da importância de seu componente curricular permanecer. No exercício de tentar


convencer os colegas, os professores produziriam os argumentos que consideravam
pertinentes e importantes, apresentariam os argumentos que convenceriam os
colegas a lutar com ele uma luta comum, para garantir o acesso e a permanência do
conhecimento de seu componente curricular.
Tática de guerrilha na reunião pedagógica, usada na tentativa de construir as
condições para a criação conjunta de enfrentamento da imprevisibilidade e a
rapidez das decisões estapafúrdias, tomadas dia após dia por um desgoverno em seu
plano de desmonte e desajustes na educação. Além das tantas outras questões
enfrentadas em sala de aula como a troca do sofrimento pela dor pelos adolescentes,
expressada em mutilações e tentativas de suicídio ou a crescente desmotivação dos
estudantes pelos assuntos acadêmicos, não apenas de desempenho, mas o mais
preocupante: a desmotivação pelo aprender e pelas interações sociais na escola,
substituídas pelas relações virtuais. Em meio a isso e a tantas outras coisas que aqui
escapam, sugeri aos professores que fizessem uma defesa de seus componentes
curriculares, na esperança que eles conseguissem produzir vias conjuntas de defesa.
Trouxe aqui um trecho do argumento utilizado pelo colega de vocês, professor
de filosofia Rafael Alves de Oliveira, viajante dos 320 quilômetros semanais em seu
fusca branco, que tem a carga horária e o sustento equilibrado em três diferentes
municípios: 171
Não se apeguem a definição de filosofia como amor a sabedoria. Isso
é seu nome e filosofia é mais que um nome. Guardem no coração a
definição de filosofia do professor da Universidade Federal
Fluminense, Claudio Ulpiano, já falecido: filosofia é uma máquina
de guerra instalada no campo social, e por isso, filosofia é coisa
séria. Ela mata, protege e salva. Filosofia nos permite criar uma nova
subjetividade, ela dá condições para que se manifeste todo o
potencial revolucionário de novos desejos, de novas vidas.
Aprendam a operar esta máquina com cuidado e façam da tolice
algo vergonhoso. Lutem e lutem porque vivemos tempos duros e
precisamos de filósofos como poucas vezes precisamos em nossa
história (OLIVEIRA, 2019).

Este é um tempo exigente, no qual precisamos inventar outros modos de estar


juntos. De olhar para o outro, cuidando para que não nos tornemos reativos a tudo e
a todos, pois dessa forma eles teriam vencido, enfraquecer-nos é o objetivo desses
tempos, enfraquecer-nos para que não tenhamos mais vontade de estar juntos.
Escutar o outro para que possamos juntos produzir. Coletivamente produzir,
como os estudantes do Campus do Vale nos idos da década de 1980. Escutar, ler e
escrever juntos, talvez um jornalzinho barato e etílico, para contar o que fazemos
nos Campus das universidades públicas brasileiras, delírios inimagináveis para
aqueles que pensam que nossa vida se resume em balbúrdia.

Diaphonía, e-ISSN 2446-7413, v. 5, n. 1, 2019


Olhai os delírios do Campus

Ler, escutar e escrever. Proponho também a vocês no pensar o possível


encontro da Filosofia com a Literatura, exercícios de escritas que seriam
compartilhadas coletivamente, não apenas nas semanas acadêmicas, mas nos
corredores da universidade, no transporte coletivo, na cantina e no bar, a escrita
desmedida, a escrita descolada dos trabalhos acadêmicos. A escrita sem medo da
nota e da correção, mas ocupada na defesa da vida coletiva.
Escrevam de modo laboral, usando o lápis e a caneta, escrevam sem medo, não
digitem, escrevam, não resumam, não abreviem, coloquem as palavras no papel.
Escrever faz arder o corpo, para percebermos que mesmo embebidos e
enfaixados nos líquidos e tecidos da morte, ainda estamos tão mais vivos do que
jamais estivemos. Escrevam em fragmentos, em guardanapos de papel, no espelho
do banheiro embaçado pelo vapor do chuveiro. Será um exercício claudicante.
Para escrever, primeiro a mão deve encontrar uma brecha, no peito. Não se
trata de uma questão de tempo. A escrita encontra seu tempo, tem seu ponto de
ebulição, que pode acontecer no meio da agenda atribulada que inventamos para
não escrever. É aquela lança que tentamos segurar enquanto está em movimento e
que perfura a palma de nossa mão. O sangue é o que deixamos escorrer na página
em branco. Então escrevemos.
Fiz uma pequena proposta de exercícios de escrita, para que possamos fazer 172
aqui, mesmo que rapidamente, para aqueles que estejam dispostos a compartilhar,
um parágrafo, uma frase, se alguém se sentir à vontade, no final, quando
compartilhar, diga apenas a qual exercício seu fragmento corresponde, ou se
inventou outra modalidade de exercício.

Exercício 1

Escrita pedrada: juntamos pequenos seixos, algumas pedras do leito do rio,


guardamos nos bolsos de nossas roupas de crianças. Com elas tentamos algumas
construções que levam tempo enorme em tentativas de equilibrar os pesos e a força,
em tentativas de acertar a face de cada pedra de modo que outras pedras possam
tomar acento. Com essa escrita podemos tentar usar algumas ferramentas, a
indicação é o estilingue. Por se tratar de uma escrita que vem com os resquícios de
infâncias é uma escrita que, ao ser utilizada com o estilingue, quebrará vidros,
atravessará os espaços sem convites, incomodará os vizinhos. Esperamos apenas que
essa escrita erre os passarinhos e as casas de abelhas.

Exercício 2

Escrita floco de neve: pequenas leituras do cotidiano, a poesia no ônibus, o


grafite na rua, a orelha do livro que lemos de pé na livraria, o cartaz dos nossos
alunos no corredor da escola, a tatuagem na pele e a pele do rapaz que está na fila

Diaphonía, e-ISSN 2446-7413, v. 5, n. 1, 2019


BANDEIRA, L.

do banco, a letra da música que insistimos em ouvir, flocos finos, singulares, únicos,
delicados, porém afiados. Eles se acumulam e formam uma grossa camada de gelo
sobre nós, se conseguirmos nos mover sob o peso e a pressão que nos causam,
podemos remover com uma pá no final do dia. A ferramenta para a escrita floco de
neve é a pá, que remove em quantidade sem quebrar a estrutura. Os flocos
aparecem no texto, ainda brilhantes e afiados.

Exercício 3

Escrita cisco no olho: distração, solidão, saudades, angústia, pontinha de


esperança. Tudo que irrita e coça o olho daquele que escreve, tudo que exige
pequenas gotas de colírio, exige que pare de escrever para voltar a escrever. É aquilo
que pede que o outro olhe dentro de nosso olho para ver se ele também consegue
ver o que nos incomoda. Geralmente o nosso incômodo é invisível a olho nu. Por
isso, a melhor ferramenta para essa escrita é o tapa-olho. Assim, o cisco perde a
importância e, com isso, ganha o olho que ganha visibilidade ao ser escondido.

Exercício 4

Escrita tropeços e arrancadas: junte prazos, bibliografia, notas de rodapé,


vinho, cerveja, postits, marcadores de página e marca texto, tesoura, navalhas e
estilete para marcar a pele dos pés que insistem em andar no texto procurando 173
pequenos trechos dos outros que escrevem para fixarem-se e sentirem-se seguros. A
ferramenta para essa escrita é a joelheira, aquelas que eram cerzidas em nossas
calças quando insistíamos em cair a cada passo dado. Com fortes joelheiras
poderemos tropeçar e arrancar insistentemente. Até aprender a escrever nos
desvios, nos atalhos, nos caminhos circulares, nas estradas vicinais.
A escrita arde, no meio desses dias sombrios. Escrevam filósofos, escrevam
professores, escrevam estudantes, nossas palavras ganharão a folha de papel, o
asfalto das ruas, o barro vermelho dos campos do Paraná, os ouvidos cansados e
solitários, os que pensam que ante tantas situações que nos violentam todos os dias,
não teremos mais a força de estar juntos.
Finalizo o texto agradecendo mais uma vez o convite, o encontro, a escuta e o
estar junto.
São as alegrias que são oferecidas em doses generosas em encontros como este
que nos fazem prosseguir, oscilando, nas pontes que criamos em esforço coletivo,
para nos aproximar e constatar, que estamos todos tentando nos manter nos
embates e na prática cotidiana da sobrevivência.

Referências

OLIVEIRA, R. A. “Intervenção”, in XXII Semana Acadêmica de Filosofia – Filosofia e


Literatura: pensando esse encontro, realizada no dia 17 de maio de 2019.

Diaphonía, e-ISSN 2446-7413, v. 5, n. 1, 2019


Olhai os delírios do Campus

VERÍSSIMO, Érico. Olhai os lírios do campo. 24. ed. Porto Alegre: Globo, 1966.
VVAA. Bíblia sagrada. Tradução de Padre Antônio Pereira de Figueredo. Rio de Janeiro:
Encyclopaedia Britannica, 1980. Edição Ecumênica.
ZALLA, J. “Utopia e Paixão”: sociabilidades estudantis e militância política na constituição
do Centro Acadêmico de História da UFRGS – CHIST (1984-1987) in História Agora – A
Revista de História do Tempo Presente, disponível em:
<http://www.educadores.diaadia.pr.gov.br/arquivos/File/2010/artigos_teses/2010/Historia/a
rtigos/3zalla_artigo.pdf>.

Submissão: 24.05.2019 / Aceite: 30.05.2019.

174

Diaphonía, e-ISSN 2446-7413, v. 5, n. 1, 2019


A mulher como intelectual pública1
Women as public intellectuals

MARTA NUNES DA COSTA2

A presença das mulheres na Filosofia se tem tornado tópico de inquérito e


preocupação na academia brasileira nos últimos anos. Isso se deve, parcialmente, à
tentativa e esforços conjuntos de várias professoras, filósofas e acadêmicas de
problematizar a condição feminina enquanto espaço que tem sido, ao longo da
história, problematizado. O direito das mulheres, inclusive das mulheres filósofas,
se constrói hoje a partir do desvelamento da lógica que suportou a invisibilidade e
estratégias de invisibilização históricas – não só teóricas, mas sentidas na carne, nos
corpos.
A partir de um trabalho iniciado no livro Ensaios no Feminino, publicado em
2018, procuro, neste artigo, dar continuidade a uma reflexão acerca dos lugares que
as mulheres ocupam ou não ocupam, assim como tentar compreender a relação das
duas ordens: a ordem da justificação (nomeadamente, na história da filosofia em
geral, mas mais precisamente, via uma leitura crítica da história da filosofia política)
e a ordem da legitimidade. Ora, o conceito de legitimidade tornou-se central para
pensar as democracias contemporâneas. Por isso, pensar o lugar das mulheres não é
apenas uma missão teórica, mas uma missão enraizada no compromisso de viver em
democracia – a inclusão ou exclusão das mulheres nos diferentes espaços deve ser
legítima, isto é, devem ser dadas boas razões aceites por ‘todos’ de forma a não
invalidar as promessas democráticas da igualdade e liberdade.
A estas duas ordens, porém, que refletem duas promessas (da razão/igualdade
e da liberdade) devemos acrescentar uma terceira – a promessa da fraternidade. E
aqui o nosso problema torna-se incontornável, ou melhor dizendo, se as promessas
da igualdade e liberdade pareciam garantir uma ‘neutralidade’ (de género), a
promessa da fraternidade impõe violentamente a lógica da dominação masculina – a
fraternidade, onde a liberdade e igualdade se manifestam, é de e para homens; o que
significa dizer que na origem da concepção democrática (moderna) de liberdade e
igualdade está a consolidação de uma lógica patriarcal que naturaliza, ainda mais, a
desigualdade de género. Dito ainda por outras palavras, a liberdade e igualdade são
possíveis apenas na medida em que se constroem sobre a exclusão do outro, a saber,
sobre a exclusão da mulher. Exclusão, entretanto, em que sentido? De onde? De que
espaço? Do espaço do visível, do espaço público. Reparem: o que torna público esse

1
Este texto foi apresentado no III Encontro Mulheres & Filosofia, realizado na UFMS nos dias 17 e 18
de maio de 2018.
2
Professora adjunta de Filosofia na UFMS; Professora Permanente do PPG de Filosofia da
UNIOESTE; coordenadora do Grupo de Estudos Democráticos (CNPQ):
www.estudosdemocraticos.com.br. E-mail: nunesdacosta77@gmail.com.

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A mulher como intelectual pública

espaço é a premissa de que algo ou alguém pode nele aparecer, enquanto outros
devem ficar de fora. A noção de ‘espaço público’ foi construída sobre o seu ‘outro’, o
‘espaço privado’, ocupado exclusivamente por mulheres.
Daqui não é difícil dar os passos seguintes, e desvelar toda uma lógica que nos
acompanha até hoje, quer seja pelo viés de uma análise do ‘capitalismo’, quer seja
pelo viés de uma análise do ‘patriarcado’. Esta última permite reconstruir as origens
de um discurso (religioso) até à secularização das práticas em que as mulheres
devem naturalmente obediência aos homens. A primeira, a análise do capitalismo,
permite compreender como o próprio modo de produção capitalista só se pode
consolidar tendo já naturalizado a lógica patriarcal, sendo sobre ela que se consolida
igualmente a distinção esfera pública/esfera privada. A esfera pública é a esfera do
homem, do trabalho fora de casa, onde o valor é produzido e reproduzido. A esfera
privada, é a esfera da mulher, de dentro de casa, que não tem valor (e valor é sempre
valor social) aparente. Porém, isso é apenas aparência pois sem esse trabalho
tornado sem valor (dentro de casa) não seria sequer possível o trabalho no espaço
público. Ou seja, o trabalho invisível das mulheres é condição necessária ao sistema
capitalista.
Expliquei no livro Ensaios no Feminino as nuances e evolução dos conceitos e
relações entre visibilidade/invisibilidade, capitalismo e patriarcado. Aqui, quero
explicar como cheguei ao tema de hoje. 176
Se o espaço público é tradicionalmente ocupado por homens, isso reflete-se no
nosso aparato teórico e no nosso olhar: o que tem valor está fora; esse fora é
ocupado por homens; homens têm (mais) valor; as mulheres não têm (tanto) valor;
e mesmo quando aparecem no público a sua presença é desvalorizada, o seu valor é
desigual.
Esta crença, este dogma, esta leitura estereotipada da realidade atua sem
darmos por isso. Olhemos em nossa volta: quantas mulheres na esfera pública são
‘referência’ nos nossos debates, nas nossas reflexões, no nosso diálogo? Quem faz a
mediação entre o nosso pensamento e o pensamento dos outros? Ou se quiserem,
pensem por outro ângulo: a própria noção de ‘intelectual público’. Esta noção,
embora seja em teoria neutra quanto à questão de género, é na prática aplicada a
um papel desempenhado predominantemente por homens, de forma a que a
história das mulheres enquanto intelectuais tende a permanecer desvalorizada. Esta
desvalorização – enquanto processo ativo – traduz-se numa discriminação
institucionalizada (do qual a academia não é exceção) o que explica, pelo menos em
parte, os contra-movimentos considerados ‘feministas’ (e entendo aqui feminismo
no sentido de uma ideologia que advoga uma igualdade radical entre os sexos).
Então, o que significa ser um ‘intelectual público’? O dicionário dá-nos uma
primeira resposta: “um intelectual que expressa posições (especialmente em tópicos

Diaphonía, e-ISSN 2446-7413, v. 5, n. 1, 2019


COSTA, M.

populares’ com intenção de que estas sejam acessíveis a uma audiência geral’’. Mas
será que isto é tão óbvio? Afinal o que significa hoje ser ‘intelectual’? Será que ser
‘intelectual’ significa ter uma profissão relacionada ao intelecto, à academia? O
intelectual é aquele que busca conhecimento? De que forma, e em que sentido?
Quem se dedica à pesquisa científica deve automaticamente ser considerado
intelectual público? Ou essa ‘descrição’ tem um domínio mais vasto? Será que o
intelectual público se define pelo pensamento crítico? E se for pelo pensamento
crítico, pode / deve não ser limitado pela ocupação / profissão que ocupa, isto é,
podemos ter intelectuais públicos no meio da academia mas também de outras
áreas? O ‘intelectual público’ é aquele que tem domínio específico da sua própria
área, isto é, ele é um ‘especialista’? Sendo especialista, como pensamos a hierarquia
dentro do exercício da sua função? Precisamos agora dar mais atenção ao termo
‘público’ – o que este ‘público’ significa? Significa falar, dirigir-se fisicamente para
um público? Mas então, qualquer pessoa que fale em público exerce o papel de
intelectual público? Se assim fosse, todos os professores seriam naturalmente
intelectuais públicos, mas sabemos que não é o caso. Então, será que não tem
apenas a ver com o público ao qual o discurso se dirige, mas também o ‘tema’
tratado e a forma de tratamento que lhe é dada? O intelectual público fala de que
lugar? De um lugar público ou privado, de uma universidade pública ou de uma
instituição privada?
177
A estas podemos acrescentar um número vasto de outras questões: qual a
relação entre o intelectual público, a verdade e o conhecimento? Ele/ela falam de
um lugar privilegiado? Quais as suas características, como o classificar?
Vejam que há diferentes possibilidades: podemos pensar no intelectual público
como especialista; como crítico, como aquele que denuncia o que está errado, como
astro ‘pop’ que contribui para a divulgação de ‘conhecimentos’, mas devemos incluir
hoje o papel das redes sociais, pois elas transformaram significativamente a ‘esfera
pública’. A esfera pública constrói-se a partir de dentro; ela não reside apenas no
‘fora’ tradicional (pensemos que Habermas falava dos jornais e revistas como meio
original que constituiu a própria definição desse espaço, no século XIX). A cisão
entre detentores dos meios de comunicação e consumidores de comunicação
também está fragmentada. Não entrarei nas implicações de todos estes aspectos; o
meu propósito era mais modesto, apenas mostrar a complexidade de uma expressão,
de um termo, que geralmente tomamos como ‘óbvio’.
Se olharmos como na história este conceito/ categoria vem sido exemplificada,
vemos que a maioria dos exemplos são de homens. Isso encontra explicação nas
naturalizações históricas e internalizações de desigualdades socialmente
construídas. Mas então, como nos posicionamos hoje em relação a mulheres que
ocupam esse espaço público? Ou seja, o que eu quero que façam é que olhem para o
modo como recebem as informações, as críticas, os conteúdos? Esse modo varia caso

Diaphonía, e-ISSN 2446-7413, v. 5, n. 1, 2019


A mulher como intelectual pública

seja homem ou mulher? Se sim, por que será que isso acontece? E como
transformar?
Quero dar-vos apenas dois exemplos. O primeiro, Olympe de Gouges e Mary
Wollstonecraft. Olympe de Gouges escreve a Declaração dos Direitos da Mulher e da
Cidadã (1791) como resposta à Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão
(1789). Mary Wollstonecraft escreve Reivindicação dos Direitos da Mulher (1792).
Ambas as autoras, contemporâneas da Revolução Francesa, podem ser vistas como
intelectuais públicas: elas ‘entram’ na ‘esfera pública’ da sua época, escrevendo
panfletos ou livros – as suas posições são divulgadas amplamente no meio por elas
frequentadas. Ambas partem do pressuposto iluminista do ‘direito natural’; ambas
denunciam a contradição de promover um discurso de igualdade e liberdade à conta
da exclusão de metade do género humano. Elas fazem-no de forma clara; elas dão
argumentos e mostram como o discurso universalista está condenado se perpetuar a
lógica da dominação. Mas mais do que isso. Elas afirmam-se como exemplos de algo
muito mais forte e mais fundamental: elas reivindicam o próprio direito de existir –
de existir publicamente. O ethos da mulher é por isso diferente do ethos do homem.
O homem fala e é ouvido; o homem fala porque ele já existe, isto é, ele já é
reconhecido como homem, i.e, como igual e livre, detentor do direito de aparecer
(isto é, do direito de ser para os outros); a mulher não. O direito à existência não é
dado anteriormente; ele é criado pelo ato da fala e da escrita; à mulher não lhe é 178
dado o direito de falar, de participar, de existir politicamente – o que é no mínimo
curioso o fato de que no contexto revolucionário francês, as mulheres terem sido
proibidas de participar politicamente, ao mesmo tempo que a figura que representa,
visível e simbolicamente a liberdade, é a figura da mulher (representação nos
quadros, nos panfletos, etc.). Retomo, porque à mulher não lhe é reconhecido esse
direito (que seria um direito natural), ela deve conquistá-lo pelo ato de se recriar,
como sujeito/ sujeita, a partir da palavra. O ato da escrita torna-se ato existencial, de
afirmação do eu; a criação de uma voz que insistiam em negar, abafar, suprimir,
matar, silenciar. E esse ato revolucionário de existência para os outros a partir da
escrita conviveu de forma flagrante com a negação dos direitos universais, que
estavam sendo proclamados, de cidadania. A mulher não era cidadã; à mulher não
lhe foi concedido o direito de construir o novo mundo da igualdade. Sobre a mulher
foi construída a promessa de uma igualdade eternamente desigual, pelo menos
enquanto durar a própria ideologia da qual é refém. Mary Wollstonecraft e Olympe
de Gouges cumpriram o seu destino como intelectuais públicas – elas reivindicaram
o seu lugar na história, na história revolucionária, na história do pensamento, na
história e percurso sentido das mulheres. Elas denunciaram o erro da narrativa
iluminista e rousseauniana; elas denunciaram a injustiça da desigualdade de género
e da desigualdade racial (ambas estavam comprometidas com a abolição da
escravatura), elas denunciaram os limites da Razão e do próprio projeto de
esclarecimento humano.

Diaphonía, e-ISSN 2446-7413, v. 5, n. 1, 2019


COSTA, M.

160 anos mais tarde escreve Simone de Beauvoir O Segundo Sexo. Também ela
se afirmou como intelectual pública – e a sua obra é marco exatamente porque
obrigou a romper, e rompeu de fato, com a hegemonia do discurso masculino. Mas
Beauvoir fez mais do que isso: ela obrigou à revisão das nossas convicções mais
profundas e ao confronto com os nossos preconceitos mais naturais. Ela foi
intelectual pública exatamente porque ela se mostrou pela escrita a um público e
contribuiu para a criação de uma pauta que antes não existia. Até hoje trabalhamos
no horizonte dessa pauta desenhada por ela.
Poderia acrescentar uma outra referência, a saber, Hannah Arendt. Arendt é
sem dúvida um exemplo de uma intelectual pública, mulher; mas ela é mais do que
isso – ela dá-nos não só uma ‘crítica da condição presente’ como sobretudo um novo
meio para pensar em conjunto. Como? Subvertendo, transformando as categorias
tradicionais da teoria política. A sua escrita, que é ao mesmo tempo cativante e
perturbadora (porque nos faz navegar pela própria experiência do pensamento sem
necessariamente se cristalizar e sem se deixar sistematizar) pode ser interpretada
como um convite – um convite a pensar em conjunto. É isso, afinal, que nos
distingue de todos os outros seres vivos: o juízo enquanto capacidade de pensar com
os outros, um pensamento que é necessariamente inseparável da presença dos
outros.
Os exemplos foram breves, mas quero terminar com uma reflexão. 179
As quatro mulheres pensadoras, autoras, intelectuais públicas que mencionei
partilham de uma perspectiva que as torna intelectuais públicas: 1. Todas têm
conhecimento ‘teórico’; 2. Todas têm conhecimento prático (i.e., sentem na pele); 3.
Todas pensam criticamente, i.e., os seus textos revelam uma crítica bem
fundamentada da ‘ordem’ dominante na qual se inserem; 3. Todas escrevem na
intenção de transformar o que é, fazendo do texto um instrumento de denúncia e
combate à injustiça. De onde falam? De um lugar que sim, partilha, a ideologia
dominante; porém, elas criticam essa mesma ideologia, mesmo sem a querer (ou
poder) superar.
E hoje? Qual o papel do intelectual público, mas mais precisamente, qual o
papel da mulher como intelectual pública? Que papel pode ter a mulher como
intelectual pública no Brasil?
A resposta deve ser dada por partes. Em relação à primeira, é preciso perceber
que só há intelectuais públicos e públicas se, e enquanto, houver público – não
apenas um público receptor/passivo, mas um público engajado, um público leitor.
Habermas, numa entrevista recente3 disse que hoje nos deparamos com inúmeros
obstáculos para que esse ‘espaço’ de troca possa efetivamente existir. Por um lado,
temos o problema da privatização dos meios de comunicação e tudo o que isso

3
Ver https://elpais.com/elpais/2018/05/07/inenglish/1525683618_145760.html

Diaphonía, e-ISSN 2446-7413, v. 5, n. 1, 2019


A mulher como intelectual pública

implica (Brasil e EUA são exemplos chocantes desse fenómeno); por outro, o
problema da mercantilização visível na internet, para não falar de um outro
fenômeno que é as fake News. Neste contexto, aquele ou aquela que se candidata a
desempenhar este papel – de intelectual pública – não terá um percurso fácil, a não
ser que ceda aos ‘avanços’ e imperativos capitalistas, liquidando a própria promessa
que o ato encerra em si.
Ora, para uma mulher a tarefa é ainda mais difícil – por ser mulher, sem
dúvida. Mas também pela tarefa implicada: não basta hoje ‘falar’ em tom de
especialista; é preciso falar como mulher que pensa e quer pensar com os outros, para
lá das disciplinas e das dicotomias, para lá das compartimentalizações e reduções;
para lá dos egos auto-insuflados que buscam nichos que visibilidade quase imorais...
Por isso, de onde deve a mulher, intelectual pública, falar?
Desse lugar que se constrói na crítica do espaço que ela mesma ocupa. O lugar
da desconfiança, da suspeição, mas também o lugar que se faz ele mesmo a partir da
questão e do confronto, da não aceitação, da rebelião, da resistência. O lugar que se
cria por oposição ao que é errado e que se orienta por alguma ideia de justiça. A
mulher enquanto intelectual pública deve criar e ocupar esse lugar: o lugar do não
conformismo, o lugar da desobediência, inclusive, e talvez ainda mais importante
hoje, da desobediência às ideologias que, por se tornarem tão dominantes se
tornaram rígidas, inflexíveis, e por isso facilmente perigosas. Rousseau dizia que era 180
preciso educar a mulher para a obediência e docilidade4, pois via nela, ou melhor,
via em todas as mulheres o potencial da subversão e da irreverência. Ele sabia, como
talvez tantos outros homens, que as mulheres não podem ser realmente
controladas; que elas representam um perigo à ordem masculina. E ele estava certo.
Porém, toda esta resistência tem de ser conjunta; toda esta denúncia tem de
manifestar a união de muitas, uma união que guarda em si a pluralidade das
experiências; toda esta crítica deve traduzir o movimento existencial, concreto, de
mulheres reais que pensam em conjunto. A mulher, ou melhor, as mulheres
enquanto intelectuais públicas no Brasil devem contribuir para refazer a própria
‘esfera pública’ e o que nela é incluído, isto é, devem contribuir para introduzir
novas pautas e novas lutas e devem dar o exemplo, lutando contra a ‘pseudo’ cultura
que nos prende numa cacofonia cada vez mais ampla e absorvente a cada dia que
passa – se as mulheres, no seu papel de intelectuais públicas, derem o exemplo do
questionamento das bandeiras e ideologias que inclusive elas mesmas levantaram
num determinado momento da história, talvez se criem as condições para um novo
horizonte de luta e de atribuição de sentido à nossa vida em comum.

Referências

4
Ver Emílio.

Diaphonía, e-ISSN 2446-7413, v. 5, n. 1, 2019


COSTA, M.

BEAUVOIR, S. O segundo sexo. Nova Fronteira, 2009.


COSTA, M. N. Ensaios no feminino. São Paulo: LiberArs, 2018.
GOUGES, O. Declaração dos direitos da mulher e da cidadã. 1791.
WOLLSTONECRAFT, M. Reivindicação dos direitos da mulher. São Paulo: Boitempo, 2018.

Submissão: 21.06.2019 / Aceite: 25.06.2019.

181

Diaphonía, e-ISSN 2446-7413, v. 5, n. 1, 2019


RESENHA: LOPEZ VELASCO, Sirio. Filosofia da educação: a relação educador-
educando e outras questões na perspectiva da educação ambiental ecomunitarista.
Goiânia: PHILLOS, 2018, 122p [ISBN: 978-85-52962-00-7].

Filosofia da Educação
FÁBIO BATISTA1

Em seu mais recente trabalho, Filosofia da educação: a relação educador-


educando e outras questões na perspectiva da educação ambiental ecomunitarista,
Sirio Lopez Velasco apresenta o resultado de pesquisas e reflexões acerca de um
tema central de seu pensamento: o ecomunitarismo, articulando-o em particular
com a educação, mas não somente isso. Velasco propõe com o ecomunitarismo uma
utopia pós-capitalista que contempla a economia ecológica, uma erótica da
libertação, uma política de todos e uma comunicação livre e direta. Assim, os quatro
capítulos que compõe o seu livro estão orientados por essa utopia.
A “Introdução” é direta e pontual e diz que a obra está no campo da Filosofia e
mais especificamente no âmbito da Filosofia da Educação. A abordagem, por sua
vez, combina a perspectiva histórica com a reflexão sistêmica.
Esta perspectiva histórica da abordagem compreende especialmente a primeira
parte do capítulo um - “A relação educador-educando numa visão filosófica
ecomunitarista” – cujo mote central é a reflexão filosófica sobre a educação, em
particular sobre a relação educador-educando.
Incialmente o autor se concentra na filosofia hindu, na qual a relação do
discípulo com o mestre passa pela obediência, respeito e disposição a ouvir, o
mestre por sua vez ensina com gestos, palavras e exemplos. No centro desta relação
está a verdade e seu ensino: o mestre é o porta-voz da sabedoria e da verdade e o

1
Doutorando no Curso de Pós-Graduação (Stricto sensu) em Filosofia pela Universidade Estadual do
Oeste do Paraná – UNIOESTE. E-mail: fabiobatista1985@bol.com.br.

Diaphonía, e-ISSN 2446-7413, v. 5, n. 1, 2019


BATISTA, F.

discípulo aquele que deseja a verdade. Velasco também enfatiza que a filosofia
hindu implica a prática de uma forma de vida, isto é, que há uma identidade entre a
filosofia e a vida.
Todavia, diz nosso autor, o ocidente pôs em questão a verdade representada
pelo mestre e potencialmente adquirida pelo discípulo: o que é esta verdade?
Podemos conhecê-la de forma plena? Ainda: “o educador é possuidor da verdade”?
“Cabe transmiti-la ao discípulo, esperando dele obediência cega, reverência e
serviço”? (VELASCO, 2018, p. 14). Isso porque o mestre hindu é um sábio, diz
Velasco, Sócrates, na Grécia clássica, é um filósofo, alguém que tem amizade ou
amor pelo saber e a sabedoria, e se dedica a buscá-los. A verdade, no caso da
filosofia socrática, confundir-se-á com a definição correta buscada por meio do
diálogo entre Sócrates e os seus interlocutores. “Agora, assim como se exigia na
Índia, também os mais insignes nomes da filosofia grega clássica defenderam a ideia
de que o ensino do mestre deveria ter um eco perfeito na sua conduta para
demonstrar sua solidez” (VELASCO, 2018, p. 17).
Da antiguidade passamos a Rousseau no século das Luzes: como o filósofo
genebrino compreende a relação mestre-discípulo em sua filosofia da educação?
Primeiro há que se dizer que Rousseau não passa na prova da concordância entre
pensamento e vida, pois observa Velasco que o filósofo e autor do Émile entregou
seus filhos a orfanatos, isto é, Rousseau apenas se dedicou ao aspecto teórico sem 183
levar em consideração a prática. Embora, certamente e independente disso, seu
pensamento sobre a educação seja de importância ímpar à filosofia da educação.
No seu Émile (1762) ao tratar da relação mestre-discípulo mostra “o que pode a
educação de um homem” (VELASCO, 2018, p. 25). Émile passa assim por cinco
etapas formativas demarcadas pela idade, do berço até o casamento, passando pela
educação corporal, a aprendizagem de um ofício e posterior conhecimento
especializado como a astronomia e as ciências naturais. Entre os quinze e vinte
anos, passado já então por três fases, ele é introduzido na sociedade.
O filósofo uruguaio, Vaz Ferreira, também está entre os pensadores que
dedicaram atenção ao problema da educação, considerando aspectos da educação
doméstica e social, e a relação entre ciência e pedagogia, ou entre a tríade, ciência,
pedagogia e filosofia, cabendo à ciência as questões e esclarecimentos sobre “o que o
ser humano é, enquanto que a Filosofia (e a Pedagogia) lhes cabe o que se quer que
o ser humano seja”, diz nosso autor (VELASCO, 2018, p. 33) citando Vaz Ferreira.
Sobre a relação entre educador e educando, diz Vaz Ferreira, que ela
compreende a dimensão teórica, mas também afirma que o ensino da moral é
teórico e prático. E ainda que o educando deve ter uma mente aberta, uma atitude
crítica e consciente daquilo que ignora. No entanto, não dispensa, no nível médio de
ensino, que o professor assuma uma postura diretiva.

Diaphonía, e-ISSN 2446-7413, v. 5, n. 1, 2019


Filosofia da Educação

Assim segue Velasco e aborda a educação, a relação educador-educando em


Makarenko, educador soviético, cuja tônica é a disciplina, a consciência moral da
responsabilidade e a compreensão da superioridade da vida coletiva sobre a
individual.
Paulo freire, diz Velasco (2018, p. 50), “romperá com a tímida participação do
discípulo no diálogo com o educador (observada em Sócrates e em Rousseau, e que
sequer existe no ensino hindu), para propor a construção dialogal, entre educador e
educando, do conhecimento”.
Ainda no capítulo um, mas agora a partir de outro foco, nosso autor passa a
considerar “a visão ecomunitarista da relação educador-educando”, ou seja,
encontramos aqui um desdobramento no que se refere ao campo temático e outro
no da abordagem, respectivamente, trata-se da entrada em cena de modo explícito
da perspectiva ecomunitarista e da reflexão sistêmica sobre essa relação a partir
dessa perspectiva, destacando sempre a importância de três normas éticas: “1) que
devemos lutar pela nossa liberdade individual de decisão, 2) que devemos vivenciar
consensualmente essa liberdade, e, 3) que devemos preservar-regenerar de forma
saudável a natureza humana e não humana” (VELASCO, 2018, p. 53-54). Em outras
palavras, a partir desse ponto o autor passa a defender, em particular, suas teses
sobre a filosofia da educação e, em geral, a sua filosofia ecomunitarista. Vale notar
que o primeiro capítulo ocupa ao menos a metade do livro e está divido em torno de 184
dois eixos, um descritivo-histórico e outro propositivo, como já aludimos.
No capítulo dois, “Notas sobre ecomunitarismo e esporte educativo e
cooperativo”, Velasco mostra seu conceito de esporte educativo e cooperativo a
partir de sua perspectiva ética e ambiental, ecomunitarista. Sobre este ele diz:
“Chamo de ecomunitarismo a ordem socioambiental pós-capitalista na qual os seres
humanos reconciliam-se entre si para permitir e incentivar solidariamente o
desenvolvimento pleno de cada sujeito, e se reconciliam com o restante da natureza,
mantendo face a ela uma atitude permanente de preservação e regeneração”
(VELASCO, 2018, p. 68). Com base nisso o autor propõe uma educação que dê a
devida atenção ao corpo – pois, não devemos esquecer, diz ele, da importância que
Platão dava a educação por meio da ginástica e da música antes mesmo da
alfabetização.
O que está em questão aqui é, fundamentalmente, a concepção que temos da
educação do corpo e sua relação com o esporte que na sociedade burguesa torna-se
extremamente centrado na competitividade para fins lucrativos. Velasco propõe
então outra concepção de esporte, uma reviravolta, pautada doravante na
cooperação, respeito à liberdade individual, preservação da saúde e o respeito à
natureza.

Diaphonía, e-ISSN 2446-7413, v. 5, n. 1, 2019


BATISTA, F.

Já o terceiro capítulo, “Explicitação dos conceitos das Diretrizes curriculares


gerais nacionais para a educação ambiental”, tem como objeto as diretrizes e
conceitos centrais das Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação Ambiental
(2012). Quais são elas? O que elas dizem? O autor nos mostra uma por uma e, de
modo detalhado e rico, as comenta. Nós, a título de exemplo, apontaremos apenas
algumas delas. Vejamos. 1. Visão complexa da questão ambiental, de modo a
compreender que esta não está desvinculada de problemas econômicos, culturais e
sociais. 2. Abordagem da educação ambiental de modo inter, multi e
transdisciplinar contribuindo para a compreensão do valor da natureza para a vida,
isto é, como fonte de vida e pluralidade étnico-racial. [...]. 10. Uma educação
ambiental que mostre ao educando a importância de uma perspectiva sustentável,
na qual ele se vê como agente da construção de uma sociedade menos degradante
do humano e não humano, isto é, a natureza. As outras diretrizes ainda tratam de
educação ambiental que proporcione a investigação com livre trânsito entre o saber
formal (escolar-acadêmico) e as experiências dos povos originários e tradicionais
sobre o meio ambiente.
Após passar anteriormente pela análise das diretrizes para a educação
ambiental, Velasco propõe, no capítulo quatro – “Ideias para a educação ambiental
ecomunitarista comunitária” - que encerra seu livro, ideias ecomunitaristas para a
educação não-formal comunitária, “entendendo por tal toda prática com dimensão 185
educativa consciente” (VELASCO, 2018, p. 101), podendo ocorrer através de vários
agentes sociais: ONG’s, movimentos populares, organizações políticas... Mostra aqui
que a concepção de educação ecomunitarista, entre outros elementos, propõe o
pleno desenvolvimento dos seres humanos, o que só poderá se realizar com a crítica
permanente do capitalismo, dos seus horrores e formas de alienação. Pois, “Temos
definido, diz Velasco (2018, p. 105) “o ecomunitarismo como sendo a ordem
socioambiental sustentável pós-capitalista na qual realiza-se a reconciliação solidária
entre os seres humanos, desde a escala local até a escala planetária, e a reconciliação
entre os seres humanos e o restante da natureza, respeitando-se no dia a dia as três
normas fundamentais da ética; assim, repetimos, o ecomunitarismo tem horizonte
pós-capitalista pois o capitalismo violenta cotidianamente essas três normas
fundamentais da ética” (VELASCO, 2018, p. 105).
A teoria educativa para educação ambiental comunitária de tipo
ecomunitarista, diz o autor, é a chamada “pedagogia problematizadora”, isto é, a
conscientização ou o desvelamento crítico dialogado das relações de opressão e
devastação próprias da nossa sociedade, a capitalista. Na qual a lógica do lucro, a
guerra de todos contra todos e o aniquilamento ambiental imperam sobre a lógica
da sustentabilidade e da liberdade, alcançadas apenas, enfatiza Velasco, em uma
realidade pós-capitalista ecomunitarista.

Diaphonía, e-ISSN 2446-7413, v. 5, n. 1, 2019


Filosofia da Educação

Por fim, vale reforçar, que o livro de Velasco, muito oportunamente em


tempos de crise do pensamento utópico, trata, portanto, de questões permeadas
pelo sabor do utópico e de um horizonte de liberdade a ser conquistado.

Submissão: 22.05.2019 / Aceite: 31.05.2019.

186

Diaphonía, e-ISSN 2446-7413, v. 5, n. 1, 2019


TRADUÇÃO
Marx, Darwin e a “História crítica da tecnologia”1
Marx, Darwin, and the "Critical History of Technology"

FABIO RAIMONDI2

Tradução de Douglas Antônio Fedel Zorzo3.


Resumo: As pesquisas sobre a relação entre Marx e as assim chamadas ciências duras são,
hoje, bastante amplas, ainda que inferiores àquelas referentes a outros âmbitos. De menor
amplidão, contudo, são as pesquisas sobre a relação entre Marx e a tecnologia. Apesar de
numerosas contribuições, ainda existe um caminho muito árduo a ser percorrido para
esclarecer a relação que Marx e Engels tiveram com os conhecimentos científicos
disponíveis em seu tempo e a importância que esses tiveram para a formação de seu
pensamento político. O propósito do presente artigo é oferecer uma primeira contribuição,
em forma de hipótese, para o esclarecimento do que Marx entendia por “história crítica da
tecnologia” e qual a relação que essa tivera com a Origem das Espécies de Darwin.
Palavras-chave: Marx. Darwin. Tecnologia.

Abstract: The researches on the relation between Marx and the so-called hard sciences are
now quite broad, albeit inferiors to that of other fields. Of lesser magnitude, however, are
the researches on the relation between Marx and the technology. Despite numerous
contributions, there is still a very arduous path to be followed in order to clarify the relation
that Marx and Engels had with the scientific knowledge available in their time and its
importance for the formation of their political thinking. The purpose of this article is to
offer a first contribution, in the form of a hypothesis, to clarify what Marx understood as the
“critical history of technology” and what relation of that had with the Darwin’s Origin of
Species.
Keywords: Marx. Darwin. Technology.

1. Meu propósito é oferecer uma primeira contribuição em forma de hipótese ao


esclarecimento daquilo que Marx quis dizer com “história crítica da tecnologia
[kritischeGeschichte der Technologie]” e qual a relação que essa teria com a Origem
das espécies de Darwin (cf. MARX, 1980b, p. 414, n. 89).
O interesse de Marx pela tecnologia se deve a algumas observações engelsianas
surgidas em 1844 em UmrissezueinerKritik der Nationalökonomie (cf. ENGELS;
MARX, 1981, p. 523-524) e posteriormente desenvolvidas em Die Lage der
arbeitendenKlasse in England de 1845:

[...] na Inglaterra, a história da classe operária tem início na segunda


metade do século passado, com a invenção da máquina a vapor e

1
A versão completa do presente artigo está disponível em:
http://eprints.sifp.it/356/1/MARX_e_DARWIN.pdf
2
Professor da Università di Udine, Itália. E-mail: fabio.raimondi@uniud.it
3
Tradutor do texto. Doutorando no Programa de Pós-Graduação em Filosofia da Unioeste. E-
mail:douglasfedel@gmail.com; douglasfedel@hotmail.com

Diaphonía, e-ISSN 2446-7413, v. 5, n. 1, 2019


Marx, Darwin e a “História crítica da tecnologia”

das máquinas para o processamento do algodão [e] enquanto que


com a primeira máquina [a chamada jenny] se desenvolvia o
proletariado industrial, a mesma máquina também originava o
proletariado agrícola [...]. O proletariado foi criado pela introdução
das máquinas (ENGELS, 1955, p. 31, p. 34-5, p. 44).

A expressão “história crítica da tecnologia” aparece em uma nota d’O Capital


na qual Marx, referindo-se à invenção da máquina de fiar por John Wyatt, escreve:

Uma história crítica da tecnologia demonstraria, em geral, quão


pouco qualquer invenção do século XVIII pode ser atribuída a um
indivíduo singular. Até agora, tal obra não existe. Darwin se
debruçou sobre a história da tecnologia natural, isto é, sobre a
formação dos órgãos vegetais e animais como instrumentos de
produção da vida das plantas e dos animais. Não mereceria igual
atenção a história da formação dos órgãos produtivos do homem
social [produktivenOrganedesGesellschaftsmenschen], base [Basis]
material de toda organização social [Gesellschaftsorganisation]
particular? E não seria ainda mais fácil de realizá-la, uma vez que,
como diz Vico, a história da humanidade se distingue da história
natural pelo fato de termos feito uma e não a outra? A tecnologia
desvela o comportamento ativo do homem em relação à natureza, o
processo imediato de produção de suas relações sociais vitais e das
ideias que decorrem do intelecto. Nem mesmo uma história das
religiões, independente do modo que tenha sido realizada, que faça
abstração dessa base material, é crítica (cf. MARX, 1980b, p. 414, n.
188
89)*

Essa história deveria ser social e crítica: tanto porque o homem social é o
homem organizado em sociedade pela extensão da produção (cf. RABINBACH, 1990,
p. 73), quanto porque não faz abstração da tecnologia como base material da
produção da vida humana, de suas relações sociais e de suas ideias (cf. também
MARX, 1980, p. 214). O paralelismo com Darwin é construído sobre a analogia entre
a tecnologia natural e os órgãos produtivos do homem social. Combinando os dois
aspectos, poderíamos dizer que o propósito de Marx seria uma história evolutiva da
produção (natural), por parte do homem social, de seus órgãos artificiais. Desse
modo, Marx coloca sua investigação na esteira da “visão tecnológica da evolução
[technological view of evolution]” (CORNELL, 1984, p. 313) traçada por Darwin,
ocupando-se sobre como os órgãos artificiais e produtivos do homem social se

*
Optamos por traduzir as citações de Marx e Engels diretamente do italiano. Contudo, para isso,
servimo-nos das seguintes edições em língua portuguesa como apoio: ENGELS, Friedrich. A situação
da classe trabalhadora na Inglaterra. Trad. de B. A. Schumann. São Paulo: Boitempo, 2010. MARX,
Karl. O capital: crítica da economia política. Livro I: o processo de produção do capital. Trad. de
Rubens Enderle. São Paulo: Boitempo, 2013. MARX, K. O capital: crítica da economia política. Livro
II: o processo de circulação do capital. Trad. de Rubens Enderle. São Paulo: Boitempo, 2014. MARX,
K. O capital: crítica da economia política. Livro III: o processo global da produção capitalista. Trad.
de Rubens Enderle. São Paulo: Boitempo, 2017. MARX, K. Teorias da mais-valia: história crítica do
pensamento econômico. Tradução de Reginaldo Sant’Anna. Vol. III. São Paulo: DIFEL, 1985 (N. do
T.).

Diaphonía, e-ISSN 2446-7413, v. 5, n. 1, 2019


RAIMONDI, F. / ZORZO, D.

introduziriam na história natural (cf. VADÉE, 1998, p. 375 ep. 378-380), ou seja, na
perspectiva de uma “interpretação tecnológica da história da vida, que faz da
natureza um agente externo em si mesmo à imagem do homem, e, ao mesmo
tempo, um produto de forças externas como os organismos sob o controle do
homem [a technologica linterpretation of the history of life that makes nature both an
external agent itself in the image of man and at the same time a product of external
forces like the organisms underman’s control]” (CORNELL, 1984, p. 320). Essa
hipótese é corroborada seja pelo fato de que a ideia daquilo que Marx chamou de
“tecnologia natural” tenha sido derivada do estudo de Darwin acerca das técnicas de
criação [allevamento], como pelo fato de que essas últimas estão ligadas ao
problema da “acumulação” (cf. ao menos DARWIN, 1994, p. 199, p. 213-214). Assim,
Marx procurou inserir-se na perspectiva darwiniana (talvez para completá-la?)
através de uma “história crítica da tecnologia”:

[...] aquilo que Hodgskin não evidencia [em


Labourdefendedagainsttheclaimsof capital, 1825] é o grau relativo de
desenvolvimento da força produtiva [Entwiklung der Produktivkraft]
do trabalho [...], que não existe somente como disposição, como
capacidade do trabalhador, mas também nos órgãos objetivos
[gegenständlichenOrganen] que esse trabalho criou e diariamente
renova. Esse é o verdadeiro prius que constitui o ponto de partida, e
esse prius é o resultado de uma evolução [Entwicklungsgangs]. Aqui,
a acumulação [Aufhäufung] é assimilação [Assimilation], incessante
189
conservação e ao mesmo tempo reconstrução daquilo que já havia
sido transmitido, realizado. É dessa maneira que Darwin faz da
“acumulação” por hereditariedade [AufhäufungdurchErblichkeit] o
princípio ativo da formação de todos os organismos, plantas e
animais, de modo que os diferentes organismos se formam por
“acumulação [Häufung]” e são apenas “invenções [Erfindungen]” [...]
pouco a pouco acumuladas pelos seres vivos. Mas isso não é o único
prius da produção. Nos animais e nas plantas é a natureza externa,
isto é, tanto a natureza inorgânica quanto suas relações com outros
animais e outras plantas. Também o homem, que produz em
sociedade, encontra diante de si uma natureza já modificada
(especialmente, um elemento natural transformado em órgãos de
sua própria atividade) e relações determinadas entre os produtores.
Essa acumulação [Akkumulation] é em parte resultado do processo
histórico [GeschichtlichenProzesses] e, em parte, para o trabalhador
individual [einzelnenArbeiter], transferência de habilidade
[transmissionofskill] (cf. MARX, 1958, p. 319).

A distinção entre Aufhäufung e Akkumulation se deve ao fato de que o homem


deve lidar tanto com a própria natureza, com a qual também as plantas e os animais
devem lidar, quanto com a natureza (primeira em referência à precedente)
transformada pelos órgãos da própria atividade e formada pelo conjunto desses
órgãos e pelas relações entre os produtores que esses implicam. A Akkumulation
indica a acumulação propriamente humana, resultado do processo histórico e da

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Marx, Darwin e a “História crítica da tecnologia”

transferência de habilidade. A história entra na Aufhäufung através da


Akkumulation, porque existe somente graças à seleção: a história (como acontece
nos “cruzamentos” praticados por camponeses e criadores) é o acúmulo dos
produtos (casuais ou não) das seleções. Enquanto a Akkumulation, no mundo da
criação, é finalizada com objetivos precisos, no mundo natural a Aufhäufung não
tem nenhuma finalidade4. A expressão “história crítica da tecnologia” assimila o
conceito darwiniano de “seleção natural” e o aplica, por analogia, aos “órgãos
produtivos do homem social”, isto é, ao aspecto artificial de uma mais ampla
“tecnologia natural”5. Se a história humana é parte da natureza, então, a teoria de
Darwin é complementada pelo estudo da evolução que os seres humanos causam na
natureza por meio das técnicas, uma vez que, encontrando-se defronte dela, a
transformam.
O desenvolvimento das forças produtivas depende também de “órgãos
objetivos”, que o “trabalho criou e diariamente renova”. Sua presença é o “prius que
constitui”, ao mesmo tempo, “o ponto de partida” e o “resultado de uma evolução”6,
não se identificando somente com os produtos da técnica. Tais “órgãos” servem para
a produção em sociedade e são o fruto da relação entre o homem e aquilo que
“encontra diante de si”: a “natureza já modificada”. Portanto, eles não são apenas
objetos técnicos específicos, mas também “relações determinadas entre os
produtores” que configuram “órgãos objetivos” mais complexos (como, por exemplo, 190
a “sociedade” ou as “relações de produção”) do que os instrumentos técnicos do
trabalho. Enfim, os “órgãos objetivos” são o “prius” enquanto produtos da
“acumulação por hereditariedade”. A Aufhäufung é “assimilação”: “conservação e

4
A história humana também procede movida por fins propriamente humanos. O “neolamarckismo”
de Marx e Engels nasce de Haeckel, que, em sua recepção de Darwin, diante do problema para
explicar quais teriam sido as causas das variações e o mecanismo de sua hereditariedade, usou a
teoria lamarckiana da hereditariedade das características adquiridas, embora continuasse a falar de
“seleção natural”, produzindo, assim, certa confusão. Marx e Engels adotaram a proposta de Haeckel
(cf. BENTON, 1979, p. 113-114 e p. 133), mesmo que isso não afete seu “darwinismo”.
5
Em Marx a “história natural chega a subsumir sob si a história humana, do mesmo modo que a
história humana chega a subsumir a história natural” (cf. KRADER, 1978, p. 213 e SCHMIDT, 1969).
Esse movimento, mais que alienação (como afirma Krader), é a “objetificação progressiva ou
exteriorização do conhecimento, memória e gestos em artefatos que tornam possível a real
subsunção do trabalho” (cf. BRADLEY, 2011, p. 33-34).
6
Entiwicklungsgangnão é uma referência a Darwin, que usa evolution somente na sexta edição da
Origem das espécies (1872; cf. DESMOND, MOORE, 1992, p. 672), a qual Marx não cita. “Evolução”
indicava, na linguagem comum, o “aparecimento, em sucessão ordenada, de uma longa série de
eventos e, ainda mais importante, continha um conceito de desenvolvimento progressivo: uma
ordenada expansão do simples ao complexo [...]. É com esse significado que Darwin usou o verbo
evoluir”, e não tanto para definir aquilo que ele chamava de “descendência por modificação”, que não
implicava absolutamente uma ideia de progresso, uma vez que não portava consigo o juízo de
“definir um organismo como ‘superior’ ou ‘inferior’”. Um forte impulso à sinonímia, não darwiniano,
entre “evolução”, “descendência por modificação” e “progresso” veio de Spencer, que em “seus
FirstPrinciples de 1862” definiu a “evolução” como uma “integração da matéria e uma concomitante
dispersão de movimento no curso da qual a matéria passa de uma homogeneidade indefinida e
coerente para uma heterogeneidade definida e coerente” (cf. GOULD, 1990, p. 28-30).

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reconstrução daquilo que já havia sido transmitido, realizado”, como na reprodução


dos cruzamentos artificiais entre plantas e entre animais que são úteis nas técnicas
de cultivação ou criação.
Uma especificidade distingue os seres humanos das plantas e dos animais: a
Akkumulation é tanto um “processo histórico”, quanto, “para o trabalhador
individual, transferência de habilidade”, implicando em uma seleção que é, ao
mesmo tempo, casual e consciente, mas não necessariamente melhor, porque os
resultados da combinação entre as técnicas e a natureza são frequentemente
imprevisíveis (cf. FOSTER, 2001).
2. Na “manufatura”, que “coincide plenamente com a decomposição de uma
atividade artesanal em suas diversas operações parciais”, o trabalhador individual é
o artesão transformado em “trabalhador parcial” (Teilarbeiter, cf. MARX, 1980b, p.
381-382).
A Akkumulation7, que produz os “órgãos objetivos”, o “prius”, é o produto de
um processo histórico e de uma “transferência de habilidade”: no caso específico, do
trabalhador individual ao trabalhador parcial. Tal transferência é determinante,
porque sem a “acumulação por hereditariedade” das “habilidades [skills]”, não existe
reprodução dos “órgãos objetivos”: sem a contribuição do trabalho para criar e
renovar diariamente esses “órgãos” não existiria “evolução”. Se o trabalhador
individual não pudesse transferir as próprias habilidades e transformar-se em
191
“trabalhador parcial”, a própria manufatura não existiria (cf. MARX, 1980b, p. 381),
posto que os fatores externos ao trabalho vivo seriam insuficientes para fazê-la
nascer.
O ônus da “conservação e da reconstrução” não recai sobre os ombros de
somente um “trabalhador parcial”, mas sobre toda a força de trabalho social
organizada para a produção. A reprodução é o fruto de um processo coletivo,
marcado aqui e ali pelas invenções individuais, mas sempre testado pela experiência
diária do trabalho que tem o compromisso de aplicá-las e aperfeiçoá-las, quando
não as produz diretamente. Uma obra tão ampla de “diferenciação, especialização e

7
A manufatura surge como a “combinação de diferentes ofícios sob o comando de um mesmo
capital”, ou como ocupação simultânea “na mesma oficina, por parte do mesmo capital, [de] muitos
artesãos que fazem a mesma coisa ou coisas análogas”; por meio da pressão de “circunstâncias
externas”, o trabalho desses últimos é “subdividido [e, posteriormente,] essa subdivisão casual se
repete, manifesta suas vantagens peculiares e, pouco a pouco, se ossifica, se tornando a sistemática
divisão do trabalho” (cf. MARX, 1980b, p. 379-380, grifo nosso). Talvez Marx não tenha entendido a
“seleção natural” (cf. ao menos CHRISTEN, 1982, p. 53-66 e LECOURT, 2007, p. 20), mas essa
passagem, a “seleção cumulativa, onde a “natureza fornece uma série de variações e o homem as faz
convergir nas direções a ele convenientes” (cf. DARWIN, 1994, p. 213), e o aparecimento casual de
uma variação que, revelando-se útil, é selecionada e acumulada, ou seja, transmitida às gerações
futuras por via hereditária (cf. DARWIN, 1994, p. 217-218) propõe uma sequência – “variação casual,
repetição (hábito), seleção, acumulação (ossificação, instituição), transmissão (hereditariedade)” –
que Marx apenas pode ter aprendido com Darwin (cf., por exemplo, DARWIN, 1994, p. 214 e MARX,
1980b, p. 382).

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Marx, Darwin e a “História crítica da tecnologia”

simplificação dos instrumentos de trabalho” corresponde à afirmação do próprio


Darwin “a propósito da especialização e da diferenciação [...] dos órgãos dos seres
vivos” (cf. MARX, 1980a, p. 73-5) e vê indivíduos de todas as espécies e as espécies
enquanto tais envolvidos. Na passagem do trabalhador “individual” para trabalhador
“parcial” está em ação a “acumulação por hereditariedade”:

A manufatura produz a virtuosidade do trabalhador parcial ao


reproduzir, no interior da oficina, a separação original e natural dos
ofícios que encontrou na sociedade, levando-a sistematicamente ao
extremo. Por outro lado, sua transformação do trabalho parcial na
profissão da vida de um homem corresponde ao instinto presente
nas sociedades mais antigas de tornar hereditários os ofícios, de
petrificá-los em castas ou de ossificá-los em corporações, quando
determinadas condições históricas gerarem nos indivíduos uma
variabilidade incompatível com o sistema de castas. As castas e as
corporações derivam da mesma lei natural que regula a divisão das
plantas e dos animais em espécies e subespécies (grifo nosso), com a
única diferença de que, num certo grau de desenvolvimento, a
hereditariedade das castas ou a exclusividade das corporações é
decretada como lei social [...]. É apenas a habilidade particular
acumulada [gehäufte] (grifo nosso) de geração a geração e herdada
de pai para filho que confere ao indiano, assim como à aranha, essa
virtuosidade (MARX, 1980b, p. 382-383).

Embora não citado, Darwin está muito presente (cf. DARWIN, 1994, p. 285-
192
288), mesmo que Marx enfatize que a análise político-econômica deva separar-se de
Darwin, como se a analogia servisse apenas para marcar uma específica diferença,
cujo indicador [spia] se encontra na referência à “lei social”. O conteúdo daquilo que
é hereditário na natureza é decretado como lei somente no mundo humano, onde as
variações, selecionadas, acumuladas e transmitidas pela via hereditária tendem a se
tornar leis, às vezes imperativas, que a sociedade se preocupa em defender,
conservar e reproduzir8. Em “um certo estágio [grado] de desenvolvimento” das
sociedades humanas entra em jogo uma dinâmica política que visa governar a
acumulação por hereditariedade. A sociedade e a política são, no mundo humano,
os fatores que, unidos àqueles naturais e técnicos, determinam a variação, a seleção,
a acumulação e a hereditariedade. Isso demonstra que a política, apesar de ancorada
na estrutura biológica do ser humano, tem leis próprias, o que, todavia, não implica
em sua total autonomia.
Além disso, esses fatores são decisivos na produção da consciência científica
(cf. CORBELLINI, 2013, p. 121), como emerge quando se procura fixar o critério da
produção das variações:

8
Esta é a “imanência”, igualmente ideológica da “transcendência”, porque é a hipostatização de uma
tendência histórica em lei da história.

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[...] não apenas um mesmo tipo de trabalho, ou melhor, não apenas


as diversas fases da produção [lavorazione] [...] se diversificam, [mas
também] se descobre que a facilidade de sua execução depende de
determinadas modificações feitas nas ferramentas, antes
empregadas para usos diversos. A direção rumo a qual a
modificação deve orientar-se fica clara com a experiência e com as
dificuldades particulares apresentadas gradualmente pela forma
ainda não alterada (MARX, 1980a, p. 74).

Uma ideia reafirmada e aprofundada n’O Capital:

A produtividade do trabalho não depende somente da virtuosidade


do trabalhador, mas também da perfeição de suas ferramentas.
Ferramentas da mesma espécie, como aquelas para cortar, perfurar,
pilar, bater, etc., são utilizadas em diversos processos de trabalho, e
no mesmo processo de trabalho a mesma ferramenta serve para
diferentes operações. Porém, assim que as diferentes operações de
um processo de trabalho são dissociadas uma das outras e assim que
cada operação parcial alcança, nas mãos do trabalhador parcial,
uma forma mais adequada possível, e, portanto, exclusiva, torna-se
necessário modificar as ferramentas que antes serviam para fins
diferentes. A direção da mudança da forma da ferramenta é o
resultado da experiência das particulares dificuldades provocadas
pela forma inalterada (MARX, 1980b, p. 384)9.

A passagem de uma forma de produção para a outra envolve a evolução dos 193
instrumentos de trabalho:

A diferenciação dos instrumentos de trabalho, por meio da qual os


instrumentos da mesma espécie recebem formas fixas particulares
para cada uso particular, e sua especialização, que faz com que cada
um desses instrumentos particulares tenha a plena eficácia somente
nas mãos de trabalhadores parciais específicos, caracterizam a
manufatura. Somente em Birmingham são produzidas cerca de
cinquenta variedades de martelos, e cada uma delas não serve
somente para um processo particular de produção, mas
frequentemente servem para diferentes operações dentro do mesmo
processo. O período da manufatura simplifica, aperfeiçoa e
multiplica os instrumentos de trabalho adaptando-os às funções
particulares exclusivas dos trabalhadores parciais: e, assim, ao
mesmo tempo, cria uma das condições materiais das máquinas, que
consiste numa combinação de instrumentos simples (MARX, 1980b,
p. 384-385).

Não somente no mundo humano a variação, seguida pela seleção e pela


acumulação por hereditariedade, acontece através da passagem de uma forma de
produção para outra, mas toda forma tem suas especificidades transferidas e

9
Em seguida, Marx especifica que, na manufatura, as ferramentas, uma vez que tenham alcançado a
“forma adequada”, são “enrijecidas”, sendo transmitidas inalteradamente “por milênios”, enquanto
isso não acontece na fábrica (cf. MARX, 1980b, p. 532-533).

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Marx, Darwin e a “História crítica da tecnologia”

adaptadas, e, assim, conservadas e transformadas: durante a passagem, algumas


formas permanecem, outras sofrem leves adaptações, outras desaparecem e, ainda,
outras nascem pela primeira vez – mas não lamarckianamente, por um finalismo
intrínseco aos objetos. A variação acontece por “diferenciação, especialização e
simplificação”:

Dado que um mesmo órgão deve executar diferentes trabalhos,


talvez possamos encontrar um motivo para sua variabilidade no fato
de que a seleção natural conserva ou suprime cada pequena
variação de forma menos cuidadosa do que seria caso aquele órgão
fosse destinado a um só fim especial. Do mesmo modo, as facas
destinadas a cortar qualquer coisa podem ter, no geral, uma mesma
forma; mas instrumentos destinados a um uso específico devem ter
uma forma diferente para cada uso diferente (MARX, 1980b, p. 384,
n. 31. Cf. também DARWIN, 1994, p. 288).

É por isso que Marx pode afirmar que “a diferenciação, a especialização e a


simplificação dos instrumentos de trabalho possuem a mesma origem na divisão do
trabalho” (MARX, 1980a, p. 74). De acordo com as palavras do segundo livro d’O
Capital: “quando a produção fundada sobre o trabalho assalariado é generalizada
[...] ela condiciona, por sua vez, uma divisão progressiva do trabalho social, isto é,
uma especialização cada vez maior do produto fabricado como mercadoria por um
determinado capitalista, uma cisão crescente dos processos de produção 194
complementares em processos autônomos” (MARX, 1980c, p. 40).
3. O que muda com a “passagem [Übergang]” para a grande indústria, para o
“sistema de fábrica” (cf. MARX, 1980b, p. 505, n. 247)?

Na manufatura, a revolução do modo de produção toma como


ponto de partida a força de trabalho; na grande indústria, o meio de
trabalho. Portanto, devemos, em primeiro lugar, indagar de que
modo o meio de trabalho é transformado de ferramenta em
máquina, ou de que modo a máquina se distingue do instrumento
de trabalho artesanal. Aqui, trata-se somente de grandes traços
característicos gerais, pois nem as épocas geológicas nem as épocas
históricas da sociedade podem ser demarcadas por linhas divisórias
abstratamente rigorosas (MARX, 1980b, p. 413).

Mesmo que a máquina não represente “um momento particular da história da


tecnologia, seu constituir-se como forma técnica da produção constitui [...] o
momento de ruptura” (CAZZANIGA, 2004, p. 2). A diferença entre as máquinas e as
ferramentas do artesão é substancial:

Toda maquinaria desenvolvida consiste em três partes


substancialmente diferentes: a máquina motriz, o mecanismo de
transmissão, e, por fim, a máquina-ferramenta ou máquina de
trabalho. A máquina motriz opera como força motora de todo o
mecanismo. Ela própria gera sua força motora, como a máquina a

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vapor, a máquina calórica, a máquina eletromagnética, etc., ou


recebe o impulso de uma força natural externa, já existente, como a
roda d’água recebe da queda d’água, as pás de um moinho do vento,
etc. O mecanismo de transmissão composto por volantes, eixos de
transmissão, rodas dentadas, polias, hastes, cabos, correias, mancais
e engrenagens dos mais variados tipos, regula o movimento,
modificando, quando necessário, sua forma, por exemplo, de
perpendicular em circular, distribuindo-o e transmitindo-o à
máquina-ferramenta. Essas duas partes do mecanismo apenas
existem para comunicar à máquina-ferramenta o movimento por
meio do qual ela se apodera do objeto de trabalho e o modifica
conforme necessário [...]. É da máquina-ferramenta que nasce a
revolução industrial do século XVIII; e ela continua a constituir o
ponto de partida todas as vezes que uma indústria artesanal ou
manufatureira se converte [trapassa/übergeht] em indústria
mecânica (MARX, 1980b, p. 415, grifo nosso).

A “máquina da qual parte a revolução industrial substitui o trabalhador, que


maneja um instrumento singular, por um mecanismo que opera de uma só vez com
uma massa das mesmas ferramentas ou de ferramentas análogas, e que é posto em
movimento por uma força motriz única, qualquer que possa ser a sua forma” (cf.
MARX, 1980b, p. 418): “questões [que] se tornam importantíssimas quando se trata
de demonstrar a conexão das relações sociais [e] humanas com o desenvolvimento
[dos] modos de produção material”10, porque na revolução industrial “reaparece a 195
cooperação mediante a divisão do trabalho, peculiar da manufatura”, mas

[...] como combinação de máquinas de trabalho parciais. Na


manufatura, os trabalhadores, isolados ou em grupos, devem
executar, com sua ferramenta, cada processo parcial particular. O
trabalhador é adaptado ao processo, mas antes o processo havia sido
adaptado ao trabalhador. Esse princípio subjetivo da divisão do
trabalho desaparece na produção mecanizada. Aqui, o processo
total é considerado objetivamente em si e para si, é analisado em
suas fases constitutivas, e o problema de executar cada processo
parcial e de combinar os diversos processos parciais é solucionado
por meio da aplicação técnica da mecânica, da química, etc;
também nesse caso é óbvio que a concepção teórica deve ser como
sempre aperfeiçoada com a experiência prática acumulada em larga
escala (MARX, 1980b, p. 421-422).

O desaparecimento da dimensão “subjetiva” do trabalho do trabalhador


[lavoro operaio] em benefício daquela “objetiva” do sistema das máquinas significa
que “na manufatura o isolamento dos processos particulares é um princípio dado
pela própria divisão do trabalho; ao contrário, na fábrica desenvolvida predomina a
continuidade dos processos particulares” (MARX, 1980b, p. 423). O “grande

10
Carta de Marx para Engels em 28 de janeiro de 1863 (ENGELS, MARX, 1974a, p. 321).

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Marx, Darwin e a “História crítica da tecnologia”

autômato” (cf. ibid. e MARX, 1993, p. 93-94) produz um salto de qualidade na


produção e nas relações de produção.
A invenção da “máquina a vapor” consentiu a realização de uma seleção no
interior da “maquinaria” que havia sido produzida pela manufatura, criando uma
“nova base” (cf. MARX, 1980b, p. 424-425) a ser reproduzida. De fato, a “máquina a
vapor [...] não provocou nenhuma revolução industrial [...]. Antes, [foi] a criação das
máquinas-ferramentas o que tornou necessário revolucionar a máquina a vapor”:
são essas que transformam o homem em sua “força motriz”, tornando-o substituível
por outras forças naturais, como “o vento, a água, o vapor, etc.” (MARX, 1980b, p.
417; cf. VADÉE, 1998, p. 380-385).
Também aqui o processo darwiniano está presente, pois “a revolução do modo
de produção em uma esfera da indústria porta consigo a revolução do modo de
produção em outras esferas” (MARX, 1980b, p. 426)11; assim, por exemplo, os “meios
de comunicação e de transporte [...], legados pelo período da manufatura, logo se
transformaram em estorvos insuportáveis para a grande indústria” (MARX, 1980b, p.
426), que pouco a pouco criou as condições para sua extinção. Do mesmo modo,

[...] na cooperação simples e também naquela especificada pela


divisão do trabalho, a supressão do trabalhador isolado por parte do
trabalhador socializado ainda aparece como mais ou menos casual.
A maquinaria, com algumas exceções [...], funciona somente com 196
base no trabalho imediatamente socializado, ou seja, no trabalho
em comum. Agora, o caráter cooperativo do processo de trabalho se
transforma em uma necessidade técnica imposta pela natureza do
próprio meio de trabalho (MARX, 1980b, p. 428-429).

A “cooperação [é] a forma fundamental do modo de produção capitalista” (cf.


MARX, 1980b, p. 375-377), mas, se, por um lado, a introdução das máquinas explora
ainda mais o trabalhador e a terra, por outro, esse “sistema das máquinas” deveria
consentir ao trabalhador que trabalhasse menos e que gozasse de uma quantidade
maior, ou ao menos igual, de produtos. Porém, para que isso aconteça, a tecnologia
não pode ser controlada pelos capitalistas, mas deve passar às mãos dos produtores
(trabalhadores e camponeses)12, o que resulta no controle do trabalhador/camponês
das técnicas e das ciências, com sua mobilização para alimentar a todos e reduzir a
carga horária de trabalho.

11
Ver as analogias com a “correlação de crescimento [sviluppo]” darwiniana (cf. DARWIN, 1994, p. 203
e p. 220). As modificações tecnológicas dentro da fábrica repercutem externamente, o que, porém,
não é mero reflexo, como Marx (1993, p. 69) parecia afirmar em uma célebre passagem na Misère de
laphilosophie.
12
“A reforma da agricultura, e, portanto, também essa merda de propriedade sobre a qual ela se
funda, é o alfa e o ômega da futura revolução. Sem isso, o pai Malthus tem razão” (carta de Marx para
Engels em 14 de agosto de 1851, em ENGELS, MARX, 1963, p. 314).

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RAIMONDI, F. / ZORZO, D.

A ordem política “burguesa” (em todas as suas formas) consiste em não


promover as potencialidades oferecidas pelas ciências e pelas técnicas, para curvá-
las e submetê-las aos interesses econômicos do capital. Libertar as ciências e as
técnicas do capital não significa libertar-se delas, nem que, para fazê-lo, seja
suficiente “remover” o capital. As técnicas, subsumidas pelo capital através da
servidão das ciências e dos cientistas, são, assim como a terra e os trabalhadores,
exploradas e, portanto, reduzidas a uma condição muito aquém de sua
potencialidade. Não é possível haver qualquer emancipação humana, animal,
vegetal, ou de nenhuma outra coisa terrestre, em geral, sem que as ciências e as
técnicas se emancipem do capital. Se e quando isso acontecer, as ciências e as
técnicas serão diversas, assim como diverso será o trabalhador libertado da
escravidão do salário: pelo menos não mais em cadeias [quantomeno non più in
catene] (cf. RAIMONDI, 2018).
4. A “história crítica da tecnologia” não é a história da técnica traçada nas
notas (cf. MARX, 1980a, p. 76-171) utilizadas parcialmente n’O Capital, mas algo
diverso. Se a tecnologia, evocada em analogia com aquela “natural” estudada por
Darwin, é a capacidade humana de transformar os critérios da “seleção natural”
através dos critérios de seleção tecnológica, essa não pode referir-se somente as
transformações dos instrumentos de trabalho, porque incorpora também os “órgãos
produtivos do homem social, a base material de toda organização social particular” 197
(MARX, 1980b, p. 414, n. 89).
Convidando a ler nas formas tecnológicas os “segredos de fábrica” (cf. MARX,
1980b, p. 405 ep. 421), as relações sociais a partir das quais é constituída, Marx
sugere que uma “história crítica da tecnologia” não é tampouco uma “história dos
modos de produção em geral”, mas é a história que desvela as dinâmicas políticas
próprias das formas de organização do trabalho, porque cada uma delas porta
consigo uma dimensão social e, assim, uma dimensão política.
A relação entre a técnica e a política é incontornável, pois o desenvolvimento
técnico não é individual, e, sendo fruto da “seleção”, é somente parcialmente
espontâneo ou casual. Se, na manufatura, as operações de trabalho “parciais”,
obtidas pela “decomposição” do processo de trabalho artesanal, se tornam “funções
exclusivas de trabalhadores singulares”, já que “cada trabalhador passa a dedicar-se
exclusivamente a uma função parcial, e sua força de trabalho é transformada em
órgão vitalício dessa função parcial” (MARX, 1980b, p. 381), isso significa que
“apenas algumas das disposições naturais e adquiridas são ‘unilateralmente’
potencializadas” (DE PALMA, 1971, p. 262). Sobre os trabalhadores, “separados,
classificados e reagrupados de acordo com suas qualidades predominantes [...] a
manufatura desenvolve uma hierarquia das forças de trabalho, à qual corresponde
uma escala de salários” (Cf. MARX, 1980b, p. 392-394). Desse modo, as “leis técnicas
que levam à decomposição e à recomposição do trabalho são impostas ao

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Marx, Darwin e a “História crítica da tecnologia”

trabalhador como plano autoritário”, dado que a “especialização das funções


acrescenta a coação sobre o trabalhador para vender a própria força de trabalho”, e,
assim, “não somente [ele] deve subordinar-se à direção autoritária porque não
possui os meios de trabalho, mas é obrigado a fazê-lo porque perdeu a capacidade
de exercitar um oficio completo” (cf. DE PALMA, 1971, p 267-268). Marx conclui,
referindo-se a um juízo seu sobre Darwin13, que

[...] a divisão do trabalho de tipo manufatureiro pressupõe a


autoridade incondicional do capitalista sobre os homens, que
constituem meras engrenagens de um mecanismo total que a ele
pertence; a divisão social do trabalho confronta os produtores
independentes de mercadorias uns com os outros, que não
reconhecem outra autoridade senão aquela da concorrência, isto é,
da coerção que é exercida sobre eles pela pressão de seus interesses
recíprocos; como no reino animal, o bellumomnium contra omnes
[guerra de todos contra todos] mais ou menos preserva as condições
de existência de todas as espécies (MARX, 1980b, p. 399).

Um discurso análogo, mutatis mutandis, pode ser feito sobre a grande


indústria, porque “reaparece a cooperação mediante a divisão do trabalho, peculiar
da manufatura: [...] mas como combinação de máquinas de trabalho parciais”
(MARX, 1980b, p. 421-422): “a grande indústria elimina tecnicamente a divisão do
trabalho de tipo manufatureiro [...], enquanto que, ao mesmo tempo, a forma 198
capitalista da grande indústria reproduz de maneira ainda mais monstruosa aquela
divisão do trabalho, na fábrica propriamente dita, mediante a transformação do
trabalhador em acessório ciente e consciente de uma máquina parcial” (MARX,
1980b, p. 530-531). A “história crítica da tecnologia” também não é a “ciência da
tecnologia [Wissenschaft der Technologie]”, que estuda os problemas ligados à
aplicação das máquinas no processo produtivo da fábrica (cf. MARX, 1980b, p. 533);
portanto, a tecnologia não coincide totalmente com as “forças produtivas” (como, ao
contrário, afirma ADLER, 1990, p. 789)14.
Sem repercorrer a análise marxiana (cf. DE PALMA, 1971, p. 269-295 e
FALLOT, 1971, p. 146-158), eu gostaria de me concentrar sobre a questão do
comando, pois a “fábrica moderna, que se funda sobre o emprego das máquinas, é
uma relação social de produção, uma categoria econômica” (MARX, 1993, p. 88e
MARX, 1980b, cap. 13, §§ 4-9). A mecanização da produção exige uma maior
coordenação nos movimentos trabalhador-máquina, e, portanto, um grau mais
elevado de subordinação do trabalhador ao ritmo da máquina e uma direção mais
rigorosa (e científica) da integração entre o trabalhador e a máquina; além disso,
essa produção exige um particular tipo de direção da fábrica, visto que gera a “a

13
Cf. carta de Marx para Engels em 18 de junho de 1862 (ENGELS, MARX, 1974a, p. 249) e para Laura
e Paul Lafargue em 15 de fevereiro de 1869 (ENGELS, MARX, 1974b, p. 592).
14
E muitos outros marxistas (cf. MACKENZIE, 1984, p. 474-477), seguidos pelos defensores do assim
chamado “determinismo tecnológico” (cf. MARX, SMITH, 1994 e SHAW, 1979).

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RAIMONDI, F. / ZORZO, D.

tendência à equiparação, ou seja, ao nivelamento dos trabalhos que os auxiliares da


maquinaria devem executar” (MARX, 1980b, p. 464).
O fato de os trabalhadores serem intercambiáveis (com a única diferença está
relacionada à “idade e ao sexo”: cf. ibid.), produz: a) uma “disciplina de caserna, que
se aperfeiçoa e se torna um regime de fábrica”; disciplina que encontra no “código
da fábrica, onde o capital, como um legislador privado e arbitrariamente, formula
sua autocracia”, o seu cumprimento lógico, prescindindo da “divisão de poderes tão
prezada pela burguesia e de seu ainda mais prezado sistema representativo” (cf.
MARX, 1980b, p. 468-9); b) uma confusão entre a “organização do processo de
trabalho [e] as relações sociais da cooperação” (DE PALMA, 1971, p. 284), entre as
formas de organização da cooperação e suas formas político-sociais. Enquanto as
primeiras fazem referência à “aplicação da maquinaria em larga escala”, as últimas,
onde o “registro” substituiu o “chicote [frusta]” (cf. MARX, 1980b, p. 469), indicam a
“aplicação capitalista” (cf. MARX, 1980b, p. 464), uma vez que a forma política
imposta pelo capital (cf. MARX, 1980b, p. 267 e MARX, 1980d, p. 932) à gestão da
cooperação da fábrica não é a única possível, ainda que tenha sido necessário
“tempo e experiência até que o trabalhador aprendesse a distinguir as máquinas de
seu uso capitalista, e, assim, transferir seus ataques, antes dirigidos contra o meio
material de produção, à forma social de exploração desse meio” (cf. MARX, 1980b, p.
473); essa afirmação é apoiada pela consideração de que “como a força de trabalho 199
humana, por natureza, não é capital, tampouco são os meios de produção” (MARX,
1980c, p. 42). Os trabalhadores não deveriam recorrer a atos de ludismo
[luddistici]**, mas de reapropriação das máquinas e de sua gestão de forma coletiva,
porque são

[...] os meios materiais e o embrião de relações que tornam possível,


em uma forma mais elevada de sociedade, combinar [o] mais-
trabalho a uma maior redução do tempo dedicado ao trabalho
material [...]. A liberdade [...] consiste somente no fato de o homem
socializado, isto é, os produtores associados, regularem
racionalmente esse seu metabolismo [ricambio] orgânico com a
natureza, submetendo-o sob seu controle coletivo, ao invés de
serem dominados por ele como uma força cega; que eles realizem
seu compromisso com o menor emprego de energia possível e nas
condições mais adequadas e conformes com sua na natureza
humana [...]. A condição fundamental de tudo isso é a redução da
jornada de trabalho (MARX, 1980d, p. 932-3).

**
Luddismo: movimento de trabalhadores originado na Grã-Bretanha por volta de 1810, que possuía o
objetivo de sabotar o maquinário introduzido nas indústrias, que era considerado como a causa do
desemprego e dos baixos salários (N. do. T).

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Marx, Darwin e a “História crítica da tecnologia”

As máquinas representam uma oportunidade [chance] a longo prazo15, pois sua


gestão coletiva abolirá a exploração através de uma relação inversamente
proporcional entre as horas da jornada de trabalho e a produtividade. Somente na
“cooperação planificada [planmäßigenZusammenwirken] com os outros que o
trabalhador supera seus limites individuais e desenvolve a capacidade de sua espécie
[Gattungsvermögen]” (MARX, 1980b, p. 371).
As máquinas são forças produtivas que transmitem precisas relações de
produção, determinadas por sua produção e pela organização do trabalho na grande
indústria. A disciplina de fábrica é intrinsecamente política porque é tecnológica. É
a política, impregnada pelas relações tecnológicas de produção na fábrica, que Marx
elege como objeto de investigação de uma “história crítica da tecnologia”. A
“acumulação por hereditariedade” também transmite variações políticas, além das
especificidades e das variações tecnológicas obtidas por um certo modo de
produção.
5. Dessa forma, a “história crítica da tecnologia” não pode ser nem mesmo uma
“história da tecnologia industrial [historyof industrial technology]” (COHEN, 2004,
p. 99), mas somente uma história política (da classe trabalhadora) da tecnologia;
uma história que é “crítica” porque desvela as relações do homem com a “natureza”
e “o processo imediato de produção de sua vida, [isto é], de suas relações sociais
vitais e das ideais do intelecto” (MARX, 1980b, p. 414, n. 89). Uma história política 200
(crítica, uma vez que é trabalhadores) da organização técnica, ou seja, social, do
trabalho na fábrica. Não uma história do management, sequer uma história política
do management, mas uma história política da classe trabalhadora do management,
que destaque o “nexo entre o elemento ‘tecnológico’ e aquele organizativo-político
(de poder) no processo de produção capitalista, [porque] o nível de classe se
exprime [...] como construção de uma racionalidade completamente nova e
contraposta à racionalidade praticada pelo capitalismo” que seja capaz de “gerir o
poder político e econômico da empresa [impresa], e, através dela, da sociedade” (cf.
PANZIERI, 1961, p. 60, grifo nosso). Trata-se de expor um ponto de vista do
trabalhador, do qual possa nascer, mesmo no assujeitamento [assoggettamento],
uma prática de subjetivação autônoma.
Uma história da inter-relação entre o plano das técnicas e o plano tecnológico-
político que criticamente se concentre (do ponto de vista político do trabalhador)
na relação entre a formação, o desenvolvimento e o funcionamento das forças
produtivas, e seu caráter político [politicità] (as relações de produção) no modo de
produção capitalista. Uma análise que evidencie como as transformações no nível

15
No curto prazo, o maquinismo capitalista é devastador (cf. MARX, 1970, p. 387-94; MARX, 2002, p.
77-78) e de nada serve as barreiras educativas e legislativas (cf. MARX, 1980b, p. 437-462, p. 533-537
ep. 549), mas a longo prazo a situação pode mudar (MARX, 1970, p. 394-395 e p. 401-402). Sobre isso,
cf. também RAIMONDI, 2018.

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RAIMONDI, F. / ZORZO, D.

das forças produtivas repercutem nas relações de produção e vice-versa, mas,


também, como os meios de produção trazem, em si, precisas relações de produção,
somente parcialmente impostos e geridos por aqueles que as utilizam.
Não se trata de considerar a técnica como um conjunto jamais neutro de
ferramentas e relações de produção, necessariamente desequilibrada a favor dos
proprietários dos meios de produção, mas de que as técnicas não podem ser neutras,
pois, estruturalmente implicam relações de produção que podem ser hierárquicas
ou igualitárias: e isso depende, antes de tudo, de sua natureza. Sua neutralidade é
sempre parcial, porque, por um lado, permite relações de produção que beneficiem
certa classe, embora, por outro, se abre para diversas possibilidades de evolução.
Uma política dos trabalhadores deve estimular a evolução das técnicas em uma
direção congruente com os próprios interesses da classe. As forças produtivas são
intimamente marcadas pelas relações de produção, que não são ou efeitos, ou as
consequências externas, nem, sequer, se encontram em seu exterior, porque são
aquilo que realmente as estrutura.

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Submissão: 01.10.2018 / Aceite: 30.11.2018

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