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A Paixao Da Fe Na Filosofia Da Religiao

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A PAIXÃO DA FÉ NA FILOSOFIA DA RELIGIÃO DE SØREN


KIERKEGAARD
Rosana Delane Campelo1
José Tadeu Batista de Souza2

RESUMO: O pensamento de Kierkegaard está inserido no contexto da crítica filosófica da religião


iniciada com Hegel. Kierkegaard se opõe à perspectiva da Filosofia da Religião de Hegel de redução
do cristianismo a um sistema dominado pela lógica, bem como da junção entre religião e filosofia,
em que a especulação filosófica justifica e explica racionalmente a fé. O problema da relação entre a
razão e a fé é o ponto de partida da defesa da fé como paixão. No livro Temor e Tremor,
Kierkegaard analisa a essência da fé cristã na passagem bíblica da história do sacrifício de Isaac,
solicitado por Deus à Abraão, em Gêneses 22. A fé é compreendida como dimensão da
subjetividade e, para Kierkegaard, a ‘subjetividade é a verdade’. Verdade que é apropriada na
interioridade e que precisa fazer sentido na vida do indivíduo. É a partir dessa ênfase na
interioridade, que o filósofo estabelece a discussão sobre a autenticidade e fundamenta a sua crítica
à cristandade. A perspectiva do presente trabalho é esboçar a essência da fé cristã em Kierkegaard,
a paixão da fé, para o aprofundamento da reflexão sobre o significado do cristianismo e do ser
cristão hoje - diante da confusão e crise de valores da sociedade contemporânea, do mercantilismo
religioso da fé cristã, das incoerências do fundamentalismo e intolerância religiosa -, apontando
direções para a discussão sobre alteridade e fé cristã na contemporaneidade.

PALAVRAS-CHAVE: Filosofia, cristianismo, fé.

ABSTRACT: Kierkegaard’s thinking is placed in the context of the philosophical critique of


religion, which started with Hegel. Kierkegaard is opposed to the perspective of Hegel’s Philosophy
of Religion, reducing Christianity to a system dominated by logic, as well as the union between
religion and philosophy, where philosophical speculation justifies and explains faith in a rational
manner. The problem of the relationship between reason and faith is the starting point for the
defence of faith as passion. In the book Fear and Trembling, Kierkegaard analyses the essence of
the Christian faith in the biblical passage of the sacrifice of Isaac, asked by God to Abraham, in
Genesis 22. Faith is understood as a dimension of subjectivity and, for Kierkegaard, 'subjectivity is
truth'. Such truth is appropriate in interiority and must make sense in the individual's life. It is
from this emphasis on interiority that the philosopher establishes the discussion of authenticity
and its criticism of Christianity. The objective of this paper is to outline the essence of the Christian
faith in Kierkegaard, the passion of faith, to deepen the reflection on the meaning of Christianity
and being a Christian today – in face of the confusion and crisis of values in contemporary society,
the religious mercantilism of the Christian faith, the inconsistencies of fundamentalism and
religious intolerance – giving directions to the discussion of otherness and Christian faith
nowadays.

KEYWORDS: Philosophy, Christianity, faith.

1 Mestranda no Programa de Ciências da Religião na Universidade Católica de Pernambuco;


graduada em Filosofia pela Universidade Federal de Pernambuco; graduada em Ciências Sociais
pela Universidade Católica de Pernambuco. E-mail: rosanadcampelo@hotmail.com.
2 Dr. em filosofia. Prof. do programa de pós-Graduação em Ciências da Religião e do curso de

Filosofia da Universidade Católica de Pernambuco. E-mail: tadeu@unicap.br.

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INTRODUÇÃO

O presente trabalho tem como objetivo analisar a essência da fé, como paixão, na
filosofia de Søren Kierkegaard. O artigo, aqui apresentado, tem como fonte inspiradora a
temática da pesquisa que está sendo desenvolvida no mestrado em Ciências da Religião na
Universidade Católica de Pernambuco – UNICAP. Pretende-se, inicialmente, apresentar o
contexto filosófico e religioso em que está situado o pensamento e a obra do autor. Em
seguida faremos uma breve apresentação das principais ideias do sistema hegeliano, mais
especificamente a questão do indivíduo e da fé, como base para descrever a crítica
Kierkegaardiana ao racionalismo, especificamente representado no sistema hegeliano, e
por fim, analisar a concepção da fé enquanto relação existencial do indivíduo com o
cristianismo no tornar-se cristão (questão central do pensamento/obra do autor),
compreendido em pressupostos conceituais (a subjetividade, a categoria do absurdo e o
conceito correlato de paradoxo) apresentados no livro Temor e Tremor.
Em Kierkegaard, a compreensão fenomenológica da religião como experiência vivida
é questão central em todo sua obra, cuja a questão da fé está envolvida na relação
existencial do indivíduo (interioridade) diante de Deus. Busca-se, a partir da leitura de
Kierkegaard refletir sobre o sentido e o significado da fé cristã na contemporaneidade.
Julgamos que a reflexão sobre a sua concepção da fé cristã apresenta-se enriquecedora
para a compreensão do cristianismo nos dias atuais. A sua crítica à cristandade nos faz
refletir sobre o sentido e significado do cristianismo hoje. A leitura de Kierkegaard
possibilita o resgate de conceitos fundamentais para compreensão do cristianismo,
“reencontrar e desenterrar aqueles conceitos em sua originalidade/primitividade, e em
trazer à luz do dia aspectos essenciais dos conceitos fundamentais do cristianismo”3. E,
como afirma Zizek4 (2015) “o legado cristão autêntico é precioso demais para ser deixado
aos fanáticos fundamentalistas”.5

A EMERGÊNCIA DO PENSAMENTO DE KIERKEGAARD

3 VALLS, Alvaro L. M. A narrativa de Deus na sociedade pós-tudo: a estratégia irônica de


Kierkegaard. p.21
4
ZIZEK, 2015.
5 ŽIŽEK, 2015, p.27.

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A fé é a mais alta paixão de todo homem. Talvez haja muitos homens de cada
geração que não a alcancem, mas nenhum vai além dela. Se se encontram ou não
muitos homens do nosso tempo que não a descobrem, não posso decidi-lo, porque
apenas me é lícita a referência a mim próprio, e não devo ocultar que me resta
ainda muito que fazer, sem por isso desejar trair-me, ou trair a grandeza, reduzindo
isto a um assunto sem importância, a uma doença infantil, de que se espera estar
curado o mais depressa possível6.

A filosofia de Søren Kierkegaard foi elaborada em profundo processo de


autoconhecimento, no enfrentamento de sua própria experiência existencial, suas
intuições, melancolia e angústia. Nessa vivência de sua própria interioridade como
conflito, elabora sua concepção do indivíduo e a afirmação da autenticidade como
referência para o sentido do tornar-se cristão. O seu pensamento está inserido no contexto
da crítica filosófica da religião iniciada com Hegel. Kierkegaard se opõe à perspectiva da
Filosofia da Religião de Hegel de redução do cristianismo a um sistema dominado pela
lógica, bem como da junção entre religião e filosofia, em que a especulação filosófica
justifica e explica racionalmente a fé. O problema da relação entre razão e fé é o ponto de
partida da defesa da fé como paixão.
Pensamos que Kierkegaard deve ser compreendido a partir de Hegel. Pois, como
afirma Ricoeur: “Hegel não é apenas um traço biográfico, um encontro fortuito, mas uma
estrutura constitutiva do seu pensamento”.7 Não pretendemos aqui analisar a filosofia de
Hegel, nem abarcar toda a filosofia de Kierkegaard. Limitaremo-nos a apresentar algumas
contraposições de Kierkegaard ao sistema hegeliano no que se refere à questão da fé e do
indivíduo, já que Kierkegaard elabora a sua concepção da fé cristã a partir das categorias
do absurdo e do conceito de paradoxo como defesa e alternativa ao racionalismo hegeliano.
Ele manifesta sua oposição à toda tentativa de sistematização, segundo o modelo
hegeliano, de explicação e justificação lógica da fé.
Nessa perspectiva, também é importante, refletir sobre o sentido e significado da fé
cristã na contemporaneidade a partir da sugestão de Roos. Segundo Jonas Roos, a
interpretação de Gianni Vattimo do anúncio da morte de Deus em Nietzsche (o que
significa o fim do modo tipicamente metafísico de pensar) em Depois da cristandade,
propõe uma reflexão da retomada da religião a partir de uma nova perspectiva do

6
KIERKEGAARD, 1979, p.185
7 RICOUER, apud PAULA 2009, p.29.

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cristianismo, e essa nova possibilidade do religioso encontra algumas sinalizações no


pensamento de Kierkegaard8.
Quanto a estrutura do trabalho, inicialmente apresentaremos o contexto filosófico e
religioso em que está situado a filosofia da religião de Kierkegaard. Em seguida, faremos
uma breve apresentação do sistema hegeliano, especificamente a questão da fé e a questão
do indivíduo no sistema hegeliano, como base para a elaboração da crítica de Kierkegaard
ao sistema hegeliano. E, por fim, analisaremos a concepção da fé cristã de Kierkegaard, a
partir da categoria do absurdo e do conceito correlato de paradoxo, do problema da relação
entre razão e fé, modelo da vida de fé ‘em virtude do absurdo’ (do paradoxo) e da ideia do
‘duplo movimento’ da fé, e a relação existencial da interioridade do indivíduo diante do
Paradoxo Absoluto (a Encarnação do Deus-homem) que envolve o sentido do tornar-se
cristão, cerne/ ‘coração’ do pensamento e obra do nosso autor.

SØREN KIERKEGAARD (1813-1855), UM PENSADOR CRISTÃO.

Apesar das controvérsias decorrentes de seu estilo literário, ou, a variação de gêneros
literários (textos filosóficos, poéticos, teológicos), Kierkegaard é declaradamente um
pensador cristão: “[...] eu sou e fui um autor religioso [...] a totalidade do meu trabalho
como autor está relacionado ao cristianismo, ao problema do ‘tornar-se cristão’”9 Defende
um cristianismo ‘dirigido para a pessoa’, enfatizando a relação direta do indivíduo com
Deus. É somente na interioridade que o indivíduo, na sua singularidade existencial, se
coloca diante de Deus, no confronto (‘ofensa’) com o ‘paradoxo absoluto’ da encarnação
(Deus-homem em Cristo), que a fé é possível, que alguém pode ‘tornar-se cristão’. É a
partir dessa perspectiva, que delineia o sentido da escolha existencial da fé cristã.

O PROBLEMA RAZÃO E FÉ

Para Kierkegaard, a verdade da mensagem revelada é, em última instância, mistério.


Paradoxo que não pode ser resolvido, como pretendem os sistemas filosóficos,
especificamente o hegeliano e os apologistas cristãos. Por isso, “a fé em virtude do

8 ROOS, Jonas. Filosofia da Religião em Kierkegaard depois do anúncio da morte de Deus. Revista
de Filosofia Moderna e Contemporânea. Brasília, vol 2, nº1, 2014.
9 KIERKEGAARD, apud, GOUVÊA, 2000, p.90

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absurdo”10, o movimento da paixão da fé. A fé é, nesse sentido, uma verdade


subjetivamente apropriada pelo indivíduo.
Kierkegaard não se propõe estabelecer um sistema de pensamento. Contrariamente
ao ‘espírito sistemático racionalista’ de sua época, faz uma crítica aos apologistas cristãos e
às tentativas dos sistemas filosóficos, em particular o hegeliano, em explicar, justificar e
resolver questões que escapam a lógica racionalista. Para Kierkegaard, a filosofia da sua
época (século XIX) não estava preocupada com a existência humana, com o indivíduo e
suas circunstâncias. Ele compreende que o sofrimento humano, a angústia, o desespero e o
caminho solitário para alcançar a autêntica liberdade, na fé, são possibilidades
existenciais.
A sua teoria dos três estádios (o estético, o ético e o religioso), refere-se ao percurso
existencial e espiritual do indivíduo, como um processo de individuação11, ou ainda, ao
desenvolvimento do si mesmo. A teoria dos três estádios não é a definição de um processo
linear, em que um processo exclui, necessariamente, o anterior, num determinismo
existencial, mas, são possibilidades de experiência existencial; um modo de vida que pode
ser superado por outro e, também, estar em processo de constituição. O filósofo aborda em
suas reflexões as condições ou possibilidades da existência humana, especificamente, a
questão da consciência, do “si mesmo”, da interioridade, da relação do ser humano com o
mundo e com Deus.

10 Cf. No livro Temor e Tremor Kierkegaard apresenta a ideia da ‘fé em virtude do absurdo’, a partir
da reflexão sobre a passagem bíblica, em que DEUS solicita a Abraão o sacrifício de seu filho Isaac.
11 A questão do “si mesmo” é uma questão fundante do pensamento kierkegaardiano, como

“autentica contemplação antropológica” ou, em outros termos, uma “fenomenologia da


constituição do eu”. O termo Individuação, utilizado por C. G. Jung, significa a realização do si-
mesmo. Jung afirma que “a consciência é uma condição do ser [...] o portador dessa consciência é o
indivíduo [...] a psique individual, em função da sua individualidade, representa uma exceção à
regra estatística, sempre esquecida da observação científica [...] a psique individual só encontra
aceitação e validade nas confissões e igrejas quando adere um dogma, ou seja, quando aceita uma
categoria coletiva. Em ambos os casos, o desejo de individualidade é sempre entendido como um
subjetivismo egoísta. A ciência desvaloriza esse desejo como uma questão da subjetividade e as
confissões o qualificam de heresia moral e soberba do espírito. Interessante é que o cristianismo,
ao contrário das outras religiões, ensina o sentido de um símbolo que tem por conteúdo justamente
a conduta individual da vida de um homem, o filho de Deus, que entende a si mesmo como
processo de individuação e mesmo de encarnação e revelação de Deus. Dessa forma, a realização do
si-mesmo adquire um significado cujas implicações ainda não foram devidamente aquilatadas.
Contudo, se a autonomia não fosse a nostalgia secreta de muitos, talvez o indivíduo não tivesse
condições de sobreviver moral e espiritualmente à repressão coletiva” (JUNG, 2011, p.33-34).

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Para Kierkegaard a relação do indivíduo com o mundo estaria envolvida e dominada


pela angústia, como parte determinante da condição humana. A partir dessa situação
existencial, marcada pela angústia e desespero, o indivíduo tem como alternativa a relação
com Deus. Mas essa última possibilidade só pode ser realizada através da fé, que é
paradoxo, “a fé em virtude do absurdo”, ou seja, ter de compreender pela fé o que é
incompreensível pela razão.
Nesse sentido, a ênfase do filósofo dinamarquês na introspecção, na interioridade, na
defesa da primazia da particularidade sobre a universalidade, é uma oposição ao sistema
filosófico hegeliano. Para Kierkegaard, a verdade é apropriada pela subjetividade, só é
verdade porque é apropriada pelo indivíduo, porque responde a um dilema existencial, é
uma verdade que faz sentido para ele, como individualidade. A verdade não é uma
abstração, como pensou Hegel. É uma verdade existencial. Por isso, o indivíduo não deve
ser considerado como uma categoria universal, mas na singularidade de sua existência.

Mediante o posto, ele se opõe à perspectiva da Filosofia da Religião de Hegel. Pois,


para Hegel, a religião é uma forma rudimentar de compreensão racional da verdade
metafísica12. A religião é um modo representativo da consciência; é a revelação do Espírito
a si mesmo no nível de representação. A filosofia é um estágio superior, que expressa o
mesmo conteúdo que a religião de uma forma mais elevada. No entendimento de
Kierkegaard, o sistema de Hegel compromete o significado e sentido do cristianismo. Ele
se opõe à especulação dialética da mediação, pois a separação absoluta entre Deus e a
natureza, entre o eterno e o temporal entre o finito e o infinito, são oposições absolutas,
cuja mediação é possível pela relação íntima da fé, pela revelação de Deus no tempo 13. E
essa revelação é, para o filósofo dinamarquês, mistério, paradoxo que a razão não consegue
penetrar. Esse é o ponto de partida da sua reflexão, da sua crítica ao sistema hegeliano e
do desenvolvimento da sua concepção da verdade como subjetividade, da sua concepção da
fé cristã, do significado e sentido do cristianismo, do tornar-se cristão.

A PAIXÃO DA FÉ

12 GOUVÊA, 2000. P.147


13 LE BLANC, 2003, p.29

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No livro Temor e Tremor, Kierkegaard, através do pseudônimo Johannes de Silentio,


trata o problema da fé a partir da história de Abraão (para o filósofo, o maior representante
da vida de fé), em que Deus solicita o sacrifício do seu filho Isaac, descrito em Gênesis 22.
O livro foi uma polêmica contra o sistema hegeliano e as explicações especulativas,
racionalistas, do cristianismo. Utiliza o paradoxo contra o sistema hegeliano, considerando
que o mesmo está fundamentado sobre pressupostos que são estabelecidos a priori pela fé.
Analisa o problema da suspensão da moralidade (o pai que sacrifica o filho) e apresenta o
significado da ‘fé em virtude do absurdo’. O sentido da expressão ‘em virtude do absurdo’ é
o reconhecimento dos limites da razão. “Fé ‘em virtude do absurdo’ é fé que não depende
da certeza do conhecimento científico, da evidência objetiva e da argumentação racional” 14.
É na ‘fé em virtude do absurdo’, que se estabelece o paradoxo, diante do que não é
inteligível, como afirma Kierkegaard em Temor e Tremor:

[...] o cavaleiro da fé tem também lúcida consciência desta impossibilidade;


só o que o pode salvar é o absurdo, o que concebe pela fé. Reconhece, pois, a
impossibilidade e, ao mesmo tempo, crê no absurdo; porque, se alguém
imagina ter a fé sem reconhecer a impossibilidade de todo o coração e com
toda a paixão da sua alma, engana-se a si próprio15.

Mas, na interioridade do indivíduo que tem fé, não há ‘um salto no escuro’:
“Quando o crente tem fé, o absurdo não é o absurdo... a fé o transforma... A paixão da fé...
subjuga o absurdo - se não, a fé é apenas um tipo de conhecimento.”16 A crítica de
Kierkegaard à cristandade dinamarquesa, de sua época, se atualiza, em nossos dias,
quando o cristianismo formal, institucional, não expressa uma vivência interior e, nem de
longe, provoca no indivíduo algum conflito interior, ao contrário, faz parecer muito
simples ser cristão. Para o autor aqui referido, ser cristão é uma escolha existencial, um
movimento que se dá na interioridade do indivíduo, como processo profundo de
transformação da consciência.
O último estágio da vida do filósofo foi marcado por escritos polêmicos contra a
Igreja Estatal da Dinamarca. A sua crítica à cristandade refere-se ao fato da Igreja não
admitir suas falhas e, ainda assim, se proclamar representante do cristianismo. Para o

14 GOUVÊA, 2000, p.152


15 KIERKEGAARD, Søren. Diário de um sedutor; Tremor e Temor; O Desespero humano.
Traduções de Carlos Grifo, Maria José Marinho, Adolfo Casais Monteiro. São Paulo: Abril Cultural;
1979. p. 136. (Os pensadores).
16 KIERKEGAARD, apud GOUVÊA, 2000. p.156.

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nosso autor, “o cristianismo primitivo representava uma revolução espiritual que desafiou
o status quo e tinha, portanto, sido uma ofensa a toda complacência. Mas a igreja
contemporânea era o próprio símbolo da afetação burguesa satisfeita consigo mesma”17.
Kierkegaard propõe reconduzir a cristandade ao cristianismo genuíno:
Na cristandade, afirmou Kierkegaard, será necessário um missionário para
uma segunda vez tornar cristãos em cristãos. Não é a categoria do
missionário que lida com os pagãos, para os quais proclama o cristianismo
pela primeira vez, mas é a categoria do missionário dentro da cristandade,
visando introduzir o cristianismo na cristandade18.

Para ele, é só na paixão da fé que alguém pode tornar-se cristão. É nessa perspectiva
a sua crítica à cristandade - a exigência do movimento interior, existencial do indivíduo,
que, na sua singularidade, reconhece os limites da razão e escolhe/acolhe o mistério da fé -
, no sentido de instigar a reflexão sobre o sentido e significado do cristianismo; a exigência
do aprofundamento da consciência:

“O amor é um assunto da consciência, e por isso deve proceder de um


coração puro e de uma fé sincera. [...] O amor só brota de um coração puro
e de uma fé sincera quando ele é uma questão de consciência”.19

O pensamento kierkegaardiano propõe a compreensão do amor cristão como um


dever ético-religioso: “As obras do amor (se o amor não trabalha não é genuíno) são a
expressão espontânea de nosso próprio ser depois de transformados pela fé”.20

Para o autor, o ideal ético só é possível de ser realizado com a intervenção do


religioso. Portanto, “torna-se então a função da ética desenvolver a receptividade para a
religião, um sentimento de necessidade por ela”21. Assim, a ideia de que a vida moral e a
atitude religiosa não deve ser algo forçado, mas despertado dentro do indivíduo.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

17
GOUVÊA, 2000, p.41
18
KIERKEGAARD, apud GOUVÊA, 2000. p.43-44
19 KIERKEGAARD, Søren A. As obras do amor; apresentação e tradução, Álvaro L. M. Valls; revisão
da tradução, Else Hagelund. Bragança Paulista: Editora Universistária São Paulo; Petrópolis:
Vozes, 2005. p.175 - 181.
20 GOUVÊA, Ricardo Quadros. Paixão pelo Paradoxo. Uma Introdução a Kierkegaard. São Paulo:

Novo Século, 2000. p.244.


21 Ibid. 2000. p. 217.

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Com a desconstrução da estrutura metafísica do real, a religião terá que ser pensada
a partir de um novo paradigma: “O paradigma de tal repensar a religião, contudo, não será
encontrado fora do cristianismo, mas numa releitura de suas narrativas fundamentais” 22.
A sugestão nos parece bem acertada, considerando que “Kierkegaard pensa o cristianismo
não como um conjunto de certezas metafísicas, mas como uma possibilidade de construção
de sentido”23.
Vivenciamos, hoje, um movimento pós-secularização; de efervescência no campo
religioso, de ressurgimento do sagrado. O processo de individualização e globalização
produziu uma pluralidade ou diversidade religiosa; de um lado, a desfiliação religiosa, o
enfraquecimento da religião institucionalizada. De outro lado, há uma tendência de
crescimento da religião cristã, particularmente, das igrejas cristãs evangélicas, pentecostais
(neopentecostais)24. Esse crescimento é marcado pela politização no campo religioso, pelo
fundamentalismo e intolerância de diversos seguimentos religiosos. Intensificado,
também, por um mercado religioso da fé, do ‘evangelho da prosperidade’; por uma adesão
religiosa sem profundidade.
O quanto deslocado do nosso tempo está Kierkegaard, tanto quanto o foi na
cristandade do seu tempo; e isso, na verdade, o atualiza.
Kierkegaard nos desafia ao aprofundamento da consciência; a reflexão sobre nossas
escolhas, adesões, crenças, identidade. Contra o comodismo e a superficialidade da
cristandade, ironicamente, socraticamente, problematiza o cristianismo; e sua intenção é
torná-lo ainda mais difícil... É somente a paixão da fé que responde a questão do ‘tornar-se
cristão’. A filosofia de Kierkegaard nos apresenta uma riqueza de elementos para reflexão,
sinalizando direções para a discussão sobre alteridade e fé cristã na contemporaneidade.

REFERÊNCIAS

ABBAGNANO, Nicola. Dicionário de Filosofia. 2. ed. Trad. E rev. de Alfredo Bosi. São
Paulo: Mestre Jou, 1982.

22Idem, p.46.
23Idem, p.46.
24 Cf. Religiões em movimento: o Censo de 2010. Faustino Teixeira, Renata Menezes (orgs) -

Petrópolis, RJ:Vozes, 2013.

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27

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GOUVÊA, Ricardo Quadros. Paixão pelo Paradoxo. Uma Introdução a


Kierkegaard. São Paulo: Novo Século, 2000.

JOLIVET, Régis. As doutrinas existencialistas: De Kierkegaard a Sartre. Livraria


Tavares Martins. Porto, 1975.

JUNG, Carl Gustav. Presente e futuro. Trad. Márcia de Sá Cavalcante. 6. Ed. Petrópolis,
Vozes, 2011.

KIERKEGAARD, Søren. Diário de um sedutor; Tremor e Temor; O Desespero


humano. Traduções de Carlos Grifo, Maria José Marinho, Adolfo Casais Monteiro. São
Paulo: Abril Cultural; 1979 (Os pensadores).

______. O Desespero Humano. Trad. Alex Marins. Editora Martin Claret. São Paulo,
2001.

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______. Textos Selecionados por Ernani Reichmann. Trad. E. Reichmann.


Curitiba. UFPR. 1978.

______. As Obras do Amor. Apresentação e tradução, Álvaro L. M. Valls; revisão da


tradução, Else Hagelund. Bragança Paulista: Editora Universitária São Francisco;
Petrópolis: Vozes, 2005.

______. Migalhas Filosóficas. Trad. E. Reichmann e Álvaro L. M. Valls. Petrópolis.


Vozes. 1995.

LE BLANC, Charles. Kierkegaard. Trad. Marina Appenzeller. São Paulo: Estação


Liberdade, 2003.

NÓBREGA, Francisco Pereira. Compreender Hegel. Petrópolis, RJ: Vozes, 2005.

PASSOS, J. e USARSKY, F. Compêndio de Ciência da Religião. São Paulo:


Paulinas/Paulus, 2013.

PAULA, Marcio Gimenes de. Indivíduo e comunidade na filosofia de Kierkegaard. São


Paulo: Paulus, 2009.

REALE, Giovanni; DARIO, Antiseri. História da Filosofia: do Romantismo até


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SINGER, Peter. Hegel. Trad. Luciana Pudenzi. Edições Loyola. São Paulo, 2003.

TEIXEIRA, Faustino; RENATA, Menezes. (orgs). Religiões em movimento: o Censo


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VATTIMO, Gianni. Depois da cristandade. Por um cristianismo não religioso.


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ZIZEK, Slavoj. O absoluto frágil, ou Por que vale a pena lutar pelo legado
cristão? Trad. Rogério Bettoni. – 1. Ed. – São Paulo: Boitempo,2015.

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