A Paixao Da Fe Na Filosofia Da Religiao
A Paixao Da Fe Na Filosofia Da Religiao
A Paixao Da Fe Na Filosofia Da Religiao
INTRODUÇÃO
O presente trabalho tem como objetivo analisar a essência da fé, como paixão, na
filosofia de Søren Kierkegaard. O artigo, aqui apresentado, tem como fonte inspiradora a
temática da pesquisa que está sendo desenvolvida no mestrado em Ciências da Religião na
Universidade Católica de Pernambuco – UNICAP. Pretende-se, inicialmente, apresentar o
contexto filosófico e religioso em que está situado o pensamento e a obra do autor. Em
seguida faremos uma breve apresentação das principais ideias do sistema hegeliano, mais
especificamente a questão do indivíduo e da fé, como base para descrever a crítica
Kierkegaardiana ao racionalismo, especificamente representado no sistema hegeliano, e
por fim, analisar a concepção da fé enquanto relação existencial do indivíduo com o
cristianismo no tornar-se cristão (questão central do pensamento/obra do autor),
compreendido em pressupostos conceituais (a subjetividade, a categoria do absurdo e o
conceito correlato de paradoxo) apresentados no livro Temor e Tremor.
Em Kierkegaard, a compreensão fenomenológica da religião como experiência vivida
é questão central em todo sua obra, cuja a questão da fé está envolvida na relação
existencial do indivíduo (interioridade) diante de Deus. Busca-se, a partir da leitura de
Kierkegaard refletir sobre o sentido e o significado da fé cristã na contemporaneidade.
Julgamos que a reflexão sobre a sua concepção da fé cristã apresenta-se enriquecedora
para a compreensão do cristianismo nos dias atuais. A sua crítica à cristandade nos faz
refletir sobre o sentido e significado do cristianismo hoje. A leitura de Kierkegaard
possibilita o resgate de conceitos fundamentais para compreensão do cristianismo,
“reencontrar e desenterrar aqueles conceitos em sua originalidade/primitividade, e em
trazer à luz do dia aspectos essenciais dos conceitos fundamentais do cristianismo”3. E,
como afirma Zizek4 (2015) “o legado cristão autêntico é precioso demais para ser deixado
aos fanáticos fundamentalistas”.5
A fé é a mais alta paixão de todo homem. Talvez haja muitos homens de cada
geração que não a alcancem, mas nenhum vai além dela. Se se encontram ou não
muitos homens do nosso tempo que não a descobrem, não posso decidi-lo, porque
apenas me é lícita a referência a mim próprio, e não devo ocultar que me resta
ainda muito que fazer, sem por isso desejar trair-me, ou trair a grandeza, reduzindo
isto a um assunto sem importância, a uma doença infantil, de que se espera estar
curado o mais depressa possível6.
6
KIERKEGAARD, 1979, p.185
7 RICOUER, apud PAULA 2009, p.29.
Apesar das controvérsias decorrentes de seu estilo literário, ou, a variação de gêneros
literários (textos filosóficos, poéticos, teológicos), Kierkegaard é declaradamente um
pensador cristão: “[...] eu sou e fui um autor religioso [...] a totalidade do meu trabalho
como autor está relacionado ao cristianismo, ao problema do ‘tornar-se cristão’”9 Defende
um cristianismo ‘dirigido para a pessoa’, enfatizando a relação direta do indivíduo com
Deus. É somente na interioridade que o indivíduo, na sua singularidade existencial, se
coloca diante de Deus, no confronto (‘ofensa’) com o ‘paradoxo absoluto’ da encarnação
(Deus-homem em Cristo), que a fé é possível, que alguém pode ‘tornar-se cristão’. É a
partir dessa perspectiva, que delineia o sentido da escolha existencial da fé cristã.
O PROBLEMA RAZÃO E FÉ
8 ROOS, Jonas. Filosofia da Religião em Kierkegaard depois do anúncio da morte de Deus. Revista
de Filosofia Moderna e Contemporânea. Brasília, vol 2, nº1, 2014.
9 KIERKEGAARD, apud, GOUVÊA, 2000, p.90
10 Cf. No livro Temor e Tremor Kierkegaard apresenta a ideia da ‘fé em virtude do absurdo’, a partir
da reflexão sobre a passagem bíblica, em que DEUS solicita a Abraão o sacrifício de seu filho Isaac.
11 A questão do “si mesmo” é uma questão fundante do pensamento kierkegaardiano, como
A PAIXÃO DA FÉ
Mas, na interioridade do indivíduo que tem fé, não há ‘um salto no escuro’:
“Quando o crente tem fé, o absurdo não é o absurdo... a fé o transforma... A paixão da fé...
subjuga o absurdo - se não, a fé é apenas um tipo de conhecimento.”16 A crítica de
Kierkegaard à cristandade dinamarquesa, de sua época, se atualiza, em nossos dias,
quando o cristianismo formal, institucional, não expressa uma vivência interior e, nem de
longe, provoca no indivíduo algum conflito interior, ao contrário, faz parecer muito
simples ser cristão. Para o autor aqui referido, ser cristão é uma escolha existencial, um
movimento que se dá na interioridade do indivíduo, como processo profundo de
transformação da consciência.
O último estágio da vida do filósofo foi marcado por escritos polêmicos contra a
Igreja Estatal da Dinamarca. A sua crítica à cristandade refere-se ao fato da Igreja não
admitir suas falhas e, ainda assim, se proclamar representante do cristianismo. Para o
nosso autor, “o cristianismo primitivo representava uma revolução espiritual que desafiou
o status quo e tinha, portanto, sido uma ofensa a toda complacência. Mas a igreja
contemporânea era o próprio símbolo da afetação burguesa satisfeita consigo mesma”17.
Kierkegaard propõe reconduzir a cristandade ao cristianismo genuíno:
Na cristandade, afirmou Kierkegaard, será necessário um missionário para
uma segunda vez tornar cristãos em cristãos. Não é a categoria do
missionário que lida com os pagãos, para os quais proclama o cristianismo
pela primeira vez, mas é a categoria do missionário dentro da cristandade,
visando introduzir o cristianismo na cristandade18.
Para ele, é só na paixão da fé que alguém pode tornar-se cristão. É nessa perspectiva
a sua crítica à cristandade - a exigência do movimento interior, existencial do indivíduo,
que, na sua singularidade, reconhece os limites da razão e escolhe/acolhe o mistério da fé -
, no sentido de instigar a reflexão sobre o sentido e significado do cristianismo; a exigência
do aprofundamento da consciência:
CONSIDERAÇÕES FINAIS
17
GOUVÊA, 2000, p.41
18
KIERKEGAARD, apud GOUVÊA, 2000. p.43-44
19 KIERKEGAARD, Søren A. As obras do amor; apresentação e tradução, Álvaro L. M. Valls; revisão
da tradução, Else Hagelund. Bragança Paulista: Editora Universistária São Paulo; Petrópolis:
Vozes, 2005. p.175 - 181.
20 GOUVÊA, Ricardo Quadros. Paixão pelo Paradoxo. Uma Introdução a Kierkegaard. São Paulo:
Com a desconstrução da estrutura metafísica do real, a religião terá que ser pensada
a partir de um novo paradigma: “O paradigma de tal repensar a religião, contudo, não será
encontrado fora do cristianismo, mas numa releitura de suas narrativas fundamentais” 22.
A sugestão nos parece bem acertada, considerando que “Kierkegaard pensa o cristianismo
não como um conjunto de certezas metafísicas, mas como uma possibilidade de construção
de sentido”23.
Vivenciamos, hoje, um movimento pós-secularização; de efervescência no campo
religioso, de ressurgimento do sagrado. O processo de individualização e globalização
produziu uma pluralidade ou diversidade religiosa; de um lado, a desfiliação religiosa, o
enfraquecimento da religião institucionalizada. De outro lado, há uma tendência de
crescimento da religião cristã, particularmente, das igrejas cristãs evangélicas, pentecostais
(neopentecostais)24. Esse crescimento é marcado pela politização no campo religioso, pelo
fundamentalismo e intolerância de diversos seguimentos religiosos. Intensificado,
também, por um mercado religioso da fé, do ‘evangelho da prosperidade’; por uma adesão
religiosa sem profundidade.
O quanto deslocado do nosso tempo está Kierkegaard, tanto quanto o foi na
cristandade do seu tempo; e isso, na verdade, o atualiza.
Kierkegaard nos desafia ao aprofundamento da consciência; a reflexão sobre nossas
escolhas, adesões, crenças, identidade. Contra o comodismo e a superficialidade da
cristandade, ironicamente, socraticamente, problematiza o cristianismo; e sua intenção é
torná-lo ainda mais difícil... É somente a paixão da fé que responde a questão do ‘tornar-se
cristão’. A filosofia de Kierkegaard nos apresenta uma riqueza de elementos para reflexão,
sinalizando direções para a discussão sobre alteridade e fé cristã na contemporaneidade.
REFERÊNCIAS
ABBAGNANO, Nicola. Dicionário de Filosofia. 2. ed. Trad. E rev. de Alfredo Bosi. São
Paulo: Mestre Jou, 1982.
22Idem, p.46.
23Idem, p.46.
24 Cf. Religiões em movimento: o Censo de 2010. Faustino Teixeira, Renata Menezes (orgs) -
ARBEX JÚNIOR, José; TOGNOLI, Cláudio Júlio. Mundo Pós-moderno. São Paulo:
Scipione, 1996.
JUNG, Carl Gustav. Presente e futuro. Trad. Márcia de Sá Cavalcante. 6. Ed. Petrópolis,
Vozes, 2011.
______. O Desespero Humano. Trad. Alex Marins. Editora Martin Claret. São Paulo,
2001.
SINGER, Peter. Hegel. Trad. Luciana Pudenzi. Edições Loyola. São Paulo, 2003.
ZIZEK, Slavoj. O absoluto frágil, ou Por que vale a pena lutar pelo legado
cristão? Trad. Rogério Bettoni. – 1. Ed. – São Paulo: Boitempo,2015.