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Decolonialidade e Arte

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https://doi.org/10.23925/2318-5023.2022.n6.

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DECOLONIALIDADE E ARTE:
RESISTÊNCIA DOS POVOS INDÍGENAS1
DECOLONIALITY AND ART:
INDIGENOUS PEOPLES’ RESISTANCE

Juliana Piva de Albuquerquer Lewkowicz 2

RESUMO

Este artigo busca construir uma relação entre trabalhos de arte indígena
contemporânea e a decolonialidade do ser a partir de Nelson Maldonado-Torres.
Pretende-se abordar relações entre práticas artísticas indígenas contemporâneas
que se utilizam da arte como forma de resistência para tornar visíveis as questões
decoloniais e ambientais, comunicar de forma poética, incentivar ações
micropolíticas e questionar a lógica eurocentrada. Para essa articulação, o corpus da
pesquisa parte da análise de três artistas indígenas contemporâneos, Daiara
Tukano, Jaider Esbell e Denílson Baniwa, cujos trabalhos estruturam discussões
voltadas a criar fissuras no modelo capitalista que o “povo da mercadoria”
(KOPENAWA, 2015) elegeu para viver e que resulta em crise ambiental e genocídio
dos povos originários. A metodologia escolhida para análise desse corpus é a
abordagem das extremidades, de Christine Mello (2007), que se vale das noções de
desconstrução (da ideia de índio e de colonização), contaminação (da cultura
ameríndia pela cultura eurocentrada) e compartilhamento (ideias e arte) para
explorar os tensionamentos e as situações limítrofes entre espaços artísticos e a
colonialidade. A estrutura teórica tem caráter interdisciplinar entre os campos da
filosofia e da comunicação: Nelson Maldonado-Torres (2018) aborda algumas
dimensões analíticas da colonialidade; Aílton Krenak (2019, 2020), o conceito de
redes de afetos para transpor os muros da colonialidade; e Norval Baitello Júnior
(2018), o conceito da comunicação pela expansão de afetos.

Palavras-chave: decolonialidade; arte; povos indígenas; arte indígena


contemporânea.

1 Trabalho apresentado ao Eixo Mídia do I Congresso Ibero-americano de Comunicação e Mídia.


2 Mestranda em Comunicação e Semiótica pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP).
Integra o grupo de pesquisa “Extremidades: redes audiovisuais, cinema, performance e arte contemporânea”,
coordenado pela professora doutora Christine Mello. https://orcid.org/0000-0002-6662-6765;
julianalewkowicz@gmail.com.

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ABSTRACT

This article aims to build a relationship between the works of contemporary


indigenous art and the decoloniality of being, from Nelson Maldonado-Torres. Its
purpose is to address the links between contemporary indigenous artistic practices
that use art as a form of resistance to make noticeable decolonial and environmental
issues through a poetic communication, encouraging micropolitical actions and
questioning the Eurocentric mindset. In order to develop that articulation, the corpus
of the research starts from the analysis of three contemporary indigenous artists:
Daiara Tukano, Jaider Esber and Denilson Baniwa. Their works elaborate
discussions with the intention of creating cracks in the capitalist model that the
“commodity people” (KOPENAWA) chose to live in, which leads to an environmental
crisis and the genocide of the native people. The methodology chosen for the
analysis of the corpus is the Extremity Approach (2007), developed by Christine
Mello, which uses the notions of deconstruction (the idea of indigenous and
colonization), contamination (of the Amerindian culture by the Eurocentric concept of
culture) and sharing (ideas and art) to explore tensions and limit situations between
artistic spaces and coloniality. The article has an interdisciplinary theoretical structure
between the fields of philosophy and communication, inspired by (in the following
order): Nelson Maldonado-Torres, who presents a couple of analytical dimensions of
coloniality; Ailton Krenak and his concept of affective alliances to overcome the walls
of coloniality; and finally, Norval Baitello, and his concept of communication through
the expansion of affections.

Keywords: decoloniality; art; indigenous peoples; contemporary indigenous art.

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INTRODUÇÃO

Vou deslocar meu olhar de mulher, brasileira, latino-americana para analisar a


questão da colonialidade e buscar um giro decolonial, por meio de atitudes
decoloniais, com a finalidade de entender o movimento de resistência dos povos
indígenas em Pindorama – “terra das palmeiras”, em tupi – a partir do artigo
“Analítica da colonialidade e da decolonialidade: algumas dimensões básicas”
(2018), de Nelson Maldonado-Torres.

[...] ao contrário do padrão e do conceito histórico ou puramente empírico do


colonialismo, colonialidade é uma lógica que está embutida na
modernidade, e decolonialidade é uma luta que busca alcançar não uma
diferente modernidade, mas alguma coisa maior do que a modernidade.
Isso não significa que um número de ideias e práticas que usualmente
consideramos “modernas” não fará parte dessa outra ordem mundial, bem
como não significa que o que chamamos de modernidade eliminou tudo o
que a própria modernidade no seu discurso autorreferido concebeu como
diferente dela, como a filosofia antiga e uma variedade de ideias medievais.
A diferença é que, enquanto a modernidade ocidental atingiu uma
identidade ao inventar uma narrativa temporal e uma concepção de
espacialidade que a fez parecer como o espaço privilegiado da civilização
em oposição a outros tempos e espaços, a busca por uma outra ordem
mundial é a luta pela criação de um mundo onde muitos mundos possam
existir, e onde, portanto, diferentes concepções de tempo, espaço e
subjetividade possam coexistir e também se relacionar produtivamente.
(MALDONADO-TORRES, 2018).

Primeiramente, gostaria de abordar os equívocos que cercam a palavra


“índio”. Segundo Daniel Munduruku, índio é um apelido dado pelos europeus aos
povos originários do Brasil cuja conotação, pejorativa, remetia a pré-conceitos como
selvagem, atrasado, preguiçoso, canibal, entre outros; além disso, o termo tornava
homogêneos os mais de três milhões de indígenas de cerca de mil etnias, falantes
de aproximadamente 1.300 línguas distintas, que no século XVI viviam nestas terras
chamadas de Brasil. Para Munduruku (2009), “o termo indígena significa aquele que

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pertence ao lugar, originário, original do lugar”; portanto, seria mais apropriado


utilizar o termo indígena para identificar povos ancestrais que já estavam aqui há
muitos séculos antes de os europeus chegarem – e, desde então, foram reduzidos a
um total de 817.963 indígenas de 305 etnias que falam 274 línguas, conforme o
Censo demográfico de 2010 realizado pelo Instituto Brasileiro de Geografia e
Estatística (IBGE, 2010). A luta dos povos indígenas do Brasil tem aproximadamente
quinhentos anos, desde a invasão de seus territórios pelos europeus.
Em segundo lugar, gostaria de desconstruir a ideia de colonização – ligada ao
período colonial, e que não teria mais razão de existir no momento que a colônia
(Brasil) fosse independente – e a teoria colonial, segundo a qual “Territórios
indígenas são apresentados como ‘descobertos’, a colonização é representada
como um veículo de civilização, e a escravidão é interpretada como um meio para
ajudar o primitivo e sub-humano a se tornar disciplinado” (MALDONADO-TORRES,
2018).
Seria importante compreender que nunca fomos modernos. O dinheiro que
fomentou a revolução industrial veio em boa parte do tráfico negreiro e de saques a
navios espanhóis que traziam o ouro das colônias espanholas das Américas para a
metrópole. O movimento de independência na maioria dos países do novo mundo
não se deu a partir de movimentos populares, e os problemas sociais que se
iniciaram com a colonização não se encerraram com a independência; a lógica
colonial, portanto, continua vigente.
Maldonado-Torres (2018) propõe pensarmos em colonialidade, termo que
abarcaria os problemas estruturais que se iniciaram na colonização, mas que,
infelizmente, continuam atuais, de forma mais ou menos explícita.

Colonialismo pode ser compreendido como a formação histórica dos


territórios coloniais; o colonialismo moderno pode ser entendido como os
modos específicos pelos quais os impérios ocidentais colonizaram a maior

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parte do mundo desde a “descoberta”; e colonialidade pode ser


compreendida como uma lógica global de desumanização que é capaz de
existir até mesmo na ausência de colônias formais. (MALDONADO-
TORRES, 2018).

Para contrapor-se à colonialidade, o autor propõe o termo decolonialidade,


que seria o movimento que implica uma luta viva contra a lógica colonial que persiste
na atualidade, mesmo depois de passado muito tempo da independência.

Desse modo, se a descolonização refere-se a momentos históricos em que


os sujeitos coloniais se insurgiram contra os ex-impérios e reivindicaram a
independência, a decolonialidade refere-se à luta contra a lógica da
colonialidade e seus efeitos materiais, epistêmicos e simbólicos.
(MALDONADO-TORRES, 2018).

Para o autor, a colonialidade não se sustenta apenas pelo poder e envolve


“uma transformação radical do saber, do ser e do poder, levando a colonialidade do
saber, a colonialidade do ser e a colonialidade do poder”. A colonialidade do saber
acontece quando o “condenado” não pode assumir a posição de produtor do
conhecimento.

A colonialidade do ser envolve a introdução da lógica colonial nas


concepções e na experiência de tempo e espaço, bem como na
subjetividade. A colonialidade do ser inclui a colonialidade da visão e dos
demais sentidos que são meios em virtude dos quais os sujeitos têm um
senso de si e do seu mundo. (MALDONADO-TORRES, 2018).

A colonialidade do ser e do saber tem como objetivo manter as pessoas em


seus lugares fixos, sem a possibilidade de gerar pensamento e atitudes críticas em
relação às condições impostas a elas pela estrutura da colonialidade. Os efeitos
gerados são exploração, dominação, expropriação, extermínio, naturalização da
morte, tortura e estupro. No caso dos povos originários do Brasil, eles entendem que
estão em guerra há mais de quinhentos anos, lutando para continuar existindo e pelo

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direito à memória e à verdade dos povos indígenas. Eles entenderam que seria
preciso fazer um “giro decolonial” a fim de se contrapor à dominação e formaram
atitudes decoloniais.

[...] atitude refere-se à orientação do sujeito em relação ao saber, ao poder e


ao ser. Portanto, uma mudança na atitude é crucial para um engajamento
crítico contra a colonialidade do poder, saber e ser e para colocar a
decolonialidade como um projeto. (MALDONADO-TORRES, 2018).

O ativismo social está sendo usado como uma arma para a decolonialidade
do poder. Na década de 1980, quando Aílton Krenak foi à Assembleia Constituinte
vestido de terno branco e fez seu discurso para que os direitos dos povos indígenas
fossem contemplados na Constituição, durante o qual pintou seu rosto com tinta
preta de jenipapo – muito utilizada pelos indígenas nas pinturas corporais –, essa já
era uma atitude decolonial. Os povos indígenas se uniram e perceberam que, juntos,
teriam mais força nesta luta.

A Aliança dos Povos da Floresta surgiu em meados dos anos 1980, quando
algumas das mais importantes lideranças dos povos indígenas e
seringueiros do Brasil se uniram para reivindicar demarcações de territórios
e a criação de reservas extrativistas. Era o momento de abertura
democrática e a assembleia constituinte começava seus trabalhos. O
encontro e a pressão destas lideranças foi fundamental para a inclusão na
constituição de direitos em defesa dos povos indígenas e proteção do meio
ambiente. (INFOAMAZONIA, 2020).

A artista e ativista Cláudia Andujar viveu com os Yanomami e ajudou, através


de suas fotografias, a mostrar a força, a riqueza e a beleza desse povo para o
mundo – mas, sobretudo, as dificuldades que vinham enfrentando. Através da
pressão internacional, de sua articulação e união, os povos originários conquistaram
a demarcação das terras indígenas há 30 anos. Infelizmente, nos últimos anos,
houve muitos retrocessos: o garimpo ilegal se intensificou nas terras indígenas

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brasileiras e trouxe problemas como os danos ambientais: o garimpo ilegal alaga as


terras indígenas; o mercúrio contamina as águas; a população perde as lavouras
devido ao alagamento; a caça foge; a água e os peixes são envenenados, e as
meninas indígenas são estupradas e obrigadas a se prostituir para conseguir
alimentos.
Jovens lideranças também estão se articulando, como a ativista Txai Suruí.
Em seu discurso na abertura da COP26, em Glasgow (2021), ela alerta que os
povos originários são os que mais sofrem com o aquecimento global, pois estão na
linha de frente da emergência climática; portanto, para Txai Suruí, eles deveriam
estar no centro das decisões internacionais sobre o assunto. A jovem ativista
também fala em ocupar as telas e procura subverter o uso da tecnologia ao utilizar
as redes sociais como ferramentas para trazê-los à pauta e divulgar os problemas
ambientais e da colonialidade.
Os indígenas perceberam, que além do ativismo, da união e das cobranças
ao governo – por exemplo, como fizeram na Marcha das Margaridas, em agosto de
2019, quando cem mil mulheres indígenas e camponesas se uniram para lutar
contra retrocessos sociais –, seria importante que eles estivessem no centro das
decisões políticas.
Nas últimas eleições, muitos indígenas se candidataram; foi eleita a maior
bancada indígena da história da Câmara, com cinco deputados, dos quais destaco:
Célia Xakriabá (PSOL-MG), que estará à frente da “bancada do cocar” no Congresso
Nacional; Juliana Cardoso (PT-SP); Paulo Guedes (PT-MG) e Sônia Guajajara
(PSOL-SP). Até então, apenas dois candidatos indígenas haviam sido eleitos: Mário
Juruna, em 1982, e Joênia Wapichana (Rede-RR), em 2018. Em 2022, os indígenas
se articularam em apoio Luís Inácio Lula da Silva, que, quando eleito presidente do
Brasil, criou o ministério dos povos indígenas, do qual Sônia Guajajara é a ministra,
e chamou Joenia Wapichana para ser a primeira presidente indígena da Fundação

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Nacional do Índio (Funai). Em seu discurso de posse, o presidente reafirmou o


compromisso com os povos originários e com a preservação do meio ambiente.
Cresce a evidência de autores indígenas que pensam, teorizam e questionam
o modo de vida que vem sendo imposto desde a invasão das terras indígenas, num
movimento de decolonialidade do saber – com destaque para Aílton Krenak, Davi
Yanomami Kopenawa, Daniel Munduruku e Eliane Potiguara. Esses autores buscam
um rompimento com atitudes anti-indígena da colonialidade moderna e emergem
como pensadores e escritores.
Krenak, até por volta dos cinquenta anos, dedicou-se à política. Seu discurso
na Assembleia Constituinte em 1987 foi icônico e ajudou a inscrever os direitos dos
povos indígenas na Constituição Federal brasileira. Sua trajetória possibilitou
perceber os mundos se colidindo; no entanto, Krenak acredita que a energia
feminina, que as mulheres trazem de seus povos indígenas, tem potência para
desestabilizar esse cenário. São quarenta milhões de indígenas na América Latina;
para quem conhece a história dos povos indígenas neste lugar, isso significa que,
apesar de tudo, ainda estão vivos e vão continuar resistindo.
Para Krenak, estamos imersos na colonialidade. Ele relembra que a própria
ideia de América Latina é um produto colonial, uma vez que América deriva de
Américo Vespúcio, italiano de Veneza, que descobriu a rota da Europa até o Novo
mundo – que, na verdade, era ancestral – e trouxe com ele, além de Colombo e
Pedro Álvares Cabral, uma tragédia social.
É interessante como Krenak se articula nesta guerra pela sobrevivência dos
povos originários em que, desde muito cedo, se utiliza da criação de alianças
duradouras que formam redes de afeto através da troca de conhecimentos para
combater a colonialidade, como explica em entrevista para Pedro Cesarino na 32ª
Bienal de São Paulo:

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Eu me neguei muito cedo a ficar observando as janelas só como se fossem


rotas de fuga. Eu não queria tomá-las desse modo, mas queria eleger
algumas dessas saídas como uma possibilidade criativa de interação com o
que viesse pela frente. Em vez de o mundo ser só fechadura e
impossibilidade, em vez de ele ser cheio de trancas, ele passa a ser cheio
de janelas. Essas janelas todas vão ganhando um sinal positivo, de
possibilidade de troca. Então, aliança na verdade é um outro termo para
troca. Eu andei um pouco nessa experimentação até que consegui avançar
para uma ideia de alianças afetivas – em que a troca não supõe só
interesses imediatos. Supõe continuar com a possibilidade de trânsito no
meio das outras comunidades culturais ou políticas, nas quais você pode
oferecer algo seu que tenha valor de troca. E esse valor de troca supõe
continuidade de relações. É a construção de uma ideia de que seu vizinho é
para sempre. (CESARINO, 2016).

Também é interessante cruzar as alianças afetivas de Krenak com a


perspectiva do pesquisador Norval Baitello Júnior (2018), que aborda o conceito da
comunicação por meio da expansão de afetos – comunicar como sinônimo de trocar
afetos, exatamente como a proposta de Krenak. Podemos entender que, quando
Krenak usa alianças afetivas como atitudes decoloniais, na verdade está investindo
numa comunicação eficiente, duradoura e baseada na troca de afeto.
Para construir uma relação entre trabalhos de arte indígena contemporânea e
a decolonialidade do ser a partir de Nelson Maldonado-Torres (2018), assim como
para abordar relações entre práticas artísticas indígenas contemporâneas que se
utilizam da arte como forma de resistência a fim de tornar visíveis as questões
decoloniais e ambientais – comunicando de forma poética, incentivando ações
micropolíticas e questionando a lógica eurocentrada –, seria interessante voltar um
pouco na história do encontro entre as culturas europeia e a ameríndia e
compreender como a arte foi usada para retratar esse embate.
No primeiro contato entre o europeu e os indígenas das Américas, os
primeiros retratavam os povos originários como seres bestializados e
desumanizados para poder justificar o injustificável: escravizá-los, matá-los, estuprá-
los e explorar suas terras.

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Num segundo momento, artistas europeus romantizaram os indígenas. Em


1922, artistas se reuniram para organizar um movimento de valorização da
identidade nacional que culminou na Semana de Arte Moderna. Nesse contexto,
tentaram resgatar a imagem do negro e do indígena, mas a narrativa era sobre os
indígenas e sobres os negros: eram elaboradas sem a participação deles, que foram
retratados por artistas não indígenas, em sua maioria brancos.
Depois de cem anos (2022), no mesmo local, o Teatro Municipal de São Paulo
abriu a exposição Contramemória, curada por Lilia Schwarcz, Jaime Lauriano e
Pedro Monteiro, num movimento decolonial: os trabalhos de artistas que haviam
exposto em 1922 dialogaram com artistas indígenas, negros, LGBTQIA+, que
poderiam enfim colocar-se em primeira pessoa. Aílton Krenak, Daiara Tukano e
Denilson Baniwa estavam entre os 58 artistas que participaram da exposição em que
artistas originários do Brasil puderam narrar a própria história, retratar-se e se
posicionar.
Daiara Tukano, artista, curadora, ativista e comunicadora, concluiu o mestrado
em Direitos Humanos pela Universidade de Brasília (UnB) em que pesquisou o
direito à memória e à verdade dos povos indígenas. Sua pesquisa reflete em seu
trabalho artístico, que varia em formatos e técnicas, como murais, pinturas com
diferentes técnicas e performances. Daiara explica para Jotabê Medeiros, repórter
do site Amazônia Real, que:

“Não existe na nossa língua uma palavra para Arte, talvez a mais próxima
seja Hori: a miração, a visão espiritual, da cerimônia, do sonho, e que está
presente em todo o mundo à nossa volta”, conceitua a paulistana Daiara
Tukano. “Hori também são nossos grafismos, que são um elo com a própria
natureza. Pintamos com Hori nossos rostos, nossos corpos, nossas casas,
cerâmicas, cestarias: nosso mundo também é feito de Hori. Existe muito
mais no Hori além daquilo que possa ser visto ou compreendido, ali se tece
a grande linguagem da arquitetura do universo” (MEDEIROS, 2021).

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Na exposição Contramemória, Daiara participou com dois trabalhos,


“Respira”, instalação sonora de canto, e “Carta cobra”, carta em formato de cobra
escrita com canetão em papel kraft, muito longa, capaz de ocupar a escada principal
do Teatro Municipal, onde foi exposta no dia da abertura da mostra. Uma carta é
sempre uma tentativa de diálogo, de comunicação; esta carta dialogou com os
artistas da exposição de 1922, quase todos da elite do café, com as obras dos
artistas da própria exposição (de 2022), com o prédio de “arquitetura grandiosa,
oscilando entre o art nouveau e o neoclássico, está em sintonia com as altas
projeções e a profunda autoestima das elites paulistanas do início do século XX”
(THEATRO MUNICIPAL DE SÃO PAULO, 2022) e com a sociedade não indígena.
No dia do encerramento, Tukano fez uma performance na qual a “Carta cobra” foi
incinerada: “Decidi queimar a carta para que ela possa voltar de onde veio, e levar
sua mensagem para outros planos. Cobras trocam de pele e precisamos trocar
também” (TUKANO, 2022).
Em viagem pela Europa, a artista visitou o museu Quai Branly, em Paris, que
abriga o manto Tupinambá – um manto ritual, histórico, do século XVII, que era um
dos raros exemplares desse objeto tão importante para as comunidades da costa
brasileira; atualmente, no entanto, todos estão conservados em museus europeus.
Daiara, junto a Jaider Esbell e Denílson Baniwa, fez um ritual e os três artistas
solicitaram a restituição do objeto sagrado ao Brasil.
Quando convidada para participar da 34ª Bienal de São Paulo, Daiara
produziu a obra “Kahtiri Bôrô”, ou “Espelho da Vida” (2020), confeccionada com
plumaria sintética vermelha – inspirada nos tradicionais mantos Tupinambá, que
eram feitos de penas do guará, da mesma cor. O manto-obra tem um rosto
espelhado, que reflete o próprio espectador para dentro da peça, e foi vestido pela
artista em uma performance que realizou em conjunto com Denílson Baniwa,
também artista indígena contemporâneo e ativista; ambos leram “Carta ao Velho

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Mundo”, trabalho do amigo Jaider Esbell, quando a exposição visitou a cidade do Rio
de Janeiro.

“As peças indígenas mais antigas que existem estão todas na Europa, entre
elas esses mantos Tupinambás, que viraram um patrimônio europeu (e não
brasileiro). Elas não podem sequer voltar para cá, pois são muito frágeis,
estão engaioladas, dentro de vidros... para mim fica muito marcado esse
sentimento de prisão em que se encontram” - comenta Daiara. “Quem se
enxerga no espelho fica do tamanho que a gente é: bem pequenininho, para
poder enxergar o horizonte de uma forma mais ampla. É muito forte que a
gente, enquanto indígena, se depare com toda essa história num só objeto,
que é mais que um objeto: é encantado, tem alma” (BIENAL SÃO PAULO,
2021).

Em outubro de 2022, Daiara inaugurou a exposição Nhe’ẽ Porã: Memória e


Transformação, da qual participou como curadora e artista no museu da Língua
Portuguesa, em São Paulo. Nhe’ẽ Porã significa as boas palavras, belas, que vêm
do coração, do sentimento – uma oferenda para adocicar o coração de quem as
escuta.

O convite para conhecer as línguas faladas pelos povos indígenas e as


transformações decorrentes da invasão colonial é também um chamado
para experimentar outras concepções de mundo, e começa no próprio nome
da exposição que vem da língua Guarani Mbya, composto a partir de duas
palavras: Nhe’ẽ significa espírito, sopro, vida, palavra, fala; e porã quer dizer
belo, bom. Juntos, os dois vocábulos significam “belas palavras”, “boas
palavras” – ou seja, palavras sagradas que dão vida à experiência humana
nesta terra. (MUSEU DA LÍNGUA PORTUGUESA, 2022).

A mostra celebrou todos os povos originários – a diversidade de


pensamentos, das leituras de mundo e das cosmovisões – e encantados, e salientou
a importância de preservar a diversidade de línguas indígenas e o direito de todos os
povos. A exposição teve como objetivo tocar o coração dos visitantes e sensibilizar
as pessoas para a riqueza e a diversidade dos povos indígenas e a diversidade que
existe na vida deste planeta.

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Nhe’ẽ Porã: Memória e Transformação propõe ao público uma imersão em


uma floresta cujas árvores representam dezenas de famílias linguísticas às
quais pertencem as línguas faladas hoje pelos povos indígenas no Brasil –
cada uma veicula formas diversas de expressar e compreender a existência
humana. A exposição ..., busca mostrar outros pontos de vista sobre os
territórios materiais e imateriais, histórias, memórias e identidades desses
povos, trazendo à tona suas trajetórias de luta e resistência, assim como os
cantos e encantos de suas culturas milenares. (MUSEU DA LÍNGUA
PORTUGUESA, 2022).

Daiara Tukano é uma artista que tem estado em evidência recentemente e


usa sua visibilidade para alertar sobre a importância da luta para preservar as
memórias indígenas – em oposição ao apagamento almejado no processo de
colonização e perpetuado no movimento de colonialidade. Uma grande quantidade
de ataques contra sua cultura parte de uma sociedade racista, segregacionista e
estruturada pela violência, que busca o apagamento do patrimônio cultural indígena;
com frequência, na história desse país, esses ataques têm sido tutelados pelo
Estado. “Uma sociedade não pode ser estruturada pela violência” (TUKANO, 2023).
A artista relembra que, até 1979, os indígenas eram considerados incapazes – sem
direito a voto ou a passaporte – e precisavam ser tutelados pelo Estado. O
movimento constituinte reconheceu os direitos constitucionais à cultura indígena. No
entanto, esses direitos são constantemente violados; existe uma ausência de
coerção a essas violações por parte do Estado, que deveria criar mecanismo para
proteger os indígenas e responsabilizar os agentes da violência, a fim de acabar
com a impunidade.
O artista contemporâneo indígena Jaider Esbell (1979-2021), nascido em
Normandia (Roraima), veio da Reserva Raposa Serra do Sol e usou a arte como
“armadilha” para jogar luz nas questões indígenas, que passam necessariamente
por questões ambientais e decoloniais. Em entrevista para revista C& América
Latina, Jaider relatou como ele articulava o mundo indígena e o mundo branco em

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sua produção:

Meus avós foram escravos nas fazendas dos invasores, então nasci em
dois mundos, literalmente. Percebo que, fora as pressões e imposições do
mundo branco sobre meu mundo ancestral, o indígena, há um duplo
interesse entre estes. Com meu trabalho de arte, acredito que posso auxiliar
ambos nesse entendimento mínimo. As artes podem aproximar mundos,
isso para mim é um fato. A minha pesquisa também me leva a crer que,
mesmo aparentemente mesclados, esses mundos não se confundem ou se
fundem. Como tenho acesso a ambos os mundos, busco construir uma
consciência de que “naturalmente” estou sendo educado por ambos para
ser cada vez mais um veículo, um meio, um canal de fruição e distinção.
(GONZATTO, 2021).

Esbell foi um grande articulador e aglutinador dos povos originários do Brasil.


Tão potente quanto as imagens que produzia era sua vontade de unir e colocar em
discussão os problemas das tantas etnias que habitavam essas terras, hoje
chamadas Brasil, muito antes de os colonizadores europeus cá chegarem. Com
frequência, chamava seus parentes (outros artistas indígenas) para se juntarem
nesta batalha travada desde 1500, lutando e resistindo –usando a arte como arma
de guerra com a finalidade de mostrar ao mundo os problemas que enfrentam, atrair
a opinião pública e pressionar o governo brasileiro a respeitar e ampliar as áreas
demarcadas. Um exemplo foi quando chamou parentes para representar a vaca, por
meio da qual quis apontar o problema do gado nas terras indígenas. Em outra
oportunidade, foi chamado a fazer uma exposição individual no Museu de Arte
Moderna de São Paulo (MAM), paralela à 34ª Bienal de São Paulo (2021); no
entanto, ao invés de expor suas obras sozinho, fez questão de organizar uma
exposição coletiva, a mostra Moquém_Surarî: arte indígena contemporânea, que
salientou questões indígenas. Na mesma Bienal, Esbell fez um movimento, por meio
de várias ações, cujo objetivo era trazer à luz os problemas entre a colonialidade e
os povos originários do Brasil a partir da arte – e deu-lhe o nome de Bienal do Índio.

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A potência de seu trabalho extravasa as telas tanto na questão pictórica


quanto na dimensão intelectual. Sua arte é internacionalmente reconhecida –
inclusive, suas obras “Carta ao Velho Mundo” (2018-2019) e “Na Terra Sem
Males” (2021) foram adquiridas no ano de 2021 pelo museu Georges Pompidou, na
capital francesa.

A obra Carta ao Velho Mundo, atualmente em exibição na 34ª Bienal de São


Paulo, foi produzida quando Esbell se preparava para uma viagem à
Europa. É composta por intervenções a caneta e marcadores sobre as 396
páginas do primeiro volume do livro Galeria delta da Pintura Universal, uma
enciclopédia ilustrada da história da arte ocidental. “É no livro que fica claro
que existe uma perspectiva revertida, de uma mirada que não só é tratada
como arte contemporânea, mas que enquanto arte indígena
contemporânea, revê o cânone da história da arte e faz sua própria leitura,
sua própria intervenção, insere suas agendas com ironia, com humor, com
protesto”, diz Paulo Miyada para seLecT. “É uma obra fundamental, que dá
sentido não só para a obra do Jaider como para esse primeiro gesto da
curadoria de repensar como pode atuar um museu”. (ALZUGARAY, 2021).

Quando Jaider escolheu quais obras enviaria ao museu francês, fez questão
de incluir “Carta ao Velho Mundo”, uma vez que o trabalho, desde a sua produção,
pensava em dialogar criticamente com a Europa e o pensamento eurocentrado.
“Carta ao Velho Mundo” é uma resposta e uma crítica à colonialidade, em que Jaider
rasura, com intervenções escritas e pictóricas, o livro Galeria Delta da Pintura
Universal – enciclopédia ilustrada da história da arte ocidental – e questiona a
produção cultural eurocentrada, reivindicando a restituição dos saques que foram
feitos em Abya Yala – que, “na língua do povo Kuna, significa Terra Madura, Terra
Viva ou Terra em florescimento e é sinônimo de América” (PORTO-GONÇALVES,
2009).

Jaider Esbell pondera que o Brasil dos povos originários passou um


processo doloroso de apagamento cultural, no qual “intelectuais indígenas

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foram rechaçados, seja na arte ou pensamento”, e não vê outro caminho


senão o de enfrentar as doenças do mundo, hoje dominado pela
necropolítica, por meio de um esforço de reatar os fios do ancestral e
harmonioso relacionamento com a natureza e o ambiente. (MEDEIROS,
2021).

Jaider cunhou a nomenclatura Arte Indígena Contemporânea (AIC) e inverteu


a ordem das palavras para dar ênfase às questões indígenas; nesta categorização,
seu trabalho estava intrinsecamente ligado ao ativismo e a dar luz, de forma poética
e afetiva, às questões dos povos originários. O curador Paulo Myada define o termo
AIC, em entrevista para a revista Select, como “um sistema de alianças multiétnicas
com objetivos culturais e políticos” (ALZUGARAY, 2021).
Denílson, indígena do povo Baniwa (que tem uma cultura muito gráfica), é
artista visual. Nasceu em Mariuá, no Rio Negro, estado do Amazonas, próximo à
fronteira entre Brasil, Venezuela e Colômbia nos anos 1980 – quando do início das
lutas pelos direitos dos povos indígenas do Brasil. Acredita que a arte tem um
caráter político, de meio de comunicação e de poder de comunicação. Denílson fala
português para ser compreendido, conhece os códigos dos colonizadores e se sente
resultado de um processo de colonização muito violento; seu trabalho artístico reflete
essa condição, e tem o objetivo de trazer à discussão questões sobre colonização e
povos indígenas. Atualmente, reside no Rio de Janeiro e se sente parte da ruína do
território que virou a cidade.

Eu me entendo, assim como esse processo de cidades, com camadas e


camadas de processos de construções sociais colonizatórias. Eu não
procuro entender os prédios, ou o asfalto, ou o concreto, ou o ferro que
constrói essa cidade, eu procuro encontrar camadas abaixo disso que
revelem uma ancestralidade deste território.
É assim que eu entendo a cidade, é assim que eu entendo minha
existência, é assim que eu entendo o meu trabalho de rasurar, de raspar
essa colonização, essas camadas de colonização até encontrar algo que
seja ancestral no meio disso tudo. (BANIWA, [s. d.]).

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Denílson se dedica à arte urbana. Segundo o artista, mesmo com todas as


suas contradições, a cidade é o lugar mais democrático para arte, onde é acessível
para todos. Baniwa faz cartazes artivistas pelos direitos dos povos indígenas e os
imprime em lambe-lambe para espalhar nos espaços públicos. Já expôs trabalhos
em outdoor (9 m x 3 m), como a obra “RJ Terra Indígena” (2020); fez pinturas nos
muros das cidades, como um autorretrato na empena cega de um prédio no
Minhocão, em São Paulo; e projeções a laser de desenhos e frases em monumentos
públicos urbanos. Vive no embate entre dois mundos, e isso pode ser visto em suas
obras: na “Série Mimética e Resistência: Akangatára” (2022), utiliza serras para fazer
objetos que são tradicionais dos povos indígenas, como o cocar. “Quando estou
diante de uma narrativa colonial, eu me sinto provocado a querer encontrar naquela
narrativa o que está oculto para a maioria das pessoas” (BANIWA, [s. d.]).
No seu trabalho de intervenção em obras históricas, usa uma operação em
que tira o foco da narrativa da colonialidade e projeta o foco em sua narrativa. Nas
gravuras que retratam os rituais antropofágicos, Baniwa acredita que a imagem “se
resume a um churrasco de gente” em que a arte foi usada com a finalidade de
distorcer todo o sentido do ritual, que é muito complexo para alguns povos
ameríndios – de modo que essas populações fossem bestializadas. Isso foi usado
para justificar a ocupação e a dominação deste território, numa tentativa de
apagamento da cultura e negação da humanidade dos povos originários. Denílson
afirma: “o meu trabalho nestas obras é comentar sobre como devorar o outro pode
ter muitos sentidos além do ‘comer uma pessoa’. O domínio, a deglutição do outro
pode acontecer de formas sutis e invisíveis” (BANIWA, [s. d.]). Neste trabalho
Denílson recorta, ou rasura, ou desenha, ou escreve alguma frase sobre as gravuras
históricas numa tentativa de reescrever a história a partir do seu ponto de vista.

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Como combater o um avanço colonial, se os poderes são desequilibrados


de mais. Meu povo acredita e eu acredito num elemento que é imaterial e
que modifica o ambiente e as coisas invisivelmente e esses elementos,
esses seres que vivem conosco na floresta é o que eu trago pra cidade pra
movimentar invisivelmente o ambiente o que eu trago da minha cultura pra
minha exposição ou uma obra minha, eu trago um ícone impresso gráfico e
trago um ser invisível, para que ele modifique o espaço e o pensamento das
pessoas no imaterial. (BANIWA, [s. d.]).

Alguns indígenas tiveram contato com o conceito de decolonialidade de


Nelson Maldonado-Torres, outros não, mas podemos ver um movimento de giro
decolonial, conscientemente ou não – e eles estão se articulando. No Brasil, os
indígenas travam uma luta com a colonialidade há quinhentos anos, e podem ser
observadas atitudes decoloniais para tentar construir um mundo onde muitos
mundos possam existir. São cinco mil povos indígenas no mundo todo, distribuídos
em todos os continentes, cada um com sua narrativa, seu idioma, sua cosmovisão e
suas riquezas imateriais; eles preservam 80% da biodiversidade do mundo.

Anita Ekman, artista visual, performer e assistente curatorial, defende: “O


Brasil é o país com a maior riqueza de plantas do mundo (46.097 espécies,
43% endêmicas). Essa imensa biodiversidade está localizada
principalmente nas florestas que compõem o território brasileiro e que são
resultado de um milenar manejo ambiental dos povos indígenas. Recentes
estudos sugerem que 60% da Amazônia é antropogênica, o que significa
dizer que a maior floresta tropical do planeta foi plantada, cultivada e
intensamente manejada por mãos e mentes indígenas. A floresta é,
portanto, uma grande criação cultural e o maior legado da resistência
indígena para o mundo”. (SELECT, 2022).

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