Location via proxy:   [ UP ]  
[Report a bug]   [Manage cookies]                

Outono

Fazer download em pdf ou txt
Fazer download em pdf ou txt
Você está na página 1de 200

OBRAS COMPLETAS

DE

1 M I0 HLH3A10 BE CASTILHO

VOLXTME SX.®
VOLUMES P U B U I3 Æ 0 S :

I — A m o r e m e la n c o lía .
I I — A CHAVE DO ENIGMA.
I li — C a r t a s d e Ecco e N a r c i s o *
IV — F e l i c i d a d e p e l a a g r i c o l t u r a ( i . ° v .)
V — F e l i c i d a d e p e l a a g r i c o l t u r a (2.* v.)
V I — A p r i m a v e r a ( i . ° voi.)
V I I — A p r i m a v e r a ( 2 .® v o i.)
V i l i — Vivos e m o r t o s — Apreciações mo-
raes, litterarias, e artísticas.
IX — Vivos js m o r t o s (2.® vol.)
X — Vivos e m o r t o s (3 .®vol.)
X I — Vivos e m o r t o s (4.® vol.)
X I I — V ivos e m o r t o s ( 5 .®vol.)
X III— V iv o s e m o r to s (6.® v o l.)
X IV — Vivos e m o r t o s (7.® vol.)
X V — Vivos e m o r t o s (8.® v o l.)
x v r — E x c a v a ç ó e s p o e t i c a s ( i . 0 v o l.)
X V II — E x c a v a ç ó e s p o e t i c e s (2.® v o l.)
XVIII — E x c a v a ç ó e s p o e t i c a s (3 .° v o l.)
XIX — O P r e s b y t e r i o d a m o n t a n h a ( i . ° v . )
X X — O P r e s b y t e r i o d \ m o n t a n h a (2.® v .)
X X I — O O ü t o n o i.® vol.)

NO P R É L O :

X X II — O O u t o n o (2.® vol.)
OBRAS COMPLETAS DE A. F. DE CASTILHO
Rerâlas, annotadas, e prefaciadas por nm de seas filhos
. - XXI .............................................. :

O OUTONO
VOLUME 1

L IS B O A
E m p re z a d a H is t o r ia d e P o r t u g a l
Sociedade Editora
L IV R A R IA M O D E R N A TYPOGRAPHIA
R ua A ugusta, 93 45, R ua Ivens, 4 7
1905
Pergat ad iibum.
H orat. — Art. Poti.
ADVERTENCIA DOS EDITORES

A Castilho sollicitavam os seus amigos,


publicasse nova collecção de versos, desde
que em 1844 sahiram á luz as ExcavaçÕes
poeticas. Absorvido n’outros trabalhos/ re­
sistia o poeta a essas amigaveis instancias.
Em 1862, finalmente, consentiu em que ex­
cavassem por elle nos seus papéis, e coor­
denassem um volume. E ’ este. Pediu licença
a el-Rei o senhor D. Luiz, e dedicou lh’o.
¿A pessoa encarregada das buscas exage­
raria o encargo, juntando entre algumas pe­
ças monumentaes algumas bagatellas ? tal­
vez ; mas é preciso notar uma coisa : a cri­
tica affectuosa náo conhece limites; aos seus
olhos tudo parece digno de ser salvo do es­
quecimento ; e diz ella de si para comsigo :
conserve-se tudo, e o Publico joeirará.
Eis ahi a explicação de se toparem n’ este
volume peças fugitivas, feitas a correr, por
motivos occasionaes, muitos d’elles futeis. O
merito das mais notáveis compensa á farta
o peso leve das taes bagatellas.

i
A SU A M A JESTA D E FIDELISSIM A

O SENHOR DOM LUIZ

S enh or :

Ainda el-Rei D. Pedro V , que Deus ha­


ja, governava este Reino, e para annos lar­
gos nol-o promettia a sua florente e virtuosa
mocidade, quando eu sollicitei e obtive do
senhor Infante D. Luiz a licença de offere-
cer a Sua Alteza a presente collecção de
poesias.
Era um publico testemunho que eu dese­
java prestar de desinteressado e agradecido
affecto ao Infante herdeiro dos espiritos do
de Sagres, pelo summo favor com que na
sua viagem a A frica Sua Alteza se dignára
de me honrar na pessoa de meu filho, sim­
ples aspirante de Marinha sob o seu com­
mando.
Sua Alteza, apreciando n’aquelle mance­
bo, quasi creança ainda então, o seu enthu-
siasmo pelo bello, a sua paixão pelo mar e
pela Poesia, e o entranhado affecto com que
lhe recitava de cór os mais sublimes poemas
de Hugo e Lamartine, de Byron e de Man­
zoni, concedia-lhe generoso largas horas da
8 Empreçá da Historia de Portugal

sua intimidade artistica; allumiava-o com as


observações da sua critica; repartia com elle
os frutos do seu saber, e tacitamente m ’o
confirmava no culto civilisador das boas ar­
tes.
Não é a vaidade que em mim fala; é a
gratidão. Não é a um herdeiro do meu no­
me, é a Sua Alteza que eu exalto com es­
tas verdades, já aliás registadas para a im-
mortalidade por um dos nossos mais elo­
quentes historiadores, Rebello da Silva, na
biographia de Vossa Majestade Fidelissima.
*
Prouve depois á Providencia levantar ao
throno aquelle Infante de optimos auspicios:
formado pelos estudos, pelas viagens, pelos
trabalhos, pelas dores, e pela Poesia.
Hesitei á porta do Paço com a minha hu­
milde offerenda nas mãos, incerto se ousaria
apresentar ao Monarcha, absorto nos inte­
resses de todo um Reino, um ramalhete que
só fôra destinado a um Principe esclarecido,
e com horas vagas para se entreter com
amenidades de poetas; mas decidi-me: pago
ao R ei o que ao Infante promettêra.
Ainda bem que a alma e coração que lá
me namoravam no esconderijo volante ae um
navio, reapparecem aqui egualmente convi­
dativos sob as abobadas do palacio. O ho­
mem que honrava a farda, avulta ainda com
todos os seus dotes atravez da purpura.
*

Senhor: A affeição que Vossa Majestade


Fidelissima consagra ás Letras e ás Artes, é
Obras completas de Castilho y

quanto a mim, um ditoso auspicio para o seu


reinado.
Depois que a philosophia começou a sahir
da infancia, entrou-se logo a perceber que o
bello e o bom, o verdadeiro e o util, eram
emanações do mesmo Principio Eterno, e ele­
mentos, sob apparencia de antagonistas, mu­
tua e simultaneamente conspirativos para a
felicitação da Humanidade.
A s fabulas dos grandes poetas a amansa­
rem feras, edificarem cidades, reunirem po­
vos, erguerem templos, crearem leis, costu­
mes, artes, e civilisação, tudo pelo influxo
prestigioso de suas lyras, se não continham
historia, encerravam sem duvida prophecia.
A edade dos Orpheus não passou; está para
vir, e de seculo para seculo se avisinha. Já
n’esta ante-manhan se está pressentindo o que
quer que seja do seu clarão, da sua fragran­
cia, e do seu calor. E ’ um dia que ha-de vir
crescendo harmonioso e doirado sobre as
pedras dos nossos tumulos, fazendo depois
florir os ciprestes de nossos filhos, e fruti­
ficar, e cada vez a mais, os dos nossos ne­
tos.
A Poesia, na sua accepção ampla e ver­
dadeira, é o antever de muito longe, o ou­
sar denodado, o cravar olhos no sol do ideal
sem trepidar» e ver no homem, tão clara­
mente como o corpo que pede pão e vesti­
do, um espirito que exige luz, um coração
que só de amores se alimenta. Isto é a Poe­
sia; e esta Poesia é a que está predestinada
a ser Politica.
Entre os que só olham para a terra e para
a seara, para a machina, para a estrada e
io Empresa da Historia de Portugal

para o vapor, muitos rirão d’est a fé ; mas


não rirá por certo Vossa Majestade, que lê
e medita Hugo; V ossa Majestade, compra­
zo-me de o acreditar, dá graças lá por den­
tro á Providencia de o ter mandado ao
mundo n’esta èra, em que, pelo apuro das in-
telligencias, se estão preparando taes desti­
nos; e ambiciona mais que tudo fazer do
sceptro vara de propheta, que, dando nas^
rochas aridas, as desentranhe em fontes co­
piosas.
Com estas persuasões minhas ácerca das
ambições generosas de Vossa Majestade,
ainda mais me confirmei na esperança de
que alguns d’estes meus versos haviam de
ser por Vossa Majestade recebidos com boa
sombra; e logo que o fossem, algum proveito
poderia advir por elles á nossa terra.

Senhor : Em quanto o primeiro dos nossos


poetas lyricos e dramáticos está, deposta a
iyra, provando nas salas do Governo que o
engenho é para tudo, e que o reino da P oe­
sia prática realmente se approxima, consa­
gro eu, religioso e devoto, os remanescentes
ao meu estro, se porventura o tive alguma
vez, á mais urgente de todas as tarefas so-
ciaes para a presente edade d’este Paiz.
Este livro vai cheio de versos, que a phi­
losophia, a caridade e o amor á Patria me
inspiraram. E ’ portanto, moralmente consi­
derado, um açafate de frutos do meu outo:
no, como a P rim avera fôra um ramalhete
das boninas da minha adolescencia. Não são
Obras completas de Castilho

frutos de enlevar olhos por formosos e ra­


ros ; mas, como incluam substancia que tal­
vez nutra, e sua virtude medicinal, e conte­
nham algumas sementes proveitosas, já não
serão por Vossa Majestade desdenhados.
*

Senhor: Tenho eu para mim que a Politi­


ca n’esta edade aita, d’onde se avista para o
occaso e para o nascente, já se não póde es­
quivar, sob algum pretexto, de trabalhar se­
riamente para as gerações futuras, começan­
do pela infancia actual. Estas creanças, ale­
gria, musica, vaga esperança e cuidado solli­
cito das familiás, estes débeis innocentes, es­
tes cidadãosinhos ainda sem direitos formu­
lados, estes esboços de homens e mulheres
ainda sem encargos, estes espiritos que um
arrebol de rasão apenas illumina, vão ser
dentro em breves annos a Nação toda. En­
cherão e dom inarlo a cidade. Nós dormire­
mos ño cemiterio. Dos bens e males que elles
fizerem, grande parte ha de ser lançada á
nossa conta, como á conta d’elles se carre­
gará grande parte do mal e do bem que lá
ao diante vier a surdir nos seus herdeiros.
Preparemos pois para tamanhas respon­
sabilidades estas creanças; allumiemos-lhes o
espirito, que será ensinarmos-lhes a ama­
rem-se e a bemfazerem-se em si e nos seus,
conhecidos e desconhecidos, proximos e re­
motos.
Sejâmos como o seareiro previdente: não
semeemos só para haver alimento na nossa
meza; semeemos muito principalmente para
as sementeiras ulteriores.
ia Empresa da Historia de Portugal

Todas as variadíssimas instrucções de que


se ha-de compôr o dote que devemos á
nossa descendencia, teem a primeira raiz na
instrucção elementar. A escola primaria deve
ser tão franca e tão obrigativa a todos, como
á pia baptismal. O instituidor primario obri-
gam n-o os sagrados cânones da philosophia
moderna a ser para os espiritos infantis um
perfeito cura de almas, accessivel a todos,
grave sem carranca, familiar e alegre sem
mate no Yespeito, claro e amoravel na dou­
trinação, prégando pelo exemplo a bemque-
rença mutua; um varão de conselho auto-
risado, que as familias respeitem como um
vice-pae de todas ellas; um individuo de
eleição, que saiba, possa e queira cultivar si­
multaneamente na população pueril o enten­
dimento, o coração, e o corpo: o corpo para
a vida, para a saude, para a longevidade; o
coração para as virtudes e para a harmonia;
o entendimento para a sciencia e para a ver­
d a d e s entendimento, quanto cabe em en­
tes limitados, para aguia; o coração, para
pomba; o corpo, companheiro inseparavel
de ambos, para athleta, que se atreva com
as durezas e trabalhos que o aguardam ine­
vitáveis ao longo da vida.
A tudo isto ha de attender com perfeita fé
e caridade o instituidor, e forcejar pelo con­
seguir até onde lh’o permittam as suas for­
ças, os seus recursos, e os designios da P ro­
videncia, que é, ninguem já hoje o duvida, a
progressista dos progressistas, e a mãe sem
pre sollicita do genero humano.
Demos embora, ou nas más horas, aos
egoístas, aos de curto alcance, aos apathicos,
Obras completas de Castilho i3

aos que só aspiram ao presente, que a rege­


neração cabal do futuro pela instrucção uni­
versal do Povo em flôr e em germen, poderá
não passar de utopia; é já tão nobre e tão
santo o crêr n’ella, que todos os sacrificios
lhe são devidos, e para ella convem se en­
derecem todos os exforços. O de que porém
se não póde duvidar no actual adiantamento
da philosophia, é que, se, postos sincera­
mente os meios para bem crear e educar,
se não chegar ainda á perfeição, muito e
muitíssimo se ha-de conseguir; e tanto basta
para que o tental-o nos fique sendo logo
obrigação.
¿Mas onde estão realmente os sacrificios
que espantem e intimidem a quera tenha
alma e discurso, entranhas e hombridade,
quando se trata da reconstrucção, ou, por
falar com mais acerto, da fundação, da ver­
dadeira escola elementar? Em nos levan­
tando um pouco acima dos preconceitos, com
que nos afizeram desde os primeiros dias,
em nos começando a envergonhar de repe­
tirmos que no ensino das primeiras letras
não cabe novidade, nem philosophia, em nos
convencendo devéras de que, onde tudo no
mundo cresce e se desenvolve, não é vero­
símil nem concedivel, que os institutos ele­
mentares sejam os unicos fatalmente con-
demnados a nunca sahirem do seu estado
embrionário, selvagem e anachronico, desde
logo nos sentiremos naturalissimamente pre­
dispostos a crêr, que se deve olhar para es-
tes^viveiros do porvir, como para coisa im­
mensa e a mais momentosa, em que ha
muito que se póde e se deve fazer; e que
14 Empresa da Historia de Portugal

esse muito para os resultados de afortuna-


ção, segundo as ideias que se devem ter da
Providencia e do progresso, não póde ser
tão dificultoso como se figura a quem pre­
fere ao investigar e discorrer, o dormir á
sombra mortifera das preoccupações heredi­
tarias.
Cada edade do genero humano aproxi-
ma-lhe novas luzes, e lhe traz novos encar­
gos. Outros séculos virão revelando e pe-
dindo mais, e sempre mais, no assumpto
que tratamos. Sem nunca se chegar á per­
feição absoluta, ir-se-ha sempre tendendo e
caminhando para ella.
Cada era trabalhe no seu andaimo; o an­
dar que ella edifica ficará para fundamento
do que para cima se lhe ha-de levantar; os
lanços que já lá ficam para baixo lh’o affian-
çam. Esta nova Babel, é Deus mesmo quem
noi-a inspira.
*

¿A que se reduz a nossa tarefa de hoje ?


Medito n’isto ha muitos annos ; consultei os
factos; allumiei me da experiencia; consoli­
dei convicção; dil-a-hei aqui a Vossa Majes­
tade, que póde mais, e muitíssimo.
Factos averiguados:
O s analphabetos invejam a instrucção para
si, porque, mesmo na sua ignorancia, já re­
conhecem que ella é uma força. Se a não
procuram, se offerecida a não acceitam, é
porque os intimida a demora, a difficuldade,
e o tedio do aprender.
Não só os analphabetos, mas ainda mui­
tos dos que sabem 1er, esquivam seus filhos
Obras completas de Castilho 15

á escola, pela certeza experimental de que


ali se lhes consumiriam enfadonha e mi­
seravelmente annos e annos, com pouco e
ruim fruto para a intelligencia, co ti muito
e notorio estrago para a innocencia e para
os costumes, sem nenhum lucro perceptível
proximo nem remoto ; sendo de mais a mais
esses annos de supplicio dos seus queridos
innocentes, lucros cessantes na economia
domestica, para a qual esses pequenos entes
podem já contribuir com mil serviços valio­
sos.
Os paes, que possuem coração, e as mães,
que não possuem quasi outra coisa, confran­
gem-se com a lembrança de que os tenros
penhores de todas as suas affeiçÕes hão-de
ir ser de dia a dia suppliciados pelo phan­
tastico delicto de não entenderem o que lhes
não é intelligivel, de não amarem o que lhes
é por mil modos odioso e repugnante.
O s miseráveis innocentes vêem na escola
um carcere e um desterro; no mestre um
juiz apaixonado e um algoz; no ensino um
cahos; fogem dos bancos escolares sempre
que podem; distrahem-se, até por instincto
de vida, de uma applicação, a que nem a in­
telligencia, nem a phantasia, nem o carinho,
os affeiçôa; tomam odio prematuro aos li­
vros, que os despojam das suas mais suaves
horas, sem nada lhes darem, nem promet-
terem; regam-lhes as enigmáticas paginas
com as lagrimas em que se desfazem os
seus brios interiores aperreados, muitas ve­
zes destruidos á nascença, por uma escravi­
dão ignóbil, insensata, e inutil; na primeira
hora em que o podem, dilaceram-n-as com
i6 Em preja da Historia de Portugal

o mesmo asco c horror, com que pisam e


destroem no campo um reptil hediondo e
peçonhento. Appello para as reminiscencias
de quantos em pequenos cursaram aquelles
ridiculos e mentirosos seminarios de instruc-
ção e educação. ¡Ainda mal, ou ainda bem,
que Vossa Majestade o não sabe por si pro­
prio! Vossa Majestade recebeu o primeiro
ensino de Sua Mãe, como todos o devêramos
receber, como todos o receberão sem falta,
quando, realisada a utopia de hoje, as esco­
las publicas, já então bonissimas, se fecha­
rem por supérfluas, havendo em cada casa
a instituidora natural habilitada para o ser,
a mulher que deu a vida e o leite, e a quem
tocará ministrar completa toda a primeira
amamentação da alma.
Estes são os factos; ¿mas as causas d’estes
factos deploráveis quaes serão? Estudei-as, e
tambem as reconheci ; quero aproveitar o
lanço de as expôr a Vossa Majestade ; tal­
vez se me não depare outro, e o caso é de
consciencia.
*

Muito zombeteiro estulto, muito praguento


sem alma, ha-de fechar o livro n’este passo;
mas como Vossa Majestade o leia, e ha-de
lel-o, pouco importam aquelles desdens. Não
sei se me escutará numero grande ou pe­
queno de Portuguezes ; sei que me vai escu­
tar Vossa Majestade, e pesar na balança r e ­
cta do seu juizo as rasões que lhe offereço,
acolhendo-as, ou rejeitando-as, segundo lhes
reconhecer, ou não, verdade.
Obras completas de Castilho 17

¿Que é uma creança? E ’ um ente novo,


cuja indole se vai preparar. Póde preparar­
se bem, ou mal. Preparada devidamente, o
afortunará a elle, e por elle aos mais com
quem o aguardam relações activas e passi­
vas de todo o genero.
Este ente novo, recommendavel pela fra­
queza, sympathico pelas graças, interessante
pela innocencia, é cristallino e transparente
por todos os lados. Vê-se-lhe por dentro,
mergulhado em luz, tudo que por lá viceja
e floresce; não recata, não dissimula, não fin­
ge ; nada d ’isso lhe ensinaram ainda. Nin­
guem passa, que o Jnão olhe ; ninguem o vê,
que o não conheça a fundo e a intimo; e
ninguém de coração o chega a conhecer, que
o não adore como a um objecto puro, santo,
melindroso, que está sem voz intimando todo
o favor que merece, que está indicando sem
sciencia todos os carinhosos soccorros de que
necessita.
¡Que alto encargo não é pois o de quem
ha-de jardinar estas flores humanas!
H a no menino um corpo medrançoso, mas
frágil; importa coadjuvar a Natureza a des-
envolvel-o. Ha um coração, terra de parai-
zo, em que só se devem semear os bons afte-
ctos. H a um espirito ávido, soffrego, insacia-
vel de conhecer o mundo, que o desatina
com tantas novidades e mysterios. Aquelle
corpo tem as forças em embrião ; aquelle
coração possue em germen os instinctos so-
ciaes ; aquelle espirito foi fadado com uma
logica simples e recta, que pede instinctiva-
i8 Em prejá da Historia de Portugal

mente a cada causa os seus effeitos, a cada


effeito as suas causas.
Reconhecidos estes dados fundamentaes,
está achado o epilogo da primeira creação ;
é mistér seguil-o, sob pena de se incorrer
em sacrilegio e impiedade ; em deshumani-
dade e absurdo; em infanticidio e homicidio.

Nada d’isto se {Soude enxergar em séculos


pouco reflexivos; mas é já muito grande ver­
gonha não o comprehender hoje em dia.
Nos paizes mais bem medrados pela cul­
tura em entendimento e em amor, teem sido
bem apparecidos, e escutados seriamente, os
alvitristas da educação pueril, humana e chris-
tan, luminosa e liberal. O s trabalhos práticos
dos Pestalozzis, Lemares, Jacotots, e Frœ-
bels, são crèdores de universal agradecimen­
to ; e algum dia alcançarão toda a honra que
lhes é devida.
Defenda-me Deus da fatuidade de querer
medir-me com o mínimo dos homens d’essa
polpa, na vastidão e profundeza das ideias ;
mas como cada homem, devendo justiça aos
outros, a deve tambem a si, e lhe cabe rei
vindical-a, se lh’a denegam, direi, sem mo­
destia nem orgulho, que o Methodo p o r tu ­
gués, segundo o traz comprovado a experien­
cia, é, não menos que as obras d’esses gran­
des engenhos, um beneficio, não para se
agradecer (não foi feito para isso) mas para
se acceitar e aproveitar-se, sem nenhuma
duvida.
Obras completas de Castilho 19

O Methodo portugués, Senhor, por vezes


o tenho repetido, abona mais a boa vontade
que o talento do sea autor. Não brotou,
qual ao presente se acha, completo, adulto,
e armado, do cerebro de um homem. Com-
parando-o nas successivas edições que d’elle
se teem vindo filiando, sem cu sta se averi­
gua, que o autor metteu para a obra mais
cabedal de zelo, paciencia, e observação, que
de engenho creador; que teve por collabora-
doras as proprias creanças, com quem e para
quem trabalhava; que foram as diffìculdades
mesmas, não previstas a principio, e surdi­
das depois inesperadamente, e em cardumes,
as que a pouco e pouco suggeriram os expe­
dientes que as haviam de destruir. A escola,
em que tanto tem lidado, não foi para elle
por muito tempo senão uma quinta experi­
mental, em que baldou muita semente, errou
muito calculo de estações e de meteóros,
quebrou e enjeitou muito instrumento, de
que se havia applaudido em quanto o ideava;
mas como em todo aquelle grangeio andou
sempre sincero e consciencioso, mais sollicito
de realidades de abundancia que de vanglo­
rias miseráveis, o correr do tempo fez o seu
officio: afugentou as illusões, assentou as
verdades, sanccionou os processos presta­
dlos, e veio a converter a quinta experimen­
tal, que foi, na quinta modelo, que hoje é.
Defendendo portanto o M ethodo portu-
guez, creado com tanto amor, e tão escru­
pulosa probidade, nenhum homem de juizo
são, e nonesto, dirá que advogo uma gloria
io Empresa da Historia de Portugal

minha, mas sim uma herança patria, em que


eu suei, calle jei, e envelheci, no meio dos
cantares e das alegrias dos meus imberbes
e innúmera veis cooperarios.
T oda esta cultura, desde a primeira arro-
teação até á actual prosperidade, tem sido
singelamente executada á vista de toda a
gente; toda a gente, quer o-confesse quer
não, sabe portanto( e se o não sabe é por­
que acinte o não quer saber,) que a nova es­
cola, estudada na propria indole dos rapazi­
nhos, edificada e aperfeiçoada com elles, sa­
tisfaz, ou a todas, ou, inquestionavelmente,
ás principaes indicações aa philosophia ho­
dierna em taes materias.

Voltemos ao que ha pouco assentáramos


como bases. Muito de industria repisamos,
e havemos de repisar, n’estas materias ainda
não vulgares.
¿Que pede o espirito dos meninos? no­
ções claras, legitimamente deduzidas, desde
o mais simples até ao mais complexo; um
processo de passo a passo, sem lacunas nem
saltos, desde o natural conhecido e familiar,
unico ponto de partida racional, até ás sum-
midades do artificial, para onde é o itinera­
rio. Muito bem; ¿que faz então o Methodo
portugueçi faz o mesmo que fez de certo o
inventor da escrita e leitura ; porque, não
cessemos de o repetir, ensinar uma arte qual­
quer,*^ creal-a para quem ainda a não pos-
sue; e a mais segura carta de guia que para
tal fim se póde seguir, é a historia mesma,
Obres completas de Castilho 21

documentada ou conjectural, d’essa primi­


tiva creação.
Não havia ainda escrita nem leitura. Um
genio, esquecido hoje pela ingratidão dos sé­
culos, mas como que inspirado pelo Ceo, so­
nhou um dia no quanto seria util fixar-se, se
fosse possivel, em vestigios perduráveis, a
linguagem dos sons, refiexo instantáneo das
ideias e affectos. O pensamento havia sido,
por um don divino, convertido em fala; im­
portava forcejar em que a fala se conver­
tesse, por outro don quasi tão divino como
o primeiro, em signaes fixos, rigorosos, tão
claros, tão intelligiveis, como ella, mas que
podessem chegar a distancias de logar e tem­
po, a que as fugazes ondulações sonoras do
ar não abrangiam.
Achado isso, se jamais se podesse desen­
cantar, ficava o homem supèrstite a si mes­
mo, immortal na convivencia dos seus seme­
lhantes. Perpetuar se hia a lembrança dos
tempos, dos successos, dos descobrimentos,
dos inventos. Nenhuma conquista momento­
sa do espirito ficaria mais em contingencias
de esquecimento. Cada edade, dotada in in­
tegrum com o melhor das noções das idades
precedentes, edificaria sobre bases mais al­
tas, mais amplas, e mais sólidas, a sua ta ­
refa de progresso.
Era sublime o sonho d’aquelle Prometheu.
A Divindade que lh’o inspirára, não o des­
amparou no temerario commettimento.
*
Para chegar á resolução do problema que
se propozera, começou racionalmente por
22 Empresa da Bistorte de Portugal

averiguar, para a reconhecer, a mechanica


da linguagem falada, que era para elle o
unico ponto possivel de partida.
¿Se inventasse um signal, um traço, urna
figura, um caracter, gravado ou pintado,
correspondente a cada palavra, a cada um
dos membros distinctos, de que a phrase
pronunciada se compunha?. . . Estendeu a
consideração pelo innumeravel dos vocábu­
los, e esmoreceu. ¿Como crear tantos si-
gnaes?... ¿Como distribuil-os, ¿em perturba­
ção, pelos vocábulos?... ¿Com que fio enca­
minhar a memoria para os reconhecer a
cada trm, e a todos, e de relance, em tão
abstruso labyrinto?. . .
O genio, quando verdadeiro, não recua
diante da difficuldade insuperável: pára, re­
concentra as forças, e reconsidera. Reconsi­
derou, e disse: Sejam embora innumeraveis
para mim as palavras, de cujas diversas
combinações resulta a multidão, ainda mais
espantosa, dos periodos; talvez que, assim
como logrei estremal-as no período, possa
estremar n’ellas membros componentes, e
que esses, os quaes eu já entrevejo se re­
produzem idênticos em muitas palavras di­
versas, não sejam em tão avultada quantia,
que um exforço da vontade e da memoria os
não possa dominar. Assignaladas que sejam
as parcellas constitutivas das dicções, assi­
gnaladas ficarão as dicções, que são a somma
d’ essas parcellas.
Recitou pausadamente as palavras; con-
v e rce u s e por este exame attento, de que a
extensão d’ellas era desegual; que umas se
proferiam n’um tempo indivisível, outras em
Obras completas de Castilho a3

dois, outras em tres, outras em mais. Eram


as syllabas que se lhe revelavam. Com
effeito, syllabas perfeitamente idénticas oc-
corriam na formação de termos diversissi­
mos. Mas, por infortunio, a multiplicidade
das syllabas aterrava ainda a memoria; teve
de parar de novo, e de novo reflectir.
A decomposição do discurso em palavras
conduzira-o á decomposição das palavras em
syllabas; a decomposição das palavras em
syllabas não podia deixar de o conduzir
sgora á tentativa de decompôr as mesmas
syllabas em elementos.
A phenix ideal, que por duas vezes lhe
fugira, já não podia mais esquivar-se-lhe; es­
tava colhida no intimo do seu ninho; a mul­
tidão das syllabas, de cujas combinações re­
sultava a multidão muito mais avultada das
palavras, como as combinações das palavras
originavam as combinações infinitas dos pe­
riodos, a multidão das syllabas, repetimos,
era effectiva e decididamente resultado de
pouquíssimos elementos sónicos, primor-
diaesy bem distinctos, e sem esforço reco-
nheciveis.
D ’estes elementos os principaes, e os me­
nos, eram vozes simplices; os secundários,
em pouco maior quantia, eram inflexões mo­
dificadoras dessas mesmas vozes.
Creou para cada voz um signal visivel, a
que se chamòu vogal; para cada inflexão de
voz, outro, que recebeu o nome de con­
soante.
No seu curto alphabeto ficaram para sem­
pre fixados os equivalentes visuaes de todos
quantos sons tinham até ali enxameado con-
H Empresa i a Histeria de Fortugai

fusos e fugazes no commercio dos espiritos.


T aes foram (postas de parte as incomple­
tas, vagas e confusas escrituras symbo li­
ças, geroglificas, etc.), taes indubitavelmente
foram os primórdios da arte de escrever,
filha legitima da arte de falar, mãe e socia
da arte da leitura.
#

Gloria-se o M ethodo portugués de haver


sido o primeiro que attentou n’este facto im­
portantissimo, para extrahir d’elle conse­
quendas praticas da maior vantagem. ,
O mestre e os alumnos, ao exemplo d’a-
quelle inventor, começam trabalhando n’um
objecto que todos elles possuem em com­
muni, que todos elles apprehenderam sem
exforço, e que todos amam por isso mesmo ;
este objecto é a Lingua do seu Paiz. O s vo ­
cábulos, pausadamente proferidos, dão lhes
logo as syllabas; as syllabas, pronunciadas
e ouvidas com attenção, patenteiam a um e
um os elementos constitutivos.
D’este fácil exercicio nascem ainda dois
proveitos, que se lhe não pediam: acciara se
e apura-se a pronuncia; corrigem-se mil bar­
barismos de dicção.
Gontrahido em poucos dias, e folgando,
o habito de analysar a palavra até aos seus
elementos sónicos, sem exforço se entra no
correlativo processo de recompôr dos ele­
mentos sónicos a palavra inteira e viva.
A esta synthese chamou-se leitura auri­
cular, como escrita auricular se chamára
áquella analyse.
Ahi chegado, aquelle homem creador in-
Obras completas de Castilho *5

ventára as letras, dando por nome a cada


urna o proprio som que ella era destinada a
representar.
O mestre, que achou as letras já inventa­
das, não tem mais que apresental-as a seus
alumnos, mnemonisando-lhes as fórmas para
que se aprendam á primeira vista, se fixem
para sempre na memoria, e se não possam
de fórma alguma permutar ou confundir.
Um singelo artificio satisfez a tudo isto :
cada letra, que d’antes não era mais que
uma combinação fortuita de traços, sem ra-
são de ser, e sem péga para a phantasia,
appareceu como sombra exacta de uma certa
figura conhecida. Essa figura tinha uma his­
toria, em que entrava, como parte essencial,
o som, que se pretendia, por que assim o di-
gâmos, tornar visivel. Conhecida a historia,
era impossivel encarar a figura sem mental­
mente se lhe ouvir o som. Apresentada a
sua sombra, a letra, a reproducção do mes­
mo som era instantanea e infallivel.
O alphabeto foi aprendido repentinamente;
não admira: ¡se elle se havia feito folgasão e
pueril na indole, rigorosamente motivado em
todas suas partes, e expurgado absolutamente
das ligas de valores heterogéneos, das falsi­
ficações absurdas, de que no antigo systema
se acompanhava o nome de cada letra, com
grave escandalo da logica e difficultação su b­
sequente no ensino !
Sabido o alphabeto, achar se hiam a subi­
tas, com espanto e alegria, na estrada real
da leitura ocular, os que a tempo se haviam
adextrado na leitura auricular, se, por des­
graça, as crueis semrasões das alcunhadas
26 Empresa da Historia de Portugal

orthographias sábias, irreconciliáveis inimi­


gas da instrucçao popular, não tivessem adul­
terado a formosissima simplicidade primiti­
va do invento.
Cada som na infancia, isto é na perfeição,
da arte, foi necessariamente representado
por um só caracter, e cada caracter era res­
tricto a um som unico; assim, o 1er e o es­
crever, eram instantáneos e seguríssimos.

Muitas causas diversas vieram destruindo


de Lingua em Lingua, e de era em era, aquella
simplicidade tão discreta e proveitosa, até
ao ponto de que hoje em dia qualquer pala­
vra escrita offerece muitas vezes ao prin­
cipiante tantas questões prévias para ser de­
cifrada, quantas as letras de que a mesma
palavra se compõe ; e pouco menor numero
de questões, cada palavra falada que se pre­
tende escrever. Uma só letra póde corres­
ponder a dois, tres, quatro, cinco, seis, e
sete elementos sónicos, como um elemento
sónico póde ser traduzido em caractères di­
versissimos; d’aqui, enormes, quasi insupe­
ráveis, embaraços para a escrita e para
a leitura. Nem para uma, nem para outra
d’estas desgraças, tinha remedio a escola
velha, nem jámais o procurára; o Methodo
português buscou-o, e, se o não descobriu
radical, porque o estrago produzido pela
pseudo-orthographia era incurável, desco­
briu palliativos que o minoraram.
A ’s difficuldaaes da leitura, resultantes
da multiplicidade dos valores de cada letra,
Obras completus de Castilho *

acudiu com as possíveis regras que deter­


minassem qual d’entre os valores possíveis
convinha a cada letra em cada hypóthese.
Essas regras, para nunca perder de vista o
agrado, a attracção, a seducção para o saber,
metrificou-as, rimou-as, deu-as a cantar.

Pelo que pertence ás questões e queítiun-


culas da orthographia (¡extranha sciencia que
não tem em todo Portugal dois sabios per­
feitamente concordes !) o M ethodo portugués
nada ousou directamente.
Espíritos confusos, ou de má fé, pregoa­
ram, calumniosa e despejadamente, que o
novo ensino era incompatível com isso que
elles appellidavam orthographia; quando a
pura verdade, sabida e provada, era esta :
que o M ethodo poriu¿ue\, a poder de ana-
lysar com os seus alumnos cada urna das
palavras que se haviam de 1er, e cada urna
das palavras que se haviam de escrever,
lhes ía gravando cada vez mais fundo na
memoria alguma coisa, e muito, d’isso que
em geral se condecora com o titulo pomposo
e falso de orthographia.
Ninguem das escolas velhas sahiu jámais
que a soubesse; nas escolas methodicas en­
contram-se creancinhas que parecem tel a
adivinhado, e, graças ao diuturno martellar
da analyse, poderiam empyricamente corri­
gir a muitos mestres primarios do antigo
regimen.
O autor do Methodo portugués desejava,
e deseja ainda, para as escolas elementares,
¿8 Empresa da Historia de Poriugâi

e para a universalisação da leitura, uma es­


crita extremamente simples, exacta e rigo­
rosa; mas o Methodo portugués ensinou a
1er o que estava escrito á moda do tempo,
e ensinou mesmo a escrever em conformi­
dade com essa leitura.

A pontuação, de que nunca se fizera o de­


vido caso nos institutos da puericia, foi tida
em grande conta nas escolas methodicas.
Mnemonisou-se e explicou-se o tom e a
pausa de cada um d ’esses signaes, de que
resulta sentido, alma, vida, e a graça propria
a cada período; a creança, que pela curteza
da sua idade não póde ainda comprehender
senão minima parte do que lê, lê-o todavia
agora por tal modo, que parece entendei-o
a fundo, e o faz gosar de seus ouvintes.
*

Omittindo o mais que se innovou com boa


mão para o ensino prompto da calligraphia
popular, não luxuosa, mas sufficiente, clara,
e exacta, e para a leitura, egualmente mne-
monisada, dos numeros, tanto arábigos como
romanos, pequenos beneficios esses que a
ingratidão póde pagar á sua moda, mas já
não logrará escurecer, repito que, em rela­
ção ao espirito da infancia, nenhum metho ■
do, senão o portugue\, poz ainda até hoje
por obra n’este Remo (e não quero falar nos
outros, para não parecer jactancioso) o que
o bom senso e a humanidade estavam indi­
cando e exigindo.
Obras completas d i Castilho *9

Tornou se o estudo, de abstruso que sem­


pre fôra, eminentemente claro; de arido e
importuno, ameno e convidativo; de descon-
nexo e desordenado, deduzido; de diffuso e
somnolento, conciso e animado.
A logica nativa dos animos novéis, a an­
cia instinctiva de descortinar as causas, os
effeitos e os préstimos, propensões naturaes,
irresistíveis, da primeira edade, tudo foi de­
vida e religiosamente observado, servido,
satisfeito.
A allegação é esta; as provas estão nas
escolas regeneradas; mórmente se se com­
pararem com as suas incríveis antagonistas.

Pelo que pertence ao physico, e á saude


dos alumnos, ponto foi esse a que não atten-
deu menos o autor do Methodo p o r tugue
sincero amigo do futuro.
E ’ a actividade corporal uma lei imposta
pela Natureza aos annos crescentes. Contra­
riar esta lei sem demonstrada necessidade,
é affrontar sacrilegamente a Natureza, e em­
pecer aos seus olhos o recto e normal des­
envolvimento do individuo. A creança, como
tantos outros animaes no começo da vida,
necessita de grandissima agitação; dir-se hia,
que um mestre invisivel de gymnastica a es­
tá continuamente impellindo para o uso, até
ás vezes turbulento, das extremidades supe­
riores e inferiores, do tronco, dos pulmões e
da voz. A s pessoas adultas, sobretudo as já
decadentes, esquecidas de terem ellas mes­
mas sentido outr’ora em si aquella fatalidade
io F.mpreja da Histeria de Portugal

irrequieta e irresistivel, forcejam por cohi­


bir esses effeitos espontáneos de uma ener­
gia latente, em que já não podem tomar
quinhão, e, abusando egoisticamente da for­
ça e da autoridade, condemnam as pobres
avesinhas de Deus á immobilidade, ao silen­
cio, á escuridão, e a todas as funestas con­
sequendas physicas, intellectuaes, e moraes,
que de taes causas se originam; infligem a
almas viçosas um envelhecimento prematu­
ro, um infanticidio parcial, que outra coisa
não é o choverem gelo e trevas sobre tão
mimosos rebentos e botões de primavera.
¿Quererá isto dizer que recusamos á edade
madura, protectora natural da edade inci­
piente, o direito, e a obrigação de inspeccio­
nar a desenvoltura pueril, e de lhe cohibir
os excessos temerarios e perigosos? De ne­
nhuma sorte; o que unicamente pretende­
mos, é que as repressões só comecem, onde
os abusos principiam; e que para dentro da
área que elles cercam e ameaçam de longe,
reine para nossos filhos o seu quinhão legi­
timo de liberdade. O s direitos das creanças
não são menos respeitáveis, que os dos ho­
mens; são talvez ainda mais attendiveis, por
isso mesmo que lhes fallecem a força e a
arte para os fazerem valer.
Entre-se n’uma escola velha. Sente-se lo­
go o que quer que seja de repugnancia, de
terror, de reprovação instinctiva, de exe­
cração involuntaria, vendo n’aquelle espaço
estreito, mal arejado, nem sempre bem allu-
miado, desgracioso, fétido, um bando de in­
nocentes condemnados á immobilidade, ao
silencio, ao pasmo estúpido, sobre bancos
Obras completas de Castilho 31

duros e sem encósto, como os das galés, com


as pernas pendentes, os olhos automatica­
mente fitos sobre o indecifrável e odioso
enigma de urna pagina; isto em face de um
mestre antipathico, tão captivo, tão desgra­
çado como elles, seu tirannisado e seu ti­
ranno alternativamente, e a cujos lados avul­
tam os brazões millannarios do ensino des­
natural, os instrumentos de dor e de ver­
gonha, os impotentes auxiliares da impoten­
cia d’elle: a vara, a férula, as orelhas asi­
ninas.
¿Que fazem com effeito ali todos aquel-
les pobres amores, tão candidos, tão inoffen-
sivos, tão reconheciveis imagens ainda de
suas ternas mães, recem-arrancados de seus
seios e de seus abraços, ainda cheirosos á
suavidade do leite, ainda tépidos dos beijos,
e tão saudosos da primeira e naturalissima
escola em que aprenderam a fala, o andar,
e, de envolta com as noções rudimentaes do
mundo e da vida, o Padre Nosso, e a Sau­
dação angelica tão apropriada ás suas vozes
virginaes e femininas ?
A s ameaças e os castigos chovem inutil­
mente sobre os miseros acorrentados. A in­
dole nativa é n’elles mais forte que o terror
que lh’a procura sopear; a desinquietação
reina em todas as fileiras; surdem por toda a
parte o contrabando dos risos, das conver­
sações á socapa, os toques disfarçados dos
pés, as provocações das mãos, o commer­
cio furtivo dos olhares, os suspiros do can­
saço, as contorsÕes da impaciencia, as lagri­
mas. involuntarias que sulcam muitas faces,
a laceração raivosa das folhas, e a cada mi-
32 Empresa da Historia de Portugal

nuto os pedidos, nem sempre outorgados, de


uma licença para sahir.
¿Que significa tudo isto, espectadores ho­
mens e humanos? Tudo isto são protestos
da Natureza contra uma pressão absurda,
inutil, contraproducente; quando não, aguar-
dae a hora do levantar da escola: é uma de­
bandada, um frenesi, uma furia; saltam fu­
gindo uns por cima dos outros; a rua, ou a
praça, são campo estreito para as suas car­
reiras, para as suas lutas, para os seus
tripúdios, para as suas guerras; é o delirio
e o excesso da liberdade que se reconquis­
tou; os livros aborrecidos tornaram-se pro­
jécteis; as vozes represadas, rebentam em
celeuma; a arvore, a vidraça, o animal des-
cuidoso, o passageiro indifferente, são outros
tantos alvos ás pedradas; os mais pacatos
vingam-se em arremedar, entre as risadas
dos circumstantes, a carranca, as posturas e
os movimentos, do preceptor.
Breve: de indcles bondosas, soffredoras,
femininas, fez-se pela irritação uma especie
de ferocidade, que forma a contraposição
mais singular com a debilidade das forças,
com o macio das vozes, com o gracioso e
attractivo dos semblantes.

O M ethodo portugués não se contentou


de ser logico, preciso, e luminoso: reconhe­
ceu como dever o aproveitar para os traba­
lhos que tinha de perfazer as tão provadas
qualidades essenciaes e inauferiveis da’ Pue-
ricia, procurando unicamente dirigil-as ^om
Obras completas de Castilho 33

acerto'e amor para os seus fins, fins grandes e


grandissimos, sob as mais tenues apparendas.
Em logar de ter as creanças sentadas duas ou
tres horas consecutivas, contra a vontade de
Deus e d’ellas, fel as marchar tambem, to­
das as vezes que a lição não requería indis-
pensavelmente olhos fitos sobre os livros,
ou sobre o quadro da leitura commum.
Para estas marchas, não tumultuarias,
mas concertadas, ás quaes o gosto dos me­
ninos se accommoda ás mil maravilhas, era
essencial toda a exacção do rithmo. A s
mãos palmeando, e os pés accentuando as
passadas, como no exercicio de marcha dos
recrutas, ao mesmo tempo que marcam o
rithmo, lá vão robustecendo as extremida­
des.
*

E ’ o canto outro exercicio rithmico ex­


cellente, que o methodo amigo da civilisa-
ção se não envergonha de ter aproveitado
para amenisação das suas regras metrifica­
das e rimadas, e para os canticos religiosos,
por onde abre e cerra a abençoada tarefa
escolar de cada dia. Se é util aos meninos o
cantarem, não é preciso perguntal-o aos na­
turalistas e aos medicos: reconhece-se na
tendencia que em toda a parte se nota na
primdra edade para a cantoria; tendencia
que está por si mesma pedindo se aprovei­
te, e se encaminhe para o desenvolvimento
do gosto musico, companheiro, amigo e fau­
tor da civilisação, da sociabilidade e dos
costumes.
A escola velha, os seus parciaes apaixo-
34 Empresa da Historia it Portugal

nados, os espiritos ignorantes, e os animos


rudes, improbaram e escarneceram sobretu­
do estas prelibações musicas na primeira
educação, estas palmas, e este rithmo; fize­
ram mesmo d’essa pobre zombaria o seu
melhor argumento contra o ensino philoso­
phico, humano, e evidentemente fecundissi­
mo. O autor do Methodo já não tem a in­
decente humildade de lhes responder.
A s vantagens da harmonia são evidentes.
Cantam as salas e os theatros; cantam as
officinas e as fabricas; os exercitos mar­
cham, pelejam e triumpham, ao som de seus
instrumentos; a Religião mistura com os in­
censos as melodias nas suas festas; ¿por que
rasão a escola, que é um ninho, só a esco­
la sería excluida d’esta communhão univer­
sal da musica?!
*

M as o rithmo tem por si para as nossas


escolas outra rasão de maior momento ain­
da, se é possivel. Sem o rithmo rigoroso,
pontualissimo, não se obteria jámais a si­
multaneidade do ensino; e a simultaneidade
do ensino é o primeiro artigo de fé no cre­
do sacrosanto da instrucção popular e uni­
versal. O mestre deve estar constantemen­
te presente a todos os alumnos; os alumnos
todos constantemente presentes ao seu ins­
tituidor. O s ouvidos de cem discipulos de­
vem formar um só ouvido; as suas cem vo­
zes, uma só voz; os seus cem pensamentos,
um só pensamento; todos os seus olhares,
uma só vista.
O s ensinos mutuos, as turmas, as decu-
Obras completas de Castilko 35

rias, as lições individuaes, são a anarchia, o


tumulto, o enxame dos zangãos; são immo-
ralidade; são desbarate do tempo e das for­
ças, aniquilação da vontade, esterilisação do
futuro, negação do ensino, escandalo da ra­
zão, tragi comedia disparatada, para o lo­
gar da mais séria e necessaria coisa d’este
mundo.
Orá: a simultaneidade, que desterra e
proscreve das escolas todas estas anachro-
nicas miserias, a simultaneidade, que instrue
deveras, e em grande, tem no rithmo a
primeira e impreterivel condição de sua
existencia. Logo, o rithmo, como tudo quan­
to para elle concorre, as palmas, o canto,
as marchas, é um progresso, que, depois de
mostrado e sentido, já se não póde sem es­
candalo rejeitar.
Satisfez pois o Methodo portugués, quan­
to n’elle cabia, ás justas exigencias do espi­
rito, e ás exigencias, não menos attendiveis,
dos corpos, n’aquelle periodo da vida em
que elles estão pedindo por todos os modos
o desenvolver-se.

O s affectos, que formam, a par com a R e­


ligião, a mais segura base para a Moral,
eram furiosamente sacrificados pela escola
anti methodica. A rigoridade, indispensável
n’um ensino que tinha de se impôr á força,
por não saber ser claro e aprazivel, desap-
pareceu totalmente como supérflua dos nos-
sos institutos. E ’ uma educação liberal; uma
educação digna de homens. A razão é con­
sultada em tudo; tudo tem o seu porqué
36 Empresa da Historia de Portugal

perfeitamente intelligivel; a memoria é au­


xiliada; larga-se com mão attenta quanta
rédea é necessaria ao movimento physico; a
phantasia, que se apraz da variedade, é sa­
tisfeita; antegosta-se um poucochinho das ar­
tes, da musica, da pintura; não ha veto pa­
ra o rir decente e commedido; sente-se no
mestre um amigo e um pae; na applicação,
um recreio regular e variado; nos palpaveis
progressos quotidianos, uma satisfação para
o amor proprio; as letras são de hora a ho­
ra mais familiares; os livros não são ini­
migos; já se não ha-de entrar para o mun­
do odiando os; o mestré ufana-se com o
producto das suas diligencias, e já ama aos
seus ouvintes, como cooperadores do seu
bom nome, da sua gloria, das satisfações
da sua consciencia, e dos seus sonhos rega­
lados; a carranca d’elle desappareceu, des­
de que o desobrigaram de verdugo; o seu
pequeno povo paga-lhe o amor na mesma
moeda.
P or este lado, acceitos francamente os be­
neficios que o Methodo portugués affiança, e
effectivamente dá, onde gente accintosa e
myope o não repelle, pouco resta para fa­
zer; e o tepipo, que sabe e póde mais que
todos nós, ha de trazel-o; e Vossa Majesta­
de, ern Deus o espero, sem duvida o aju­
dará.
#

O Methodo é claro, accessivel a todos os


entendimentos, mnemonico, artistico; o M e­
thodo é caridoso, efficaz, rapidissimo ; resta
que aos mestres, que dignamente o profes-
Obras completas de Castilho ïj

sarem, se retribua o zelo, melhorando-lhes


a fortuna ; que os paes, mal cuidosos da cul­
tura intellectual de seus filhos, se obriguem,
séria e inexoravelmente, a mandal-os á esco­
la ; que n'ella haja praso rigoroso para a m a­
tricula e para os exames; e que emfim estes
seminarios, já desbarbarisados por dentro,
se tornem até no exterior convidativos: não
majestosos, como os templos, os tribunaes
ou os palacios, mas de uma simplicidade
amavel e ridente como canteiro em jardim,
que, sem grandes dispendios de architectu­
ras, attrai por mero condão de suas gra­
ças as abelhas, as borboletas, os olhos, e os
sorrisos.
#

Senhor: Quando os exforços de nós todos,


coadjuvados pelos de Vossa Majestade, hou­
verem coberto d’estes bellos institutos a su­
perficie do territorio portuguez, e a sabedo­
ria dos legisladores tiver completado a obra,
facilitando e provocando com altos premios
o apparecimento, a diffusão profusissima, de
bons livros populares, para todo o genero de
iniciações e culturas, livros claros, formosos,
sympathicos, baratissimos, gratuitos até para
os pobres, gratuitos como os cantos das aves,
a luz do sol, e o ar balsamico da primave­
ra, por modo que o saber 1er não seja, como
até agora, uma prenda inutil, e até perigosa,
então haverá raiado o arrebol da verdadeira
Politica, a ante manhan de uma civilisação
real, inexpugnável, e de si, e por si mesma,
recrescente.

VO L . XXI 3
38 Etupreja da Historia de Portugal

Traçára eu limitar-me n’uma respeitosa


pagina de dedicatoria, ¡e eis-me já tão alon­
gado pelo mar immenso das considerações
utilitarias, das supplicas, e dos votos!
¿Apagarei agora, como descabido, o que
deixo escrito? Á fé que não. E ’ preciso
que, á mingua de qualquer outro amparo, a
verdade encontre ao menos um asylo d'onde
sempre antigamente a proscreviam: ao pé do
Throno.
Um Principe liberal, moço, e instruido,
não póde recusar-se a escutal a, e de tão
melhor grado soccorrel-a, quanto mais a re­
conhece desvalida.
*

¡Ah! ¡se terá chegado finalmente o dia! ¡Se


a este, já cansado, já millessimo pregão de
mendicidade publica, os balcões doirados do
palacio se abrissem, e a mão dadivosa de
uma vice-providencia deixasse cahir, como es­
mola sequer para os descendentes, o paga­
mento de instrucção que aos ascendentes se
negára! . . .
Senhor: Muitos titulos gloriosos tem a H is­
toria liberalisado aos Monarchas d’este Rei­
no ; mas o mais invejável, e todavia o mais
accessivel, está ainda por colher. P ae da
E scola P opular epilogará em si o Conquis­
tador , o Povoador , o L a v ra d o r , o Justicei­
ro, o de Boa M em oria, o P erfeito, o Feliç,
o Piedoso , o Desejado, o Grande, o Restau-
rador i o Victorioso, o Pacifico, o M agnani-
Obras completas de Castilho 3g

mo, o Reform ador, o Libertador, o V irtuo­


so, e o Illustrado.
A este Rei do presente e do futuro, já
n’esta hora?antevisto em Vossa Majestade,
é que se gloría de haver offerecido os fru­
tos do seu outono

De Vossa Majestade Fidelissima

Lisboa, 17 de Marco
de i863.

o mais reverente e devoto subdito,

Antonio Feliciano de Castilho.


ADVERTENCIA

Em 1844 collegiu o autor n’um volume,


sob o titulo de Excavaçôes poeticas , poe­
sias suas avulsas, umas então recentes e de
todo ineditas, outras desenterradas do cemi-
terio literario, chamado imprensa periodica.
O Outono é segunda miscellanea do mes­
mo genero. Não lhe peçam unidade, chro-
nologia, ou deducção de qualquer genero. E ’
a segunda sallinha de um museu pobre, par­
ticular, e sem classificação; não é mais nada.
A s Excavaçôes foram acolhidas com fa­
v o r -, o Outono ousa portanto contar com
elle.
N ’este, como n’aquelle repositorio, ha pelo
menos a recommendal o, e á mingua de ou ­
tro qualquer merecimento, a maxima varie­
dade de assumptos, fórmas, e estylos, de
modo que, se ninguem se contentar de tudo,
ninguem pelo menos deixará de topar aqui
ou acolá em que pôr olhos.

Das quarenta composições poeticas encer­


radas no volume (das prosas intercalares não
ha por que falemos) umas são originaes, ou­
tras traducções, outras imitações ; mas todas
4* Empresa da Historia de Portugal

portuguezas de nascença, ou por naturali-


sação.
S ã o originaes vinte e oito ; a saber : Novo
A n jo ,— N o transito do senhor R e i D. P e ­
dro V,— A Sua M ajestade el-Rei o Senhor
D . Fernando I I ,— A Sua M ajestade el-Rei
o senhor D. L u i \,— Vaticinio, — Deprecação,
— Agradecimento, — A madame Fortunata
Tedesco, — Letreiro posto p o r baixo de um
retrato de madame F ortunata Tedesco, — A '
cantora E rsilia A gostini, — A ' prim a-dona
M argarida B ernardi, — Despedida da p r i­
ma-dona M argarida B ernardi,— Despedida
de N tr i-B a r a ld i,— Despedida á prim a dona
M arietta G a\\aniga M alaspina, — F elicita­
ção da companhia lyrica ao compositor por­
tugués M ig m e ,— Os porteiros do Real Thea­
tro de S . Carlos,— Monologo para ser reci­
tado pela a c tri\ E m ilia das Neves e Sousa ,
— A Senhora da N azareth,— Lenda dos Bai-
larins,— A constancia aldean,— O rapa\dos
burros,— A rte de ser feli \,— Versos para a
abertura do asylo de Vianna do Castello ,—
Cantiga de Giraldo Sem P avor,— A tomada
de Coim bra,— Versos no pavilhão do T e rrei­
ro do Paço,— Inscripçôes no arco trium phal
da rua direita do Sacramento , — O Alm anack
de Lembranças.
*

São traducções oito; a saber: A driana Le-


couvreur ,— M oreto,— O rapto de E uropa ,—
A prim avera no m a r ,— Traducçãosinha d e ­
dicada ao meu visinho da esquina, que fa \ cri­
ticas,—A invenção da a\enha,— A invenção
do cálamo ,— Versos cantados na comedia *0
Cavalheiro S. Jorge».
Obras completas de Castilho 43

São imitações quatro; a saber: O N a ta l


do pobresinho, — A invenção dos jardins, —
/4s metamorphoses do macaco,— O am or.
Fundem as composições originaes 2866
versos; as traduzidas i 326 versos; as imita­
das 486 versos.
Procedeu-se á fastidiosa estatística supra,
para se acudir com ella a quem porventùra
quizesse reprehender ao autor haver pouca
originalidade no volume.
A resposta mais cabal seria porém outra,
bem susceptível de largo desenvolvimento e
demonstração.
*

Em resumo, visto para mais não haver


tempo, nem valer a pena, eil-a aqui:
Abstrahindo da questão mesquinha de
amor proprio, doença realmente de que o
autor não padece muito, entende elle que,
em relação ao Publico e á A ite , as boas tra-
ducções e as boas imitações nao teem me­
nos valia que os bons originaes, a casos ha­
verá em que lhes excedam.
T razer para a familiaridade e fecundativo
commercio iutellectual dos nossos conterra­
neos, producções estimáveis de outros pai-
zes, e de outras eras, conservar-lhes, ou res­
tituir-lhes, depois de transplantadas, a sua
graça originaria, e talvez não raro melhora­
da, se não é para se agradecer, não é tam­
bém para se arguir.
Se o autor houvesse por systema ante­
posto sempre a honrinha de sacar da sua
44 Empresa da Historia de Portugal

propria substancia o fundo e a fórma de to­


dos os seus poemas, não teria levado os seus
caros leitores a ouvirem a Invenção da aze­
nha e a do cálamo , cantadas por dois tão an­
tigos poetas gregos, que até o nome se lhes
apagou; não teria apresentado o Rapto de
E uropa , de Moscho, um dos mais bellos e vi­
vidos quadros da musa hellenica; não tería­
mos visitado com Virgilio aquella curiosa
choupana de Símilo na antiga Nápoles; não
farkm os ideia da inspiração e sensibilidade
do genio dinamarquez, tão seductor no N a ­
tal do Pobresinho, e na P rim avera no m ar.
Outra ponderação, e mais nada; é ainda
em defensa das imitações e traducções: ¿não
será porventura bom serviço ás Letras na-
cionaes o provar por obras, possuirmos tão
vasta, formosa e bem registada Lingua, que
podemos trasladar para ella, sem quebra
nem enfraquecimento, tudo quanto ressôa en­
tre gabos e applausos nos mais bem dota­
dos idiomas peregrinos?

Como os outros sentem, não sei eu; o que


sei, é que todo me delicio quando vejo e
provo quão sem custo a propria lyrica lu­
xuosa dos Italianos, com as suas rimas sy-
metricas e abundantes, com as suas pausas
fixas, com os seus esdruxulos, póde tornar­
se portugueza. A A driana L ecouvfeur , com
ser aliás um pobre drama, tem este valor
muito real.
Como é já notorio que eu possuo em
summo grau a virtude da obstinação quando
Obras completas de Castilho 45

se trata do que me parece bom, encerra o


tomo nada menos de i 53a versos alexandri­
nos. Já se vê que teimo na diligencia. E ’
porque contra este majestoso e elegante
metro, nada ainda se ponderou que viso ti­
vesse de argumento. A o alexanarino com­
pete, como hexametro que é, a palma em
nossa Lingua, e espero que a ha-de conse­
guir. Dizem que é francez; tambem o Conde
D. Henrique o era, mas governou cá, e creou
dynastia. O hexametro, porém, é mais e
melhor que francez: é grego e romano; é de
Homero e Virgilio, nada menos.
Harmonia, creio que ninguem ainda exco-
gitou negar-lh’a, e ahi é que bate o ponto
essencial. «Ha alexandrinos errados e mal
feitos»; ¡boa duvida! em todos os metros
acontece o mesmo; mas não são esses os
que se recommendam: são os de Lobato P i­
res, os de Pinheiro Chagas, os de Mendes
Leal, os de Thom az Ribeiro, os de Pinto
Ribeiro, emfim os de quem faz versos reco-
nheciveis sem maiuscula. A pena será, se
continuarem a resistir a taes exemplos os
que melhor podiam dal-o; e ponho em pri­
meira linha o meu donoso e melodiosissimo
poeta Bulhão P ato, com quem mexeriquei-
rinhos de soalheiro teem procurado inimi­
zar-me, não sei por quê, nem para quê. A s
reprehensões que lhe dou por não poetar
muito mais, e sempre, são explosões da cor­
respondida amisade que lhe consagro; e bem
o sabe elle, que nunca nos encontramos sem
que eu lh’as reitére.
Não ha mais advertencias previas que fa­
zer.
46 Empresa da Bistorta de Portugal

Quanto ao titulo do livro, na precedente


carta-dedicatoria a el Rei fica dada suffi­
ciente explicação.
D ’aqui até ao dia das criticas illustradas,
justas e decentes, nada mais.
1

NOVO ANJO

E L E G IA

Pio sapidissim o fallcciæento de Sua Alteza Imperial a Princeza


DONA AMELIA DE BRAGANÇA

¡T roa a bradar por Ella, heroica artilharia!


¡Volteae no alarido, ó sinos da oração!
¡Chora-te, ulula, infancia! ¡Harpas da poesia,
dae aos eccos sem medo a lugubre canção!

Como a estatua da dor ao tumulo abraçada,


a pobre Mãe não sente o que em red o r lhe vai;
essa urna é seu mundo; o universo lhe é nada:
harpas, infancia, bronze, afoitos pranteae.

Q uanta d i r exprimis, não se compara ao luto,


que os dias ennoitece á misera Rachel,
arvore sem raiz, e cujo extremo fruto
cahiu, jaz a seus pés, imm aturo, e já fel.

Q ual o u tr’ora... e qual hoje, achou se a m ulher forte.


V ede-a viva e de pé nos abysmos da dor.
¡Quantas vezes no peito a fulminou a m orte!
¡e respira, apegada á Cruz do Salvador !
48 Empresa da Historia de Portugal

¡Orphan!... ¡e deq u e Paes! ¡Viuva!...¡ede que Esposo!


vira tudo que am ou sum ir-se-lhe no'pó.
Só lhe restava um anjo em seu erm o espinhoso;
a luz que lhe ella dera, elle lh’a dava só.

O utro anjo, o da m orte, o do ineffavel premio,


lh ’o andava a nam orar d’entre as palmas dos Ceos;
entendiam -se os dois; a mãe no avaro gremio
sumiá o seu, convulsa, olhando os mausoléos.

— «Foge, ó m íe,—lhe m urm ura a vencida Sciencia—


«nos erm os do Oceano um Eden 1 te sorri;
«com a arvore da vida a mão da Providencia
«lá, onde ha salvo a mil, a salvará por ti.»—

¡Creu, vôa, chega, implora; ás auras da saude,


n o sem blante sem côr vê rosas reflorir!
¡Oh no m ar verde ninho! ¡oh ceo de alma virtude!
¡graças, graças a vosi ¡clareia-se õ porvir!

Já bênçãos mescla o Povo ás orações e aos votos;


filha e m ãe, sem te rro r já ousam de se olhar;
da infancia e da indigencia aos tugurios devotos
p o r suas propr as mãos já vão seus dons levar.

¡Mas o celeste a m a n te ... é firme em seus am ores;


espera, e não desiste. ¡A fronte virginal
reflorida se c r e u .. . e eram do Empyrio as flores!
¡Desce o pallido veo da boda perennal!

¡A hora bate! ¡os Ceos de par em par se abriram!


¡entre ígneos chérubins alma esplendente vail
¡á te rra, ao firmamento, os seus olhares girami
¡sai d'um seio de mãe, voa aos bracos d’um pae!

1 A ilha da Madeira.
Obras completas de Castilho 49

¡Joven Alma feliz! nos júbilos eternos,


das virgens no alvo còro, entre o cantar sem fim,
de urna santa no luto escuta os ais m aternos;
tua foi; baixa a vêl-a, ingenuo seraphim.

Na ante-m anhan, lá quando o som no os olhos lassos


lhe houver alfim cerrado, exhaustos de chorar,
risonha lhe apparece; amima-a aos teus braços;
embala-a, como o u tr’ora usara a te embalar.

Foi-te mSe; sê-lh’o agora. Envolve-a de caricias.


¿Cantava-te ella am or? Canta-lhe am or tam bem ;
d’ambas lhe canta a gloria. Envolve-a nas delicias
do que é teu, do que a espera, incom paravel bem .

Dize-lhe:—«Aqui na terra, é tudo fugitivo;


«remorsos o passado; o faturo fallaz;
«o presente afflicçSo. Quem m orre, nasce. E u vivo;
«vivo; im pero; sou tua; ¿e tu me chorarás?!

«Ora; espera; descansa. O anjo da guarda tua


«serei eu d ’ora ávante; eu, quem te inflore a cruz;
«eu, o teu Cyreneo pela am argosa rua;
«eu, quem te eleve a fronte; eu, quem te esperte a luz;

«eu, que os m aguados pés te afaste dos abrolhos;


«e onde um tum ulo vês, te descubra um altar.
«Se um a lagrim a ainda, ó mãe, turb ar teus olhos,
«dize: O meu anjo bom não me quer ver chorar.»—

Lisboa
Fevereiro de i85í
II

N O T R A N S IT O
DO

SENHOR REI DOM PEDRO V


i
id sidera palmas

No monumento público
lidaste o dia inteiro,
desd’alva até ao véspero,
joven, Real obreiro.

Limpa o suor da púrpura


ao funebre lençol;
vae receber a féria;
descansa; é posto o sol.

A os do porvir artífices
déste não visto exemplo:
juntaste um lanço amplissimo
da humanidade ao templo.

Foi-te a semana aspérrima;


prostrou-te; mas valor!
Chegaste ao dia sétimo,
ao dia do Senhor.
Empresa da Historia de Portugal

Sobe aos eternos júbilos,


ao throno verdadeiro-,
no rosto melancólico
abre o sorrir primeiro.

Olha do Empyrio os porticos


aureos com mil tropheos.
O u v e !.. . — «¡Beití vindo ó Principe,
«bem vindo aos patrios Çeos!» —

Quatro Reaes Espiritos,


d’anjos sem conto á frente,
ao som d’argenteas citharas,
aos pés do Omnipotente,

alçam em còro um cantico


de hosanna triumphal,
ao que lhes junta glorias
á gloria perennal.

;Quem são ? O A vô philósopho,


Imperador soldado;
a Mãe virtuosa, o idòlo
de um Reino libertado;

a Esposa, flor ephémera;


o idolatrado Irmão.
Tirando a c’rôa cívica
por sua augusta mão,
*
— «Vem, Neto meu magnânimo,
— diz o Guerreiro invi’to;—
«eu não passei de Romulo,
«tu foste Numa e Tito;
Obras completas de Castilho 53

«recebe-a pois; pertence-te;


«lá, duas abdiquei;
«em ti abidico a ultima;
«sinto-me em dobro Rei.» —

Então a Mãe, entre ósculos


cingindo o caro Filho,
alça na dextra auréola
de sempiterno brilho,

e impÕe-lh’a . — «Quando o tumulo


«me reclamou— lhe diz—
«tremi por nossa Patria
«em mãos tão juvenis:

«¡Se escorregar no s o lio !.. .


«¡Se esquece a lib erd a d e!.. .
«¡Se o rodearem p erfid o s!.. .
«¡Se o cega a m ajestade!.. .

«¡Se da lisonja ao hálito


«o vicio o adorm entar!. . .
«¡Se emfim lhe fór patibulo
«o que eu lhe deixo a lt a r ! ...

«¡Que transe, ó Deus, que angustias


«ao coração materno!
«Salvae-m’o Vós. E pallida
«me adormeci no Eterno.

«Não foi baldada a supplica:


«o Eterno me escutou:
«foste, inda imberbe, maximo,
«como nas cans o Avô.
V O L . XXI 4
Empresa da Historia de Portugal

«Mas toda’ a 'c ’rôa (¡e invejam-n-as


«tem fatal peso; e a sorte
«multiplicouo ao cêntuplo
«na que eu te dei por morte:

«tressuas s a n g u e ... am p áral-a...


«trepidas.. . cai-te aos p é s .. .
«baqueias; nobre victima,
«surge; immortal já és!

«A c ’rôa d’astros fulgidos


«que á tua fronte imponho,
«não prostra, não faz miseros,
«não passa, não é sonho;

«estrellam-n-a carbúnculos;
«foi co’os martyrios teus
«que os fabricou tão vívidos
«a propria mão de um Deus.»

— «Vem, adorado Cônjuge,—


a terna Esposa exclama—
«cá se restauram vínculos
«que a morte não destrama:

«és meu, sou tua; o thálamo,


«que lá sumiste em dó,
«ornam-n o aqui balsâmicas
«rosas de Jericó;

«tolda-o docél cerúleo


«de estrellas fulgurante;
« é no aposento lâmpada
«lua jamais cambiante.
Obras completas de Castilho

«Coro de virgens candidas


«nos fada amor sem firn.
«Um paraizo incógnito
«nos serve de jardim,

«onde entre as francas arvores


«da v i d a e da s c i e n c i a ,
«nos rulha a pomba mystica
«ternuras e innocencia.

«Cá, saciarás a indómita


«cubiça do saber;
«cá, vida de relámpago
«se abre em perpétuo ser;

¡perpétuo ser! (¡ó éxtasi!)


¡e ante o Senhor unidos!
«¡Olha esta c’róa, dádiva
«da terra entre gemidos;

«cingi-a na hora funebre,


«em que tão só parti;
«saudades são; no Empyrio
«inda as guardei por ti.

«Flores que nutre a ausencia,


«a posse vos desterra;
«ereis do chão das lagrimas,
«volvei de novo á terra.» —
*
O Irmão, alma virgínea,
coroado de cecens,
lhe mostra ovante o innúmero
dos ineffaveis bens.
Em presa da Historia de Portugal

«¿Ao valle das miserias


«que peso le prendia,
— lhe diz— «que espero ha séculos
«ver-te no eterno dia?

«Eras o primogènito,'
«e eu precedi-te; eu sou
«quem ao fugir do ergástulo
«os teus grilhões quebrou.

«Abraça-me, e agradece-m’o.
«Olha e compara: o mundo,
«antro da insciencia e dúvida-,
«d’erros mar vasto e fundo;

«brenha de feras rábidas;


«vergel sobre vulcões;
«reino em que a morte é déspota;
«urna das gerações;

«confuso abysmo em vórtice,


«fallaz, horrendo, immundo,
«sem luz mais que um crepúsculo..
*¡é isso, é isso o mundo!

«Cá, tudo é fausto e sólido;


«cad’hora é de annos mil;
«de edade a edade, medra-nos
«sempre mais verde abril;

«respira-se nos zephyros


«amor, prazer, bondade;
«bebemos a sciencia
«na propria Divindade;
Obras completas de Castilho

«em salas de oiro e pórphyro,


«com tectos de oiro e azul,
«poisa-se em thronos lácteos
«de alto marfim coral;

«e á luz de mil sóes trémulos


«em lustres diamantinos,
«tse lêem nas sacras paginas
«mysterios e destinos;

«contempla-se o pretérito;
«devassa-se o porvir;
«e ao Trino, ao Uno, ao Optimo,
«faz-se o louvor florir.

«Depois, festins e néctares,


«no mundo nem sonhados;
«passeios e tripúdios
«por feiticeiros prados,

«d’onde, furtiva e tácita,


«vem cada ante-manhan
«flores colher punícias
«a aurora alva e louçan.

«Collinas, desde o píncaro


«vestem-se até ás faldas
«co’as selvas mais umbríferas
«de vivas esmeraldas.

«N’esses recessos plácidos,


«alígeros Orpheus,
«os séraphins ternissimos
«cantam em coro a Deus;
Empresa da Historia de Portugal

«e ao seu concento mágico


«respondem, resonantes,
«canoros e prismáticos
«Niagáras de brilhantes.

«Ouves ao longe Píndaros


«nas lyras a exaltar
«da crença os heroes martyres,
«e sobre o circo o altar;

«ouves em gruta flórida,


«matriz de sacra fonte,
«cantar novas delicias
«piedoso Anacreonte,

«ou Saphos, que abrazando-se


«em não indigno amor,
«votam ás virgens sábias
«as cordas do Sinor.

«Cad’arte, lá no infimo
«orbe terreno, escuro,
«almeja algum revérbero
«de um ideal futuro;

«todas aqui de súbito


«o encontram já sem veos!
«A Poesia, a Musica,
«veem triumphar nos Ceos.

«¡Que digo! Outra prophética


«ancia do instinto humano,
«foi sempre achar o archétypo,
«ver do universo o arcano,
Obras completas de Castilno

«as causas dos phenómenos,


«as leis de cada ser,
«e ao grão complexo harmónico
«seu Génesis tecer.

«Só quem o lodo esquálido


«despiu na sepultura,
«e alado rei, como aguia,
«sobe á suprema altura,

«póde acalmar taes ancias.


«Livres em Deus, só nós
«vemos o immenso, o mínimo,
«o intimo. Veloz

«um nosso adejo os términos


«alcança do universo.
«N’este espantoso dédalo,
«todo entre si diverso,

«como n’um bosque os passaros


«de ramo em ramo vão,
«de sol em sol libérrimos
«girámos na amplidão;

«lustrámos as myriadas
«de seus feudaes planetas;
«o conto, o nome, as indoles
«sabemos dos cometas.

«Em cada opaco ou lúcido


«mundo, que roda, e vai
«na imprescriptivel órbita
«ao ñuto de Adonai,
Em presa da Historia de Portugal

«achâmos (¡oh prodigio!)


«que luz, calor, grandezas,
«variam, variando-se,
«milhões de naturezas;

«mas todas vivas, próvidas,


«formosas de assombrar;
«todas co’o mesmo anhélito
«de sciencia e de adorar;

«todas em voz unísona


«enchendo a immensidade
«co’o psalmo solemnissimo
«de Gloria á Divindade.

«Servo fugido ao cárcere,


«gosa o dominio teu;
«aá graças á innocencia
«que em ti resplandeceu,

»e foi, entre os heróicos


«teus dons fascinadores,
«como um argenteo lyrio
«em vaso de mil flores.

«Cingindo a fronte règia,


«como eu, d’estas cecens,
«Alma gentil sem mácula,
«entra aos ignotos bens.» —
#
Disse.— Entre os Quatro Espíritos
o triste, alfìm ditoso,
toma o diadema cívico,
toma o de virtuoso,
Obras completas de Castilho 61

aceita o de alma ingénua;


o das sau d ad es.. . ¡ai!
voltou á terra fúnebre;
teem n-o os Irmãos e o Pae.

II
Solatia victis

Sob o ceo festival, geme e negreja a terra;


a dor que ennoita o Paço, a todo o Povo aterra ■
pende os bracos a industria; estão sem voz as leis;
chora o bronze do templo; ulula o da batalha,
é que a vista carnal só vê fria mortalha
onde brilhava ha pouco a purpura dos Reis.

Se ella ousasse do pó subir ao firmamento,


¡como ao clarão da fé e á luz do entendimento
em gala a multidão calcára o luto aos pés !
O feretro do Heroe não vai de nós banil-o;
vai lançar-se á corrente indomita de um Nilo,
que do nadante berço extrahirá Moysés.

Cobri o de festoes e bênçãos á porfia;


junquem flores e loiro a amargurada via
que desce do aureo Throno ao Pantheon Real.
Se o crepe nos insombra e nos alaga o pranto,
não é por Elle já: nosso mortal quebranto;
provém d’esta viuvez que obumbra Portugal.

Não se deplora o justo em paz adormecido;


a entrada do moimento, onde vai ser descido,
rescende a Paraizo, é portico de luz.
Se alguemdiante d’ella ousasse pôr cyprestes,
em loiros os trocára o anjo, que tão prestes
fez radioso tropheo de uma espinhosa cruz.
62 Empresa da Historia de Portugal

P o r vós só, que inda estais co’o infortunio em luta,


continuae o chôro e o dó que vos enluta,
multidões que.lhe heis dado o derradeiro adeus;
cada um no seu lar sente um vasio horrendo,
como quando, alta noite, a m orte andou correndo
de poisada em poisada o Egypto á voz de Deus.

Chora o poeta, o sabio, o artifice, o guerreiro,


o religioso, o enfermo, o pobre; um Reino inteiro;
cada qual sente murcha uma esperança em flor ;
mas sobre tudo chora a escola, o ninho obscuro
onde se nutre e empenna a aguia do futuro,
e que a sente morrer faltando-lhe o calor.

¿Quem, entretao geral, tão miseraorphandade,


se atreve a mendigar, em nome da saudade,
um frio monumento, um bronze inerte e vão?
¿ T emem deslembre um pae? ¿Que pedra iguala
a Historia?
¿Um colosso caduco é symbolo da gloria?
¿Se a pyramide assombra, os Pharaós quem são ?

Recuae, refugi, vaidosos monumentos,


d’ante o serio varão d’austéros pensamentos,
em quem o bom T rajano am ára um grão rival;
e que ao publico bem pospondo illusões fatuas,
faria amoedar o oiro de mil estatuas,
por ver mais um a estrada, abrir mais um canal.

Se é m istér um padrão a quem não tem e o olvido,


alçae-lh’o ao menos tal, que em bênçãos envolvido,
lhe atráia lá de cima um paternal sorrir;
seja um templo de amor: a escola. No recinto
se entôe, e no frontão se doire: a pedro quinto
o povo portuguez co’os olhos no porvir .
Lisboa, Novembro de 1861.
Ili

A S U A M A JE S T A D E

EL REI 0 SENHOR DOM FERNANDO II

Pois que artista e poeta ao mesmo fogo interno


devem seu resplendor, e Deus os fez irm ãos,
ao Rei A rtista em chôro o vate em dó fraterno,
sem ousar consolal-o, oscula, aperta as mãos.

Poisa-lhe mudo ao lado, e junta pranto a pranto;


mas quando vem da longe um ecco animador,
dirá: — «Prestae-lhe ouvido: enviam-vos um canto,
lá d’entre o cyprestal, crença, esperança, am or »—

Lisboa
Novembro de 1861
IV

A S U A M A JE S T A D E

EL-REI 0 SENHOR DOM LUIZ

Se é peso enorm e um sceptro ao braço mais robusto,


¿que será, quando cai da mão de um Divo A ugusto
em dextra fratem aljq u e a dor desfalleceu !
¿que será, quando vem de frutos avergado,
promessas verdejando, em prantos alagado,
como esse que hoje é vosso, e que era ind’hontem seu I

Haveis de o sustentar (bem sei) que a heroicidade


é já m adura em vós, quando alvorece a edade;
haveis de ser Rei grande, após um grande Rei.
¡Mas que esforço e que estudo exige ess'alta em preza !
¡Q uanto é m ister vencer a propria natureza,
e antes de im pôl-a aos mais, saber im pôr-se a lei !

Nós, podem os chorar; nós, povos; nós, a turba;


mas a dor, que enfraquece, e o animo perturba,
é-vos“defeza a vós, bem que orphanado irm ão;
no alteroso baixel, guarnição, equipagem,
passageiros, ¡que m onta ! os fados da viagem
cifram-se no velar do hom em do timão.
66 Empresa da Historia de Portugal

Responsável ¡communi no tum ido elemento,


velae pois. Vôe em bora a vista ao firm amento;
de là vos clama exforço um Regio Inspirador.
¡Esfôrço! ¡ p e d r o E -Á v A N T g em mais feliz reinado!
Recebeis todo um Povo oppresso e consternado;
trocae-lhe o luto em gloria, em júbilos a dor.

Lisboa
Novembro de 1861
V

VATICINIO
i
¡Meia noite! ¡o campo, mudo!
¡ermo horrível a cidade !
só na etherea immensidade
se vêem lumes a scism ar.

T u me abraça, eu te saúdo,
noite cara a amor e aos cantos.
Prophétisa, mãe de encantos,
pois sou teu, vem-me inspirar.

¿Que me importa o sol e o dia,


que só mostra o que é presente,
e em seu vórtice fervente
desatina as multidões ?

C o’as estrellas, co’a poesia,


co’a mudez meditabunda,
só tu, noite alma e fecunda,
o ignorado á mente expões.

Se invocas o futuro,
se evocas o passado,
no teu sacrario obscuro
brilham clarões do Fado.
68 Empresa da Historia de Portugal

¿Ao Homem que hoje é symbolo


de um Povo, o Povo meu,
qual foi, qual é o horoscopo,
que amor emfím teceu ?

Noite, ineffavel mágica,


faze-m’o ver e amar;
do seu destino a Arbitra
lá vem rasgando o mar.

O ouvido, attento, sôffrego,


n’esta mudez geral,
já Lhe pressente o anhélito
do seio virginal.

De instante a instante acerca-se;


breve entre nós será.
¿ E ’ don funesto, ou próspero,
o que desponta lá?

Fala, immortal fatídica;


revela o teu poder;
abre-me os teus oráculos;
sei teus mysterios 1er.

II
¿Que ouvi no Estreito de Hercules ?
¿Que ouvi na Herminia Serra ?
jSons de festivos canticos !
¡Eccos d’extranha guerra !

No monte baluarte lusitano,


ao bater da encantada meia-noite,
ressurgiu Viriato, o ferreo açoite
do invencivel ’té ’li feroz Romano.
Obras completas de Castilho 69

Com elle os seus valentes pegureiros


saltaram em tropel das sepulturas;
phantasmas com surrões por armaduras,
com maças espectraes inda guerreiros.

De olhos longos no pincaro mais alto,


para o Mediterráneo, eil-os absortos.
Vena lá frota d’Italia. ¡Ai, mortos ! jmortos !
I como hão de rebater-lhe o fero assalto ?

Ili

A ’s columnas hercúleas no emtantó,


acostadas, co’as plantas ñas vagas,
as sereias, de gloria presagas,
com diademas de myrtos em flor,
mandam bênçãos nas azas do canto
ao baixel que das costas de Italia,
como a concha da bella Acidalia,
traz as Graças, cortejo do A m or.

Còro das sereias


V aga melodia,
cytnaras e frautas,
pela undosa via
soam para os nautas
na mudez sombria.

Sós, n’um mar de prata,


sob a lua cheia,
musica tão grata
n’aima lhes retrata
a nativa aldeia,

Y O L XXI 5
70 Empresa da Historia de Portugal

Cuidam vir sonhando


musicas nas aguas;
somos nós cantando,
nós que as suas maguas
vimos dissipando.

Còro dos espectros no Monte Herminio


O u v i ... oiçamos estes sons remotos,
que, não sei d’onde, cá nos manda o mar.
É a armada avança; ¡que será! ¿que votos,
hoste sem vida, nos convem formar?

As sereias
Arm ada doirada, toldada de flores,
de L ysia e d’Ausonia tremúla bandeiras;
co’as vélas tufadas, co’as rodas ligeiras
avança em triumpho com bênçãos d’amores.
¡Triumpho! ¡triumpho! ¡triumpho á tão linda
Sereia de Italia ! jbem-vinda ! ¡bem-vinda !

Os espectros
Já. não são pois do horrendo Capitolio
fulmíneas aguias, capitães traidores.
E ’ deusa amante. Marciaes pastores ;
a laurea serra lhe daria um solio.

As sereias
Mande-se, irmans, n’um sonho este cantar nocturno
á Donzella feliz; á majestosa Flor,
que do mais regio tronco em terrrs de Saturno,
furtou por sua mão, e a traz soberbo, o Amor.
Obras completas de Castilho 71

Vem para a Lusitania, a'Italia do Occidente,


patria de antigo povo em largo mundo rei;
berço de hom ens T ritões, que ao nosso m ar frem ente,
a Marte, a Adamastor, deram co’o jugo a lei.

Os espectros
¡Ai que terra de gloria a nossa terra!
Morta a lacial Bellona que a affrontava,
eis Lysia irman da Italia, em vez de escrava.
Brotae, palmeiras, pela Herminia serra.

hi sereias
Nós, musas marinhas nas grutas de escumas,
outr’ora ás Sibyllas de Tibur e Cumas
ouvimos cantar,
que um dia viria Maria aos dois povos
tecer fados novos,
e aos lustres herdados mais lustres juntar.

Os espectros
¡Ouvi! ¡o u v i... que nome auspicioso!
jsymbolo de resgate e liberdade!
¡Maria ! ¡Oh! quatro vezes venturoso
quem logra a vida em tão propicia edade!

i s sereias
O ’ Tronco Brigantino,
que o próspero destino
cobriu de aureos tropheos,
sublime te alevanta;
amor te enxerta a Planta
mais cara a terra e Ceos.
7» Empresa da Historia de Portugal

Chove-te um Deus seus mimos.


Frutos vais dar opimos
ao Luso Portugal;
co’a Regia descendencia
firmar a independencia
do teu paiz natal.

Os espectros
Sim, terras do terrivel Endovélico,
séculos dois por nós independentes;
paz e amor, liberdade e exforço bellico
vos dêem reis de Viriato descendentes.

As sereias
Lemos do Fado o livro aberto
á luz do facho de hymeneu:
Victor Manuel, Carlos Alberto,
Dom Pedro Quarto, o neto seu,
turba de heroes e de heroinas
do mais esplendido fulgor,
á sombra placida das Quinas
vão renascer, graças a Am or.

Q ual d’entre as ondas surge um astro,


lá vem a urna de alabastro,
virginea, mystica, vivente,
em cujo seio o Omnipotente
de destinos tão seus os germes quiz depôr.

Os espectros
Dormimos oito séculos sepultos,
sonhando sempre gloria aos netos nossos.
¡Quem nos hoje animára os frios ossos,
q u e a Mulher tal podessemos dar cultos!
Obras completas de Castilho ?3

IV

Esvahiu-se a visão. Galou-se o mar e a serra.


O tacito baixel que o grão futuro encerra,
á luz da Mãe de Am or, nos astros immortal,
vinha rasgando ufano o liquido crystal.

v
E a Princeza dormia. A azul immensidade
bafejava-lhe paz. C o’as flores da saudade
respirava, sonhando, as rosas do prazer.
¡Ah! d’essa alma virginea as commoções dizer...
só o anjo que a protege acaso poderia.
Triste e risonha, a bella, a candida Maria,
vê traz si, a fugir-lhe, a patria, o berço, o pae
e a infantil liberdade. A Italia já lá vai,
sepulta, e para sempre. Em terra alem, distante,
que aprôa inda não vê, vê Ella a cada instante,
a aguardai a insoffrido, os $lhos sempre ao mar,
um Rei Joven e Heroe, que lhe ensinou a amar,
que a tornará feliz, e que o vai ser por Ella.

VI

O solo que demanda é outra Hesperia bella:


ar, sol, torrão, varões, ren om e.. . é tudo egual.
V ai ter de novo a Italia entrando em Portuga}.
Bosques de frutos d’oiro, alegres laranjeiras,
por quem dariam tudo as terras estrangeiras,
nem vós, nem vós faltais a dar aqui a amor
sombras e inspirações, e á noiva a argentea flor.
P or isso ã tão saudosa ingenua virgem ri,
como a nublada aurora ás portas de rubi
do mundo que a festeja; indecisa um momento
entre os ceos que alem deixa, e um novo firmamento.
74 Empresa da Historia de Portugal

Dorme, dorme, ó Ditosa; a amor e á gloria vais.


Embale-te aura amiga; as horas festivaes
antecipem-te em sonho as proximas venturas;
e a santa M ãe, que em ti se mira das alturas,
co’as bênçãos do Senhor te cubra. Acordarás
Soberana ámanhan. Virgem, repoisa em paz.
Despertam te os canhões; lá vem festiva a terra;
¡vans saudades... adeus! teu jubilo as desterra.
¡E’ Lisboa, é Lisboa, a indita, a Real,
que por arcos de loiro, alegre e triumphal,
te saúda e te hospéda ! A voz da gran Lisboa,
de ecco em ecco a medrar, co’o Nome teu rebòa
aos ultimos confins do. ufano Reino teu.

L á vem, lá chega o Bei que am or te subm etteu;


abraça-o; já sois um ; subi ao throno; impéra
sobre Elle e sobre nós; os fados nos prospera;
aperta solio e povo em novos e aureos nós;
a Elle, inspiradora; exemplo a todos nós.
¡Olha como a teus pes as Tágides formosas
te alastram em tapete as mais fragrantes rosas!
celebra-te a Poesia; o templo te bemdiz;
o pobre te abençoa; ao pobre, hoje feliz,
dos loiros teus á sombra ao longo da cidade
banqueteia em teu nome a terna caridade.

V il
Basta, Senhora ; eu creio em teu Real condão.
Futura Mãe de Reis, já Mãe da multidão,
escuta o que hoje um vate obscuro, amigo, sério,
te exora fervoroso a bem de todo o imperio.

V ivas, salvas, festins, a noite envôlta em luz,


vão passar. A ’manhàn, de quanto hoje reluz,
tumultua, pompeia, encanta, ¿o que nos resta ?
Obras completas de Castilho j5

um loiro aos pés calcado; os eccos de urna festa;


o aborrido cansaço; o escuro; a lida van.
T al d’este ho je fastoso o misero ámanhan.

Melhor, melhor triumpho, immenso, duradoiro,


com pete ao joven P ar que ascende ao solio d’oiro:
Fundae a nova escola; a escola maternal;
cheia de luz e amor, como a alva matinal;
qual o meigo Jesus sem duvida a amaria.

A o nome de Luiz, ao nome de Maria,


escritos no frontão de asylo tão f e liz .. .
sim, de Maria ao nome, ao nome de Luiz,
¿quem não vê que a ignorancia estulta e desdenhosa
vai recuar confusa? a infancia carinhosa,
colhe, por vós chamada ás fontes dó saber,
os frutos da instrucção co’as flores do prazer.

Dos factos a evidencia em breve se irradia;


e com mais persuasão que a só philosophia,
attrai, venceu, domina. O ensino vão e algoz,
da cáthedra usurpada, em que a estultícia o poz,
e em que ha mil annos queima as patrias esperanças,
desapparece. Então, co’os hymnos das creanças,
paes, mães, um Reino todo, entrado a mais feliz,
abençoarão Maria, abençoarão Luiz.

Lisboa — 1862.
VI

DEPRECAÇÃO
E PISTO L A
A

SÜA MAJESTADE A IMPERATRIZ DO BRâZIL


IDOINT-A. THEHESA

A D V E R T E N C IA .

Achava-se o autor na córte do Rio de Janeiro,


em Abril de i 855 , repartido entre as suas não
mallogradas diligencias para a regeneração da
escola primaria, e os ocios literarios da sua ca­
ra e sempre saudosa poesia, quando um pobre
velho portuguez, Silva, na villa de Uruguaiana,
provincia do Rio Grande do Sul, casado, com
filhos, indigente, e por suas virtudes estimado
de todos os visinhos, se viu inopinadamente pre­
cipitado pela fatalidade, que sempre o persegui­
ra, no infimo abysmo do infortunio: condemna-
do por homicida, e sem culpa moral, a doze
annos de trabalhos forçados.
Confirmada a sentença, restava-lhe, unico re­
curso, o indulto imperial; todos os visinhos de
Uruguaiana o invocavam, como perfeita justiça,
Um requerimento documentado subiu respeitoso.
78 Empresa da Historia de Portugal

mas urgente e instante, á presença do Soberano.


P o r si mesma se defenderia a causa no juizo
de tal Principe ; ¿ mas por que se não havia de
coadjuvar por todos os meios possiveis? Pare­
ceu que nenhum haveria mais efficaz, nem mais
proprio, do que implorar por medianeira a E s­
posa mesma de "Sua Majestade Imperial, S e­
nhora de cujas virtudes e beneficencia vive cheia
a memoria, a admiração, a voz agradecida de
todo o Imperio. Afoitado pela fama de sua ca­
ridade, ousou o autor dirigir-lhe, como conter­
raneo do infeliz, alem de homem, esta supplica,
á pressa escrita, segundo era apertado o tem­
po, e mais empenhada em expôr os factos com
inteira pontualidade, do que em se ataviar de
flores rhetoricas e poeticas. Estava o papel nas
mãos a que era offerecido, no dia 3 de Abril,
vespera ao anniversario natalicio da finada
Irman do Imperador, a Rainha Fidelissima se­
nhora D. Maria II, e ante-vespera da quinta
feira maior d’esse anno de 1855 .

E P IS T O L A

I
Era um velho, Senhora: obscuro, pobre, honrado;
estrangeiro, e bemquisto; humilde, e venerado.
Após o dia, exhausto em grangear o pão,
entre os filhos e a esposa as graças, a oração,
por sua voz serena (¡austero patriarcha!) -
subiam cada noite aos pés do grSo Monarcha;
e dos Ceos cada dia, a paz, o exforço, o amar,
como bênçãos cahindo, arraiavam seu lar.
Tépido ninho á sombra, alegre de caricias,
Obras completas de Castilho 79

d’entre tanta pobreza a respirar delicias.


Tudo ali era franco: a entrada, o rosto, as mãos;
como amigos aos bons, aos pobres como irmãos.
Aquilio, e um ceo por cima, era todo o seu mundo;
¿ que lhe importava o mais?

D’ este rumor profundo,


contradictorio, immenso, esp’ranças, decepções,
rara voz que bemdiz, coro de maldições,
enredos de ambição, clamores de attentados;
rumor que, desde o servo aos summos potentados,
aturde noite e dia, e faz descrer do amor
o individuo, a familia, as nações; d’este h o r r o r .. .
que trabalha, atorm enta, em peora a humanidade,
e a leva a duvidar da propria D ivindade.. .
nada chegava ali.
Se um sonho matinal, -
bafejado por Deus ao leito Imperial,
vos tivesse uma vez ao animo tranquillo
revelado, Senhora, aquelle manso a s y lo .. .
apenas do universo alguns nomes de amor
ouvíreis ressoar nas preces, que ao S e n h o r ,
em reflorindo a aurora, em refervendo o dia,
em desmaiando a tarde, o coro entretecia.
Era o nome do Heroe, nume do seu Brazil;
era o vosso; era o vosso, alma ingénua e gentil,
para consorte d’elle anjo em princeza occulto,
que onde entra a dor, chegais, venceil-a, haveis um culto;
eram, a par co’os dois, esses nomes de mel
á mente, ao peito, á voz: Leopoldina ;Izab el;
da imperial estirpe esperançosas flores,
copia, grinalda vossa, e de um Imperio amores.
Estes nomes, e a prece, em tão puro logar
harmonisavam bem; eram como no altar,
entre as nuvens do incenso alvas e transparentes,
a majestosa palma, e os ramos florescentes.
8o Empresa da Historia de Portugal

¡Coisa doce de ver, suavissima de ouvir!


¡deleitoso presente, a que ria o porvir!
¡O porvir?! ¡o porvir?!! ¿quem se fia em seu riso?
Cai do Em pyrio, o A rchanjo; o homem, do Paraizo;
cego raio impendia á fronte do ancião ;
terremoto imprevisto aguardava a mansão.
T a l, no ameno Paiz, onde ereis semi-déa, 1
impróvida folgava a genial Pompeia
á hora em que o Vesuvio, em seus nocturnos véos
envolvendo a cidade, o campo, o mar os ceos,
e mirando-a feroz, a morte lhe arrojava ;
e co’a m orte o sepulcro; e n’elle q o lv id o ... : a lava.
¡E fiar no futuro! je fiar no prazer! !

Mas o Archanjo, Senhora, a Deus egual quiz ser;


egual quiz ser a Deüs o pae da raça humana;
e Pompeia, a formosa, a soberba, a romana,
depois de já nascido o Sol da luz ch ristan.. .
por Jove, seu avô *, teimava em ser pagan.

Porém, ¿no velho m e u .. . (no vosso velho) havia


orgulho que punir? ¿ou impia audacia?

II
Um dia
uma esposa infeliz (Senhora, o mundo as tem)
chorosa, desgrenhada, envolta em sangue, vem...
do consorte fugida á bruta feridade,
do tecto bemfeitor invocar a piedade.
¿Podiam recusar-lh'a? O primeiro seu ai
segurou-lhe um abrigo, e mãe, e irmãos, e pae;

1 Nápoles, patria de Sua Majestade.


* P o r Hercules, filho de Jupiter, diziam que fôra edi­
ficada Pompeia.
Obras completas de Castilho 81

respira •, emfim respira ; a benção d’estes ares


a deve proteger contra quaesquer azares ;
é parte da familia ; a meza, o somno, o orar,
tem já communs com ella; o santo limiar
onde o S enhor a trouxe, ha-de lhe ser barreira,
que suspenda no ingresso a fera carniceira . . .

Enganou-se: a mansão que inviolável suppoz,


não tarda em ver entrar o furioso algoz,
ebrio, os olhos de fogo, o sembiante convulso,
ameaçadora a v o z .. . e pavoroso o pulso.
Trem e a victima imbelle; em joelhos está;
invoca ..-. não o amor (o amor extincto é já),
mas compaixão s e q u e r.. . do pranto e das feridas;
¡compaixão da innocencia! eleva as mãos unidas,
contra o furor crescente a supplicar mercê
ao Pae que tem nos C eos. . . e ao pae que ante si ve-

Leis da hospitalidade, ao solo brazileiro


sacras sois, quaes na tenda ao arabe guerreiro,
ou como outr’ora a Loth, ao patriarcha hebreu;
cumpriu-vos o ancião; solemne o braço ergueu
entre o falcão e a pomba ; usurpador sublime,
arda-a, repelle-o, folga; está frustrado o crime,
r na casa de bem, de tanto amor capaz,
co’a enviada por Deus reamanhece a paz.

Ill
Mas o cruento drama era em meio.

Outro dia
que o velho solitario ao seu lavor pedia
o sustento do corpo, e co’a enxada na mão
regava de suor o parco seu torrão,
encanecido, curvo, e sob o sol gem endo.. . .
8a Empresa da Historia de Portugal

rom pe de urna em boscada, insano, arm ado, horrendo,


¡o feroz! ¡o traidor!

O Brazil, o teu sol


nao creára esse tigre: o monstro era hespanho!.
Do Cid, o Campeador, dos heroes das Castellas,
vingadores leaes dos fracos e das bellas. . .
falar ousava a lingua, altiva e marcial,
namorada e viçosa, o pérfido, o brutal,
que, depois de ferir, de afugentar a esposa,
ao velho que ln’a ha salvo assassinal-o ousa.
Sim; ousa assassinal-o. O vil punhal reluz
perto já; o indefezo. . . o avista; os braços nus
ergue sùpplice; em vão, que a morte não recua;
treme, não já por si; pela familia sua;
vê os filh o s.. . em luto; a consorte... em viuvez;
a p rotegid a.. . entregue. A taes visões, (talvez!)
mais que á ideia da m orte, assom brado, em delirio,
já que emfim lhe é m ister lutar contra o m a rty rio .. .
luta. O p u n h al... lhe acorda as forças juvenis;
a vista do seu san gu e.. . o activa; a§ mãos senis
alçam, por cego instincto, a enxada, a boa enxada,
¡a sua arma innocente! ¡a socia sua amada!
contra o ferro inimigo a brande, por broquel,
mais que para offensora; as iras do cruel
redobram ; cresce o p’rigo; irrita-se a pendencia;
é já mortal batalha.

A ’rbitra a Providencia
a decide.

N ’um mar jazem de sangue os dois;


o velho, a agonisar; morto o forte.

D epois. . .
á Justiça dos Ceos, insondável, terrivel,
Obras completas de Castilho 83

seguiu logo a da terra; a da terra; a fallivel;


a que esgrime sem ver; a que pregou na Cruz
ao t>om e ao mau ladrão, e entre ambos a Jesús;
a que de povo a povo, a que de edade a edade,
faz o crime, virtude; a honra, iniquidade;
a que usa, n’um só dia, e no mesmo logar,
de si para si mesma appellar, aggravar,
desdizer-se: e nem sem pre, onde se crê mais fírme,
de justiça(talvez) seu nome um Deus confirme.

A Justiça m ortai viu sangue, e um vivo:—E ’ reo.—


Fita os olhos carnaes; aos d’alma, aperta o veo.
Não pergunta: ao passado, a consciencia do homem;
ao presente, se horror, se remorso, o consomem;
ao porvir, que será da familia infeliz,
da familia, innocente, em perdendo a raiz;
vê sangue; a côr do sangue, o reflexo do sangue,
a fascina; entre as mãos só acha o velho exangue;
não pune, se o não pune; e é preciso punir.
¿Que lhe importa o passado? ¿o presente? ¿o porvir?
condemna. Condemnou.
Senhora, acreditae-o.
¿E a que pena? ¿a morrer?!; a morte é como o raio:
trôa, fere, passou. Ante o castigo seu
(¡miserrimo ancião!) ditoso o que morreu.

¡Doze annos! ¡preso! ¡mudo! ¡oppresso! ¡envilecido!


¡descoroado das cans! ¡infame no vestido!
¡um numero por nome! ¡o trabalho sem fim!
¡e impossivel a esp’rançal! (olhos de seraphim,
perdoae, se vos baixo a este horror profundo).
Doze annos n’um jazigo; extincto, e moribundo;
viuvo, de mulher que traz por elle o dó;
pae de filhos sem pae; com familia, ¡e tão só!
(Olhos de seraphim, banhae-m’o em vosso pranto!)
84 Empresa da Historia de Portugal

¿Doze annos? ¿e a velhice acaso espera tanto?

¿Doze annos?! ¿mas ignora a Justiça mortal


que um só dia em tal d o r... por mil seculos val?

¿Doze annos?!! ¡vezes doze os longos sóes do estío,


sem elle entrar co’os seus no seu pomar sombrio!

¡Vezes doze do outono a abundancia, o prazer,


das arvores que poz, sem elle um fruto ver!

¡Vezes doze do inverno as noites espaçosas,


tão sociaes té’gora. . . agora tão saudosas!

¡Doze vezes, emfim, primavera a sorrir


a toda a N atureza. . . e sem deixar cahir. . .
a descuido sequer, na sua sepultura
urna florinha; um sol; um pio; uma verdura!!

¡Doze annos?!!! ¿mas sabeis o que doze annos são


no fundo de um abysmo, onde até a oração
se enregela talvez?!:

¡Cento e quarenta e quatro


mezes a desfilar em lóbrego tneatro!
¡Sem an as.. . a exhaurir no calice da d o r .. .
seiscentas vinte e seis sem dia do Senhor!
¡D ia s.. . a d estillar.. . a gota e gota, lentos,
dias sem luz do C e o ... são: quatro mil, trezentos,
mais oitenta, mais tres! ¡Horas, horas eguaes,
na angustia, ás do estertor; no odio, ás infernaes...
horas, quaes Deus não quer, e que Satan faz suas,
são cento e cinco mil cento e noventa e duas!

¡Doze annos!? ¡doze?! ¡doze?!!!; a dextra deum juiz


lança doze de um rasgo; a voz depressa o diz;
Obras completas de Castilho 85

são duas letras só. Mas á provecta edade


duas letras... conteem o inferno... e a eternidade.

IV
A Lei é cega e surda; afortunado o Rei
que suppre,ouvindo evendo, o incompleto da Lei;
e a quem do Estado o jus, da humanidade amigo,
deixa dizer:—¡Perdão!—quando a Lei diz:—Castigo.—

¡Prerogativa excelsa! o raio attesta um Deus;


mas a clemencia o mostra, e nos torna mais seus.

Filha da bella Italia, Egèria em mundo novo,


unida a joven Numa, e estreia a joven povo;
Senhora; Imperatriz; deidade tutelar;
é grande este infortunio; é trem endo; é sem par;
merece-vos! Lutar co’a fortuna traidora,
desarmai a, vencêl a . . . é nobre; e vós, Senhora,
vós, que o podeis e usais, vós, Senhora, o fareis.

Quando, além de ám anhan, prostrado ao Rei dos Reis,


ante as aras em luto, o Chefe aos pobres lave,
enxugue, beije, os pés, e em sua mente grave
mais vivo resplandeça o preceito do a m o r ...
(é dia de indulgencia; hora do Salvador)
presentae, co’o sorrir da terna caridade,
o infeliz, ao Consorte; o oppresso, á Majestade.

«— Hontemfoi,— lhe dizei —o quarto sol de Abril;


«sacro na Lusitania, e sacro no Brazil;
«o sol, a que ha brotado a irm an, que lá no Em pyrio
tgosa, em sidereo throno, as palmas do martyrio;
«a que houve o berço, aqui; lá, o sepulcro seu;
VOL . X Ï I 6
86 Empresa da Historia de Portugal

«essa, cuja Odyssêa o largo mundo encheu,


«e por quem todos nós assim vertemos pranto;
«¡oh! ¡em memoria d’ella! ¡e por seunomé santol,
«¡e por suffragio terno e derradeiro don!;
i vós, que imperais também , vós que também sois bom ,
«resgatae, resgatae-lhe este homem, que era d ’elJa;
«Por m inha voz o im plora essa alma augusta e bella.
«Este homem, já punido, e morto já, talvez,
«quiz entre nós v iv e r... mas nasceu Portuguez;
« ¡dae-lhe o seu Portuguez como um don natalicio ! »—

Do nome de Maria ao influxo propicio,


sem custo lhe obtereis, pelo vosso condão,
innocente, a justiça; ou culpado, o perdão.

Do vosso Imperador um aceno é divino:


o que n’elle podeis, póde elle no destino.
Manda e fez-se: a prisão se descerra per si;
inda chora o casal, mas é chôro que ri;
á choça outra vez fuma; ovante a vizinhança,
cantando o vosso nome, em torno aos lares dansa;
e os filhinhos.. .que ha pouco iria m .. .m undo a lé m ...
p á ria s .. . orphãos de p a e .. . orphãos talvez de m i e . ..
co’o brio murcho em f lo r .. . a fé e a espr’ança m orta . .
arrancar á piedade o pão de porta em porta. . .
em seu campinho agora, alegres colibris,
volverão a entoar, por vós, que os redimis,
¡graças, bênçãos, na aurora, ao meio dia, á tarde!
—«A nossa mãe, foi ella; a Mãe celeste aguard e;—
—dirão (e a voz da infancia eccos no Em pyrio dá;) —
«como ella nos ampara, o Ceo a amparará;
« o que aos filhos do pobre em prestou de clemencia,
«nos proprios filhos seus lh ’o pague a Providencia.»
Obras completas de Castilho 87

VI
Sim, Augusta; ella só, c^ue por um mede mil,
cingirá digna c ’rôa ao feito senhoril;
não já essa de roble, outr’ora imposta á coma
do cidadão salvando um cidadão de Roma,
mas de amores na terra, e na Patria, de sóes;
duplex c’rôa, invejanda aos maximos heroes.

VII
E d e p o is... (bem sabeis) por mui christan que seja,
nunca de todo esquece uma alma bemfazeja
venturas que espalhou, bênçãos que mereceu;
do fundo coração, mago thesoiro seu,
lagrimas que hão furtado as suas mãos amantes,
a estrellejam de luz mudadas em diamantes.

¿Eque pode a humildade aos sonhos prohibir?


nas horas, em que os maus o inferno ouvem r u g ir ...
a consciencia, ao bom, canta, como a sereia,
que enleva a praia muda, arroba a lua cheia.
Sabem só elle e o Ceo mysterios que ella diz.

Feliz o velho! e v ó s .. . ¡mil vezes mais feliz!

VIII
Pedi-vos um perdão, Senhora; outro podia
não menos supplicar da insólita ousadia.
Em vós, deslumbram: prole, esposo, irmãos, avós; ..
mas de tanto esplendor desassombrais-me vós:
dentro da Majestade, a mulher mãe contemplo;
trouxe ao P aço a oração, como a levára ao Tem plo.

Rio de Janeiro, 3 de Abril de i8S5.


VII

AGRADECIMENTO
E PIS T O L A 2.»
A

SUA MAJESTADE Ã IMPERATRIZ DO 6BAZIL


XDOISTA. THERESA

¡Salvol ¡livre! ¡reposto em seus campestres lares!


¡outra vez pae e esposo! O interessante reo,
lá do fundo do sul, como eu d’áquem dos mares,
graças e adorações vos rende olhando ao Geo.

E ra um ninho amoroso; um temporal o arranca,


o vasa, o precipita, o fulm ina.. . Ao fragor,
fada propicia acode, o co’a varinha branca
restaura n’um relance o ninho, e dentro o amor.

Vós fostes (e só vós podé reis sêl-o) a fada


capaz de realisar egual transformação;
vós, de um genio que impéra esposa idolatrada,
vós, que tendes no sceptro a vara de condão.

¡Ah! ¡bemhajais,senhora! Avelhice e ainnocencia


por vós ambos a Deus alçam em coro a voz.
Premio havereis, que abranja a augusta descendencia:
felizes sereis n’ella; ella, feliz por vós.
ço Empresa da Historia de Portugal

¡Oh! dez vez¿¡s doirada, oh vezes mil bemdita,


a hora, em que aterrado ao cahir do ancião,
aos ais dos filhos seus, aos ais da esposa afflicta. . .
fui de rojo ante vós clamar: «¡Perdão! ¡perdão!»

«¡Perdió! ¡perdão!» vós mesma ao T hrono repetistes,


chorando, unindo ao seio as filhinhas gentis;
e o imperial perdão baixou; e vós surgistes
maiores do que nunca, e'eu, qual nunca, feliz.

Não; não foi minha lyra a autora do prodigio;


foi a harpa de um Anjo, Anjo bom entre os bons,
que habita dentro em vós, que vos dá seu prestigio,
e faz, quando falais, ouvir celestes sons.

¿Quem vos resistiria?! o Deus que á mór grandeza


destinára esse Imperio, esse mundo tão seu,
já de industria em seu throno a Pedro uniu T heresa;
á força que domina, a graça que a venceu.

Deu a mais alto Numa outra e melhor Egèria.


¡Que auspicio ao forte Imperio em seu berço infantil!
na antartica palmeira, a régia flor da H espèria;
de Portici a sereia, o genio do Brazil.

¡Fadado par, ávante!. Emquanto assim se enlaça


a piedade á justiça, á virtude o poder,
o Throno abriga a turba; o Povo o solio abraça;
medra a paz, cresce o amor á sombra do prazer.

Como essa Natureza augusta e generosa,


que attrai de longe o mundo ás vossas regiões,
vós o attrahis tambem; e a industria milagrosa
em cidades converte os ermos dos sertões.
Obras compUtas de Castilho 9»

O selvagem r e c u a .. . ou cede fascinado.


Larga o leão seu reino ás artes triumphaes.
Das serpentes o asylo, aos golpes do machado
cai, resurge, enche o mar de castellos navaes.

¡M etamorphose estranha!: a terra ¡ndahontem ermo,


hoje ermo e )á nação, ¡que Roma e eden será,
quando a gentes sem conto em seus confins sem term o
raiar de todo o sol que lhe alvorece já!.

A mente humanitaria em delicias se expande,


no progresso do mundo olhando um tal porvir.
Preparal-o reinando, é grato; é nobre; é grande;
é ver, já cá da vida, o sepulcro a florir;

é á posteridade impôr suave preito;


de um glorioso dia é ser a antemanhan
é, Maria e M oysés, guiar o Povo eleito
da escravidão do Egypto á pingue Canaan.

¡Avante! ¡ávante! ¡ávante! Homem da humanidade


(primeiro Josaphat em que se julgam Reis)
eu, sem paga e sem nome obreiro da cidade
que ao futuro se erige, e a que vós servireis,

bênçãos vos antecipo. ¡A.h!, se uma pobre lyra,


que a salvar uma choça ha pouco vos moveu,
póde, agora que afoita a gratidão a inspira,
em favor de um Imperio alçar o rogo seu,

escutae-me, ó Princeza: uma divida aos povos


jaz em aberto; immensa; antiga; universal.
E ’ tempo de ser paga; (urgem-n-o os fados novos)
paga; e o juro tambem, que dobra o capital.
92 Empresa da Historia de Portugal

Esta divida enorme, em favor de oppressores


desde a origem do mundo aggravada até nós,
hoje reivindicada em preces, em clamores,
ante os Ceos odiosa, ante a justiça atroz. . .

é a luz do saber; o sol do mundo interno;


é o baptismo d'alma, a que todos teem jus;
o chrisma, a eucharistia, o commungar fraterno;
o cumprimento emfim de um voto de Jésus.

Tenha embora o saber pobres, ricos, morgados,


como a fortuna os tem; como os tem o poder.
A harmonia geral pede tons variados;
no saber soffre graus; não párias no saber.

E o Povo, quasi todo, é pária em toda a parte;


é Lazaro esfaimado aos pés do grão festim.
O engenho creador seus dons em vão disparte*
chove-os a Ix p re n sa em vão, dia e noite, e sem fim. . .

ao Povo nada chega entre tanta abundancia;


em tanta luz immerso, o Povo nada vê;
julga-se livre, e é servo; adulto, e jaz na infancia.
E ’ que o saber é tudo, e a multidão não lê;

não se aquece ao calor dos animos sublimes;


não se illustra ao fulgor dos genios de eleição;
herda ejtransm itte a inercia, a incuria, o vicio, os crimes;
extranha aobello e ao bom; sem Deus; sem coração.

P or aspero caminho e sombras espinhosas


vai-se do berço á valla, impia, perdida, só;
horda barbara que enche as nações orgulhosas,
e n’aima pensadora infunde horror e dó.
Obras completas de Castilho <j3

¡Ah! se algum dia a luz, compenetrando todo


este confuso mar do mundo social,
como as ondas á flor lhe doira, entrasse ao lodo
que ao fundo lhe negreja em profuso estendal,

¡de que perlas sem preço o não vira estrellado,


incognitas agora aos Geos, ao mundo, a si!.
Já que não as colheu para nós o passado,
vamol as nós tomar, salvemol-as d’ali;

vão de nós ao porvir ser diadema sidério;


demos exemplo e herança ás novas gerações;
nunca mais, ao pisar agreste cemiterio,
possa dizer-se:—«A lem .. .jaz ta lv e z .. .um Camões;

«um Gama; um G uttem berg; outro Phydias, ou C astro1;


«Mont’Alverne*; Papin; Newton;Verdi; Linneu.
«E não foi, não, a morte a que apagou seu astro;
«não chegou a raiar: b ro to u .. .despareceu;

« é-lhe epitaphio o musgo, e campa o esquecimento.» —


¡Oh millanaria, oh triste, oh vil desherdação!
Quebre-se de uma vez o infando encantamento:
¡luz! ¡luz a todo o Povo! e as glorias surgirão!:

Justos, sabios, heroes, vejo emergir do nada,


e por elles ao orbe eras de encanto advir;
como da selva nua e da terra escalvada
rebenta primavera em vindo o sol a rir.

IO primeiro dos escultores portugueze; distinctos Joa­


quim Machado de Castro.
* O Padre Frei Francisco de Mont’Alverne, celebre o ra­
dor sagrado brazileiro.
94 Em presa da Historia de Portugal

¡Luz! ¡luz!. A luz fecunda, o que a fadiga lavra;


a luz descobre a terra, e patenteia os Ceos.
Para os olhos carnaes creou-a uma palavra;
uma palavra aos d’ alma a despirá dos veos.

Um altar, loiro, gloria, ao genio que a profira.


Tom ae vós essa gloria, esse loiro, esse aitar,
alma de Imperatriz; a cujo amor se inspira
do mais possante Imperio o genio tutelar.

Vós a ridente aurora, Elle o alto sol fecundo;


vós lhe abri, lhe enflorae, a porta oriental;
Elle, que esparza dia ao tenebroso mundo;
vós direis: — «Nuncia eu fui da festa universal.» —

Mas, Senhora, ¿sei eu se a fervorosa prece


que ouso alçar até vós, vós mesma a entendereis?
¿conheceis vós o Povo?! ¿o que o Povo padece
ouviram-n-o jamais os ouvidos dos Reis?

Quando em torno ao palacio o Povo se atropella,


como á porta de um templo, a deprecar mercê,
repulsa o a lisonja, infame sentinella,
e diz: — «Turba a folgar, é tudo que se vê.» —

A Poesia entretanto, audaz como um propheta,


da expulsa turba em nome enviada por Deus,
entra afoita no Paço; a voz que ella interpreta
vem de cima; a verdade é pois nos labios seus;

a verdade, ei-la aqui: da estúpida ignorancia,


monstro que monstros cria, é outro monstro o pae;
monstro, que abraçar finge, e martyrisa a infancia;
Moloch assolador das obras de A donai.
Obras completas de Castilho 95

E ’ seu nome o rigor. O rigor ignorante,


presumpçoso, impio, atroz; reo, magistrado, algoz;
to rn o u a escola horrenda á infancia alegre e am ante,
e da esterilidade o anáthema lhe impoz.

T em po é que um braço audaz, remindo a humanidade,


o desterre, e em seu throno assente o ledo amor;
que a infancia seja infancia; o ensino, claridade;
e frutos ao porvir crie o presente em flor.

Mulher, esposa, mãe, Princeza excelsa e pia,


a vós, mais que a ninguem, pertence o nobre ousar;
não deixeis que sem vós se consume a utopia
que rebentou per si, de si se vê medrar,

de praia em praia vai, de cidade em cidade,


humilde missionaria aos sinceros e aos bons,
seduzindo co’os bens, ganhando co’a verdade,
e transpondo, e crescendo, á força de seus dons.

Como tudo que é justo, amante, verdadeiro,


a utopia inda ha pouco, hoje facto real,
algum dia erguerá sobre o universo inteiro
seu pendão de resgate, a luz do seu fanal;

mas tarde; muito tarde; ¡e pobres entretanto


continuarão na mingua! ¡e o rigor a assolar!
¡e a ignorancia a dormir! ¡e á sombrade seumanto,
quaes vermes em sepulcro, os vicios a abundar!.

Para que a nossa edade o grão vôo desfira


por onde o Eterno a chama, e assombre a que virá,
dos g rlh õ es, com que o erro as plantas lhe opprimira,
deve, quem o podér, libertai a já já;
g6 Empre\a da H ii torta de Portugal

podeil-o vós, Senhora, e podeil-o sem custo:


sorri á nova escola; á escola que ama e ri;
ehamae-a; que se abrigue ao vosso tecto auguste
como entre filhas mãe, vós mesma a presidi.

¿Quereis mais e melhor?: dae-lhe por tutelares


vossos dois séraphins: Leopoldina, Isabel.
Namorada a puericia encherá vossos lares;
despovoar-se-hão de em tomo os atrios da Babel,

as arenas da infancia, as cavernas da esphinge,


o ergástulo onde algoz calca puericia aos pés,
os limbos de terror em que haver luz se finge,
dos piratas a feira, os bancos das galés.

A o rumor de tal nova, acorrem pensadores,


ph;lanthropos, mães, paes, os crentes, os sem fé,
o zombeteiro estulto, os christãos semeadores,
e os que entrevêem na ideia um sol que inda não é.

E todos, em redor do sonoroso enxame,


irão ver e admirar como flores dão mel;
como a luz na manhan faz que se acorde e se ame;
como ao lidar sensato o deleite é fiel;

como no ente humano o corpo, o affecto, a mente,


dotes que Deus uniu, compondo o trino e um,
cultivando-se a par se ajudam mutuamente,
•e a ventura ressai do seu haver commum.

¡A evidencia triumpha! a voz da humanidade,


e a voz do proprio int’resse, em todos acordou.
¡Hosanna! ¡hosanna a vós, Princezas! ¡nova edade,
de palmas carregada, em meio globo entrou!.
Obras completas de Castilho 97

¡Oh terra de Colombo!, um navio de esmola


do abysmo te evocou. . . e aurea brotaste á luz;
por outra régia heroina esmolada uma escola
vai transformar-te em Ceos, terra de Santa Cruz.

E eu, que já uma vez largando o patrio ninho,


romeiro do progresso, em balde te busquei,
retomarei de novo o undívago caminho,
e irei juntar meu hymno ao seu triumpho; irei

pender na escola-templo os festões da poesia,


e, novo Simeão, findar a vida em paz.
Onde o hom em que se hum ana afoito invoca o dia,
direi:— «A Patria é esta; aqui viver me apraz.

c Apraz-me aqui morrer, onde as mães por ventura


«co’os filhos pela mão me hão-de vir visitar;
«saudades esparzir em minha sepultura,
«e dizer :— ¡Este sim, que soube o que era amar!. *— ■

¡Uma escola, ó senhora!, ¡uma só, porém vossa!


uma escola abundante, alegre, maternal;
clara, christan, fecunda; um a escola em que possa
vosso Imperio aprender, e aprender Portugal;

uma escola, que olhando-a o vosso excelso Esposo,


n’ella veja espelhado o vosso coração;
vos sorria, medite, e exclame jubiloso:
—«Abraço-te, ó Progresso! abraça-m e, ó Nação.»—

Lisboa
A gosto de 1857
VIU

C A R T A A SUA MAJESTADE

0 SENHOR DOM PEDRO II


IMPERADOR DO BRAZIL

Enviando-lhe a precedente Epistola

Senhor — Peço a Vossa Majestade Impe­


rial licença para mandar pôr aos pés da
Augusta Esposa de Vossa Majestade esses
pobres versos, testemunho do meu animo
agradecido.
A personagens como Vossas Majestades,
a quem nada falta, e que não podem crescer,
só por dois modos as mercês se retribuem:
confessando-as, como eu faço perante o mun­
do, ou deprecando logo mercês novas, como
eu ouso fazer perante Vossas Majestades.
Ha dois annos, Senhor, apenas cá me soou
que Vossa Majestade não seria descontente
de reconhecer na pratica o Methodo-portu-
guez, de que a theoria só per si lhe não dava
cabal ideia, apresentei-me, sem mais convite,
n’essa Córte; pedi, e alcancei do Governo de
Vossa Majestade, autorisação para ahi re­
ger um curso normal. Como o regi, sabe-o
too E m p r o a da Hstoria de 'Portugal

Vossa Majestade, pois me fez a honra de o


presenciar; que frutos se poderam ter colhi­
do, sabem-n-o já, por se estarem n’elles sa­
boreando, muitas povoações do Imperio: Per­
nambuco, Maceió, Bahia, Alagoas, Sergipe,
Rio Grande, Piauhi, Apodi, Ceará. Todavia,
já que a verdade nem a Deus nem aos Reis
se ha-de encobrir, o grande beneficio da
escola primaria, regenerada segundo o espi­
rito do seculo, os aphorismos da sciencia e
os dictâmes da caridade, continúa a ser para
a immensa maioria desperdiçado; lástima não
pequena, da qual se o presente se não sabe
ainda queixar, muito poderão arguir a esta
edade egoista os futuros amigos do genero
humano. Senhor, quem exorou a Vossas
Majestades em favor de um velho, ¿ como
deixaria de interceder em favor de todas as
creanças? Se a felicidade de uma só chou­
pana é tanto, ;que não será a de todo um Im ­
perio? Feliz Vossa Majestade, que a tem fe ­
chada com o sceptro em sua mão imperial.
E ’ por isso que eu aspiro, com tão impor­
tunas supplicas, a que Vossa Majestade,
vendo experiencias, bem e conscienciosamen­
te feitas sob os seus proprios olhos, se in­
teire da verdade pela clareza do seu muito
juizo; e, reconhecida ella, lhe dê amparo de
T ito em seus Estados.
Senhor; a Historia nem sempre ha-de ser
inutil. Um homem obscuro, desprezado, es­
carnecido como visionario, tinha um mundo
para dar, e andou-o offerecendo em vão de
throno em throno. Logo que um lh’o acceitou,
brotou do nada essa America; inteirou-se o
planeta com o seu hemispherio mais formoso,
Obras completas de Castilho 101

¿E se não fosse aquelle throno? ¿e se


aquelle homem tivesse morrido, devorado por
dentro pela sua utopia? ¿e se após elle nem
o calculo nem o acaso houvessem atinado com
essas regiões? ¿Por ter ficado occulta, deixa­
ria a verdade de ser verdade? ¿E se ella mais
tarde inesperadamente se patenteasse, não
iriam desenterrar o seu martyr do fundo da
ignominia, e não o vingariam bem vingado?
A instrucção primaria popular, germinai de
todas as instrucções, tumescente de todos os
futuros, não é menos para o mundo moral,
do que o foi a America para o orbe; e é do
throno de um principe sabio, juvenil, em terra
nova, possante e de ousadias, é do throno
de Vossa Majestade, que eu espero já n’esta
hora o meu naviosinho de descobridor, e logo
depois a protecção da descoberta. Ninguem
dirá que a grandeza da causa, apesar da pe­
quenez da sua apparencia, desconvem á
grandeza summa do patrono que lhe sollicito;
não peço a Vossa Majestade o porvir de uma
ideia humanitaria (todas as ideias humanita­
rias teem certíssimo em Deus o seu porvir);
peço que esse porvir, quanto possivel fôr, se
approxime do presente, que será multiplicar­
se o bem.
Senhor! o que eu pude fazer, e que alguns
espiritos serios reputam muito, foi pouquís­
simo, e foi nada, em comparação do que es­
pero ver feito, e bem logrado, por Vossa
Majestade.
Se a gratidão dos povos erigisse estatuas
proporcionadas aos meritos dos seus bemfei-
tores, a Vossa Majestade, favorecendo e dif-
fundindo com o seu influxo a regeneração
VOL. XXI 7
102 Empresa da Historia de Portugal

da escola por esses paizes sem limites, não


daria sobejo colosso quanto oiro elles reser­
vam nas entranhas.
Guarde e proteja Deus por largos e feli­
cissimos annos a Augusta Pessoa de Vossa
Majestade Imperial.

Lisboa, io de Agosto de 1857.

De V ossa M ajestade Im perial o mais


convicto adm irador e agradecido servo

A . F. de Castilho.
IX

CARTA
AOS

PORTÜGUEZÊS RESIDENTES EM PORTO ALEGRE


SO IMPERIO DO BRAZIL

Agradecendo-Ihes urna rica penna de oiro


por elles offerecida ao autor depois de impetrado o indulto imperiai
que na Epistola a pagina 78 se liavia sollicilado

Caros patricios e senhores meus: — Em


hora bem estreada enviei eu a minha po­
bre musa aos pés do Throno brazileiro, a
implorar a graça d 3 infeliz velho nosso con­
terraneo.
Como se não fôra bastante o obtel-a tão
completa e incondicionada, tão digna de quem
a outorgou; como se para ventura me não so-
brára o saber que um pae de familias, homem
de bem, condemnado a morte peor que a pro­
pria morte, e encerrado em sepulcro mais
horrendo que o proprio sepulcro, tinha em-
fim ressuscitado, para levar ao meio do luto
do seu tugurio uma paschoa de flores ines-
104 Empresa da Historia de Portugal

perada; como se emfim todo este infinito de


júbilos que a Providencia me déra a gosar,
não fosse excessivo para premiar até actos
da mais heroica virtude, quanto mais o sin­
gelo cumprimento de um dever de humani­
dade, que foi tudo quanto em mim houve
n’este negocio; viestes vós com a vossa pen­
na de oiro, com as vossas expressões de
affecto, mais preciosas que oiro e brilhan­
tes, cobrir-me de uma gloria, que excede to­
das as ambições do tempo em que eu as
tinha, e com a qual todavia o meu coração
se entende perfeitamente. E com effeito, ser
amado assim lá tão longe por quem nunca
nos viu, e collectivamente, ¿não é como se um
homem se estivesse ouvindo festejar na pos­
teridade ? !
¡Bem hajais, senhores! ¡bem hajais! que no
liberalisar-me esta corôa excessiva, talvez
creastes um possante incentivo a outros me­
lhores engenhos, para se converterem da
poesia individual, egoistica e esteril, para
est’outra poesia mais solida, mais ampla, mais
nobre, mais productiva, que já quer vir nas­
cendo do consorcio do christianismo antigo
com a joven, formosa e amante philosophia
social. Muito ha que eu me votei de todo a
ella: que o digam as minhas Estreias poetico-
musicaes para o anno de 1853 , rebate de alvo­
rada, a que a nossa mocidade ainda não acor­
dou; e que o digam sobre tudo as obras,
muito mais praticas e valiosas que meros
cantos, que trago endereçadas já de annos ao
desenvlovimento da cultura intellectual do
nosso Povo.
Se tinha eu nascido ou não poeta para de-
Obras completas de Castilho io 5

leitar ' ouvidos, em boa verdade que o não


sei; sei porem, e sinto cá dentro, que me ta-
Ihára Deus poeta de acção; poeta operario;
um dos exploradores da opulenta mina das
utopias; um dos fundidores da ideia em facto,
a quem o mundo costuma insultar em quan­
to lidam, e agradecer saudoso depois que
morrem.
A familia d’estes artífices, predestinados
do futuro, e quasi sempre precitos do pre­
sente, é numerosa e variada: uns, extorquem
segredos á natureza physica, e os entregam
á industria; outros, mutiplicam por novas
combinações as forçàs, os meios, os recur­
sos e os productos da mesma industria; ou­
tros, emfim, os menos populares e brilhantes,
mas não os menos diligentes, nem os menos
prestadios, mergulhámos pelas obscuras pro­
fundezas do mundo intellectual e moral, á
procura de verdades, que, achadas, colhidas
e combinadas, possam um dia actuar em bem
e em grande nos destinos essencialmente cres­
centes da nossa especie.
D ’entre estes jornaleiros gratuitos, escolhi
eu para minha especialidade a que já o fô-
ra de muitos homens de coração grande: a la­
pidação da alma pueril, precioso brilhante
desaproveitado, desconhecido quasi geral­
mente, e que, se fosse habilmente faceado
para receber de toda a parte a luz, e para
todas as partes repercutil-a, infundiria es­
pantos por sua immensa formosura. Desbas­
tar a rudeza originaria por meios suaves e
naturaes, fazer da alegria e ligeireza instincti-
vas na infancia o instrumento da sua propria
cultura, alimentando a memoria pela intelli-
io6 Empresa da Historia de Portugal

gencia, o estudo pelo amor, eis-aqu¡ a minha


poesia sem- nome, a que eu não rimo nem
canto, mas lido e sonho de continuo-, poesia,
em cujo centro se intercruzam umas irradia­
ções vagas de todas as poesias formuladas:
da lyrica, fervente de enthusiasmo; da ele­
giaca, húmida de lagrimas affectuosas; da
erotica e pastoril, que endoidece de immensa
ternura pela amenidade, pela benevolencia,
pela paz, pelo verdejar de esperanças diante,
á roda, e por cima, de todas as coisas; final­
mente da epica, pois que a grande, pois que
a summa epopea da humanidade, que de
era a era se desenvoive n’um canto novo, e
cujo epilogo ha-de ser o paraizo, tem na sua
estrophe de hoje, que lh’a escreveu a mão da
Providencia, a abolição do captiveiro e da cas­
tração millannaria da alma das creanças. ¡Oh!
¿quando acabarão de entender os homens de
engenho, que, se até agora teem podido muito
para a gloria pessoal, podem, com ella ou
sem ella, muito mais e centuplicadamente,
para a felicitação dos seus semelhantes ?
Oxalá concorra para os desenganar de quanto
é melhor o servir que o resplandecer, a recom­
pensa que haveis prodigalisado aos bons
desejos. Vejam elles, que se o ter impetrado
o resgate de um velho e de uma só familia
deu de si tão admiravel corôa, com os exfor-
ços que fizerem para melhorar futuros a to­
das as familias, para felicitarem a todos os
velhos com o melhoramento da sua descen­
dencia, a todos os innocentes com o apro­
veitamento das suas faculdades, ao mundo
actual com mais exemplos de rasão e frater­
nidade, e ao mundo proximo futuro com o
Obras completas de Castilho 107

maior legado de homens e mulheres de mais


saber e de mais virtude, poderão, e deverão
esperar, como intermedio entre os galardões
da consciencia, que é ante-manhan do Ceo,
e os do Ceo, os triumphos terrestres tambem,
decretados e conferidos pelos varões como
vós, desinvejosos, illustrados, liberaes, e pro­
gressivos.
Qualquer que seja porém, meus senhores,
o efíeito moral da vossa prodigalidade para
comigo nos animos dos meus pares e su­
periores em talento, a carta com que me
glorificastes, e a penna que a deveu escre­
ver, enthesoiro-as ambas para meus filhos,
pedindo a Deus que á vista de taes docu­
mentos se estimulem, como devem, a serem
dignos d’este seculo, exactor, cada vez mais
severo, de realidades.
Dignae-vos de acceitar os protestos da mi­
nha admiração, da minha reverencia e ’ do
meu agradecimento e affecto para comvosco.
IU mos srs concidadãos portuguezes resi­
dentes em Porto Alegre, no Imperio do
Brazil: Antonio Maria do Am aral Ribeiro,
dignissimo Consul da Nação Portugueza,
Joaquim José de Macedo, F . da Silveira,
Manuel José de Carvalho Bastos, Ignacio
Pinto da Fonseca, Francisco Pereira da Ro
cha Paranhos, Francisco José Bello, Joaquim
Caetano Pinto, João de Araújo Vianna, D o­
mingos Gonçalves Martins de Oliveira, José
Luiz do Valle, João Caetano Ferraz, Anto­
nio Ribeiro da Silva, José Gomes Pereira
Bastos, Antonio da Silva Santos Paranhos,
Manuel Pinto da Costa Guimarãas, A V.
Pinto, Jacinto Gomes do Valle Quaresma,
io8 Empresa da Historia de Portugal

Francisco Ventura Perfeito, Joaquim Teixei­


ra do Valle, Augusto Cesar do Valle, Anto­
nio José (ronçalves Bastos, Antonio José da
Silva Guerra, Joaquim Antonio Nunes, José
Leite da Fonseca.

Lisboa, 6 de Julho de 1857.

A . F . de Castilho.
X

ADRIANA LECOUVREUR
o p e r a em quatro acto s

TRADUZIDA DO ITALIANO

DO SN R . A C H IL L E S DE L A U Z IÈ R E S .

Dedicatoria do traductor a Madama Fortunata Tedesco di Franco.


V e rso s a to d a a p r e s s a

I
Sob o que ri, descrê, chora, doideja, lida
sob a cambiante, a escura, a procellosa vida;
por baixo do presente, ingrato, vão, fugaz,
ha duas regiões: na menos funda, jaz
tudo que vida teve; o enxame outr’ora activo,
que errou, zumbiu, soffreu, como este agora vivo.

Em jazigo mais fundo, e mais triste, e mais só,


m oram , de longe a longe, os que antes de ir-se ao pó
querem ao bem commum votar-se em sacrificio;
á indifferença, ao odio, oppõem o beneficio;
preparam em secreto a ingratos seus irmãos
as glorias do porvir, obra de suas mãos.

Sob os pés triumphaes de eunucos estadistas,


estes homens de amor, videntes, utopistas,
i io Empresa da Historia de Portugal

suam na vasta mina em que Deus os tem nus,


quasi sempre sem pão, quasi nunca sem luz.
Ëxtranhos ao bulicio ephémero dos povos,
de ramal em ramal buscam thesoiros novos;
não de oiro ou pedraria, opulencia vulgar,
mas da eterna verdade; exploram de vagar,
um dia, um mez, um anno, ás vezes toda a vida,
a luminosa ideia, a ideia em vão sumida,
carbunculo vivaz, que o vulgo não prevê;
a ideia mãe do facto, o fecundo porquê
d’essas revoluções, que tacitas se formam,
e sem autor nem sangue os séculos tranformam.
Pensando o que ha-de ser, consolam-se do que é;
se a plebe ri, ¿que importa? é séria dentro a fc;
cantam no seu m artyrio; aos que lh’o dão, perdoam,
e do posthumo altar co’a fama aos astros vôarn.

Um d’estes raros bons, a quem amor prendeu


na catacumba horrenda e g lo rio sa.. . sou eu.
Aqui, febre de amar as noites me devora;
de espectros infantis, aves da minha aurora,
não nascidos que um dia h ã o d e ser mães e paes,
alva turba feliz, em sons angelicaes
me sussurra no ouvido: — «¡A’vante! ¡persevera!
«da noite o dia sai; trabalha, m orre, e espera.» —
Trabalho; e a santa ideia, humilde e toda amor,
de que fez meu quinhão n’esta mina o S e n h o r ,
lapido-a sem cançar, como um real diamante;
guardo-a, zelo-a, defendo-a; ás vezes espumante
com o um dragão da Hespéria, em pressentindo alguem
que sonhou destruil-a, e arrebatar-m’a vem.

De tão longa, espontanea e muda obscuridade,


nada ha muito me arranca. A s festas da cidade,
¡que fervam lá por cima! ¡abrasem-se ambições!
¡a paz encubra a guerra! ¡embatam-se as facções!;
Obras completas de Castilho ni

aqui nem chega um ecco; eu trabalho; e som ente


oiço um vago cantar que vem lá do nascente.

Por isso a minha lyra envolta em seus festões


me dorm e ha tanto aos pés: não lassa de canções,
mas sonhando que a aguarda a festa do futuro;
e que um dia o cantor, hoje operario obscuro,
finda que seja a obra, a tomará feliz,
para volver com ella ás glorias juvenis.

II
Mas entre applausos férvidos
¿que meiga voz retumba
’té aos recessos intimos
da horrenda catacumba?!

O s eccos alvoroçam-se;
desperta o coração;
cala o porvir. ¿ Que magica
soltou esta canção?!

Vôlva-se embora a subitas


ás regiões do dia.
¡Salve, cantora, symbolo
da eterna melodia!

Fortunata os humanos te chamam,


ó da arte rainha louçan;
¡mas como é que no Empyrio te acclamam
teus irmãos, ó dos anjos irman?

Deus sorria, e nasceste, alvo espirito,


dos ethéreos jardins rouxinol;
deu-te a lua o seu raio mais languido,
o seu raio mais vivido o sol.
iis Empresa da Historia de Portugal

A ’ terra Ausonia, á terra dos triumphos,


das deidades, do amor, á noiva Italia,
que a laranjeira em flor e os myrtos c’roam,
cabia pôr-te o berço; outra hospedagem
de menos harmonia,
quem baixava dos Ceos a enjeitaria.

Teus celestes dons nativos,


augmentaram-t’os na infancia
d’esse ar puro alma fragrancia,
mar argenteo, igneos vulcões;
essas glorias do passado,
esses mortos sempre vivos,
esse idioma enfeitiçado
que enamora os corações.

Escutas, ouves musicas;


pensas, é só poesia;
recordas-te, é magia;
sonhas, é sempre amor.
Já não te admiro: invejo-te,
grão genio encantador.

Das sereias de Parthénope


supponho
no escutar-te ouvir os canticos
em sonho.
¡Oh! se o prisco povo itálico
te ouvira
o cantar, que interno oraculo
te inspira;
d’essas nove irmans Piérides
o altar,
a ti só o havia unanime
votar.
Obras completas de Castilho 1 13

III
0 ’ flor do Mincio, ó Mantua; a Roma, inveja
dão teus fados poeticos: Virgilio,
o grande, o que abrangeu no canto augusto
o immenso imperio, os Cesares e os deuses,
chamou-te mãe; por séculos dezoito
descançaste do parto; alfim te assoma
esta filha, outra inveja ao mundo e a Roma.
Diva irman de Virgilio,
tu, que os imos arcanos
da Natureza e da Arte a fundo sondas,
inspirada Sibylla em viço de annos,
dize-me o teu segredo; ¡oh! não m’o escondas.
¿Acaso de tão longe o teu Virgilio
te adivinhava já?, te pressentia?
¿eras tuj por nascer, a doce Musa
que lhe inspirava a terna poesia?
Vagam no Elysio (d’elle proprio o soube),
co’as sombras dos que hão tido illustre fama
sombras dos que hão-de têl a: heroes, heroinas,
sumidos na selvatica espessura
de seus futuros loiros,
a aguardarem os séculos vindoiros.
¿D’essas uma eras tu?, que interdormido
lhe ias verter no ouvido
mysterios de ineffavel sympathia,
quando elle suspirando repetia:
— «Aos deuses lá no Ceo levae-me, ó ventos,
«parte d’estes accentos!» —
Sim, sim, apraz-me o crêl-o, entre vós ambos
havia-já então, e inda hoje existe,
commercio fraternal: cantavas n’elle,
poetisa elle em ti; eras outr’ora
a sua Musa, elle é teu Phebo agora.
ïi4 Em presa da Historia de Portugal

IV
Que digo? á mente vasta,
para encher-t’a, um Virgilio inda não basta:
das edades pretéritas evocas
as femininas sombras memorandas;
quaes, cingidas de rosas;
quaes de feraes cyprestes;
umas, sorrindo amor; outras, chorosas;
já, furiaes; já, victimas celestes.
Evócal-as, ressurgem; despareces;
já n ã j és tu; és Dona Elvira; és Fides;
Eleonora, Semiramis, H ekn a,
Desdémona, Macbeth, Amina, Sapho,
Palmira, Gatharina, Anna, Delicia,
Rosina, Abigail, Theodora, Anaide,
Norma, Rebecca, Longueville, ¡e quantas!
Todas são tu; és todas;
renasces, morres, vives, ressuscitas;
pranto, invejas, horror, ternura, excitas.
Das mil paixões na arena, arrancas sempre
os vivas da victoria; a turba attonita
vê-te mil, e uma só; diversa, a mesma,
foco de seducções; não te resiste;
e á déspota das almas
sente-se altiva em tributar as palmas!

V
¡A ’vante'pois na triumphal carreira,
de nações em nações, de mundo em mundo,
nobre filha da Italia!! ensina aos povos
que inda é Romano o genio da conquista:
guerreiro outr’ora, em nosso tempo artista.
A ’s flammigeras aguias
os namorados cisnes succederam.
A ’s aguias, inda alguem de longe a longe,
um luso, um Viriato, ousava oppôr-se;
Obras completas de Castilho ii5

mas a vós, almos genios da harmonía,


¿quem vos resistiría?
¡A’vante co’a torrente das victorias!
¡mulher deidade, ávante! ¡Oh! ¡que existencial
¡oh! ¡que digna de inveja!
A ve gentil da primavera amante
vóa de ceo em ceo, de clima em clima,
acompanha a constante-,
o que é gelo não sabe; e a seus amores
só pende o instável ninho onde acha flores.

Onde quer que appareceres,


onde soe o mago canto,
gloria é tudo; é tudo encanto;
tudo em torno é festival.

Faz-se a noite em claro dia;


reinam magicos prazeres;
sobre loiro, entre alegria,
vai teu coche triumphal.

A mulher que é soberana


põe ufana
uma c ’rôa e está feliz;
tu já calcas sob as plantas
c’rôas tantas. . .
que de as ver já te sorris.

¡Oh! ¡Ceos! ¡que não possa do canto a magia,


qual dura a poesia, perpetua durar!
¡que a um tem po das artes se gose em mil partes,
e d’esta o universo não possa gosar! !
Brilhou, desparece, não deixa vestigio;
desfaz-se o prestigio; só fica a saudade.
Mas se eternidade durasse o prodigio,
poderam-n-o os anjos ao mundo invejar.
1 16 Empresa da Historia de Portugal

VI
Tedesco, hoje, entre nós; passados poucos d ia s .. .
no theatro, o deserto; as raras melodias,
que nos fazem tremer, bramir e delirar,
vão ter por coro o vento, e por tablado o már.
¡Depois, já n ’outro mundo! Após tão amplos mares,
o Brazil, terra de oiro á sombra de palmares,
já te aguarda insoffrido, e te apresta os laureis.
¡Depois, que de orbe aindal e a nós, aos teus fieis,
nunca mais volverás; nunca jamais.

V il
Lá quando
lassa de conquistar, ao ocio amigo e brando
te volveres alfim do ninho teu natal;
quando do Mincio á beira, a sombra fraternal
te induza a contem plar do orbe a carta immensa,
m appa da tua gloria, encara o T ejo; e p e n s a ...
pensa que á tua voz, á tua voz tão só,
lyra de tanto muda, esquecida no pó,
vibrou, trem eu, surgiu do fundo de um jazigo,
a tributar-te uro hymno, a modular comtigo.
Sim; cantaste Adriana ; e um ecco portuguez
do fundo d’esta lyra a redisse outra vez;
e depois, a canção que a tua lhe acordàra,
a ti a dedicou. Era assim que ante a ara,
no teu antigo Lacio, um devoto pastor
das flores á deidade offertava uma flor.

Vili
Torne ao silencio a lyra; o obreiro á obra ingente,
e a ouvir os vagos sons que veem lá do nascente.

Lisboa
1858—Novembro 28
PREÂM BULO DO TRAD U CTO R

(Na edição do Libretto, de 1858)

Convem antes de tudo assentar já aqui


um facto de inquestionável certeza: esta
A driana Lecouvreur, poesia do snr. Achilles
de Lauzières, e musica do snr. Eduardo V e ­
ra, nada tem que ver, como a alguns se en-
trefigurou, com outra opera do mesmo ti­
tulo, poesia do snr. Leão Fortis, musica do
rpaestro Benvenuti.
Tudo que vamos dizer se prova com os
jornaes de Italia. A A driana do snr. Benve­
nuti foi cantada, com infausto exito, em M i­
lão, no theatro della Cannobiana, no firn de
1857. A do snr. Vera havia-o sido com a mais
favoravel acolhença em fins de 56 em R o­
ma, no theatro Argentina, n’esse diffidi
theatro, para onde Verdi compòz nada me­
nos que o T rovador e os Dois Foscari.
Isto posto, póde vir muito ñas boas horas,
e muito segura de si e de nós, a A driana
Lecouvreur do snr. Vera. Não é o intelligente
publico de S. Carlos para lhe denegar co­
roas, quando o intelligente publico da A r­
gentina lh’ as offertou. De mais, aqui, assim
como Roxane se encarnava em Lecouvreur,
a propria Lecouvreur se identifica em Te-
V O L . XXI 8
i i8 Empresa da Historia de Portugal

desco; podemos admirar a um tempo dois


bellos genios em um só.
A A driana do nosso amigo Vera breve
passará, com a sua nobre intérprete, de L is­
boa para o Rio de Janeiro, a carregar-se das
suas terceiras palmas; e de lá,
se ì poeti han del vero alcun presaggio,
proseguirà longa e ininterrupta carreira de
cònquistas pelos mundos velho e novo.
T aes são pelo menos as esperanças e as
bênçãos do poeta, que a saúda ao seu pas­
sar por entre nós.
Sempre se gosta de conhecer um talento
que nos visita. Sabereis, pois, que o snr.
Eduardo Vera, o proprio que entre nós está
pondo em scena a sua opera, é irmão da já
afamada cantora Vera Lorini, e filho, como
ella, da mui celebre artista alleman Haëser,
nascida em Leipsick, esplendor dos theatros
lyricos do seu tempo, e que a Italia appel-
lidava (como ainda lhe lembra) la divina te­
desca. De proposito para ella escreveu Paër
a Griselda e a Agnese. Hoje, septuagenaria,
mas com o espirito e o gosto juvenis, anima
ainda com os seus conselhos a seus filhos;
lá de tão longe, do seio da sua velha Roma,
os exforça com os reflexos da sua gloria, ve­
lha tambem, mas ainda gloria. Por isso, nada
mais delicioso para o coração, do que ouvir
estes dois irmãos falarem d’ella; pôrem, to ­
das as suas ufanias, não no que elles fazem,
mas no que fazia a que lhes deu com o san­
gue e com o leite o instincto do bello, com
as exhortações e com o exemplo a devoção
á arte e o santo fanatismo do estudo.
Obras completas de Castilho 1 19

Solitaria n’aquella terra de glorias, de rui­


nas, de saudades e talvez de futuros, Ma­
dama Vera dá a lembrar as matronas heroi­
cas de outras eras, que armavam por sua
mão os nados e creados do seu amor, e os
enviavam a conquistar ou morrer, pelejando,
em regiões remotas. — «Volta com este, ou
volta n’este»— eram as suas ultimas e subli­
mes despedidas, entregando lhes o escudo.
Hoje as conquistas romanas são incruentas,
e nem por isso menos bellas; o coração ma­
terno deixado a sós, tem menos cuidados de
que se doa. Tem-n-os todavia, que para isso
é materno, e para isso é coração. Para os
diminuirei», para os suavisarem á nossa boa
Sybilla, as amantes e continuas cartas de
seus filhos levam-n-a a assistir em espirito a
todos os testimunhos de benevolencia que
elles andam pelo mundo grangeando. Assim,
viaja com elles; assim, a pobre familia dis­
persa está sempre junta.

Dolente, in solitudine ridotta,


ritirata da g li altri, è sol colloro
che le stan lungi, e lor sol vede e sente.

Cartas d’ella, destilladas de dentro da sua


alma, já nós nos deliciámos de as ouvir (os
leitores que não forem para affectos podem
saltar isto). ¡Que paginas! ¡que exhortações
para que a excedam! ¡que sabio^ conselhos
nas coisas da arte! ¡que amavel resignação
nos seus sacrificios á gloria de seus filhos!
A ’ doce e irresistivel autoridade d’aquella
mulher memorável, que mereceu a P aer duas
operas, e ao incoercível Hoffmann dois capitu-
120 Empresa da Historia de Portugal

los de enthusiasmo, devemos nós a existencia


d’esta A driana Lecouvreur. Foi ella que a
pediu instante a seu filho; foi para ella princi­
palmente que seu filho a escreveu; é a ella,
só a ella, que se comprouve de a dedicar.
Ainda um toque n’este quadro, e nada
mais: quando na Argentina se executou pela
primeira vez esta partitura, ¿sabéis quai foi
de,tantas scenas que ficaram lembrando a
que mais se gravou nos corações? ;a que não
tem de esquecer nunca em Roma? Foi uma
que não estava ensaiada, nem escrita, nem
prevista de ningusm: a antiga divina tedes­
ca , presenciando o triumpho publico de seu
filho, corre do camarote ao tablado; reflori­
ra-lhe a primavera, reaccendêra-se-lhe o es­
tio após setenta invernos; mostra-se como
nunca ufana, e coberta de lagrimas de ale­
gria, aos descendentes dos seus admiradores
de outr’ora; dá ao seu Eduardo n’um abraço
de mãe feliz a suprema recompensa. Por
entre os numerosos artistas que a cercam
attonitos e enternecidos, ha um só, um co­
rista decrepito, que ainda se lembra de a
ter visto em scena. O pobre velho, enthu-
siasmado, posto em joelhos, beija-lhe, como
filho tambem, as mãos descarnadas, que
tantas coroas levantaram ha tantos annos.
S e do nosso trabalho póde agora caber
que digamos alguma coisa, cifrai-a-hemos
n’isto: que não aspira a louvor; pede indul­
gencia. Emprehendemol-o, obedecendo aos
desejos de um excellente amigo e poeta, o
nosso Palmeirim; tivemos para o executar
poucos dias, e ainda esses cortados de tra­
balhos mais sérios e impreteriveis.
Obras completas de Castilho 121

Foi o empenho, talvez temerario, temera­


rio decerto, que o poema tivesse em portu­
guez tantos versos precisamente como no
italiano, todos de identica medida, todos de
egual accentuação; que os córtes das falas
coincidissem cá no verso inteiro, no hemis­
tichio, ou na fracção metrica em que os
achavamos no original; que onde havia es-
druxulos, ficassem esdruxulos; onde graves,
graves, e agudos onde agudos; emfim, que
as rimas egualassem ou excedessem ainda
em numero ás do texto, comquanto já lá
viessem derramadas com mão profusa; por
ultimo queríamos, sem nos desviarmos do
nosso guia, retocar (se o soubessemos) aqui
ou acolá, um ou outro descuido que por
acaso lhe enxergássemos, d’aquelles a que
a pressa do escrever muitas vezes expõe,
e a que todos os entendidos, mérmente os
do officio, nem recusam, nem difficultam ve­
nia.
. . . petimusque damusque. . .

Onde elle, para expressar paixões ou movi­


mentos da alma, repetia por inadvertencia
imagens, encarecimentos, expressões, que já
d’antes empregára, quizemos nós vèr se, va­
riando como quer que fosse, logravamos dis­
farçar com as fórmas externas a identidade
do fundo.
Caminhar, e caminhar depressa, e de­
pressa sem muita queda, arrastando tantas
cadeias juntas, digâmol-o com sinceridade
em abono da nossa individual obstinação,
não era empreza muito facil. Todos os que
estudaram com certa profundeza, e compa-
122 Empresa da Historia de Portugal

rando-as, as duas Linguas, confessam, e não


podiam dissimular, vantagens que a italiana
leva á nossa: vocábulos elásticos, dilataveis
ou contrahiveis ad libitum , e ao reclamo do
metro; maior abundancia de esdruxulos, e
faculdade de converter muitos d’elles em
graves, e muitos graves em agudos; menos
desinencias em inflexões, e por consequencia
mais facilidade em absorpções, sem falar­
mos em que as palavras d’esse feliz idioma
são, por via de regra, mais curtas que as do
nosso, segundo já tivemos occasião de de­
monstrar n’uma pacifica, e logo terminada,
discussãosinha literaria com o sr. Vegezzi
Ruscalla, hábil traductor da M arilia de D ir­
celi.
Pondero aqui tudo isto para que me não
recusem a indulgencia que eu disse requeria,
e agora accrescentarei que espero afoito, de
todos os que tratam isto de Letras e Poesia
com amor, sciencia, e consciencia.
Se decidirem esses que de todo me não
sahiu baldo o commettimento, pago fico.
Com um pouco mais de desaffôgo menos
ruim obra se houvera effectuado; ¿mas para
quê, se as d’este genero só duram uma noi­
te? ainda assim n’este poucochinho, mesmo
imperfeito como vai, muito me ufanarei se
alguém reconhecer, que também nós, abai­
xo dos Italianos, possuimos uma Lingua poe­
tica e musical, uma formosa e guapa Lingua,
que, a não ser á d’elles, á de nenhum outro
povo cede a palma.
Entretanto todas as nações, até a Dina­
marca, teem sua opera nacional; je nós, pro­
digos e indolentes, a porfiarmos que a não
Obras completas de Castilho iî3

podemos obter!! (Oxalá acudisse a desmen-


til-os com obras da sua lavra o nosso pri­
meiro dramaturgo, o amigo e collega Men­
des Leal!

ARGUM ENTO DA O P E R A
Mauricio Conde de Saxoiiia, Marechal G e ­
neral de França, nascido em Dresda aos 19
de Outubro de 1696, e fallecido em Cham-
bord aos 3 o de Novembro de 1760, avulta
grandioso na historia politica e militar d’a-
quelles tempos. A presente opera, extra-
tada de um drama de Scribe, é miniatura
d’esse quadro, que já era elle proprio resu­
mo caprichoso de uma historia tão ampla e
memorável-, tem o duplice interesse de nos
abranger, com poucas linhas de contornos,
um memorável guerreiro, e uma memorável
artista: Mauricio e Lecouvreur; dois genios,
dois triumphadores; elle, pela sciencia e pe­
las armas; ella, pelo talento e pelos feitiços.
P ôr em contacto, em harmonia, em jogo
dramatico, o heroe e a heroina, podéra ter
sido inspiração feliz da poesia, mas foi obra
real do acaso, da fortuna, do amor. Mauri­
cio de Saxonia e Adriana Lecouvreur viram-
se, conheceram-se, amaram-se; as duas au­
réolas mutuaram, confundiram por um mO'
mento, os seus resplendores.
O poeta lyrico italiano, éujo sou intérpre­
te, angustiado sem duvida nas estreitezas,
no leito de Procustes, d’este genero de
composições, deixou por ventura, e deixá­
mos por consequencia tambem nós, algu­
mas partes do enredo menos allumiadas e
i24 Emprega i a Historia de Portugal

distinctas do que aos espectadores conviria.


Pareceu-nos portanto não seria desacerto
abrangermos previamente, em poucas linhas,
o principal do poema. Eil-o aqui:
O Conde Mauricio de Saxonia (sttr. N e ri
B a ra ld i) que nos seus galanteios usa enco­
brir se com o nome de A rm inio , ama, cor­
respondido, a Adriana Lecouvreur (snr.0- T e ­
desco), celebre actriz da Comedia Franceza;
mas Adriana suppoe que o seu Arminio
mais não é que um soldado aventureiro
d’aquelle famigerado Conde de Saxonia, a
quem ella não conhece.
A mulher do Duque de Bouillon (s«r.a K a i­
ser) ama-o tambem, mas conhecendo o pelo
proprio, se bem que (¡phantasias de namo­
rados!) folga de o tratar pelo mesmo pseu-
dónymo de Arminio.
Nada a principio sabem nem presumem
uma da outra as duas rivaes. O Conde fre­
quenta a Adriana, porque lhe quer muito;
frequenta a Duqueza porque, pelo valimento
d’ella, espera obter de el Rei de França uns
regimentos, com que vá pugnar pelos seus
direitos ao throno vago da Curlandia.
O marido da Duqueza (snr. Celestino) in­
tercepta uma carta dirigida por esta, com
letra disfarçada, ao Conde, a aprazal-o para
um colloquio nocturno no seu palacete ou
pavilhão das murtas. Entrega-a ao seu con­
fidente A lb y (snr. B runi) para que a leve
ao Conde; e para se vingar da projectada
traição, convida toda -a companhia da C o ­
media Franceza, e outras- pessoas, a um
banquete no pavilhão das murtas, ao qual
deseja que presida, como rainha, Adriana.
Obras completas de Castilho 125

Adriana, porém, a quem o amant:, haven­


do-lhe promettido vir no fim do espectáculo
para casa d’ella, lhe acaba de fazer da pla­
teia signal de que não póde cumprir a pala­
vra (efleito já da carta da Duqueza), Adria­
na recusa-se ao convite do Duque; está ma­
guada e furiosa. O Duque insiste dizendo-lhe
que tenciona dar lhe por cavalheiro na festa
o Conde Mauricio de Saxonia. Então aceita;
haverá assim occasião de prestar um servi­
ço ao seu ingrato, obtendo que o Conde o
promova no exercito. Era, sem o saber, im­
plorai o a elle em favor d’elle mesmo. O
empenho do Duque, dando um baile no pa­
vilhão das murtas, era colher a esposa e
Mauricio no colloquio, e castigai os assim
com expol os ao geral desprezo.
A duqueza chega sósinha ao praso dado
antes de Maurício; agasta se com a tardan­
ça, concebe vagos ciumes; Mauricio entra,
desculpa-se, mas traz no peito Um ramalhe­
te, prenda de Adriana. A Duqueza lh’o exi­
ge; elle, para arredar suspeitas, lh’o entrega,
e sabe por sua bocca haver-lhe emfim o G o ­
verno concedido, por diligencias d’ella, as
tropas que tanto desejava.
0 Conde de Saxonia protesta-lhe gratidão;
mas amor, que é o a que ella aspira, não
lh’o chega a prometter.
N’este comenos o suspeitoso Duque de
Bouillon, que havia tomado todas as provi­
dencias para a vingança, mandando rondar o
jardim por apaniguados seus, com ordem
de não deixarem sahir ninguem, já vem per­
to com os convidados. A Duqueza aterrada
implora do Conde que a defenda. O Conde
126 Empresa da Historia de Portugal

fal-a esconder em um quarto contiguo á sa­


la, sai arrebatadamente, afiançando-lhe que
voltará para a proteger na evasão.
Pouco depois o Duque, os seus hospedes,
Adriana, o Conde, entram na sala. Bouillon
apresenta a Mauricio Adriana, e a Adriana
Mauricio, designando-Ih’o por Conde de S a ­
xonia. Adriana, disfarçando como póde a
maravilha de tâo inesperada identidade, diz
ao Conde, em voz alta, que vem perante elle
interceder em favor de um seu soldado des­
valido, e logo, aproveitando-se da confusão
dos circumstantes, se aparta d’elles com o
seu amante para conversarem mais em se­
creto. Mauricio, que não tem tempo què
perder para salvar a reclusa, nem vê outrem
a quem para isso recorra, diz a Adriana que
n’aquelle quarto ao pé está occulta uma da­
ma, não amada sua, mas a quem elle deve
pôr em salvo; pede o coadjuve n’este diffidi
empenho. Adriana crê, e promette-lh’o. O
Conde sai, para impedir que alguem sobre­
venha no entretanto. Adriana abre a porta
do quarto, diz á occulta desconhecida que
póde vir sem medo; a Duqueza sai. A sa­
la está ás escuras; não se conhecem; mas
no seu curto dialogo descobrem que ambas
ardem por Mauricio, que Mauricio é o A r ­
minio de ambas.— «Amo-o»— diz a Duqueza :
— «E eu sou d’elle amada» — lhe res­
ponde a actriz. — «Hei-de-me vingar de
ti; hei de te p e rd e r.» — E eu de ti
vingo-me já: salvo te.»— N ’isto veem che­
gando os da festa; a Duqueza desappare-
ce pela porta falsa que ella mui bem conhe­
ce, pois lhe pertence a casa, e que dá para
Obras completas de Castilho 127

a rúa onde Mauricio a espera, para â acom­


panhar até a pôr em salvo no palacio.
Quando o Duque entra, com toda a gente
e luzes, acham só a Adriana, por quem an­
davam procurando para o festim; o Duque,
havendo percorrido tudo, vem já desenga­
nado de que as suas suspeitas ácerca da mu­
lher foram sem fundamento. Adriana está
na maior perplexidade, sem atinar quem se­
ja aquella que desappareceu, que é sua ri­
val, cuja voz ouviu, mas cujo nome e cujas
feições totalmente desconhece.
A Duqueza de Bouillon sahira ferida no
amor e lesada no orgulho; anciosa de desag-
gravar se, denuncia e faz prender a Mauri­
cio como reo de uma conjuração.
O Duque dá no seu palacio um sarau.
Adriana está convidada para ir lá declamar
alguns papéis tragicos. A Duqueza e A d ria­
na reconhecem-se uma á outra pela voz; o
Duque, que temia na pessoa de Mauricio um
perturbador dó seu thálamo, annuncia á socie­
dade achar-se elle na cadeia da Bastilha (igno­
ra ainda que já foi sôlto, sôlto pelos exforços
de Adriana). A Duqueza para a apunhalar
diz-lhe que Mauricio foi ferido. A presença
de Mauricio, que sobrevem, a desmente.
Chega o lance da recitação. A Duqueza,
para abater e descoroçoar a sua émula, sen­
ta o Conde ao seu proprio lado e pega-lhe
na mão, emquanto a artista está em pé, á
espera de que lhe designem que papel de­
sejam que ella represente.
— * O monologo de Ariadne desprezada»
— lhe diz intencionalmente a triumphadora.
— «Phedra»— propõe Mauricio. Adriana re-
Empresa da Historia de Portugal

cita o bello discurso da scena III do acto III


da Phedra de Racine, íom os olhos fitos na
sua rival, applicando-lhe cada phrase, cres­
cendo para ella a cada verso, até que, che-
gando ás palavras:

Já se gosam do m al, sem que lhes tinja


sombra de pejo ou de vergonha as faces,

lhe crava no meio da testa o dedo como um


ferrete. Desata-se a festa em geral tumulto.
A pobre Adriana, vingada, mas votada
tambem á vingança, está em sua casa, só,
acompanhada de Michonnet (snr. Cresci), o
contra-regra do seu theatro, o seu verdadei-
ro e ardente amigo, o seu mestre, o que so­
bretudo lhe deplora os amores, por enten­
der que lhe offuscaráo a gloria artística.
Chega trazido por um servo sem libré um
cofresinho. dirigido a Adriana: dentro veem
as flóres que ella déra a Mauricio com re-
commendação de que apenas cessasse de a
amar lh’ as restituisse. ¿Que mais é preciso
para se convencer do seu desamparo? bei-
ja-as, arremessa-as ao fogo. Não espera ver
nunca mais o seu ingrato; eil-o que chega;
entrou, a despeito da resistencia de Michon­
net; implora perdão, protestando o que é
verdade: que só a ella ama, que só a ella
tem amado, amaldiçoando a sua communi
inimiga.
A pérfida, que tirára as flores a Mauricio,
enviára-as em nome d’elle a Adriana, mas
impregnadas de tão subtil veneno, que esta
ao beiial-as, aspirou a morte. Adriana exhala
a vida entre o amor e a amisade.
Pessoas Actores

A L e c o u v r e u r , dama do
d r ia n a

theatro da Comedia Franceza S n r .* T edesco

A DUQUEZA DE BO U IL LO N ................... S n R.* K a ISER

M a u r ic io ,Conde de Saxonia, as­


pirante ao throno da Curlan-
dia, e usando nos seus am ores
do nom e de A rm in io .. . . ........ S n r . N e r i - B a r a l d i
O d u q u e d e B o u i l l o n (A rthur),
marido da D u q u e z a ................... S n r . C e l e s t i n o
M i c h o n n e t , contra-regra do thea­
tro da Comedia Franceza e
grande amigo de Adriana . . . . S n r . C r e s c i
O c a v a l l e i r o d e A l b y , confiden­
te do Duque de Bouillon...........S n r . B r u n i
Q u i n a u l t , a c to r............................. N.
Um familiar da D u q u ez a............ N.
Senhores—Damas—Actores—Homens de armas apaniguados
do Duque, etc.

A acção passa-se em Paris no anno de 1730.


ACTO I

O theatro representa a galería (foyer) dos actores no theatro de


París por antonomasia chamado francez. Ao meio de cada urna
das paredes lateraes, sua porta: a da direita dá para o theatro*, a
da esquerda para os camarins dos actores. No topo, porta por
onde se vai para a rua. Fogão accezo.

SCENA I
(Actores e actrizes, com seus variados trajos theatraes: uns de co-
media, outros de figuras que hao-de entrar na tragedia B a j a -
ase*. Q uiuault de vízir. Scornato joga o xadres com outro
actor. Alguns estão de mirÔes ao pé do taboleiro; varios aos la­
dos e diante do fogão ; este, prova um vestido ; aquelle passeia;
aqueil’outros conversam em meia voa, ou estudam os seus pa­
péis. Um toca rijo uma campainha e cbama.)

Um a c to r. ¡Michonnet !
O u tro s Buscae o; ¿aonde ?
nunca pára.
Q u in a n lt (jogando) Mate ao rei.
(O aetor agita outra vez a campainha.)
O u tro s ¡Grita bem! vê se responde.
O a c to r ¡Que m aldito! ¿onde o achareit1
Còro A A driana deu-lhe coca ;
o theatro anda ao laré;
deixa tudo ir á m atroca ;
¡quem diria! ¡o M ichonnet!!1.
¿Será fada essa A driana ?
/quem viu nunca igual m ulher ?
já do povo é soberana,
e inda mais vassallos quer.
O a c to r ¡Michonnet! ¡grita-se, e nada !
¡Michonnet 1
Obras completas de Castilho i3 i

S C E N A II
Os precedentes, M ic h o n u e t

Mich. (acudindo) Cá estou. ¿Que é lá?


Um ¡O alvaiade!
O u tro ¡A minha espada!
O u tro ¡O punhal!
O u tro A éreo está.
Mich. ¿Quem viu nunca tanto grulha!? (socegando-os)
¡menos bulha! ¡menos bulha!
quer-se tudo, tudo, mudo;
Adriana está no estudo.
Còro A Adriana aqui é tudo.
Mich. Sim que a elia egual não ha. (Pausa.)
T em na voz, e tem nos olhos,
um não sei que doce encanto,
que, ou se enfade ou verta pranto,
sabe as almas captivar.
Seu olhar vibra eloquencia ;
seu falar seduz, fascina ;
tem no gesto omnipotencia;
tudo n ’ella é triumphar.
Phydias n’ella outra Erycinna
nos podia retratar.
Còro Se a Duelos não é tão bella,
vence-a enn graças a Duelos.
Mich. A D u elo s.. . seja um a estrella;
porém sol, existe um só.
Còro ¿Quem será que tantas c’rôas
roja aos pés d’esta Adriana?
Mich. Não n-o sei; sei que é sob'rana
que ás dos reis podéra honrar.
Sceptros mil, se eu mil tivesse,
ás suas plantas os poria;
sendo eu genio da poesia,
fôra d’ella o meu cantar;
Deus, meu Ceo lhe offertaria
i Que são para a coroar,
quanta flor a terra cria,
quanta perola ha no mar?
Còro Viste o sol, ficaste cego;
t ’arrenego! é de aterrar.
(Ouve*se de dentro a orchestra do theatro annunciar o
começo da peça)
Em presa da Historia de Portugal

Còro ¡O signall ¡cada qual a seu posto!


a plateia já grita e se agita.
¡Apromptar! ¡aviari ¡toca á scena!
lá nos torna o signal a chamar.
(Saem todos, menos Michonnct)

S C E N A III
M ic h o n n e t só, depcis A d r ia n a

Mich. A usentaram -se emfim. Nao,que nem sonham


¡quanto é diversa d’elles
esta m ulher sublime!
E u, eu, que a adoro,
talvez sua grandeza eu mesmo ignoro.
¿Quem vem lá? ¿Adriana?
¡que bem lhe fíca o trajo de sultana!
(Entra Adriana vestida de Roxane no Bajazet, estudando
o seu papel, e sem \êr a Michonnet)

A dr. Os meus tramas e ardis, (estudando)


minha t-aição fa ta l ,
quanto ousei, quanto fij,
Ilucrat-o uma rivali
¡R ival!.. . não disse
isto inda bem. T om ára alguem...
M ich. (sdiantando-s") ¡A driana!..
A dr. ¡Caro!
M ich. A dm irar-te quero. A’ fé, mais linda
não se viu outra ainda.
A dr. ¡Ah! que se eu fosse
qual t’o finge a amisade,
som ente em lhe agradar punha a vaidade.
Mich. ¿Agradar-lhe? então amas ;
¿e am or ante a amisade esconde as chammas?
Adr. ¡C a ro a m ig o l... (confusa)
Mich. (aparte) ¡Ama! ¡ó Deus! ¡estáperdida!
(alto) i Amas ?
A dr. Não amo: adoro; abrazo a vida.
M ich. ¿Algum magnate? ¿um C reso?
Adr. ¡Oh! não atinas:
é um pobre; um soldado aventureiro;
segue os pendões do Conde de S axonia.
Não coro.
Mich. ¿E âm al-o tu?
Obras completas de Castilho i 33

A dr. (com enthusiasmo) Nao am o; adoro.


Vi- o; e das glorías bellicas
o anjo o suppuz brilhante;
pasmei, absorta, estatica,
no vencedor semblante;
e rebentou-m e a subitas
este vulcão de am or.
Sem elle o mundo é tumulo;
vida sem elle é m orte;
mas um porvir de jubilo
espero ob ter em sorte:
jurei, jurou, jurám o-nos
juntos os Ceos transpôrl!
Mioh. ¿E a arte? ¿os enthusiasticos
applausos estrondosos?
A dr. A gloria, crê-me, a gloria,
não é quem faz ditosos;
gostos perfeitos, intimos,
sóm ente am or os tem.
Mioh. ¿Mas virá elle?
A dr. Um frémito
m ’o diz cá dentro; vem.
Peno e goso; não te pinto
meu ser novo; o que em mim sinto
nem á phrase humana acode,
nem se póde conceber.
São delicias na agonia;
são torm entos na alegria;
é um não querer mais gloria
que este doce bem querer.
Mlch. ¿E hoje ao th eatro veio?
A d r. Sim; voltou hoje aqui.
Ha um anno que o não vi.
Mioh. O seu trium pho em cheio
Roxane pois terá.
A dr. Recorde-se Adriana,
que é só Roxane agora;
vais triste; ¿não?
Mioh. ¡Emboral
(Apontando para o lado do theatro)
Além tua gloria está.
(Sai)

V OL. XXI 9
134 Empresa da Historia de Portugal

S C E N A IV
A d ria n a só, depois m auricio de Saxonia
A dr. (seguindo com a vista a Michonnet)
¡Que alma nobre!
(Tornando em si)
De am or trium phe em parte
agora a Arte.
(Retoma o papel e declama)
Os meus tramas e ardis,
minha traição fatal ,
quanto ousei, quanto /??,
¿lucral-o uma rival?
¿Uma rival? ! !
Maur. (com galanteio, á porta da esquerda)
¿Rivaes para Adriana?
A dr. Arminio meu, julgava-te na sala,
segundo a tu a carta, a amavel nuncia
do teu fausto regresso.
M aur. (descendo o pateo) ¿Oh) nao podia
viver já sem te vêr, sem repetir-te
que só, sem ti, querida,
me é todo o mundo exilio, e peso a vida.
¿E tu amas-me ainda?
Adr. (com infantil simpleza, pega-lhe da mão e lh’a põe sobre
o seu proprio coraçáo)
P ergunta a este qual o pôz tu a vinda.
(Com transporte)
¿Se te amo? ¡ahí tu conhecel-o
m elhor do que eu t’o digo.
Dois s5o meus votos unicos:
viver, m orrer, comtigo.
¡Ingrato! ¿perguntares-me
se ardo por ti de amor?
seja-te d alma intérprete
dos olhos meus o ardor.
M aur. Repete a phrase magica;
redobra-m e o delirio;
dos séraphins as citharas
cuido escutar no Empyrio.
Vezes repete innumeras
esse amo encantador.
G rande te ha feito a gloria,
faz-te divina am or.
Obras completas de Castilho 1 35

(Adriana senta-se; Mauricio puxa um tamborete e sen-


ta-se aos pés de Adriana)
Adr. Icom os olhos n’elle, e toda mimo)
T u , ser meu, só meu, juraste.
M anr. E inda o juro.
A dr. ¡Oh! (sem mentir)
¿nunca, nunca, a outra amaste?
M aur. Fala só, só do porvir;
não sei já do m eu passado;
foi um tem po em que eu não fui.
A d r. (tirando do seio um ramalhete de flôres, dá-o a Mauri­
cio; depois diz:)
Flôres são que am or te ha dado;
findo o am or, m’as restitue.
H a u r. (toma-as, beija-as e p6e-n-as sobre o coração)
Copias d ’ella, ó flôres minhas,
fícar-lhe-heis sempre vizinhas.
(Ouve-se outra vei a musica da orchestra)
A dr. ¡Ouve!
M aur. A ’ sala eu corro; parte ;
vou co’o publico adm irar-te.
A dr. (olha em derredor e abaixa os olhos)
¿E esta noite? ¿vêr-nos-hemos?
M aur. Certam ente. (Com intimativa)
A dr. ¡Ambos a par!
¡ambos sós!! nos bens supremos
outro egual não hei-de achar.
¡Doce esperança!
¡maga alegria!
o Ceo nos ria
constante assim.
P o r toda a vida
com tigo unida
vou te r um extasi
de am or sem fim.
(Sai Adriana pela porta da direita, Mauricio pela da es­
querda)

SCENA V
O Duque de B ou illon, o Cavallelro de Alby
Dnq. (segue com os olhos a Mauricio, que o não vê; no mo*
mento d’este desapparecer, diz:)
Se n ão me engano, era Maurício, o Conde,
que ora partiu.
136 Empresa da Historia de Portugal

All). Sem duvida; na sala


já entra.
D aq. A preço d’oiro houve esta carta,
endereçada a elle:
(lira do bolso um bilhste eie)
Preciso de falar-te. A ’ meia noite.
No pavilhão dos mirtos. Pressa urgente.
Segredo e amor.—Arm anda.
Alb. ¿Armanda? <¡quem será?
Duq. Conheço o nome;
porém a letra é disfarçada. Ao Conde
envia-me esta carta. ¡Ah! que se eu colho
na rede a falsa, prom ptá
goso a vingança em sua propria affronta.
(Sai Alby)
Ao azar de um desafío
meu desforço não confío.
Nem recorro á cega sorte,
nem dou m orte; opprobrio dou.
Se a inhum ana, a fementida,
quer lançar-m e infamia ao rosto,
eu na fronte envilecida
nodoa eterna impôr-lhe vou.
Alb. Lá dei a carta ao Conde. (Voltando)
D aq. A gora escuta:
Suspeito (¡ideia atroz!) ser da Duqueza
a carta ao Conde. Elle ama-a.
Ao pavilhão dos m irtos
com amigos irei; no esconderijo
de seus torpes am ores,
cobrirem os de opprobrio os dois tráidores.
(Ouve-se no theatro o estrepito das acclamações, das
palmas, e dos bravos)
Duq. ¡Que alarido?!
Alb. T rium pha Adriana;
de Roxane se applaude o valor.
Còro (lá dentro) Viva! viva! da scena a sob’rana
é não menos sob’rana de am or.
Obras completas de Castilho 137

S C E N A VI
Os precedentes, M ichonnet, depois fidalgos, actores e «driles,
e por ultimo Adriana

Mich. Sim: da scena só ella é rainha;


move; arrasta; o futuro é já seu.
T odo o povo a applaudir-m ’a se apinha;
foi divina; a si propria excedeu.
N’um m om ento, foi chammas, foi raio;
logo após, sepulcral pallidez;
vinha o pranto, atalhou-lh’o o desmaio;
¡que te rro r na plateia não fez!
Mas o applauso rebenta outra v ez...
(Entra o còro acclamando a Adriana, que vem pallida,
abatida, agitada, e convulsa)

C ô rj ¡Viva Adriana!
A dr. ¡Oh! ¡calae por piedade!
(com impaciencia)
M ich. ¿T u que tens?
A dr. (a meia voz) Estou m orta, não sei.
¡Um signal de que vir já não ha-de!
¡e eu tão cega que am ante o julguei!!
D uq. (em pé do meio do theatro, a todos os circumstantes)
P retendo, em honra da grande artista,
dar um a festa; sois convidados;
¿vireis, Adriana?
A dr. (com voz muito sumida) Nao.
Q uin, (áparte) Q uer que insista.
D uq. T erem os danças, risos, agrados;
as classes mixtas: nobres e artistas.
Sereis, A driana, vós a sob’rana;
vosso parceiro, bravo guerreiro:
o joven Conde Mauricio.
A d r. (ao ouvir-lhe o nqme, levanta a cabeça, pensa um ins­
tante, e exclama resoluta:)
Prom pta.
(áparte) Irei ser util ao que me affronta;
po r elle ao Conde supplicarei.
Oôro ¡Adriana acceita!
A dr. (para o £>uque) Faltar não sei.
Còro Nas taças á mesa de espumeo licôr,
na musica accèsa, nos cantos de am or,
¡amemos! ¡gosemos! ¡busquemos folgar!!
iS8 Empresa da Historia de Portugal

(Adriana e Michonnet de um lado; o Duque e Alby do


ontro, repetem elles tambem o qne diz o còro, mas
com alegria forçada; depois)
A dr., Mioh., Duq.., Alb. (áparte)
Aos faustos clam ores nem tudo responde;
no meio das flôres a m orte se esconde;
convem, ó meu peito, soffrer e calar.
Còro (alto)
Nas taças á mesa, na musica accèsa,
amemos, gosemos, busquemos folgar.

F.M DO ACTO I
A C T O 11

Jardim das murtas, pertencente ao Duque de Bouillon. Do lado


direito o pavilhão, com uma janella ¡Iluminada por dentro. O
restante da scena ás escaras.

SCENA I
fUm magote de malfeitores, gente do Duque, atravessa a scena
muito a passo, como que a observar e sem querer aer visto)

Còro Manso; m anso; quedo;


ronde-se etn segredo;
note-se o que vai;
olho álerta; festa
nunca a vi como esta:
quem entrou não sai;
este enigma cança;
coisa de vingança
penso que será.
¡Triste praso dado!
¡pobre nam orado
se appareces cá!
Manso; m anso; quedo;
ronde-se em segredo;
nada escapará. (Váo-se)

S C E N A II
Saleta no interior do pavilhfio. A ’ direita uma janella; á esquerda
urna porta. No topo duas portas, urna das quaes disfarçada
(A D uquesa d e B o u illon está assentada a uma mesinha, e dá
de quando em quando mostras de insoffrida. O relogio dá umá
hora )
Duq.* ¡ Mas não chega! ¡uma hora ha já que espero!
e d’a n te s .. . ¡que ñel pontualidade!
da minha mallograda mocidade
mais um anno là vai; m arcou-o esta hora.
140 Empresa da Historia de Portugal

Nem me lembrava; o Iouco m’o recorda.


¡E eu a amal o inda tanto!!! arrisco a fama,
mil perigos crueis por elle affronto;
talvez o fementido
de outra aos pés entretanto arda rendido.
E ntre um par fiel e am ante
é cada ho ra um breve instante,
que as faz rapidas voar
crebro e m utuo palpitar.
A quem só padece e chora,
contém séculos cada hora,
que os m om entos que enche a dôr,
um a um nos conta amor.
(Vai até á janella, olha para a rua, e volta em grande
agitação)
Mas ausentar-m e im porta;
podem vir dar commigo;
por esta occulta porta
me escaparei sem p ’rigo.
(Mostra a porta falsa}
¡Ingrato aos meus favores 1
mas eu farei que trem a,
trem a dos meus furores.
Deliro; sou blasphema;
elle é fiel; virá.
Volve, ó querido, volve,
o a m o rte absolve já.
(Pausa)
Fui dos salões o idolo;
sábe-lo, ó caro amante.
Nobres, senhores, principes,
via a meus pés no pó.
E ’-me hoje o mundo um erm o,
quando me estás distante;
povoado eden sem term o,
se estou comtigo só.

SCENA III
A D aqueza, Maurici»
Hanr. Duqueza!
Dnq.* Alfim!
Maur. (ajoelhando) Dignae*VOS
o involuntario aggravo
p erdoar gen erosa ao vosso escravo.
Obras completas de Castilho 141

Duq.* Erguei-vos; creis reo; bastou-m e ouvir-vos,


apagou-se-çe a ira,
renasce o am or, o coração me inspira.
Maur. (¿parte e muito admirado)
¿Amor?
Duq.* ¿Flores trazeis?
(Vendo o ramalhete que Mauricio traz)
Maur. (como acima e dolorosamente) ¡Ceos!
Duq.* (tirando-ih’as) { D estinais-m’as?
Maur; (como acima)
¿Mentir-lhe deverei?
Duq.* Paga m erece
tão fino am or; tom ae-a: os regim entos
que havieis supplicado,
el-Kei vol-os outorga.
Maur. (com alegria) ¿El-Rei?
Duq. ¿Q ue admira?
am or fez-me eloquente.
Màur. ¡Oh! ¡graças! ¡graças!
m archo, invisto, derrubo,
e ao throno de Curlandia emfim já subo.
Doirada, estrellada, me ri a existencia,
co ’a dupla influencia da gloría e do amor.
¡Náfrente um diadema! ¡nopeito outro peito !
¡ternura e respeito, doçura e esplendor!
¡Ventura! ¡oh! ¡ventura! tran ç ar ám istu ra
co’os loiros e as gemmas as rosas de am or.
£uq.* Rival bem terrivel eu propria me hei d a d o .
Maur. (no auge da perturbação)
¡Rival!
Duq.* ¡Pois a gloria!
Maur. (socegando-se. áparte Respiro; temi
que já de A driana lhe houvessem falado;
sou grato á Duqueza; finjamos aqui.
Duq.* ¿Que pensas?
Maur. Que tudo te devo.
Duq.* (com expressão de muito affecto) Nao é,
não é esse o ponto, só quero a tua fé.
Am or, am or eterno,
jurem os mutuamente.
Meu és, és meu sómente;
tua, só tua, eu sou.
Q uando na guerra andares,
teu coração me deixa;
142 Em presa da Historia de Portugal

em quanto não voltares


em troca o m eu te dou.
M aur. Am or, am or eterno
poder votar-te anhelo;
se o meu destino é bello,
devêl-o a ti bem sei.
T é n’este apartam ento
d'um ente amavel, tem o,
pensando qual me ausento,
já gosos levarei.
Soffre que eu voe á lide;
prom pto haverei victoria;
colhida que haja a gloria,
lançar-t’a aos pés virei.
Se com bater me é dado,
transform o a espada em sceptro;
vês-me ao partir, soldado;
vêr-me-has espectro ou rei.
(Ouvem*se fóra as primeiras notas do còro de convida­
dos que abaixo segue)

Duq.* ¿Ouves? que atroz cilada!


salva-me; opprobrio a ssim .. .
Maur. (corre á janella, olha para a rua, e volta ao proscenio
apressadamente)
¡A casa está cercada!
¡some-te! ¡espera em mimi
(Obriga a Duqueza a entrar no gabinete da esquerda, e
patte arrebatadamente pelo fundo)

S C E N A IV
O Duque, todos os convidados, depois M aurici*,
e por ultimo Adriana

Còro ¡Lauto festim se apresta!


¡á festa! ¡á festa! ¡á festa!
gosar em quanto resta
m om ento de gosar;
em quanto as na viçosas,
é rosas apanhar.
¡Danças! ¡cantares!
¡risos! ¡folgares!
¡e viva amor!
(Entra Mauricio.)
Obras completas de Castilho 143

D uq. (a Mauricio)
Conde, fausto o am or vos seja;
tudo aqui a am or festeja;
do festejo a soberana,
(Entra Adriana)

que ao seu reino corresponde,


eil-a, a magica Adriana
Lecouvreur.
Apresenta-a a Mauricio
Para Adriana, apresentando-lhe Mauricio
Mauricio, o Conde
de Saxonia.
M aur. e A dr. ¡Ah!
A dr. (baixopara Mauricio) ¡Que traidor!
(alto) r ló r de heroes, vim por m adrinha
de um soldado obscuro e pobre,
vèr se em vos acaso obtinha
carear-lhe um protector.
M aur. Falae pois.
Adriana e Mauricio descem ambos ao proscenio, como
que para falarem em segredo, emquanto o Duque e
os convidados ficam passeando e conversando pelo
fundo do theatro. O seguinte dialogo irá rapido, vi­
vissimo! e a meia voz.
A dr. Nascestes nobre;
grande sois.
M aur. Na fé, no am or.
(Aponta para o gabinete) Ouve; ali, ali ha gente;
sim; razão d’estado u rg e n te . . .
A dr. ¿Mulher?
M aur. Sim.
A dr. (anciosa) ¿Que a mim preferes?
M aur. Nunca.
A dr. ¿Juras?
M aur. Juro.
A dr. (olha-o fitamente; Mauricio nlo se perturba; Adriana
fica certa da sua innocencia)
E q u e re s.. .
M aur. Que se evada occultam ente;
nada mais.
A dr. (resoluta e nobremente) Salval*a-hei eu.
M aur. D ’aqui fora, protegei a,
defend81-a é encargo meu.
■44 Empresa da Historia de Portugal

Alto e com galanteria affectada


O banquete por nós chama;
a alegría á espera está.
Como continuando a conversalo interrompida
São lei rogos de urna dama.
A dr. Graças.
Os convidados vio sahindo pelo fiind'); Adriana, que os
seguia, detem-se, como lembrando-sc a subitas de al­
guma coisa, e diz-lhes, descendo o theatro:
Ide; após vou já.
C òro ¡Os canticos eccoem!
¡espumem vinhos! ¡soem
co’o retintin das taças
saudes mil e mil!
jgosar em quanto ás graças
dá campo o hum ano abril.
¡Danças! ¡cantares!
¡risos! ¡folgares!
e viva am or.
Sáem todos pelo fundo, menos Adriana.

SCENA Y
A driana, e depois a D u q u e »

A d r. (meditativa)
Prom etteu-m ’o; estava certa.
Sahireis, senhora, occulta
que ninguem vos ha-de ver.
(Apaga a luz. Ouve-se entSo fora o còro dos malfeitores
do Duque. Corre Adriana 4 janella e observa-os. Vai-
se o coro a pouco e pouco attestando, e váo-se as
vozes a esvahir na distancia. Volta Adriana da janella
e diz:)
Foi-se a odiosa turba-m ulta;
não ha tem po que perder.
(Todo o theatro está escuro e silencioso. Vai Adriana
bater á porta do gabinete onde está a Duqueza)

Abri; não hajais medo;


fiel vos sou. Depressa;
fugi; tudo ora é quedo;
voae.
Obras completas de Castilho 145

Duq.* (abre a porta e entra em scena tenteando com ai míos


e devagar)
¿Que dama é essa?
¿d’onde sabeis, senhora,
que em tan to risco estou?
A dr. Sei-o, por quem ’té agora
em nada me enganou.
Duq.* ¿Arminio? ¿como?! ¿quando?
¿a vós? ¡que predominio!!
A dr. ¡E vós que o estais chamando!
¿com que direito! ¡Armiaiol
P ortan to o amas.
Duq.* (com energía) Amo.
A dr. Rival já vos não chamo:
amail-o, e eu fortunada,
sou d’elle amada. (com orgulho)
Duq.* ¡Oh! ¿és?
m entes; pouco ha, rendido
o hei tido ante os meus pés.
¿Quem sois?
A dr. ¿E vós?
Duq.* E u tinha,
se fosseis rival minha,
poder de anniquilar-vos.
Adr. ¿E eu? ¿eu, sabeis qual tom o
vingança de escutar-vos?
Duq.* ¿Vingança? ¿vós? ¿e como?
A dr. P erder-m e e vosso empenho;
e eu tenho o de salvar-vos.
(Pausa. Umae outra buscam em váo reconhecer-se nas
trevas. Afinal a Duqueza arrebata com força a mio
de Adriana, desce rapidamente ao proscenio, e pro­
rompe no seguinte:)
Duq.* ¡Tem eraria! ¡pensa! ¡oh! pensa
que eu de ti serei vingada;
foi paixão de am or immensa,
odio immenso o meu será;
a soberba inda humilhada
graça em vão me im plorará.
Adr. V ae-te; e eu vingo-me já agora:
n ’estas m ãos tenho a tua fama;
dou-t’a illesa. Ao que me adora
provo n ’isto o affecto meu.
No saberes que nao te ama
dá principio o inferno teu.
146 Empresa i a Historia de Portugal

Duq. (ií dentro) ¿Que é da arbitra da festa?


¿onde está? deixou-nos sós.
Duq.* (áparte) ¡Ceos, do esposo a voz é estai
¡fujo inultal ¡oh! ¡dia atroz!
(Procura como póde a porta falsa; achada ella desappí-
rece. Abre-se o fundoj e enche-se o theatro de con­
vidados.)

S C E N A VI
Adriana, o D u q u e , os convidados

D uq. (ao entrar corre 0 aposento com ollios perscrutadores


¿parte)
Corri tudo, e nada havia.
A dr. (olhando i ioda de si)
¿Sonho? ouvi-a; ¿onde é? ¡que voz!
(O Duque di a mSo a Adriana para a levar ao festim.

FIM DO ACTO II
A C T O III

Sala festival no palacio do Duque

SCEN A I
Senhores e senhoras em trajo de baile. Por entre as columnas do
fundo se vêem apparecer e desapparecer os pares da dança

O Onque, a D uqueza e * l b j

Còro Pelas salas de esplendidas galas


leva musica as danças profusas;
cuida achar-se no alcaçar das Musas
quem vê hoje este paço ducal;
hoje o Elysio sonhado é real.
D’esta lesta que um principe apresta
se disfruta á porfía a alegría;
mocidade, elegancia e beldade,
são tres graças, tres socias de am or,
que vêm dar ao festejo esplendor.
D nq. (no meio do theatro) Vou dar-vos um a nova,
que ha-de certo causar-vos m aravilha:
Maurício de Saxonia é na Bastilha.
C òro ¿Que ouvi?
Duq.* (áparte) A accusação surtiu-m e effeito:
o indigno a mereceu.
D uq. Presidiu hontem ,
de noite, em reunião de conjurados;
um a denuncia o descobriu; com tudo
recrear-nos podem os,
que Adriana Lecouvreur hoje aqui temos.
Ouvir-se-hão versos d’oiro
p o r sua m aga voz A dança, o canto,
à sua espera prosegui no em tanto.
148 Empresa da Historia de Portugal

S C E N A II
Os preced ente!, A d ria n * e H le h n u e l

A lb. {como que annunciando-*)


Adriana.
C ò ro ¡O’ deusa da arte!
cabe a todos adm irar-te.
A dr. Graças mil a vós, senhoras,
por mercês tão seductoras.
Duq.* (¿parte) ¡Ceos! jque voz! quasi suspeito;
vou tentar, (aito)
O vosso aspeito
como um sol doira esta sala.
A dr. (áparte) ¿Onde ouvi eu esta fala?
não seria. . . (alto)
¡Quanto amavell
Duq.* (afectadam ente) D este jubilo ineffavel
alguem mais gosára accèzo,
se o podéra.
A dr ¿Quem?
Duq.* Mauricio
de Saxonia, que está p re z o .. .
(áparte) ¿Não se turba?!
A dr. ¡Que supplicio!
Duq.* Foi ferido.
A dr. (com um grito) ¡A h !
Duq.* (áparte) ¡Trahe-se! ¡enfia!
Mioh. ¡Tentó!
Duq.* ¡A si se denuncia!
Mioh. (a meia voi, assustado, para Adriana, que vacilla)
¡Adriana!
(As duas rivaes trocando um olhar de colera)

Duq.* A dr. ¡E’ ella!


A lb. (que andava perto da porta do fundo, desee aprestada-
mente, e diz em voz alta:)
¡O Conde
de Saxonia!
A dr. (não podendo ter mão no jubilo convulsivo que se lhe
adivinha no fogoso do rosto e no rapido dos movi­
mentos)
¡A h !
Mioh. (detendo-a) ¡T ó n t o I
Obrat tompletas de Castilho 14^

M au r (vem entrando, e ao dar com os olhos em Adriana fica


petrificado e exclama:)
¡Oh Ceos!

S C E N A III
Os precedentes e M aurici»

(A Duquesa observoo a immobilidade de 9faurleto«Os actores


estão dispostos da maneira seguinte: M ichonnet, A d riana,
M auricio, a D uquesa, o Duque, Alby.)

TODOS

A dr. ¡Já livrei ¡já salvoí bom Deus, tu m e ouviste.


Resiste, ó minh’alma, que o lance é trem endo;
se a outr» idolâtra, se e d'outra, eu m e rendo;
que seja ditoso, feliz m orrerei.
D uq.a Prisões que eu lhe urdira, vós fostes que­
bradas;
¡baldadas perfidias! ¡denuncia perdida!
amei o, e sem fruto; fui d ’outra vencida;
não sei captival-o, perdel-o não sei.
M au r. ¿Qual sorte um a e outra me forja e destina?
ferina a vingança, o am or delirante.
Não tem o essa altiva, prefiro esta am ante!
mas n ’essa qual n ’esta ternura encontrei.
Dnq. ¿Que genio do abysmo de novo o liberta?
cri certa a bonança, folgava, foi sonho.
N’este hom em resurge-m e o espectro me­
donho,
por quem já dos zelos o calix traguei.
Mich. ¡Incauta! ¿que fazes? disfarça em teu rosto
o gosto de o vêres; m antem -te serena.
Actriz sê no mundo qual és sobre a scena;
o publico illudes, engana esta grei.
Alb. e o C òro ¡Que estranha m udança se obrou de
repente?
co n te n te era tudo; presenta-se 0 Conde,
carregam -se os rostos, o riso se esconde;
vai hi grão m ysterio; ¿Sabeil-o? dizei.
Duq.* (Pansa; depois de algum tempo chega a Duqueza junto a
Mauricio, e diz-lhe resoluta:)
Chegais a tem po, Conde;
ouvireis A drianna; ella se digna
de ostentar entre nós seu genio raro-
V O L XXI 10
i .‘ o Em presa da Historia de Portugal

Sentae-vos junto a mim.


(Para Adriana) Adriana, vamos;
todos nós escutamos.
(Dà a mSo a Mauricio e fal-o assentar ao pé de si á di­
reita da scena. Tomam todos logares pela sala;
Adriana fica-se em pé, e Michonnet tambem)
Adr. (baixo para Michonnet)
¡Que audacia! eu pasmo.
Mioh. A sim ular aprende.
Duq.* ¿Escolhestes?
A dr. Que escolha o Conde.
Duq.* (com ironia insultuosa) ¿ApraZ-VOS.
urna scena de Ariadne desprezada?
A dr. (áparte)
¡De mais o insulto? eu não resisto.
Mioh. (baixo) Cala;
és alvo ás attenções de toda a sala.
M aur. P hedra escolho.
A dr. Pois bem ; vá Phedra.
Còro Oiçamos.
(Grande pausa^ Adriana medita. Começa depois' a declamar com
umaagitação febril, fitandoo olhar na Duqueza e em Mauricio,
os seguintes versos de Racine. A Duqueza ri com ostentação.
A dr. (declamando)
«¡Justo Ceo! ¡que fiz eu! verei (não tarda)
«o m eu consorte, e a p ar com elle o filho;
«do meu im puro am or a testem unha,
«notará com que fronte ouso m ostrar-m e
«ante seu pae. Os olhos meus po r força
«que hão-de te r p ran to ,e o coração suspiros;
«suspiros, pranto, que elle insulta. ¿E pensas
«que elle haja de occultar-lhe a minha insa­
nia?
«¿contra seu pae, seu rei, traições consinta?
«¿e este h o rro r que eu lhe infundo emfim
disfarce?
«Se o tentasse era em vão. Conheço a fundo
«sua perfidia. Ai não; não sou como essas,
«que de affeitas ao crime e ao fingimento,
«já se gosam do mal, sem que lhes tinja
«sombra de pejo ou de vergonha as faces.»
(Adriana, que a pouco e pouco se foi avizinhando da Duqueza, a
final aponta para ella, e allucinada lhe põe o dedo mostrador
no meio da testa. Levantam-se todos aterradcs de tanta ousa­
dia.)
Obre» completas de Castilho i 5i

Duq.* P ranto não, não me basta ao que has feito;


não ha pranto que tal desaggrave.
Monstro, m onstro, esse barbaro peito
dará sangue que a affronta me lave,
e no arranco final te hei-de ouvir
contra ti maldições proferir.
A dr. Brama, bram a, depreca vingança;
eu de ti já me sinto vingada.
Vae, troveja, revolve-te, cansa,
que eu, feliz, não desejo mais nada.
Vive; deves a affronta curtir,
que eu te soube na fronte esculpir.
D u q , A lby e o Còro
jlnsensatal ¡insensata! ¿que furia
te arrojou a tão barbaro insuito?
¿De tão nova e tão horrida injuria
qual motivo em teu seio era occulto?
D’entre nós dá-te pressa em fugir,
que o I I raio não tarda em cahir.
M aur. ¡Que celeumal deponde essa ira;
sois injustos suppondo-a culpada.
¿Quem não sabe que o genio delira?
foi delirio do genio e mais nada.
Se não teve intenção de ferir,
fora injusto o querel-a punir.
Mioh. ¡Desgraçada! ¿que has Jeito? ¿que has dito?
provocaste-lhe a infrene inclemencia.
De vinganças trem endas és fito;
¿quem do raio resiste á violencia?!
s e não queres á dor succumbir,
vem commigo; partâm os; fugir.

FIM DO ACTO III


ACTO IV
Camara de dormir em casa de Adriana

SCENA I
( M ic h o n n e t entra, olha para dentro da cortina, levanta a, vê-se
o leito em que A d r ia n a está deitada)

Mioh. iCansaço! ¡dorme emfím! ¡Quanto soffria


ella, que por salval-o ha dado a honra,
que se culpou dizendo que era o Conde
am ante seu feliz, e o tinha em casa,
quando entre os conjurados o suppunham!!
As que de am or se jactam ,
mal sabem o que sente
um peito nobre, com o o d ’ella ardente.
¡Ai! ¡que am ar foi seu amar!
¡Ai! ¡que am ar que esperdiçou!
E elle, ao anjo, anjo sem par,
elle, o vil, nao a adorou.
¡Ai! tSo m oço e tão cruel,
¡ai! tão lindo e sem am or,
a doçura ha pago em fel;
dão-lhe gloria, oíPrece a dôr.
(Adriana em sonbos repete as palavras da scena IV do
acto I)
Adr. «Vou ver um extasi
«de am or sem fim .»
Mioh. ¡Amor até nos sonhos!
¡ó funesta illusão!. . . L á se levanta.
(Levantou-se Adriana e veio lentamente descendo o
theatro)
Adr. ¿Onde estou eu? ¡foi sonho! esvaeceu-se,
qual o am or.
Mioh. ¡Adriana!
Adr. Velando-me estiveste; ¡oh! dize, amigo,
¿veio alguém procurar-m e?
Obras completas de Castilho i 53

Mioh. (entristecido) ¡Inda esperanças!


Adr. ¿E sperar eu?! ¡eu d ’elle! ¡eu d ’um perjuro!
¡eu, de quem prefería
a mim, que só o hei salvo, a que o trahiall?
(com vehemencia)
Não; n lo o amo.
Mioh. (com alegria) ¡O’ jubilo!
A dr. (como acima) _ .Desprezo-o
quanto o adorei.
Mioh. T u a rivai m e assusta;
feristel-a, e de m orte.
A dr. ¡Oh! sim! ¡de m ortel
¡o aspecto soberbão, com que transporte
o-não m ostrei! sentia
que a estava a apunhalar; que m e vingava;
e era tão justas sevicias,
o coração nadava-me em delicias.
(Apparece de subito á porta um creado sem libré; Mi­
chonnet recebe-lhe das mãos uma caixinha com um
rscrito em cima, em que se diz que é para Adriana
Lecouvreur; parte o creado)
A dr. ¿D’onde vem?
Mich. (lendo) Vem do Conde Mauricio
de Saxonia.
A dr. (pondo-se em pé de repente)
¡Ceo! dá-me.
Mioh. ¡E não amas! ! ...
(Adriana quer abrir a caixa, mas de commovida nSo
póde)
Adr. T rem e a mão; fria estou; ¡que supplicio !
não me a tre v o .. .
Mich- A bro eu, se o reclam as.
A dr. Deixa; vae-te. (com impaciencia)
(Abre a caixa, olha p u a dentro, e solta um grito)
¡Ah! ¡cruel!
Mioh. ¿Que te manda?
A dr. ¡Morte infanda!
Mioh. São flores, bem vês.
A dr. ¡Ai! cravou-m e o punhal d’esta vez. (Granfe pausa)
(Para Michonnet) SÓ me deixa.
Mioh. ¿N’esse estado?
A dr, Vae-te.
Mioh. ¡0 ’ Deus! ¡valor lhe influe!
(Sai Miehon et)
i 54 Empresa da Historia d» Portugal

S C E N A II
(4 á r ta n a só. Ltaça-se para cima de uma cadeira, toma as
ñores, contempi <as, e as beija.
Fica absorta em pensamentos maguados, repetindo as palavras
do acto I.)
•Fores são que am or te ha dado:
«findo o am or, m ’as restitue.»
E ra assim que eu lhe dizia,
quando am or m e prom ettia.
Inda foram seus am ores
mais ephém eros que as ñores.
(Pausa)
Lindas nuncias de desejos
que a beijar-vos segredei,
fostes mais que flores: beijos
que eu lhe enviava, e que lhe eu dei.
Vence a am or a iniqua sorte;
repulsou-vos o cruel:
nuncias pois da minha m orte,
¡vinde! ¡vinde! eu sou fiel.
(Beija-as muitas vezes com arrebatamento, depoU atira-as ao lume)

S C E N A U L T IM A
Mlehonnet, M auricio, e Adriana

Mioh. (de dentro) Não entrais.


H au r. Inutil fôra.
A dr. A VOZ d’e lle . . . (animando-se)
(Maurício entra a pezar de Michonnet, que intenta deter-lhe os
passos)
MaUT. (lançando-se aos braços de Adriana)
¡Adriana!
A dr. ¡Arminio!
¿que fiz eu? (afastando-se como arrependida)
M aur. i Já te possuo!
A dr. Vae-te! ¡foge! ¡enganador!
M aur. Rogo humilde ás tuas plantas
o perdão de offensas tantas.
Já rival não tens; deixei a:
essa indigna, amaldiçoei-a
Accusou-me por vingar-se;
confessou-m ’o sem disfarce.
Mão porém de ignoto amigo
me soltou.
Obras completas de Castilho 155

Mioh. O arcano eu digo:


quem vos deu liberdade,
foi este anjo; e que se enfade;
foi este anjo terreal;
e po r paga, um a riv al. . .
A dr. C a la ...
Mich. ¡Oh! ¡não! calar nSo sei.
M aur. Q uanto am or cabe en rm e u peito,
todo em ti o empregarei.
And. (em assomo de alegria)
¡Ceos! ¡amadal ¡amada! ¡amada!
acabou-se o m eu martyrio;
coroada estou no Em pyrio;
já é meu, já sua eu sou.
¡Resurgiu-me d’entre as cinzas
esta voz enamorada!
¡Sim! ¡amada! ¡amada! ¡amada!
não é sonho; a ouvir-lh’o estou.
(Adriana vacilla, leva as mãos i testa, e se perturba)
M aur. ¿T u vacillas?
Mich. ¿T u desmaias?
A dr. E ’ do jubilo; é transporte;
a alegria não dá morte.
¿Mas as flores a que vem?
M aur. ¿Quaes?
A dr. As minhas; com prehendo;
nuncias são de am or tam bém .
M aur. ¿Que diz ella?
A dr. Sinto o peito
vaso estreito a tanto bem.
M aur. D’essas flores fui roubado, (vacillando)
Mioh. Mas enviastes-lh’as; ¿não?
M aur. Não.
M ostra-as. (com anciedade)
Adr. (com um grito de dor)
¡Ai!
M aur. ¡Convulsa! !
A dr. (começando a delirar) Ar! não se aspira... (affrontada)
¿Vós quem sois? ¡que ceos tSo tristes!
¿quem devo eu salvar?
M aur. Delira.
A dr. (como acima) ¿Nós rivaes? fazeis-lhe insulto;
sois-lhe am ante, e eu sou-lhe am ada.
M aur. Dei-te am or, sagro-te culto;
Meu perdão fez-te adorada.
1 56 Empresa da Historia de Portugal

Mich. ¿O perdão ? ai, Conde, é tarde!


só de Deus perdão se aguarde:
ved e-a. . . expira. . . (com um soluço)
Maur. (desesperadamente) ¡Não! ¡ soccorro l
Adr. ¡M orro!. . . ¡vivo!. . . ¡a tu a eu sou! ! !
(fita os olhos no espaço e delira)
¡Vê que apinhado publico!
¡escuta-o! ¡que impaciencia!
do estro o fogo magico
me infunde ignota essencia.
Sou P hedra, Phedra, a misera,
que venho am or penar.
Farei por mãos innumeras
o applauso trovejar.
¡Olna ao pé d’elle a adultera
rival! ¡que orgulho fero!
Cravar-lhe eterno opprov rio
na indigna fronte eu quero;
n ’aquelía fronte pallida
que ignora o que é pudor.
¡Phedra! ¡confunde-a! m ata-m ’a
de opprobrio e de terror.
(Adriana succumbe, e cai sobre uma cadeira)
Maur. ¡Cara Adriana! ¡escuta-me!
¡vê-me a teus pés! ¡sou eu!
Mich. ¡Adriana!
Aqui, no intimo,
vai fogo! Arminio é meu.
Maur. T eu para sempre.
Mioh. É tarde.
Maur. ¿Não me conheces? ¡Olha-me!
tornas-m e, ó Ceos! covarde,
Adr. (abraça-se com Maurício; depois vendo Michonnet, que
também chora, estende-lhe afectuosamente a mão e diz:)
Morro entre am ante e amigo:
bemdigo o fado meu.
(P ara Michonnet) ¡Amigo !
(Para Mauricio) ¡Arminio! amais-me?
¿és inda meu?
Maur. Sóm ente.
Adr. Posso m orrer contente.
¡até aos Ceos! (Expira)
Mioh. (afogado em lagrimas) Morreu.
FIM DA ADRIANA LBCOUVREUR
XI

LETREIRO
P O S T O PO R BAIXO DE UM R E T R A T O

DE

M.“ F0RTÜMTA TEDESCO


PRIMA-DONNA DO R E A L TH EA TRO DE S. CA R LO S DE U SB O A

Assim a admirarás, posteridade,


e já dos loiros posthumos cingida;
mas nós, ouvindo-a, e no esplendor da vida,
entrevemos na gloria uma deidade.

Lisboa
19 de Fevereiro de i85g.
X II

A' CANTORA ERSILIA AGOSTINI


EXECUTANDO O PAPEL
DE

J U L IE T A
NA

O P E R A I C A P U L E T I E M O N TECH 1

No Real Tliealro de S. Carlos de Lisboa,


na noile do seu beneficio

SONETO

De Romeu e Julieta ao memorando fado,


no am or e no infortunio exemplos sobrehum anos,
devia-se um cantor gigante e coroado;
foi Shakespeare, o rei dos tragicos britannos.

Para roubar-lhe á lyra o cantico inspirado,


seu fogo, sua dor, seus intimos arcanos,
foi preciso um Romani, um genio aviventado
de todo o immenso ardor dos ceos italianos.

Eis duplice tropheo, de glorias opulento.


Acresce, por que excelso esplenda a toda a parte,
a Romani, um Bellini; ao portento, um portento.

¡Mas eis portento novo, ó Natureza! ó Arte!


para c ’ròa a Bellini, e c’rôa ao monumento,
reune Ersilia os dons, que o Ceo por mil reparte.
Lisboa
18 de Abril de i 853.
X III

A ’ P R IM A D O N N A

MARGARIDA BERNARDI
NO SEU BENEFICIO
NO

REAL THEATRO DE S. CARLOS DE LISBOA

—«Feliz»—exclama Sapho ao som da aónia lyra,


lá sob os ceos da Grecia, entre os m irtaes em ñor;
Sapho, a sacerdotisa e victima do am or;
Sapho, que ante a belleza extatica delira:

«¡Feliz, mais que feliz, eguai aos im m ortaes,


«quem defronte de ti se pasce na ventura
«de ouvir-te a maga voz, de ver-te a form osura,
«de espreitar-te um sorrir nos labios virginaes!

«¡Que insólito alvoroto invade os meus sentidos!


«suo; trem o; ardo; gèlo; esmaio; vou m orrer;
«foi-se a voz; perco a luz; já nada posso ver,
«nada ouvir; o que ouvi só enche estes ouvidos.»—

¡Resurge, Sapho! ¡oh! ¡sae do equoreo m ausoleo,


que os fogos te abysm ou, e b rotára A cydalia 1
de teu grego po rten to hoje trium pha Italia.
¡Vem ver Bernardi, vero, accorre ao luso ceo!
i6 î E m presa da Historia de Portugal

Vem cingida, ó gentil, de rosas e cipreste;


de C orinna, ao passar, furta á campa um laurei.
Som bra imm ortai, do bello ao culto inda fiel,
en tra onde um povo adora assombro tão celeste;

lança-lhe o loiro aos pés sobre as grinaldas mil


de que lhe form a throno acceso enthusiasm o;
olha-a fita; ouve-a attenta; unirás pasm o a pasm o,
e ou tra vez m orrerás po r num e tão gentil.

Lisboa
8 de Abril de i858
X IV

DESPEDIDA
CANTADA

PELA

P R IM A -D O N N A M A RG A RID A BER N A R D I
AO

Publica Lisbonense no Real Theatro de S. Carlos

MUSICA DE SANTOS PINTO

Hora solemne é esta, hora de luto


na existencia da artista. Eu, que sem pena
troquei de Italia os ceos por ceos de Lysia,
e aqui, por vós, já tinha
segunda Italia, e nova patria minha;
hoje, avesinha errante,
caprichoso tufão me arranca e leva.
¡Cantava tão ditosa ao T ejo am ante!.. .
¡e ora vou suspirar me ao frio Neva!
Meu derradeiro canto,
se m ’o permitte o pranto,
dou-vol-o como cisne á despedida.
Am aveis Portuguezes,
com vans ficções vos commovi mil vezes1
mas dor, hoje real, me ennoita a vida.
i$4 Empresa da Historia de Portugal

Portuguez coração qual me aqui pulsa,


guai tu m’o has feito, ó inclita cidade,
e só n’este poetico idioma,
doce como o de Roma,
que devia expressar sua anciedade.

Mas o affecto em balde anhela,


se atormenta, se desvela;
vossa Lingua opima e bella,
não, não tem com que o pintar.

|Oh! ¡engano-me! Són'ella,


n’ella só, se diz saudade\
flor de amarga suavidade,
que hei-de eterna conservar.

Lisboa
27 de Maio de i858.
XV

DESPEDIDA AO PUBLICO LISBOŒ8


CANTADA

POlt

PIETRO HERI-BJLRÌLDI
NO

REAL T H E A T R O DE S. CARLOS

MUSICA DE SAN TO S PINTO

Pela ultima vez, congresso amigo,


ouso vir ante vós. Meu fado errante
de novo me arremessa a longes plagas.
N ’este amargoso instante,
em que já todo o peito
as futuras saudades me consomem,
despareceu o artista, existe o homem.

Mal presume que o homern no artista


entranhado, immutavel, exista,
quem seu falso destino invejar.

Chega, e foge; sem patria, sem lares,


dá prazeres, devora pezares;
canta ás vezes com a alma a chorar.
V O L. XXI 11
i66 Empresa da Historia de Portugal

Da minha bella Italia eu sequestrado,


bella sim, minha não: ¡misera Italia!
¿como hão-de os filhos teus chamar-te sua?)
sequestrado da Italia,
gosal-a aqui suppunha: eram seus ares,
em que as plantas de amor florescem livres;
seu mar, em que se espelha o ceo mais puro;
quasi o mesmo falar, sonoro, ameno;
á musica, á poesia, ao bello, ao nobre,
o mesmo accezo culto; eguaes extremos
na divina amisade;
e de mais, o que é tudo, a Liberdade.

¡Que de bens, a que esta hora


me vem barbara pôr termo!
N ’um edên sonhei té agora,
vou n’um ermo despertar.

De taes bens sómente levo


a amisade em nós tão fida;
gloria e dor, que ao fim da vida
me ha-de inteira acompanhar.

Lisboa
19 de Março de 1859
XVI

IDESIPEIXED.A.
Pulí «a o ntnti do iolir
NO ALBUM

DA

PBIMA-DOHM DO REAL THEATRO DE S. CARLOS DE LISBOA


M “ ‘ U M E T T A GAZZAHIGA M4LASPIN4

jE vais partir! ¡E partirás contente


d’onde tinhas um throno e adoradores!
¡E nunca mais a Italia do Occidente
poderá pôr-te aos pés as suas flores!

¿Por que vieste a nós, mulher deidade,


dúplice musa da tragedia e canto,
se, fascinados de teu mago encanto,
nos votavas tão cedo á soledade?

Mas ausenta-te embora; um vão queixume


não te agoire o alvoroço da partida.
O mar, de Venus berço, a tem por nume;
ridente mar te leve adormecida.

D ’auras de Lysia o suspiroso bafo,


rescendente aos mirtaes, ao loiro, ás rosas,
por sobre ondas gentis harmoniosas
cedo te vôlva á patria, Ausonia Sapho.
i68 Em presa da Historia de Portugal

P ae, mãe, irmans, um filho, já seus braços


te alongam cubiçosos de apertar-te;
nem a gloria no ceo de taes abraços
te póde já lembrar; ¡oh! ¡parte! ¡parte!

¡Que hora d’oiro te espera! A Italia bella,


que deixáras escrava, áchal a erguida;
fez dos grilhões espada; o sol da vida
entre filhos heroes reluz sobre ella.

Não mais cantes ficções na eterna lyra,


prole da Ausonia; os seus prodigios canta;
teu filho será livre; o amor te inspira;
a novos ceos de gloria te levanta.

Cresce orgulhosa; crescerá teu filho,


maior que seus avós, á patria grato;
mostra-lhe então no meu fiel retrato
quem vos cantou no Tejo: o teu Castilho.

Lisboa
23 de Março de 1861.
XVII

FELIGITÁÇÂ O
DA

COHPAHHIA LYRICA ITALIANA


DO

REAL T H EA TRO DE S. CARLOS DE LISBOA


AO

COMPOSITOR PORTUGUEZ M1G0NE


FELI SD» OPEBA

SA N -P IE R O

SONETO

Bem que do orbe o sceptro inda é Romano,


e arte e amor lh’o sustenta em nossos dias,
còro Ausonio cultor das harmonias
laureis te enastra, ó genio Lusitano.

Se ao leve Gallo, ao boreal Germano,


exaltámos as patrias melodias,
tu, que na Italia occidental as crias,
és caro em dôbro ao genio Italiano.

Se ha peito onde teu canto hoje não vibre,


diga: «Sou gelo»; e se o não louva: «Invejo.»
Sobre nós tua gloria as azas libre.

V ae, triumpha, applaudimos-te sem pejo.


Sob aguias foi contrario ao T ejo o Tibre;
são irmãos sobo cisne o Tibre e o Tejos
Lisboa— i 85a.
X V III

OS PORTEIROS
DO

RFA L T H EA TRO DE S. CARLOS DE LISBOA


AOS

FREQUENTADORES DAS PLATEIAS

Nós, os miseros porteiros


d’este Theatro Real,
de damas e cavalheiros
assembéa festival,

somos como as mahometanas,


que, segundo o alcorão diz,
sem entrar nos ceos espreitam
seus maridos co’as huris.

Sempre ás portas, mas exclusos,


n’estas noites glaciaes,
em quanto folgais lá dentro
scismâmos cá fóra aos ais.

¡Vós a applaudir as cantoras,


e da arte as maravilhas!
¡nós a pensar ñas tristezas
da mãe, da mulher, das filhas!
Em presa da Historia de Portugal

Entrais e sahis contentes,


(Deus vos mantenha as venturas),
e encontrais-nos sempre immoveis,
solitarios, ás escuras.

Mas pois nasce esse Menino


que a toda a terra allumia,
a nós, que estamos por portas ,
dae um raio de alegria.

Lisboa
N atal de 1860.
X IX

IDÆOEsTOLOQO
P A R A SER RECITADO
PELA

A C T R IZ E M IL IA D A S N E V E S E S O U S A
fl’llH A PROJECTADA FESTA THEATRAL
EM BENEFICIO
DA

ASSOGIÃÇ&O PROM OTORA D A EDUCAÇÃO POPOLAR

Havia muito que a insigne artista curtia pro­


fundas saudades, exclusa do seu querido Theatro
Normal. Imaginára-se com esta reapparição res-
tituil-a á sua carreira de triumphos; foi mais uma
esperança frustrada.
O s versos, que ella já tinha decorado para
aquella santa festa de caridade, vão aqui textu­
almente reproduzidos da sua biographia na R e ­
vista Contemporanea do mez de Agosto de 1860.

I
O Theatro é do mundo espelho immenso e vago.

Quando o illumina o genio, assim como n’um lago


se miram sob o sol o bosque, o monte, o ceo,
o real no ideal se funde; o tenue veo
da esplendida ficção realça a realidade.
»74 E m p reja da Hstoria de “Portugal

Cada um se entrevê no quadro Humanidade;


e onde só procurou prazer ou commoção,
colhe entre chôro ou riso a próvida lição.

¡Salve, ó T heatro! ¡sálve! E u te am o; eu te contemplo


tão escola do tom, como do bello és tempio.

jOh! se te amo,Theatro! ¡Oh! ¡se me ufano em ti!


Quasi ao sahir do berço, hora que a todos ri,
e em que a virtudes mil todas suppre a innocencia,
a filha da ignorancia, a mãe da imprevidencia;
pobre virgem, alegre e santa, como vós,
como todas o hão sido aos annos o n z e .. .atroz,
atroz destino encontro em frente á flórea estrada.
(¡Quem previra, oh! meu Deus, tão barbara cilada!)
Luto sem conhecel-o; o seu poder fatal
me prostra, me arrebata. A nudez glacial,
o desamparo, a fome (¡a fome, ¡oh! padeci-a!)
fizeram noite horrenda a aurora do meu dia.

No fundo de um abysmo ia afogar-me... Então


um anjo de confòrto eis que me estende a mão,
arranca-me do pégo, e n’alma espavorida
me repõe fé , virtude, exforço, amor da vida.

¿Que asylo recolheu a naufraga feliz?


¿Um piedoso mosteiro? ¿uns paços senhoris?
o Theatro; a mansão profana e desprezada,
onde as artes irmans convivem, d'onde brada
lições ao povo a historia, e exemplos a moral,
mas que, util, enflorada, alegre, triumphal,
sob o anáthema jaz das eras de barbária,
que a mulher torna almeia, e torna o homem pária.

Acceitei o refugio; o opprobrio honroso; o pão;


o trabalho que salva. E disse aò coração:
Obras completas de Castilho 175

— «Sê bom, qual Deus te ha feito : » —e á m inh’alm a :—


«Descobre
«que o vil foi teu destino, e tua essencia é nobre,
t ó amor de um povo inteiro é grande; põe o ardor
«das tuas ambições em merecer-lhe o amor;
«(talvez o alcançarás), immola-lhe no estudo
«noites, dias, prazer, annos floridos, tudo;
«neóphita da Arte, agora o teu dever
«é n’ella, para ella, e d’ella só viver.» —

E o que m e impuz, cum prì-o. A vós, sensiveis almas,


prouve a dedicação: cobristes-me de palmas;
animastes-me o exforço; e do exforço, talvez,
algum talento emfim, graças a vós, se fez;
proclamastes-me actriz; ousei sonhar a gloria,
ordenei-me ganhal-a. ¡Esperança illusoria!:
de grau em grau subida, ao tempo de avultar
ministra da arte, ó Genio, em teu sublime altar,
o ceo azul tro v e ja .. .assombro-me do raio . .
leva-me um turbilhão.. .fóra do templo c á io .. .
¡Pasmo! e vejo (¡oh! ¡terror!) fechados seus portões.

Chorei. Sacerdotisa exclusa das funcções,


fóra do antigo asylo, oppressa da saudade,
co’a gloria murcha em flor, e a muda obscuridade
a ameaçar-me o p o r v ir .. .chorei; p a r ti.. .Calae;
a ninguem accuseis; aos fados o imputae.
Em toda a parte, e sempre, aos genios abrazados
no enthusiasmo do bello, hSo sido hostis os fados.

Tantos annos de exilio em meu torrão natal


inda me não teem gasto o amor, o amor fatal
que ao T heatro me attrai, que os ocios me envenena,
e só me dá viver, folgar, florir, na scena;
na scena, lares meus, meu vergel, meu abril;
na scena onde as paixões dão extasi febril,
176 Empresa da Historia de Portugal

o ser se multiplica, a alma cresce, e os delirios


nos fazem disfrutar a gloria entre os martyrios.

II
¡Oh! ¡se te amo, Theatro! ¡oh! ¡se te devo amor!
Quanto sou, foi teu don, meu bello salvador,
theatro, capitolio, escola, asylo, mundo.
Se vélo, penso em ti; se durmo, o somno fundo
ás penas da saudade os gosos substitue;
então, qual foste, és meu; eu, tua sou, qual fui;
sonho ver apinhada a luminosa sala,
vibrar aos gestos meus, tremer á minha fala;
e, como outr’ora, então, logo ali, tambem eu
aos seus brados vibrar, tremer no applauso seu.

Do sonhado triumpho em que morrer devia,


a co rd o .. .e recomeço as saudades do dia.
Da aurora á noite assim, do escuro ao sol que sái,
inutil, semi-morta, a vida se me esvai.

P or isso, quando escuto a voz da humanidade


invocar no infortunio a meiga caridade,
corro; acudo voando ao theatral festim;
(do que eu propria soffri, se fez piedade em mim);
e assim como Isabel trocava em frescas rosas
no regaço bemdito esmolas preciosas,
ajudada por vós, peitos sensiveis, bons,
as flores da Poesia as troco em aureos dons;
aureos dons, a que o Ceo bênçãos dará; ¡que digo!:
vós sois os que esmolais, eu, sou a que mendigo;
eu, da infancia que implora, eu, sou a humilde voz;
mas a mão do Senhor, que se abre e dá.. .sois vós.
O irás completas de Castilho 177

III
P or cidades e cam po o u tr’ora, ao perto, ao longe,
envôlto em seu borei, encanecido monge,
co’o pardo saco ao hombro, as sandalias nos pés,
nas mãos bordão nodoso, ao sol crestada a tez,
impassivel á injuria, ao sol, ao vento, ás chuvas,
pedia, extranho á terra, os seitis das viuvas,
ao colono a paveia, e do pobre os reaes;
depois, abria o saco, e mosteiros Reaes
lhe pulavam de dentro, aos séculos assombro.

H oje, em vez do erm itão, pés nus e saco ao hom bro;


actor que já no drama o seu papel perfez,
disse o Autor á mulher:— «Agora, a vossa vez,
«sexo amor, sexo mãe: dae novo curso á esmola:
«o convento cahiu; que se aievante a escola.»

IV
Finda a estação gelada, a bosque e monte nus,
progresso eterno, o sol faz de calor e luz
verduras, esperança, aromas, graças, flores,
musicas mil no ar, nos peitos mil amores;
e nos ninhos á sombra, e no flóreo matiz,
e nos chãos de esmeralda, em tudo, já prediz
que vem lá o verão; que d’esses mudos ovos
vão pulular, fugir, sem conto, alados povos;
que é messe de oiro a relva; um pomo cada flor;
cada fragrancia um favo. ¡Hosana ao Creador!
¡ao Progressista Summo! ¡ao Prodigioso Eterno!
que no mundo moral, como no mundo externo,
ao pensamento e ao sol impoz a mesma lei:
— A 'vante! avante sempre! em fogo, em lu{ crescei;
tsôlva-se o rude inverno em rtca prim avera ;
•para o bem, para mim, se avance de tra em era .*—
178 Empresa da Historia de Portugal

E cada interior, cada vez mais a abrir


á fé, dos Ceos reflexo, e aurora do porvir,
de suave piedade a mais e mais se inunda,
aroma que o embalsama, e polen que o fecunda.

Parabéns, sexo meu, mil parabéns nos dou.


Hoje, de ser mulher, ufana, ufana estou.

Para os homens, o fòro, a industria, o parlamento,


a força, a espada, a gloría, o estrondo, o movimento;
a escola é nossa; é nosso o quinhão que mais vai;
a escola é da mulher, desde que é maternal,
desde que chama, attrai, com próvido carinho,
desde que, em vez de jaula horrenda, é claro ninho,
fôfo, tépido, flóreo, abundante de grãos
pingues, doces ao gosto, apetitosos, sãos.
A escola, ha pouco inferno, inferno de innocentes,
sim hoje é ceo, e é nossa. Os fados recrescentes
da humanidade em marcha á conquista da luz,
cedo confirmarão ao sexo nosso o jus
de ser mãe té ao fìm, de ultimar com deleite
a amamentação d’alma aos que nutriu co'o leite.

V
¡Oh! ¡se a tivesseis visto, a escola, como eu vi,
a escola que ora nasce, a escola que ama e ri,
a escola clarfdade e cantos, como a aurora!
Damas que me escutais, ¡se a visseis! ¡se algum ’hora,
attrahidas ali pelo ecco do prazer,
dos frutos pelo aroma, a chegardes a ver,
tan ta attenção na infancia encher-vos-ha de pasmo,
de enlevo 0 seu progresso, o am or de enthusiasm o;
e exclamareis, como eu, a chorar e a sorrir:
—«¡Salve, ó berço, em que dorm e a gloria do porvir!»
Otras completas de Castilho 179

E todas, todas vós, como outras tantas fadas,


lhe fadareis que medre; e as Horas mais doiradas,
com azas de alvo azul, o olhar jorrando luz,
dóceis á benção vossa acudirão a flux;
e todas, todas vós, direis a todas ellas:
— «Tomae, tomae nosso oiro, ó fugitivas bellas;
«Horas, m ies do progresso, H oras, que ao globo eguaes,
«de occaso a oriente, e sempre, e sem cançar, voais;
«ajuntae ao nos so oiro os nossos diamantes,
«resplendores serti fogo em seios palpitantes;
«e d ’esta pedraria, e d’estes vãos metaes,
«surperfluos á belleza, e tanta vez fataes,
«de tudo isto, e de nós, que somos á innocencia
«o calor da vontade, a luz da intellígencia,
«da arvore da vida a raiz, seiba, e flor,
«componde para a te rra um novo E dén de am or. ■»

E as Horas apressando o vôo alvoroçadas,


fieis á intimação de tão possantes fadas,
correrão a cortina á scena do porvir.
Deus do alto a contempla entre Anjos a applaudir.

VI
iOh! ¡do divino drama acto novo e sublime!
{Surge electrico sol! O error, o vicio, o crime,
sombras da noite d’alma, e a inercia odiosa e van,
vão fugindo ao crescer da esplendida manhan.

A mulher toma ao collo a nova humanidade;


duas vezes lhe é mãe; mais que mãe: divindade;
co’o seu halito amante apressa-lhe a rasão,
dá-lhe o instincto do justo, e do nobre a ambição;
a todos o dever como o direito é sacro;
brilha nume o que fôra apenas simulacro:
a Liberdade; o Povo adora as próprias leis;
i8o Empresa da Historia de Portugal

os Reis são cidadãos; os cidadãos são Reis;


em todos resplandece a dignidade humana;
equilibrio feliz eleva, exforça, irmana.
Todos estão em tudo, e tudo em cada um;
communs o bem e o mal, como a vida é commum;
a sciencia geral, geraes as artes bellas,
vivificante o ar que expira d’eli a e d’ellas.

VII
¡Mas a h í... ¿previ? ¿sonhei?... ¿a edade de oiro, ó Deus,
ter-nol-a-has tu guardado entre os arcanos teus?!
Delirio; os Ceos, são Ceos, e o nosso mundo é mundo.

Sim; mas o bem, de bens cada vez mais fecundo,


em sua evolução cresceu de avós a paes,
de paes a filhos cresce, e ha-de ir perenne a mais.

Progresso ereador, tal crença em ti é nova;


creastel-a tu mesmo; e ella o teu ser comprova.
¡Fé santa! ¡fé sublime! ¡inspiradora fé!
pintas o que ha-de ser co’a viveza do que é;
estendes no ideal os terminos do certo ;
das distancias os graos destroes; é tudo perto;
mais que perto: é presente; abraça-se; é -ivaz;
gosa-se; a alma cresceu; crê em si, ousa, faz;
consegue tudo. A fé, que transportava os montes,
cria mundos no mundo ampliando os horizontes.
Por ti, ante o querer tudo possivel é,
fé santa, fé sublime, inspiradora fé.

¡Mal haja a mente escura, o coração covarde,


que te repulsa a luz, que aos raios teus não arde,
e frio, escuro, immoto, á corrente se oppõe,
que de espumas o cospe, e férvida o transpõe!
Fique-se; encrave os pés no abysmo eternamente.
Obras completas de Castilho 181

Nós, ondas verde-azues, sigâmos na corrente


lá para as regiões d’onde um vago arrebol
augura a terra e Ceo mais Deus em maior sol.
Rolemos m urm urando o hym no sem fim de am ores;
de cima o sópro vem que nos roja entre flores;
rolemos; do Supremo a providente mão
foi que abriu nosso leito, alveo sondado em vão,
mysterioso, ascendente, errante na apparencia,
mas sempre a progredir; ¡rolemos! ¿Resistencia
quem poderia oppôl-a ao impeto caudal?

VIU
¿Mas sabeis vós qual seja 0 grupo sideral
que n’esta hora do mundo attrai esta corrente,
a marchéta de luz suave e refulgente?
Essa constellação, feliz, terna, gentil,
mulheres, soil-a vós. O horóscopo infantil
ue em puericia ditosa adita a adolescencia,
3 obra ao adulto a força, ás cans dobra a sciencia,
(¿que outrem podéra sel-o?) ó damas, vós o sois.

Sexo meu, parabéns, ¡gloria a vós! ¡marchae pois!


¿Sois vós menos que o monge? elle ante a hum anidade
teve um prestigio: a fé; vós tende a caridade.
Caridade é o amor em fórma feminil.

IX
¿Quem resistiu jámais á supplica infantil
de creanças sem lar, sem pae, sem pão, sem veste,
que, alta noite de inverno, á chuva, ao vento agreste,
descalças, Deus na voz, e lá dentro nem Deus,
apegadas á mãe, seguem co’os choros seus
o peão distrahido, o coche luminoso,
que vão da op’ra á ceia, ou do amor ao repouso?
V O L . XXI 12
i82 Empresa da Historia de Portugal

Não ha tão ferreo peito, onde uns eccos sequer


não vibre aquella angustia; e seio de m ulher. ..
nenhum, juro, nenhum, que em dó se não desfaça.

Mas taes scenas do drama infindo da desgraça


não são o drama todo: as creanças sem pão,
que entrevedes e ouvis prantear na escuridão,
vagam de longe a longe, expressam co’o lamento
só a dor que lhes traz cada aspero momento:
a dor physica, o frio, a fome. Inda ha peior:
o mal que se não vê, nem se queixa, é maior.

A escuridão da mente a quem faltou cultura


mata em germen a vida. Em vão á creatura
se pergunta depois:— «¿Onde é teu Creador?!
«¿E’s sua imagem, tu, tu, alma sem fulgor,
«peito sem coração, movimento sem alvo,
«verme de instinctos vis?! A luz te houvera salvo...
«perdeste te; e se o mundo avaro te esqueceu,
«pereces bem vingado: o mundo te perdeu.»

Mulheres, ¡eia! ¡ávante! anjos da santa esmola,


vosso foi sempre o berço, e é berço augusto a escola.
XX

3S Æ O R . E T O
ÏR A D U C Ç À .0 D E U H P O E M A A T T R IB G ID O A V IR G IL IO
OFFERECIDA

AO

E X * 0 CONSELHEIRO ANTONIO JOSÈ D’ AVILA

¿Apeteceis conhecer o que era o more­


tum ? E ra um conduto rusticissimo dos an­
tigos Romanos; só por isso é que ritualmente
o apresentavam nos banquetes de Cybelle
na Capital do mundo, e nos dias do seu ma­
ximo esplendor. Tem os á mão com que vos
satisfazer a curiosidade; desafiar-vos o ape­
tite, não diremos. Era o moretum confei­
ção para nós hoje em dia antipathica em
tanto auge, que nos obriga a exclamar, como
Horacio contra o alho: O’ brutos estomagos
dos lavradores. E alhada seria de feito a
mais acertada traducção de moretum\ agliata
lhe chamam os Italianos.
¿Por que será que, tendo sobrevivido aos
regaloes romanos tão diminutas noticias da
sua arte culinaria, e da sua conservaria, não
despicienda apesar da falta do assucar, se
nos conservou inteira, completa, e mais que
minuciosa, a receita de uma comida tão vil­
lani Aos banquetes opíparos dos salios, por-
184 Em presa da Bistorta de Portugal

ta fechada; para um almoço de moretum na


choça de um hortelão da antiga Nápoles,
entrada franca.
Não só havemos de comer em espirito o
moretum, unico modo por que nos parece
tragavel, mas até havemos de assistir á apa­
nha dos seus ingredientes, e á sua circum-
stanciada manipulação.
A ’s ceias pontificaes só assistiriam volu­
ptuarios, a quem pouco se dava da cosinha
e seus arcanos, uma vez que as iguarias
chegassem aos triclinios merecedoras de que
as precedessem flautistas, e as acompanhas­
sem como em triumpho mimos e psaltrias;
mas pelo casalejo de Símilo passou um poeta;
namorou o a amenidade da horta, que, no
seu tanto, nem jardins de Alcínoo lhe davam
de rosto; entrou (viria de Roma ou iria para
Roma); tudo que o interior do tugurio lhe
descobriu do viver laborioso e simples de
um solitario, contente e feliz com tão pouco,
o induziu a reflectir com amor, se lhe não
suscitou boas invejas. N ’essa hora, compa­
rando caladamente os faustos e os estron­
dos da Capital do mundo com a profunda
paz de tal vivenda, onde por sentinella bas­
tava o gallo, para muralhas um canavial, e
por escravaria um par de novilhos e uma
preta, temperou por força a sua poesia com
uma philosophia sempre velha, mas para elle
então como que nova: a philosophia, que
em estylo aphorismatico de sábios da G re­
cia ensina a contentar com pouco, e a so­
negar a existencia aos olhados da inveja e
aos vaivéns da fortuna.
I Como se chamava esse poeta? ninguem
Obras compitias d t Castilho 185

hoje o sabe ao certo para o affirmar; crêem


uns, que fosse Aulo Septimio Sereno, con­
temporaneo de Vespasiano, nado na Africa'
romana, e creado em Roma; autor de poe­
metos campestres, Opuscula ruralia, de
que só duram fragmentos; outros suppõem
que ao grego Parthenio, ou mestre ou ami­
go de Virgilio, pertenceu originariamente
esta exercitação, trasladada a poesia latina
pelo alumno; outros teem que fosse o au­
tor Virgilio mesmo.
O s eruditos que o disputem se lhes dá
cubiça; o que eu sei é que este poema, se
bem conheço o meu amigo Virgilio, é todo
conforme aos gostos nativos do Theócrito,
Hesiodo, e Homero romano.
Não me alleguem por argumento em con­
trario o não haver n’estes versos, nem a al-
tiloquia heroica, nem o didáctico sóbrio e
ornamentado, nem o partorii, delicado, en­
genhoso, mas simples. Cada genero litera­
rio tem lá as suas leis peculiares.
Descriptas servare vices operumque colores.
Virgilio, pelo seu optimo senso, bem o sa­
bia, e optimamente o manifestava, em tudo
que sahia do seu calamo para o papiro,
ou do seu estylo para as tabellas. A s suas
tres grandes obras, cada uma prima e pri­
morosa na especie a que pertence, só n’is­
so se irmanam umas com as outras; no de­
mais seria diffidi comparai-as; o que se pó­
de dizer considerando-as, é que tiveram o
mesmo pae, e que o pae era um formoso
genio; as feições, as maneiras, os gostos e
os primores d’aquellastres irmans, tão diver-
iS6 Empresa da Historia de Portugal

sámente dotadas e educadas, tanto se extre­


mam entre si, que Bucolica, Georgica, E nei­
da, são tres individuos poeticos tão impossíveis
de confundir, como os assumptos em que se
exercem: o ocio dos pegureiros, a actividade
dos lavradores, as proezas dos heroes.
São como as tres Graças, que. todas res­
sumbram no rosto, nos ademanes, na sua­
vidade, a sua origem celeste, mas que cer­
tamente haviam de ter indoles, dominios, e
influxos demarcados e privativos.
Se considerarmos o moretum só pelo vul­
to, de longe e de passagem, parecer-nos-ha
pouco mais que uma receita em verso, escrita,
segundo a suspeita de um nosso amigo muito
douto,por alguma cozinheira curiosa e letrada
d’aquelles tempos. Mas, se, mais attentos, o
espreitarmos bem por dentro, enxergal-o he­
mos recheado de pequenas bellezas a fugir,que
não deixam de te ro seu quid virgiliano. Está-
nos lembrando aquelle cepo de quasi informe
escultura, que symbolisava as Graças; adora­
vam n-o os Gregos; não pela exterioridade, se­
não porque, logo que se abria, se descortinava
enxameado de um sem conto de graçasinhas,
qual a qual mais linda e primorosa. E ’ lêl-o
reflexivamente. ¡Com que industria não vão
ali semeados, com um descriptivo de coisas
triviaes, minucioso em verdade, mas inten­
cionalmente minucioso, e de não leve merito
por parte da exacção, da clareza e do' seu re­
moto de dois mil annos; com que industria,
repetimos, não vão ali semeados toques de
moral, de philosophia, de saudade, e de amor
á Natureza, quaes ao Mantuano cahiam sem­
pre sem se sentir !
Obras completas dt Castilno 187

Nos campos de Andes, aldeóla convisinha


a Mantua, nascêra e se creára Virgilio. Se
a ventura, sob o aspecto de desgraça, o con­
duziu depois á Capital do mundo; se o seu
genio lhe franqueou os palacios de Mecenas
e de Cesar; se ahi conviveu com os primei­
ros homens do grande seculo; se os seus
versos eram admirados na córte e applaudi-
dos nos theatros; se o povo parava para o
ver nas ruas, e nas reuniões festivas dos es­
pectáculos saudava o seu apparecimento co­
mo de principe; se a munificencia imperial
lhe liberalisou com que haver vivenda lu ­
xuosa no ostentoso bairro das Esquilias, con­
tígua aos jardins de Mecenas, nunca, jural-o-
hiamos, em meio de tão levantadas magnifi­
cencias, se lhe desluziram do espirito affe­
ctuoso as memorias d’aquellas amenissimas po­
brezas de sua creação; a Eneida mesma nol-o
manifesta £ cada passo. ¿Que versos ha ahi
n’esse opulento inventario das grandiosida­
des romanas, chamado Eneida, que nós re­
leiamos com mais satisfação, e com mais sa­
tisfação podessem ter sido escritos pelo au­
tor, que os relativos ao viver semi-silvestre
de el-Rei Evandro? ¡Como tudo aquillo é
campesino! ¡como se está bem n’aquelles
paços-choupana, entre arvores incultas, sem
guardas pretorianas, nem outras alvoradas
senão as dos passarinhos! ¿E onde nos põe
elle todas essas nativas simplezas, tão des-
cançadas, tão sonoras e tão fragrantes? no
proprio torrão onde as está celebrando mil e
trezentos antios depois, quando os bosques
e os pastios são ruas, foros, templos, thea­
tros, banhos, e palacios!
i88 Em presa da Historia de Portugal

Estas contraposições da opulencia coni-


temporanea com os primordios selváticos,
namoravam a todos os poetas do seculo ce­
sáreo; é abrir Ovidio ao acaso nos Fastos.
Mas o contraste só por si não continha to­
da a rasão de se elles voltarem tão compla­
centes e a miude para essas reminiscencias
de outras eras. Das suas memorias biogra-
phicas se deprehende quanto o ocio amenis­
simo dos campos, poesia já feita pela propria
Natureza, os seduzia e os inspirava. Ovidio
rusticava de muito boa mente; por elle m es­
mo o sabemos; ¿poderia Virgilio deixar de
o fazer?
Diz Juvenal que Virgilio, se não houvera
sido rico e disfrutado as commodidades da
vida, não teria sahido tamanho poeta. O
nosso Garção diz o contrario a proposito de
Camões :
«Não escreve Lusíadas quem janta
em toalhas de Flandres, quem estuda
em camarins forrados de damasco.»
Nem um nem outro tem rasão, parecendo
ambos tel-a ; o que é certo é que, se Virgi­
lio enriqueceu, e poetava a sua Eneida em
casarias suas muito nobres, no bairro das
Esquilias, com boa livraria, painéis e servos,
e provavelmente carruagem e cadeirinha, as
E glogas, a Georgica , e muitos outros dos
seus poemetos enjeitados, e muitas descri-
pçÕes e comparações das mais famosas, pro­
fusamente semeadas na mesma Eneida, trou­
xeram origem dos primeiros annos da sua
vida, dos tempos em que era pobre, morava
na aldeia, e vivia familiarmente com a Natu-
Obras completas de Castilho 189

reza campestre. As hortas dos Sím ilos mui­


tas vezes lhe haviam de lembrar em casa de
Mecenas e no palacio do Imperador.
Da Georgica se crê haver sido emprehen-
dida por conselho de Mecenas, para ver se
pela Poesia os Romanos se voltavam um tanto
para o amor da Agricultura, delicias dos seus
antepassados. Se assim foi, excellente era o
intuito, porque o trato da terra corria então
em grande desamparo ; triste resultado da
espoliação de tantas propriedades ruraes eni
favor das tropas; da diminuição de braços
consumidos pelas guerras; dos habitos lu­
xuosos, introduzidos pela opulencia das con­
quistas; e emtim dos latifundios, que manti­
nham sob o dominio esteril de poucos, solo
que houvera alimentado a innumeraveis. Boa
politica foi portanto essa de Mecenas, se elle
a aventou, e bem discreta a escolha que de
Virgilio fez para lh’a reahsar; mas, como o
supposto se não prova, inclinamo nos antes
a deixar toda a honra da iniciativa ao pro­
prio poeta ; e não empregámos bem a pala­
vra honra; foi só o seu pendor natural o que
sem nenhum exforço para ali o conduziu,
como em qualquer edade nos repastamos por
instincto nas lembranças da nossa infancia.
Ou áquella ideia de Mecenas, ou a esta que
lhe nós antepomos, podemos tambem em
parte attribuir a anterior publicação das B u ­
colicas ; collecção de alguns poemas curtos,
e de natureza pelo demais arcadica, compos­
tos por Virgilio. O poeta, chamando E g lo ­
gas a esta collecção, o que nos dá a ideia de
escolha, despediria d’ella, pelas reputar mais
fracas, outras suas composições de indole
i go Empresa da Historia de Portugal

muito análoga ; n’esse refugo se comprehen-


deria o M oretum, o H ortulus , a Copa , e o
Culex ; opuscules que teem entre si uma
grande fraternidade de espirito.
Quanto á Copa , não é de certo para des­
denhar a opinião de Philarète Ghasles, que
teima e bate fé em como é virgiliano aquelle
brinco. Pelo que respeita ao Culex, Marcial
mesmo o dá sem controvérsia por virgiliano,
com reconhecer-lhe menos quilates:
Protinus Italiam concepit, et arma virum nie,
Qui modo culicem fltverat ore r u d i.. .

Já alguem, querendo vir commigo a bom


concerto sobre a paternidade do M oretum,
me disse, que, se de Virgilio era, aos seus
primeiros annos se devia attribuir, e adscre»
ver-se ás suas ainda balbuciantes tentativas,
mais de metrificador descritivo que de poe­
ta. Com toda a minha consciencia repulso
como injusta a affronta da concessão. Acho
eu mais provável que o M oretum fosse es­
crito no seu luxo de Roma, do que ao sahir
da sua infancia rustica; porque, se elle tivesse
debaixo dos olhos os objectos que no poema
se descrevem, e não collocados na distancia
que os torna artísticos, não seria tentado a
miudéal-os por tal arte. Dizia Rousseau, que
para bem falar da liberdade lhe conviria es­
tar na Bastilha. N ’esta parte todos nós temos
o nosso tanto quanto de Rousseau.
Seria facil approximar a muitos dos ver­
sos do M oretum muitos outros do autor
que lhe suppomos; mas contentâmo-nos de
apontar, para que se note, aquella admiravel
comparação que o poeta nos faz de Vulca-
Obras completas de Costil ko ig i

no, madrugando para ir fabricar o escudo


de Enéas, com a mãe de familias, pobre,
virtuosa e vigilante. Esta comparação, sim­
ples e formosa como urna parabola biblica,
é repassada da sensibilidade melancólica e
semi-christan do nosso inimitável poeta.
Eil-a aquiì
Inde ubi prim a quies, medio jam noctis abactae
Curriculo, expulerat somnum; quum femina prim um ,
Cui tolerare colo vitam tenuique minerva
Impositum cinerem et sopiios suscitat ignes,
Noctem addens operi, famulasque ad lumina longo
E xercet penso, castum u t servare cubile
Conjugis, et possit parvos educere natos,
Haud secus, etc.

Para os que se não podem regalar com a


leitura de tão finos versos, aqui Ih’os damos
traduzidos pelo bom do João Franco Barreto]'
é um panno de raz pelo avesso ; mas p a­
ciencia, que o não ha melhor para elles:
«Assim como a m ulher a quem agrada
passar co’a roca, ou com te ar a vida,
que se levanta mui de m adrugada,
e esperta a cinza e flamma am ortecida,
acrescentando á obra a socegada
noite, e á luz da luzerna apercebida
em um longo ñar, cuidosa e afflicta
as famulas occupa e exercita,
para que guardar possa castamente
o leito e cam a do marido amado,
e os seus pequenos filhos alimente
que ambas as coisas lhe dão gran cuidado.*

Pergunto aos que poderam 1er devida­


mente aquelles versos latinos: ¿esta cuida­
dosa mãe de familias não será irman legitima
do Síroilo do M oretum i Porém insistirá tal­
vez alguem: ¿onde ha ahi por cima de todo
i$3 Emprega i a Historia de Portugal

este perpetuo descrever do M oretum , coisa


que se assimilhe á idealidade, sem a qual se
não concebe nem poesia nem Virgilio? ¡Onde!
em tudo ou quasi tudo, quando se queira e
saiba 1er sem prevenção adversa; mormente
cá tão longe e tão tarde. Vista faz fé. Ahi
vai o M oretum com a sua quasi servil tra-
ducção em alexandrino de rimas alternadas.

I
Dez horas ha que é noite; a alada sentinella
d ’entre a brum a invernosa o dia emfim revela.

Similo, de horta escassa o rustico abegão,


em seu grabato acorda; o frio agudo em vão
lhe aconselha que jaza, em bora o gallo cante;
a luz que já lá vem lhe diz que se alevante;
que ao diario sustento é forçoso acudir.
R e m a n ch a.. . mas surgiu.
Co’os olhos de dorm ir
vai tacteando o escuro; acha o lar; palpa, e sente
m order lhe do borralho a occulta braza ardente.
Despendura a candeia; inclina-a devagar
p ara o débil clarão que resurgiu no lar;
tom a a espe itadeira; e co’a fronte pendida
puxa, approxima, accende, a estopa da torcida.
A poder de soprar reanim a o fogo; já
co a fogueira vivaz rindo a cozinha está.
Guardando a luz co’a mãe contra o vento protervo,
ebega ao seu celleirinho; abre-o. e entra; um acervo
não mui alto, de trigo, ali po r te rra jaz.
T om a d’elle a porçãp que julga ser assás,
a libras dezasseis no pezo equivalente.
Ao moinho de mão caminha em continente.

P regada na parede está junto da mó


urna prateleirinha, ordenada tão só
para lhe te r a luz em quanto móe. Desnuda
os braços; avental, deu-lh’o,cabra felpuda;
inda a cauda lá pende; ergue-a, e com ella o pó
varre mui bem de dentro e em derredor da mó.
Obras completas de Castilho 193

Escasqueado o engenho, eis dá principio á lida,


en tre direita e esquerda irm ãm ente partida;
que a moagem sonora occupa ambas as mãos:
a direita, a girar; a esquerda, a dar os grãos.
O rodar se aferventa; a pedra do moinho
vôa cada vez mais em alvo remoinho;
do grão que entrou doirado álbida chuva sai.
Se a dextra cança, a irm an presto suppril-a vai.
Ajudam-se um a á outra, e zombam da fadiga.

Só, calado, e lidando, é mau; venha a cantiga,


a cam pestre cantiga herdada já de avós,
tão d ’elle e tão de m olde á sua agreste voz.
Canta. ¿Onde ha hi canceira em meio a taes cantares?

II
O utro fôlego vivo inda ha porém nos lares:
Cybale; entra a cham ai-a; é tem po de se erguer;
Cybale, do casal e do seu pobre haver
a serva guardadora. A pinta não engana;
quem n ’ella os olhos poe, diz logo: és africana.
Lan, p o r cabello; o beiço, inchado; escura a tez;
no peito ampla extensão; nos seio< flaccidez;
o ventre com primido; a perna sem grossura;
o calcanhar gretado; a planta enorm e e dura.
T o m a a chamal-a; chega; ordena-lhe ao fogão
m e tte r lenha, pôr agua ao lume.
A rotação
já deu fim á tarefá; agora a mão ligeira
lança todo o moído á concava peneira,
e sacode-a, e sacode-a, até que a sêmea vil
pule extrem e ao de cima; em baixo, a flor subtil,
aa farinha fugida á nuvem grossa e leve,
poisa, se alastra, alveja em cumulos de neve.
Em liza tábua a ajunta, a am ontôa mui bem;
infunde-lhe porção d’agua aue ao lume tem;
mistura, volve, am assa, endurece, redobra
as abas para o centro; em quanto adianta a obra,
vai na massa lançando em conta o vitreo sal.
Amassou, tende.
E ’ prom pto o pão, don cereal
disco achatado e am plo, em quadros com partido.
194 Empresa da Historia de Portugal

Já o la r do fogio, por Cybale varrido,


cham ando a bola está; prom pto ali a introduz;
po r cima um testo põe. Sobre o testo relu*
de áscuas ëm abundancia esplendida larada.
Cumpram Vulcano e V esta a parte que lhe é dada,
que a Símilo entretanto incumbe outro mister.
Não lhe basta haver pão; tambem conduto quer.

Não tem na chaminé suspensos ao fumeiro


salgado lombo, ou pás de javali caseiro,
com que a seu parco ventre opimas glorias dê;
o que em cordão de esparto enfiado ali se vê,
é só redondo queijo, e um mólhinho pendente
de endro secco e sem côr, mas inda rescendente.
¡Fraca’pitanca aquella, a quem tão prom pto esmoe!
de algures ha-de vir rem edio ao nosso heroe;
vem, e não vem de longe.

III
Ao rés da choupaninha
fica a pequena horta, a próvida vizinha,
com vimes por tapume, e seu cannaviaí
que offerta annua! um córte e rebenta annual.

Náo é amplo o torrão; porém no bem disposto,


no crear tudo e bom, a todos dá de rosto.
Nada fallece ali do que ao pobre convem;
jq u e digo? o proprio rico ali mil vezes vem
buscar com que acrescente os dons na lauta meza;
se é pobreza,*á riqueza acode esta pobreza.

¿Taes frutos provirão do grande despender?


¡ohi não; trabalho e regra é que dão tanto haver;
se vem fechado de agua um dia em que não possa
alongar-se do lar, perder de vista a choça;
se vem outro de festa; em summa: se, depois
que a lavoira acabou, dá folga a arado e bois,
e todo ho rta e mais horta; esse trato cam pestre
não tem devoto egual, nem mais insigne mestre.

Sabe como ninguem dispôr em seu logar


cada planta diversa; as leis do semear;
a arte de conduzir de canteiro em canteiro
pelos vítreos canaes um fluido rigueiro.
Obras completas de Castilho 195

¡Como ihe m edra a couve entre essa fresquidão!


¡corno a acelga se alastra! ¡oh! ¡como a pulos vão
as labaças medrando! ¡e alem a malva ufana!
¡e aquí toda viçosa a énula campana!
¡e a cherivia! ja cebola! ¡a forirosa cruel
dormideira, que mata, e confeitada em mel
se a torraram prim eiro é bello postre! ¡e a alface,
que entre lautos festins m ostra sem pejo a face !
je a abóbora bojuda, o moristro vegetal
que onde nasceu, poisou em somno perennal !
¿Com tan ta profusão quem é que se regala?
o povo; ao fazendeiro, o gosto de creal-a
lhe basta; hom em tão sóbrio ainda não nasceu.
Cada nundina vai d’este granjeio seu
os frutos, com o ouriço elle proprio avergado,
leval-os á cidade, expôl-os no marcado,
d'onde, acabada a venda, ao seu casal feliz
volve, quente de bolsa e leve de cerviz.

Se traz carne do açougue, é rara vez na vida;


qualquer coisa lhe basta e sobra por com ida:
a cebola vermelha, o picante agrião,
a roda do alho porro, o almeirão e o rinchão,
o rinchlo que do am or excita ás igneas festas,

IV
Cogitando talvez alguma coisa d’estas,
entrou na h o rta pois; direito aos alhos vai;
co ’os dedos fossa a te rra ; um, dois, mais dois extrai;
de aipo uns ram inhos colhe, arruda e mais coentro.
Regressa para casa; e apenas está dentro,
senta-se ao vasto lume, e pede á serva o gral.
Cebolas pela; em torno alastra-se o estendal
das camisas subtis que enjeita; emfim já franco
apparece lustroso o bôlbo interno branco;
em agua o banha, e o lança ao m arm óreo pilão.
Deita sal, deita queijo a que inda unidas vão
novas codeas de sal, um queijo ressequido;
e ajunta áquillo tudo as hervas que ha trazido.
E ntre as coxas co ’a sestra o fato subm etteu;
co’a mão do gral a dextra exerce o lavor seu;
móe os alhos primeiro, e logo de m istura
tudo mais que apanhou se esmaga, se tritura;
ig6 Empresa da Historia de Portugal

funde os sumos n ’um sumo, as cores n ’uma cór;


al va nSo, que se oppõe das hervas o verdor;
mas verde tam bem não, que das hervas o verde
do queijo co’a brancura o ser nativo perde.

Os cheiros egualm ente eram tántos, são um:


acre, im portuno, acerbo, asperrim o fortum ,
que as largas ventas lhe enche e o faz to rcer a cara.

A quebra do jejum sai-lhe ao nariz bem cara;


choram -lhe os olhos; raiva, e enxugando-os co’a mão
contra o fumo sem culpa exhala a indignação.
Pouco resta a fazer; já tu d o é massa branda,
e em menos leve giro a mão do gral já anda.
Thstilla o de Minerva aurífluo licor
co’um golpe de vinagre, e torna a sotopôr
pela ultima vez o polrae rescendente
ao macio girar da clava contundente.
Concluiu, raspa o gral co’os dedos; junta, e põe
tudo n’um monte, o alisa, o vulto lhe compoe
na costumada fórma e co’o sabido aspecto
do que entre os aldeões tem liome de Moreto.

Cybale, sem pre attenta ao que a seu cargo tem,


saca o pão do borralho, apresentar-lh’o vem.
Lava o rustico as mãos primeiro que lli’o tome,
e recebe-o folgando; agora é rir da fome;
já para todo o dia á farta se proveu.

Pois se desjejuou, toca ao trabalho seu.


De botas e som breiro emfím sai da cabana.

Os bezerros, que ao lado esmoem na arribana,


dobram á dura canga a callosa cerviz:
são horas de ir lavrar.

V ê-los lá vão servis,


an tes dóceis, á voz do seu agreste amigo,
revolver esse chão, que espera o loiro trigõ.
Lisboa
Julho de 1860
FIM DO PRIMI IRO VOLUME
Obras completas de A. F. de Castilho
3 — Cartas de Ecco e Narcizo, verso.
4 5 — Felicidade pela agricultura, 2 vola.
6-7 — A prim avera, verso, 2 volsv
8 a 15 — Vivos e mortos, apreciações morais, litera­
rias e artísticas, 8 vols.
1*6 a 18 — Escavações poeticas, versos, 3 vols.
19-20 — 6 presbyterio da montanha, prosa, 2 vols.
21-22 - O outomno, verso, 2 vols.
27-28 - Novas Escavações poeticas, verso, 2 vols.
29 a 32 — Theatro, Camões, drama e notas, 4 vòls.
33 — Theatro, Canáce, tragedia original.
34 — Theatro, Um anjo da pele do diabo — O
casamento de oiro, comedias.
35 — Theatro, Aristodemo, tragedia. A volta
inesperada farça
3 6 — T h e a tro, A festa do amor filial. A filha
para casar, comedias.
37-38 — Palestras religiosas e consolações, prosa
e verso, 2 vols.
39 a 45 — Gasos do meu tempo, prosa. 7 vols.
46 — Estrelas poeticas para o ano de 1853, verso.
47 a 60 — Télas literarias, prosa, 4 vols.
51 — Os Ciumes do bardo, As flores, e a con­
fissão de Amelia, verso.
52-53 — Mil e um misterios, romance dos roman,
ces, 2 vols.
54 — A noite do castelo, poema.
55 — Tributo portuguez a memoria do Liber­
tador, prosa.
68 a 60 — Novas télas literarias, prosa everso, 3vols.
61 a 63 — Methodo Portuguez de Leitura- Directo­
rio do mesmo, 3 vols.
64-65 — Castilho pintado por èie p r o p r i o . As escolas
dos asilos de Infancia desvalida, 2 vols.
6 6 — Felicidade pela instrução.
67 — Ajuste de contas.
68-69 - Noções rudimentares para uso das esco­
las, 2 vols.
70 a 72 — Resposta aos novissimos Impugnadores
do Methodo portuguez, 3 vols.
73 a 75 — Tratado de Mnemónica, 3 vols.
76 — Ou eu OU eles, e Tosquia de um camelo.
77 a 80 Cartas. 4 vols.
îMP. LÜ CA S & C .a — RUA DIARIO DE NOTICIAS, 61 — LISBO A

Você também pode gostar